INTRODUCAO (1,1-2,6)
POR QUE NOS DEU
DEUS A LIBERDADE DE PECAR?
Capitulo 1
O livre-arbitrio vem de Deus
1. Ev, Se possivel, explica-me agora a razao pela qual
Deus concedeu ao homem o livre-arbitrio da vontade, jé
que, caso nao o houvesse recebido, o homem certamente
néo teria podido pecar.
‘Ag. Logo, é para ti uma certeza bem definida haver
Deus concedide 20 homem esse dom, o qual supdes nao
dever ter sido dado.
Ev. O quanto me parece ter compreendido no livro
anterior, 6 que nés no s6 possufmos o livre-arbftrio da
vontade, mas acontece ainda que 6unicamente porele que
pecamos.
Ag. Também me recordo de termos chegado a evidén-
ciaa respeito desse ponto. Mas, nomomento, eu te pergunto
‘0 seguinte: esse dom que certamente possuimos e pelo qual
pecamos, sabes! que foi Deus quem no-lo concedeu?
Ev, Na minha opiniao, ninguém sendo ele, pois é por
ele que existimos. E é dele que merecemos receber 0
castigo ou a recompensa, ao pecar ou ao proceder bem.
‘Ag. Mas o que eu desejo saber é se compreendes com
evidéncia esse tiltimo ponto. Ou se, levado pelo argumen-
toda autoridade, crés de bom grado, ainda que sem claro
entendimento.APROVA DA EXISTENCIA DE DEUS 14
Ev, Na verdade, devo afirmar que, sobre esse ponto,
eu aceitei-o primeiramente décil A autoridade. Mas o que
poderia haver de mais verdadeiro do que as seguintes
assergbes: tudo o que é bom procede de Deus. E tudo o que
6 justo 6 bom. Ora, existe algo mais justo do que o castigo
advir aos pecadores, e a recompensa aos que procedem
bem? Donde a conclusio: é Deus que atribui o infortsinio
aos pecadores e a felicidade aos que praticam o bem.
2, Ag, Nada tenho a opor. Mas apresento-te esta outra
questao: Como sabes que existimos por virmos de Deus?
Tss0 de fato nao 6 0 que acabas de explicar, mas sim que
dele nos vem o merecer, seja 0 castigo, seja arecompensa,
Ep, Parece-me ser isso igualmente evidente, visto que
nao por outra razao, a ndo ser porque temos jé por certo que
Deus castiga 08 pecados, visto que toda justiga dele procede.
Ora, se é proprio da bondade fazer o bem a pessoas estra-
rnhas, nfoé préprioda mesma justica infligircastigosaquem
niio sao devidos. Por onde, ser evidente que nés Ihe perten-
cemos, posto que cle é para conosco nao somente cheio de
bondade, concedendo-nos seus dons, mias ainda justissimo,
ao castigar-nos. Além de que, jé 0 afirmei antes, ¢ tu 0
‘aprovaste, todo bem procedede Deus. Issonos faz.eompreen-
der que ohomem também procedede Deus. Porque opréprio
homem, enquanto homem, é certo bem, pois tem a possibili-
dade, quando o quer, de viver retamente*
3. Ag. Realmente, e se é essa a questio por ti proposta, jé
esté claramente resolvida. Pois, se é verdade que o homem
fem si seja certo bem, e que no poderia agir bem, a néo ser
‘querendo, seria preciso que gozasse de vontade livre, sem a
qual nao poderia proceder dessa maneira. Com efeito, nao é
pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade também
para pecar, que é preciso supor que Deus no-la tenha
concedido nessa intenco. Hé, pois, uma razdo suficiente
15 POR QUE NOS DEU DEUS A LIBERDADE DE PECAR?
para ter sido dada, a que sem ela o homem niio poderia viver
Fetamente, Ora, que ela tenha sido concedida para esse fim
pode-se compreender logo, pela tiniea consideracdo que se
alguém se servir dela para pecar, recairdo sobre ele os
castigos da parte de Deus. Ora, seria isso um injustica, se @
vontade livre fossedada nao somenteparase viverretamente,
mnas igualmente para se pecar. Na verdade, como poderiaser
castigado, com justiga, aquele que se: servissedesua vontade
para o fim mesmo para o qual ela Ihe fora dada?
‘Assim, quando Deus castiga o pecador, o que te parece
que cle diz senfo estas palavras: “Eu te castigo porque nao
Usaste de tua vontade livre para aquilo a que eu aconcedi a
4i°? Isto é, para agires com retidao. Por outro lado, se 0
homem earecesse do livre-arbitrio da vontade, como poderia
‘existir esse bem, que consiste em manifestar a justica, conde
‘pando 03 pecados e premiando as boas agées? Visto que a con-
duta desse homem nao seria pecado nem boa aco, caso nao
fosse voluntaria. Igualmente 0 castigo, como a recompensa,
seria injusto,seohomemniiofassedotadodevontadelivre.Ora,
tra preciso que a justiga estivesse presente no castigo e na
recompensa, porque af est um dos bens cuja fonte é Deus.
‘Conclusao, era necessario que Deus desse ao homem
vontade livre.
Capitulo 2
Objecio: j4 que o livre-arbitrio foi-nos dado para
fazer o bem, como se volta ele para o mal?
4. Bv. Bujéadmito que Deus nos conceden a vontade li-
vre, Mas note parece, pergunto-te, que seela nosfoi dada
para fazermoso bem, nao deveria poder levar-nosa pecar.
Bo que acontece com a prépria justiga dada ao homem
para viver bem. Acaso alguéin poderia viver mal, emAPROVA DA BXISTENCIA DB DEUS 16
virtude da sua retitude? Do mesmo modo, ninguém deve-
ria poder pecar por meio de sua vontade, caso esta Ihe
tivesse sido dada para viver de modo honesto.
Primeira condigao para a soluedo do problema:
colocar-se no ponto de vista de Deus
Ag. Deushé deme conceder, como o espero, que consiga
te responder. Ou melhor, de conceder que tu mesmo te
respondas, instruindo-te interiormente, por aquela Verdade
— Mestra soberana e universal.’ Mas antes, dize-me um
pouco, eu te peco— uma vez. que tens como evidente e certo
o que jd te perguntei, a saber: que foi Deus que nos concedeu
a vontade livre, nesse caso, poderfamos afirmar que Deus
nao nos deveria ter dado tal dom? Isso, j4 que reconhecemos
ser elemesmo queodeuanés. Comefeito, se fosseincerto que
Deus nos tenha concedido a vontade livre, nés teriamos 0
direito de indagar se foi bom cla nos ter sido dada. Desse
modo, se descobrissemos que foi bom, igualmente, reconhe-
ceriamoso doador naquele que deu ao homem todos os bens.
Ao contririo, se descobrissemos que foi mal, terfamos de
compreender que 0 doador néo é Aquele a quem nao &
iminar algo que seja. Mas sendo certo que 0
1s deu essa vontade livre, qualquer seja a
forma como recebemos esse dom, devemos confessar que
‘Deus nao estava obrigado de no-lo dar como foi dado nem de
modo diferente. Na verdade, quem no-lo deu foi Aquele a
quem de modo algum podemos criticar com justica as ages.
Segunda condigao: nao se limitar & fé,
mas procurar o seu entendimento
5. Ev. Apesar de crer em tudo isso com fé inabalavel,
todavia, como n&o possuo ainda pleno entendimento,
continuemos procurando como se tudo fosse incerto. Com
7 POR QUE NOS DEU DBUS A LIBERDADE DE PECAR?
efeito, pelo fato de ser incerto a vontade livre nos ter sido
dada, para com ela agirmos hem — ja que podemos
também pecar —, decorre esta outra incerteza: se foi um
bem ou nao, ela nos ter sido dada. Porque, se ¢ incerto ela
nos ter sido dada, para agirmos corretamente, tampouco
6 certo que seja um bem ela nos ter sido dada. Por af, no
é igualmente certo que seja Deus 0 doador. Com efeito, a
rerteza sobre a conveniéneia do dom torna incerta a
origem, isto é, 0 fato de ser Aquele a quem nao nos 6
permitido crer que conceda algo que nao deveria ter
concedido.
‘Ag. Pelo menos, uma coisa é certa para ti: Deus
existe?
Ev. Isso também considero como verdade incontesta-
vel, mas pela fé e nao pelo entendimento.
‘Ag. Pois bem, supde que um desses homens néscios,
sobre os quais esta escrito: “Diz o insensato em seu
coracéo: Deus nao existe!” (Sl 52,1), viesse te dizer isso.
Supée, por hipétese, que ele se reeuse a crer no que tu crés
pela fé, contudo desejasse conhecer se o objeto de tua
erenga 6 verdadeiro, Abandonarias esse homem & sua
incredulidade ou acharias ser teu dever Ihe demonstrar,
de alguma forma, aquilo em que erés firmemente? So-
bretudo, no caso de ele pretender nao discutir com obsti-
nagio, mas sim procurar com sinceridade conhecer a
verdad
Ep, O que acabas de dizer me sugere suficientemente
oque lhe deveria responder. Pois, ainda que fosse ele uma
pessoa muito insensata, seguramente concordaria comi-
go quenada se deve discutir, principalmente a respeito de
assunto tao sério, como alguém de m4 fé e obstinacao.
Uma vez admitido isso, ele seria o primeiro a me levar a
exer que se dispunha em busca com boa intencao: a de
querer ser alguém que nada esconde em seu interior, e
assim nada haver nele de falso ou de obstinado. Entao, eu