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sd RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA DO LADO DE LA DO REBOUCAS: A INVISIBILIDADE DO SUBURBIO CARIOCA NA PROSA CONTEMPORANEA JULIANA KRAPP* ° Nao Mundinha pra Zona Sul eu ndo vou ja disse que nao vou pra ld no Betsy que ndo quero me perder e cd no meu subirbio eu sou Tuquinha Tuquinha Batista T. B. meu nome em toda parte eu choro agradecida T. B. nos muros T. B. no tronco das drvores no mamoeiro na porta da igreja como largar minha gente ficar longe das letras do meu nome ndo (...) (Personagem de Anfbal Machado) “O Rio e seus sistemas de representacio no contam a historia de seus sujeitos populares’, provoca o diretor e agitador cultural Marcus Vini- cius Faustini, em coluna no Segundo Caderno, de O Globo. O texto veio a lume em meio a voragem do noticidrio brasileiro de novembro de 2015, e nao faz alusao direta ao Dia da Consciéncia Negra, comemorado poucos dias depois, mas provavelmente foi escrito sob seus auspicios. Tem como mote, afinal, a trajetéria pessoal de um parente. Um familiar negro, mo- rador da periferia carioca, cujas memorias intimas se confundem com a vivéncia vigorosa do espaco urbano: Em conversas, gosta de lembrar que foi um dos primeiros troca- dores de transporte puiblico coletivo da cidade — naquela época, o nome era trocador de pulo, faz questio de frisar. Repete sempre 1. Juliana Krapp é jornalista, mestre em Comunicagio Social e doutoranda em Literatura Comparada pela Ueri 308 RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA que viu a Avenida Brasil no barro, que tomou banho de mar numa praia onde se localiza o antigo Mercado Sao Sebastiao, entre ou- tras tantas histérias. (Faustini, 2015) Quando escreveu essa coluna, Faustini nao poderia saber que, pou- cos dias depois, um carro com cinco jovens — todos negros — seria me- tralhado por policiais’, na Zona Norte do Rio, durante um trivial passeio de domingo. Ou que, ainda naquela semana, entregadores seriam alvo de chacotas racistas num restaurante da Tijuca’, em episddio muito comen- tado no noticidrio e nas redes sociais. Essas noticias, 4 primeira vista, pa~ recem nao correlatas ao tema central deste ensaio, mas se ligam, de forma indireta, questo que o instiga: seré que o espaco do popular e, mais es- pecificamente, dos modos de vida do suburbio estaria desaparecendo na construcao do que chamamos de “identidade carioca”? Faustini defende que ha uma “falta de empatia” na ideia de carioca, re- velada quando a presenga de pobres, no circular pela cidade, rompe sub- missées e é entao seguida de reacées de intolerancia e de controle — tais como oferecer bananas a trabalhadores ou, num exemplo radical, ceifar a vida de jovens se aproveitando dos vicios inerentes as nossas relagdes de po- der. Negros, pobres e nordestinos migrantes foram excluidos do protago- nismo do imaginario a respeito do Rio de Janeiro, afirma o autor, em linhas gerais. ‘Uma das poucas exce¢ées seria o samba, tinico sistema de identida- de de territérios populares capaz de marcar seu lugar na “cidade carioca”. A ideia de carioca como forma de nomear o sujeito-sintese des- sas terras engendra um imagindrio limitador, que controla quais BS epgendra uo imeginario Ialtador, que controla.quat hist6rias so relevantes ou nao. A marca ‘cariocd vincula-se como carimbo a uma tinica paisagem da cidade — a Zona Sul e suas | 2. PMs vio presos apés 5 jovens serem mortos em carro no Subtibio do Rio’. In: GI, 29/11/2015. Extraido de http:/g].globo.com/io-de janeiro/noticia/2015/1 L/cinco-jovens-sao-mortos-ne-tio--pa- rentes-daswitimas-culpam-pm.html. 3. ‘Funciondrio de restaurante € preso ao dar bananas a entregadores negros’. In: Folha de $,Paulo, 23/11/2015. Extraido de http:/avww folha.uol.com.brleotidiano/2015/11/1710095-funcionario-de- -restaurante-e-preso-ao-dar-bananas-a-entregadores-negros shtml. 309 iL RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA franjas comportamentais em outras regides, classificando como 0 ‘outro’ aqueles que nao se enquadram neste perfil. (dem) ooo aude abe nao Se enguadram nese ne Por outro lado, é inegavel que houve, nos tiltimos anos, uma mudan- ana configuracao cultural e estética do pafs, com representantes das pe- riferias imprimindo suas subjetividades no quadro da produgio artisti- ca contemporanea*. Transformacio marcante, sobretudo, no audiovisual ena miisica. No campo literdrio, algumas das caracteristicas apontadas pela criti- ca académica quanto a produgao atual sao a multiplicidade de registros e a pluralidade de estilos®. Também chama atencao o emergir disso a que alguns autores chamam “novo realismo’, e que abrange a volumosa pro- dugio de narrativas que perscrutam a crueza, a violéncia eo dia a dia nos espagos marginalizados dos grandes centros urbanos. Em seus estudos recentes, Beatriz Resende recorre a Jacques Ranciére e sua “partilha do sensfvel” para descrever a insergao da nova escrita lite- raria no panorama de um encontro entre ética e politica; num fluxo glo- balizante que “aposta no futuro como fato cultural” (2014, p. 11). A auto- Ta pontua, como evidéncia, “a escrita de uma nova literatura democratica que aposta na institui¢io de um sistema literdrio partilhado, que reconhe- ce novas subjetividades e novos atores no mundo da cultura, e na recon- figuracao do préprio termo literatura” (idem, p. 14). Com isso, corrobo- raum ponto que Heloisa Buarque de Hollanda coloca em relevo, nas suas andlises sobre a literatura produzida em areas periféricas: “junto com uma nova literatura podemos perceber simultaneamente uma nova forma de fazer e experimentar a politica” (2014, p. 38). Em sua histéria, o Rio de Janeiro tem sido prédigo em manifestacdes nascidas da interse¢do entre experiéncia urbana, politica, relacdes de po- der, memoria e apagamento, autoridade e rebeldia, simetria e improviso. Ea literatura péde capturar, de diferentes formas, a cidade que é “chama, 4. Ver Resende, p. 9. 5, Ver Cameiro, 2005. RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA tecida pelo emaranhado de existéncias humanas’, como define Renato Cordeiro Gomes (2008, p. 109). Perfodo emblematico é aquele que acom- panha a transformacao da cidade durante a sanha higienista, ou seja, na antecena do modernismo. Enquanto avangava 0 projeto autoritario de domar a cidade, Joao do Rio registra a diversidade das ruas, num contra- ditério movimento de celebrar 0 novo enquanto resiste ao esquecimento — sua peculiar “perversao’, como sugere Gomes (ibidem). Décadas mais tarde, Marques Rebelo também faz da literatura “artimanha para ler a ci- dade que ia se tornando ilegivel pela fiiria expansionista” (ibidem, p. 107). ‘Teriamos, entao, no panorama contemporaneo, a emergéncia de uma renovada forga politica da escrita; e, no passado, a tradi¢éo de autores que investiram suas penas na busca por recolher tragos da meméria co- letiva e da vida mitida dos bairros, em contraponto a escrita de uma his- toria hegeménica. SS O que resulta dessa combina¢ao, porém, soa como uma inflexdo. Por- que, na escrita atual sobre o Rio temos, por um lado, vestigios de um “novo realismo” tecendo a ideia de uma cidade brutalmente partida; uma periferia sintetizada nas caracteristicas mais barbaras daquele que é, tal- ‘vex, 6 éspago-Ietiche da literatura na primeira década deste século XXI: a favela. E temos, por outro lado, o Rio de Janeiro margeado pelos cartées- -postais, representado pelos estilos de vida daqueles que se detém prepon- derantemente a beira-mar. Resta, entao, a pergunta: qual o espaco ocupado, na literatura contem- poranea que langa luz sobre o Rio de Janeiro, para o cotidiano da chama- da classe média baixa? Onde esto representados os subtirbios da Gen- tral e da Leopoldina, os bairros da Zona Oeste e da Zona Metropolitana? Onde aparece a vastissima area cortada pelas linhas de trem, pela Aveni- da Dom Hélder Camera, pelos alagadicos 4 esquerda do mapa, pelo clima abrasador de Campo Grande e Bangu? Onde a “cidade compartilhada’, a “cidade dangarina em seu eterno movimento e mutag’o’, que ainda “res- ponde ao olhar do sujeito que faz paisagem com o que olha e sente’, como diz Renato Cordeiro Gomes (2008, p.108) a respeito de Marques Rebelo e sua astticia ao perseguir a experiéncia singular de cada bairro carioca? 311 rt — —> -o RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA Tera o suburbio carioca se tornado ilegivel? A ideia de periferia evi- dentemente nao desapareceu por completo da prosa sobre o Rio de Janei- ro. Suas aparigbes, porém, acontecem como de relance, i maneira de lam- pejos, esgares, fendas. Nao costumam representar investidas na busca por retratd-la como faceta indispensdvel & identidade carioca. Em vez disso, sugerem a existéncia de um espaco algo apatico, com a realidade social sobrepujando a cadéncia da cultura e suas singularidades — onde os bair- ros “reais” quase nunca tém direito a nome, forjados num bloco inteirico onde a violéncia e a miséria se reproduzem de forma muito similar, aca- chapando as idiossincrasias, os nomes de logradouros ¢ as referéncias de espacos piiblicos. Lugar onde a violéncia da légica urbana, em atrito com Uma cidade para ser batida a pé Pois quem 6, afinal, este que Faustini chama “sujeito-sintese do Rio de Ja- neiro”? Em seu Carnaval no fogo - crénica de uma cidade excitante de- mais, Ruy Castro elabora uma longa e bem-humorada tentativa de retra- ta-lo, “Por esse jeito de ser do carioca, leia-se, entre outras, uma recusa quase carnivora a se levar a sério, uma combinacao de tédio e deboche diante de qualquer espécie de poder e, nao por ultimo, uma joie de vivre que desafia os argumentos mais racionais” (p. 50). Ou entio, a guisa de blague: “(...) eu diria que os cariocas s4o bons em botequim, sandalia de dedo, frescobol, caldinho de feijao e botar apelido nos outros” (p. 119). Pesquisador obstinado da histéria carioca, Ruy Castro sugere que a palavra escrita tem sido uma das melhores maneiras de passear pela cida- de. “No Rio, os veiculos ideais so os pés — pelo asfalto ou pela areia — e a literatura’, diz (p. 181). “Os dois costumam andar juntos: poucas cidades se prestam tao bem como personagens, jé fizeram tantas ruas de musas € geram tantos autores que escrevem com as pernas” (idem). Consequéncia disso é que muita gente — inclusive pesquisadores do géenero — defende a tese de que a crénica nasceu no Rio de Janeiro. Fato 312 RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA inconteste é que a cidade foi matéria-prima para a maioria dos autores que desenharam a moderna crénica brasileira: Rubem Braga, Paulo Men- des Campos, Fernando Sabino, Elsie Lessa, José Carlos Oliveira, Sérgio Porto. Em seu Diciondrio Amoroso do Rio de Janeiro, Alvaro Costa e Sil- va lembra também outros nomes, defendendo que a crénica é carioca pelo fato de “o Rio ser a cidade de todos os brasileiros e com a caracteris- tica de nao distinguir seus habitantes pela origem” (p. 47): Wan Lessa (“o maior escritor do Brasil, que nao publicou romance, ia de crénica, num perfeito roteiro de Copacabana a Londres”), Joao Ubaldo Ribeiro, Ant6- nio Maria, Vinicius de Moraes (“cuja faceta de cronista ainda precisa ser mais bem apreciada”) etc. “Pena que, com o tempo, foi-se perdendo um macete de cronista que © fazia, de certa maneira, semelhante ao velho repérter sem pauta: o hdbi- to de gastar sola de sapato, andar de bobeira, sem dire¢ao’, lamenta Costa € Silva. Como disse Ruy Castro: “exceto por certos lugares e horas a serem evitados por simples bom senso, o Rio convida a ser batido a pé” (p. 181). Tergiversacées 4 parte — a crénica nao é, afinal, nosso recorte neste ensaio —, existe, na histéria da literatura brasileira, toda uma linhagem de “ficges cariocas”. Ou, melhor dizendo, de ficcionistas cariocas ~~ ain- da que nascidos em outros estados da federacao —, que usaram e usam o Rio de Janeiro e as idiossincrasias destas plagas como cendrio e como matéria-prima, dando prosseguimento ao trabalho iniciado por Manuel Antdnio de Almeida e seu Memérias de um sargento de milicias. Este, a0 seguir as peripécias de Leonardo, elaborou também uma espécie de des- crig&o inaugural do ethos carioca. Dentro dessa linhagem, importante observar que, nao raro, a obra de nossos principais ficcionistas se concentrou para muito além da paisagem marinha, encontrando uma cidade a mingua da praia e, ainda assim, vigo- rosa, ardente, nada monotona. S6 para citar alguns exemplos, deslizavam pelos subtirbios cariocas as penas de Lima Barreto e de Marques Rebe- Jo. Nelson Rodrigues construiu sua literatura e sua dramaturgia fazendo com que a periferia do Rio encarnasse, ela propria, um personagem pode- | Toso, vivaz e traicoeiro. Pelo turbulento Carnaval desenhado por Anibal 313 RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA ) Machado passavam os “Destemidos de Quintino” e os “Endiabrados de | Ramos’. Na obra de Carlos Heitor Cony, volta e meia viceja o halito vin- do dos lados do Lins, com seus libricos seminaristas e baldes de papel. E As cariocas de Sergio Porto vivem suas peripécias e ocasos nao apenas no entorno da orla, mas também em Madureira, na Tijuca, no Grajat. Caso singular é 0 de Joao Antonio, cuja arte narrativa retratou, com diccao pré- pria, um submundo em transito — cujas rafzes periféricas, porém, per- manecem como presenga as vezes oculta, porém iludibriavel, seja na fase carioca ou na paulistana. Algo parecido podemos dizer a respeito de Ru- bem Fonseca, que faz desfilar, com seu estilo marcante, ampla fauna de ti- pos populares, habitantes de uma cidade vista “de viés”, como sugere Vera Lacia Follain de Figueiredo (2015). E hoje, por onde anda a ficcdo sobre o Rio de Janeiro? Um rapido olhar sugere: detém-se, sobretudo, a beira-mar, engalanada pelos modos | de vida, paisagens e elementos simbdlicos da Zona Sul e por suas “franjas comportamentais” em outras regides. Facamos, pois, um breve passeio por algumas obras que, nos ultimos anos, tiveram destaque no panorama das letras — seja pelo reconheci- mento nas resenhas e nos demais meios especializados, seja pelas ldure- as e participacao em prémios. Este ensaio, evidentemente, nao tem a pro- posta de percorrer de forma completa o rol de romances recentes sobre 0 Rio de Janeiro, mas sim de elencar obras representativas disso a que cha- mamos “cena contemporanea’, em sua diversidade e qualidade. Rumo ao litoral? ‘Talvez um dos bairros mais representados na historia da literatura brasi- leira, Copacabana é cenério e elemento fundamental de Corpo presente, vomance de estreia de J. P. Cuenca, escritor assiduo nas anélises sobre a li- teratura brasileira deste século, E também neste trecho de orla que nasce Dois rios, de Tatiana Salem Levy, outra autora muito associada & ideia de “nova cena literdria’. Espinosa, célebre delegado-detetive de Luiz Alfredo a14 RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA Garcia-Roza, circula essencialmente pelo bairro. E Copacabana que aco- The 0 conjugado onde transcorre parte do elogiado romance Anatornia do Paraiso, de Beatriz Bracher. E em suas ruas que Ariel, protagonista de O habitante das falhas subterréneas, de Ana Paula Maia, permite se perder. Primeiro romance do jornalista Arthur Dapieve, De cada amor tu her- dards s6 0 cinismo é exemplo de obra amplamente situada no espago tido como “carioca”. Suas cenas nao se furtam de esquadrinhar lugares notd- rios da Zona Sul: o finado restaurante Alcazar, a Pizzaria Guanabara, o Bloco das Carmelitas. Do mesmo modo, a literatura de Pedro Siissekind tem relagdo intrinseca com a cidade, em especial com 0 trecho mais pré- ximo ao mar. Antes de seu mergulho na Hungria, José Costa, protagonis- ta de Budapeste, de Chico Buarque, vive no circuito Copacabana-Leblon. Fim, aclamado romance de estreia de Fernanda Torres, faz suas investi- das geograficas em Copacabana (sempre ela), no Cemitério Sao Jodo Ba- tista e em seu entorno, nas areias de Ipanema, numa garconniére na Gl6- ria. Em Olhos de bicho (finalista do Prémio Sao Paulo de Literatura), Ieda_ Magri cria tramas nas quais a atmosfera de bairros como Urca e Catete ‘tém papel fundamental. Sao relances de bairros da Zona Sul que apare- cem nos romances de Flavio Izhaki, outro jovem autor cujo trabalho ja é bastante respeitado pela critica. A chamada “gentrificagao”, a especulaco imobiliaria e as transforma- g6es urbanas no Rio de Janeiro atual tém, nos tiltimos anos, conquistado espaco dentre os temas que dao forma as ficcées sobre a cidade. Como em A casa cai, de Marcelo Backes (no qual tém destaque espagos da clas- se média alta em Leblon e Ipanema), e O ano em que vivi de literatura, de Paulo Scott (onde os bairros de Botafogo e de Humaité dominam grande parte da trama). Em conto publicado na revista Granta - os melhores jo- vens escritores brasileiros, J. P. Cuenca também trata do tema. A ficcéo contempordnea anda ainda, vez por outra, pelo centro do Rio. Percorre a Lapa seguindo as pistas de Manuel Bandeira — caso de Um beijo de Colombina, de Adriana Lisboa. Persegue estranhas obsessdes nos salées da Biblioteca Nacional, como ocorre com 0 protagonista de Jo- nas, o Copromanta, de Patricia Melo. 315 —~—_ RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA Eas Zonas Norte e Oeste, onde estao? Seria possivel apontar, nos ul- timos anos, um deslocamento da ficgao rumo ao litoral? Na literatura atual, os modos de vida tipicos “0s da per periferia carioca pa- recem surgir apenas de relance. Sao lampejos, nesgas que aparecem em contos de autores como Marcelo Moutinho, Mariel Reis, Altamir Tojal. Podem ser encontrados, ainda, nos romances de Flavio Carneiro — seus personagens, de verve andarilha, circulam com desenvoltura pelos restau- rantes e ruas da Zona Sul e do Centro, mas também podem ser vistos to- mando cerveja no entorno do estédio Engenhao. E na obra de Fernando Molica, baseada num vigoroso mosaico da paisagem carioca, que abran- ge guerrilha urbana, favela, o passado na Zona Norte e cenas cotidianas de uma Zona Sul repleta de desesperanga. Na combinagio entre prosa e Rio de Janeiro, trajetoria singular é a de Alberto Mussa, autor cujo projeto literario esta intrinsecamente ligado 4 historia da cidade. Uma historia subterranea e algo ardilosa, forjada na mistura entre registro e ficc4o, que lana luz a angulos pouco convencio- nais nas investigacGes historiograficas. Seu projeto “Compéndio Mitico do Rio de Janeiro” tem 0 objetivo declarado de recontar a histéria da ci- dade por meio de cinco romances policiais (trés deles j4 publicados). Nes- sas narrativas, Mussa pde em foco gama muito diversa de personagens: escravos, prostitutas, mamelucos, fidalgos, indios, piratas, bandeirantes, feiticeiros. Suas tramas, porém, se situam preponderantemente no passa- do, A periferia contemporanea acaba aparecendo apenas em alguns con- tos. Eo caso de “A milhar do galo” escrito sob encomenda para a Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, que narra uma disputa mo- tivada pelo jogo do bicho, e se situa no bairro do Andarai. Importante pontuar, o subtirbio tem participacdo importante em Ci- dade partida e Inveja: mal secreto, obras de Zuenir Ventura que se situam entre o documental e o literario, e que sio muito representativas de um momento peculiar na forma como a fico tem tratado 0 jogo de tensdes que habita a cultura urbana: o instante em que o chamado apartheid ca- rioca, encarna¢ao da dicotomia favela versus asfalto, tornou-se ele pré- prio matéria literaria, 316 RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA As favelas, claro, sio um caso a parte. Esto na forca motriz de gran- de parte do trabalho de Julio Ludemir e no best seller Cidade de Deus, de Paulo Lins (sobre o qual falaremos mais adiante). Sao elemento impor- tante também em Black music, de Arthur Dapieve. f, talvez, nas crénicas que a periferia da capital fluminense, tal como conhecemos hoje, tem ganhado representagdes mais frequentes, com Al- dir Blanc e suas historias da Tijuca, Joaquim Ferreira dos Santos e as lem- brangas da Penha e arredores, Luis Antonio Simas e suas narrativas sobre o banal em bairros como Nova Iguacu e Maracand. ‘Também nao podem passar despercebidas as coletaneas dedicadas a esquadrinhar a cidade, como Prosas cariocas - uma nova cartografia do Rio de Janeiro (Org. Fla- vio Izhaki e Marcelo Moutinho) e O meu lugar (Org. Marcelo Moutinho e Luiz Antonio Simas), volumes em que autores escrevem ficcdes tendo como mote os bairros da capital fluminense. Merece destaque, também, o trabalho da Flupp (Festa Literaria das Unidades de Policia Pacificadora), projeto que propde uma agenda lite- réria para a periferia, abrindo espago para a formacio de novos leitores e autores. Desde 2012, a festa tem levado artistas nacionais e estrangeiros para apresentagdes em comunidades e bairros do suburbio. Oferece ofi- cinas de criacao de textos e publica, anualmente, coletaneas com os parti- cipantes. Dois dos autores descobertos pelo projeto j4 langaram livros por editoras grandes: Jessé Andarilho e Raquel de Oliveira. Ambos os roman- ces se situam em favelas cariocas, e misturam realidade e ficcdo. Quere- mos chamar atencao, porém, para outro aspecto que os une: os dois livros tém como cerne o mergulho de seus protagonistas no mundo do trafico de drogas. Em Niimero um (ed. Casa da Palavra), Raquel de Oliveira nar- ra sua propria trajetéria, passando pela infancia miseravel, pelo periodo em que esteve a frente de uma boca de fumo, pelo romance com o che- fe do tréfico na Rocinha. Nas narrativas jornalisticas que noticiaram o li- vro, Raquel ganha os epitetos de “ex-primeira dama do trifico’, “traficante que virou escritora” etc. Fiel (Ed. Objetiva), de Andarilho, conta a histéria de um jovem evangélico que acaba seduzido pelo trafico, na comunida- de de Antares, na Zona Oeste. Nao é uma narrativa autobiografica, mas, 317 ss ye R10 CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA \ ainda assim, as matérias na imprensa que trataram do novo romance ele- \ geram como lide um aspecto pessoal: o jovem autor teria escrito todo o \\_ livro no teclado de seu celular, em quatro horas ——— em uate Horas via transporte publico. “(...) O escritor sempre foi o sujeito dominante no discurso sobre o pobre e 0 excluido na sociedade brasileira” (2015, p. 26), examina Heloi- sa Buarque de Hollanda, a respeito da légica de verticalidade que se trans- poe das relagdes de poder para os circulos literdrios. Talvez por isso as | biografias de Raquel e de Andarilho, no contexto jornalistico, se sobre- | ponham a andlise liter4ria de suas obras. ‘Talvez por isso, também, 0 cir- culo literdrio tenha sido pego de surpresa quando, nos anos 90, Cidade de Deus — escrito por alguém “de dentro” da comunidade — conquistou grande ito editorial, mostrando que “o pobre tem voz e pode até escre- ver, e mais ainda: escrever um livro de sucesso e de critica” (Buarque de Hollanda, 2014, p. 29). Cidade de Deus se situa sob a égide de um aspecto apontado de for- ma recorrente pela critica académica: a emergéncia, na atual literatura brasileira, de uma nova espécie de realismo. Do ponto de vista estilistico, um realismo muito diferente daquele praticado no passado; uma escri- ta considerada realista porque fruto da vontade ou do “projeto explicito de retratar a realidade atual da sociedade brasileira, frequentemente pe- —» os pontos de vista marginais ou periféricos Schollhammer, 2009, p. 53). ‘Trata-se, importante frisar, de um realismo muito abrangente, desdo- bravel em vertentes diversas. Realismo que abarca, simultaneamente, 0 + _ ritmo pulsante das obras de André Sant’Anna e Marcelo Mirisola; a prosa pungente de Marcelino Freire e de Fernando Bonassi; a chamada “litera- ——— tura marginal” de Ferrez (entre outros) e a série de volumes que, nos ulti- mos anos, tém refletido as caracteristicas mais violentas ¢ desumanas de * _ regides marginalizadas dos espaos urbanos, como Estagéo Carandiru, de Drauzio Varela, e o préprio Cidade de Deus. Com sua narrativa brutal e densa, o romance de Paulo Lins foi res- ponsdvel por mostrar para o restante do mundo o que acontecia num pedago da cidade ainda desconhecido para a maioria do publico. Um — 318 RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA pedago da cidade do Rio de Janeiro — pedaco de pertencimento ou pe- \ dago de alteridade? i Esquecida, porém prestes a irromper Movimento diferente — em parte — ¢ 0 que encontramos em Passageiro do fim do dia, romance de Rubens Figueiredo que conquistou o Prémio Portugal Telecom de Literatura de 2010. Em foco na narrativa, uma via- gem de énibus. Pedro, o protagonista, embarca no Centro de uma metr6- pole nao nomeada até o ficticio bairro do Tirol, area miserdvel e longin- qua onde vive Rosane, sua namorada. Nesse trajeto, acompanhado de um livro sobre a vida de Darwin e de um radio a pilha, Pedro passa em revista angustias e andlises pessoais sobre o entorno e sobre o que ira encontrar em seu destino. Todo o desenrolar da trama — as digressdes e memérias de Pedro, o avolumar-se de incémodos, a expectativa da violéncia que, a expectaliva;daviclencls qualquer instante, podera irromper — se passa em transito, com o olhar do protagonista ao mesmo tempo distraido e aflito, absorto e evasivo. A cidade que corre, do lado de fora, nao é dada a ver. Em vez disso, surge es- maecida, borrada, oculta em variagées de velocidade, refletindo, de certa forma, o entorpecimento que reina dentro do énibus. Ao redor, Pedro observou de novo 0 entorpecimento geral que rei- nava no 6nibus. Sentiu em si mesmo como aquela moleza era assi- miladana cadéncia da respiracao dos passageiros, na meia sombra que vinha das janelas sujas, no balanco dos buracos da rua, num ronco monétono do motor. (...) Pedro avaliow aquela calma de anestesia que se havia formado en- tre os passageiros — 0 sono, o meio sono, o esquecimento que atraia, sugava, a repetida promessa de um descanso. Comparou o que via com aquilo que na certa o aguardava no Tirol. Comparou 0 que via com sua aflicao a respeito de Rosane e também com 0 que sua aflicao por uma sé pessoa representava, multiplicada para o caso de tanta gente que devia estar na mesma situagao que ela e cle. A imagem dos passageiros no énibus e a imagem do Tirol 319 im TN RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA pareceram duas coisas tao incompativeis — e, mais ainda, a expe- riéncia do dnibus se mostrava tao presente, tao real — que Pedro chegou a acreditar que era mesmo impossivel ter acontecido algu- ma coisa séria no Tirol (...). (p. 179) Passageiro do fim do dia nao é um romance carioca. O corpo da cida- de que estende suas marcas — ou melhor, seus siléncios e seu torpor — 7 pelo livro pode sero de qualquer metrépole brasileira. Ao mesmo tempo, a obra é representativa do esmorecimento que parte do espaco urbano pa- rece ter adquirido, tirada de cena pela ordenagio disciplinatéria da mo- dernidade e, assim, eclipsada no imagindrio criado pelo “sujeito domi- nante no discurso’, como nomeou Hollanda (op.cit.). A diferenga do livro de Rubens Figueiredo, porém, estd na forma como a propria trama insi- nua e incorpora a consciéncia de uma cidade apagada, esquecida, recal- | cada. Uma cidade prestes, como a violéncia, a irromper. A experiéncia do real, para Pedro, parece inverossimil. A cidade si- ? multaneamente adormecida e hiper real que 0 espera fora do énibus — Tirol e sua poténcia furiosa — contrasta com a acomodagao do cansaco, a monétona passividade dos demais passageiros. Nao a toa, Paulo R. To- nani do Patrocinio situa Passageiro do fim do dia no espaco intersticial en- “te 0 fetorno a estética naturalista (0 neonaturalismo) e sua recusa, com a criacdo de um didlogo que tem como interlocutor 0 préprio naturalis- mo classico, mas que nao se baseia em seu uso. “O didlogo que se cria, se- melhante a um jogo de aproximacao e afastamento, é mais amplo e tem como foco o proprio questionamento acerca do uso do naturalismo como ideologia para a tematizacao da realidade social brasileira” (2014, p. 102). No que diz respeito ao uso, hoje, da literatura realista como instru- mento de demincia das condi¢ées de vida dos setores excluidos, impor- % — tante situar O préximo da fila, de Henrique Rodrigues, e sua perante essa estética. Romance de formago contemporaneo, a obra tem contornos autobiogrdficos e acompanha a histéria de um adolescente de iferenciacao classe média baixa, morador da periferia, que recorre ao emprego numa eee 320 RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA rede de fast food para aliviar o arrocho financeiro da familia. Nao ha, po- rém, nenhum trago da estética da violéncia que marca, em geral, as narra- tivas realistas sobre esse tipo de tema. Em vez disso, a trama de O préximo da fila se aproxima de um lirismo que valoriza a trajetoria do persona- gem principal e sua experiéncia de amadurecimento. Em crénica recen- te, na qual descreve 0 processo de criagao do livro, Henrique Rodrigues Como venho de classe pobre, o lance mais facil seria escrever algo com muito realismo e violéncia. Nao é s6 isso, poxa, fora da zona sul também se curte poesia ¢ ideias complexas. Professores e jorna- listas que nao saem da parte rica da cidade criaram um esteredtipo de periferia e sublirbio que nao condiz muito com a realidade. Certa mas com um rétulo nas palavras: ‘Como vem do subtirbio, vocé nao devia fazer sonetos [antes de O préximo da fila, Henrique ja havia publicado um volume de poemas], e sim hip-hop’ Aqui, 6. (2015) ‘Um aspecto curioso, porém, pode ser percebido em O préximo da fila. Apesar de se distanciar, em estilo, de seus pares que retratam, via re- alismo, 0 suburbio carioca, o romance de Rodrigues também nfo situa a trama no espaco da capital fluminense, de forma clara. O proprio autor admite, em entrevistas e relatos, que se inspirou na Zona Oeste da cida- de; entretanto esse espaco periférico, mais uma vez, permanece oculto. Ent&o me lancei na ideia de retornar a um tempo que, para mim, foi to belo e tragico: a primeira metade dos anos 1990. Tinha re- visitado o periodo num poema que a prefeitura havia me enco- mendado para um projeto sobre a cidade e mudangas. Essa de- manda chegou em boa hora, pois ao passar pela Taquara, fiquei triste ao ver que o McDonald's onde iniciara na vida do trabalho, em 1991, havia desaparecido para dar lugar a uma passarela do novo énibus expresso carioca. Mesmo com o poema, ainda fiquei irrequieto coma ideia de que as memérias da minha geracio es- tavam sendo também demolidas. (ibidem) an ms \ RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA “Rio-miltiplo: a prépria cidade é um espelho partido, que diversifi- ca e faz proliferar o seu repertério de imagens. Dificil desenha-la em seu movimento de muta¢ao permanente, antes de vé-la deteriorada. Proble- matico lé-la na tensao entre o cristal e a chama, no seu devir”, descreve Gomes, na tentativa de definir 0 desafio de Marques Rebelo ea busca pe- las “muitas cidades dentro da mesma cidade” (p. 127). Na encenacdo de uma cidade que se apaga e refaz permanentemente, como é 0 Rio de Ja- neiro, as memérias de muitas geragdes podem acabar demolidas, como teme Rodrigues. Ha variadas nuances na procura por investigar as for- mas como 2 fiesio tem encarado essa ameaga de apagamento — impos- sivel vasculha-las num ensaio. O tema certamente merece investigacdes e olhares diversos. Por ora, resta retomar uma indagagao do préprio Faus- tini, no texto que incitou sua escrita: “Se o simbélico inventa o real, con- versar sobre os limites do conceito de carioca e seus usos se torna neces- sario. Ha quanto tempo no se renova a ideia do que é 0 carioca?” (2005). Referéncias bibliograficas CARNEIRO, Flavio. No pais do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. CASTRO, Ruy. Carnaval no fogo: crénica de uma cidade excitante demais. S40 Paulo: Companhia das Letras, 2003. FIGUEIREDO, Rubens. Passageiro do firn do dia. S40 Paulo: Companhia das Le- tras, 2010. GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiéncia ur- bana. Ed. Ampl. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. PATROCINIO, P. R. T. do. Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo: um olhar sobre o naturalismo. In: CHIARELLI, $.; DEALTRY, G.; VIDAL, P. (Orgs.). O futuro pelo retrovisor: inquictudes da literatura brasileira contemporanea. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. Os (nao) adaptados: a experiéncia urbana na obra de Rubens Figueiredo. : RESENDE, Beatriz E FINAZZI-AGRO, Ettore (Org). Possibilidades da nova escrita literéria no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2014. 322 RIO CIRCULAR: A CIDADE EM PAUTA RESENDE, Beatriz. Possibilidades da nova escrita literdria no Brasil. In: RESEN- DE, Beatriz E FINAZZI-AGRO, Ettore (Org.). Possibilidades da nova escrita lite- réria no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2014. RODRIGUES, Henrique. O préximo da fila. Rio de Janeiro: Record, 2015. SCH@LLHAMMER, Karl Erik. Ficgéio brasileira contempordnea. Rio de Janeiro: Civilizac&o Brasileira, 2009. SILVA, Alvaro Costa e. Diciondrio Amoroso do Rio de Janeiro. Ilustracées Aliedo Kammnar, Anajé: Casarao do Verbo, 2015. Periddicos FAUSTINI, Marcus Vinicius. Esses cariocas. In: O Globo, Segundo Caderno, Rio de Janeiro, p. 2, 17 nov. 2015. FIGUEIREDO, Vera Licia Follain de Figueiredo. Romances de Rubem Fonseca destacam papel do leitor como coprodutor do texto. In: Jornal O Globo, 9/5/2015. Disponivel em: http: fo /oglobo.globo,com/cultura/livros/romances-de-rubem- RODRIGUES, Henrique. Oficina Literdria no Balcio do McDonald’. In: UOL Entretenimento, Blog Pégina Cinco, 29/12/2015. Disponivel em: http://pagina- cincoblogosfera.uol.com br/2015/12/29/oficina-literaria-no-balcao-do-mcdo- nalds-cronica-de-henrique-rodrigues/ 323 RIO CIRCULAR: AG DADs Ee Me RA UEA ORGANIZACAO ALINE DA SILVA NOVAES, JULIANA KRAPP & ROSANA CORREA LOBO CAPA: CASSIO LOREDANO E JULIETA SOBRAL audogigfa EDITORA AUTOGRAFIA Rio de Janeiro, 2016

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