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RUBEM ALVES AO PROFESSOR, COM 0 MEU CARINHO Z el gag 2! edicéo eS] rios ¢ iluminar as sombras. Coisa parecida com, explicar, que significa “tirar as pregas”,“alisar”. Hii pessoas que ndo suportam viajar pelos cenétios pre gucados das montanhas: preferem as rodovias pla nas iluminadas a merciirio... E, de repente, brincando com as minhas pedri thas, me dou conta de que sio elas que estio brin cando comigo. Porque, quando as jogo para: fico de cabeca para baixo. © que confirma 1 tha hipécese inicial sobre o menino Jesus do poc ma de Alberto Cairo. Pois era justo isso que cle fazia com 0 poeta: [..] brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para oar, Pée uns em cima dos outros E bate as palmas sozinho Sorrindo para o meu sono. Haverd coisa mais divertida que bagungar « ‘mundo arrumado em que vivemos? Basta prestat atengio nas coisa insditas que as palavras escor) dem sob suas saias... MAGIA, Oo amos brincar de escola. E aula de portugués, € a professora, moderninha, quer fazer seus alu- pensar. Trouxe um poema, Vai fizer as cabecinhas rt. E. preciso que as ideias sejam claras ¢ distin- s. Que se saiba © que foi lido. Conscientizacio. E iz: “Muita atengao. Vou comecar a leitura.” E fala, firme, esses sibilantes ¢erres escarrados. Para que sons nfo enganem os ouvides, os ouvides néo en- lem a razdo, ea razio no engane o corpo. Na noite lenta e morna, morta noite sem ruido, um. menino chora. 4B ( choro atrés da parede, a luz atris da vidrasa, perdem- -se na sombra dos pasos abafidos, das vores extenuadas E no entanto se ouve até 0 rumor da gota do remédio ‘aindo na colher. ‘Um menino chora na noite, atris da parede, atrés da rua, longe um menino chora, em outra cidade talvez, talvez em outro mundo. Evejoa mae que levanta a colher, enquanto outra sus- tenta.acabega e vej0 0 fio oleoso que escorre pelo queixo do menino, escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas). E nio hé ninguém mais no mundo a nfo ser esse me- nino chorando, ‘Terminou a leitura. Ela olha sorridente, pronta a dara tarefa, — Vame Flutuam, no ar, pensamentos nao ditos, subenten didos. Interpretar. Ah! Se ela tivesse dito “o giz €branco”, ‘nenhuma interpreracio seria necessiria,interpretagao € coisa que se diz depois de fala confusa. Luz que sc acende no escuro. Esse fio oleoso que escorre pelo qu x0 do menino, eescorre pela rua, cescorre pela cidade erpretar.. 4 & claro que precisa ser interpretado. Caso contrério ‘uma alma desavisada chamaria os bombeiros para fa- zer a limpeza, c os motoristas comegariam a derrapar no dleo que besuntou o asfalto, E preciso dizer que is- so é figura de linguagem. Coisa dita de forma nebu- Josa porque o escritor, pobre coitado, nao se lembrou. das palavras claras distintas. Se ele tivesselido sobre Descartes, com certeza néo se teria dedicado & poesia. Preferiria o dizer cientifico, as anlises das dores, cada ‘coisa em seu lugar, os dleos nas garrafas e nos estéma- .g05, ena rua os magos de cigarro embolados, os pneus, 0s cartées de visita caninos. Remédio oleoso é que no. mora lé, Pobre poeta. Confuso. Vamos em seu auxilio, interpretagées a tiracolo, Para espantar as brumas e Jangar luz.na sombra. Interpretago: 0 poeta descreve uma cena noturna, cde um menino doente que toma um remédio oleoso. Acidentalmente 0 remédio derramou sobre o seu quei- xo, Suas palavras indicam que tal cena perturbou os seus sentimentos. Tanto assim que ele tem alucinagées, visbes do remédio que se espalha sobre a cidade e do menino enchendo 0 mundo inteiro. Deve ser um pe- sadelo. Ah! Como as palavras clara e distintas sio melho- res, Dizem as coisas tais como realmente so, sem de- 45 scjo.esem emogio. Antes, a0 lero pocta, a viscosidade do remédio lambuzava as mios da gente, eo chorinho fraco do menino torcia 0s nossos nervos. Mas, agora, «a confusio se desfez. Todo 0 mundo sabe que o texto com palayras clarase distintas deve ser melhor que 0 texto confuso. Podemos, portanto, jogar definitiva- ‘mente o poema na cesta de papéiseficar com a inter- preragi.. ‘S6 que parece que alguma coisa se perdeu. Antes, © texto pedia para sr repetido, E eu o lia e relia ecada ‘ver que isso acontecia, 0 corpo inteiro me dofa, nos- talgia, nevralgia, nervosia... Ah! poema me entrava nna carne ¢ me fazia estremecer. Agora, a interpretacio se encontra na gaveta, Definitiva. Lia-se uma vez. Nun- ca mais, Ela nao pede para ser repetida. Nio desejo voltara ela. Coisa estranha esta, que sejam justamente as pala- ‘as obscuras e misteriosas do poema que me seduzam, enquanto as outras, por verdadeiras e precisas que se- jam, me deixam inerte, [Ni poemas nao slo para ser interpretados. O tex- to claro nao é melhor que o texto obscuro. Na verdade, uuma ideia em neblina é melhor que duas de sol a pi- no, Porque as ideias de sola pino poem fim & conversa, 46 enquanto as ideias de neblina convidam a troca de confidéncias. Incerpretar: ‘mas nao disse. Interpretamos o poema, 0 quadro, a iisica... ©O que ele queria dizer era.” A arrogincia, de quem sabe mais. Poemas nao sio para ser interpre- tados e nem para ser entendidos. Quem entende nao entendeu, Poemas sio como coisas: velhas érvores, a cuja sombra nos assentamos, sem entender. Caquis aquilo que o autor queria dizer, transliicidos que chupamos, lambemos, mordemos, sem interpretar. Rosto ao qual encostamos 0 nosso préprio, sem dizer uma tinica palavra clara e distinta, porque isso quebraria 0 encanto. ‘Uma ver eu estava com meu irméo. E conversva- mos sobre as coisas da vida, da religio e da poesia, quando ele, de repente, me perguntou: —Rubem, vocé acredita nessas coisas que-voct es- reve? Claro que é meio dificil acreditar, porque fz muito que funguei com Descartes, fajo das ideias claras dis- tintas, prefiro as palavras que deixam o leitor naquela estranha sensacio de néo saber se entendeu ou nio en- tendeu, porque nao é para ser entendido... Acreditar nna poesia, seria isso possivel? Ali, nossa frente, estava ” 2 garrafa de vinho, o vermelho luminoso do copo eu: caristico do Salvador Dali, muitos luares, muitas chu ‘vas, muitos solitétios pios de passaros em cada copo. ‘Tomei o vinho e perguntei: — Bm que é que vocé precisa acreditar para tomar o vinho? ‘Meio espantado, ele respondeu: —Em nada, é claro, Basta o vinho. E bom, bonito, trax alegria... Actescentei: — A mesma coisa com as palavras. Néo é preciso acreditar. Acreditar é coisa de cabega. Mas as palavras sho coisas para o corpo. “Nao s6 de pao vive o homem, ‘mas de toda a palavra..” Tomamos 0 vinho néo por que acteditemos nele, mas por aquilo que ele fz com © nosso corpo. Para aqueles que moram no corpo, palavra é coi que seacolhe como quem colhe a uva. Coisa para co ‘mer e beber. E ficamos com ela por aquilo que ela fir conosco. As coisas boas que ela acorda li no fundo, a alegria, o corpo que se expande para sentir as dores eas esperangas dos outros... Ni foi isso que fez0 poc ma? Sentimo-nos bem li, no quarto, na noite, no vis g0, no choro... As palavras fazem crescer © nosso cor, 48 po, erescer 0s nossos olhos, os onvidos, o nariz, a boca... ‘Tudo fica mais sensfvel. Odores novos, murmiitios nfo ‘ouvidos, cores gestos, mundos submarinos que agora se vem, Diziam Gandhi e Tagore que as massas fa- mints esperam um poema, poema que é alimento... Dirio que € magia. Iso mesmo... Interpretacio ébis- tri do cérebro que retalhaa palavra. E cudo fica como ‘era. Mas o poema é palavra magica que chama a vida que mora escondida em nds. 49

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