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1 Como ico cieifica ongustou a Alidade 1.2 Herdeiros das fabulas A ficgdo cientifica é herdeira das narrativas de viagens e das fabulas sobre seres maravilhosos ou extraordinarios. As via~ gens fantésticas, como As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1971), descrevem seres maravilltosos e lugares exéticos e longin- quos, acendendo a curiosidade sobre o desconhecido, mas man- tendo em suspense a real existéncia dos ambientes descritos. Ao combinar lugares existentes com ficcionais, a fébula afirma sua fungdo especifica: manter-se no terreno da indecisao entre 0 ver- dadeiro e o falso (FOUCAULT, 1992), Michel Serres aponta que, em sua Odisseia, Ulisses percorreu mundos conhecidos e desconheci- dos (SERRES, [19-1], p. 13). Asimov pondera: “As histérias maravi- Ihosas/fantasias que descreviam seres extraordinérios tinham as _mesmas metas da ficgao cientifica: descrever a vida tal como nao a conhecemos” (ASIMOV, 1984, p. 120, grifo nosso). ‘A ficgdo cientifica e seus primos mais préximos, a fantasia 0 horror (também chamado de dark fantasy), sao produtos da Modernidade e constituiram-se no campo da literatura. Diferente da fébula, a literatura “dé-se explicitamente como artificio, corn- prometendo-se porém a produzir efeitos de verdade como tal reconhecfveis” (FOUCAULT, 1992, p. 126). A literatura fantastica ~ que engloba ficgio cientifica, fantasia e horror ~ permanece, no entanto, com 0 mesmo objetivo da fabula: criar seres e mundos desconhecidos, despertando curiosidade e deslumbramento. Asimov une ficgdo cientifica e fantasia sob 0 nome de fic- do surrealista e as diferencia da ficcdo realista, Esta “trata de fatos que se desenrolam em meios sociais nao significativamente 50s dos que hoje existem ou tenham existido em alguma época no passado” (ASIMOV, 1984, p. 15, grifos nossos), enquanto a fic- do surrealista refere-se “a fatos que se verificam em ambientes sociais ndo existentes na atualidade e que jamais existiram em B 1s, charges Epocas anteriores” (ASIMOV, 1984, p. 15, grifos nossos). Alguns géneros literdrios, como o faroeste, o policial ou o drama, narram fatos que poderiam acontecer ou ter acontecido. A ficcio fantés- tica, uma vez que provoca um deslocamento na realidade tal como a experienciamos, utiliza artificios para produzir seus efeitos de verdade. No parecer de Asimov, a distingao entre a ficgdo cienti- fica e a fantasia decorre do tipo de ambientes e acontecimentos no existentes descritos. No caso da ficgdo clentifica, os aconte- cimentos podem vir a se concretizar em nosso mundo, mediante novas invengoes da ciéncla e da tecnologia; no caso da fantasia, esses acontecimentos jamais poderao se concretizar, Bréulio Tavares nomeia como literaturas “vizinhas” da fic- co cientifica a fantasia heroica, as histérias de aventuras, as nar- rativas de espada e feiticaria (sword and sorcery) ea literatura de terror. Para o ensaista, o que hd de comum entre elas é a temética do “Outro Eu, ou a justaposigdo do conhecido (0 Eu) e do estranko (0 Outro)” (TAVARES, 1986, p. 13). Mais adiante, desvela: Cada narrativa de fe nos mostra, por baixo das aventu- ras que conta e dos ambientes que descreve, uma tenso permanente entre 0 conhecido eo desconhecido, Em ter- ‘mos de enredo, isso se manifesta muitas vezes através da chegada de um personagem estranho em nosso mundo, ou da viagem de um de nds a um espaco (ou tempo) dife- rente no nosso. Tais situagies forgam os personagens (e oleitor) ase depararem com situagdes ‘além da imagina- clo’, nas quais ele é obrigado a identificar, prever e con- trolar fendmenos inexplicdveis (TAVARES, 1986, p. 17). A justaposigao entre o conhecido e 0 estranho, 0 Eu e 0 Outro, o existente e o ndo-existente revela que o tema comum as narrativas de viagens, ficgao cientifica e fantasia éa interrogacao de nossa humanidade e de nosso mundo a partir da presenga de um 2 1 Como ico cieifica ongustou a Alidade Outro ser (pigmeus ¢ trogloditas, alienigenas e robés, ou duendes © ogtos) ou de um Outre mundo (as culturas orientais, os planetas Jonginquos, os reinos de fadas). Fé claro que as viagens realizadas © 08 seres visitados (ou criados) dependem do potencial de saber (magico, religioso ou cientifico) de cada cultura. A partir de uma ou varias mudangas nas esferas de subjetividade, saber e espago- tempo, a fabula e a fiegio fantastica exercitam a curiosidade e 0 deslumbramento sobre seres e mundos desconhecidos como estra- tégia de problematizacio de nossa prépria humanidade, realidade e potencial de exploragao no mundo. ‘Ao contrapor o humano a suas alteridades, a ficgio fantis- tica torna-se um campo fértil para elaboragao de questdes sobre identidade e diferenga no Ocidente. Estudos como Os monstras, de José Gil (1994), e 0 capitulo “Automato”, de Bruce Mazlish (1993), ‘mostram como a nogdo de alteridade apresentada nas narrativas sobre monstros, ragas fabulosas, robds e autdmatos ajuda a cons- truir e legitimar a identidade de humano, No entanto, trazem tam- bém o questionamento sobre o que é ser humano, uma vez que 0 outro nao se situa fora do dominio do homer, mas se encontra em seu limite, Quando erigimos fronteiras, apontamos também as condigdes de seu dissolvimento, Dos limites entre Eu e Outro, percebe-se que o Eu jé é um Outro. £ possivel agora contra-argumentar a tese defendida por Sobchack e Kuhn de que a ficgdo cientifica ¢ de carter eminente- mentesociol6gico. 0 quea ficgio cientifica problematiza 60 proprio humano. Nao ha como desnudar o humano sem desinvesti-lo das peles culturais (diferengas de género, raca, religido, orientagdo politica) que o recobrem. Por isso, a flegdo cientifica é tao proficua também em discussées de identidade cultural, diferencas de sgénero, entre outras. ‘A primeira grande obra de ficgao fantéstica do Ocidente - a disseia — 6 uma narrativa de viagem que demarca a identidade 0 1s, charges do homem grego ¢ a geografia das viagens possiveis em contra- posi¢ao aos povos barbaros e aos troianos. Hoje descrita como fébula, a Odisseia talvez. tenha sido uma “ficgdo cientifica” em sua época, 0 titulo de primeira obra de flegao cientifica — quase um consenso entre autores,* pesquisadores e leitores do género - cabe a Frankenstein (1817), de Mary Shelley. Foi a primeira vez que um romance utilizou-se de procedimentos cientificos para criar um ser artificial. Envoltos em um campo de fronteiras esmaecidas sé é pos- sivel delinear uma diferenga muito sutil entre ficgo cientifica, fan- tasia e horror. Na ficgdo cientifica, as interrogagbes do humano e das configuragtes espaco-tempo sio feitas a partir de mudancas ficticias no saber tecnocientifico, enquanto na fantasia e no horror os elemen- tos dominantes sfio o saber mégico, religioso ou sobrenatural. Uma ressalva é importante: varias obras de ficgao cientifica utilizam ele- mentos mégicos, religiosos ou sobrenaturais - um das motivos pelos quais o género 6 considerado impuro, No entanto, na fiegdo cientifica hd pelo menos um elemento (enredo, personagem, contexto, entre outros) que se apoia na imaginacao tecnocientifica. Nao é casual que a data e 0 local de nascimento da fiegio cientifica seja o alvorecer da Revolugdo Industrial, na Inglaterra, Vamos analisar as condigdes de possibilidade de aparecimento da ficgdo cientifica 1.3 s condigdes modernas de surgimente da ficsae jetividade, tecnociéncia e futuro Na virada do século XIX a Europa vive mudangas acentua- das nas esferas sociais, politicas e econdmicas, engendradas pelas Para discussio sobre a primeira obra de feglocientifica, consulta ASIMOV. No mundo da fesdo cientfen, LUTE; NICHOLLS. The encyclopedia of science fcion AALDISS, Brian; WINGROVE, Davi. Trillion year spree:the history of science fiction. New York: Atheneum, 1986, 2 1 Como ico cieifica ongustou a Alidade Revolugées Francesa e Industrial. Essas mudangas tiveram como base a racionalidade cientifica e as invengdes técnicas aplicadas & producio, ao comércio e A economia no decorrer do século XVIIL Para compreender como essas mudangas fornecem o terreno fértil para o surgimento da ficgdo cientifica, precisamos tracar, de forma extremamente simplificada, 0 modo como a subjetividade - como um processo de interiorizagio ¢ profundidade do humano — se constituiu nas esteiras da consolidacao do saber cientifico, © século XVI chega ao fim com todo seu escopo cientifico em ruinas. Popkin (1969, p. 16) afirma que as diividas colocadas por Michel de Montaigne, Francisco Sanchez e Pierre Charron - os céticos que tiveram maior repercussdo entre 0 Renascimento e a Idade Moderna - foram devastadoras para seus contemporaneos. As questdes céticas apresentavam dificuldades que pareciam intransponiveis na busca de conhecimento e de certeza Em sua proposta de elaborar um método cientifico obje- tivo, Descartes segue um longo processo dedutivo para chegar ao cogito “Penso, logo existo”. A evidéncia do “eu penso” cartesiano est fundada na singularidade do modo de ser do pensamento: ele é a unica coisa que para existir hasta que seja pensado. Sobre a existéncia de todas as outras coisas do mundo paira a sombra da diivida, Da exacerbagao da diivida extrai-se uma primeira cer- teza: “Se duvido, penso”. 0 cogito cartesiano descobre que todo pensamento ¢ pensado (FOUCAULT, 1992b, p. 340). Esse modo de ser do pensamento implica a existéncia de uma consciéncia trans- parente a si mesma, sempre presente a si, Essa consciéncia de si garante a correspondéncia entre o ser ¢ o pensar, 0 ‘eu penso’ € ‘eu sow’. Entretanto, a tinica existéncia garantida pelo cogito 6 a da ‘coisa que pensa’. Para demonstrar racionalmente a existén- cia do mundo fisico e a possibilidade do conhecimento humano, 0 filésofo recorre a existéncia de Deus, garantia iltima de qualquer subsisténcia e, portanto, fundamento absoluto da objetividade. 3 1s, charges Inaugurando 0 racionalismo classico, Descartes propde que a cer- teza cientifica pode ser obtida pelo ato de pensar segundo uma cadeia de razies ~ encadeamento dedutivo das ideias claras e dis- Lintas. Pelas regras do método clentifico, os fendmenos naturais podem ser descritos mediante sua representagéo, seja por meio de uma linguagem artificial inequivoca (matematica), ou por meio de engenhos e maquinas que reconstituem o modo de funcionamento da natureza (mecanismos). 0 ser se identifica com o pensar e 0 pensar equivale a representar. No decorrer dos séculos XVII e XVIII a ciéncia classica consolida-se gracas a seu sucesso inegavel. 0 dpice do projeto de submeter os fendmenos naturais as leis matematicas, arquitetado por Descartes e Galileu, é alcangado com a Teoria da Gravitagdo Universal (1687), de Isaac Newton, Pela primeira vez um cientista descreve uma lei obedecida universalmente no sistema solar, no espago sideral e no mundo sensivel. 0 saber classico substitui 0 conhecimento contemplative - que supunha que a verdade estava disposta nos objetos e cabia ao homem desvendé-la por meio dos tragos deixados pelo Criador - pelo conhecimento por criagiio — segundo o qual as ideias so geradas primeiramente na mente dos homens sob a forma de teorias e hipéteses e depois submetidas a verificagdo experimental. Ao interiorizar a produgdo de conheci- mento e legitimar a razo como forma de alcangar o conhecimento verdadeiro, o saber cléssico galga um passo importante no movi- mento de interiorizacio e aprofundamento subjetivo do humano. 0 cogito cartesiano entra em crise ja na Modernidade. Na curva dos séculos XVIII e XIX surgem novos procedimentos de investigacao empirica que nao se reduzem a formalizagbes légico- -matematicas, tendo suas condigées de investigacdo no exterior da representagdo. Ciéncias como Histéria, Economia, Biologia e Filologia nao podem prescindir do mundo fisico, do contexto e da agdo do tempo em suas investigagées (FOUCAULT, 1992b, p. 266). 4 1 Como ico cieifica ongustou a Alidade [As novas ciéncias positivas possuem espaco interno, profundi- dade. 0 saber escapa do espaco bidimensional do quadro repre- sentacionista classico, ganhando volume e temporalidade. Os estudos da Biologia, Economia e Filologia dependem de condigBes de existéncia e do contexto histérico e cultural. A vida, © trabalho e a linguagem revelam-se anteriores e exteriores a0 individuo, denunciando a finitude e a efemeridade humana. As determinagbes da natureza e da cultura escapam e ultrapassam ‘o humano, demarcando os limites de sua existéncia e capacidade de conhecimento (FOUCAULT, 1992b, p. 328-329). 0 homem desco- bre que é um ser finito, Mas precisamente por ser finito que 0 homem pode conhecer 0 mundo e a si mesmo no mundo. A positi- vvidade dada ao saber empirico permite que o humano se veja como ser que pertence & natureza e se constitua como objeto do saber. 0 sujeito do conhecimento torna-se também objeto do conheci- mento, sujeitado as leis do trabalho, da vida e da linguagem. Constituido como ser vivo, finito, com corpo e mente secu- larizados, ao contrario do sujeito classico, que se legitima diante da infinitude divina, o sujeito moderno ¢ individuo secularizado: possul corpo e historicidade préprios. Foucault explica que a expe- rigncia do homem na Modernidade ¢ dado um corpo que é seu corpo ~ corpo préprio -, cuja espacialidade prépria e irredutivel se articula com o espaco das coisas. A essa mesma experiéncia so dadas duas formas positivas que lhe conferem singularidade: desejo (intensidade prépria, articulada a produgio e & sexualidade que confere valor aos objetos do mundo) e linguagem (cujo fluxo ros atravessa e rompe as barreiras temporais). & por meio des- sas formas (espacialidade do corpo, abertura ao desejo e tempo a linguagem), atribuidas ao homem por sua finitude, que ele pode aprender que é finito. £ por ser finito que o homem pode conhecer (FOUCAULT, 1992b, p. 325-327). O homem tem a sensa- ‘20 de nao estar em sintonia consigo mesmo porque desconhece a 8 1s, charges histria que o faz ser, porque seu corpo 6 possuido por um desejo que age em segredo e Ihe determina, e porque seu pensamento se articula com contetidos exteriores & consciéncia, Histéria, corpo e inconsciente (Marx, Nietzsche e Freud) sao campos de saber externos & consciéncia e que, no entanto, a determinam, Para os ‘modernos, nem o ser do homem se esgota no ato de pensar, nem 0 pensamento se completa no ato de representar. 0 modo de saber ‘moderno abre uma distancia no interior do sujeito, O homem esta em defasagem consigo mesmo, Ao mesmo tempo em que confere profundidade subjetiva ao homem, o pensamento moderno esta- belece como tarefa alcancar o seu outro eu, Cria-se um ideal de sujeito humano universal como aquele que esta totalmente pre- sente a si, autossuficiente, racional e possuidor de livre arbitrio Adefasagem entre oeu “atual” eo eu civlizado e transparente asi, a distancia entre a sociedade atual e a democracia, seré eliminada com o tempo. E por isso que o homem moderno - em particular a unidade ea racionalidade de seu ser sempre foi assombrado pela ideia do duplo (doppellganger). Na fiegao, o romance 0 médico e 0 ‘monstro (1886), de Louis Stevenson, explora a “animalidade sub- sistente" no homer, ‘A formalizagio do saber moderno e a constituigio do lugar do homem em sew interior articulam a construgdo das fronteiras ontol6gicas e epistemolégicas do pensamento moderno, com con- sequéncias fundamentais para este estudo. ‘A primeira consequéncia refere-se a separago das front ras ontolégicas entre homens, animais e maquinas. No século XIX, o ser vivo torna-se ser biol6gico, passa a se constituir por orga- nismo ¢ historicidade. Entendido como ser vivo, o homem se per- cebe como um ser natural, distinto dos animais gragas a sua natu- reza racional. 0 homem se reconhece como um ser que esta no mundo, conhece o mundo, e pode conhecer a si mesmo como ser que esté no mundo. 0 homem ¢ o tinico ser vivo pensante, social % 1 Como ico cieifica ongustou a Alidade e consciente de sua existéncia. © humanismo iluminista engendra um ser que se constitui como sujeito a partir de sua diferencia~ do e superioridade sobre os objetos (animais e artefatos técni- cos). Torna-se ao um s6 tempo sujeito e objeto do conhecimento. Delimitam-se assim as fronteiras ontolégicas modernas entre homens, animais e maquinas. 0 homem é singular e superior por- que € 0 nico que possui as faculdades do pensamento, da inteli- sgencia, e consciéncia de si. Uma segunda consequéncia refere-se divisio e hierar- quizagdo dos saberes. A epistemologia moderna divide-se em um campo de ciéncias a priori, ciéncias formais ou puras, que sio da algada da l6gica e da matematica e cuja racionalidade deve ser fonte de inspiracdo para os outros campos do saber, ¢ um segundo grupo de ciéncias, o das humanas e sociais, irredutiveis & inves- tigagdo légico-formal. A divisdo entre ciéncias tedrico-experi- mentais e ciéncias humanas e sociais que se formaliza no século XIX funda também uma separacio entre os fendmenos da natu- reza e as praticas da cultura, Bruno Latour (1994), tomando por base os estudos cientificos de Boyle e as teorias sociopoliticas de Hobbes, demonstra como se estabeleceu a separacao entre os dois campos do saber. Nos estudos cientificos de Boyle, as leis natu- rais so transcendentes & agdo do homem. Por meio de métodos experimentais, os cientistas reproduzem no laboratério as leis da natureza, sob condicdes absolutamente controladas, o que confere isengo ao cientista e transcendéncia & natureza. Por seu lado, as teorias sociopoliticas de Hobbes referem-se as convengdes sociais, criagdes do homem. A Repubblica de Hobbes ¢ feita exclusivamente de relagdes sociais. 0 soberano, criado pelo contrato social, érepre- sentante de todos os cidadios, destituindo a cultura de qualquer transcendéncia, A natureza é o locus de forga bruta, intensidade, mas também de pureza, estabilidade, unidade, equilibrio. A cultura 6 lugar de unificacao de habitos, crengas e valores. E onde a lei dos a 1s, charges homens atua e onde pode surgir o contrato social (procedimentos racionais para estabelecer justiga e ordenacdo social para todos os homens). Por fim, os artificios so meros instrumentos inertes, produzidos pela cultura para realizar a mediacao entre natureza e cultura, A produgo de artefatos é apenas uma ferramenta efi- caz na compreensao do funcionamento da natureza, possibilitada pela faculdade racional do homem, © campo do artificial niio per- tence & natureza, é apenas um instrumental de mediagdo entre elas. © artefato objeto inerte e multiplicdvel. Os animais sio seres vivos dotados de forga e selvageria. Os homens so seres vivos “especiais”, porque racionais. 0 pensamento esclarecido prope o uso da razdo para uma tripla libertagdo: desvendar e controlar a natureza, aperfeigoar a moral dos homens e emancipar politicamente a sociedade. Dai a tendéncia do pensamento moderno de estimular o homem a ven- cer os limites das determinagdes naturais, culturais e histéricas assumir 0 comando da sua existéncia, realizando a sua verdade ea da sociedade, 0 homem, como ser dotado de razao, torna-se capaz de administrar a si e a sociedade sem a tutela de um ser superior ou a crenca em ilusées (emancipacao da religiao e do mito). © pensamento politico e social abandona os dogmatismos religiosos e mondrquicos e se volta para os ideais progressistas de liberdade e igualdade. Para os iluministas, emancipar-se significa dominar seus instintos naturais para atingir o patamar da civiliza- do. A emancipagio de si e da sociedade parte de uma decistio do homem. Nas palavras de Kant (apud MIRANDA, 1994, p. 186): 0 uminismo é a saida do homem da menoridade de que ele préprio 6 culpado. A menoridade significa a incapa- cidade para servir-se de seu proprio entendimento sem. a orientagdo de outro, Cada um é culpavel por esta menoridade quando a causa nao reside na caréncia de 8 1 Como ico cieifica ongustou a Alidade entendimento, mas na falta de decisio e de valor para se servir sozinho do entendimento sem a orientagao de outro, Sapere Aude! Atreve-te a servire de seu préprio entendimento! Eis aqui o lema do Tluminismo. A passagem da menoridade para a maturidade é a passa gem do mito a razdo, da barbarie e da selvageria & civilizagio A articulacao entre subjetividade, saber e tempo ¢ decisiva para o pensamento moderno. Recapitulemos: os sucessos da pro- dugao de artefatos e invengdes cientificas legitimam a razéo como método veridico de conhecimento, A racionalidade ¢ faculdade singular do humano, tornando o sujeito referencial para todas as coisas, O mundo arquitetado é eminentemente subjetivo, a0 mesmo tempo em que o sujeito é universalizado: aquele que pode surgir em todo e qualquer lugar em que se faga 0 uso da razao. A Histéria surge como lugar de produsdo de sentido linear do tempo, 0 passado é um tempo determinado, guardiio da tradi- do. Nao pode ser modificado, mas pode ser ressignificado, O pre- sente é 0 momento de planejamento do futuro, No presente exe- cutam-se as mudangas necessarias para concretizacao do futuro desejado. 0 futuro torna-se lugar de realizacdo dos projetos ela~ borados no presente. O futuro nao sera como o presente, sera melhor. 0 futuro é 0 lugar de realizagio da verdade do sujeito e da sociedade; é o lugar de construcao do duplo do eu e do duplo da sociedade: a Utopia Moderna. Gestada em berco iluminista, a Revolugdo Francesa consolida a forga do individuo ea confianga na razdo, propondo que: nés (indi- viduos, cidadaos) podemos mudar a sociedade. A Revolugao Indus- trial mostra o potencial da expansdo técnica como instrumento que pode ajudar a emancipar o individuo ou submeté-lo & dominacao. ” 1s, charges 0 explicito no pensamento e nas revolugdes que inauguram, a Modernidade é o entrelagamento inextricavel entre o surgimento do sujeito auténomo e singular, legitimado pelo desenvolvimento da racionalidade tecnocientifica comprovadamente eficaz, e uma nova relagio com o tempo que concebe 0 futuro como produto das mudangas sociais realizadas no presente. Estes trés acontecimen- tos insepardveis - 0 desenvolvimento tecnocientifico como desen- cadeador de mudangas, o sujeito como modo de ser do homem, ¢a intervengio sobre o presente como possibilidade de sonhar com 0 {futuro ~ fornecem o terreno fértil para a narrativa de flegdo cien- tifica, Nao é fortuito que as definicdes de ficco cientifica oscilem entre mudanga, novas relagbes entre sujeito e tecnociéncia e nova postura em relaciio ao futuro. A ficgo cientifica permanece fiel ao evento que Ihe deu origem e cada uma de suas obras ¢ uma atua- lizagio e afirmagio do modo de interrogagao da cultura moderna, Entretanto, na Modernidade os ideais de mudanga pertencem apenas aos dominios das ciéncias humanas e sociais. 0 campo das ciéncias “puras" produz uma concep¢do determinista e transcen- dente da natureza, imune a intervencio humana. £ claro que 0 objetivo da ciéncia é compreender os fenémenos naturais e ten- tar controlar seus efeitos indesejéveis. Mas a percepcdo de que a prdtica cientifica efetivamente modifica o curso da natureza s6 emerge no século XX (extingao de animais afeta o equilibrio do ecossistema, preocupacao com a ecologia). Tal ¢ a novidade, de carter inteiramente subversivo, inaugurada pela flegio cien- tifica: introduzir a possibilidade de mudanca na natureza nas ciéncias tedrico-experimentais, © pensamento moderno apoia-se sobre as divisdes ontoldgicas e epistemoldgicas e adota a “flecha do tempo” somente para as ciéncias sociais e humanas. Enquanto isso, a ficgao cientifica cria seres hibridos que afrontam as fron- teiras entre homens, animais e maquinas, introduz o tempo e as experimentacdes como fatores de mudanga nas ciéncias “puras”, € 0 1 Como ico cieifica ongustou a Alidade enevoa os limites entre natural ¢ artificial, doando a suas narrati- vas 0 cardter miltiplo da experiéncia. A Modernidade fornece as condigées de nascimento da fic- do cientifica, mas ndo pode pensé-la, Ao erigir fronteiras entre homens, animais e maquinas, a Modernidade trata a tecnologia como instrumento de alienacao ou libertagao do individuo, mas nunca como algo que se imbrica com os modos de subjetivagao @ faz repensar os limites do humano, A Modernidade nao apenas propicia as condicdes de aparecimento da ficco cientifica, mas ela mesma é uma narrativa: uma metanarrativa, © pensamento esclarecido também sonhou com um outro ser (0 sujeito civi- lizado e emancipado) e um outro mundo (a sociedade democré- tica no futuro). 0 ailleurs moderno é um espago a ser construfdo num tempo futuro, As mudangas sonhadas pela Modernidade~ a emancipacdo do homem pela razdo, a construgdo de organizacdes sociais democrticas e o controle da natureza pela ciéncia - eram a narrativa tinica e linear pretendida pelos modernos, Enquanto pensadores e cientistas buscam as condigdes de concretizagao da Utopia Moderna por meio da antecipago do futuro, os escritores de ficgao cientifica narram as outras utopias, distopias e heteroto- pias possibilitadas pelo entrelacamento entre subjetividade, tec- nociéncia e outras configuracdes de espago e tempo. Surgem his- t6rias sobre viagens no tempo, aventuras em planetas distantes, novas tecnologias de transporte (baldes e submarinos) e de comu- nicagdo (rédio), méquinas inteligentes, experimentos biolégicos com animais e homens, entre outros temas. Podemos compreender ento o profundo desajuste entre a fics cientifica e 0 pensamento moderno. A ficgdo cientifica sé poderia surgir em uma cultura cujas mudangas eram em grande parte impulsionadas pelo saber tecnocientifico. Narrar as novas possibilidades de aventura humana na sociedade cientifica foi precisamente a tarefa que a ficgdo cientifica tomou para si. Uma 0 1s, charges segunda inadequagio refere-se & prépria proposta da ficgdo cien- tifica, A Modernidade condenou toda a ficgao ao campo do falso, do nao verdadeiro, do ndo factual. Para a nomenclatura moderna, a literatura, nao sendo verdadeira, pode apenas produzir efeitos de verdade. Uma ficgdo que se pretende cientifica parece nfo com- preender a contradigao implicita nos dois termos: a liberdade pro- porcionada pela ficgao e o rigor exigido pela ciéncia, £ possivel entender a dificuldade de se conceituar a fiesao cientifica com base na epistemologia moderna. Mas como viabili- zar uma abordagem teérica compativel com o género? ‘vimos que as obras de ficgao cientifica narram a indefinicio de fronteiras entre humano endo humano, real e virtual, visivel ¢ invisivel, natural e artificial, conferindo um carter de multi- plicidade a suas histérias e temas. A ficgéo cientifica herdou das narrativas de viagens extraordindrias as interrogagGes, de carter filosético, sobre 0 que é e o que pode o humano, Desde entio se caracteriza por interrogar o ligar do homem no mundo a partir do tripe subjetividade, teenociéncia e espaso-tempo, cujas condigées foram forjadas em seu nascimento, na Modernidade. 0 momento presente caracteriza-se pela expanséo mundial da tecnologia e pelo esmaecimento de fronteiras que tém propiciado novas con- digées de produgao de subjetividade, novas contiguragées espaso- -temporais para a experiéncia humana e novas relagoes com a tecnologia, Por reconfigurar as possibilidades de experiéncia dos homens e do mundo, a sociedade atwal gera uma abertura para as rultiplcidades, para fazer habitar o humano no inumano, a fieso no real e vice-versa, A ficgio cientifica, como o género que inves- tiga os modos de produsio de subjetividade em uma sociedade tecnocientifica, parece tornar-se a fiegto da atualidade, ganhando respeitabilidade no mundo académico. Considerando que a dificuldade de se compreender a ficgio cientiica ¢ fruto de sua irredutibilidade aos preceitos da epistémé 2 1 Como ico cieifica ongustou a Alidade moderna, procuremos suporte teérico nos pensadores que nao se renderam as redugdes ontol6gicas e epistemoldgicas modernas. 1.4 Coriosidade © experimentacao: a fiesée cientifica como uma forma de arte entre a ciéncia e a filosofia ‘Amultiplicidade que a fiegao cientifica atribuia experiéncia possivel de ser compreendida por procedimentos transdisci- plinares. Marcio Tavares (D'AMARAL, 1995, p. 67) explica que a perspectiva transdisciplinar é uma tentativa de pensar “cientifica- mento” para além dos limites das ciéncias. Na base dessa estraté- gi esté a busca de compreender o real como miiltiplo, como hiper- complexo e, portanto,irredutivel aos métodos simplificadores de cada ciéncia isoladamente. “A condigéo absoluta para a geracdo de métodos, conceitos e teorias transdisciplinares é, portanto, um comunicar intercientifco" (D'AMARAL, 1985, p. 91), conclui o pen- sador. & por praticar esse “comunicar intercientifico” em suas nar- rativas que a fiego cientifica se torna irredutivel as classificagdes de soft e hard Resgatarei dois conceitos da tarefa floséfica proposta por dois pensadores do século XX que buscaram entender o cardter rmiitiplo do homem e do mundo, Comecemos com Michel Foucault ‘Ao descrever o motivo que 9 impulsionou a escrever A historia da sexualidade 2, Foucault empreende uma critica e propée um tipo de atividade filosfica, critica é ao modo de saber epistemolégico que assegura apenas a aquisigio de conhecimento sem possibili tar 0 descaminho daquele que conhece. 0 problema desse tipo de discurso flos6tico € pretender fazer a lei para os outros, indicar- -lhes 0 caminho da sua verdade, A tarefa filos6fica foucaultiana consiste no “trabalho critico do pensamento sobre o préprio pen- samento (FOUCAULT, 1984, p. 13), possibilidade de interrogar o 8 1s, charges pensamento por meio de um saber que Ihe é estranho. Essa prética exercita um tipo especifico de curiosidade: “ndo aquela que procura assimilar 0 que convém conhecer, mas a que permite separar-se de simesmo” (FOUCAULT, 1984, p. 13). 0 separar-se de si: mesmo per- mite uma ‘ascese’, um exercicio de si,no pensamento, possiblitando co descaminho daquele que conhece, gerando abertura para saberes até entio insondaveis. Nas palavras do filésofo: “existem momen- tos na vida em que a questo de saber se se pode pensar diferen- temente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vé, 6 indispensavel para continuar a olhar ou a refletir” (FOUCAULT, 1984, p. 13), Reservernos de Foucault o exercicio da curiosidade, ‘Assim como Foucault, Gilles Deleuze clama por um novo tipo de filosofia, Em Diferenca e repetigao destaca a familiaridade enire as préticas de sua filosofia e as da fiegao cientifica O pensador confere a filosofia a tarefa de suplantar as dua- lidades temporalintemporal, hist6rico-eterno, particular-univer- sal, Deleuze no quer pensar nem as particularidades empiricas, nem 0 universal abstrato, mas abordar a diferenga em si mesma e arelacao do diferente com o diferente. E um pensamento do devir, da multiplicidade, das mudangas e das misturas que escapam a toda forma de representacio, que conduz a repeticio e ao Mesmo, A relagdo entre a filosofia e a fiegdo cientifica advém da ideia de que um livro de filosofia deve ser, por um lado, um tipo de romance policial e, por outro, uma ficgao cientifica. Do romance policial, Deleuze entende que os conceitos produzidos pela filoso- fia devem assimilar a agdo de intervir para resolver uma situac30 local. Os conceitos devem modificar-se de acordo com os proble- mas, mantendo uma coeréncia entre si. Tal coeréncia, entretanto, no deve vir deles, mas de outro lugar, Esse empreendimento filoséfico precisa de um certo empirismo. Deleuze (1988, p. 17-18) explica que o empirismo nao é reaco contra os conceitos, nem um simples apelo & experiéncia vivida. Ao contrario, 4 1 Como ico cieifica ongustou a Alidade ele empreende a mais louca criagio de conceitos [..J mais precisamente, ele trata 0 conceito como o abjeto de um encontro, como um aqui-agora, ou melhor, como ‘um Erewhon de onde saem, inesgotaveis, os ‘aqui’ e os, ‘agora’ sempre novos, diversamente distribufdos. $6 0 empirista pode dizer: os conceitos sao as préprias coisas, ‘mas as coisas em estado livre e selvagem, para além dos ‘predicados antropol6gicos’. Eu fago, refao e desfaco meus conceitos a partir de um horizonte movente, de um centro sempre descentrado, de uma periferia sem- pre deslocada que os repete e os diferencia. O aspecto que a filosofia deve capturar da ficgao cientifica deriva do Frewhon- um anagrama de “no where - parte alguma”, espago imaginario criado por Samuel Butler que significa, a0 mesmo tempo, o “parte alguma’ origindrio e o ‘aqui-agora’ deslo- cado, disfarcado, modificado, sempre recriado” (DELEUZE, 1988, p. 18). $6 escrevemos, conclui Deleuze, “na extremidade de nosso proprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignordncia e que transforma um no outro” (DELEUZE, 1988, p. 18, grifo do autor). Guardemos de Deleuze seu empirismo filoséfico. Em A nova alianga, os cientistas Iya Prigogine e Isabelle Stengers sonham com a instauragdo de uma comunicagao fecunda entre as interrogasdes flloséficas e cientificas. Os autores buscaram inspiragio em filésofos como Michel Serres, Deleuze, Lucrécio, Leibniz, Bergson e Whitehead. Prigogine e Stengers (1997, p. 223) observam que o que ha em comum a esses filésofos é “uma diligen- cia experimental. Nao de uma experimentagdo sobre a natureza, ‘mas sobre os conceitos e suas articulagées, de uma experimenta- do na arte de por os problemas e de seguir suas conseqiiéncias com o maior rigor”. Prigogine e Stengers consideram que nao é preciso opor experimentagdes cientificas e filoséficas como se 6 1s, charges oporia concreto ¢ abstrato. Tomam como exemplo o “empirismo” filoséfico proposto por Deleuze. 0 empirismo de Deleuze e a curiosidade de Foucault pro- vocam mudangas de perspectivas, caracteristicas da abordagem transdisciplinar, © deslocamento de si mesmo e do pensamento permite que se vislumbrem as multiplicidades, os devires, e as diversas possibilidades (os aquis e agoras) do humano e do mundo. Acredito que é a tarefa filoséfica de interrogar os modos do homem, ser, perceber e atuar sobre mundo por meio de duas praticas cien tfficas -o experimentalismo e a curiosidade - que a ficgdo clentifica exercita em suas narrativas. A ficcdo cientifica criou um conjunto de condigdes de produgdo de sentido entre subjetividade, tecnoci- éncia e espago-tempo que a tornou o campo propicio para inter- rogar o humano por meio da comunicagao fecunda entre filosofia e ciéncia, sonhado por Stengers® e Prigogine. Nao proponho aqui nenhum moralismo: a ficgdo cientifica néo tem essa fungao; creio que ela é 0 lugar de seu comparecimento. Nao é precisamente isso que diz Brian Aldiss e David Wingrove (1986) em sua ponderagio? FFiegdo Cientifica éa busca por uma definigao do homem, fe sua posigdo no universo que se apresentard no nosso estado de conhecimento (ciéncia) avancado, porém con- fuso, e é moldada numa matriz gética ou pos-gotica, ¥ stengers, em um trabatho recente, propde uma abordagem similar pars ogénero. ‘Seu conceito de fcpdo cientifiea experimental entende que os ingredientes da ‘esto clentifica seriam “experiéncias de pensamento™ proprias das ciéncias, Inumanas ¢ sociais e personagens que se comportam como observadores par- tials da ciéneiaterico-experimental, & abordagem de Stengers€ de inspiragio Aeleuziana. 0 lago da ciénciae da ficelocientifca é o da verdade do relaivo. 0 [personagem de fcglo cientiiea€ o ebservador parcal,eujo papel ¢ perceber © fxperimentar. Cl, STENGERS, Isabelle, “Science-fiction et experimentation’. In HOTTOIS, Gilbert (coord). Philosophie et science fltion. Pars J. Vrin, 2000. Ver também DELEUZE, Gilles, Funetivos e eoneeitos In: DELEUZL, Gilles; GUATTARI, Flix. O que flosofa? Sto Paulo: Fa, 34,1988. %

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