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OS LIMITES DO APRISIONAMENTO*
Eugenio Raul Zaffaroni
Professor Titular na Universidade de Buenos Aires
Deputy Secretary General of the International Association of Penal L:
Membre du Comité Scientifique de la Revue Internationale de Droit Pénal
1. Esté se propagando por toda
América Latina uma sorte de onda de
ideologia repressiva muito perigosa,
que pretende aumentar a criminaliza-
¢40 e o aprisionamento, como pana-
céia para resolver os graves conflitos
que gera a violéncia exercida contra
nés em forma de estrangulamento eco-
ndmico e tecnolégico. O discurso pega
no somente nas classes médias, sendo
também nos setores mais populares e
tradicionalmente provedores da clien-
tela da prisio. Um imenso aparato de
propaganda tende a cada momento a
fazer-nos internalizar uma logica im-
pecavel, ndo somente mediante a sele-
go de noticias e as mensagens expres-
sas nos mass media, sendo também me-
diante as mensagens mais sutis ~ em-
bora mais brutais — do entretenimen-
to, em particular as “séries” policiais
€ andlogas, que se consomem massiva-
mente ao largo de todo o territério. Os
politicos se desconcertam e ante a
pressdo dos meios massivos e a necessi-
dade de manter seu eleitorado, cedem
@ propaganda e ao caminho facil da
repressao. Ha algumas semanas em um
programa televisivo, quando explicava
os alcances do problema dos téxicos
em meu pais, uma candidata a deputa-
da me replicou que o problema era gra-
ve porque segundo as sondagens de
i preocupava muito a gente. O
corolario € tristemente claro: ndo im-
porta quao real seja um problema; o
que importa € a idéia que do problema
criem ao ptblico os meios massivos.
O verdadeiro problema com que
nos enfrentamos é esta onda propagan-
distica cujo poder € formidével, pois
inventa uma realidade conforme a qual
seria certo que violéncia + repres-
so = — violéncia, quando todo aque-
*—Tradugo de Odone Sanguiné, Professor Assistente de Direito Penal e Processo Penal na
Universidade do Vale do Rio dos Sinos — UNISINOS.
Fasc. de Ciénc. Penais. Porto Alegre, v.1,n.3,p.51-55le que medite um pouco sobre a ques-
tdo vera que a formula correta é
violéncia + repressdo = + violéncia.
A politica dos Estados Unidos a
este respeito é bem demonstrativa: nos
Ultimos dez anos aumentou em forma
incrivel o numero de presos, que chega
hoje a 600.000. Paralelamente, tem di-
minuido a percentagem de jovens, ou
seja, a faixa de idade mais vulneravel.
Entretanto, nao tem cedido seus indi-
ces de delitos violentos. Se chegou ao
ponto em que, grosseiramente dito,
em cada 400 habitantes, os Estados
Unidos tem um preso, certamente que
com claro predominio de latino-ameri-
canos e negros. Isto marca quase uma
Saturagdo social do recurso ao apris
namento, 0 que também se traduz em
um limite orgamentério. A politica
conservadora (ou da nova direita) nor-
te-americana (reaganiana) teve uma
primeira versio nos argumentos de
cunho puritano e ficgdo liberal de Van
den Haag, ¢ uma segunda com os ar-
gumentos tecnocraticos de James Q.
Wilson.
Os argumentos puritanos de Van
den Haag eram de corte seguinte: ndo
interessa e é absurda a discusso sobre
aetiologia do delito, o que importa é o
que resulta eficaz para contélo. Este
Pposicionamento “administrativo” ou
de manager social, foi abandonado
pelo mesmo Wilson em virtude de sua
insustentavel irracionalidade, e agora
postula uma confusa teoria etiolégica
na qual ressuscita os “fatores biolé-
gicos”, baseando-se nas investigagdes
sobre gémeos uniovulares e nas “‘fa-
milias criminosas”, ou seja, na crimi-
nologia racista-biologista que dominou
nos Estados Unidos na década de vinte
(lei seca, liberalismo econdmico desen-
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TT
freado, controle da imigracao, etc.), is-
to €, a criminologia da época pré-key-
nesiana que se encerra com a crise de
1929, o New Deal e Roosevelt, ¢ na
que se inspiraram também os crimi-
ndlogos do nacional-socialismo alemao
como Exner, que visitou os Estados
Unidos nessa época e afirma em seu
livro que a maior criminalidade negra
se deve a que o transplante do negro 4
civiliza}4o norte-americana Ihe imp6e
uma tarefa para a qual os negros nado
esto preparados biologicamente.
Esta criminologia racista-biologista,
a famosa séciobiologia de Edward O.
Wilson, a meritocracia conforme a
tests de inteligéncia, a propaganda em
favor da esterilizagao (para evitar a re-
produgao de ‘“‘degenerados”), o instin-
tivismo da “etiologia” e, em geral, to-
da a heranga do positivismo evolucio-
nista, se apresenta hoje como uma
frente ideol6gica na criminologia mais
reacionaria, 0 que nao é estranho. Sa-
bemos que 0 positivismo foi 0 marco
em que Spencer combinou o racismo
evolucionista com a liberdade econd-
mica desenfreada, em uma simplista
obra mestra de arquitetura ideoldgica
do imperialismo inglés do século pas-
sado. Gobineau foi 0 idedlogo do colo-
nialismo francés, em uma versdo que
justificava a escravatura e que nao nos
foi tao alheia (Gobineau foi embaixa-
dor no Brasil e amigo do Imperador
Pedro II). Sabemos que deste “revol-
vido” ou ‘‘guisado” de falacias que ali-
mentaram a criminologia “biolégica”
— que por isso prefiro chamé-la “racis-
ta-biologista