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Colegio Esphito Critico Conseho editorial Aledo Bost Antonio Candido Augusto Masi 5 Sussekind Gilda de Mello e Sours Roberco Schware Alfredo Bosi CEU, INFERNO Ensaios de critica literdria ¢ ideoldgica fl tivraria TA) Duas Cidaces: editoralll34 54), em desenho 105 poemas de Cinco dot ctntics para flauta evioide, publicado em 1942 Moderno e modernista na literatura brasil A emergéncia do novo é sempre um ponto nevrilgico para a histéria da literatura. Obras como Paulicéia desvaira- da de Mario de Andrade ¢ Memdrias sentimentais de Joao Miramar de Oswald de Andrade, ja formalmente moder- nistas, poderiam ter sido escritas sem a abertura dos seus autores a0 que se estava fazendo na Franca ou, via Franga, na Iedlia fuurista, na Alemanha expressionista, na Russia revolucionéria e cubofuturista? Parece que nio, ‘Avirada do primeiro pés-guerra f brechas em todos os sistemas culeurais que mostravam indi- cios de saruragao. No Brasil, a area em que 0 conflito pro- ‘anolcitaddino se favia sentit com mais agudeza era S40 Aqui a rupcura foi possivel, porque s6 aqui o pro- cesso social e econémico gerava uma sede de contempo- rancidade junto a qual o resto da Naso parecia ainda uma vasta provincia de Parnaso, Oswald viu bem, na introdu- sao de Serafim Pante Grande: “Q movimento modernista, culminado no sa- rampio antropofégico, parecia indicar um fendmeno avangado, Sio Paulo possufa um poderoso parque in- dustrial. Quem sabe sea alta do café no ia colocar a Céu, inferno literatura nova-rica da semicol6nia a0 lado dos custo- 508 surtealismos imperialiscas: E mais adiante: “A valorizagao do café foi uma opera: so imperialista. A poesia Pau-Brasil também. Isto tinha que ruir com as cornetas da cris. A parte 0 tom despachado e a visada redutora das fra- ses do grande satirico de si mesmo que foi Oswald, ha bas- tante fogo atrés dessa fumaca. Os jovens de 22, que tive- ram a seu favor a simpatia do governo do Estado, as pagi- nas do Correio Paulistano e alguns saldes da alta burguesia, encarnavam, em termos de psicologia social, 0 desejo do novo ¢ do refinado, ainda que chocantemente novo e refi nado, sentimento menos acessivel a grupos saidos de ou- tras reas, naquela altura do processo Hé uma condigéo paulista do Modernismo, que mar- catia alguns escritores de indole mais conservadora (Gui- Ihetme de Almeida e um certo Cassiano Ricardo) ¢ conse- guiria sublimar-se na arte dos radicais: Mario e Oswald. Quanto a Antonio de Alcantara Machado ¢ Sérgio Millict, tiveram, cada um, uma face paulistana tio marcada quan- to a face internacional. A combinagao de uma nova perspectiva historica, 0 novo espaco-tempo da cidade grande de pés-guerra, com uma bateria de estimulos artisticos europeus, tornou pos- sivel, historicamente, a Semana de Arte Moderna de 1922 Como a tonica do grupo foi a modernizagao da linguagem, © segundo fator, estético, tem aparecido sempre como so- bredeterminante, A Semana pretendeu ser a aboligio da Republica Velha das Letras. ~ Teria sido impossivel aos melhores talentos da nova Sio 210 Moderno e madernista na literatura brasileira Paulo alhearem-se a estilos que estavam desmanchando 0 verso, desarticulando a sintaxe ¢ transmutando 0 vocabu- lirio da liceracura pés-naturalista e pés-simbolista. 22 foi o ponto de encontro de escritores que incorporaram ao seu fazer literdrio aqueles modos de pensar, falar, escrever. Nis- to, evidentemente, opuseram-se ao Parnaso ea Academia, pois 0 contemporaneo, para reconhecer-se como tal, dé as costas ao estilo ¢ ao gosto que ainda parece resistir. E também verdade que, mesmo considerando 0 micleo de 22, deve-se matizar a impressio de ruptura dristica com aquele passado meio académico, meio simbolista, 22 nao impediu que a ptosa de Os condenados de Oswald de An- drade fosse composta em moldes retérico-danaunzianos, nem que a mesma tendéncia presidisse ao roteiro literdtio de Menotti del Pichia, nem que o verso de Guilherme de Almeida se cristalizasse numa poética artesanal que o en- formou até as tiltimas obras. E todos eram homens de 22. Mas, feitas as necessérias ressalvas, fica de pé que mui- to de absolutamente novo se deu nos poemas da Pasdlictiae nna prosa de Miramar, por exemplo. O conhecimento do vers Fibreeos contatos com o Cubismo eo Fucurismo ajudaram a criagio de uma nova sensibilidade e a produgio de obras de inegavel ruptura estética, Depois, veio a reflexao, a cons- ciéncia critica, a laboriosa metalinguagem: as revistas Kla- xon, Terra Roxa e Outnis Terras (paulistas), Extética ¢ os ma- nifestos do Pau-Brasile da Antropofagic glosaram as idéias da Semana e lhes deram novos matizes de poética ¢ ideolo- gia que, no conjunto, formam o legado tebrico de 22. Mas é chegada a hora de repensar o problema em sis da emergéncia do novo, o problema da situagdo interna em que aparece o texto modernista. a Céu, inferno Quando se dii uma aparéncia de novidade, é preciso determinar a 4rea cm que se operou o desligamento e, 20 mesmo tempo, 0 outro contexto a que tende a ligar-se o fio despregado, No interior de uma Nagio apenas juridicamen- te unificada, fora-se articulando, desde a segunda metade do século XIX, um subsistema diverso do sistema inclusi- vo. Para tanto, nao bastou que aparecessem os talentos mo- dernistas. Era necessirio que esses talentos se movessem no solo sdlido de uma cidade moderna, capital do estado mais “desenvolvido” do Brasil. Entao, as imagens novas da in- diistria, da maquina, da metrépole, do burgués, do prole- tario e do imigrante, e, sinal de relevo, do intelecttial so- frido e irénico, puderam surgir na poesia de Mario e no mosaico futurista de Oswald de Andrade. Miramar Serafim setiam pontos de vista impensiveis sem a unio de uma alta burguesia paulistana com uma in- teligéncia viajeira, curiosa e critica. Seus focos de conscién- movem-se com desembaraco no interior de uma classe inquieta, pronta para zarpar — real ou metafori pata os centtos principais da modernidade (“Paris, umbigo do mundo”) ¢ para queimar as pontes com uma linguagem ainda “metrificada” ¢ “nacionalista”, conforme as palavras iniciais do Serafim. Em termos de vida literdria, até mes- mo 0 Rio belle épogue de 1915 parecia ao jornalista Oswald “estupidex letrada de semicolénia” contra a qual se fazia necesséria uma dose de anarquismo, ou seja, de boém: A fuga do Parnaso, 0 contato com grupos que jé ti- nham levado longe a dissolugio de valores morais ¢ artis- ticos, produzem um novo modo de ver aspectos fundamen- da existéncia. A interagao familiar, a educagao da in- Fincia, as relagdes homem-mulher, homem-paisagem, a vi- 212 josas, cudo cas € rel da em sociedade, as i vai mudando de imagem e de significado no nivel da cons- ciéncia. Estilhaga-se 0 espelho em que esta reflete e prolon- ga.a cultura recebida, E os cacos, ainda nao sejuntados por uma nova ideologia explicita, vao-se dispondo em mosai- co quando os apanha o andamento de uma prosa solta, répida, impressionisca Miramar e Serafim se construiram a partic de um sen- timento autodissolvente da vida grupal de uma certa clas- se: uma série dispersa de atitudes (que se dé quando uma tradigao entra cm crise, mas nao foi ainda substituida) ani- ma fiapos de meméria, minutos de sensacao. A prosa expe- ris icharia nesse novo estado de coisas € de espirito a sua fecunda matriz. Prosa em que hd uma alta freqtién- -riodos breves, de deslo- camentos de significado. Prosa que aspira 3 impressio ime- diata e forte, a velocidade; prosa que persegue o estilo tele- grafico c a metdfora lancinante,' ¢ que vai selar alguns dos melhores textos produzidos entre 22 ¢ 30. assa a reger 0s pro- Uma nova ética, antinaturalista, cedimentos de descrigao e de narracéo: “Arce nfo consegue reproduair nacureza, nem este € seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Bris Cubas), ora in- conscientemente (a grande maioria) foram deforma- dores da naturcea. Donde infiro que o belo artis ' Oswald de Andrade, “A guisa de preficio”, em Memrias sen- timensais de Joito Miramar, 213 Céu, inferno serd tanto mais artfstico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural.” (Mario de Andrade, “Preficio interessantissimo”) “O trabalho contra o detalhe naturalista — pela sintese contra a morbider romintica — pelo ei brio gedmetra e pelo acabamento técnica; contra a cé- pia, pela invengizo ¢ pela surpresa? ‘Uma nova perspectiva. Aoutta, ade Paolo Uceello, criou 0 naturalismo de apogeu. Era uma ilusio ética. Os objetos distan- tes nao diminufam. Fra uma lei de aparéncia. Ora, 0 momento é de reagéo & aparéncia. Reacao a cépia. Substicuir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irénica, ingénua.” (Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pau-Brasil) Profere-se o efeito da sintese & minticia descritiva. a historia esticada no tempo cede aos fits diverse & anedota fulminante. O modelo dessa escrita € 0 jornal ou o cine- ma. E do que restou da convengio académica faz-se paré- dia: o grande exemplo é, sempre, a “Carta pras Icamiabas” de Macunaima, 2 Lembre-se 0 Suplemenso ao Manifesto Téenico da Literatura Fax ‘turista, de Marinetti: “... resumindo todas as explicacdes sem enchi- mento ¢ evitando a mania perigosa da perda de tempo em todos os ccantos da frase, nos trabalhos minuciosos do cinzelador, do joalheiro cou do engraxate”. a4 Moderno ¢ modernista na literatura brasileira 0 Brasil na visao dos modernistas A ruptura paulista de 22 nao foi obra do acaso, mas ponto critico de um longo processo histérico de diferencia- gio. A formacéo do grupo, a necessidade de reunides amiu- dadas, a urgéncia de um manifesto, 0 happening final, sio sintomas todos do ctescimento firme de um modo de pen- sar que se sabe contrastado, mas que jd sente no ar a possi- bilidade de um desafio publico. A partir da Semana, os modernistas si0 um ponto de vista dentro da histéria da cultura nacional. Nessa altura cabe perguntar: como era visto 0 Brasil desse angulo de observacio? Os inovadores, na fase de afirmaco, que se coscuma chamar “herdica’, nao podiam ver outro Brasil que nao fosse: — ow a Sao Paulo arlequinal, espago da modernidad, —ou0 serritério mitico de Macunaima e da Antropo- a, de Martim Cereté e de Cobra Norato; um Brasil cujas contradigées se resolviam magicamente no reino da pala- ‘vra pottica. E cempo de reconsiderar 0 brasileirismo do perfodo inicial do movimento a luz da sua nacureza, ficcional e es- tética, No comeco do século, um Euclides da Cunha e um Barreto (para citar os maiores) tiveram condigbes exis- tenciais para explorar criticamente, agonicamente, 0 veio do nacionalismo, porque, de alguma forma, eles se deba- tiam no interior de nossos varios contrastes, litoral/sertao, cidade/campo, branco/mestigo, bacharel/analfabero, ¢, a partir deles, construfram as suas obras, nas quais o protes- a conservaram, nas dobras da bandeira, um certo um jeito de escrever que vinkia do Realismo 215 ¢ dos ideais progressistas da geracio de 1870. Mas Oswald, Mario, Alcantara Machado, os paulistas por exceléncia do movimento, jé nfo poderiam partilhar dessa escrita: enxer- gavam 0 Brasil como um mito enorme, proséico, de que se- iam simbolos seminais os totens amazénicos. As fortes ¢ belas imagens antropofigicas de Tarsila, os manifestos de Oswald ¢ a rapsédia de Mario de Andrade nao poderiam ter nascido senio da cabeca de artistas que imaginavam lidica e surrealmence o Brasil, aquela vaga e esttanha e miil- pla realidade pré-industrial que nao era a cidade de Sao Paulo, O mesmo se poderia dizer, musatis mutandis, dos fantasmas gerados no ventre do grupo de Anta com seus mitos caboclo-tupis que desaguariam em um nacionalismo clinico, de dis O mito, ja se sabe, con: é dado pensar: as contradigées que nao lhe “Me sinto branco agora, sem ar neste ar-livre (das Américas! Me sinto s6 branco, s6 branco em minha alma {erivada de ragas!” (Mario de Andrade, “Improviso do Mal de América”, fevercito de 1928) © Modernismo rompeu, de fato, com 0 sertanismo estilizado dos prosadores parnasianos. Mas nio o fez sendo para pérem prética um primitivismo mais radical ¢, em certo sentido, ma que nio tolerava mais 6 jeito parnasiano de falar da vida ristica, Em nome de uma 218 Moderna © modernista na pottica do inconsciente, 22 opés-se as sensaborias do pe- niiltimo nativismo. O Angulo de visio era o de intelectuais mais informados e mais inquietos que se propunham de- senttanhar a pocsia das origens, 0 substrato selvagem de uma “raga”; e que desejavam intuir 0 modo de ser brasilei- ro aquém da civilizacfo, ou entéo surpreendé-lo na hora fe- cunda do seu primeiro contato com 0 colonizador Sé em torno de 30, € depois, o Brasil histérico e con- _ct€t, isto & contradicorio e jd nao mais mitico, seria o Obje- to preferencial de um romance neo-realista ¢ de uma litera~ _tura abertamente politica. Mas ao longo dos anos propiia- mente modernistas, o Brasil é uma lenda sempre se fazendo: “E no me Amulengando maneiro Um aboio tio chorado Que acuava no corpo doce O sono do brasileiro. E foram brincar pra sempre Pelos pagos abencoados Do meio-dia do céu. No céu é sempre meio-dia... nfo tem doenga E nao se morre outra vez.” (Mario de Andrade, “Lenda do céu”) entre polimorfo ¢ amorfo, esquivo a determinagées histdricas precisas; para esse pais tupi-bar- ri Cau, inferno roco-surreal; para esse mundo sem tempo mergulhado na fruigéo da origem, tracvel apenas pelos meandros do ins- tinto, a palavra a ser proferida ressoava, necessariamente, a das poéticas lastreadas de irracional: Dadé, Expressio- nismo, Surrealismo. ‘Abolidas incernamente as cadéncias da tradigao acadé- mica, cumprida a ruptura, 0 fio desprendido se estende para buscar outras fontes de energias estas, seladas pela crise eu- ropéia, potenciam o desprezo das cansadas convengées. O paralelismo faz-se com presteza: na Franca de 20, ser revo- luciondrio em literatura era liquiidar os vestigios da culcu- ra clissico-nacional e descer pelo poco do Inconsciente; no Brasil-22, € liberar 0 poema dos metros, ¢ a prosa dos ri- tuais escolazes para explorar o lendério tupi —o nosso In- consciente... Romper, c4 e Id, significava abolir 0 pasado de ontem e sair & procura de um eterno presente. “O con- trapeso da originalidade nativa para imutilizar a adesio aca- demica’, era o que pedia o Manifesto Pau-Brasil. Modernismo, meio século depois Passados cingjienta ¢ tantos anos, feitos os reconheci- mentos devidos, estamos de novo preocupados com a mo- dernidade de 22. Os fragmentos futuristas de Miramarea rapsédia lidica de Macunatma sio apontados como altos modelos de vanguarda ficcional. A quebra, que neles se operou em relacéo & prosa tradicional, ¢ encarecida como estimulo para outras rupturas que hoje se deveriam em- preender. Faz-se jus & complexidade semantica e al daquelas obras fundamentais do Modernismo. Nelas figu- 28 Moderna e modernista na literatura brasileira rou-se a maior riqueza de motivos e de formas que a cons- ciéncia do homem poético de 22 pode engendrar. Nelas estilizou-se a ind lo carde nccessariament prestes a coagular-se em varian- tes do mesmo caréter, ora ciipido, ora triste, ora cordial, ora malandro. Nelas parodiaram-se os residuos de vernaculis- mo que pe de Letras. co novo estimulo para tancas re! Vimos como 0 contexto pat do de tracos materiais e espi sigo uma linguagem onde entravam, de chei nidade da técnica ¢ as vozes de uma libido extravasada em Compunham um acorde dissonante, co- ‘As maquinas tinham-se transformado no iiltimo topos dda poesia futurista onde valiam como metéforas da Poténcia: Nés cantaremos as grandes massas agitadas pe- lo trabalho, pelo prazer ou pela revolta; cantaremos as marés multicores e polifénicas das revolugées nas ca- pitais modernas, cantaremos o vibrante fervor notur- no nos arsenais ¢ dos estalciros incendiados por vio- lentas luas elétticas, as estacées dvidas, devoradoras de serpentes que deitam fumaga, as pontes semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os ios faiscantes a0 sol com um luzir de facas, 05 navios aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de peito largo que - 29 Céu, inferno Pisoteiam sobre os trilhos como enormes cavalos de ago embridados de cubos, ¢ 0 véo resvalante dos aero- planos, cuja hélice tatala ao vento como uma bandei- +2. parece aplatidic uma turba encusidstica.” (Marinest, Manifesto do Futurismo, 1909) Oswald, mais sintético: “A fixacio do progresso por meio de catélogos ¢ aparelhos de televiséo. E os trans- fusores de sangue” (Manifesto Antropéfago). Das fontes ji dissera em outro manifesto: *O trabalho da geracio futu- rista foi ciclépico. Acertar o reldgio império da liverarura nacional”. Aos surrealistas, & onda freudiana, coubera destapar as rolhas da censura e deixar que se soltassem os grivos do Inconsciente: “Existe uma ordem, inda mais alta, na fiiria de- sencadeada dos elementos.” (Matio de Andrade, “Preficio interessantissimo”) Mas ralvez o mais importante seja observar que os mo- dernistas da primeira hora — renres tendiam a fusio de técnica e insti ‘A poesia deve ser concebida como um violento assal- to contra as forgas ignotas para reduzi-las a se prostcarem diante do homem” — ¢ a palavra de ordem de Marinet Oswald, vinte anos depois, no Manifesto Aneropafago: “O instinto carafba./ $6 a maquinaria’. E para Macunaima, a maquina é também um signo dotado de poderes mig cos, a forga que pode matar embora certamente nio saiba amar: 220 Moderno © modumnista na literatura bras “Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa deveras forguda. Tupa famanado que os filhos da mandioca chamavam de Maquina, mais cantadei- raque a Mae d'dgua, em bulhas de sarapantar. Espelhando o préprio olhar, 0 Modernismo paulisca fixou a sua identidade como poesia da Revolucéo Indus- : “Uma visio que bata nos cilindros dos moi- nos, nas turbinas eléicas, nas questées cambiais”.,.. Mas estendendo os olhos para a Nagao, nfo poderia apanhé-la vin a floresta, a tril O Tito, 0 selvagem sempre bom mesmo quando mau, e, na verdade, aquém do Bem e do Mal. E diance da alternativa softida por todos os pavos coloniais — ou o futuro tec- nol6gico ou o passado aborigene — preferiu resolver o im- raiba./ Sé.a maq} Eo resto? Eo presente brasileiro, tudo aquilo que nfo era nem 2 Sao Paulo da industria nem a ribo remota dos tapanhumas? ‘A pattir da crise de 30 até o pés-guerra, a prosa do Le no modernista em sentido estreito, mas cer- tamente modetno. Falou no romance de Graé de José Lins do Rego, de Marques Rebelo, de Erico Veris- simo, de Jorge Amado, de Cornélio Pena, de Dyonelio Ma- chado, Para todos eles, como para alguns ensafstas sociais seus coctineos, um Caio Prado Jr., um Gilberto Freyre, um Alceu Amoroso Lima, 0 Modernismo fora apenas uma por- aberta: ¢. caminho j4 era outro, o da cultura como inte- énci ide brasileira presente, isto 221 Céu, inferno 6, aquele imenso e dificil “resto”, aquele denso intervalo fi sico e social que se estende entre os extremos do mundo in- digena e do mundo industrial. A modernidade de um romance como Angiistia, de Graciliano Ramos (para ficar s6 com um ponto alto), con- siste em ter trabalhado até a maceracéo a imagem do inte- lectual que morde a prépria impoténcia e, com a mesma intensidade, acusa as raz6es objetivas dessa impoténcia, que ¢stéo na estrutura material ¢ moral da provincia onde ca- pitalismo ¢ desequiltbrio séo sinénimos perfeiras. Nao ca- bia na consciéncia de Graciliano, nem no melhor roman- ce de 30-40, rematizar as conquistas da técnica moderna ou entoar os ritos de um Brasil selvagem. O mundo da experiéncia sertaneja ficava muito aquém da industria ¢ dos seus encantos; por outro lado, softia de contradicées cada vez mais agudas que nao se podiam exprimir na mitologia tupi, pois exigiam formas de diccio mais chegadas a uma sébria ¢ vigilante mimese critica. Enfim, o Estado Novo e a Segunda Guerra exaspe- raram as tensdes ideoldgicas; e entre os frutos maduros da sua introjecio na consciéncia artistica br: contam-se obras-primas como A rosa do povo de Carlos Drummond de Andrade, Poesia liberdade de Murilo Mendes ¢ as Me- mérias do cércere de Graciliano Ramos. A viragem forte que acabou atingindo os numes do Modernismo _paulista: é 0 romance, ¢ a poesia, é 0 drama do tiltimo Os- wald e do ultimo Mario, entre 30 e 40, movidos por um desejo agdnico de assumir uma outra perspectiva, pés- modernista. a we 22 Moderna © madarnista na literatura brasileira Por volta de 1955-60, amortecida a memoria da guer- ra, entra o Brasil a entreter relagées de concubinato com as multinacionais e logia de ponca. Hi um novo e ex- citante surto de industrializacio, de urbanizagio e, mais uma vez, uma realidade sevorial privilegiada, 0 eixo Sao Paulo- Rio, se diferencia em ritmo acelerado na direcao do frenesi consumista e do contato estieito com modos de vives, pen- sar ¢ falar incernacionais. Mais uma vez, aparecem condi- ges objetivas para a formacio de uma cultura sofisticada, dispondo agora de um raio de difusio muito maior e mais rapido, dada a eficécia dos novos meios de comunicacio. O olho do intelectual de 60 viu-se medusado pela as- uronave, pelo computador ¢ pela TY, assim como a cons- ciéncia do intelectual de 20 fora seduzida pelo auomével, pelo avigo e pelo cinema mudo. A contemporaneidade re- clama do escritor os seus direitos. A técnica penetra de novo no texto como tema e como escrita. Recomeca-se, cingiien- ra anos depois, a pensar em termos de monzagem do que se deve dizer e de como se deve dizer. E aquela coisa vaga que ainda es- grando na esperanga de abrigar- ras, tanto incomoda a visao do diferente. O resto é um ndo- ué destinado a virar massa, nao necessariamente mas- sa politica, mas massa-instinto, massa canibalesca, massa a ago do consumo que, de resto, a esté absorvendo, massa-trépico. Para esse esquisito e fas- cinante resto-outro, a visio tecnomitica compord uma co- bertura neo-antropofagica, pressuposto dos tropicalismos brasileiros. O que a técnica do capital ainda néo dominou de todo, faga-o a vor do instinto, Que a matéria bruta e ce- 23 Céu, inferno ga tenha seu lugar no sistema, é necessitio; que ela solte ur- tos ¢ guinchos a serem combinados com 0 som de instru mentos clettnicos, é auspicisvel. Asfalto por cima, instinto Por baixo, Reatualiza-se a proposta oswaldiana: “Obuses de clevadores, cubos de arranha-céus e a sébia preguiga so A tera. O Carnaval” (Manifesto Paw-Brasil) A existéncia ¢ a consisténcia de uma coisa chamada é 0 suporte ideolégico necessirio a boa parte das Proposi¢Ges neo-antropofigicas. A massa, porque ¢ massa, nao conheceria mediagSes: nao esta articulada em classes concrastantes, em grupos diferenciados, em setores de tra- balho, de cultura, de religiéo. Ela “existe”, absolutamente Construida & imagem e semelhanga do grande piiblico, ela € uma espécie de monstro sagrado cujo tinico modo de do- mar é dar de comer, O escriror, ciente disso, concorreria com outros fornecedores de imagens para ministrar-lhe ali- mentos na forma, e sé na forma, em que a massa pode re- cebé-los. O imediato, a sincronia autocentrada no texto es- pacial ¢ no trocadilho seriam © banco de prova da nova csteticidade, Suprimindo 0 tempo da frase, projeta-se a pa- lavra-coisa do aparelho digestivo da massa. Assim se dé um ato de comunicagio fulminea. Entremos de cabeca na ba. talha da propaganda. Violéncia, de novo, como preconiza- va Marinetti: guerra sola igieme del mondo! Querer diferentemente, querer mais, significaria acei- tar as delongas ¢ os vaivéns do discurso, percorrer 0 ca rho pedregoso do pensamento, esforso que, afinal de con- tas, as massas ndo saberiam compreender. O projeto tecno-antropéfago aparece assim como algo drasticamente contemporineo de si mesmo. Os anos60 serio Conhecidos na historia da América Latina como era do com 224 Moderno ¢ modernista na ti bio das multinacionais com regimes fortes, tecnocriticos. Nao hé tempo para guardar distncias: seria acrasar 0 passo da marcha, Nada de frases, nada de argumentos, 6 a mae gem, 36.0 30m, s6 0 gesto, Oswald, interpretado agora a0 pé da era: “Asideias comam conta, reagem, queimam gente nas pragas piiblicas. Suprimamos as idéias e outras paralisas” Semelhante poética se cola to perfeitamente a0 esti- lo capitalista selvagem das grandes cidades brasileiras de hoje que, em vex de fala em “rupeura”, parece mais justo falar em : al dos tempos”, ou em duplicagao fiel do aqui- c-agora no registro dos programas estéticos. Mas jé é tempo de voltar ao ponto de partida, 22 como a primeira grande mudanga modernizante; 22 como o fim de uma Velha Repaiblica das Letra, Assim foi na verdade, © outra coisa nao ‘ raria, Quisemos apenas acrescentar que, visto no interio do nosso processo social, o Modernismo foi a metéfora bri- Ihance de um certo angulo de consciéncia, que escolheu formas e mitos adequados 2 uma zona determinada da vida e da cultura brasileira. Um outro discurso que nao cabe aqui, e que jé tentei esbogar em outro texto, é 0 que procura descrever 9s mo- dos pelos quais a ficgo mais recente tem resistido & pres- io conjugada da tecnolatria, da massificagao ¢ do auto- ritarismo interno, Uma literatura penetcada de pensamen- 2 Trata-se da introdugio a O conto brasileiro contemporineo, Sio 75. 225 x Céu, interne *o, uma literatura que faz da auto-anilise, da pesquisa do Cotidiano (riistico, urbano, suburbano, marginal), do sar- casmo e da parddia 0 seu apoio para contrastat 0 sen das ideologias dominantes; uma literatura que vive em ten, $40 com os discursos da rotina ¢ do poder; ¢ que se faz e se refaz no nivel da representacéo arduamente trabalhada pela linguagem. Sao algumas das iluminagoes profiundas de maracs Rosa, de Clarice Lispector, de Osman Lins, roman- cistas. E a prosa viva e cortante de Bernardo El tio Callado, de Dalton Trevisan, de Rubem Fonseca, de Joao Anténio, de Moacyr Scliar ede tantos contistas, mais jovens, estreados entre 60 ¢ 70. E.0 poema de Jodo Cabral ede Ferreira Gullar. E'0 drama de Jorge Andrade, de Ar no Suassuna, de Dias Gomes, de Augusto Boal, de Gian- francesco Guarnieri Nas melhores obras desses autores jd se desfez aquela smistura ideolégica ¢ datada de mitologia ¢ tecnicismo que G movimento de 22 comesou a propor e algumas vanguar- das de 60 repetiram, até a virarem em esquema e norma, Mas a vida cotidiana dos vitios grupos que, no seu embate, constituem a sociedade brasileira de hoje, continua encom. trando modos de escrever atentos & perplexidade e 4 opres. Sao que a todos envolve, Saber descobrir 0 sentido ora es- peculas, ora resistente dessa literatura moderna sem moder. nismo é uma das tarefas prioritérias da critica brasileira, 206 Mario de Andrade critico. do Modernismo A medida que o tempo passa, 0 passado cresce em nos- sa meméria ¢ na meméria coletiva que chamamos Hin ria, Parece chegado o momento em que toda a cultura le trada instcuida — a universidade, as academias, a imprensa — se vé convidada e, ia, moralmente intimada a come ™morar, ano apds ano, os cingtientendrios, os centendrios, os bicentenérios, os pentacentenéris (com perdo de nosso saudoso Houais..). Mas seo lado encomifstico ¢indefec- tivel nessa ocasides celebrativas, seria necessério também que nio se perdesse a oportunidade de fazer tevisbes cr cas: reavaiagbes que deveriam seguir o salusar procedimen- to de Benedetto Croce quando escreveu 0 seu adiirivel ensaio — Cid che 2 vivo e cid che 2 morto della filosofia di Hegel —quase um século depois do aparecimento das obras do filésofo. Oxald enhamos nds também disceraimento ¢ coragem para avaliar 0 que estd vivo e 0 que est morto na eranca modernista " E fato digno de nota que o balango geral do Moder- nismo tena comegado cedo. Passados apenas vinte anos da Semana de Arve Moderna, os animadores da Casa do Es- tudante do Brasil jé consideravam oportuna uma reflexéo 27

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