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achelard Os Pensadorés Bachelard ‘Para 0 cientista, 0 conhecimento sai da ignordncia tal como @ luz sai das trevas. © cientisia nao yé que as reves espirituats 18m uma estrutura € que, neisas condiges, toda experién cia abjenva coneta deve implicar sem- pre a corecao de um erro subjetivo. ‘Mas nao é facil destruir os erros um a um. Eles saa coordenadas. © espirito cienitiico 36 se pode construir destrvin- do 0 espirite nao cientifico, Muitas ve 265 0 cientista entrega-se a uma peda- gogia fracionada enquanto © espirito ientifico deveria ter em vista uma re- forma subjetiva total, Todo progress real no pensamento cientifice necesst- ta de uma conversio.” BACHELARD: A Filosofia do No. "Se quiséssemos retragar a histo: ria do Determinismo, seria. preciso res tomar toda a histéria da Astronomia. £ da profundeza das Céus que se deli- neia 6 Objetivd puro que corresponde 2 um Visual puro, € sobre © movimen. to regular dos astros que se regra 0 Destino. Se_alguma coisa é fatal em nossa vida, & porque primeico uma es: trela nos domina e nos arrasta, Ha por- tanio uma filosofia do Céu estrelado. Ela ensina ao homem a lei fisiea nos seus caracteres de objetividade e de determinismo absoluto, Sem essa gran de licdo de matem@tica astronomica, a Reometria € 0 nuimerd nao estariam Provavelmente tdo estfeitamente asso- Giados a0 pensamento experimental; 0 fendmeno tertestre tem uma diversida- dee uma mobilidade imediatas dema- siado manilestas para que se possa cn- contrar nelas, sem preparacao psicold- ica, uma doutrina da Objefividade © do Determinisma. O Determinismo desceu do Céu sobre a Terra." ACHELARD: O Novo £spitito Cleatifi- Pe “As grandes imagens tém ao mes: mo tempo uma histéria e uma pré-his- éria. S50. sempre lembeanca ¢ lenda a0 mesmo tempo.” BACHELARD: A Postica de Espaco. Os PensadoréS Cimara Brasileira do Livro, SP Bachelard, Gaston, '884-1962 BILOF A filonafia do mio; © novo espitito cientitica + A podtica do ed Histéria e critica 800.1 BACHELARD A FILOSOFIA DO NAO — ONOVO | ESPIRITO CIENTIFICO A POETICA DO ESPACO l EDITOR; VICTOR CIVITA Titulos originais: La Philosophie du Non Le Nouvel Esprit Sctentifaque ‘Le Poctique de! Expuce © Copyright desta edigno, Abnil S.A, Cultural, Sdo Paulo, 1979, — 2." digit, 1984. “Textos pubticsdos sob sen de Presses Universitaires de France, Paris, « Editorial Presencu Lida, Lisboa (A Filosofia do Ndo}s Presses Universitatios de France, Paes (0 Newo Esprrtio Ciemilic © Pottica do Espago), “Trausdes publieadas sob licenga de Editorial Presenga Lida. isboa (A Fitosofa do Nao) ¢ da Livraria Ekdorado Tajuca “Ltda, Rio de Faneino (A Podtica do Espayo), Direitos exclusivos sobre a traducao de O Nove Espirito Ciensfico, ‘Abril S.A, Cultural, Sie Paulo, Direitos exclusives sobre ''Bachelard — Vide ¢ Obra", Abril S.A. Cultural, Sao Paulo, BACHELARD VIDA E OBRA José Américo Motta Pessanha o dia 16 de outubro de 1962 morreu em Paris Gaston Bache- lard, membro da Academia de Ciéncias Morais e Politicas da Franga, laureado con © Prémio Nacional de Letras, autor de vasta e inovadora obta filosdtica, renomado professor da Sorbonne, cujos Cursos eram acompanhadas por uma multidao de jovens entusiasma- dos com a profundidade ¢ a originalidade de seu pensamento © com sua personalidade vibrente, acolhedora, Inconvencianal, Av longo de suas obras ¢ de seus cursos insistira freqtientemente numa tese: “A fi- losofia cientifica deve ser essencialmente uma pedagogia cientfiica”. Sua preocupagado Com os fundamentos e 03 requisitos para o desenvol- vimento de um “novo espirito cientitice” levaram-no a combater as formas tradicionais de ensino ¢ a propor para a ciéncia nova uma pe- dagogia nova. Vinculando estreitamente o progresso da pesquisa cien- tifica a libertagao das mentes jovens, escrevera numa de suas obras mais importantes (O. Racionalismo Aplicado): “Freqientemente os pais abusam ainda mais de seu saber do que de seu pader. A oniscién- cia dos pais, logo seguida em todos os niveis de instrugao pela onis- Ciéncia dos professores, instala um dogmatismo que @ a negaqao da cultura. Quando atacado pela loucas esperancas da juventude, torna- se profético, Pretende se apoiar sobre uma experineia de vida para prever a experiéncia da vida, Ora, as condigdes do progresso sio do- ravante tdo mOveis que a experiéncia da vida passada — se 6 que uma sabedoria pode resumi-la — 6 quase fatalmente um obstaculo a ultrapassar, desde que s queira dirigir a vida presente’, O préprio Bachelard, numa demonstracio de permanente joviali- dade espiritual, nao se deixara jamais prender as ortodoxias das esco- las filoscficas, Talvez por isso mesmo suas idéias repercutem nos mais diversos campos de investigacao, demolinda velhas cancepgées Cristalizadas ¢ propondo novas ¢ as vezes surpreendentes salucdés pa- fa a5, problemas. Apoiado numa interpretagéo do desenvolvimento histérico das doutrinas sientificas, Bachelard formulou seu tema de in contermisme intelectual através do que denominou de ‘filosofia do nao”. Para ele, a histdria das idéias nao se faz por evolucdo ou conti- nuismo, mas através de rupturas, revolucdes, “‘cortes epistemoldgi- cos", Num de seus livros escroveu: “A verdade ¢ filha-da discussdo, vill BACHELARD nao da simpatia''. Aplicando ele proprio esse preccito, revestiu toda Sua obra de caréter polémica, fazendo reiteradas criticas a nociva luéncia da metafisica tradicional (particularmente a cartesiana) sobre ‘© desenvolvimento. da epistemolagia. Também néo poupou criticas se. yeras @ alguns dos principals pensadores que marcam o século XX, co- mo Freud, Bergson, Sartre. Por outro lado, contrario aos esterilizantes sistemas fechados, fez uso bastante pessoal de varias nogdes, como “psicandlise’, “‘fenomenologia’”, “dialética’,“materialismo, a0 mesmo tempo que cefendeu uma nova concepede de racionalismo: o racionalismo sctorial e aberto, Adupla fenomenologia do imaginério A vida de Bachelard parece marcada pela descontinuidade, da qual ele se tornou um dos teéricos no pensamento filoséfico contem- poraneo. Nascido em 1881, em Champagne (Bar-sur-Aube}, traba- Thou nos Correios enquanto estudava matematica, pretendendo for mar-se engenheiro. A guerra de 1914/18 corta-lhe 0 projeta: inicia en- tio carreira no magistério secundério, ensinando quimica € fisica em sua cidade natal. Aos 35 anos, outro core em sua vida: comega no vos estudos, agora de filosotia, que também passa a lecionar. Em 1928 publica as duas teses que havia apresentando no ano anterior: Essai sur la Connaissance Approché (Ensaio Sabre a Conhecimento Aproximado) e Etude sur VEvalution d'un Probléme de Physique: a Propagation Thermique dans les Solides (Estudo Sobre a Evoluco de um Problema de Fisica: a Propagacdo Térmica nos Sdlidos). Na pri- meira jd aparece uma das teses centrais de sua epistemologia — o “aproximacionalismo", ou seja, a idéia de que a abardagem do obje- to cientifico deve se feita através do uso sucessivo de diversos méto- dos, ja que cada um deles seria destinado a se tornar primeiro obsole- to, depois nocivo. A partir dessa época 0 nome de Bachelard comega a se projetat. Em 1930 6 convidado para lecionar na Faculdade de Dijon. Le Nou- vel Esprit Scientifique (O Novo Espirito Cientélico) surge anos mais tar de (1934), como sintese de sua epistemologia ndo-cartesiana & em consonancia com as grandes rewolucées cientificas do século XX, co- mo a teoria da relatividade generalizada ¢ a fisica quantica, De 1935 € LIntuition de lastam (A Intuigao do Instante) e de 1936 La Dialecti- que de ia Durée (A Dialética da Ouracao), ambas versando sobre a descontinuidade temporal. A Gltima, ss de propor uma nogéo de duragao nao-bergsoniana, adota a nogao de “ritmandlise’’, que Ba- chelard declara ter encontrado na obra “du philosophe brésilien’’ La- cio Alberto Pinheiro dos Santos. Em 1938 Bachelard publica uma de suas obras mais importantes, La Formation de l'Esorit Scientifique (A Formacao do Espirito Cientii- cg}, na qual analisa os mais diversos “obstaculos epistemoldgicos” que devem ser superados para que se estabeleca e se desenvalva uma mentalidade verdadciramente cientifica. Nessa obra trata também da “alquimia poética”, que encara ainda como um entrave A ciéneia, A partir dessa épaca, mas sobretuda com a publicagdo de La Psycha VIDA E OBRA D9 nalyse du Feu {A Psicanslise do Fogo), também em 1938, e de Lau- tréamont, cm 1940, manifestam-se sobre o pensamento de Bachelard duas importantes influéncias, que perduraréo ao longo de sua obra, embora manipuladas ¢ transfiguradas: a do surrealismo ¢ a da psica- nélise. Esta, Bachelard aplicard & psicologia coletiva, buscando fazer nao apenas a “psicandlise do conhecimento objetivo", como tam- bém a “‘psicanalise dos elementos” (terra, ar, dgua e fog), fontes dos arquétipos do imaginaric poético. Em La Formation ae l’Esprit Scientifique, ciéncia & poesia apare- cian como dois mundas distintos, que deveriam ser mantidos separa- dos para beneficio da abjetividadé do conhecimento cientifico. Um dos obstaculos que Bachelard identifica na construcdo da ciéncia — talvez 0 mais dificil de superar — diz respeito 4 propria linguagem cientifica, na medida em que ela abriga, com freqiéncia, a impreci« sdo @ as ciladas das metéforas. ima tal “poesia” esptiria, inconscien- te de si mesma e fora ce lugar, compromete a tarefa do cientista: é a ganga a ser retitada, para deixar brilhar a claridade da explicacao ra- cional, 0 ouro da cientificidade. Dai a necessidade de uma psicandli- se da razio ¢ do diseurso cientifico. Bachelard afirma: “Uma ciéncia que aceita as imagens ¢, mais que qualquer outra, vitima das metélo- ras. O espitito cientifico deve lutar incessantemente contra as. ima- gens, contra as analogias, contra as metdforas”. O impéria das ima- BENS Constituiria justamente a Catacteristica do pensamento pré-cienti- fico, Mas Bachelard reconhece também que 0 mais petigoso para o pensamento clentifico ¢ que as metiforas exercem fortissima sedu- Gio: “Nao se pode confinar as metaforas, tao facilmente quanto se pretende, apenas no reino da expressio. Quer se queira ou nao, as metdforas seduzem a razao”. Esse fascinio das metaforas, na verdade, ja se exercia sobre o propria espirite de Bachelard. E o que pudera pa- recer, do ponto de vista do pensamento cientifica, a ganga impura a ser alijada do universo da racionalidade, acaba 9° tornando a maté- tiasprima com que ele, nessa época, definitivamente seduzido, come- ¢a a trabalhar nas obras dedicadas ao imagindrio pottico e artistico cm geral. A esse tema, depois de La Psychanalyse du Feu, dedica uma série de obras: L’fau er les Réves (A Agua e os Sonhos}, de L’Air ot les Songes (O Ar ¢ os Sonhos), de 1943; La Terre et lex ries de te Volonté (A Terra e 05 Devaneios da Vontade), de 1948; © La Terre et les Réveries dy Repos (A Terra @ os Devaneios do Repouso), também de 1948, Na fase final de sua obra, Bachelard continua trilhando os dois sendeiros paralelos da ciéncia e da poesia, descobrando simultanea- mente uma dupla fenomenalogia do imaginario. Nos dois campos de- senvolve © tema do materialismo: a manipulagdo da matéria, a de- miurgia, em ampla acesgao (artesanal ou onirica, racional ou cient ca), torna-se o ponte onde se cruzam cigneia € poesia, razdo e deva- nei, Os dltimos livros de Bachelard revelam essa dupla vida de um espirito aberto, insacisvel ¢, por isso, sempre joven: Le Rationalisme Appliqué (O Racionalismra Aplicado), 1949; L'Activité Rationaliste de la Physique Contemporaine (A Ativicade Racionalista da Fistca Con- tempordnea), 1951; Le Matérialisme Rationel (OQ Materialismo. Racio- nal), 1952; La Poétique de Espace (A Poética do Espaco), 1957; La Poétique de [a Reverie (A Poética do Devaneio), e La flamme d'une x BACHELARD Chandelle (A Chama de uma Vela), ambas de 1961. Artigas ¢ ensaios de Bachelard, publicados ciparsamente, foram reunidos depois de sua morte, em coleténeas que os editores denominaram de Fiudes (Es: tudos), 1970; Le Duoit de Réver (O Direito de Soahar) também de 1970; @ L’Engagement Rationaliste (O Engajamenta Racionalists), de 1972. O “idealismo mi inte’ de um filésofo do nao Examinando as grandes conquistas da ciéncia.a partir do final da século XIX ¢ sobretudo no decarrer do século XX, Bachelard assinala hes campos da matematica, da fisica e da quimica nao apenas um avango, mas a instauracao de um “novo espirita cientifico”, que par- te de novos pressupostos epistemaldgicos € exercila-os numa ativida- de que é mais do que uma simples descoberta: @ antes criagao. Na fi si¢a, reconhece que “com a ciéncia einsteiniana comecga uma siste- mitica revolugdo das nocdes de base”. E acrescenta: “A ciéncia expe- rimenta entao aquila que Nietzsche chama de ‘emor de conceitos’, como se a Terra, 0 Mundo, as coisas adquirissem uma oulra estratura desde que se coloca explicagio sobre novas bases". No mesma tex- to (La Didlectique Philosophique des Notions de la Relativité, in. L'En- gagement Rationaliste), Bachelard esclarece que o que ecorre, a par tir das teorias de Einstein, @ que ‘no detalhe mesmo das nogées ¢ belece-se um relativism do racional e do empirico”, Do lado da mica, Bachelard assinala também profundas mudangas: a quimica Nao G mais uma “ciéncia da meméria, uma pesada ciéncia de memd- fa; na quimica, também “as primeitas experiéncias sdo apenas predmbulas”; jé se pode falar de “uma quimica matematica no mes: mo estilo em que, ha um século © meio, fala-sc de uma fisica matem. tica”, Eis per que Bachelard yé na neva quimica a manifestacdo de um “materialismo racional’”, Por outro lado, “as préprias matomati- cas, as ciénclas mais estiveis, as ciéncias de desenvolvimento mais re- gular, foram levadas a reconsiderar os elementos de base ¢, cardter to- talmente modemo, a multiplicar os sistemas de base’’. Em particular a revolugéo operada na geometria por Lobatchevski (1792-1856) sur- ge fundamental aos olhoy de Bachelard: Lobatchevski “criou © humor geométrico aplicando 0 espirito de finura ao espirito yeamstrico: pro- moveu a racio palémica a condi¢éo de razao constituinte: fundou a liberdade da razde em relacao aela mesma, tornando flexivel a apli- cacio do principio de contradigao”. Essas ¢ outras conquistas da no- Vo espitito cientifico permitem a Bachelard propor, em lugar das clis- sicas formulacoes dos empiristas @ racionalistas, uma nova interpreta ¢a0 do conhecimento cientitico, na qual a criatividade do espirite (de- monstrada, por exemplo, pela criacao, por via da imaginagao cienti ca, de novas geomettias) associa-so a experiéneia, numa dialetica mo vida pela continua retificagao dos conceitos (“Ey sou © limite de mi nhas ilusées perdidas’’) pela remogao dos obstacules epistemoldgi- cos (como a valorizagdo e © apego a experiéncia primeira). Bachelard caracteriza sua posigao come um “idealisma militante’, como um “racionalisme engajado” que se modula diante de cada tipo de obje- to, tomando-se essencialmente “progressive”, “aberto” “’sotorial” VIDA EOBRA xl Esse racionalismo, condizente com 0 novo espitito cientilico, 6 neces- sariamente uma tuptura com as promissas da epistemologia tradicio- nal: em nome de uma quimica nao-lavoisicriana, diz ndv ae substan- cialismo; em nome das descobertas da mecanica ondulatéria, diz ndo 2 analiticidade-na matemética ¢ na fisica; em nome do carater dialéti- co do pensamento cienlifico, diz mio a logica aristotélica © a concep- Gao de evidéncia ¢ a0 intuicionismo cartesianos, Em nome desse racionalismo, Bachelard prega a necessidade de uma nova razde, dotada de liberdade andloga a que o surrealisma ins- faurou na criacao artistica, Descreve o que entende por esse surracto- nalismo: “E preciso restitvir & razao humana sua funcao de turbulén- cia c de agressividade. Assim € que se contribuird para a fundacao de um surrealism, que mubiplicard as oportunidades de pensar. Quan do esse surracionalismo houver encontrado sua doutrina, poderd ser posto em relagao com o surrealismo, pois a sensibilidade @ a razao te- ro recuperado, juntas, sta fluidez. O mundo fisico seré entao oxperi- mentado por meio de novas vias. Compreender-se-d de mode diferon- te e sentirse-d de modo diferente. Estabelecer-se-d uma razao experi- mental suscetivel de organizar surracionalmente 0 real, assiny Como © sonho experimental de Tristan Tzata urganiga surrealisticamente a li- berdade postica’’. Mas, por outro lado, insiste na importincia decisi- va da experiéncia na construcae cientifica: “A situagio da eidncia atual nio poderia ser esclarceida pelas utopias da simplicidade filoso- fica, Eis por que propusemos como nome dessa filosotia mista, que hos parece cortesponder a situagdo epistemoldgica atual, o nome de racionalisme aplicado. C nie € ao simples nivel das yeneralidades que ¢ preciso colocar essa filosofia essencialmente mista. E sobre ca- da valor de racionalidade que é necessirio oxtrair um valor de aplica- G40. Aqui mostrar @ real no & suficiente, & preciso demonstai-lo. E, Feciprocamente, as demoastragoes puramente farmais devem ser san- cionadas por uma realizagia precisa, Nas ciéncias fisicas, organiza G40 racional ¢ experitncia estéo cm Constante eooperagao”” O direito ao sonho e ao devaneio Mesmo nas obras dedicadas & epistemalugia, Gaston Bachelard freqdentemente alude av “vicio de ocularidade” que caracteriza a cultura ocidental, tendent> a privilegiar a causa formal cm detrimento da causa material na explicagde dos fendmenos, O proprio vocabuld- rio cientifico e filosdfico (“idéia’’. “evidéncia”, “teoria’, “visio de mundo” ete.) revelaria esse preconceito que faz do conhecimento uma extensao da otica, um desdobramento da imaginacdo. formal. E supoe 9 mundo como um espeticulo dado 4 contempiagao, um pano- rama oferecido a visio, Lm teatro para o seu espectador. No terreno da poesia, de devaneio, do onirismo € que se manifestatia a imagina- (ao material, desenrolada a partir das sugesties dos elementos que ja Empédocles de Agrigento (séc. V a.C.) considerava as raizes” da rea- lidade (agua, ar, terra € fogo). Esses quatro elementos, alimentandy 0 imaginario. postica, permitem classifies-lo em quatro tipos fundamen- tais, decorrentes de “temperamentos" artisticos (aquatica, aéreo, ter- restre e (gneo) que se desdobram em maltiplos “complexas” (de Of6- lia, de Atlas, de Promoteu ete.), xi BACHELARD Bachelard insise em distinguir a imaginagao enquanto simples re- gistro passivo de experiéncias, da imaginagio que, aliada 4 vontade, € poder e criacao. Afirma: “A imagem percebida ¢ a imagem criada sao duas instancias psiquicas muito diferentes e seria necessdria uma palavra especial para designar a imagem imaginada. Tudo 6 que é di- to nos manuais sobre a imaginagao reprodutore deve ser creditado @ percepcao e a memoria. A imaginacao criadora tem fungoes comple- tamente diferentes da imaginacao repradutora’’ (A Terra e os Deva- neios da Vontacle). Essa funcae tipica da imaginacao material é 0 que Bachelard designa de ‘‘funcao do irreal”’. Isso porque, para ele, “a imaginagao nao 6, como o sugere a etimologia, a faculdade de for- mar imagens da realidade; ela € a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. Ela é uma faculds- de de sobre-humanidade’’ (A Agua c os Sonhos), Essa imaginacao criadora “é um principio de multiplicagao dos atributos da intimicda- de das substancias. Ela 6 também vontade de mais ser, nao evasiva, mas prédiga, nao contraditoria, antes ébria de oposigao. A imagina- Gao € o ser que se diferencia para estar seguro de tornar-se. Essa cov cepgdo de imaginegdo material como atividade ("as imagens mate- riais — aquelas que fazemos da matéria — sao eminentemente ari- vas’) e como atividade essencialmente transfarmadora, movida pela “yontade de trabalho”, esté na base de criticas que Bachelard endere: gaa Freud e a Sartre. Em A Terra e ox Devaneios da Vantade afirma “A psicandlise, nascida em meio burgués, negligencia freqlentemen- te o aspecto materialista da vontade humana. O trabalho sobre os op- jetos, contra a matéria, @ uma espécie de psicandlise natural, Olerece oportunidades de cura rapida porque a matéria ndo permite que nos enganemos a respeito de nossas préprias forgas’. A psicandlise, se- gundo Bachelard, peca na medida em que tenta geralmente “tradu- 2ir" as imagens materiais, nao levande em conta a autonomia do sim- bolismo: “Sob a imagem a psicandlise procura a realidade; csquece a pesquisa inversa: sobre a realidade buscar a positividade da ima- gem”. Também em rélagio A concepead sartriana do imagindrio, Bache- lard assinala © que considera equivocos fundamentais: desconhecen- doa peculiaridade da imaginagao material « dindmica, Sartre redux toda a imaginagdo as caracteristicas da imaginacdo formal. Marcado também pelo “viclo da ocularidade”, Sartre tenderia a traduzir em ter- mos racionais as imagens que seriam, na verdade, originarias de ou- tra fonte: do contaty corpo-a-corpo com a matéria. Por isso 6 que ima- Rens COMO O pastoso OU Oo visCoso podem simbolizar, para Sartre, a it- racionalidade que suscita a nausea, Ao contririo, Bachelard reivindi- ca a legitimidade e¢ a irredutibilidade das. imagens que a mao recolhe na matéria: “A mao ociosa ¢ acariciadora que percarre linhas bem fei- tas, que inspeciona um trabalho jd concluide, pode se encantar com uma geometria facil, Ela conduc a filosofia de um filésofo que vé o trabalhador trabalhar. No reino da estética essa visualizacao do traha- lho acabado conduz naturalmente a supremacia da imaginacao for- mal. Ao contrério, a mao trabalhadora e imperiosa apreende a dina~ mogenia especial da realidade, a0 trabalhar uma matéria que, ao mes mo tempo, resiste e cede como uma carne amante e rebelde”. Cronologia Bibliografia VIDAEORRA XII 1884 — Nasce Bachelant em Bar-sur-Aube, Champagne (Franca). 1912 — Einstein recehe » Prémio Nobel de Fisica: 1914 — Tem inicio a Prineira Guerra Mundial, 1928 — Bachelard publica suas teses. Essai sur 1a Connaissance Approche & Etude sur I'Evolution c'un Probleme de Physique: la Propagation Thermi- que dans fes Solides 1930 — Bachelard 6 corvidado para lecionar na Faculdade de Dijon. 1934 — Publica Le Nouvel Esprit Scientifique. 1935 — Publica L'intuition de Minstant, 1936 — Eeditada ba Diolectique de la Durée. 1938 — Publica La Formation de ’Esprit Scientifique ¢ La Psychanalyse du Feu. 1940 — Edita Lautiéamont, Torna-se professor na Surborme, Publica La Phi- losophie du Non 1942 — Publica L'Eau et los Réves, 1943 — Publica L’Airet les Songes, 1948 — Publica La Terre et les Réveries de la Volonté e La Terre et les Réve= ries du Repos. 1949 — Publica Le Rationalisme Appliqué. 1951 — Publica L'Activiké Rationaliste de la Physique Contemporaine 1952 — Publica Le Matcrialicme Rationel. 1955, Morre Einstein, Buchelard entra part a Acadermia day Ciencias Mo= ‘ais ¢ Polficas da Frara, 1961 — Bachelard & lacreaclo. com o Grande Prémio Nacional de Letras. Pu- blica La Postique de la Reverie & La Flanwme d'une Chandelle- 1962 — Bachelard marr. Lacon. CaNcUIHEM. HvePCUTE, ALaacHiy @ outTOS: Fndraduetion a Bachelard, kdic Ciones Caldén, Buenos Aires, 1973. Cacunin, G.z Etudes d'histoire et de Philosophie des Sciences, |. Vrin, Paris, 1968, Jinesns, P.: Pour Connaite la Pensée de Bachelar, Bordas, Paris, 1968, Quiver Ps Bachelard, Editions Seghers, Paris, 1964 Dxcocner, F,: Gaston Bachelard, Presses Universitaires dé Francis, 1965 Hrivouie J.: Gaston Buchotard ou le Romantisme de Motelligence, in Revue Philosaphique, jancitosmarco 1954, Lavonon, Miz lar Theorie de fa Connaissance selan Gaston Buchelard, Hides, Montreal-Paris, 1966, Durtennt, Mo: Gaston Barholaiel ot fa Padsio de imagination, in Les Etudes Philosophiques, outubro 1963 Sovninu, E.: Esthetique de Gaston Bachelard, in Annales de IUniversité de Paris, 1963. 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Assim transplantados, os sisternas filosdficos tornam-se estéreis ou enganadores; perdem a sua eftedeia de coeréneia espiriual, eftedcia 120 sensivel quando séo revivides na sua originalidade real com a fidelidade escrupulosa do historiador, ¢ perde-se também a satisfagdo de pensar 0 que nunca seré pensado duas vezes. Sera pois necessario concluir que um sistema filosdfico ndo deve ser ulilizado para outros fins para além dos que ele se airibui. Dito isto, 0 maior erro contra © espirito filosdfico seria precisamente o de nao ter em conta esta finalidade inti- ma, esta finalidade.espiritual que dé vida, forca ¢ clareza a um sistema filaséfica. Em partieular, se se pretende esclarecer os problomas da ciéneia através da refie- ado metafisica, se se pretende misturar os tcoremas ¢ os filosofemas, surge imediatamente a necessidade de aplicar uma filosofia necessariamente finalista ¢ fechada a um pensamento cientifico aberto. Corre-se 0 risco de ndo agradar a ninguém; nem aos cientistas, nem aos fildsofos, nem aos historiadores. Com efeito, os cientistas consideram intitil uma preparagao metafisiea: declaram aceitar, em primeiro lugar, as ligdes da experiéncia se trabalham nas ciéncias experimentais, ow os principios da evidéneia racional se trabalham nas ciéncias matemdticas. Para eles, a hora da filosofia sé chega depois do trabalho efetivo; concebem pois a filosofia das ciéneias como um resumo dos resultados gerats do pensamento cieniffica, coma uma colegdo de fatos importantes. Dado que a ciéncia esté sempre inacabada, a filosofia des ciensistas permanece sempre mais ou menos eclétiea, sempre aberta, sempre precdria, Mesmo se os resultados positives permanecerem, em alguns aspecios, deficientemente coordenadas, estes resultados podem ser assim transrritidos, como estados do espirito cientifico, em detrimento da unidade que caracteriza 6 pensamento filosdfico. Para o cientista, a filosofia das ciéncias esta ainda no reino dos fatos, Por seu lado, os fildsofos, justamente conscientes do poder de coordenacad das fungdes espirituais, consideran suficiente urna meditacdo deste pensamento coordenado, sem se preocuparem muito com 0 pluralismo ea variedade dos fatos. Qs filésofos podem divergir entre si acerca da razae desta coordenagao, acerca dos.principios da hierarquia experimental. Alguns poderdo levar suficientemente longe 0 empirisma para pensarem que a experiéncia objetiva normal basta para 3 BACHELARD explicar a coeréncia subjetiva. Mas ndo se é fildsafo se ndo se lomar eonseléncia, num determinado momento da reflexéo, da cocréncia ¢ da unidade do pensa- mento, se ndo se formularem as condipdes da sintese do saber. E é sempre em fun- cdo desta unidade, desta coeréncia, desta stntese, que 0 filésofe coloca 0 pro- blema geral do conhecimento. A cféncia oferece the entdo como que uma reeoiha particularmenie rica de conhecimentas hem urticulados. Por outras palavras, 0 filésofo pede apenas a eiéncia exemplos para provar a atividade harmoniosa das funcées espirituais, mas pensa ter sem a citncia, antes da ciéncia, o poder de ana- lisar esta atividade harmoniosa, Deste mado, os exemplos cientificos sao sempre evocucios ¢ nunca desenvolvidos. Aconiece mesmo os exemplos cientificos serem comeniados de acorde com principios que nao sae principios clentificos; susci- tam metéforas, analogias. generalizagées. E assim gue, no discurso do filésofo, a Relatividade degenera muitas vezes em relativisino, a hipdtese degenera em supo- sigdo, 0 axioma em verdade primeira. Por owtras palavras, mantendo-se fora do espirita cientifico, 0 fildsafa pensa gue a filosofia das ciéncias pode limitar-se aos principios das ciéneias, aos temas gerais, ow entdo, limitando-se estritamente aos principios, o filésofo pensa que a filosofia das ciéneias tem por missdo articular og principios das eiéncias eom os prineipios de. um pensamento puro, desinte- ressado dos problemas da aplicagio efetiva, Para o fildsofo. a filosofia da ciéncia nunea esta LoLalmente no reing dos fatos. Assim a filosofia das ciéncies fica muitas vezes acantonada nas duas extre- midades do saber: no estudo, feits pelos fildsofos, dos principios muito gerais, e no estudo, realizado pelos eientistas, dos resultados particulares. Enfraquece-se contra os dois obstdculos epistemolégicos contrérios que limitam todo 0 pensamento: 0 geral ¢ 0 fmediato. Ora valoriza 0 a priori. ora 0 a posteriori, abstraindo das transinutagdes de valores epistemologicos que 0 pen- samento eleniifico contemporaneo permanentemente opera entre 0 1 priori 20 a posteriori, entire os valeres experimentais e os valores racionais. W Parece-noss pois, claro que ndo: dispomos de uma fllosofia das ciéncias que nos mostre em que condigdes — simultaneamente sudjetivas e objetivas — os principios gerais conduzem a resultados particulares, @ fluluagdes diversas; em que condi¢des os resultados particulares sugerem generallzacées que os comple- tem, dialétieas que produzam novos principios. Sepudéssemos entdo-traduzir filosoficamente @ duple mavimento que atual- mente anima 0 pensamento eientifico, aperceber-nos-famos de que a alternéncia do a priori ¢ do a posteriori é obrigatria, que o empirismo eo racionalismo estao ligados, no pensamenta cicntifico, por um estranho taco. téo forte camo 0 que une o prazer @ dor-Com efeito, um deles triunfa dando razio ao outro: o empirismo precisa de ser compreendido; 0 racionalismo precisa de ser aplicado. Um empi- rismo sem leis claras, sem leis coordenadas, sem leis dedutivas ndo pode ser pen- A FILOSOFIA DO NAO 5 sado nem ensinado: um ractonalismu sem provas paipaveis, sem aplicagae & rea lidade imediata ndo pode convencer plenamente, Q valor de wma lei empirica prova-se fazendo deta a base de wni'raciocinio, Legitima-se um racivetnio fazen- do dele a base de uma experiéncia. A citncia, soma de provas e de experiéncias, soma de regras ¢ de leis, soma de evidéncias e de fatos, lem pois necessidade de uma filosofia com dois polos. Mais exatamenie ela tem necessidade de um desen volvimento dialético, porque cada nogao se eselareee de uma forma comple mentar segundo dois ponios de vista filosdficos diferentes. Comprecnder-nos-iam mat se vissem nisto um simples reconkecimento do dualismo. Pelo contrério, @ polaridade episiemolégica é para nds a prova de que ada uma das doutrinas filosdficas que esquematizamos pelos nomes de empi- rismo e racionalismo é0 complementio efetivo da outra. Uma acaba a ouira. Pen- sar cientificamente é colocar-se no canipo epistemaldgica intermediario entre teo- ria ¢ pratica, entre matemdtica ¢ experiéncta. Conhecer eientificamente uma lei natural, é conkecé ta simultaneamente como fenémeno e como mimero, Alias, como neste capitulo pretiminar pretendemos definir tdo claramente quanto passive @ nossa posi¢ao « 0 nasse objetivo filosdficos, devermos aeres- sa opinido uma das duas diregdes meitafisicas deve ser sobreva- lorizada: a que vai do racionalismo d experténcia. E através deste movimento epistemoldgico que tentaremos caracterizar a filosofia da ciéncia ffsica contem- centar que em nos pordnea. Interpretaremos pois, no sentida de um vactonalismo, @ recente supre- macia da Fisica matemitica, Este racionalismo aplicado, este racionalismo que retoma os ensinamentos fornecidos pela realidade para os maduzir em programa de realizacdo, goza altés, segundo pensamos, de wm privildgio recent Para este racionalismo prospetor, muito diferente por isso do racionalismo tradicional, « aplicacdo ndo é sma mtiti- lacdo: a ado ctentifica guiada pete racionalisma matemdtico ndo ¢ uma transi- géncia aos prineipios. A realizagio de wn programa racional de experiéneia determina uma realidade experimental sem irracionalidade. Teremos ocasiéo de provar que o fendmena ordenado é mais-rico que 0 fendmeno natural. Basta-nos por agara ter afastade do espirito do leitor a idéta comum segundo a qual a reali dacle é uma quantidade inesgotévei de irractonalidade. A eiéneia fisiea contempo- rdnea é wma construcdo racional: ela elimina a irracionalidade dos seus materiais de construpao. O fendmeno realizado deve ser protegide contra toda a perturba- edo irracional. O racionalismo que nds defendemos fara assim face & polémiea que se apéia no irracionatismo insondévet do fenomeno para afirmar uma realt- dade. Para o vacionalismo cientifico, a aplicagdo néa é uma derrata, wm compro: misso. Ele quer aplivar-se. Se se aplica mat, modifica-se. Nao nega por isso os seus principios, dialediza-os. Finalmente, a filosofia da cééncia fisica é talvez a tinica fllosofia que se aplica determinando uma superapao dos seus principios. Em suma, ela ¢ a tinica filosofia eberta. Qualquer outra filosofia coloca os seus principios conto intocdveis, as suas verdades primeiras como totais e acabadas. Quaiquer outra filosofia se glorifiea pelo seu carter fechado. 6 BACHELARD im Como pode entdo deixar de se ver que uma filosofia que pretenda ser verda- deiramente adequada ao pensamento cientifico em evoluedo constante deve enca- rar 0 efeito reative des conhecimentos cientificos sobre a estrutura espiritual? E é assim que, desde 0 inicio das nossas reflexces sobre a papel de uma filosofia das ciéncias, enfreneamos com um problema que nos parece mal colocado tanto pelas clentistas como pelos fildsofos. Trata-se do problema da estrutura ¢ da evolucdo do espirito. Também aqui surge a mesma oposi¢do: o cientista pensa partir de um espirito sem estrutura, sem conhecimento; 0 Jilésofo apresenta a maior parte das vezes um espirito constituido, dotado de todas as categorias indispensdveis para @ compreenséo do real. Para 0 cientista, 0 conkecimento sai da ignordncia tal como a luz sai das tre~ vas. O cientista ndo vé que a igncréncia é um tecido de erros positivos, tenazes, solidérios. Nao vé que as trevas espirituais tém uma estrulura e que, nestas condi- goes, toda experiéneia objetiva correta deve implicar sempre a correpdo dé ur erro subjetivo. Mas ndo 6 féicil destruir os erros uma um. Eles sdo coordenados. O espirito cientifico sé se pode construir destruindo o espirito nao elentifico. Mui- tas vezes 0 cientista entrega-se a uma pedagogia fracionada enquanto 0 espirito cientifico deveria ter em vista uma reforma subjetiva toral. Todo 0 progresso reat no pensamento cientifico necessita de uma converséo. Os pragressos do pensa- mento elentifico contemporéneo determinaram transformagées nos préprios prin- cipios do conkecimento. Para o fildsofo que, por prafissda, encontra em si verdades primeiras, 0 obje- {0 tomado em bloco ndo tem djficuldade em confirmar principlos gerats. As Perturbagdes, as flutuagoes, as variagdes iambém néo perturbam o Silosofo. Ou ele as despreza como pormenores imiteis, ow as amontoa para se convencer da irracionalidade fundamental do dado. Em qualquer dos casos, 0 filésofo estd pr Parado para desenvolver, a propésito da ciéncia, uma filosofa clara, rdpida, fii, mas que continua « ser uma filasafia de fildsofo. Neste caso, basta uma verdade Para sair da diivida, da ignoréncia, do irracionalismo: ela & suficiente para tlumi- nar uma alma. A sua evidéncia réflete-se em reflexos sem Jim. Esta evidéneia é uma luz tinica! ndo tem espécies nem variedades. @ espirito vive uma tinica evidéncia, Ndo tenia criar para si outras evidéneias. A identidade do espirito no eu penso é tdo clara que a eiéneia desta consciéncia clara é imediatamente a cons- cléneia de wma ciéneia, a certeza de fundar uma filosofia do saber. A consciéneia da identidade do esptrita nestes conhecimentos diversos dé- the, a ela esd aela,a garantia de um método permanonte, fundamental, definitive. Perante wn tal sucesso, como coloear a necessidade de modificar 0 espirito e de ir em busea de novos conhecimentas? Para 0 filasafo, as metodologias, téo diversas, téo méveis nas diferentes ciénetas, dependem apesar disso de um método inicial, de um méto- do geral que deve dar forma a todo 0 saber, que deve tratar da mesma forma todos 08 objctos. Sendo assim, uma tese como a nossa que considera o conheci- menio como uma evolugdo do espirito, que aceita variagdes, respeitantes @ unida- de ¢ d perenidade do eu penso, deve perturbar 0. \fildsofo. A FILOSOFIA DO NAO i E no entanto é a essa conclusdo que devemos chegar se quisermos definir a filosofia do conhecimento cieniffico como uma filosofia aberta, como a cons- ciéncia de um esptrite que se funda trabalhando sobre o desconhecido, procu- rando no real aquilo que contradiz conheciientos anteriores. Antes de mais, é precisa tomar conseiéneia do fato de que a experiéncia nova diz nao d experiéncia antiga; se isso ndo acontecer, ndo se trata, evidentemente, de uma experiéncia nova. Mas este nao nunca ¢ definitive para um espirito que sabe dialetizar os seus prinetpios, constitir em si navas espécies de evidéncia, enriquecer o sew corpo de explicagdo sem dar nenhum privilégio éguilo que seria um corpo de explicagéo natural preparado para explicar tudo. Este livro dard bastantes exemplos deste enriquecimento. Mas, para esctare- cer bem @ nasso ponto de vista, néo vamos esperar ¢ daremos, no dominio mais desfavordvel @ nossa tese, no proprio campo do empirismo, um exempto desta transcendéncia experimental. Com efeito, pensamos que esta expresso néo 6 exa- gerada para definir a ciéncia instrumentada como uma wanscendéncia da ciéncia de observacao natural. Existe rotura entre o conheeimento sensivel e 0 conheci- mento cientifico. Lemos a temperatura num termémetro; nde a sentimos. Sem teoria nunca saberiamos se aquiio que vemos e aquilo que sentimos corres- pondem ao mesmo fendmeno. Ao longo de todo o nosse livro responderemos a objepdo que impée uma leitura neeessariamente sensivel do conheeimento cienti- fico, @ objegdo que pretende reduzir @ experimentagdo a uma série de leituras de indice. De fato, a objetividade da verificacdo numa leitura de indice designa como objetivo o pensamento que se verifica. O realismo da fungdo matemdtica substi- tui-se rapidamente d reatidade da curva experimental. Alias, para 0 caso de néo sermos compreendidos nesta tese que coloca jé 0 instrumenta como um aiém do drado, reservamos uma série de argumentos pelos quais provaremos que a microfisica postula um objeto para além dos objetos usnais, Existe pois, pelo menos, uma rotura na objetividade e é por isso que temos razdes para dizer que a experiéncia nas ciéneias fisieas tem um além, uma trans- cendéncia, que ela ndo esté fechada sobre si prdpria, Portanto 0 racionalismno que informa esta experiéncia deve aceitar uma abertura correlativa desta sranscen déncia empirica. A filosofia criticista, de que sublinharemos a solidez, deve ser modificada em fungdo desta abertura. Mais simplesmente, dado que as quadros do entendimento devem ser tornados flexiveis e alargados, a psicologia do espi- rito clentifico deve ser construfda em novas bases. A cultura cientifica deve deter- minar modificacdes profundas do pensamenio. Ww Mas se o dominio da filosofia das ciéncias é téo dificil de delimitar, gostarta- mos, neste ensaio, de pedir concessdes a toda.a gente. Aos filésofos reclamaremos 0 direito de nos servirmos de elementos filosé- ficos desiigados dos sistemas onde eles naseeram. A Jorga filoséfica de um siste- ma esté por vezes concentrada numa funcdo particular. Por que hesitar em pro- BACHELARD por esta funcdo particilar ao peasamento cientifico que tanta necessidade tem de informagdo filosdfica? Haveré par exempio sacrilégio em tomar um aparetho epistemologico to maravilhoso como a categoria kantiana e em demonstrar 0 imteresse deste pard a organizagde do pensamento ciensifica? Se todos os sistemas sdo indevidamente peneirados por um eeletismo dos fins, parece no entanto que um eeletismo dos imeios poderd ser admissivel para wma ftlosofia das ciéncias que pretenda fazer face a todas as tarefas do pensamento cientifico, que pretenda dar conta dos diferentes tipos de teoria, que pretenda medir o alcance das suas aplica Ges, que pretenda, antes de mais, sublinhar os variadissimos processos da deseo- berta, mesmo os mais arriscados. Pediremos também aos fildsofes que acabern cont « ambiede de encontrar wn ponto de vista daico e jixo para ajuizar do con- Junto de uma eiéncia téo vasta e tao evolutiva como é a Fisica, Para caracterizar a filosofia das cineias seremos entéo conduzidos a um pluralismo filosifico, 0 tinteo capa: de informar os elementos téo diversos da experiéncia e da teoria, ele- mentos estes (a0 diferentes no seu grau de maturidade filosdfica. Definiremos a JSilesofia das ciéncias coma wm filosofia disperse, coma uma filosofia distri buida. dmersamente, 0 pensamento cientifico surgir nos-é como wm método de disperséo bem ordenado. como um mérodo de andlise aprofundada, para os diver sos filosofemas macicumente agrupidas nos sistemas filosdficos. Aos cientistas, reclamaremos a diveito de desviar por um instante a ciéneta da seu wabatho positive, da sua vontade de objetividade, para descobrir 0 que Permanece de subjetivo nos métodos mais severos. Comecaremos por colocar aos cientistas questées de cardter aparentemente psicoldgico e, a poucn @ pouco. provar Jhes-emos que toda a psicalogta & soliddria de postulados metafisicos. O espirito pode mudar de metafisiva: 0 que ndo pode é passar sem a metafisiea. Perguntaremos pois aos cientistas: como pensais, quais sd0 as vossas tentativas, 8 vassos ensaios, os vosses erros? Quais sda as motivagdes que vos levam c mudar de opiniéo? Por que ra=éo voeés se exprimem to sucintamente quando falam das condig6es psicolégicas de uma nova investigagdo? Transmiti-nos sobretudo as vossas idéias vagas, as vossas coniradigées, as vossas idéias fixas, @s vossus convicgdes ndo confirmadas. Dizem que sols realistas. Seré certo que esta filosofia maciga, sem articulacdes, sem dualidade, sem hivrarquia, corres. ponde @ variedade do vossa pensamento, a liberdade das vossas hipdteses? Dizei- nos & que pensals, n@o a0 sair do laboraidrio, mas sim nas horas em que deixats @ vida comum para entrar na vida cientifica. Dai-nos néo 0 vosso empirismo da tarde, mas sim o vosso vigorose ractonalismo da manhd, 0 a priori do vosso sonho maiemético, o entusiasmo dos vossox projetos, as vossas intuieées incon fessadas, Se pudéssemos assim alargar a nossa pesquisa psicalégica, parece-nos quase evidente que 0 espirito cientifico surgiria também numa verdadeira disper- sdo psicoldgica e conseqtientemente numa verdadeira dispersdo filoséfica, dado que wida a raiz filosdfica nasce num pensamento, Os diferentes problemas do pensamento ciemtifico deveriam pois receber diferentes coeficientes filaséficos. £m particular, 0 grau de realism e de racionalisina ndo seria o mesmo para todas as nogdes, E pois ao nivel de cada nogdo que, em nossa opinido, se coloca- A FILOSOFIA DO NAO 9 riam as tavefus precisas da filosofia das ciéneias. Cade Nipbtexe, eada problema, cada experiéncia, cada equacéo reclamaria sua filosofia. Dever-se-ia eriar uma JSilosofia do pormenor epistemolégico, uma filosofta cientifica diferencial que contrabalancaria a filosofia integral dos jilésofos. Esta filosofia diferencial esta- ria encarregada de analisar o devir de um pensamentw, Em linhas gerais, o devir de um pensamento cientifico corresponderia a uma normalizacdo, & transfor- magdo da forma realista em forma racionalista. Esta transformacdo nunca & total. Nem todas as nogdes estdo na mesmo estédio das suas transformagdes metafisicas. Meditando filosoficamente sobre cada nogao, ver-se-ia também mais claramente @ cardter polémico da definigdo adotada, tudo 0 que esta definigdo distingne, delimita, recuse. As condigdes dialéticas de uma definigdo cienttfica diferente da definiedo usual surgiriam entao mais elaramente e compreender-se- fa, tio pormenor das nogdes, aquile « gue chamaremos a filosofia do néc. v Eis entao 0 nosso plano: Para ilustrar as observagdes precedentes, obscuras na sua generalidade, daremos jé no primeiro capitulo um exemple desta filosafia dispersa que 6, segurt do pensamos, a tinica filosofia capaz de anatisar a prodigiasa complexidade do pensamento cientifiee moderno. Depois dos dois primeiros capitulos que desenvolvem um problema episte- moldgico preciso, estudaremos os esforgos de abertura do pensamento eivntifieo em trés dominios téo diferentes quanto posstvel, Em primeiro lugar, ao ntvel de uma categoria fundamental: @ subsidneia, Jeremos oeasi@o de mostrar 0 esboo de um no kantiso, quer dizer, de uma fllosofia de inspiracda kantiana que ultrapassa a teoria classica. Utilizaremos assim wna nogao filoséfica que fincionou eorretamente na eiéncia newtoniana & que, em nosso entender, é necessanio abrir para traduzir a sua fungao correta na ciéncta quimica de amanhd. Neste capttiio encontraremos correlativamente argu mentos para um ndo-realismo, para um ndo- materialise, quer dizer, para uma abertura do reatismoa, do materialismo, A substéncia quimica sera enido represen- fada como uma pepa — wma simples pega — de wm proceso de distingdo; 0 real sera representado coma um instanie de uma realizagaa bem conduzida. O nao reatismo (que é um realismo) vo ndo-kantismo (que é um racionalismo) sratados Simultaneamente a propésito da nogdo de substineia surgirdo, na sua aposigde bem ordenada, como espiritualmente coordenados, Entre os dois pélos do rea- lismo e do Kantismo elissicos naseerd um campo epistemaligico intermediario particularmente asivo. A filosotia do nda surgira pois ndo como uma atirede de recusa, mas como uma atitude de conciliagdo. De uma forma mais precisa, a nopao de substincia, tao duramente contraditéria quando captada na sua infor- magdo reatista por um lado e na sua informacio kantiana por outro, serd clara- mente transitiva na nova doutring do ndo-substancialismo. A filosofia do ndo permitira resumir. sinmsltaneamente, toda a experiéneia & todo 0 pensamento da 10 BACHELARD determinagao de uma subsidncia. Uma vez a categoria aberta, ela ser capaz de reunir todos os matizes da filosofia quimica contemporanea. O segundo dominio a propdsito do qual praporemos um alargamento da JSilosofia do pensamento ciensifico serd a intuigao. Também nesie caso daremos exemplos précisos. Mostraremos que a intuigéo natural ndo é mais do que ume intuigéa particular ¢ que, associando-thes as justas liberdades de sintese, se com- preende melhor a hierarquia das ligagées intuitivas, Mostraremos a atividade do pensamento cientifico na intuigio trabalhada, Finalmente, abordaremos a terceiro dominio: 0 dominio ligice. S6 por si. ele exigiria uma obra inteira. Mas bastardo algumas poucas referencias 4 ativi. dade cientifica para mostrar que os quadros mais simples do entendimento néo podem subsistir na sua inflexibilidade, se se pretender analisar os destinos novos da ciéneia. A razdo ortodoxa pode ser dialetizada em todos os seus principios através de paradoxos. Depois deste esforgo de alergamento apticado a dominios tdo diferentes como a categoria, a intuigao, a ldgica, vottaremos nas conelusdes, para evitar qualquer equtvaco, aos principios de uma filosofia do ndo. Com efeito, & neces. Sdrio relembrar repetidas vezes que a filosofia do ndo nao é psicologicamente um negativisme e que ela ndo conduz, face d natureza, a um niilismo. Pelo contrério, ela procede, em nds e fora de nés, de uma atividade consirutiva. Ela afirma que 0 espirito é, no seu trabatho, um fator de evolucdo. Pensar corretamente o real, € aproveitar as suas ambigiiidades para modificar ¢ alertar @ pensamento. Dialeti- Zar O pensamento ¢ aumentar a garantia de criar cientificamente fendmenos com: pletas, de regenerar todas as varidveis degeneradas ou suprimidas que a ciéneia, como 0 pensamento ingénuo, havia desprezado no seu primeiro estudo. Capiruto I As diversas explicagdes metafisicas de um conecito cientifico Antes de entrar verdadeiramente no nosso exame filoséfico geral vamos, para ser mais claros, encetar toda a polémica em torno de um exemplo preciso. Vamos estudar um coneeito cientifico particular que, segundo pensamos, encerra uma perspectiva filos6fica completa, isto é, pode ser interpretado sob os varios pontos de vista do animismo, do realismo, do positivismo, do racionalismo, do racionalismo complexo ¢ do racionalismo dialético, Explicaremos precisamente o exemplo escolhido sob os dois dltimos pontos de vista. O racionalisma complexo, € 0 racionalismo dialético podem alias ser mais brevemente reunidos sob a desig- nagio do ultra-racionalismo que ja tivemos ocasido de esbogar.’ Mostraremos que a cvolugao filosdfica de um conhecimento cieniifico particular ¢ um movi- mento que atravessa todas estas doutrinas na ordem indicada. E evidente que os conceitos cientificos nao atingiram todos o mesmo estdio de maturidade; muitos permanecem ainda implicados num realismo mais ou menos ingénuo; muitos sao ainda definidos na orgulhosa modéstia do positi- vismo: © que faz com que, examinada nos seus elementos. a filesofia do espirito cientifico no possa ser uma filoscfia homogénea, Se as discussdes filosdficas acerea da cigncia permanccem confusas, ¢ porque se pretende dar uma resposta de conjunto, ao mesmo tempo que se esta obnubilado por um comportamento particular. Diz-se que’o cientista é realista fazendo a enumeragao dos casos em que le é ainda realista, Diz. s¢ que ¢ positivista escolhendo ciéncias que sao ainda positivistas. Diz-se que 0 matematico @ racionalista retendo os pensamentos em que cle dinda ¢ kantiano. Naturalmente, os jé sio tio infiéis a verdade filosdfica como os ainda. Assim, 0s epistemOlogos dizem que o fisico ¢ racionalista fazendo a enumeragao dos casos cm que cle jé € racionalista, cm que cle deduz cortas experiéncias de leis anteriores; outros dizem que 0 socidlogo é positivista escolhendo alguns exem- plos em que ele jd ¢ positivista, cm que cle abstrai dos valores para se limitar aos fatos. Os filésofos aventurosos — um exemplo ocorrer’ imediatamente ao espi- rito do leiter — devem confessar-se da mesma mancira: para legitimar as suas doutrinas ultra-racionalistas, eles dispdem apenas de casos raros cm que a ciéncia sob as suas formas mais recentes ¢ portanto menos confirmadas, jé ¢ dialética, . *CE-Artigo, dmguésitions, 1, juno de 1930.CN1, 0A.) B BACHELARD Deste moda, os proprios ultra-racionalistas devem reconhecer que a maior parte do pensamento cientifico permanece em estidios de evolugdo filosoficamente primitivos; devem preparar se para ser vitimas de uma polémica esmagadora. Tudo esta contra eles: a vida comum, 0 senso comum.o conheeimente imediate, @ técnica industrial © também ciéncias inteiras, ciéncias incontestaveis como a biologia em que o racionalismo ainda nao penetra — se bem que certos temas das ciénetas biologicas pudessem receber um desenvolvimento rapido desde que a causalidade formal, to desprezada. io levianamente rejeitada pelos realistas, puclesse ser estudada num espirito filoséficn novo. Perante tantas provas dadas pelos realistas ¢ pelos positivistas, 0 ultra-racio- nalismo é facilmente abalado. Mas apés se ter curvado assim. pode passar a contra-ofensiva: a pluralidade das explicagées filosdficas da ciéncia é um fato, 2 uma ciéncia realista nao deve levantar problemas metafisicos. A evolugdo das diversas epistemologias ¢ um outro fate: o energetismo mudou totalmente de carater no inicio deste século: Qualquer que seja o problema particular, 0 sentido da evolugao epistemologies é claro ¢ constante: a evolugdo de um conhecimento particular caminha no sentido dz uma coeréncia racional. A partir do momento em que se conhecem duas propriedades de um objeto. tenta-se constantemente felaciond-las. Um conhecimento mais profundo é sempre acompanhado de uma abundiincia de razdes coordenadas. Por muito perto do realismo que se permane- ga, a menor ordenagao introduz fatores racionais; quando se avanga no pensa- mento cientifico, aumenta o papel das teorias. Para descobrir os aspectos desco- nhecidos do real pela agiio enérgica da ciéncia, s6 as teprias sto prospectivas. Pode-se discutir muito acerca do progresso moral. do progresso social, do progresso poctico. do progresso da felicidude: existe no entanto um progresso que € indiscutivel; © progressa cientifico, considerado como hicrarquia de conheci- Mentos, NO scu aspecto especificamente intelectual. Vamos, pois, tomar para eixo do nosso estudo filosdfico o sentido deste progress, ¢.se, sobre a abscissa da sua evolugio, colocarmos regularmente os sistemas filosdficos numa ordem idénticn para todos os conceitos, ordem essa que vai do animisme ao ullra-racionalismo passando pelo realismo, pelo positivismo ¢ pelo racionalismo simples, teremos:o direito de falar de um progresso filosifieo dos coneeitos cientific Insistamos um pouco neste conceito de progresso filosdfico. & um conccito que tem pouco significado cm filosofia pura. Nao caberia na cabega de nenhum , filésofo dizer que Leibniz estavu adiantado em relagdo a Descartes. Kant adian- tado em relagio a Platio. Mas o sentido da evolugio filoséfica dos conceitos cientificos é tao claro que se torn necessario coneluir que o conhecimento cient: fico ordena a propria filosofia. O pensamento cientffico fornece, pois, um princi pio para a classifieagao das filosofias e para a estudo do progresso da razdo. WW E sobre © coneeito cientifico de massa que pretendemos fazer a nossa demonstragiio da maturagao filoséfiea do pensamento cientifico. J4 nos servimos A FILOSOFIA DO NAO 13 déste conceito nos nossos livros sobre @ Valor Indutive da Relatividade eA For- magdo do Espirito Cientifico para mostrar a conceitualizapdo ativa, contempo- Fanea da mudanga de definigdo de um conceito. Mas nao tivemos nessa altura a ocasido de esbogar toda a perspective da conceitualizagdo. Dado que 0 conceito de massa. jé integrado no racionalismo compliexo da Relatividade, encontrou recentemente na mecinica de Dirac uma dialética clara ¢ curiosa, ele afigura-se hos com uma perspectiva filosofica completa. Fis. pois, 08 ciaco miveis sobre os quais s¢ estabelecem filosofias cientificas diferentes ¢. evidentemente. ordenadas. tr Sob a sua primeira forma, a nogia de massa corresponde a uma apreciagao quantitativa grosseira ¢ como que vida da realidade. Aprecia-se uma massa pela ista. Para uma ctianga Avida, o fruto maior é0 melhor. aquele que fala mais cla. ramente ao seu descjo, aquele que ¢ 0 objeto substancial do desejo. A nogio de massa concretiza 6 proprio desejo de comer. A primeira contradigao € entio. como sempre. 0 primeiro conhecimento. Este adquire-se na eontradigao entre © grande ¢ » pesado, Uma casca vazia con- tradiz.a avidez, Desta decepgao nasce um acontecimento valorizado que 9 conta- dor de fabulas apresentara como siribolo da experigncia adquirida pelos “ve- thos”. Quando se tem um objeto na palma da mao, comega se a compreender que 0 maior nao € necessariamente 0 mais rico. Uma perspectiva de intensidades vem rapidamente aprofundar as primeiras visdes da quantidade, Logo em seguida a nogiio de massa interioriza-se. Ela torna:se sindnima de uma riquern profunda, de uma riqueza intima, de uma concentragio dos valores, Torna-s¢ entio objeto de curiosas valorizagdes a que oS mais diversos devancios animistas dao livre expansao, Neste estidio, a nogdo de massa & um conceito-obsticulo, Este con ceito blogucia © conhecimento; nao @ resume, Criticar-nos-io talvez, por comegarmos 0 nosso estudo por uma fise demi siado elementar por purodiarmos © conhecimento cienuifico ¢ postularmos assim dificuldades que em nada estorvam um espirito refletido. Abandonaremos de boa yontade este nivel de analise, mas com a eondigao de que fique bem assente que nenhuma conviegao s¢ vita reconfortar a este lar primitivo. ¢ que sc evitard qual quer emprego metaforico da nogio de massa em ciéncias em que exista o perigo de se reencontrar a sedugao primitiva, Nao ¢ por exemplo surpreendente que al- guns psicdlogos falem da massa ou da carga de atividade como se se tratasse de um conceito claro? £ evidente que ees sabem muito bem a confusio que esta carga encerra, Eles proprios dizem que se trata de uma simples analogia. Mas precisamente esta analogia psicolgica refere-se ao conceit animista de massa, Ela reforga pois 6 conceito-obstdeulo awavés de uma utilizagdo falsamente clara. Eis imediatamente uma prova: quando um psicélogo fala de carga de afetividade, Uala-se sempre de uma massa mais Ou menos intensa. Seria ridiculo falar de uma pequena massa, de uma pequena carga de afetividade. Na realidade, nunea se fala 14 BACHELARD nestes termos. Perante um doente insensivel, inerte, indiferente, o psiquiatra dira que este doente sofre de uma afetividade reduzida, Neste caso, 9 psiquiatra aban- dona sub-repticiamente 0 seu conceito de massa afetiva, de carga afetiva. Sé é earga aquilo que sobrecarrega, O conceito emprega-se mais para o grande do que para o pequeno. Estranha medida que apenas mede aquilo que cresce! Do ponto de vista dindmico, 0 conceito animista de massa ¢ tao nebuloso como do ponto de vista estatico, Para o home faber a massa é sempre uma maca. A maga € um instrumento da vontade de poder; © que quer portanto dizer que a sua fungdo nao é facilmente analisada. Correlativamente, 0 senso comum des- preca a massa das coisas mitidas, das coisas “insignificantes”. Em resumo. massa so ¢ uma quantidade se for suficientemente grande. Primitivamente. cla nao € portanto um conceito de aplicagdo geral como seria um conceito elaborado numa filosofia racionalista, Se se desenvolvessem mais estas consideragdes, no sentido de uma psicand lise do conhecimento objetivo, cxaminando sistematicamente as primitivas utili- zagoes da nogio de massa. compreender-se-ia melhor como o espirito pré-cien tifico definiu o conceito de corpos imponderaveis, negando rapide demais a generalidade da lei da gravidade. Teriamos nisto um exemplo de uma dialética prematura, mal instruida, que opera sobre as coisas em ver de operar sobre axio- mas. Daqui extraimos um argumento para situar a filosofia dialética para além do racionalismo, como uma flexibilizagdo do racionalismo. A ulilizagdo de uma dialetica a0 nivel do realismo é sempre incerta ¢ provisiria. Diga-se o que se disser desta digressiio metafisica. dissemos o suficiente para denuneiar formas conceituais imprecisas como a idéia de massa sob a forma pri- mitiva, Um espirito que aceite um conceito desta natureza no pode aceder & cvl- tura cientifica. Uma declaragao explicita de analogia difieilmente corrige 0 perigo deste cmprego, O animismo nao tarda a wranshordar a definigdio ¢ a reintegrar no espirito ceriezas especiais. Existe aliés um sintoma muito curioso sobre 0 qual nunca € demais refletir: & a rapide com a qual um conceite animista ¢ compreen- dido, Bastum poucas palavras para ensinar o que ¢ uma carga de afetividade, Para nés, isto constitui um mau sinal. No que se refere ao conhecimento tedrico do real, isto é. no que se refere a um conhecimento que ultrapasse o alcance de uma simples descrigao — deixando também de lado a aritmética ¢ a geometria —. tudo 0 que é facil de ensinar é inexato. Teremos ocasiao de voltar a este para- doxo pedagogico, Por agora queriamos apenas mostrar a incorregao total da pri- meira nogio de massa, Pensamos que existe sempre um erro a corrigir a prop) sito de qualquer nogdo cientifica, Antes de se comprometer num conhecimento abjctive qualquer, o espirito deve ser psicanalisudo ado s6 na generalidade como a0 nivel de todas as nogdes particulares. Como uma nogio cientfica raramente é psicanalisada em todas ay suas utilizagGes. sendo sempre de temer que exista comtaminagio de uma utilizagio por outra, torna'se sempre necessario, para todos os coneeitos cientificos. indicar os significados nao psicanalisados. No capitulo seguinte voltaremos a este pluralismo de significados associados a um mesmo conceito. Nele encontraremos um argumento para a filosofia cientifica dispersa que defendemos nesta abra. A FILOSOFIA DO NAO 15 Vv O segundo nivel sobre que se pode estudar a nogio de massa corresponde a um emprego cautclosamente empirico, a uma determinagdo objetiva precisa. O conceito esta entio ligado a utilizagio da balanga. Beneficia-se imediatamente da objetividade instrumental. Notemos no entanto, que se pode evocar um longo periodo em que o instrumento precede a sua teoria. O mesmo nao acontece atual- mente. nos dominios verdadeiramente ativos da ciéncia, em que a teoria precede © instrumento, de forma que o instrumento de fisica € uma teoria realizada. concretizada, de esséncia racional. No que diz respeito a antiga conceitualizagaa da massa, @ evidente que a balanga é utilizada antes que se conhega a teoria da alavanea, Entao, o conceito de massa apresenta-se direlamente, como que sem pensamento, como o substituto de uma experiéneia primeira que é decidida e clara, simples ¢ infalivel. Notemos alias que, mesmo nos casos em que o conceito funciona “em composi¢ao”, ele no ¢ pensado cm composigi0: assim, no caso da balanca romana em que a comparagaa des pesos s¢ faz por intermédio de uma fungao composta do peso edo brago da alavanca, esta composigao ndo é efetiva- mente pensada por quem a utiliza. Por outras palavras, cria-se uma conduta de balanga, (ao simples como a conduta do cabaz estudada por Pierre Janet para caracterizar uma das primeiras formas da inteligéneia humana, Esta conduta da balanga atravessa geragdes, transmite-se na sua simplicidade, como uma expe- rigneia fundamental. Ela nao é mais do que um caso particular da utilizagdo sim- ples de uma miquina complicada, de que encontramos naturalmente inimeros exemplos cada vez mais surpreendentes no nosso tempo em que a maquina mais complicada é governada simplesmente, com um conjunto de conceitos emptricos racionalmente mal concebidos ¢ mal articulados, mas reunidos de uma forma pragmaticamente segura. A um tal conceito simples ¢ positive, a uma tal utilizagao simples ¢ positiva de um instrumento (mesmo que seja teoricamente complicado) corresponde um pensamento empirico, sélido, claro, positive, imével. E facil imaginar que esta experiéneia constitua uma referéncia necessaria ¢ suficiente para legitimar qual- quer teoria. Pesar é pensar. Pensar é pesar. E os filésofos repetem infatigavel- mente © aforismo de Lord Kelvin que tinha a pretensdo de nao ir além da fisica da balanga, nem da aritmética do escudo. Um pensamento empirico associado uma experigncia to peremptdria, tio simples, recebe cntiio o nome de pensa mento realista. Mesmo numa ciéncia muito avangada, as condulas realistas subsistem. Mesmo numa pratica inteiramente comprometida com uma teoria se manifestam retornos & condutas realistas. Estas condutas realistas reinstalam-se porque 0 te6- Tico racionalista tem necessidade de ser compreendido por simples experimenta- dores, porque ele quer falar mais depressa regressando conseqientemente as ori- gens animistas da linguagem, porque cle nao teme o perigo de pensar simplificando, porque na sua vida comum ele é efetivamente realista. De forma que os valores racionais sdo tardios. efémeros, raros — precarios como todos os 16 BACHELARD valores elevados, diria 0 Sr. Dupréel. Também no reino do espirito o joio estraga © trigo, 0 realismo leva 1 melhor sobre o rucionalismo. Mas 0 epistemélago que estuda os fermentos do pensamento cientifico deve detectar permanentemente ¢ significado dinamico da descobera. Insistamos pois agora sobre o aspecto racto~ nal que assume o conceito de massa, v Fete terceiro aspecto ganha toda a sua clareza no fim do século XVII quan- do nasee, com Newton, a meciinica racional. E a época da sofidartedade noeionat (aotionneile), A utilizagao simples ¢ absoluta de uma nogdo segue se a utilizagio correlativa das nogdes. A nogdo de massa define-se entdio num corpo de nocées ¢ nao apenas como um clemento primitive de uma experiéncia imediata ¢ directa, ‘Com Newton a massa sera definida como 0 quociente da forga pela aceleragao, Forge, aceleragao, massa, estabelecem-se correlativamente numa telagdo clara- mente racional dado que esta relugdo é perfeitamente analisada pelas teis racio: nais da aritmética. Do ponto de vista realista, a5 trés nogdes svio @ mais diversas possivel. Reu- ni-las numa mesma formula pareceria um proeedimento mais ou menos artificial, que em nenhuma ocasido poderia receber 0 qualificativo de realista, Com cfeito, por que tazfio concederiamos nos ao realista o direito a uma espécie de ecletismo da fungio realista? Por que razdo ndo o haveriamos de obrigar a responder com preciso & sequinte pergunta: “Qual de entre as nogSes de forga, de massa, de aceleragio, ¢ real?” E se. como ¢ habito, ele responder: “Tudo é real”, aceita- remos nds este método de diseussdio que, por meio de um prineipio vago, apaga todas as diferengas filosoficas. todas as questdes precisas? Em nossa opinidio. a partir do momento em que se definiram em correlagio as trés nogGes de forga, de massa. de aceleragiio. realizou-se imediatamente um afastamento om relagao aos principios fundamentais do realisme, dado que qual- quer destas trés nogdes pode ser apreciada através de substituigdes que introdu- zem ordens realisticas diferentes, Aliis, a partir da existénein da correlagiio, poder-se-4 dedueir uma das nogdes, seja ela qual for. a partir das outras duas, Em particular, a nogio de massa, tio claramente realista sob a sua forma primeira, & de certo modo tornada sutil quando se passa, com a meeanica de Newton, do seu aspecto estaticn ao seu aspecto dinimico, Antes de Newton, estu- dava'se a massa do seu ser, como quantidade de matéria. Depois de Newton, ela € estudada num devir dos fenmenos, como coeficiente de devir. Podemos, ali: Fazer uma observagaio curiosa: ¢a necessidade de compreender o devir que racio naliza o realismo do ser, Por outras palavras. € no sentido da complicagao filosd- fica que se desenvolvem verdadsiramente os valores racionalistas. Desde 2 sua Primeira formulagao que o racionalismo deixa antever o ultra-racionalismo, A razao nao é¢ de forma alguma uma faculdade de simplificagao. E uma faculdade que'se esclareee enriquecendo-se. Desenvolve-se no sentido de uma complexidade crescente, como mostraremos mais claramente quando chegarmos aos estadios epistemoldgicos seguintes da nogao de massa. A FILOSOFIA DO NAO 17 Em todo 0 caso, para interprelar no sentido realista a correlagao das trés nogdes de forga, massa ¢ aceleragio. é necessario passar do realismo das coisas ao realismo das leis. Por outras palavras. ja ¢ necessario admitir duas ordens de tealidade. Nao deixaremos, alias, o realismo habituar-se a esta comoda divisdo. Ser-ihe-4 necessdrio responder as nossas permanentes objegdes realizando tipos de leis cada vez mais variados. A bela simplicidade do realismo apagar-se- rapi- damente; 0 realismo sera vasculhadc por todos os lados, em todas as suas nogdes, sem nunca poder dar conta, utilizando os seus prdprios principios, da hierarquia dos niveis. Por que razdo nao se designam entio os niveis do real e a sun hierar- quia cm fungao dos proprios principios que dividem e hierarquizam. isto & em fungio dos principios racionais? Mas esta observacao epistemologica deve ser acentuada. E preciso vermos que, uma vex estabelecida a relagio fundamental da dindmica, a meeiinica se tora toda ela verdadeiramente racional. Uma matematica especi experiéncia e racionaliza-a; a mecanica racional situa-se num valor apoditico: permite dedugSes formais; abre-se sobre um campo de abstragiio indefinido; exprime-se nas mais diversas equagées simbélicas, Com Lagrange. com Poisson, com Hamilton introduzem-se “formas mecdnicas” cada vee mais gerais em que a massa nao é mais do que um instante da construgéo raeional. Face ao fendmeno mecinico, a mecanica racional exatamente na mesma relago que a geome: tria pura relativamente 4 descrigdo fenomenal. A mecanica racional conquista rapidamente todas as fungdes de um @ prior! kantiano. A mecanica racional de Newton é uma doutrina cicntifica jd dotada de um carater filosofico kantiano. A metafisica de Kant instruiu-se na mecanica de Newton. Reeiprocamente, pode explicar-se a mecinica newtoniana como uma informagio racionalista, Ela satis. faz. o espirito independentemente das verificagdes da experiéneia. Se a experiéncia viesse desmenti-la. suscitar-lhe corregdes, tornar-se-ia necessdrio uma modifica. 40 dos principios espirituais. Um racionalismo ulargudo nao se pode satistazer com uma retificacao parcial. Tudo aquilo que retifica a razdo reorganiza-t, Mos: tremos, pois, como o calcidoscdpio das miiltiplas filosofias reorganizou o sistema das “luxes naturais”. VI © racionalismo newtoniano dirigiu toda a Fisica matematiea do século XIX. Os elementos que ele escolheu como fundamentais: espago absoluto, tempo absoluto, massa absoluta, permanccem, em todas as construgdes, elementos sim ples e separados, sempre reconheciveis. se deles a base dos sistemas de medi da, como o sistema CGS, que servem para medir tudo. Estes clementos corres: pondem aquilo a que se poderia chamar diomos nocionais (notionnels): nao teria significado colocar a respeito deles uma questao analitica. Eles so os a priori da filosofia métrica. Tudo o que se mece, deve ¢ pode depois apoiar-se nestas bases métricas, Mas eis que, com a era da Relaiividade, surge uma époea em que or: 18 BACHELARD lismo, essencialmente fechado nas concepgdes newtonianas ¢ kantianas, vai abrir: se, Vejamos como se realiza esta abertura a proposito da nogio de massa que retém presentemente a nossa atengio A aberiura realiza se. por assim dizer. no interior da nagao. Constata-se que a nogdo de massa tem uma estritura funcional interna, ao passo que até entio todas as fungSes da nogiio de messa eram de certo modo externas dado que sé se encontravam em composicdo com outras nogGes simples, A nogdo de massa que caracterizamos como um déome nacional pode pois ser objeto de analise. Pela primeira vez um atomo nocional pode decompor-se: chega-se pois ao seguinte paradoxo metafisico: 0 elemento ¢ complexo. Correlativamente apercebemo-nos de que a nogio de massa sO € simples em primeira aproximagae. Com efeito, a Relatividade descobre que a massa. outrora definida como independente da velo cidade, como absoluta no tempo'¢ ho espago, como base de um sistema de unida- des absolutas, ¢ uma fungéo complicada da velocidade. A massa de um abjeto ¢ pois relativa ao deslocamento desse objeto, Pensar-se-a em vio poder definir ume massa em repouso, que constituiria uma caracteristica propria desse objeto. O Tepouso absoluto nao tem signifizado. Tambéem é falha de significado a nogio de massa absoluta. E impossivel escapar & Relatividade, tanto no que se refere £ massa como no que se refere Ais doterminagGes do espago-tempo. Esta complicagdo interna da nogio de massa é acompanhada de complica: ges sensiveis na utilizagdo externa: a massa nao se comporta da mesma maneirs relativamente 4 aceleragao tangencial ¢ relativamente a aceleragaio normal. E pois impossivel defini-ta de uma forma tio simples como o fazia a dinimica newto- niana. Mais uma complicag&o nocional: na fisiea eclativista, a massa ja nao ¢ heterogénea a energia. Em suma.a nogao simples da lugar a uma nogdo complexa, sem déclinar alias o seu papel de elemento, A massa permanece uma nogio de base ¢ esta nogio de base ¢ complexa. Apenas em certos casos a mogdo complexa se pode simplificar, Simplifies se na apticngio pelo abandono de determinadas sutilezas. pela climinagdo de determinadas variagdes delicadas. Mas fora do problema da aplicagio, ¢ conseqiientemente ao nivel das consirugdes racionais a priori, o ni mero das fungdes internas da nogao multiplica-se. O que equivale a dizer que numa nogdo particular, numa nogdo clementar. 0 racionalismo se multiplica, s¢ segmenta, se pluraliza. O elemento sobre o qual a razao trabalha sera mais ou menos complexe de acordo com © grau de aproximagao. O racionalismo tradi cional & profundamente abalado por esta utilizagao multipla das nogdes clemer ares. Surgem corpos de aproximacdo, corpos de explicagdo, corpos de racionali- zagdo, sendo ests trés expresses congéneres, Estes corpos sio tomados no mesmo sentido de um éorpus que fixa a organizagaio de um direito particular. Ao multiplicar-se, 0 racionalismo toma-se condicional. E tocado pela relatividade: uma organizacao é racional relativamente a um corpo de nogdcs. Nao existe razao absoluta, O racionalismo ¢ funcional. E diverso e vivo. Retomemos entao a nossa polémica com o realista, Conlessar se-4 ele venci- do? Ser-Ihe-4 sempre permitido ampliar a sua definigao do real? Ha pouco, leva- A FILOSOFIA DO NAO w do pela polémica. cle admitia. acima de um realismo das coisas ¢ dos fatos, um realismo das leis. Ele vai agora seriar este realismo das leis: distinguira uma reali dade da lei geral ¢ simples e uma realidade da Ici mais complicada: entregar-se-a a.um realismo dos graus de aproximagao, a um realisme das ordens de grandeza, Mas, @ medida que esta hicrarquia se estende. quem mio vé que ela infringe a fun- gio filos6fica essencial do realismo para qual 9 dado deve ser um dado sem privi- \égio? Com efeito, a fungio mais evidente de um dado, é precisamente a recusa de qualquer privilégio. Mas na fealidade. o realista que assim hicrarquiza a realidade cientifica rea liza os seus proprios fracassos. Nao foi. cam efeito, sob a inspiragko do realismo que a ciéneia captou a estrutura interna das suas nogdcs de base. 56 existe um meio de fazer avangar a eiéncia: é 0 de atacar a eiéncia ja constituida. ou seja. mudar a sua constituigad, O realista esta mal situado para isto, pois parece que o renlismo é uma filosofia onde se tem sempre raz. O realismo é uma filosofia que assimila tudo, ou que, pelo meros, absorve tudo, Sb se constitul porque sé pensa sempre constituido. 4 fortiori, ele nunca muda de constituigao. O realism @ uma filosofia que nunca se compromete. ao passo que © racionalismo se com- promete sempre ¢ arrisca totalmente em cada experiéncia. Mas, também neste caso, © sucesso estit ao lado do maior risco. Com efeito, toda a hierarquin que vemos estabclecer-se nas nogdes € dra do esforgo de reorganizagao tedrico leva- do a cabo pelo pensamento cientifico. A hierarquia das nogécs apresenta-se como uma extensio progressiva do dominio da racionalidade. ou melhor, como § cons tituigdo ordenada de diferentes dominios de racionalidade, sendo cada um destes dominios de racionalidade especificado por fungées adjuntas, Nenhuma destas extensdes € o resultado de um estudo realista do fendmeno. Tém todas o carater numenal. Apresentam-se todas inicialmente como némenos & procura do seu fenémeno. A razao é pois uma atividade auténoma que tende a completar-se. VIE Mas o racionatismo contemporineo nao se enriquece apenas por uma multi plicagio intima, por uma complicagdo das nogdes de base: anima-se também numa dialética de certo modo externa que o realismo ¢ impotente para descrever ¢, Naturalmente. mais impotente ainda para inventar, O conceito de massa pode, também nest caso, fornecer-nos um exemplo luminoso. Vamos indicar o aspecto filoséfico novo sob 0 qual se apresenta a massa na meednies de Dirac. Teremos ¢ntao um exemplo preciso daquilo a que prapomas chamar um clemento do ultra-racionalismo dialético. que representa o quinto nivel da filosofia dispersa. A meednica de Dirac &, como se sabe, uma parte de uma concepgdo geral, 0 mais totalitiria possivel do fendmene da propagagdo. Se se perguntasse JA em seguida: “Da propagagio de qué?”, estariamos perante a necessidade do tealismo ingénuo ¢ urgente, que pretende sempre colocar 0: objeta-antes dos seus fendmenos. De fato. na organizacio matematica do saber, & necessario preparar 6 dominio de definigdo antes de definir, exatamente da mesma maneira que. na 20 BACHELARD pratica do laboratério, ¢ preciso preparar o fendmeno para o produzir. O pensa- mento cientifico contempordneo comega. pois. por coloear entre paréntesis a rea- lidade. E sob uma forma um pouco paradoxal, mas que nos parece sugestiva, pode dizer-se que a mecanica de Dirac examina em primciro lugar a propagagio dos “paréntesis” num espago de configuragao. Ea forma de propagacio que defi- aird em seguida aquilo que se propaga, A mecdnica de Dirae &, pois, de saida, desrealizada. Weremas como, no fim do seu desenvolvimento, ela procurara a sua realizagao, ou melhor. as suas realizagoes, Dirac comega por piuralizar as equagdes de propagagio. Desde que no s¢ suponha que ¢ um ¢bjete que se desloca ¢ que, fiel as intuigdes ingénuas do realis- mo, arrasta consigo todos 0s seus caractercs, é-se evade a considerar tantas fun Gdes de propagagao quantos os fendmenos que se propagam. Pauli ji havie compreendido que. dado que o clétron cra capaz de dois spins, eram necessarias pelo menos duas funydes para estudar « propagagao destes dois caracteres produ. tores de fendmenos. Dirac levou mais longe o pluralismo da propagagao. Empe- nhou-se em nada perder da funcionalidade dos elementos mecanicos. em defender de qualquer degenerescéncia as diversas varidveis. Chegados a este ponto. ¢ 0 eal- culo que opera, As matrizes solidarizam dialeticamente os fendmenos propaga- dos dando a cada um o que thes cabe, fixanco exatamente a sua fase relativa. Em ver da melodia matcmatica que outrora acompanhava o trabalho do fisico, ¢ toda uma harmonia que romanceia matematicamente a propagagdo. Mais exatamente. € um quarteto que o matematico deve dirigir, na mecdniea de Dirac. para combi har as quatro fungGes associadas a qualquer propagacao, Hum livro de filosofia ndo podemos dar mais do que uma Mas dado qu idéia vaga do “idcalismo” da mecdnien de Dirac, passemos imediatamente aos resultados e acupemo-nos apenasda nogdo de massa. O calculo fornece-nos esta nogio juntamente com outras, com os momentos magnéticos e elétricos, com os spins, respeitando até ao fim o sincretismo funda: mental tio caracteristico de um racionalismo completo. Mas eis a surpresa, eis a descoberta: no final do calculo, 2 nogdo de massa é-nos fornecida estranhamente dialetizada. Nés tinhamos apenas necessidade de uma massa; 0 cdlculo dé-nos duas, duas massas para um 50 objeto.* Uma destas massas resume perfeitamente tudo 0 que se sabia da massa nas quatro filosofias precedentes; realismo ingénu, empirismo claro, racionalismo newtoniano, racionalismo completo cinsteiniano. Mas a outra massa, dialética da primeira, @ uma masse negativa, Vrata-se de um eoneeito inteiramente inadmissivel nas quatro filosofias antecedentes. Por conse- guinte, uma metade da mecdniea de Dirae reencontra e continua a mecdnica clas- sica ¢ a mecanica relativista; a outra metade diverge numa nogdo fundamental; da origem a algo de diferente: suscita uma dialética externa, uma dialética que nunca teria sido encontrada meditando sobre a esséncia do conceito de massa. aprofundando a nogio newtoniana ¢ relativista de massa. Qual vai ser a atitude do novo espirito cientifico perante um tal conceito? ® Ch: Lanis de Broglie. Electron Magnétigie, pig. 207,(Ncdo A.) A FILOSOFIA DO NAO 21 Mas. antes de mais. qual teria sido 4 alitude de um cientista da época precedente. ag nivel da Fisica do século XIX? Sobre esta iltima atitude nao nos parece haver davidas. Para o cientista do século XIX, © conceito de uma massa negativa teria sido um conceito mons truoso. Teria sido, para a teoria que @ produziu, um erro fundamental. E isto por mais que se dissesse haver todos os direitos de expressao numa filosofia do como se. Existiam, apesar de tudo, limites A liberdade de expresso © a filosofia do como se nunca teria conseguido interpretar uma quantidade negativa como se ela Jfosse uma massa. E entio que entra em cena a filosofia dialética do “por que nao?” que é caracteristica do nove espirito cientifico. Por que razao.a massa no havia de ser negativa? Que modificagao tedrica essencial poderia legitimar uma massa nepati- va? Em que perspectiva de experiéneias se poderia descobrir uma massa negati- va? Qual 6 cardter que, na sua propagactio, se revelaria como uma massa negati- va? Em suma, a teoria insiste, no hesita, 2 prego de algumas modificagées de base, em procurar as realizagdes de um coneeito inteiramente novo, sem raiz na realidade comum. Deste modo a realizagao leva a melhor sobre a realidade. Esta primazia da realizagao desclassifica a realidade. Um fisico s6 conhece verdadeiramente uma realidade quando a realizou, quando deste modo é senhor do eterno recomega das coisas ¢ quando constitui nele um retorno eterno da razdo. Alias. o ideal da reali zagiio é exigente: a teoria que realiza parcialmente deve realizar foralmente. Ela nao pode ter razio apenas de uma forma fragmentaria. A teoria éa verdade mate matica que ainda ndo encontrou x sua realizagdo completa. O eientista deve pro- curar ésta redlizagio completa. E precise forgar a natureza a ir tao longe quanto 0 nosso espirito. Vill No termo do nosso esforgo para expor, acerca de um conceito unico, um exemplo de filosofia dispersa, vamos encontrar uma objegio. Paderiamos ter evi- tado esta objegio se tivéssemos reconhecide para nos 0 legitimo direito de utilizar conceitos diferentes para ilustrar os diferentes estadios da flosofia dispersa. Mas vejamos a objegdo que vem ao espirito do leitor. Objetar-nos-ao que o conceito de massa negativa néo encontrou ainda a sua interpretagio experimental ¢ que, conseqiientemente. 0 nosso exemplo de racionalizagao dialética permanece vago; que © conecito de massa negativa levanta, quanda muito, um problema. Mas & surpreendente que uma tal questo se possa levantar. Esta possibilidade sublinha © valor da interregagao da Fisica matematica. Insistamos, alias, no cardter muito ecial deste problema. & um problema tcoricamente preciso, respeitante a um fendmene folaimente desconhecido. Este desconheeido preciso & precisamente 0 inverso do irracional vago, ao qual o realismo freqientemente atribui um peso, uma fun¢ao, uma realidade. Um tal tipo de questo é ineoncebivel numa filosofia realista, numa filosofia empirica, numa filosofia positivista. 56 pode ser interpre- 2 BACHELARD tada por um racionalismo aberto. Quando formulada com toda a sua construgio matcmalica antecedente. cla é precisamente uma abertura. A-nossa tese perderia naturalmente muito da sua forga se nao nos pudés- Se€moOs Apoiar noutros exemplos em que a interpretagdio de uma nogio funda- mental dialetizada fosse efetivamente realizada. E 0 caso da energia negativa. O conceito de energia negativa apresenta-sc, na mecanica de Dirac, exatumente da mesma forma que © conceito de massa negativa. A propésito dele poderiamas retomar ponto por ponto todas as criticas precedentes; poderfamos afirmar que um tal conceito teria parecido monstruoso A ciéncia do século XIX e que a sua apari¢do numa teoria teria sido interpretada como um erro capital que viciaria inteiramente a construgao tedrica, No cntanto. Dirac nao fez dele uma objegao a0 scu sistema. Pelo contrario, dado que as suas equagées de propagagao conduzi Fam a6 conceito de enérgia negativa, Dirac atribuiu para si a tarefa de encontrar uma interpretacao fenomenal deste conceito. A sua interpretacdo engenhosa sur giu inicialmente como uma pura construgao do espirito. Mas a desvoberta expert: mental do elétroh positivo realizada pro Blackett ¢ Occhialini veto logo dar uma confirma inesperada dls idéias de Dirac. Na realidade, nao foi o conceito de énergia negativa que levou a procurar © elétron positive. Aconteceu, como é freqiiente. uma sintese acidental da descoberta tedrica ¢ da descoberta experimen- tal, mas, mesmo assim, jit estava pronto o Ieito em que o fendmeno novo se veio estender, justamente & sua medida. Havia uma predigao tebriea que esperava pelo fato. Podemos, pois. dizer em certo sentido, segundo a construgda diraciana, que adialétien da nogio de cnergia encontrou a sua dupla realizagio, IX Voltemos agora a massa negativa. Qual o fendmeno que corresponderia ao conecito de massa negativa preparado pela meeanica de Dirac? Dado que nao sabemas responder pérgunta como matematico, acumulemos as interrogagdes vagas. as interrogagdcs filoséficas que nos. vém ao espirito. Sera a massa negativa o cariter gue se deveria encontrar no process desmaterializagao, ao passo que a massa positiva estaria ligada a matéria resul- tante de uma materializagdo? Por outras paluvras, estardo os processos de cria- G40 ¢ destruigao materiais — tdo recentes para o espirito cientifico ! — em rela= go com as dialéticas profundas dos conceitos de base tais como as massas positivas'e negatives, as energias positivas ¢ negativas? Nao exi aga cntre a energia negativa ca massa negativa? Ao colocar questdes tao evasivas, tio vagas — ao passo que em todas as nossas obras anteriores nunca nos permitimos a menor antecipagio. —, temos um objetivo. Queriamos com efzito dar a impressio de que é nesta regia do ultra-ra- cionalismo dialético que sonka o espirito cientifico, E aqui. ¢ nao algures, que nasce © sonho anagégico, aquele cue se aventura pensando, que pensa aventuran- do-se, que procura uma iluminagie do pensamento através do pensamento, que encontra uma intui¢io siibita no clém do pensamento instruide, O sonho ordind A FILOSOFIA DO NAO: 33 rio trabalha no outro pélo. na regio da psicologia das profundidades, de acordo com as sedugées da fibido, as tentasdes do intimo, as certezas vitais do realismo, avalegria da posse. Nao se podera conhecer bem a psicalogia do espirito cientifica enquanto nao se tiver distinguido estas duas cspécies de sonhio, Jules Romains compreendeu a realidade desta distiag¢io numa curta pagina cm que escreve: “Em determinados aspectos. sou mesmo ultra-racionalista’.* Em nosso entender, a referéncia a realidade ¢ mais tardia do que Jules Romains supdc, o pensamento instruido sonha durante mais tempo em fungao da sua instrugdo. Mas o seu papel é indispensavel € uma Mlosofia dispersa completa deve estudar a regiao do sonho anagégico. No seu impeto cientifico atual. o sonho anagégico &. segundo pensamos. essencialmente matematizante. Ele aspira a uma maior matematizagay, a fungdes matematicas mais complexas. mais numerosas. Quando se acompanham os ¢sfor- cos do pensamento contemporaneo para compreender o &lomo, se quase levado a pensar que o papel fundamental do dtomo ¢ 0 de obrigar os homens a estudar matematica, Matematica antes de tudo... * Em suma. a arte poética da Fisica faz-se Com nameros, com grupos, com spins, exeluinds as distribuigées mondto- nas. os quanta repetidos. sem nunea fixar aquilo que funciona. Qual o poeta que vira cantar este panpitagorisma, esta uritmética sintélica que comega por dar a todo © ser os.seus quatro quanta, o seu nimero de quatro algarismos, como s¢ 0 mais simples. 0 mais pobre, 0 mais abstrato dos elétrons tivesse ji necessaria- mente mais de mil caras. Apesar de serem em numero reduzido os elétrons num tomo de hélio ou de litio. o seu niimero de identifi 0 tem quatro algarismos: tum pequeno numero de elétrons @ tao complieado como um regimento de soldados. . Acabemos com as nossas efusdes. Pobres de nds! Precisavamos de um pocta inspirado ¢ apenas entrevernes a imager de um coronel que conta os solda dos do seu regimento. A hierarquia das coisas 6 mais complexa do que a hierar: quia dos homens. O alomo € uma sociedade mateniatica que ainda nao nos reve Jou o seu segredo; nio se dirige esta sociedade com uma aritmética de militar. 2 sutes Romains, Essai de Réponse d te plus Wasre Questioay Ny Ri Vs 1 de agosto de 1939. pag 185.68. Wo) "© aulor paraffaseid aqui um poeta de Paul Verlaine, rt Podtique, ue eomiegn assim: De hi mitsigue ‘avant toute chose! Ef pour cola prefére Vimpair! Hus vapwe et plus soluble dans Vir. (N.do'T.) Capituto IT A nogao de perfil epistemolégico Conseguimos assim, a propésito de uma tiniea nog’io, por em evidéncia uma filiagio de doutrinas filoséficas que vio do realismo ao ultra-racionalismo. Bas: tou um conceito para dispersar us filosofias, para mostrar que as filosofias par- ciais se debrugavam apenas sobre um aspecto. esclareciam apenas uma face do conceite. Temos agora uma escala polémica suficiente para localizar os diversos debates da filosofia cientifica, para impedir a confusio dos argumentos. Como o realista € 0 filésofo mais tranqtiilamente imével. reavivemos a nossa querela através das seguintes questdes: Acreditais verdadeiramente que o cientista seja realista em todos os seus Pensamentos? Sera cle realisia cuando supde, quando resume, sera ele realista quando esquematiza, quando erra? Seri ele necessariamente realista quando afirma? Os diversos pensamentos de um mesmo espirito niio terio coclicientes de realidade diversos? Devera o realismo impedir o emprego de metaforas? Estara a metifora necessariamente fora da realidade? Sera que, nestes diversos graus, a metifora mantém os mesmos coeficientes de realidade — ou de irrealidade? Os coeficientes de realidade no diferirao consoante as nogdes. de acordo com a evolugdo dos conccitos, de acorde com as concepgdes tedricas da época? Em resumo. nds forgaremos 0 realismo.a introduzir uma hierarquia na sua experiéneia. Mas nao nos conientaremos com uma hicrarquia geral. Mostramos que rela livamente a uma nogao particular, como a nagio de massa, a hierarquia dos conhecimentos se distribui de forma diversa segundo as utilizagdes. Perante uma tal pluralidade, parece-nos. pois. v0 responder em bloco dizendo: “O cientista é realist”, Se muitas vezes ¢ necessario tacar © realista, também @ evidentemente rid proteger o ravionalista. & necessario Vigiar os @ priori do racionalista, dar-Ihes @ seu justo valor de @ posreriort. E permanentemente necessario mostrar © que permanece de conhecimento comum nos eonhecimentos cientificos, E rio provar que as formas @ priori do espago e do tempo implicam apenas um tipo de experiéncias, Nada pode legitimar um racionalismo absolute, invaria vel, definitive, Em resumo, é preciso chamar tanto um como outro ao pluralismo da cultura A FILOSOFIA DO NAO 25 Mlos6fica. Nestas condigdies. parece-nos que uma psicologia do espirito eientifico deveria esbocar aquilo a que chamaremos o perfil episiemoldgico das diversas conccitualizagées. Seria através de um tal perfil mental que poderia medir-se a aco psicoldgica efetiva das diversas filosofias na obra do conhecimento, Expli- quemos 0 nosso pensamento sobre o exemplo do conceito de mas: I Quando nés préprios nos interrogamos, damo-nos conta de que as cinco filosofias que consideramos (realismo ingénuo — empirismo claro e positivista - racionalismo newtoniano ou kantiano — racionalismo completo — raciona- mo dialético) orientam em diregdes diversas utilizagdes pessoais da nogio de massa. Tentaremos entio por grosseiramente em evidéncia a sua importaincia relativa colocando em abscissas as filosofias sucessivas ¢ em ordenadas um valor que — se pudesse ser exato — mediria a freqtiéneia de utilizagio efetiva da nogio, a importincia relativa das nossas convicgdes. Com uma certa reserva relativamente a esta medida muita grosceira. obtemos entao para o nosso perfil epistemologice pessoal da nogdo de massa um esquema do tipo seguinte (fig. 1). ‘acionalismo ldssico da mechinica racionat empirisme: claro & positivista racionalisme completo trolatividada) Fealismo ingenuo racianatismo discursive Fig. 1 ~ Pertl epistemoldgico da nossa noedo pessoal de massa, Insistimos no fato de um perfil epistemolégico dever sempre referir-se 2 um conceito designado, de ele apenas ser valido para um espirito particular que se examina num estadio particular da sua cultura. & esta dupla particularizagao que torna um perfil epistemologico interessante para uma psicologia do espirito cientifico. Para melhor nos fazermos compreender, comentemos © nosso perfil episte- molégico, fazendo uma curta confissdo acerca da nossa cultura relativamente ao conceito que nos atrai a atengao. No nosso esquema reconhecese a importancia atribuida @ nogao raciona- lista de massa, nogio esta formada numa educag3o matematica classica e desen- Volvida numa longa pratica do ensino da Fisica elementar. De fato, na maioria dos casos, a nogado de massa apresenta-se-nos na orientagio do racionalismo BS BACHELARD classico. Enquanto nogiio clara, a nogiio de mas nogiio racional. No entanto, podemos, se necessiirio, encarar a nogie mw sentido da mec! nica relativista ou no sentido da mecanica de Dirac. Mas estas duas orientagdes, sobretudo a orientagao diraciana, s80 penosas. Sendo nos acautelarmos. seremos dominados pela tendéneia simplesmente racienal, O nosso racionalismo simples entrava 0 nosso racionalismo completo € sobretudo-0 nosso tacionalisma dialé tico. Eis uma prava de como as filosofias im: © facionalismo newto- niano é kantiano, podem em determinadas circunstancias. constituir um obsta culo ao progresso da cultura. Consideremos em scguida, co lado pobre da cultura. a nogdo de massa sob a sua forma empirica. No que ros diz respeito. somos levados a dar-Ihe uma importineia bastante grande. Com efeito, a condita da balanca foi por nds muito praticada no passado. Foi-o na época em que trabalhdvamos em Quimica e tam bém na epoca mais recuada em que pesdvamos, com um cuidado administrative, as cartas numa estagao dos correios. Os escripulos das finangas reclamam a com- duta da balanga de precisdo. Admira-se sempre o senso finaneeirs comum dizen- do que © moedeiro pesa as suas mocdits cm vex de as contar. Notemos de passa: gem que @ conduta da balanga de preeisdo, que tem pela nogdo de massa um respeito absolute. nem sempre é uma conduta muito clara: muitos alunos ficam surpreendidos « perturbados com a lentiddo da medigao precisa. Nao devemos, pois, atribuir a toda a gente uma nogio empirica dia massa que seja uma noi automaticamente clara. Finalmente, temos. como toca a gente, as nossas horas de realisma, e mesme a propdsito de um conceito tao elaborado como o conceito de massa nao nos psicanalisamos inteiramente. Damos demasiado depressa a nossa ndesio a meta foras em que a quantidade mais vaga é apresentada como uma massa precisa, Sonhamos com matérias que seriam forgas, com pesos que seriam riquezas, com todos os mitos da profundeza do ser, Devernos, pois. deixar sinceramente um patamar de sombra em frente da construdo das nossas idéias claras. E por isso que © nosso esquema indica uma zona de realismo. & para nds sobretudo uma 1 Para tornar mais claro 0 nosso método, apliquemo-lo ainda a uma nogao congénere da nogio de massa, 4 nogdo de energia. Examinando-nos com toda a sinceridade possivel. obwmos 0 perfil episte moldgico seguinte: (fig. 2). AFILOSOFIA DO NAO 24 racionatismo Classico da macanica racionat racionalisma complato (rolatividado}: empirismo clare positivist racionaliamo discursive Fig, 2 — Peril epistemolagico da nossa nocio pessoal de enarqa Comparemos os perfis (1) e (2). No que se refere ds suas partes racionalistas. os dois perfis sao semelhantes, tanto na formagao newtoniana como na formagio relativista. Com efeito, no que 4 nds se refere, quando nos orientamos para uma informagdo racionalista esta mos Uo Seguros da nossa nogiio de energia como da nossa nogio de massa. Por outras palavras, em telagko aos nossos conhecimentos cientificos, a nossa cultura € homogénea no que diz respeito aos dois conceitos de massa ¢ de energia. Nao estamos aqui perante um caso gerat; inquéritos psicoldgicos precisos, levados a cabo ao nivel das nogdes particulares, provariam a existéncia de curiosas desar- amonias mesmo entre os espiritos mais bem formados. Nao & certo que todas as nogdes logicamente claras sejam. co ponto de vista psfeoldgico, igualmente cla. ras. © estudo sisterndtica dos perfis cpistemoldgicos evidenciaria muitas oseilagdes. Sobre o perfil (2), comparado com o perfil (1), indicamos uma maior impor: tncia para 0 conecito dialetizado de energia dado que, como. dissemos no capi- tulo precedente, este conceito dialetizado de energia encontrou a sua realizagao, 9 que nao aconteceu com o conceite de massa. A parte obscura, 0 infra-vermetho do espectro filosofico da nogiio de ener gia, é muito diferente da parte correspondente do espectro da nog&o de massa. Em primeiro lugar. a parte empirica é poueo importante. A conduia do dinamd- metro nao existe por assim dizer entre nés. Quando compreendemos verdadeira- mente © dinamémetro. compreendemo to na orientagdo racionalista, Raras foram para nds as utilizagses positivas da mogdo de energia, A regtio da filosofia empi rica deve, pois, ser designada. no nosso perfil epixtemolégico. como sendo relati- vamente pouco importante. Pelo contrario, subsiste em nds um conhecimento confuso da energia, conhe- cimento este formado sob a inspirigio de um realisme primitivo. Este conheci- 28 BACHELARD mento confuso € uma mistura de obstinagHo c de raiva, de coragem e de tenaci- dade: realiza uma vontade surda de poder que encontra inameras acasiées de se exercer. Nao devemos, pois. admivar-nos que uma utilizagao imediata tao impura projete sombra sobre. empirismo claro e deforme 0 nossa perfil epistemoldgico. Basta manejar um instrumento mal afiado para que se constate esta deformagio psicoldgica. Basta uma raiz a interromper o ritmo da enxada para que se apague aalearia do jardinciro, para que o trabalhador. esquecendo a clara racionalidade de sua tarcfa, anime o instrumento de uma energia vingadora. Seria interessante cireunscrever bem este conceito de cnergia triunfante: cia que ele da a deter- minados pensamentos uma seguranga, uma certeza, um sabor, que enganam acer ca da sua verdade. O perfil epistemologico da nogao de energia em Nietzsche, por exemplo, bastaria talver para explicar o seu irracionalismo. Com uma nogao falsa pode fazer-se um grande doutrina. Iv Deste modo pensamos que sd depois de se ter recolhide o album dos per epistemologicos de todas as nogées de hase é que se pode estudar verdadeira mente a ef ia relativa das diversuy filosofias. Tais dlbuns. neeessuriamente , Serviriam de testes para a psicologia do espirito cientifica, Sugeri de bom grado uma andlise filosdfiea espectral que determinaria com precisdo a forma como as diversas filosofias reagem ao nivel de-um conhecimento objctivo particular. Esta andlise filosdfica espectral necessitaria, para se desen- volver, de psicdlogos que fossem filésofos.¢ também de fildsofos que aceitassem ocupar-se de um conhecimento objetivo particular, Esta dupla exigéncia nao & impossivel de realizar se nos comprometermos verdadeiramente na nasragao dos Sucessivos conhecimentos de um fenémeno particular bem definido, O fendmeno bem definido classifica quase automaticamente as fenomenologias. Uma dialética espiritual que sc anima ao nivel de um fendmeno perde imediatamente o scu cara- ter arbitrario. Como, nesta obra, a nossa tarefu é a de convencer 0 leitor da permanéncia das idéias filoséticas no proprio desenvolvimento do espirito cientifico, nds gosta: tiamos de mostrar que 0 eixo das abscissas sobre o qual alinhamos as filosofias de base na anilise dos perfis epistemoldgicos é¢ um cixo verdadeiramente real, que nao tem nada de arbitrario ¢ que corresponde a um desenvolvimento regular dos conhecimentos, Com efeito, ndo vemos como se poderiam dispor de forma diferente as filo- sofias que tomamos por base. As numerosas tentativas de modifieagio que leva- mos a cabo falharam todas a parti* do momento em que as referimos a um conhe cimento particular. Tentamos assim © nosso método de dispersio na base realismo — racionalismo — cmpirismo claro. Pensames que a maior parte das téenicas pdem em aplicagao um racionalismo antecedente. Examinando mais de perto o problema, verificamos que deste modo classificavamos apenas atitudes gerais e, depois de muitos exames particulares, adotamos para os conhecit A FILOSOFIA DO NAQ 29 objetives particulares a ordem realismo — empirismo — racionalismo. Esta ordem é genética. Esta ordem mostra a propria realidade da epistemologia. Um conhecimento particular pode expor-se numa filosofia particular; mas nao pode fundar-se numa Filosofia nica: 9 scu progresso implica aspectos Filoséficos variados. Quem quisesse saltar os obsticulos ¢ instalar-se de.uma s6 vee no raciona- lismo, entregar-se-ia a uma doutrina geral. a um ensino unicamente filosdfico. Se sonsiderar © conhecimento de um objeto particular, verificar& que as nogdes que correspondem as diversas qualidades e fungdes nio estio organizadas segundo 0 mesmo plano; nao tera dificuldade em encontrar tragos de realismo nos conheci- ‘mentos objetivos mais evoluidos. Reeiprocamente, um filésofo que pretendesse permanecer no realismo. s6 0 poderia fazer escolhendo abjetos naturais, tornando sistematicamente pucril a sua cultura, fundindo arbitrariamente 0 pensamento na fase inicial. Bastava pa-lo em presenga de um objeto manulaturado, de um objeto civilizada, para que ele fosse obrigado a accitar que o dominio do real sc prolonga num dominio de realizagao. Seria entao facil, permanecendo por assim dizer no interior do realismo, provar que entre realidade ¢ realizagio intervieram fatores racionais. Mostrai assim que 0 eixo das filosofias que propomos é um eixo real. um eixo continuo. Em resumo. a qualquer atituce filosdfica geral. pode opor-se. como abjegio, uma nogio particular cujo perfil epistemoldgico revela um pluralismo flosético. Uma sé filosofia ¢, pois, insuficiente para dar conta de um conhecimento preciso. Se entéo se quiser fazer. a diferentes espfritos, exatamente a mesma pergumta a propdsito de um mesmo conhecimento, ver-se-2 aumentar singularmente o plura- lismo filos6fico da nogao, Se ao interrogar-se sinceramente accrea de uma nogdo tao precisa como & nogio de massa um filésofo descobre em si cinco filasofias. quantas se obterdo se se interrogarem varios filésofos a propdsito de varias Mas todo este cans pode ordenar-se se considerarmos que uma s6-filoso: fia nao pode explicar tudo.c se quisermos dar uma ordem as filosofias. Por outras palavras, cada filosofia fornece apenas uma banda do espectro nacional, ¢ necessirio agrupar Lodas as filosofias para termos o espectro nocional completo de um conhecimento particular, Naturalmente, nem todas as nogdes tém. em relagdo a filosofia, o mesmo poiler dispersivo. E raro que uma nogio tenha um espeetro completo. Existem ciéncias em que o racionalismo quase nao existe. Existem outras em que o rea- lismo esta quase climinado. Para formar as suas convicgses, o filésofo tem mui- tas vezes o habito de procurar apoios numa ciéncia particular, ou no pensamento pré-cientifico do senso comum. Fls pensa entdo que uma nogao é 0 substitute de uma coisa, em vex de pensar que uma nogdo ¢ sempre um momento da evolucaio de um pensamento. $6 sera, pois, possivel deserever a vida filosdfiea das nogdes estudando as nagdes Hlosdficas implicadas na evolugdo do pensamento cientifico, ‘As condigGcs tanto experimentais como matematicas do conhecimento cientifico alteram-se com tanta rapide? que os problemas se colocam diferentemente para o filésofo de dia para dia. Para acompanhar 0 pensamento cientifico, ¢ necessario reformar os quadros racionais e aceitar as novas realidades. 40 BACHELARD Isto equivale a aceitar 6 conselho idénew que encontramos na obra-de Ferdi nand Gonseth, obra ardente. viva. instruida. para a qual nunca é demais chamar a atengdo dos fildsofos. Corresporde verdadeiramente a uma vontade dé exatidao que nos parece indispensavel para nos conduzir a uma filosofia que dé conta de todos os aspectos da ciéncia. No scu livro Mathématique et Réalité, Verdinand Gonseth desenvolve 0 seu idoneisno sobretudo no aspecto matemiitico e logico: Sendo ligeiramente diferente o objetivo a que nos propomos. fomos levacios a pro- longar a idoneismo, a dispersa-lo ainda mais. As diferengus introduzidas si0 devidas a0 fato de que o conhecimento objetivo é necessariamente mais diversifi cado do que o conhecimento estritamente matematico. A nossa conclusio ¢, pois, clara: uma Mlosofia das citncias, mesmo se se mita ao exame de uma ciéneia particular, é necessariamente uma ciéneia dispersa, Tem no entanto uma coesio, a da sua dialética, a do seu progresso. Todo 0 pro- Sresso de uma filosofia das ciéncias se fax no sentido de um racionalismo eres cente, climinando, a propésito de tadas as nogdes. 0 realismo inicial. Na nossa obra sobre A Formagaa do Espirito Cientifico estudamos os diferentes problemas levantados por esta eliminagao. Nesse livro tivemos ocasiao de definir a nagdio de obsticulo epistemoldgies. Poderiamos relacionar as duas nogdes de obsticulo spistemoldgico € de perfil epistemotagico porque um perfil epistemoligico guarda 4 marca dos obstaculos que uma cultura teve que superar. Os primeiros obsticu los. aqueles que encontramos nos primeiros estadios da cultura, dio lugar a niti- dos esforgos pedagogicos, Neste livro vamos trabalhar no outro polo, tentando mostrar a racionalizagio na sua forma mais sutil. quando ela tenta completar-se © dialetizar-se com as formas atuais do novo espirito cientifieo, Nesta repiaio, material nocional aio € naturalmente muito rico: as nogées em via de dialetiza- Gio séio delicadas. por vezes incertas. Correspondem aos germes mais frageis: € no entanto nelas, é por clas que progride 6 espirito humano. Capiruto I O niio substaneialismo Os prédromos de uma quimica nao-lavoisieriana Antes de expor as tendéncies dialéticas que aeabam recentemente de sé. manifestar no uso da nogdo de substancia, precisamos de estabelecer 0 verdadeiro papel desta nogao na ciéncia moderna ¢ de tentar detectar os aspectos — a bem dizer muito raros — em que esta nogao opera cfetivamente como uma categoria, Esquecendo este aspecto. a filosofia quimica mergulhou, sem resisténcia, no rea- lismo. A Quimica tornou-se assim o dominio de eleigao dos realistas, dos materialistas. dos antimetafisicos. Quimicos ¢ filésofos trabalhando sob o mesmo. igno, acumularam neste dominio uma tal quantidade de referéncias. que existe uma certa temeridade em falar. como nds falaremos, de uma interpretagao racio- nal da Quimica moderna. Sob a sia forma clementar, nas suas experiéneias pri meiras. no enunciado das suas descobertas, a Quimica ¢ evidentemente substan- sialista, Ela designa as substineias através de uma frase predicativa como 0 faz © realismo ingénuo. Quando o homem do povo diz que o oure é pesado ¢ quando © quimico diz que o ouro é um mesal de densidade 19,5, eles enuncium da mesma maneira 0 scu conhecimento, aceitando sem discussie os prineipios do realismo. A experiéncia quimica aceita tao tacilmente as proposigdes do realismo. que nao se sente a necessidade de a traduzir numa outra filosofia, Apesar deste sucesso do realismo. se se pudesse mostrar aqui uma dialética da nogao fundamental de substincia, poder-se-ia fazer pressentir uma profunda revolugao da filosofia qui- mica. A partir de agora parece-nos possivel uma metaquimica, Se se pud desenvolver. esta metaquimiea deveria dispersar 0 substancialismo. Ela mostraria. uc existem varios tipos de substancialismo, varias zonas de exterioridade, viirios. hiveis para consolidar as muiltiplas propriedades. A metaquimica estaria para a metafisica na mesma relagdo qué a quimica para a fisica, A metafisica 96 poderia ter uma nogdo de substancia porque a concepgao elementar dos fendmenas fisi cos contentava-se com estudar um sdlido geométrico caracterizade por proprie- dades gerais. A metaquimica se beneficiara do conhecimento quimico das diver- sas atividades substanciais, Beneficiar-se-4 também do fato de as verdadeiras substiingias quimicas serem mais produtos da técnica do que corpos cneontrados na realidade, Isto basta para que o real seja consideraco em quimica como uma realizagao, Esta realizagao supde uma racionalizacdo prévia do tipo kantiano: como tentaremos mostrar, esta racionalizagao é acabada por uma dialética da categoria de substancia, 32 BACHELARD Neste livro inteiramente consagrade as dificuldades filosoficas atuais, ndo nos estenderemos sobre oy dois primeiros estidios — realismo ¢ racionalismo — da filosofia quimica. Além disso, se conseguirmos fazer compreender a dialétien da categoria de substincia na Quimica contempordnea, nao estaremos longe de ter ganho a partida sem ter sido necessario desenvolver muito profundamente uma interpretagao racionalista da Quimiea. Com efeite, scgundo pensamos, a dialetizagao de uma nogio prova o carater racional dessa nogio, Um realismo nGo se pode dialetizar. Se'a nog&o de substincia se pode dialetizar, teremos nisso a prova de que ela pode funcionar verdadeiramente como uma categoria. ii Noutras obras je nos ocupamos aliés dos problemas preliminares levantados pela nogaode substincia. Antes de abordarmos a dialétiea da categoria de subs- tineia, resumamos em algumas piginas a perspectiva da evolucdo epi gica. Sob a designagao de lei dos trés estados do espirito cientifico, sistemati- zamoy a evoluglo terndria que conduz do espitito pré-cientifico a0 espirito cieniffico. e depois a0 novo espirito cientifico. Vejamos rapidamente como se co- loca o prablema do substancialismo nos diferentes estadios desta evolugio, Consideramos 0 substancialismo ingénuo como represeatanda uma das caracteristicas dominantes do espirito pré-cientifico ¢ Pareceu-Nos ser este o pri meiro obstaculo a eliminar quando se pretende desenvolver uma cultura objetiva. Parecew-nos ser ruinoso. para o realisimo instruido, nio se separa «lo realismo ingénuo, imaginar uma continuidade da epistemologia, considerar w ciéncia como. uma opinidio depurada, a experigneia cientifica como uma seqiiéneia rigncia vulgar, Tentamos entdo distinguir claramente vs conhecimentos © os conliecimentos refletides. Mas se 0 nosso leitor realista nia nos seguiu nesta tentativa de psicanaltsar o conhecimento objetivo. o minimo que mais uma vex the podemos pedir ¢ que ordene as provas do seu realismo ¢ atribua coeficientes 208 Scus diversos argumentos. Porque seria demasiado cémodo entregar-se uma vez mais a um realismo totalitario ¢ unitirio, © responder-nos: eudo é real, 0 ele tran, 0 nicleo, 6 étomo, a molécula, © mineral, o planeta, © astro, a nebulosa, De acorde com 9 nosso ponto de vista, nem tudo @ real da mesma maneira: n subs Lancia nao tem, a todos os niveis, a mesma coeréncia: a existéncia néo é uma fun- 90 mondtona; nao pode afirmar-se por toda & parte e sempre no mesmo tom, Uma vez que tivéssemos conseguide convencer a nosso adversirio realista de que & nevessdrio accitar uma realidade folheada, de que cle tem que distinguir nivcis nos seus argumentos, teriumes dado um grande passo no desenvolvimento da nossa critica: porque desta vez, impedindo nos de misturar os géneros, pode: riamos discutir a um determinado nivel, ¢ nio teramos dificuldade em mostrar que, a um determinado nivel, ¢ 0 metodo que define oy scres. Nos primeiros tem- pos da quimica orgdnica considerava-se que a sintese servia apenas para verificar a exatiddo de uma analise, Atualmente ¢ 0 inyerso que se considera: Qualquer Substancia quimica sé é verdadeiramente definida no momento da sua reconstru- A FILOSOFIA DO NAO cao. F a sintese que pode fazer-nos eompreender a hierarquia das fungdes. Como diz Marcel Mathieu: * “Apesar da possibilidade de detectar sobre as moléculas organicas caracteres molecuéares, for sobretudo G desenvolvimento dos métados de sintese que permitiu construir com tanta seguranga esse edificio que ¢ a qui- mica organica. Se, como matérias-primas, se pudesse apenas dispor de misturas dificilmente separdveis em corpos puros, tal como sc encontram na natureza, ¢ se. como tnicos métodos de trabalho, se tivessem apenas os métodos de andlise, nunca teria sido possivel precisar a estrutura intima das cadeias dos grupos —CH;— ¢ toda a quimica dos derivados alifaticos teria essencialmente perma- necido uma quimica do grupo —CH,—", o que equivale-a dizer que o estudo espevificamente realista teria sido como que polarizado sobre uma propriedade substancial particular. $6 a realizagdo sintética permite determinar uma espécie de hierarquia das fungdes substanciais, enxertar as fungdes quimicas umas sobre as outras, Perante uma realidade tio seguramente construlda, livrem-se os fléso- fos de confundir a substincia com aquilo que, na construg%o, escapa ao conheci- mento; livrem-se eles de continuar a definir 2 realidade como uma massa de irracionalidade. Para um quimico que acaba de realizar uma sintese, a substancia quimica deve ser pelo contrario assimilada Aquilo que se conhece dela. Aquilo que se consiruiu com base em concepgdes tedricas prévias. E necessério multiplicar as realizagdes. Conhece-se mais facilmente 0 agicar fabrieando agicares do que analisando um agiicar particular, Neste plano de realizagdes. nao se procura alias uma generalidade, procura-se uma sisremdrica, um plano. Q espirito cicntifico suplantou entao completamente o espirito pré cientifico. Eis, pois. em nossa opinido. a inversao do realismo: a imensa realizagde le- vada a cabo pela Quimica moderna caminha em conteacorrente do estudo re: ta. A escrigao de substancias obtida es¢ € de ora cm diante uma deseri- ¢40 normativa, metodoldgica, claramente entiica. Legitima um ra lismo quimico. Esta inverse do realismo nay ¢ naturaimente total; tentar gencraliza-la demasiado cedo seria falsea-la, Uma forte corrente de realismo permanece ainda na filosofia quimica moderna, Esta iltima observagdo vai fazer-nos compreender © que ha de prematuro no esforgo realizado por Arthur Hannequin para coorde- nar o racionalismo cientificn no século XIX, Num livro em que classificamos os diferentes tipos de atomismo, demos um lugar particular a tentativa de atomismo eritico de Arthur Hannequin.® Marcel Boll faz-nos notar com razio que este capitulo nao tinha nenhum interesse para o cientista dado que o ponte de vista de Arthur Hannequin nao desempenhou qualquer papel na evolugao da ciéncia. Com efeito, Hannequin nae podia se beneficiar da segmentagia efetiva da expe riéneia quimica, da separagao completa da ciéncia sintética ¢ da ciéncia analitica. Em Quimica, no século XIX, como em geometria no tempo de Kant, a unidade da experiéncia nao permitia compreender a sistemudtica da experiéncia. A hierar- © Mavicel Mathicu, £e4 Auctions Ppocerelquecs, Herinann (313). pigs YAN. 0 As) © Les Intuitions Atomistiques, pase, 108.(N-d.) 4 BACHELARD quia das Icis quimicas nao estava suficientemente desenvolvida para que a ativi- dade pudesse associar-se-the. O ensaio de Arthur Hannequin foi, pois. uma apli- cagao artificial do racionalismo critico, Nao & mais do que um caso particular da ineficacia cientifica do ncokantismo no século XEX. Em resumo. 0 racionalismo fio pode aplicar-se em bloco 4 Quimica: surgiu com as sinteses sistematicas. O Facionalismo surge. pois. como uma filosofia de sintese, Vinga através de um mé todo indutivo, £ 0 fato de se querer sempre que o racionalismo seja uma filosofia de analise que leva a menosprezir a acéo da filosofia racionalista neste dominio. Este é um erro que sera methor explicitado se cons utarmos algumas paginas ao Aparecimento do racionalismo complete na filosofia quimic: Nao nos detcrcmos muito neste racionalismo completo Se acompanharmos, ao longo do século XIX, as descobertas quimicas refe téntes aos corpos simples. nio podemos deixar de ficar inieialmente surpreen. didos com este sucesso do realism, Nao s¢ passa um lustro sem que um nove Sorpo seja descoberta. Como é passivel nao se ser realista perante esta realidade erescente! No entanto, eis que, a medida que cresce. o pluralismo se esclareee! A filo sofia quimiva que era complicada ¢ fragmentada com quatro elementos. torna:se simples ¢ unitiria com noventa ¢ dois elementos! Escrevemos cm outros tempos uum livro inteiro para expor este paradoxo.? Basta-nog aqui sublinhar-the © cara ter rucionalista. Com efeito, estudando © principio das investigagdes que nasce- tam da organizagio das substiincias clementares de Mendeleiew, verifica-se que a PoUuco © pouco a lei antecede o fato, que a ordem das substaincias se impde como uma racionalidade. Que melhor prova se pode dar do carater racional de uma ciéncia das substincias que consegue prever, antes da descoberta efetiva, as propricdades de uma substincia ainda desconhecida? O poder organizante do quadro de Mendeleiev ¢ tal que 0 quimico coneebe a substincia no seu aspecto formal antes de a captar nos seus aspectos matcriais. O género impde-se a esp cic. Responder-nos-do, mais uma vez em vio, que se trata de uma tendéncia muito particular ¢ que a maioria dos quimicos, 90 seu labor cotidiano, se ocupam de substincias atuais ¢ reais, Nao ¢ menos verdade que. com 0 quadro de Mende- Ieiev. nasceu uma metaquimica e que a tendéncin ordenadora ¢ racionalizante conduziu a sucessos cada vee mais numerosos © cada vez mais profundos. Uma caracteristica nova deve ser assinalada: a preocupagao de complete que recentemente se manifesta na doutrina das substancias quimicas, Colecando naturalmente o objeto antes do conhecimento, o realismo entrega-se & ocasiaio, 20 dado sempre gratuito. sempre possivel, nunea acabado. Pelo contrario, uma dow trina que se apoia numa sistematizagao interna provoca a ocasitio, constrdi aqui- lo que nao the é dado, completa ¢ acaba heroicamente uma experiencia desarticu- lada. A partir de entio, 0 desconhecido & formulado, Foi sob esta inspiragdo que a quimica organica tabalhou: também cla conheceu a cadeia antes dos elos, a série antes dos eorpos, a ordem antes dos objetos, As substineias foram entio * he Pluraiiame Cohivent ike la Chimie AModeene, 122 (dev A.) A FILOSOFIA DO NAO como que depositadas pelo impulso de métode. Sao concregdes de circunstaneias escolhidas na aplicagdo de uma Ici yeral. Um forte @ priori guia a experiéncia. O real no ¢ mais do que realizagdo. Parece até que um real 0 é instrutivo ¢ seguro se tiver side realizado. sobretudo se tiver sido recolocado na sua correta vizi- nhanga, na sua ordem de cringdo progressiva, Teimamos em nao admitir que o real contenha algo mais do que aquilo que nele pusemos, Nada se deixa ao irrucional. A quimica técnica tende a climinar as aberragdes. Pretende construir uma substancia normalizada. uma subseancia sem acidentes. Esta tanto mais segura de ter encontrado 0 fdéntico quanto & em fun. gio do seu metodo de produgdo que ela @ determina. Se. como tae corretamente afirma Roger Caillois.* 0 racionalismo se define por uma sistematizaedo interna, por um ideal de economia na explicagio. por uma interdigao de revorrer a princi pios exteriores ao sistema. & preciso reconhecer que a doutrina das substancias quimicas é, na sua forma de conjunto, um racionalismo. Pouco importa que este racionalismo dirigente comande todo um exército de realistas. O principio da investiga¢io das substancias esta sod a dependéncia absoluta de uma ciéncia des principios, de uma doutrina das normas metodieas, de um plano coordenado em que o desconhecido deixa um vazio tio claro que a forma do conhecimento est nele prefigurada, Mas se conseguimos fazer 0 leitor partilhar da nossa conviegio da brusea Supremacia dos valores de coeréneia racional na quimica moderna, se conse- guimos dar-lhe a impressiio de que fungdes da filosofia kantiana podem servir para designar determinadas tendéncias existentes no conhecimento das substan fas. 0 mais diffcil da nossa tarefa nie esta ainda realizado ¢ o que falta reali ¢ aparentemente muito enganoso. dado que precisamos de mostrar que este smo da substan Imente instalado na Quimica contemporanea, vai dialetizar se, . ut Apelando para a indulyéneia do leitor nesta diffell taretai, vamos pois tentar mostrar a utilizugdo ndo-kantiana da categoria de substincia. Se o conseguis semos. poueriamos sugerit um racienalisma dialbtics da nogio de substancia de forma que © nosso perfil cpistemolagico relutivo a esta nogde ficaria completo. A dialétiea parece nos desenvoalver-se em duay diregses' muito a erentes em compreensdo ¢ em extensio — sob 2 substancia ¢ ao lado da substineta — na unidade dat substineia ¢ na pluralidade das substaneias. Em primeiro lugar. sob a substincia. a filosofia quimica claborou esquemas € formas geométricay que no seu primeiro aspecto cram hipoteticas. masque. pel sua ecoordenagio num vaste conjunte doutrinal. se foram a pouco ¢ pougo valori cando racionalments. Verdadeiras fungdes numenais surgiram envio na Quimica. particularmente na quimica organica e na quimica dos complexos. Nao estamos © Roger Cuillois, Ke Mfcake oF Hemine, pig, 24, nob, (Ns du A.) 36 BACHELARD exatamente perante a nogao de formula desenvolvida ao dizer que uma determi- nada formula & uma representagdo convencional: trata-se antes de uma apresen- Jagdo que sugere experiéncjas, Da experigncia primeira A experiéncia instruida. existe passagem da substdncia a um subsiituto. A frmula desenvolvida é um substituto racional que da. para a experiéncia, uma contabilidade clara das possi- ilidades. Existem entao experitncias quimicas que surgem a priori como impos siveis porque a sua possibilidade ¢ negada pelas formulas desenvolvidas, Na ordem fenomenal as qualidades substanciais nao indicariam de forma alguma tais exolusGes. Inversamente, cxistem experiéneias que nunea terfamos pensado reali Zar se nao tivéssemos previsto a priori a sua possibilidade gracas as formulas desenvolvidas. Raciocina-se sobre uma substancia quimica desde que se tenha estabelecido a sua formula desenvolvida. Vernos. pois. que a uma substancia qui- mica esta de ora em diante associado um verdadeiro niimeno. Este nimeno & complexo ¢ redne varias fungées. Seria rejeitado por um kantisme elassico; mas © nao-kantismo, cujo papel € 0 de dialetizar as fungdes do kantismo. pods aceité-lo, Naturalmente. objetar-nos do que este nimeno quimico esta muito longe da coisa em si, que esta em estreila relagdo com o fendmeno. traduzindo muitas vezes termo a termo. numa linguagem racional, caructeres que seria possivel exprimir na linguagem experimental. Acusar-nos-do sobretude de irmos atual- Mente buscar os nossos exemplos a uma quimica das substincias complexas quando ¢ a propdsito da substdncla simples que se deve apreciar 0 carater filosé- fico da idéia de substdncia, Mas esta iitima objegio nao é sustentavel porque 0 cardter numenal surgiu na doutrina das substincias simples. Cada substancia simples recebeu com efcito uma subestrutura. E, fato caracteristico, verificou-se que esta subestrutura tem uma esséneia totalmente diferente da esséncia do fend- meno estudado. Ao explicar a natureza quimica de um elemento através de uma organizagio de corpisculos elét-icos, a ciéncia contempordnea estabeleceu uma ova rotura epistemologiea, Para apoiar a quimica constituiu-se uma especie de nao-quimica, E nao nos enganemos: a fenomenologia elétrica nao foi deste modo colveuda sob a fenomenologia quimica. No dtomo, as leis da fenomenologia elé- (rica estéo, também elas, desviadas, dialetizadas. De tal forma que acaba de sur gir uma cletricidade ndo-maxwelliana para construi¢ uma doutrina da substancia quimica néio-kantiana, Ao dizer numa frase predicativa: “A matéria ¢, no seu fundo, elétrica’, exprimem-se muito mal as descobertas modernas, Esta forma realista menospreza 9 importancia da fisica interna darsubsténcia ‘Outras experiéncias cientifieas podem mostrar que a Fisica contemporiines consegue trabathar sob a qualidade quimica, invertendo a ordem epistemoligica fixada por Augusto Comte. Korzybski® assinala este declinio substancialista de antiga filosofia quimica apoianco-se no seguinte exemplo: “A nova Fisica das altas presses mostra claramente que muitas das antigas caracteristicas das subs. tancias sto apenas fungdes acidentais dia pressio ¢ da temperatura”. A alta pres sia podem realizar-se reagdes que a Quimica de primeiro exame nao admitiria. * Koraybsli, Sciemee and Sumit), New York, pig. $834(N, do. A A PILOSOFIA DO NAO 7 Esta fisicalizacdo da quimica pode ir muito longe: pode submeter a quimica a regras téo pobremente substancialistas quanto a estatistica. Por exemplo. quan do se compreende que o calor nip é uma qualidade substancial, mas que é simplesmente uma proporgdo de choques. um coeficiente de possibilidades de choques. esta-se em condigdes para éstudar uma reagdo como $, Og T= 2 SOs na perspectiya simplesmente estatistica. Uma substancia produz outra estatistica- mente da mesma mancira que um baile dos lsérés verts produz. sem paixdo vio lenta. sem intimidade. filhos legitimas. Pelo simples fato de se poderem pensar os fendmenos quimicos da subs- tancia fixando uma subestrutura geométrica, ou ¢létrica, ou estatistica, parece que os valores numenais se tornam evidentes, A ordem tradicional da experiéneia realista ¢ invertida. O nimeno guia a investigagao ¢ a determinago precisa de substaneia. E coma que para acabsr 2 distingdio do niimeno ¢ do fenémeno, eis que no nimeno se acumulam leis que, a maioria day veres, sio contraditrias com as leis deduzidas pela fenomenologia primeira, Forgando a nota para salien- tar © paradoxo, poderiamos dizer; 0 mimeno explica 0 fendmeno contrad 9. Pode explicar-se o fendmeno com leis numenais que nao sao leis do fendmeno. A partir de entio, o entendimento formado na cultura cientifica é muito dife- rente do entendimento formado na observagdo comum, Ele sé compreende a substancia quimica quando constréi nela, através do pensamento, ligagGes inti- mas. Mas ja nao se trata de uma construgio de homo Jaber, somatorio de gestos: trata-se sim de uma construgio coerente. limitada por numerosas interdigdes. Qualquer substincia quimica € pensada como @ conjunto das regras que presidem A sua purificagdo. Iv Falta evidentemente uma objegio. uma objegdo tradicional: se as substan ‘jas quimicas compostas, se as substincias quimicas clementares se revelaram possuidoras de ¢strutursis complicadas em que as leis da organizagio dao lugar #0 pensamento racional. nao sera ao nivel do elemento titimo, por exemplo ao nivel do elétron, que deve ser assoviada, desta vev solidamente, & nogdy de subs- tancia, a raiz do real? Ora, & precisamente a este nivel que a revolugie do pensa- mento contempordneo s¢ torna extraordinaria. Além do fato de o elétron nao pos- suir, na sua substiincia, nenhuma das propriedades quimicas que explica, as suas propriedacies mecdnicas ¢ geométricas sofrem estranhas variacdes. Com cfeito, tanto a propésite da sua localizagao, da sua cinétiea ou da sua fisiea,o elétron dat lugar as mais distintas dialéticas. Ondula-se ¢ aniquila-se: Daqui derivam duas diregGes de dialéticas ainda mal estudadas pelos quimicos. Deixemos de lado por agora o problema da ondulagdo do elétron na sua relagdo com a quimica. se bem que existam. nesta via, possibilidades de interpretagao para os fendmenos da foto- quimica, Pensemos apenas no arriquilamento, O proprio ser do clétron concebido como substancia clementar, o seu valor substancial mais nu. mais claro, mais simples, parecer sofrer apatias, desfalecimentos, aniquilagdes. O elétron nao se aR BACHELARD conserva. Escapa & categoria de conservagdo que Meyerson considera como 2 categoria fundamental do pensamento realista. Sobre csic assunto. Georges Matisse relacionou engenhosamente o prinetpic da conservacdo do expago, fundamento da geometria cuclidiana, com o principic da conservacao da matéria (ou da eletricidade). O principio da conservagao de vespago esti na dependéngia do grupo dos deslacamentos. grupo que mantém invariantes as dimensdes de uma figura. Como existem geometrias que nio obe- decem ao grupo dos desiocamentos. que se organizam em torno de outras inva riantes, € de prever qué existam quimicas que nao obedegam & conservagio da matéria. quimicas que pudessem pois ser organizadas em torne de um outro inva tiante que ndo.a massa, Poderiam também existir, suzere Georges Matisse, outras eletricidades que ndio postulassem o principio da conservagao da carga. Georges Matisse propie que s¢ associem @ estas quimicas. a estas eletricidades, os qualifi cativos de nao lavoisierianas, de nao lippmannianas.*° Nig é no entanto sobre este argumento que nds nos propomos fundar a Quit’ mica néo-lavotsteriana. As experéncias de aniquitagado ou de criagdo-de elemen- tos substanciais sio ainda demasiado enigmaticas para que © filésofo. por muito aventuroso que seja. Ihes dé relevo. Evoca-as apenas para salientar a audacia metafisica do fisico contemporinco, Ao falar de aniquilamento rotal, o cientista dialetica tanto os principios do realismo como os prineipios do kantismo. Nega simultaneamente a universalidade da substincia-realidade ¢ a universalidade da substincia-categoria, Existem seres simples que se decompaem. coisas que se tor- nam nadas. Correlativamente, & preciso pensar esta dialética coisa-nada nao como o devir de uma coisa, fora da categoria de causalidade. Substéncia¢ causa- lidade sofrem. conjuntamente. um eclipse. De uma maneira geral. o estudo da microfisica obriga-nos simultancamente- pensar de forma diferente do que suge riria a instrugiio recolhida na experi¢ncia usual e de forma diferente do que obri garia uma estrutura invariivel do conhecimenta. Afastando. pois, a considerasao das possibilidades de desuparigdes subsian- ciais. onde encontraremos nds o% fates que, em nosso entender, prefiguram o aspecto nio-lavoisicriano da Quimica zeneralizada? E na nocdo de dinamizugdo da substancia quimica, Ao estudar mais de perto esta dinamizagao. vamos ver que a quimica lavoisieriana do séeulo passado havia deixado de lado um aspecto fundamental do fendmeno quimico ¢ que se tinha assim comprometido numa fenomenologia particular. Esta fenomenologia devia certamente ser estudada em primairo lugar. Ela deve agora ser englobada numa fenomenologia mais geral e conseqiientemente numa quimica nao-lavoisieriana. Esti sempre subentendido — nunca é demais repeti-lo — que uma quimica nao-lavoisieriana, como todas as atividades eientificas da filosofia do nao, nao despreza a utilidade passada ¢ atual da quimica classica. Ela tende apenas a organizair uma quimica mais geral, uma panquimica, tal como a pangeometria tende a fornecer o plano de todas as possi- bilidades de organizacdo geométrica "©. Getrges Matis, Le Primary Piénomeine dans fa Comnarseanses {N, do A.) LVF tamibéin nota 1, pig, 264, A FILOSOFIA DO NAO 39 Vv Tornou-se pouco a pauco manifesto que as intuigdes estiticas sio de ora em diante insuficientes para compreender totalmente as reagdes quimicas. As pala- vtas presenga, coesisiéncia, contats, tao valorizadas pelas intuigdcs comuns © geométricas. deixam de ser bem definidas a partir do momento em que as subs- Mincias entram em reagiio. ha duvida de que a quimica s¢ formou conside- rando casos simples cm que a coexisténcia de duas substancizs. muitas vezes dissolvidas na dgua. determinava uma reagdo. Mas esta quimica primitiva, resu- mida nos dois tempos: dados ¢ resultados. levou a desprezar as Fases. interme- ditrias assim como o problema de atividade das substincias, @ fortior © pro- blema da sua ativagio. Eevidente que esta ativagiio no é um fate novo. A antiga quimica possui ja alguns processos de ativagdo dos quais o mais comum consistia em aquecer ax substincias. Mas pensava-se que isso nao cra mais do que um simples proceso para por em agao virtualidades substanciais bem definidas, Os balungos calort ficos foram tardios ¢ durante muita tempo grosseiros. Nao constitulam na reali dade um sinal suficiente para designar a atividade das reagdes. Quando comegou a conhecer se © papel das substincias cataliticas, devia Ler-se previsto a necessi dade de uma revisio completa da filosofia quimica, Mas nio se passou da enume ragdu dos fatos. sem se insistir no cardter essencialmente indireto ¢ progressivo dag relagdes eataliti O estudo das fases intermedidrias impos-se no entanto a pouco e poucos as reagécs aparentemente mais simples receberam dele um pluralismo que esta ainda muito londe de estar sistematizado, Mas, como veremos aciante mais claramente sob outra Forma, a reagiio deve passar a scr representada como um trajeto, como uma série de diversos estados substanciais. como um filme de substiineias. K aqui Surge um vasto dominio de investigagoe: que exigem uma orientagdo de espirito amente nova. A substincia quimica, que o realista tanto gostava de conside rar como exemplo de uma matéria estavel ¢ bem definida, 86 interessa verdadeira. mente ao quimico se ele a fizer reagir com outra matéria. Ora. se se -m reagir substincias ese se pretence extrair da experiéncia © maximo de instrugdo, nio é a reapdo que se deve considerar? Por detras do ser desenha-se imediatamente um devir, Ora, este devir nao é nem unidrio, nem continuo, Apresenta-se como uma especie de didlogo entre a matéria ¢ a energia. As (rocas encrgéticas determinam modificagdes materiais ¢ as modificagGes materiais condicionam trocas energéti cas. Fé aqui que vemos aparecer 0 tema nove da dinamizagito, verdadelramente exsencial da substncia. A energia é parte integral da substancias substincia ¢ energia sdo igualmente ser. A antiga filosofia quimica que dava uma primazia a nogio de substancia, que atribuia i substincia, como qualidades transitivas, a energia cinética, a energin potencial, 0 calor latente. .. media mal a realidade. A cnergia ¢ (ao rea? quanto u substineia a substdinela ndy mais real que «ener gia. Por intermédio da energia, o tempo coloca na substincia asua marca, Aan tiga concepgio de uma substincia por delinicao fora dé tempo nao pode manter se, au BACHELARD Torna-se. pois, claro que 0 complexe matéria-energia ja no pode ser pensa- do em termos da simples categoria da substancia. dizendo que uma substdneia contém energia. Ser talvez necessario pensar o eomplexo matétia-energia atra ves de uma categoria complexa que seria a categoria de substancia causalidade. Mas falta-nos naiuralmente treino para abordar 0 fendmeno total com categorins totalizadas. O kantismo deixou desarticulado © emprego das calcgorias: determi- nados pensamentos movem-se no quadro de uma categoria: outros adaptam.se a outra categoria. Nio existe simultaneidade total do pensamento ¢ de todas as suas categorias. Os matematicos ensinaram-nos a totalizar as formas de espago ¢ de tempo num espaco-tempo. Os metafisicas. mais timidos que os matematicos, Ado tentaram a sintese metafisica correspondente. Perante a ciéncia moderria, a hosse ehtendimento funciona ainda como um fisieo que pretendesse sompreeider tum dinamo por meio de uma eombinagio de maquinas simples. Surgiu: alias receniemente uma nova cigneia que se propde examinar as sorrelagSes entre a substancia ey energia, Ea foloquimica. O seu nome pode ilu dir quanto a sua generalidade. De fato, as radiagées luminosas foram aquelas ‘cuja agio sobre as reagdes quimicas atraiu primeiramente 4 atengao, Estudou-se ago da luz. sobre as substincias, mas vendo apenas na luz um auxiliar para o desenvolvimento das propriedades substanciais. Mais tarde, estendeu-se 0 estude da fotoquimica as radiagGes invisiveis. Mus esta extensao nio se situa ainda no plano do pensamento que querlamos explorar. Enquanto ciéncia especial, a foto. quimica surge apenas no instants em que estuda a integragao efetiva do radia mento na substancia, $6 entio se tem a impressio de que a substancia quimica é um complexo de matéria ¢ de energia e que as troeas encrgéticas sido condigdes fundamentais para as reagdes entre as substancias. Pode alias acentuar se © carater correlative da relagao substdncia-energia & hao parece impossivel caracterizar uma reagio pelas radiagdes que absorve ou que émite, da mesma mancira que se pode caracteriza-la pelas substancias que produz. Pode acontecer que se estabelega uma certa complementaridade entre a matéria ¢ a radiagiios pode acontecer que o atomismo da substaneia eo atomisino: do ften se conjuguem num atomismo da reagdo, Dever-s¢-ia pois falar de um “griio de reagdo”. Veremos em seguida a curiosa nogao de “grdo de operagaio” Proposta por Paul Renaud. A partir de agora podemos entrever que uma subs- Lincia que perdeu ao mesmo tempo a continuidade do seu ser ¢ a continuidade do seu devir jd nao pode submeter-se a uma informaedo, de acordo com 6 realismo ingénuo, na base duplamente continua de um espago continuo ¢ de um tempo continuo, Em todo 0 caso, a substincie ¢ inseparavel da sua energia. Ao balango subs- tancial deve juntar-s¢ sistematicamente um balango energetic. A sonscrvacao da Massa nao € mais do que uma eondigio da reagdo, Mexmo se a tomarmos por absoluta, esta conservagio ja nao & plenamente explicativa. Vemos, pois, clara- mente a necessidade de superar a Quimiea lavoisieriana, Seria, alias, errado levantar a objegdo de que, para Lavoisier. a luz era um elemento e que o principio da fotoquimica moderna, que impte a integragio do radiamento na matéria, foi A FILOSOFIA DO NAO 41 busear a Lavoisier uma idéia. Na realidade, ndio ¢ como elemento quimico que a radiacao se incorpora na matéria. A idéia realista de absorgao & enganadora por- que a radiagao encontra na matéria um fator de transformagao, O radiamento emitido pode ser diferente do radiamento absorvido. Deste modo verificamos, em tudo ¢ sempre, que a relacdo entre a substancia € a radiacio é complexa: ela ¢ verdadeiramente intima ¢ sao ainda necessirios muitos esforgos para Ihe eselarecer os diversos aspectos, A halanga nao diz tudo. A fotoquimica, com o espectroscopie, surge como uma quimica nio-lavoisie- riana. Filosoficamente, ela contraria o principio da simplicidade ¢ da vstabilidade das. substincias clementares. A fotcquimica habitua-nos a conceber dois grandes tipos de exiseéneia. Estes tipos de cxisténcia so, de certo modo, inversos. AO Passo que a substancia lavoisieriana se apresentava como uma existéncia perma- nente, desenhada no espago, o radiamente, entidade ndo-laveisicriana, apresen- fa-se como uma existéncia essencialmente temporal, como uma freqiiéncia, como uma estrutura do tempo. Podemos mesmo perguntar-nos se esta energia estrutu- rada. vibrante, fungéo de um nimero do tempo, nio bastard para definir & exi téncia da substincia. Nesta perspectiva, a substincia nao seria mais do que um sistema multirressonamte, do quc um grupo de ressonancias, do que uma expécie de aglomeracio de ritmos que poderia absorver ¢ emitir determinadas gamas de radiagdes, Nesta via podemos prever um estudo estritamente temporal das subs- tancias, que seria 0 complemento do estudo estrutural. Como vemos, a porta esti aberta para todas as aventuras, para todas as antecipagdes. Sd o filésofo pode assumir 0 direito de propor tais aventuras 4o espirito inyestigador. Através deste exagero, ele quereria provar a recente plasticidade das categorias do entendi mento ¢ a necessidade de formar categorias mais sintéticas para fazer Face a complexidade do fendmeno cientifico. VI Vamos agora abordar o problema de outra forma. Chegamos a ela quando airs anunciamos a segunda diregéio da quimica ndo-lavoisicriana. Em ver de um pluralismo vertical que. por detris de uma substancia particular, descobre esta dos dinamicos miltiplos, vamas ver que a quimica contempordnea é levada a considerar um pluralismo horizontal, muito diferente do pluralismo realista das substancias fixas na sua unidade, definidas pelas suas irregularidades. Mostra- remos que este pluralismo masce com efcito da incorporagao das condigdes de detecgfio na definigdo das substineias, de forma que.a definigdo de uma subs tancia é.em determinados aspectos, fungaio de uma vizinhanga substancial. Dado que as eondigdes de detecgdo intervém para definir as substiincias, pode dizer-se que estas definigdes sfio mais funcionais do que realistas, Daqui resulta uma rela- tividade fundamental da substancic; esta relatividade vem, de uma forma muito diferente da precedente, contrariar 5 absoluto das substancias consideradas pela quimica lavoisieriana. A quimica elassica, totalmente imbuida de realismo, pensou, sem por isso Es} BACHELARD em Causa, que era possivel definir com precisio as prepriedades de uma subs. taneia sem ter em conta as operagdes mais ou menos precists que permitem isoler bstancia. Decidiu-se assim da solugdo de um problema sem se perguntar se este problema nao seria suscetivel de varias solugdes. Com efeito, nao @ evidente que a determinagdo substancial possa ser completa. que se possa falar de uma substincia absolutamente pura, que se possa. através do pensamento: levar até a0 limite 6 processo de purificagdo, que se possa definir a sua substincia absoluta- mente, separando esta substineia das operagdes que a produzem. Supor um limite 20 processo de putificagao ¢ fazer passar o realismo grosseiro e ingénuo 4 catego. nia de um realismo cientifico ¢ rigoroso. Av estudar mais de perto o método operatorio veremos que esta passevem ao limite é incorrcta Para esclarecer a nossa dificil posi¢do. avancemos ja as nossas conclusdes filos6ficas: O realisme em Quimica ¢ uma verdade de primeira apro: : Mas, em segunda aproximacao. ¢ uma ilusio. De uma forma simétrica, a pureza é um con- ceito justificado em primeira aproximagio: mas. em segunda aproximagao, & um conceilo injustificdvel pelo fato de a operagdo de purificagde se tornar, no limite. Cssencialmente ambigua. Daqui o seguinte paradoxo: o conceito de purera so & valido quando aplicado a substncias que se sabe serem impuras, Deste modo. # nossa texe apresenta.s¢ como uma inversio lamentivel e tere: mos bustante dificuldade para a consalidar se o nosso leitor nao quiser deixar em Suspenso a seu juizo « propdsite co substancialismo. O substancialismo — disse: mo-lo alids — ¢ um obsticulo tremendo para uma cultura cientifiea. Com efeito cle se beneficia das proves de primeiro exame. E como as experiéncias primeiras sdo imediatamente valorizadas, é muito dificil libertar o espirito cientifico da sua primeira Mlosofia, da sua flosofia natural, Nao se pode accitar que o objeto que se havin cuidadosamente designado no inicio de um estudo, se torne totalmente ambigue num estudo mais aprofundado. Nio se pode accitar que a objetividade, tio lara no inicio de uma ciéncia materialista como 4 Quimica, se apague numa espévic de atmosfera nao-objetiva no final do caminho, Ora, no dominio di substancia, vamox encontrar-nos novamente perante mesmo paradoxo que examinamos no nosso livro sobre ot Experiéacia do Espaco na Fisica Contemporanea. Também nesse caso, 0 realismo se apresentava como uma verdade de primeita aproximagiio: sublinhamos até que as experiéncins de locattzacdo primeira, de localizagio grosseira, cram para © realismo ingénuo argumentos eleitos. Viinos também que uma localizagao de seginda aproxima gio. uma localizago fina, contearia todas us fungGes realists primeiras. Him segunda aproximagdo as condigdes experiementais ligam:se indissoluvelmente ao objeto a determinar © impedem a sua determinagao absoluta, Vamos entrever as mesmas perspectivas a0 cstudar as tentativas de determinagées finas ¢ precisas das substiincias quimicas. Os conhecimentos primeiras e grosseiros obtidos das Substdineias quimicas. que constitiem os argumentos preferidos pelo. materi dismo, revelar-s¢-do sem interesse para uma filosofia mais profunda, desejosa das sondigdes do conhecimento refinado. as

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