Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
charges
1 – Introdução
A primeira dessas charges (figura 01) que tomo como foco analítico foi publicada
no final de abril de 1904, no Jornal do Brasil. No desenho de Raul Pederneiras, dois homens
com aspectos que procuram apontar para suas condições de eruditos, olham o globo terrestre
de maneira professoral e fazem uma análise de geografia política. Um deles indaga onde seria
a “Sibéria” brasileira e de pronto o outro responde com uma certeza que não deixa margem
para dúvidas: “Que pergunta! No Acre...”. Essa associação por semelhança com a região russa
não era gratuita e carregava um conjunto de preconceitos e estereótipos, que naquele
momento, são explicitados via imprensa. O historiador Mark Bassin em um artigo interessante
e revelador, discute como em fins do XVIII e ao longo do século XIX se construiu a imagem
da Sibéria russa como uma região distante, “vazia”, habitada por bárbaros incultos, descolada
da “nacionalidade e dos valores russos” e local privilegiado de internação forçada dos
inimigos do regime czarista (BASSIN, 1991).
Uma das explicações para essa associação entre o Acre e a Sibéria asiática, se deu
exatamente pela constante utilização daquela região pelo poder imperial russo como
desaguadouro de inimigos políticos e indesejados sociais de São Petersburgo. Aos poucos, a
Sibéria vai se transformando em sinônimo e adjetivo para degredo e desterro e, tal olhar
transcende as fronteiras russas. No Brasil do início do século XX, é atribuído ao Acre aquelas
mesmas características nos olhares de muitas pessoas influentes da República, pois é “através
da analogia que o exótico se torna inteligível, domesticado” (BURKE, 2004, p. 154). Associa-
se ao Acre a ideia de um lugar distante, de difícil acesso, com doenças mortíferas, selva cheia
de perigos, espaço quase vazio, povoado por índios “bárbaros” e lugar considerado sem lei e
sem história. Ou seja, o território havia sido incorporado ao Brasil fazia pouco tempo e a
presença do Estado nacional não tinha ainda dotado o lugar com sua burocracia legal. Além
do mais, era uma terra “sem história” porque não tinha um passado vinculado à pátria
brasileira. Ou em sentido mais restrito, não pertencia de fato à “tradição histórica” da unidade
nacional e ainda não estava “dominada” pelo Homem (CUNHA, 2000). Nos dizeres de um
sociólogo contemporâneo, no Acre “pode se dizer que a maioria da população está fora da lei
e do governo. O poder público e disciplina política é como se não existissem, estão
praticamente abolidos” (OLIVEIRA VIANA, 1946, p. 149).
Figura 01: Jornal do Brasil. Geographia política, ano XIII, nº 334, 29/11/1904, p. 01. Acervo da Fundação
Biblioteca Nacional - FBN.
Essa terra tida como “virginal”, pouco conhecida e povoada, onde abundavam
seringueiras nativas das quais se extraía a cobiçada borracha natural, torna-se aos olhos de
muitos na capital republicana, o endereço privilegiado para receber os desterrados da Revolta
da Vacina, como de fato ocorreu. Um local visto como o mais adequado para internar
forçadamente os indesejados e excluídos da República e da sua capital, que se “modernizava”
e se “civilizava” a partir dos cânones da Belle èpoque (BENCHIMOL 1990; MENEZES,
1996; NEEDELL, 1993). O Acre seria uma espécie de oposto do que era o Rio de Janeiro,
uma espécie de “anti-mundo” da modernidade e da civilização. Essas imagens em oposição
não são simples invenções, são exemplos de como se constroem percepções exageradas,
distorcidas e estereotipadas acerca de determinados lugares e pessoas.
A próxima charge (figura 02) retrata de forma alegórica uma, entre centenas, daquelas
pessoas que foram expulsas para o Acre nos porões de um dos cinco navios fretados pelo
Governo Federal em fins de 19042. Porém, o mais importante para a discussão em tela é a
frase que o desenhista Raul Pederneiras coloca como sendo o comentário, em tom meio
arrependido, do desterrado conduzido displicentemente por um guarda da Força Policial do
Distrito Federal.
Figura 02: Gazeta de Notícias. Para o Acre, nº 331, 26/11/1904, p. 01. Acervo da FBN.
Outra vez, a “fala” de uma das personagens retratadas aponta caminhos para discutir
algumas questões interessantes. A frase “noutra é que não caio... senão quando for senador ou
deputado” indica que ocorreram — ou que poderiam ocorrer — tratamentos diferenciados às
pessoas acusadas de envolvimento naquela revolta. Isso dependeria então da inserção social e
política do indivíduo, o que definiria se ele seria desterrado ou não para o Acre. O lamento
expresso na fala, as mão no bolso indicando certa apatia e aceitação bem como o tipo de
roupa e aspectos físicos, apontam para a representação de um homem comum sendo
conduzido por um policial para embarcar em um navio com destino ao Acre. Essa cena se
repetiu de fato com centenas de pessoas, todas tidas pelo chefe de polícia do Distrito Federal,
Antônio Cardoso de Castro, como criminosos irrecuperáveis, sujeitos pertencentes às
chamadas “classes perigosas”, e que infestavam a cidade causando preocupações constantes
nas autoridades policiais da capital (CASTRO, 1905).
Diante de tal quadro, o Governo Federal utilizou o estado de sítio para desterrar
pessoas que em muitos casos não tiveram envolvimento nenhum com a Revolta da Vacina.
Parte dessas pessoas era de prisioneiros da Casa de Detenção; outras eram aquelas que viviam
pela região central da cidade sobrevivendo de subempregos, biscates e até mesmo de
atividades consideradas ilegais ou que atentavam a moral (jogos de azar, prostituição,
esmolas, golpes); por fim, existem relatos do desterro de operários de algumas fábricas
acusados de envolvimento nas badernas de outubro de 1904 e de outros sujeitos que
efetivamente se envolveram em ações contra as forças policiais, depredação de prédios, obras
públicas e de alguns comércios do centro da cidade. Contudo, o que predominou foi a
generalização de que todos eram criminosos, como se isso fosse motivo suficiente para os
desterros, como expressa a o editorial da revista O Malho a dizer que “valia a pena um estado
de sítio de vez em quando, só para se poder exportar livremente, sem peias, essa onda de lama
que invade as nossas cidades”3.
A tese do governo foi de que essas pessoas marginalizadas foram usadas politicamente
por gente importante e com interesses em desestabilizar o governo. Ou seja, afirmou-se com
ênfase que a revolta contra a vacina era na verdade contra o governo e que as pessoas das
classes subalternas foram manipuladas para reforçar a trama. Vejamos o que diz ainda a
matéria do jornal O Paiz:
Outro periódico segue nessa mesma direção explicativa ao publicar uma matéria que
dizia: “o Chefe de Polícia affirma que tantos os malfeitores, como os desordeiros, como o
mulherio, como os ébrios, obedeciam, evidentemente, um ‘plano da maldade’, cumprindo
estrictamente as ordens recebidas”5. Mas quem seriam os cabeças, a vanguarda “ilustrada” a
liderar essa gente “inconsciente” para propósitos do qual não eram portadores e nem
compreenderiam?
Figura 03: O Malho. Boa resolução, anno III, nº 116, 03/12/1904, p. 31. Acervo da FBN.
O governo prendeu políticos, militares, representantes operários e jornalistas
acusando-os de líderes dos distúrbios. Porém, o tratamento dados a eles foi bastante diferente:
nenhum deles foi desterrado para o Acre como punição. Entre eles estavam os deputados
Alfredo Varela e Barbosa Lima, este último também militar; senador e militar Lauro Sodré;
major Gomes e Castro e general Olympio da Silveira; jornalistas Edmundo Bittencourt
(Correio da Manhã) e João Pompílio Dias (Commercio do Brazil); Vicente de Souza,
presidente de um sindicato operário; o monarquista Visconde de Ouro Preto, entre outros.
Foram presos, ouvidos em segredo de justiça, processados de acordo com as normas jurídicas
vigentes e no ano seguinte todos foram anistiados pelo Congresso Nacional e a lei sancionada
pelo presidente Rodrigues Alves6.
Nenhum deles precisou, como tantos outros anônimos, “seguir para o Acre”. Isso seria
uma punição considerada deveras pesada para pessoas importantes e de certa forma influentes
na sociedade carioca de então. Por isso, o desterro coube apenas a determinadas categorias de
múltiplos indesejados sociais. A charge anterior (figura 03) procura retratar, através de
estereótipos sedimentados há bastante tempo, mestiços e negros como sendo a composição
básica dos revoltosos miúdos, malandros que deveriam ser expulsos para o Acre. Isso diz
muito sobre os preconceitos de cor e a associação do negro ou mestiço como sendo
invariavelmente vinculados às chamadas “classes perigosas”. Entre essas chamadas classes
perigosas, estavam os grupos de capoeiras. A atividade era considerada crime (artigo 399) e
os praticantes perseguidos pela polícia. Uma das personagens da charge é claramente
mostrada como sendo um capoerista, através de pretensa identidade uniforme construída
sobre ele. De acordo com as representações da época, ele usa lenço no pescoço, calça sapato
bicolor, porta uma bengala, tem cabeleira volumosa e carapinha, veste paletó-saco com
camiseta justa por baixo, calças folgadas e deveria portar uma navalha que trazia escondida na
cintura (MORAIS FILHO, s.d.). No diálogo, ambos mais uma vez expressam impressões
sobre o Acre a partir das concepções do autor da charge e do veículo de comunicação. Um
comemora não ter sido desterrado, pois considera que o “tal Acre não é brinquedo”. O outro,
pelo contrário, pretende se “apresentá” à polícia e seguir viagem e se juntar aos seus
“companhêros” para experimentarem o “negócio da borracha”. Aí, se reproduz o discurso do
governo, que atestava terem os desterrados embarcados para o Acre para trabalharem como
seringueiros nas selvas ocidentais da Amazônia. Por fim, a parte final do fictício diálogo
expressa a idéia de que esses revoltosos tinham sido arregimentados a soldo pelos líderes
políticos da revolta, como se fossem mercenários.
Para encerrar essa breve exposição, minha idéia foi mostrar que imagens, mesmo
sarcásticas e humorísticas, podem ser utilizadas como evidências históricas. Ou seja, podem
ser indícios importantes para a compreensão de determinados acontecimentos ou concepções
de mundo sedimentadas em determinadas épocas e lugares. No caso do Acre, serviram para
reforçar concepções negativas acerca da sua inserção como território brasileiro e também
sobre a cultura local e os tipos de gente que habitavam um espaço geográfico que até meados
de 1903 pertencia oficialmente a Bolívia. A imagem da Sibéria que se associa às terras
acreanas buscava tornar aquele “deserto ocidental” como local mais indicado para que a
República descartasse aqueles considerados como indesejados sociais.
1
A minuta da regulamentação foi publicada no jornal A Notícia no dia 09 de novembro. No dia seguinte, outros
jornais também publicaram o mesmo texto e no fim da tarde, já ocorriam os primeiros protestos no centro da
cidade contra a obrigatoriedade da vacina. Cf.: PEREIRA, L. A. M. op. cit.
2
Atualmente estou finalizando minha tese de doutoramento em que discuto mais detalhadamente os desterros
para o Acre após o fim das revoltas da vacina (1904) e da chibata (1910). O título do trabalho é: Acre, a pátria
dos proscritos: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910.
3
O MALHO. Caftens fichados pela polícia, ano II, nº 116, 03/12/1904, p. 15. Acervo da FBN.
4
O PAIZ. Porto Arthur, ano XXI, nº 7.345, 17/11/1904, p. 02. Acervo da FBN.
5
O ESTADO DE SÃO PAULO. O relatório, ano XXX, nº 9.524, 30/12/1904, p. 01. Acervo da FBN.
6
Ver: JORNAL DO COMMERCIO. [Coluna Gazetilhas], ano 85, nº 246, 04/09/1905, p. 02. Acervo da FBN.
4- Referências
BASSIN, Mark. Inventing Siberia: visions of the Russian East in the Early Nineteenth
Century. American Historical Review, vol. 96, nº 03, pp. 763-794, june, 1991.
BURKE, P. Testemunha ocular: história e imagem. Tradução de Vera Maria Xavier dos
Santos. Bauru: EDUSC, 2004.
NEEDELL, J. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro. São
Paulo: Cia. das Letras, 1993.
OLIVEIRA VIANA, F. Pequenos estudos de psychologia social. 03ª edição, Rio de Janeiro:
Cia. Editora Nacional, 1942.