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CURSO MODERNO DE FILOSOFIA Cart G. HemPe da Universidade de Princeton FILOSOFIA DA CIENCIA NATURAL Tradugo de PLINIO SUSSEKIND RocHA idude Federal da Guanabara Sequnda eicao ZAHAR EDITORES S| RIO DE JANEIRO ! we OSCE Titulo original: Philosophty of Natural Science publicada em 1966 pela Prennice-Hatt, ‘Estados Unidos da. América, mi irigida, por’ ELIZageTH€ Traduide da_pimscn eds, rater ctebood Cults New heey, Bey FOUNDATIONS “OF PHILOSOPLIY. ‘MONROE BEARDSLEY. Copyright © 1966 by Prentice-Hall, Inc capa de Erico 1974 —— Direitos para a lingua portuguesa adquiridos por ZAHAR EDITORES Rua México, 31 — Rio de Janeiro que se reservam a propriedade desta tradusio eee Impress no Brasil Prefacio 1 2 NS INDICE Alcance e Objetivo deste Livro .. Investigagdo Cientifica: Invencao e Verificagao Um Caso Histérico como Exemplo, 13. As Etapas Fundamentais para Verificar uma Hip6tese, 16. © Papel da Indusdo na Investigagdo Cientifica, 21. A Verificagao de wma Hipétese: Sua Logica ¢ Sua Forca : coves . Verificagées Experimentais vs. Nao-Experimen- tais, 32. O Papel das Hip6teses Auxiliares, 36 Verificagoes Cruciais, 40. Hipsteses ad hoc, 43. Verificabilidade em Principio e Significagio Em- Pirica, 45, Critérios de Confirmagao e Aceitabilidade Quantidade, Variedade ¢ Precisio da Evidéacia Sustentadora, 48. Confirmagdo por “Novas” Im- plicagées, 52. O Apoio Teérico, 54. Simm dade, $7. A Probabilidade das Hipéteses, 63, As Leis e seu Papel na Explicagiio Cientifica Duas Exigéncias Basicas para as Explicagdes Cientificas, 65. A Explicagio Dedutive-Nomolé- gica, 68. Leis Universais e Generalizacdes Aciden- tais, 73. As Explicacdes Probabilisticas: Seus Fun- damentos, 78. Probabilidades Estatisticas ¢ Leis Probabilisticas. 79. O Caréter Indutivo da Expli- cago Probabilistica, 89. 4, As Teorias ¢ a Explicagio Tedrica As Caracteristicas Gerais das Teorias, 92. Os Prin cipios Internos ¢ os Principios de Transposigao, 95. Compreensio Tedrica, 98. O “Status” das Vnlidades Teéricas, 100. Explicagio ¢ “Reducéo ao Familiar", 106. W 3 32 48 65 92 FILosoFIA DA CifNctA NATURAL 7. Formagio de Conceitos ..---++++ Definigio, 109. Definigdes Operacionais, 113 Importincia Sistemstica e Empitica dos Concei- tos Cientificos, 117. Sobre as Questoes “Opera~ cionalmente sem Sentido”, 123. O Cardter das Sentengas Interpretativas, 124. 8. Reducdo Teérica fevecteneeee [A Controvérsia Mecanicismo vs, Vitalismo, 129 Redugio dos ‘Termos, 131. Redugio das, Leis, 133. Reformulagao do Mecanicisme, 134. Redu- 0 da Psicologia; 0 Behaviorismo, 135. Leituras Adicionais 109 129 141 FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA Muitos dos problemas da Filosofia so de tio ampla rele- vvancia para as preocupagées humanas, e tio complexos em suas ramificag6es, que se encontram, de uma forma ou outra, cons- tantemente presentes. Embora, no decorrer do tempo, eles se submetam & investigacdo filoséfica, talvez necessitem ser recon- siderados em cada época, & luz de conhecimentos cientificos mais vastos ¢ mais profunda experiéncia ética e religiosa, Me- Ihores solugdes sio descobertas por métodos mais refinados igorosos. Assim, quem abordar 0 estudo da filosofia na espe- ranga de compreender o melhor do que ela proporciona, Procurard tanto as questdes fundamentais como as realizagées contemporineas. Escrito por um grupo de eminentes fil6sofos, 0 “Curso Moderno de Filosofia” tem por finalidade expor alguns dos principais problemas nos diversos campos da Filosofia, tal como se apresentam na atual {ase da hist6ria filos6fica. Conquanto seja provavel que certos setores estejam repre- sentados na maioria dos casos de introdugio & Filosofia, as classes universitirias diferem muito em énfase, nos métodos de instrugo € no ritmo de progresso. Todos os professores necessitam de liberdade para alterar seus cursos & medida que 08 seus préprios interesses filos6ficos, 0 tamanho e caracteris- ticas da composicao de suas classes ¢ as necessidades de seus alunos variem de ano para ano. Os diversos volumes do “Curso Moderno de Filosofia” (cada um completo em si mesmo, mas servindo também de complement para os outros) oferecem uma nova flexibilidade a0 professor, que pode criar seu proprio curso mediante a combinagéo de vérios volumes, conforme de- sejar, e pode escolher diversas combinagdes em diferentes oca- sides. Aqueles volumes que nfo sio usados num curso de so podem ser comprovadamente valiosos, a par de outros textos ou compilagdes de ligdes, para os cursos mais especiali- zados de nivel superior. ELIZABETH BEARDSLEY Monror BEARDSLEY Para PETER ANDREW e TOBY ANNE PREFACIO Este livro oferece uma introdugdo a alguns dos tépicos centrais da Metodologia e da Filosofia da Ciéncia Natural con- femporineas, Para atender as exigéncias do espago disponivel, preferi tratar com certa minicia um nGmero limitado de ques- {Ges importantes a tentar um esboco rudimentar de um pano- rama mais vasto. Embora seja livro de caréter clementat, pro- curei evitar uma simplificagio enganosa ¢ apontei varias questoes que ainda estao sendo pesquisadas ¢ discutidas. Os Ieitores que quiserem conhecer melhor as questdes aqui examinadas ou se informar sobre outros problemas da Filosofia da Ciéncia encontrario sugesties para leituras adicionais na curta.bibliogeafia que se acha no fim do volume. Uma parte substancial deste livro foi escrita em 1964, du- rante 0s tiltimos meses de um ano em que fiz parte do Centro de Estudos Avangados em Ciéncias do Comportamento, Quero deixar aqui expresso o quanto aprecici esta oportunidade. E quero, por fim, agradecer calorosamente aos diretores desta colegao, Elizabeth e Monroe Beardsley, pelos conselhos valiosos ¢ a Jerome B, Neu pelo auxilio eficiente na leitura das provas. Cart G. HEMPEL ALCANCE E OBJETIVO DESTE LIVRO s diferentes ramos da investigagao cientifica podem ser separados em dois grupos maiores: as Ciéncias empiricas € as ndo-empiricas, As primeiras procuram descobrir, descrever, explicar ¢ predizer as ocorréncias no mundo em que vivemos. Suns assorgoes devem ser, portanto, confrontadas com os fatos ide nossa experiéncia e s6 sio accitiveis se amparadas por uma evidéncia empirica. Tal evidéncia se obtém de muitas manciras: por experimen- tagdo, por observacio sistematica, por entrevistas ow levanta- mentos, por exames psicoldgicos ou clinicos, por estudo atento de reliquias arqueoldgicas, documentos, inscrigées, mocdas etc. £ dessa referéncia essencial & experiéncia que prescindem ‘2 Légica ¢ a Matemética pura, que sio as Ciéncias nio- 'AS Cigncias empiricas dividem-se por sua vez em Ciéneias Naturais ¢ Ciéncias Sociais. O critério para essa diviséo é muito ‘menos claro do que o que distingue a investigacéo empirica da nao-empitica e nio existe acordo geral sobre onde se encontra a linha de separacéo. E costume incluir nas Ciéncias Naturais a Fisica, a Quimica, 2 Biologia ¢ as suas zonas fronteiricas. As Ciéncias Sociais compreendem entao a Sociologia, a Ciéncia Po- Iitica, a Antropologia, a Economia, a Historiografia ¢ as discipli nas correlatas, A Psicologia é as vezes incluida num campo, 3s vezes noutro € nio raro é dita pertencer a ambos. Na presente colesiio, a Filosofia das Cigncias Naturais ¢ a Filosofia das Ciéncias Sociais so tratadas em volumes diferen- tes, Esta separacdo visa apenas ao propésito pritico de permitir discussio mais adequada do largo campo da Filosofia da Ciéneia; nao pretende prejulgar a questo de ter ow niio essa diviséo significagio sistematica, i.., de serem as Ciéncias Naturais fun- damertaimente diferentes das Ciéncias Sociais em assuntos, objetivos, métodos ou pressupostos. Que existam diferencas bi 12 Fitosorta pa CitNci< NATURAL, sicas entre esses vastos dominios 4 0 foi amplamente afirmado € com as mais diversas e interessantes razdes. Mas um estudo completo desses argumentos requer uma andlise cerrada tanto das Ciéncias Sociais como das Naturais, o que ultrapassa o dominio deste pequeno volume, Entretanto, nossa discussio derramard alguma luz sobre a questo, pois nesta exploragao da Filosofia das Ciéncias Naturais teremos, de quando em vez, ocasiio de langar um olhar comparativo em relagdo as Citncias Sociais © veremos que muito do que vamos descobrir quanto aos métodos © A rationale da investigacao cientifica aplica-se tanto as Cién- cias Naturais como as Ciéncias Sociais. As palavras “ciéncia” € ientifico” serao, portanto, freqiientemente usadas em referén- cia ao dominio inteiro da Ciéncia empirica; mas quando a cla- reza o exigit, restrigdes convenientes serio. acrescentadas. © enorme prestigio desfrutado pela Ciéncia hoje em dia é certamente devido em grande parte aos sucessos espetaculares & 8 rapida expansao do alcance de suas aplicagées. Muitos ramos da Ciéncia empirica vieram constituir 2 base para tecnologias as- sociadas, que colocam 0s resultados da investigagao cientifica em uso prético © que por sua vez fornecem freqiientemente A pes- quisa pura ou basica novos dados, novos problemas ¢ novos ins- trumentos para a investigagao. ‘Mas, além de auxiliar 0 homem em sua busca de um contro Je sobre seu ambiente, a Ciéncia responde a uma outra necessi- dade, desinteressada, mas ndo menos profunda € persistente: a de ganhar um conhecimento cada vez mais vasto © uma com- preensio cada vez mais profunda do mundo em que ele se encontra, Nos capitulos seguintes, vamos estudar co- ‘mo sao atingidos esses objetivos principais da investigacao cien- tifica, Examinaremos como se alcanca, como se estabelece ¢ como muda o conhecimento cientifico; veremos como a Ciéncia explica 0s fatos empiricos e que espécie de compreensio nos & dada por suas explicagdes; no decorrer dessas discussoes, aborda- daremos alguns problemas mais gerais referentes aos limites ¢ aos pressupostos da investigagao, do conhecimento e da com- preensao cientificas. INVESTIGAGAO CIENTIFICA: INVENCAO E. VERIFICACAO UM CASO HISTORICO COMO EXEMPLO Como simples ilustragdo de alguns aspectos importantes da investigagio cientifica vamos considerar 0 trabalho sobre a febre puerperal, realizado pelo médico hingaro Tguaz. Semmelweis, no Hospital Geral de Viena, de 1844 a 1848. Grande niimero de mulheres internadas no Primeiro Servigo da Maternidade do Hos- pital contraia apos 0 parto uma doenga séria, ¢ muitas vezes fatal, conhecida como febre puerperal. Em 1844, das 3.157 ‘mies hospitalizadas nesse Servico, 260 (ou seja, 8,2 por cento) morreram da doenca; em 1845 a percentagem era de 6,8 por cento em 1846 de 11,4 por cento, Essas cifras se tornavam ainda mais alarmantes quando confrontadas com as dos casos de morte pela doenga no Segundo Servigo de Maternidade do mesmo hospital, que abrigava quase tantas mulheres como 0 rimeiro: 2,3, 2,0 e 2,7 por cento para os mesmos anos. Atormentado pelo terrivel problema, Semmelweis esforcou- se por resolvé-lo, seguindo um caminho que ele mesmo veio a descrever mais tarde em livro que escreveu sobre a causa ¢ a prevencao da febre puerperal.! ‘Comecou considerando varias explicagdes entio em voga; algumas rejeitou logo por serem incompativeis com fatos bem 1A narrative do_abatho de Semmelweis «das ifeudades por cle encom wadas Cones uma pagina farcnane a. nists a Medicina Oma expongio ormenorzads, que incu tradugoes © rkffaes ce argon techos dos efrtot " Semmeimels ‘encomrase em 'W. J. Sines Sommelueds “ihe Life end Docrine iain nets Manca" Unvery et 190). Dae ‘nantes da carteira_de Semmelweis ero focalizadot no. primeizo capitulo de? ("Kru Men Arotit Death (Sora York: Harcourt, Brace ® Worl Ine, 1932) 4 FitosoFia DA CigNCcIA NATURAL estabelecidos; outras, passou a submeter a verificagées espect- ficas. ‘Uma idgia amplamente aceita na época atribuia as devas- tages da febre puerperal a “influéncias epidémicas”, vagamente descritas como mudangas “césmico-telirico-atmostéricas” espa- Ihando-se sobre bairros inteiros"e causando a febre nas. mulhe~ res internadas. Mas, raciocina Semmelweis, como poderiam tais influéncias afstar 0 Primeiro Servigo durante anos ¢ poupar 0 Segundo? E como poderia reconctiar-se essa idéia com 0 fato de estar a febre grassando no hospital sem que praticamente focorresse outro caso na cidade de Viena ou em seus arredores? Uma epidemia genuina, como o ¢ a célera, nao poderia ser to seletiva, Finalmente, Semmelweis nota que algumas das mu- Iheres admitidas no Primeito Servigo, residindo longe do hospital vencidas pelo trabalho de parto ainda em caminho, tinham dado luz em plena rua; pois, a despeito dossas condigdes desfavori- veis, a taxa de morte por febre pucrperal entre esses casos de “parto de rua” era menor que a média no Primeiro Servigo. Segundo outra opiniio, a causa da mortalidade no Primeiro Servigo era 0 excesso de gente, Mas Semmelweis observa que esse excesso era ainda maior no Segundo Servigo, 0 que em parte se explicava como resultado dos esforgos desesperados das pacientes para evitar o Primeiro Servigo jd mal afamado. Ele rejeita também duas conjeturas semelhantes entao correntes, observando que nio havia diferensa entre os dois Servigos quan- to a dieta ¢ ao cuidado geral com as pacientes. Em 1846, uma comissio nomeada para investigar o assunto atribuia a predomindncia da doenga no Primeiro Servigo a da- nnos causados pelo cxame grosseiro feito pelos estudantes de Medicina, que reccbiam seu treino cm obstetricia apenas no Primziro Servigo. Semmelweis observa, refutando esta opinido, que: a) 05 danos resultantes naturalmente do processo de parto 19 muito mais extensos que os que poderiam ser causados por tum exame grosseiro; 6) as parteiras que recebiam seu treino no Segundo Servigo examinavam suas pacientes quase do mesmo modo, mas sem 08 mesos efeitos nocivos; ¢) quando, em con- seqiiéncia do relatério da comissio, 0 nimero dos estudantes de Medicina ficou diminuido da metade ¢ os seus exames das mulheres foram reduzidos a0 minimo, a mortalidade, depois de breve declinio, elevou-se a niveis ainda mais altos do que antes. | | | | | | | INVENGKO E VERIFICAGAO 15 Varias explicagdes psicolégicas tinham sido tentadas. Uma delas lembrava que 0 Primeiro Servigo estava disposto de tal modo que um padre, levando tiltimo sacramento a uma mo- ribunda, tinha que passar por cinco enfermarias antes de alcan- car 0 quarto da doente: 0 aparecimento do padre, precedido por um auxiliar soando uma campainha, produziria um efeito ater- rador ¢ debilitante nas pacientes dessas enfermarias ¢ as trans- formavam em vitimas provaveis da febre. No Segundo Servigo no havia esse fator prejudicial porque 0 padre tinha acesso direto a0 quarto da doente. Para verificar esta conjetura, Sem- melweis convenceu a0 padre de tomar um outro caminho ¢ de no soar a campainha, chegando ao quarto da doente silencio- samente ¢ sem scr observado. Mas a mortalidade no Primeiro Servigo no diminuiu. Observaram ainda a Semmelweis que no Primeiro Servico as mulheres no parto ficavam deitadas de costas e no Segundo Servigo, de lado. Mesmo achando a idéia inverossimil, decidiu, “como um ndufrago se agarra a uma palha”, verificar se a diferenga de posigéo poderia ser significante. “Introduzindo o uuso da posigo lateral no Primeiro Servigo a mortalidade nfo se alterou Finalmente, no comego de 1847, um acidente deu a Sem- melweis a chave decisiva para a solucéo do problema, Um seu colega, Kolletschka, feriu-se no dedo com o bisturi de um estu- dante ‘que realizava uma autépsia e morteu depois de uma agonia em que se revelaram os mesmos sintomas observados ras vitimas da febre puerperal. Apesar de nessa época nao estar ainda reconhecido 0 papel desempenhado nas infecgdes pelos microrganismos, Semmelweis compreendeu que “a matéria cadavérica”, introduzida na cor- rente sangiinea de Kolletschka pelo bisturi, € que causara a doenga fatal do’ seu colega. As semelhangas entre o curso da doenga de Kolletschka ¢ @ das mulheres em sua clinica levaram Semmelweis & conclusio de que suas pacientes morreram da mesma espécie de envenenamento do sangue: ele, seus colegas, € os estudantes tinham sido os vefculos do material infeccioso, pois vinham as enfermarias logo apés realizarem dissecacoes na sala de autépsia ¢ examinavam as mulheres em trabalho de parto depois de lavarem as maos apenas superficialmente, muitas ve- 2e5 retendo o cheiro nauseante. ‘Novamente, Semmelweis submeteu sua idéia a um teste. Raciocinou que, se estivesse certo, entdo a febre puerperal pode- 16 FuLosoria Da CieNCIA NATURAL ria ser prevenida pela destruigdo quimica do material infeccioso aderido is mos. Ordenou entdo que todos os estudantes lavas- sem suas mos numa solucdo de cal clorada antes de procede- rem a qualquer exame. A mortalidade pela febre logo comecou a decrescer, caindo em 1848 a 1,27 por cento no Prim Servigo, enquanto que no Segundo era de 1,33. Tustificando ainda mais sua idéia ou sua hipétese, como também diremos, Semmelweis observou que ela explicava o fato de ser a mortalidade do Segundo Servigo mais baixa: 14 as pa- cientes eram socorridas por parteiras. cujo treino no inclufa instrugio anatémica por dissecacao dos cadiveres. E a hipétese também explicava a menor mortalidade entre cos casos de “partos de rua”: as mulheres que jé chegavam trazendo seus bebés ao colo raramente eram examinadas apés 1 admissao e tinham assim melhor sorte de escapar & infeccao. Finalmente, a hipotese explicava o fato de s6 serem vitimas de febre os recém-nascidos cujas mées tinham contraido a doen- ga durante 0 trabalho de parto, pois entéo a infecgao podia ser transmitida & crianga antes do nascimento, através da cor- rente sangiiinea comum 4 mie e ao filho, 0 que era impossivel quando a mie permanecia sadia, Ulteriores experiéncias clinicas levaram Semmelweis em pouco tempo a alargar sua hipétese. Numa ocasido, por exem- plo, ele e seus colaboradores, apés desinfetarem cuidadosamente fas mios, cxaminaram primeio uma mulher em trabalho de parto que softia de cancer cervical purulento; passaram em se- guida a examinar doze outras mulheres na mesma sala, limi- tando-se a lavar as maos sem repetir a desinfecgéo. Onze das doze pacientes morreram de febre puerperal. Semmelweis con- cluiu gue essa febre podia ser causada nao somente por material cadavérico, mas também por “matéria pitrida retitada de um organismo vivo”. AS ETAPAS FUNDAMENTAIS PARA VERIFICAR UMA HIPOTESE ‘Vimos como, procurando a causa x febre puerperal, Sem- melweis examinou virias hipSteses que haviam sido sugeridas como possiveis respostas. Porque essas hipdteses se apresenta- ram em primeiro lugar é uma questo debatida que iremos INVENGKO E VERIFICAGRO 7 considerar mais tarde. De inicio, vamos examinar como uma hipétese, uma vez proposta, € verificada, [As vezes, 0 procedimento € direto. E 0 que aconteceu com as conjeturas de que as diferencas em aglomeragio, em ‘dieta ou em atengdo explicariam a diferenga de mortalidade entre 0 dois Scrvigos de Maternidade. Como Semmelweis observou, ‘elas ndo concordavam com os fatos imediatamente observaveis. Nao existiam tais diferencas entre os Servigos; as hipéteses fo- ram portanto rejeitadas como falsas. Mas habitualmente a verificagdo nio é tio simples tio direta. Consideremos, por exemplo, a hipétese que atribufa falta mortalidade no Primeiro Servigo ao temor evocado pelo aparecimento do padre com o seu auxiliar. Nao sendo a inten- sidade do temor nem seu efeito sobre a febre diretamente deter- minados, como 0 so a diferenga em aglomeragio ¢ em dicta, Semmelweis usou um método indireto de verificagao. Pergun- tou a si mesmo: Existe algum efcito facilmente observavel que focorra caso seja a hipétese verdadeira? E raciocinou: Se a hipétese fosse verdadeira, entdo uma mudanga apropriada no procedimento do padre deveria ser acompanhada de um declinio nos casos fatais. Verificou esta implicacéo por uma simples experiéncia e achando que ela era falsa rejeitou a hip6tese. ‘Analogamente, para verificar a conjetura sobre @ posigdo das mulheres durante o parto, raciocinou: Se a conjetura fosse verdadeira, entdio a adocao da posigio lateral no Primeiro Ser~ vigo reduziria a mortalidade. Outra vez a experiéncia mostrou set falsa a implicagio ¢ a conjetura foi afastada Nos dois iltimos casos a verificagao baseava-se no seguinte argumento: Se a hip6tese considerada, que designaremos por H, for verdadeira, entdio certos eventos obscrvaveis (e.8., declinio nna mortalidade) deverao ocorrer sob certas circunstancias espe- cificadas (e.¢., se 0 padre se abstiver de passar pelas enferma- rias ou se o parto se realizar em posigdo lateral); mais breve- mente, se H & verdadeira, também 0 € J, sendo 1 um enunciado que descreve as ocorréncias observaveis a serem esperadas. £ ‘conveniente dizer que J € inferido de H, ou implicado por H, € que I & uma implicagio verificdvel da hipétese H. (Mais tarde daremos uma descrigdo mais apurada da relagéo entre I’ H.) Nesses dois tiltimos exemplos a experigncia mostrou ser falsa a implicagao verificavel e por isso a hipétese foi rejeitada. 18 FILosoFta DA CifNcta NATURAL O raciocinio que conduziu a rejeigéo le ser esquematizado da seguinte maneira: Hesse post ‘ssquematizad Se H & verdadviro, entio 1 também 0 & 2) Mas_(como mostra a evidéneia) Info € verda WH ako € verdadeiro Qualquer argumento desta forma, chamado modus tollens em Légica,? € dedutivamente vélido, isto é, se suas premissas (as sentengas acima da linha horizontal) sao verdadeiras, entéo sua concluséo (a sentenga abaixo da linha horizontal) & infalwv2 mente verdadcira. Logo, se as premissas de a) ja estiverem convenientemente estabelecidas, a hipdtese H que esta sendo ve- fificada deve ser certamente rejeitada. _Consideremos agora 0 caso em que a observagio ou a ex. periéncia apéia a implicacdo 1. Da, hipétese de ser a febre puer- peral um envenenamento do sangue provocado pela matéria cadavérica, Semmelweis inferiu que medidas antissépticas apro- priadas reduziriam 05 casos fatais da doenga. Desta vez, a ‘experiéncia mostrou ser verdadeira a implicagio. Mas esse re- sultado favoravel nao provava conclusivamente que a hipotese fosse verdadeira, pois 0 argumento subjacente teria a forma: Se H & verdadeiro, entfo I umbém o 6. 4) (Como mostra a evidéncia) 1 € verdadciro, WE verdadeir. Este modo de raciocinar, chamado a faldcia de afirmagao do conseqilente, € dedutivamente nio-vélido, isto é, sua con- cluséo pode ser falsa ainda que suas premissas sejam verda- deiras.* E isso € de fato exemplificado pela propria experiéacia de Semmelweis. A versio inicial de sua interpretagio da febre Puerperal como uma forma de envenenamento do sangue men- cionava a infecs#o com matéria cadavérica como sendo a iinica fonte da docnca; corretamente ele raciocinara que, se essa hip6- tese fosse verdadeira, entao a destrui¢do das particulas cadavéri- cas pela antissepsia deveria reduzir a mortalidade. Além disso, 2, Para deaes, vr outro volume da colegto; W, Salmon, Le (Mo Ep 4243 Ge Gadocto para portant publende nd 6 to’ Lésiee Por Hae eatery Rae sen) nes puncaun we il let S/Ner Sainon, Lobe, pp) 2139. (N. do Rs Pp. 4447 da etigho bra) INVENGKO E VERIFICAGAO 19 sua experiéncia mostrou ser verdadeira a implicagéo. Logo, nes- te caso, as premissas de 6) eram ambas verdadeiras. Contudo, sua hipétese era falsa, pois como ele descobriu depois, a febre podia também ser produzida por material putrido proveniente de ‘organismos vivos. ‘Assim, o resultado favoravel de uma verificagio, i. €., 0 fato de set achada verdadeira a implicagio inferida de uma hipétese, no prova que a hipdtese seja verdadeira. Mesmo que muitas implicagées de uma hipétese tenham sido sustentadas por verificagdes cuidadosas, ainda assim a hipétese pode ser falsa. © argumento seguinte também comete a falicia de afirmar 0 consegiiente: também 0 S80 Ie, Ine voy I Ig sho_verdadeieos Tss0 ainda pode ser ilustrado pela hipétese final de Sem- melweis em sua primeira versio, Como jé indicamos anterior- mente, da sua hipétese também se tiram as implicagdes de que entre 0s casos de parto de rua, admitidos no Primeiro Servigo, ‘4 mortalidade pela febre puerperal deveria ser menor que a média para o Servigo © que as criangas cujas maes tinham escapado da doenca no contraiam a febre puerperal. Essas implicagdes também eram amparadas pela evidéncia — apesar de set falsa a primeira versio da hipétese final. ‘Mas, observando que o resultado favoravel de no importa ‘quantas verificages nao fornece prova conclusiva para uma hi pétese, ndo devemos pensar que ao obter de um certo nimero de verificagées um resultado favordvel estaremos como se no tivéssemos feito verificacao alguma. Pois cada uma de nossas verificagées poderia ter tido um resultado desfavorivel e pode- ria ter levado a rejeicéo da hip6tese. Um conjunto de resultados favordveis obtidos a0 verificarmos diferentes implicagdes Ia, vaya de uma hipOtese mostra que essa hipétese foi confirm: da no que diz respeito aquelas implicagSes particulares; ainda que este resultado ndo produza prova completa da hipétese, fornece pelo menos certo suporte, alguma corroboragao ou con- firmagio dela, Em que medida isso é feito dependeré de varios aspectos da hipétese e dos dados coihidos pela verificago. Esses aspectos serio examinados no capftulo 4, 20 FILOSOFIA DA CifNCIA NATURAL Veiamos agora outro exemplot que nos fard prestar aten- Go a outros aspectos da investigacio cientifca, Como ja se sabia no tempo de Galileu, e provavelmente muito mais cedo, qualquer bomba aspirante que retira dgua de Jum pogo por meio de um émbolo mével no interior de um cilindro no consegue clevar a Agua a mais de cerca de 10,5 ‘metros acima da superficie livre do poco. Galileu ficou intri- gado por esta limitagZo ¢ sugeriu uma explicacio apressada para cla, Depois da’ morte de Galileu, seu discipulo Torrie celli prop6s uma outra resposta, Argumentou que a Terra esta envolvida por um oceano de ar que, em virtude do seu peso, ‘exerce pressdo sobre 0 seu fundo, ¢ que é essa pressio sobre a superficie livre do pogo que forga a agua a subir quando se levanta 0 émbolo. Aqguela altura maxima de cerea de 10,5 metros para a coluna d’égua sobrelevada da simplesmente uma medida de pressio exercida pela atmosfera sobre a superfi livre do pogo. Sendo evidentemente impossfvel determinar por inspecio direta ou por observacdo se 2 suposicdo é correta, Torricelli pro- curou verificé-la indiretamente. Raciocinou que se fosse ver- dadeira sua conjetura, entéo a pressio atmosférica seria tam- bém capaz de suportar uma coluna proporcionalmente menor de mercirio; com efeito, sendo a densidade do mercirio cerca de 14 vezes menor que a da gua, a altura da coluna de mer- a ser da ordem de 10,5/14 metros, isto é, da ordem de 75 em. Verificou essa implicagao por meio de um aparelho engenhiosamente simples, que era, de fato, 0 bardmetro de mer- curio. O poco de agua é substituido por uma cuba contendo mercirio, 0 cano de sucgao da bomba é substituido por um tubo de vidro fechado numa das extremidades. Enchendo com- pletamente 0 tubo com mercirio e obturando a extremidade aberta com 0 dedo polegar, Torricelli inverteu-o, submergindo no mercitio a extremidade tapada pelo polegar. Retirando em seguida o polegar, a coluna de mercirio caiu a cerca de 75 ém, tal como previra 40 seter encontrarh oma expoigio mai completa dese exemple no caitil 4 40 tivo asleane Ge 1. B Conan Sconce and: Common Sone (New ‘Haven niet Pen, ssi. Una cata de Toure gi cle deo Rips ea teiiienrio dla, Siem oo tin tenemunno vst da enya de Pivede Dime, Schase erm Wr Fe Mape, 4) Sour Book in Physics (Camordae Harvard University Pres, 1963). pp. 90.7: INVENGKO E VERIFICAGRO 21 Outra implicagao dessa hipétese foi anotada por Pascal, raciocinando que, se 0 merctirio no bardmetro de Torricelli exer- ce sobre 0 mercirio da cuba presséo igual A do ar, entio a altura da coluna deve diminuir & medida que cresce a altitude, pois a atmosfera vai-se tornando menor. A pedido de Pascal, essa implicagao foi verificada pelo seu cunhado, Périer, que mediu a altura da coluna de mercério no barémetro a0 pé de Puy-de-Déme, uma montanha com 1,600 metros de altura, pa- ra em seguida transportar cuidadosamente 0 aparelho até o cimo, 1é repetindo a medida, enquanto um bardmetro de con trole ficava em baixo sob a superviséo de um assistente. Périer achou que a coluna de mercirio levada ao topo da montanha se encurtara de mais de oito centimetros enquanto a do bard- metro de controle permanecera invariével durante todo o dia, (© PAPEL DA INDUGAO NA INVESTIGAGAO CIENTIFICA ‘Vimos algumas investigagées cientificas nas quais um pro- bblema foi enfrentado ensaiando respostas em forma de hipéteses, que cram entio verificadas derivando delas implicagdes apro- priadas a serem confrontadas com a observagéo ou com a ¢x- Pov Mas como se chega pela primsira vez a hipéteses apropriae das? Assegura-se as vezes que elas sio inferidas de dados an- teriormente coligidos por meio de um procedimento chamado inferéncia indutiva, para distingui-lo da inferéncia dedutiva, da qual difere, em pontos importantes. ‘Num argumento dedutivamente vélido, a conclusio se rela- ciona com as premissas de tal modo que, sendo estas verda- deiras, entao a concluséo é infalivelmente também verdadeica, Essa exigéncia fica satisfeita, por exemplo, por qualquer argu- mento da seguinte forma: Se p, entio @ 4 iio € 0 caso. B no € 0 caso. Uma répida reflexdo mostra que sejam quais forem os enuncia- dos particulares que ocupem os lugares marcados pelas letras ‘p’ cq’, a conclusio sera certamente verdadeira se as premissas © forem, De fato, nosso esquema representa a forma de argu- mento chamada modus tollens, a que j& nos referimos. 22 FILosoria pA CitNCIA NATURAL Outro tipo de inferéncia dedutivamente valida est ilustrado por este exemplo: Quaiquer sal de sédio, quando colocado aa cham de um Bieo se Bunsen, forme’ a chama amare Fste_pedago esa! de_pedra’€-sal-de s6dio Fate pedago”de_sal-de_pedrs, quando” poxlo-na chamna tm bleo de Bunsen, toraré a chama amaela, Diz-se muitas vezes que os argumentos dessa espécie levam dd geral (aqui a premissa sobre todos os sais de sédio) a0 particular (uma conclusio sobre 0 pedaso particular de sal de pedra). Ao contririo, as inferéncias indutivas levam de pre- missas sobre casos particulares a uma conclusio que tem cardter de lei geral ou de principio. Por exemplo, partindo das premissas de que cada uma das amostras particulares de varios, sais de sédio que foram colocados na chama de Bunsen tor- naram a chama amarela, a inferéncia indutiva levaria A conclusio geral de que todos os sais de sédio, quando colocados na cha- ma de um bico de Bunsen, tornam a chama amarcla. Mas é Sbvio, neste caso, que a verdade das premissas ndo garante a verdade da conclusao; pois ainda que todas as amostras de sais de s6dio examinadas até agora tenham tornado amarela a chama de Bunsen, é perfeitamente possivel que novas espé- cies de sais de s6dio sejam encontradas sem estarem de acordo com essa generalizacao. Além disso, mesmo algumas das espé cies de sal de sédio j& examinadas com resultado positivo po- etiam deixar de satisfazer & generalizagio sob condisoes fisicas especiais (tal como campos magnéticos intensos ou coisa pa- ecida), em que ainda nao foram examinadas. Por esse_mo- tivo, diz-se freqientemente que as premissas de uma inferéncia dutiva. implicam a conclusio apenas com maior ou menor probabilidade, enquanto as premissas de uma inferéncia de- dutiva implicam a concluso com certeza. A idéia de que, em investigacdo cientifica, a inferénci indutiva parte de dados previamente coligidos para chegar a principios gerais apropriados, est claramente exposta no se- guinte resumo do procedimento ideal de um cientista: Se tentéstemos imaginar como: um espirito de poder € al- tance sobre-humanes, mas normal quanto aot procestos Togicos de seu pensamento, ... usaria o método cientifico, diriamos o seguinte: Primeiro, todos ot fatos seriam obser: Invencko B VeRIFICAGKO 23 vedos ¢ registrados, sem selerdo ou estimativa @ priori Guanto A importincia felativa’ deles. Segundo, 0s. faton Sacrvados registrados seriam analisados, comparados, © Clasificados, sem outras hipdteses ou postulados além dos hecessariamente envolvides na Idgica do pensamento. Ter Ceiro, dessa andlise dos fatos seriam tiradas, indutivamente, Speneralizagdes quanto As suas relagGes, classificatdrias ov Gausais. Quarto, pesquisa adicionalpoderia ser tanto de- Gutiva como. induliva, empregando inferéncias a partir das feneralizagbes previamente estabelecidas. Esta passagem distingue quatro etapas numa investigacio cientifica ideal: 1) observacio e registro de todos os fatos, 2) andlise e classificagio desses fatos, 3) derivagio indutiva Ge generalizagées. a partir deles © 4) verificagéo adicional das gencralizagées. Admite expressamente que as duas primeiras ttapas nao fagam uso de qualquer estimative. ou hipdtese, res- trigdo que parece ter sido imposta pela crenga de que idéias preconcebidas prejudicariam a isengdo necesséria a objetividade Cientifica da investigagio. ‘A concepgio expressa no trecho citado — que eu cha- marei de concepedo indutiva estreita da investigacao cientifica — é insustentavel por varias razSes, que vamos tesumir para ampliar ¢ suplementar o que jé observamos sobre 0 proceder cientifico. Primeiro, uma investigacio cientifica como esta apresen- tada munca poderia desenvolver-se. Mesmo sua primeira etapa nunca seria executada, pois uma colecdo de rodos os fatos teria, por assim dizer, que aguardar o fim do mundo; nem mesmo poderia ser colecionada a totalidade de todos os fatos até agora, pois eles so em nimero infinito © de infinita variedade. ‘Teriamos, por exemplo, que examinar todos os gréos de areia em todos os desertos e em todas as praias, registrando-Ihes 1 forma, 0 peso, a composigéo quimica, as distincias mituas, as temperaturas constantemente variando a distincia ao centro da lua também variando constantemente? Terfamos que regis- trar os pensamentos flutuantes que atravessam nossos espiritos nesse proceder fastidioso? As formas das nuvens ¢ as cores cambiantes do céu? A construgio ¢ o fabricante do nosso equi- pamento para registro? Nossas proprias biografias e as dos $ AB, Wolle, “anctiona) Reopomles", em The Trend of Eeonomin, ou 5S. Peer ia CoE hth A Rea Te oth". as 24 FILOSOFIA DA CifNcIA NATURAL rnoss0s companheiros de investigac#o? Tudo isso e tanta coisa mais pertencem, afinal de contas, & “totalidade dos fatos até Dir-se-G talvez que tudo quanto se requer na primeira fase € que sejam colecionados todos os fatos relevantes, Mas rele- vvantes para qué? Ainda que 0 autor no o mencione, suponha- ‘mos que a investigacdo se restrinja a um problema bem deter ado, Nao deverfamos entio comegar colecionando todos os fatos — ou melhor, todos os fatos disponiveis — relevantes para o problema? A pergunta ndo tem sentido claro. Sem- melweis procurava resolver um problema bem definido ¢ en- tretanto colecionava dados os mais diversos nas diferentes etapas de sua investigacio. E estava certo: pois os dados particulares a serem colecionados néo esto determinados pelo problema em estudo mas pela tentativa razoavel de resposta que o invest gador formula em forma de conjetura ou hipétese. Se se con- jetura que o aumento de mortalidade pela febre puerperal é devido ao aparecimento aterrador do padre com a. campainha anunciadora da morte, o que se torna relevante € colecionar dados sobre as conseqliéncias do haver sido suprimida essa apa- igo; mas seré totalmente irrelevante procurar saber 0 que aconteceria se os doutores © 05 estudantes desinfetassem suas ‘méos antes de examinar os pacientes. Esses dados é que pas- saram a ser relevantes relativamente & hipotese da contaminagio eventual, para a qual os dados anteriores se tornaram irrele- vantes. “Fatos" ou dados empiricos s6 podem ser qualificados co- mo logicamente relevantes ou irrelevantes relativamente a uma dada hipétese, e nao relativamente a um dado problema. Suponhamos agora que uma hipdtese H tenha sido propos- ta como tentativa de resposta a um problema em pesquisa: Que espécie de dados serio relevantes para H? Nossos exemplos an- teriores sugerem uma resposta: Um fato é relevante para H se sua ocorréncia ou nio-ocorréncia puder ser inferida de H. To- memos, por exemplo, a hipstese de Torricelli. Como vimos, Pascal inferiu dela que a coluna de mercdrio num barémetro deve ir diminuindo medida que subimos na atmosfera. Por- tanto, qualquer verificagio de que assim acontece num parti- cular é relevante para’a hipétese, mas igualmente relevante teria sido achar que a coluna de mercirio permanecera esta- cionéria ou que tivera diminufdo para depois crescer durante @ ascensio, pois tais fatos refutariam a implicago tirada por INvENGKO E VERIFICAGKO 25 Pascal e, portanto, a hipStese de Torricelli. Diremos que os dados da primeira espécie so positivantente, ou favoravelmente, relevantes © que os da tiltima espécie so negativamente, ou des” favoravelmente, relevantes. Em suma, o preceito de que os dados devem ser reunidos sem a guia de uma hipdtese preliminar sobre as conexses entre 05 fatos em estudo € autodestruidor e, certamente, ndo é seguido na investigacao cientifica. Ao contrario, & necessério tentar hi- péteses que déem uma direcdo A investigagio cientifica. Essas hipdteses € que determinam, entre outras ‘coisas, quais dados devem ser coligidos a um certo momento da investigagéo. Tnteressa notar que os cientistas sociais ao tentarem veri- ficar uma hip6tese usando 0 vasto arquivo ce fatos registrados pelos Servigos de Recenseamento, ou por outras organizagdes coletoras de dados, ficam 3s vezes desapontados por ndo en- contrarem registro algum dos valores de uma variavel que de- sempenha um papel central na hipétese. Essa observa¢io nao visa, bem entendido, criticar o sistema usado para 0 censo: sem divida alguma as pessoas encarregadas de fazé-lo procuram selecionar fatos que possam ser relevantes para futuras hip6- teses; visa_simplesmente ilustrar a_impossibilidade de coligir “todos 0s dados relevantes” sem conhecimento da hipotese para a qual os dados devem ter relevancia Critica semelhante pode ser feita A segunda etapa consi derada no trecho citado. Um conjunto de “fatos” empiricos pode ser analisado € classificado de muitas maneiras diferentes, das quais a maioria nenhuma luz trard ao que se pretende atin- gi com uma determinada investigacio, Semmelweis poderia ter classificado as mulheres nas enfermarias da maternidade con- forme a idade, residéncia, estado civil, habitos dietéticos ete.; nada disso forneceria qualquer indicag4o quanto & probabilidade de uma paciente vir a ser vitima da febre puerperal. O que Scmmelweis procurava eram critérios de classificagio que fos- sem vinculados aquela prodabilidade de um modo significativo; assim era, como ele acabou achando, o de separar as mulheres examinadas por pessoal médico com mos contaminadas; pois era com esta caracterfstica ou com a correspondente classe de pacientes que estava associada a alta mortalidade pela febre. Portanto, para que uma maneira particular de anal classificar os dados empiricos possa conduzir a uma explicagio dos fendmenos correspondentes € necessirio fundamenti-la em 26 FILOSOFIA DA CIENCIA NATURAL hipSteses sobre como esto esses fendmenos correlacionados; sem essas hip6teses, a anilise ¢ a classificagio slo cegas. Essas nossas reflexdes criticas sobre as duas primeiras eta- pas da investigagio tal como foi descrito na passagem citada jnvalidam também a idéia de que as hipéteses s6 sio introdu- zidas na terceira etapa, pela inferéncia indutiva a partir de dados previamente coligidos. Convém, entretanto, acrescentar algumas observagdes sobre 0 assunto, ‘A inducio € néo raro concebida como um método para passat dos fatos observados aos principios gerais correspondentes por meio de regras mecanicamente aplicdveis. Segundo esta Cconcepgio, as regras da inferéncia indutiva forneceriam ciino- nes eficazes para a descoberta cientifica; a indugdo seria um procedimento mecinico andlogo & familiar rotina para multipli- cago de inteiros, que leva, em nimero finito de passos prede- terminados ¢ executveis mecanicamente, ao correspondente pro- duto, Na realidade, nao se dispée até’ agora de nenhum pro- cedimento geral © mecénico de inducao; se assim nio fosse, Gificilmente se compreenderia, por exemplo, por que ficou até hoje sem solugdo 0 ultra-estudado problema da causa do cincer. Nem ha que esperar pela descoberta de um tal procedimento. Pois — para mencionar apenas uma razio — as hipdteses ¢ teorias cientificas sio habitualmente formuladas em térmos que absolutamente nao ocorrem na descricgo dos dados empiricos fem que esto baseadas e que elas servem para explicar. Por exemplo, as teorias sObre a estrutura atémica ¢ subatOmica da matéria contém térmos como ““étomo”, “eléctron”, “proton”, “néutron”, “fungao psi” ec.; entretanto, estio bascadas em da- dos fornecidos pelo laboratério sObre ‘os espectros de varios gases, rastros deixados em cdmaras de muvem e de bolha, aspec~ tos quantitativos de reagées quimicas etc. cuja descricéo pode ser feita sem emprégo daqueles “térmos te6ricos”. As regras de induséo do tipo aqui considerado teriam portanto que for- necer uma rotina mec&nica para construir, sObre a base dos dados encontrados, uma hip6tese ou uma teoria formulada em térmos de conceites inteiramente novos, nunca usados na des- ctigio daqueles dados. Certamente nenhuma regra de proceder mecéinico poderia realizar isso. Poderia haver, por exemplo, ‘uma regra geral que, aplicada aos dados de que dispunha Ga- lileu referentes 20 limite de cficiéncia das bombas aspirantes, produzisse uma hip6tese baseada no conceito de um oceano de ar? Invencio & VERIFICAGhO 27 Certo, em situagdes especiais ¢ relativamente simples, po- demos reccitar um procedimento mecinico para “inferit” indu- tivamente uma hipétese a partir de certos dados. Por exemplo, uma ver medido 0 comprimento de uma barra de cobre em diferentes temperaturas, os resultantes pares de valores asso- ciados podem ser represcntados num piano, mediante um sis- tema de coordenadas, por pontos, por onde se fara passar uma curva seguindo uma tegra particular de interpolagao. A curva assim obtida representa graficamente uma hipdtese geral quan- titativa, que exprime o comprimento da barra em funcdo de sua temperatura. Mas, note-se, essa hipétese niio contém qualquer termo novo, podendo ser expressa em termos dos conceitos de comprimento ¢ temperatura que foram usados na descrigao dos dads. Além disso, a escotha de valores “associados” de comprimento e temperatura, como dados, ja pressupde uma hipétese diretriz, a de que a cada valor de temperatura esteja associado exatamente um valor de comprimento da barra de cobre, ou, em outras palavras, que o comprimento da barra seja fungdo apenas de sua temperatura. A rotina mecinica da interpolagio serve apenas para selecionar uma funcao particular como a apropriada, Este ponto é importante; pois suponhamos que em lugar de uma barra de cobre estejamos examinando gis nitrogénio encerrado num reservatério obturado por um émboto mével e que mecamos 0 volume ocupado pelo gis em diferentes temperaturas. Se quiséssemos usar 0 mesmo procedimento para extrair dos dados colhidos uma hipétese geral representando 0 volume do gas como fungao de sua temperatura, fracassariamos, porque o volume de um gis é funcio tanto da temperatura como da pressio exercida sobre ele, de modo que, & mesma temperatura, um dado gis pode ter diferentes volumes, Assim,’ mesmo nesses casos simples, os procedimentos me- efnicos para a constracéo de uma hipdtese executam apenas parte do trabalho, pois eles pressupteud uma hipétese antece- Gente, menos especifica (i. ¢., que uma certa variavel fisica seja fungao apenas de uma outra varidvel fisica), que no pode ser obtida pelo mesmo procedimento. Nao existem, portanto, “regras de inducdo” aplicdveis em eral, mediante as quais hipéteses ou teorias possam ser-me- canicamente derivadas ou inferidas dos dados empfticos. A transigao dos dados & teoria requer uma imaginacao criadora. As hipéteses ¢ as teorias cientificas nao so derivadas dos fatos observados, mas inventadas com o fim de explicé-los. Cons- 28 FILOsoFIA DA CifNctA NATURAL tituem, se assim se pode dizer, palpites sobre os nexos que possam ser obtidos entre os fendmenos em estudo, sobre as tniformidades ¢ estruturas que possam estar por baixo da ocor- réncia deles. “Palpites felizes” dessa natureza requerem um grande engenho, especialmente quando encerram um afastamento Tadical dos _modos correntes de pensamento cientifico, como aconteccu, por exemplo, com a teoria da relatividade € teoria dos quanta, Naturalmente, esse esforco inventive %6 pode ser beneficiado por uma familiaridade completa com 0 conhecimento corrente do campo em questo. Um principiante dificilmente fara uma descoberta cientifica importante, pois 0 provavel que as idéias que venham a Ihe ocorrer sejam simples duplica- tas do que ja foi tentado antes ou entrem em conflito com teorias ou fatos bem estabelecidos de que ele tem conhecimento. ‘Sem embargo, os caminhos pelos quais se chega a palpites cientificos proveitosos diferem muito de qualquer processo de inferéncia sistematica. Por exemplo, 0 quimico Kekulé nos con- ta como, numa noite de 1865, enquanto dormitava diante de sua lareira, achou a solugio para o problema de esbocar uma formula estrutural para a molécula de benzeno, apés té-la pro- curado sem sucesso por muito tempo. Olhando para as chamas pareceu-lhe ver dtomos dancando em filas sinuosas. Subitamen- te, uma dessas filas formou um anel, como se fora uma serpente segurando seu proprio rabo © posse a girar vertiginosamente como se estivesse cacoando dele. Kekulé acordou numa exul- taco: nele surgira a idéia, agora famosa e familiar, de repre~ sentar a estrutura molecular do benzeno por um ane! hexagonal. E passou o resto da noite trabalhando para tirar as conseqiién- cias dessa hipétese.? Esta iltima informagao nos traz de volta & questio da ob- jetividade cientifica. No seu esforgo para achar uma solugéo do ‘od Ulonaras ha W., Parken 1847) thesneh‘cpiion Ke Popper ie feice a inses" ¢-teovkas ei com Sattar en por exempo, 0 enaio “helene, Conecaret and. Reputation eNeeo Conssines oud Repuntions (News, York © Loadies Base Books Bhai na Nera "A AW’ Goat "erent a Fie hua limtado® tem que uxar um “gracedimeato_grandemente modified insets Ge tabalto” (pe 480 do ‘eaie cast ma rota 3). 7) Ch. as trarerigier opus tlaelo de Kekulé em A. diy a Mi! (Ronde; “Gerald Duckmarth Cow 848), Bile WeL, Bevel” The Aor) Scene Inesizaion, 3 ot (Londres i’ Asien, ids 1987), 9. 8 6 Ba caracterizcio for daa Phiceopig of tes Ingactive, Scene. 2 " Tg Rell wien fase nena" etme Spare da Yau INVENGAO B VERIFICAGKO 29 seu problema, o cientista pode soltar as rédeas de sua imaginago © 0 rumo do seu pensamento criador pode ser influenciado até por nogées cientificamente discutiveis. Ao estudar o movimento Planetario, por exemplo, Kepler foi inspirado por seu interesse numa doutrina mistica sobre os nimeros e por um apaixonado desejo de demonstrat a miisica das esferas. Nada disso impede que a objetividade cientifica fique salvaguardada. Pois as hi- péteses ¢ as teorias que podem ser livremente inventadas ¢ li- ‘vremente propostas nao podem ser avcitas se ni passarem pe- Jo escrutinio critic, especialmente pela verificagao das. impli cages capazes de screm obscrvadas ou experimentadas. Nao € sem interesse observar que a imaginacdo ¢ a livre invengdo desempenham um papel igualmente importante nas Aisciplinas cujos resultados sao legitimados exclusivamente pelo raciocinio dedutivo; por exemplo, em Matemitica, Pois as re- gras da inferéncia dedutiva tampouco oferecem regras mocéni- as para a descoberta. Como ficou ilustrado acima pelo nosso enunciado do modus tollens, essas regras se exprimem habitual- mente em forma de esquemas gerais, cujos casos particulares séio argumentos dedutivamente vilidos. Na verdade, tais esque- mas determinam um modo de chegarmos a uma conseqiiéncia 6gica partindo de premissas dadas. Mas para qualquer conjun- to de premissas que possam ser dadas, as regras de inferéncia dedutiva fornecem uma infinidade de’ conclusoes validamente dedutiveis. Tomemos, por exemplo, a simples regra represen- tada pelo seguinte esquema ° Powe Ele nos diz, com efeito, que ¢1 proposi¢io que p € 0 caso, se~ gue-se que p ot g & 0 caso, onde p e.g podem ser quaisquer proposigées. O vocibulo ‘ou’ deve ser aqui entendido no sen- {ido “nao exclusivo”, de modo que ‘p ou q’ equivale a ‘ou p ou q ou p © q conjuntamente’. E claro que sendo verdadsira a premissa de um argumento deste tipo, também o € a conclusio; logo, € vilido qualquer argumento da forma especificada. Mas, isolada, esta regra nos permite inferir uma infinidade de conse- gliéncias diferentes a partir de qualquer premissa. Assim, de ‘a Lua néo tem atmosfera’ ela nos autoriza inferir qualquer enuneiado da forma ‘a Lua nao tem atmosfera, ou q’, onde ‘q’ ode ser substitufdo por qualquer enunciado. seja ele falso ou 30 FILOSOFIA DA CIENCIA NATURAL verdadeiro; por exemplo, ‘a atmosfera da Lua € muito ténue’, ‘a Lua nao € habitada’, “o ouro é mais denso que a prata’, ‘a prata € mais densa que 0 ouro’ etc. (Nao é sem interesse © fio € dificil provar que se pode formar uma infinidade de enun- tiados diferentes em portugués; cada um deles pode ser posto no local da varivel ‘g’.) E,’naturalmente, outras regras de inferéncia dedutiva acrescentam novos enunciados derivaveis de uma ou mais premissas. Portanto, para um dado conjunto de premissas, as regras de deducdo nao permitem achar uma ditetriz para ‘nossos procedimentos inferenciais. Nao isolam um enunciado nico como “a” conclusio a ser tirada das nossas Premissas. Nem nos dizem como obter conclusoes_interessan- {es ou sistematicamente importantes; nao fornecem uma rotina mecinica para, por exemplo, em Matemética tirar dos pos- tulados teoremas significativos. A descoberta em Matematica de teoremas importantes e fecundos como a descoberta de teo- rias importantes e fecundas na ciéncia empirica requerem enge- ‘ano inventivo; pede capacidade adivinhatoria, imaginativa € re- trospectiva. Mas aqui também, os interesses da objetividade cien- tifica ficam salvaguardados pela exigéncia de uma validacao objetiva para tais conjeturas. Em Matemética, isso quer dizer prova por demonstracéo dedutiva a partir dos axiomas. E para provar que é verdadeira ou falsa uma_proposigéo matematica Apresentada como conjetura € necessirio muitas vezes possuir engenho inventivo do mais alto nivel; as regras de inferéncia Gedutiva em mesmo fornecem uma linha geral a seguir nessas provas. Antes, desempenham apenas um modesto papel de ser- irem como critérios de legitimidade para os argumentos ofere- sidos como provas: um argumento constitui uma prova mate~ rdtica valida quando caminha dos axiomas até 0 teorema pro- jposto por uma cadeia de passos inferenciais € cada um dos quais € vilido de acordo com uma das regras da inferéncia dedutiva. Verificar se um dado argumento é uma prova vélida neste sen- tido é bem uma tarefa puramente mecanica. Nio se chega ao conhecimento cientfico pela aplicagio de algum procedimento de inferéncia indutiva a dados coligidos anteriormente mas, antes, pelo que & freqUlentemente chamado “o método da hipétesc”, i. ., pela invengao de hipéteses como tentativas de resposta a0 problema em estudo © submissio des- sas hip6teses & verificacio empirica. Parte dessa_verificagio consistird em apurar se a hipdtese se ajusta a0 que ja fora esta- belecido antes de sua formulagao; outra parte. em derivar novas InveNgio & VERIFIcAGio 31 implicagées para submeté-tas a observagées e experiéncias apro- Priadas. Como jf notamos anteriormente, uma werfieagio mu. merosa, com resultados inteiramente favordveis, nao estabelece a hipétese conclusivamente; fornece apenas um suporte mais ou menos sélido para cla. Portanto, embora nio seja indutiva no sentido estrito que examinamos com certa mintcia, a investi- gacdo cientifica é indutiva num sentido mais amplo, na medida fem que accita hipéteses baseadas em dados que nao fornecem para ela evidéncia dedutivamente conclusiva, mas Ihe confe- Fem apenas um “suporte indutivo” ou confirmagao mais ou me nos forte. As “regras de inducio” devem ser concebidas, em analogia om as rcpas de deduto, como cinonts de vaieacie € nio propriamente de descoberta. Longe de gerarem uma hi- pétese que dé uma razao de certos dados empiricos, essas regras Dressupdem que além desses dados empiricos que formam as ‘premissas” de um “argumento indutivo” seja dada também a hip6tese proposta como sua “conclusio”. As regras de indugao forneceriam entio critérios para a legitimidade do argumento, De acordo com certas teorias da indugdo, essas regras determi. nariam a forga do apoio fornecido pelos dados a hipdtese © do- veriam exprimir esse apoio em termos de probabilidades, Nos capitulos 3 © 4 vamos considerar os varios fatores que afetam 0 apoio indutivo € a accitabilidade das hipéteses cientificas. 3 A VERIFICACAO DE UMA HIPOTESE: SUA LOGICA E SUA FORCA EXPERIMENTAIS VERIFICAGQOES EXPERIMENTAIS YS. Passemos agora a um exame mais cerrado do raciocinio tem que se basciam as verificacdes cientificas ¢ das conclusoes {que podem ser tiradas de scus resultados. Como antes, usare- mos © vordbulo ‘hipdtese’ para nos referirmos a qualquer enun- ciado que esteja sendo verificado, ndo importando que vise des- crever algum fato ou evento particular, ou que procure expri- mir uma lei geral ou alguma proposigio de natureza mais com- plexa. ‘Comecemos com uma simples observagio, & qual teremos que nos referir freqiientemente na discussio ‘subseqiiente: as implicagdes de uma hip6tese tém normalmente um caréter con- dicional; elas nos dizem que, sob determinadas condigdes, ocor- reré um resultado de uma certa espécie. Podem pois ser postas na forma expliitamente condicional seguinte: a) Se se realizarem condigdes da espécie C, entio ocorrerd tum acontecimento da espésie E. Por exemplo, uma das hipéteses consideradas por Semmel- ‘weis conduziu a implicagio Se as pacientes do Primeiro Servigo derem & Iuz em posigio Interal, entdo a mortilidade pela febre puerperal diminuird final era E uma das implicagdes da sua hipétese Se as pessoas que cuidam das mulheres no Primeiro Servigo Tavarem as mios numa solugio de cal clorada, entfo a mortar lidade pela febre puerperal dimin A VeRIFICAGKO DE UMA HiPOTESE 33 Analogamente, as implicagdes da hipétese de Torricelli in- clufam enunciados’ condicionais como Se um barémetro de Torricelli for transportado a altitudes Crescentes, entio. sua coluna de mercirio. diminuira corres. pondentemente de” comprimento. ‘As implicagdes de uma hipétese so pois normalmente im- plicagdes num duplo sentido: sfo enunciados implicados pela hipdtese © so enunciados da forma se-entéo, que, em Légica, sio chamados condicionais ou implicagdes_materiais. Em cada um dos trés exemplos que acabamos de citar, as condigdes C especificadas so tecnologicamente exeqiiveis e de- las podemos portanto dispor a vontade; para realizé-las, temos que controlar um fator (posicao durante o parto; auséncia ou presenga de matéria infectada; altitude da leitura barométrica) Que, de acordo com a hipétese considerada, afeta o fendmeno tem estudo (i.e. incidéncia da febre puerperal nos dois primeiros casos; altura da coluna de meredrio no terceiro). Implicagdes lessa_natureza fornecem uma base para uma verificagdo ow teste experimental, que se resume em produzir as condigdes C e-em observar se E ocorre como est implicado pela hipétese. ‘Muitas das hipdteses cientificas so expressas em termos quantitativos. No caso mais simples, representam 0 valor de uma varidvel quantitativa como uma fungi matemética de ou- tras varidveis. Assim & que a lei clissica, V = ¢.T/P, repre- senta o volume de um gas como funcao de sua temperatura fe de sua pressio (c é um fator constante). Um enunciado lessa espécie pode produzir uma infinidade de implicacdes veri- ficdveis, que, no nosso exemplo, sfo da forma seguinte: se a temperatura do gis é T: e sua pressio é P), entéo seu volume &c.T;/P;. Uma verificagao experimental consiste entio em va- rar os valores das variéveis “independentes” ¢ em observar se a varidvel “dependente” toma os valores implicados pela hipotese. ‘Quando 0 controle experimental & impossivel, quando as condigies C mencionadas na implicagdo no podem ser rea- Jizadas ov variadas pelos meios tecnolégicas disponiveis, entio 1a hipétese deve ser verificada nao experimentalmente, se)a pro- curando, seja esperando os casos em que as condigdes espe- Cificadas sio realizadas pela natureza e observando se E. de fato ocorre. 34 Fitosoria pA CifNctA NATURAL, Diz-se as vezes que na verificagio experimental de uma hip6tese quantitativa somente uma das grandezas ncla mencio- nadas & variada de cada vez, mantendo-se constantes todas as outras condigdes. Mas isso € impossivel. Certo, ao verificarmos a lei dos gases a pressio pode ser variada mantendo-se a tem- peratura constante, ou vice-versa; mas vérias outras circunstin- cias mudario durante 0 processo — talvez a umidade rela- tiva, talvez a intensidade da iluminagdo, talvez 0 campo magné- tico no laboratério etc. — e certamente a distancia entre 0 corpo g28080 e 0 Sol ou a Lua. Nem ha razio para, tanto quanto possivel, tentar manter constantes esses fatores se a experién- cia visa apenas verificar a lei dos gases como foi formulada Pois a lei diz que o volume de um dado corpo gasoso fica completamente determinado por sua temperatura e por sua pressao. Ela implica portanto que todos os outros fatores so “irrelevantes para o volume”, no sentido de que esses fatores ndo afetam 0 volume do gis.’ Permitir que esses outros fatores variem €, portanto, explorar um dominio mais vasto de casos procura das possiveis violacdes da hipdtese que esti sendo verificada. Entretanto, a experimentagdo € usada em cigncia no so- mente como um método de verificacdo, mas, também, como um método de descoberta; e neste outro contexto, como vamos ver agora, a exigéncia da constincia de certos fatores & per- feitamente procedente. 0 uso da experimeniagio como um método de verificagio esté exemplificado pelas experiéncias de Torricelli e de Périer, que foram realizadas justamente para verificar uma hip6tese ja proposta. Mas quando néo existe ainda hipétese formulada, © cientista pode ser levado a comecar por uma estimativa gros- seira ¢ usar entdo a experimentacdo como um guia para chegar 2 uma hipdtese mais precisa. Ao estudar como um peso distende © fio metilico que © sustenta, 0 fisico pode conjeturar que 0 alongamento depends do comprimento inicial do fio, da sua seco, da espécie de metal de que ¢ feito © do peso do corpo suspenso. Pode entio realizar experiéncias para determinar se esses fatores influenciam no alongamento (a experimentacao serve entio como um método de verificago) e, se assim for, © quanto eles afetam a “varidvel dependente” — isto & qual a expresso matematica da dependéncia (a experimentacdo serve entao como método de descoberta). Sabendo que o compri- ‘mento do fio varia também com sua temperatura, 0 experimen- [A VERIFICAGKO DE UMA HiPOTESE 35 tador, antes de tudo, manterd a temperatura constante para eli- minat a influgncia perturbadora desse fator (embora possa, mais tarde, variar sistematicamente a temperatura para averiguat s¢ os valores de certos parmetros, que comparecem na expressio daquela fungao, dependem da temperatura); e nessas experién- cias a uma temperatura constante, variard o fatores que julgar relevantes, um de cada vez, mantendo 0s outros constantes. Apoiado nos resultados assim obtidos, ele tentaré formular ge- neralizagdes que exprimam 0 alongamento em fungao do com- primento inicial, do peso etc; poderé entdo prosseguir para construir uma formula mais geral, que represente 0 alongamento em fungio de todas as variiveis examinadas, Em casos. dessa natureza, a experimentagio serve como método heuristico, como guia para a descoberta de hipdteses, (© que di sentido’ ao principio de manter constantes todos os “fatores relevantes”, salvo um, Mas, naturalmente, 0 maximo ‘que pode ser feito € manter constantes, salvo um, aqueles fa- tores que se acredita serem “relevantes” no sentido de afetarem © fendmeno em estudo: & sempre possivel que tenham ficado despercebidos outros fatores, também importantes. uma das caracteristicas notiveis da Ciéncia Natural, ¢ uma de suas grandes vantagens metodol6gicas, que suas hip6- teses admitem em geral verificagdo experimental. Mas no se pode dizer que seja caracteristica distintiva de todas as Ciéncias Naturais ¢ exclusivamente delas, formando uma linha diviséria entre a Ciéncia Natural e a Ciéncia Social. Pois verificagées experimentais também sfo usadas em Psicologia e, posto que mais raramente, em Sociologia. Além disso, 0 alcance da ve- rificagdo experimental cresce firmemente com 0 avango da tec- nologia indispensivel. De resto, nem todas as hipdteses nas Cigncias Naturais sio verificdveis experimentalmente. Por exem- plo, a ei formulada por Leavitt ¢ Shapley para as flutuagoes petiddicas no brilho de um certo tipo de estrelas variiveis, as chamadas Cefeidas: quanto maior o perfodo P de uma dessas estrelas, i-¢., 0 ititervalo de tempo entre dois estados sucessivos de miximo brilho, maior ¢ a sua luminosidade intrinseca; em expresso exata M = — (a+ b. logP), onde M é a magnitude da estrela, por definigo inversamente proporcional ao seu brilho. ‘A lei implica dedutivamente um sem-nGmero de sentencas que servitiam para verificé-la, dando a grandeza de uma Cefeida correspondente 20 valor particular do seu perfodo, por exemplo, 5,3 dias ou 17,5 dias. Mas Cefeidas com esses periodos deter- 36 FILOSOFIA DA CiENCIA NATURAL rminados néio podem ser produzidas & vontade; logo, a lei nfo pode ser verificada por experimentacdo. Antes, o astronomo tem que olhar para o céu & procura d= novas Cefeidas para averiguar se a grandeza eo periodo das que for encontrando obedecem ou néo a lei presumida, (© PAPEL DAS HIPOTESES AUXILIARES Dissemos antes que implicagdes so “derivadas” ou “infe- ridas” da hipdtese a ser verificada. Assim dito, porém, 0 que se obtém € somente uma grosseira indicagdo da relago que cexiste entre uma hip6tese e as sentencas que servem para veri- icd-la. E bem verdade que em alguns casos. pode-se inferir cedutivamente de uma hipétese certos enunciados condicionais, que podem servir & sua verificagdo: a lei de Leavitt-Shapley, por cexemplo, implica sentencas da forma ‘Se s € uma Cefeida’com um perfodo de tantos dias, entZo sua magnitude sera tal c tal. Mas, freqiientemente, 2 “derivagdo” de uma implicagéo confrontivel com a experiéncia é menos simples ¢ conciusiva, Tomemos, por cxemplo, a hipétese semmelweisiana de que a febre puerperal é causada por contaminagdo com material infec- tado e consideremos a sua implicagdo que se 0 pessoal cuidan- do das pacientes lavar as mios numa solucdo de’ sal clorada, entio ficard reduzida a mortalidade pela febre. Este enunciado ido decorre dedutivamente apenas da hipétese; pressupde tam- bém a premissa que a cal clorada destruiré 0 material infectado, ‘9 que nao ¢ feito por agua e sabdo. Esta premissa, tacitamente admitida no argumento, desempenha o papel do que chamaremos suposigdo auxiliar ou hipdtese auxiliar a0 derivarmos da hips- tese de Semmelweis a sentenca que se confronta com os fatos. Logo, nao estamos autorizados a asseverar aqui que, se @ hi- potese H é verdadcira, entéo deve ser também verdadeira a im- plicagao I, mas somente que, sc H ¢ a hip6tese auxiliar so ambas verdadeiras, ento também 0 é 1. Confianga em hipéteses auxiliares constitui, como veremos, a regra € nao a excecéo na verificagao de hipéteses cientificas; ¢ isso tem uma consequéncia importante para decidirmos se um resultado desfavordvel, i... ‘que mostra I ser falso, pode ser considerado como refutacéo da hip6tese em investigacio. Se H & suficiente para implicar 1 e se os resultados em- piticos mostram que I é falsa, entio H deve ser qualificada ‘A VERIFICAGKO DE UMA HiP6TESE 37 como falsa, de acordo com o argumento modus tollens (a Mas quando J decorre de H em conjungao com outra ou mai hipéteses auxiliares A, 0 esquema (a) deve ser substituido pe- lo seguinte: Se He A sho ambas verdadciras, entfo I também 0 € b) Mas. (como _most/a a evidéncia) 1” no é verdadeira Te A nig 30 ambas verdadeiras Assim, da verificagio de ser I falsa, podemos somente in- ferir que ou a hipétese H ou uma das suposigées inclufdas em A deve ser falsa; portanto, a verificagio nio fornece razBes Conclusivas para rejeitar H. Por exemplo, sc a medida antis- séptica tomada por Semmelweis nao fosse acompanhada por um declinio da mortalidade, « hipétese semmelweisiana ainda assim poderia ser verdadzira: 0 resultado negativo da verificagdo po- Geria ser devido a ineficdicia como amtisséptico da solugdo de «cal clorada, Endo se trata de mera possibilidade abstrata. O astro- nomo Tycho Brahe, cujas observagdes apuradas fornecem a base empitica para as leis de Kepler, rejeitou a concepso coper- hicana de que a Terra se move ¢m torno do Sol, dando, entre uteas, as seguintes razdes: se a hipdtese de Copérnico fosse verdadsira, a direcéo segundo a qual uma estrela fixa seria vista por um observador terrestre a mesma hora do dia iria gradualmente mudando; pois no decurso da viagem anual da Terra em torno do Sol, a estrela iria sendo observada de uma pposico que varia constantemente — assim como uma crianga hum carrossel observa um espectador de uma posico que vai mudando © portanto o vé segundo uma direcao que também Vai mudando. Mais exatamente, a reta que passa pelo obser- vador ¢ pela estrela variaria periodicamente entre dois extre- mos, correspondentes a posigdes opostas na Srbita da Terra em torno do Sol, © Angulo subentendido por essas posigdes € fa chamada paralaxe anual da estrela; quanto mais longe da Terra »stiver a estrela, tanto menor seré sua paralaxe. Brahe, que fez suas observagdes antes da introducdo do telesc6pio, procurou ‘com 08 seus instrumentos mais precisos uma confirmacdo desses “movimentos paraléticos” das estrelas fixas — ¢ mio achou rnenhuma. Rejeitou por isso a hipétese de que a Terra se move. Mas a dedusao de que as estrelas fixas tenham movi- mentos paraliticos observavels s6 pode ser feita a partir da 38 FILOSOFIA DA CifNCtA NATURAL hipétese de Copétnico com auxilio da suposigo de que elas estejam tao préximas da Terra que seus movimentos paralaticos tenhiam amplitude suficiente para serem observados com os instrumentos. Brahe no ignorava que estava fazendo essa su- posicdo auxiliar, mas acreditava ter raz6es para julgi-la verda- deira; dai sua tejeicdo da hipétese de Copémnico. Mais tarde ficou’ provado que Brahe se enganara: mesmo as estrelas fixas, mais préximas esto muitissimo mais longe do que ele supunha, de modo que as medidas de paralaxe exigem telesc6pios pode- ros0s. ¢ técnicas ultraprecisas. Somente em 1838 veio a ser realizada a primeira medida universalmente accita de uma pa- ralaxe estelar. ‘A. significagao das hipdteses auvitiares vai além. Supo- nhamos que uma hipétese H seja verv‘icada mediante uma im- plicagio ‘Se C entéo E’ que decorreu de He de um conjunto A de hipsteses auxiliares, A verificacdo se reduz entio a constatar se E ocorre ow no numa situacio em que, tanto quanto saiba © investigador, estdo realizadas as condigies C. Se de fato nao fr este 0 caso — se por exemplo o equipamento usado estiver defeituoso ou ndo for suficientemente sensivel — entio E pod no ocorrer mesmo que H ¢ A scjam ambas verdadeiras. Por essa razao, entre as hipdteses auxiliares pressupostas pela vori- ficagao deve-se incluir a de que a situacdo inicial satisfaca as condigées doterminadas C. Este ponto € particularmente importante quando a hipétese em exame jé foi vitoriosa em provas anteriores ¢ & parte essen- cial de um sistema mais vasto de hipéteses mutuamente ligadas, também apoiado por miltipla evidéncia. E provavel que em tal caso seja feito um esforco para justificar a ndo-ocorrés de E mostrando que algumas das condicdes C nio estavam sa- tisfetas. : Como exemplo, consideremos a hipétese de que as cargas létricas tém uma estrutura atomistica ou sejam todas miliplos inteitos da carga do aitomo de eletricidacie, 0 eléctron. Fssa hik pétese recebew apoio impressionante das experigncias fsa por R. A. Millikan, a partir de 1909. Nelas, as cargas elétricas de goticulas isoladas de um tiquido tal como éleo ou merctrio cram determinadas medindo as. velocidades das goticulas 20 cafrem no ar sob a influéncia da gravidade ou ao subirem sob a influéncia de um campo clétrico oposto. Millikan achou que todas as cargas ou cram iguais a, ou eram pequenos. miltiplos ‘A VERIFICAGKO DE UMA HIPOTESE 39) de, uma certa carga minima fundamental que ele, em confor- midade com a hipétese, identificou como sendo a carga do cléctron. Baseado em numerosas medidas cuidadosamente fei- tas encontrou como seu valor em unidades cletrostiticas 4,774 X 10°, Esta hipbtese foi logo contestada pelo fisico Ehrenhaft em Viena, que anunciou ter repetido a experigncia de Millikan fe encontrado cargas consideravelmente menores que a carga ele- trdnica determinada por este. Discutindo os resultados de Ehrenhaft,! Millikan sugeriu virias fontes provaveis de errus (ice., violagoes das condigbes experimentais) que poderiam dar conta dos resultados aparentemente discordantes de Ehrenhaft evaporacéo durante a observacio, fazendo diminuir 0 peso da goticula; formaco de um pelicula de dxido nas_goticulas de Imeredrio usadas em algumas das experiéncias de Ehrenhaft; in- fluéncia perturbadora das particulas de pocira suspensas no ar; afastamento da particula em relagdo ao foco da Juneta usada para observi-la; modificagio da forma esférica pressuposta, quando as goticulas so muito pequenas; crros inevitaveis na Cronometragem dos movimentos de pequenas particulas. Refe- rindo-se a duas particulas aberrantes observadas por um outro investigador, que usara gotas de 6leo, Millikan conclui: “A Gnica interpretagao possivel ento para 0 comportamento dessas duas particulas,.. era que... no eram esferas de dleo”, mas par- fculas de poeira (pp. 170, 169). Millikan afirma ainda que os resultados de repetigécs mais precisas de sua propria experién: cia estavam todos em acordo essencial com 0 resultado ante- riormente anunciado por cle. Ehrenhaft continuow por muitos anos a defender ¢ multiplicar os resultados com que pretendia estabelecer a existéncia de cargas subeletrOnicas; mas em geral esses resultados no puderam ser reproduzidos por outros fisicos, de modo que a concepeao atomistica da carga elétrica foi man- tida. © valor numérico achado por Millikan para a carga ele- trdnica, entretanto, foi mais tarde reconhecido como sendo ligeiramente pequeno; o desvio foi atribuido a um erro numa das hipdteses auxiliares do préprio Millikan: ele usara um valor demasiado pequeno para a viscosidade do ar nos calculos que fizera com as informagies fornecidas pela goticula de éleo! 1 Ver capitulo VII de R.A. Mitkas, The Electron (Chicsso;, The ‘Daiveriy of Chicigo Press 1917). “Rempressto com inttodugto de. WM 40 FILosoFIa DA CiENCIA NATURAL VERIFICAGOES CRUCIAIS As observagées procedentes so importantes também para a idgia de verificaga0 crucial, que pode ser rapidamente des- crita como segue: suponhamos que Hi e Hs sejam duas hipd- teses rrivais sobre o mesmo assunto, igualmente bem apoiadas até agora pela experiéncia, sem que Se possa dizer portanto que f evidéncia disponivel favoreca mais a uma que a outra, Uma decisdo entre as duas poderd entéo ser obtida se se conceber uma situagio para a qual Hy ¢ Ha predigam resultados incom- pativeis; i-c., sc, para uma determinada condicao C da expe riéncia, decorrer ‘da primeira hipétese a implicagao ‘Se C entio Ey’ ¢ da segunda hipstese ‘Sz C entao Ex’, onde Ex ¢ Ex sejam esultados que se excluem mutuamente. I de presumir que a realizagio da experiéncia refute uma das hipdteses € sustente a outra Um exemplo chissico & o experimento feito por Foucault para decidir entre duas concepgdes antagdnicas sobre a natu- reza da luz. Uma, proposta por Huyghens ¢ desenvolvida por Fresnel ¢ Young, sustentava que a uz consiste em ondas trans- verssis propagando-se num meio clistico, o éter; a outra era ‘8 concepeao corpuscular de Newton, sceundo a qual a luz é constituida de particulas extremamente pequenas que se mo- vem em alta velocidade. Ambas as concepcées permitiam con- cluir que os “raios” de luz obedecem as leis da ai tilinea, da reflexao e da refragio. Mas a conce; implicava que a luz caminha mais depressa no ar que na agua, enquanto que a corpuscular levava a conclusdo oposta, Em 1850, Foucault conseguiu realizar um experimento em que as velocidades da luz no ar ¢ na égua eram diretamente compara- das. As imagens de duas fontes luminosas puntiformes eram formadas mediante raios Iuminosos que passavam através da digua e através do ar, soparadamente, antes de serem refletidos por um espelho girando em alta velocidade. Conforme a velo- jade da luz fosse maior ou menor no ar que na 4gua, a imagem da primeira fonte iria or & dircita ou a esquerda da imagem da segunda fonte. As implicagdes antag6nicas con- frontadas com a expcriéncia podem portanto ser brevemente formuladas do seguinte modo: ‘se se realiza o experimento dz Foucault, entéo a primeira imagem aparece a dircita da se- inda imagem’ € ‘se se realiza 0 experimento de Foucault, en- ‘A VERIFICAGAO DE UMA HiPOTESE 4a to a primeira imagem aparece & esquerda da segunda imagem’ © experiment mostrou ser verdadeira a primeira dessas im- Plicages. Esse resultado foi amplamente considerado como uma re- futacao definitiva da concepcdo corpuscular e uma justificagdo decisiva da concepgio ondulatéria. Mas esse julgamento, em- bora perfeitamente natural, superestimava a forca da experién- cia. Pois 0 enunciado de que a luz caminha mais depressa na gua do que no ar nio decorre simplesmente da concep¢ao geral de que os raios de luz sejam correntes de particulas; isoladamente a suposicio € demasiado indefinida para gerat qualquer conseqiiéncia quantitativa. Implicagdes como as leis da refiexdo € da refragdo © o enunciado sobre as velocidades da luz no arc na agua s6 poderdo ser derivadas quando concepcao corpuscular for suplementada por suposigdes espe~ cificas sobre 0 movimento dos corpiisculos ¢ sobre a influéncia exercida neles pelo meio ambiente. Tais suposigdes foram de fato formuladas explicitamente por Newton; ¢ ao fazé-lo ele estabeleceu uma teoria® precisa sobre a propagacdo da luz. Des- sa totalidade de principios teéricos basicos é que decorrem as conseqiiéncias experimentalmente verificdveis, tal como a ave- riguada por Foucault. Analogamente, a concepso ondulatéria foi formulada como uma teoria baseada num conjunto de su- pposigdes espectficas sobre ondas de éter nos diferentes meios Splicos; ¢ novamente é este conjunto de princfpios tedricos que implica’ as leis da reflexfo e da refragio 0 enunciado de que & velocidade da luz € maior no ar do que na agua. Conse- Qlientemente — admitindo a verdade de todas as outras hip6- teses auxiliares — 0 resultado do experimento de Foucault 36 nos habilita a inferir que nem todas as suposigdes bésicas ow principios da teoria corpuscular podem ser verdadeiros — que pelo menos um deles deve ser falso. Mas no sabemos qual eles deve ser rejeitado. O que sabemos € que a concepsao corpuscular da luz no pode ser mantida sem uma modificacdo de sua forma, sem introdugdo de um outro conjunto de leis basicas. E, de fato, em 1905, Einstein propds uma nova versto da concepedo corpuscular na sua teoria dos quanta de luz, ou fotons, como vieram a ser chamados. A evidéncia citada por ele em apoio da sua teoria inclula um experimento realizado 2A forma es tongs dar woras serdo melner examinades 9 canto 6 42 FILosoria DA CIENCIA NATURAL por Lenard em 1903. Binstein caracterizou-o como um “segundo experimento crucial” para as concepedes ondulatéria e corpus- cular, que segundo cle “eliminava” a clissica tooria ondula- {6ria, na qual, em virtude dos trabalhos de Maxwell ¢ Hertz, a nogéo de vibragées elasticas do éter fora substituida pela de ondas eletromagnéticas transversais. O experimento de Lenard, {que envolvia 0 efcito fotoelétrico, podia ser considerado como verificagio de duas implicagdes antag6nicas quanto & energia Iuminosa que uma fonte puntiforme P pode transmitir, por uni dade de tempo, a uma pequena tela colocada perpendicular- mente aos raios de luz. Segundo a teoria cldssica, essa energia diminuiré continuadamente para zero & medida que a tela se afastar do ponto P; na teoria fotdnica ela deve ser pelo menos igual 3 transportada por um tinico f6ton — a menos que nenhum foton atinja a tela, caso em que a energia recebida seré nula; no havera portanto diminuigdo continua para zero, O experi- mento de Lenard apoiou esta Gitima alternativa. Mas, outra vez, a concepcio ondulatéria no foi definitivamente refutada; © resultado experimental mostrou apenas set necessirio modi ficar de algum modo o sistema das suposicies bisicas da teoria ondulatéria. De fato, o que Eintein fez foi procurar modificar a teoria clissica o menos possivel.? Em suma, um experimento do tipo aqui exemplificado nao pode refutar estritamente uma de duas hipéteses rivais. Mas também no pode “provar” ou estabelecer definitiva- mente a outra; pois, como foi observado de modo geral na 28 parte do capitulo 2, as hipéteses ou teorias cientificas ndo podem ser provadas conclusivamente por qualquer conjunto de dados disponiveis, por mais acurado ¢ numeroso que cle seja. Isso & particularmente Obvio para hipéteses ou teorias que afir- mam ou implicam leis gerais tanto para um processo que nfo diretamente observavel — como no caso das teorias rivais da Juz — como para um fendmeno mais facilmente acessivel & observacio ¢ & medida, como a queda livre. A lei de Galileu, por exemplo, refere-se a todos 0s casos de queda livre no pas- sado, no presente e no futuro, ao passo que toda evidéncia rele- vante de que se dispde em qualquer época esté limitada ao con- junto de casos — todos eles pertencendo a0 passado — em 3 ste exemplo est6 dictito demoradamente no capinilo # dP. Eek, putts io tenstatad GTN Hee Hah, Spits, Bons A VeRIFICAGKO DE UMA Hip6TESE 43 que medidas cuidadosas foram feitas. E mesmo que a lei de Galileu tivesse sido rigorosamente satisfeita em todos 0 casos observados, no se teria obviamente excluido a possibitidade de certos casos no observados no passado ¢ no futuro ndo a seguirem. Em suma, a experiéncia mais cuidadosa ¢ mais repe- tida nfo’ pode provar uma de duas hipéteses nem refutar a outca. Neste sentido estrito, uma experiéncia crucial é impos- sivel na cigncia.t Mas uma experiéncia como a de Foucault ou a de Lenard pode ser crucial num sentido menos rigoroso, mais pritico: pode denunciar uma de duas teorias em con- flito como seriamente inadequada e apoiar fortemente a teoria rival, exercendo, por isso, uma inftuéncia decisiva sobre o rumo subseqiiente tomado pela teoria e pela experimentagao. Hiréreses “ap Hoc” Quando a mancira particular de verificar uma hipétese H pressupde enunciados auxiliares A1, Az, ---, Aa — i-e., quando estes so usados como premissas’adicionais ao se derivar de Ha implicagio relevante 1 — entio, como se viu antes, um resultado negativo, mostrando que J é falsa, diz apenas que H fou uma das hipoteses auxiliares deve ser falsa e que algo deve ser mudado nesse conjunto de sentencas para que ele se ajuste a0 resultado da verificacao, quer modificando ou abandonando completamente H, quer alterando o sistema de hipéteses auxilia- res. Em principio, pode-se sempre reter H, mesmo em face de resultados seriamente adversos, desde que se queira rever as hip6teses auniliares de um modo suficientemente radical, ainda que trabalhoso. Mas a ciéncia nao esté interessada em proteger suas hipéteses ou suas teorias a qualquer prego — e tem boas razées para isso, Consideremos um exemplo. Antes de Tor- ricelli introduzir sua concepcdo da pressio atmosférica, expli- cava-se 0 comportamento das bombas aspirantes admitindo que fa natureza tem horror a0 vacuo € que, portanto, a dgua sobe pelo cano da bomba para encher 0 vacuo criado pela clevagio do émbolo. A mesma idéia servia também para explicar di- candi, ye lames cee ge Plas Dubem ie g toadr fee con tradueio de P. 1 Wiener (Prigcton Univeriy” Pres, 1984, Princeton), oles "oreamene cm oO, Preacandys unaio aes, Los de 44 FILosoria pa CifNCIA NATURAL versos outros fendmenos. Quando Pascal escreveu a Périer pe- dindo-the para executar a experiéncia de Puy-de-Déme, acres- centou que o resultado esperado seria uma refutagio “decisiva” daquela concepcio: “Se acontccer que a altura do azougue for menor no topo que na base da meatanha.... sera necessirio concluir que 0 peso © a pressio do ar sao a tinica causa da suspensio do azougue € néo a aversio ao vacuo: pois nenhuma divida existe de que hd muito mais ar pesando sobre o pi de uma montanha do que sobre o seu cume € ninguém pode dizer que a natureza tenha mais horror ao véevo ao pé de uma ‘montanha do que no seu cume.”> Mas a tiltima observacao indi- ca justamente a maneira de salvar a concepsao de um horror vacui em face dos resultados de Péricr. Pois estes s6 consti- tuiam uma evidéncia decisiva contra aquela concepc.io admitindo também que a intensidade do horror nao depende da altitude. Para reconcitiar a evidéncia aparentemente contraria de Périer com a idéia de um horror vacui basta introduzit em vez. daquela a hip6tese auxiliar de que a aversdo ao vicuo decresee quando 1 altitude aumenta. Essa suposicio ndo é logicamente absur- da nem patentemente falsa e sim discutivel do ponto de vista cientifico. Pois seria introduzida ad hoc — i.e., com o ‘nico ropésito de salvar uma hipétese scriamente ameacada por uma evidéncia adversa; nao seria invocada para outros resultados achados e prevavelmente nao levaria a nenhuma implicaca adicional. Ao contrério, a hipdtese da pressao atmosférica con- dduz a outras implicagdes, como a mencionada por Pascal de, que se um baldo parcialmente inflado for transportado ao topo da montanha Ié ele ficaré mais inflado. Nos meados do século xvit um grupo de fisicos, os ple- nistas, sustentava que o vécuo néo poderia existir na naturez para salvar esta idéia face & experiéncia de Torricelli, um deles aventou a hipdtese ad hoc de que no bardmetro 0 mercirio ficava suspenso no teto do tubo de vidro por um fio invisivel chamado “funiculus”. De acordo com uma teoria inicialmente muito ttl, desenvolvida no comego do século xvi, uma subs- tancia chamada flog{stico escapava dos metais durante a com- bbustdo. Esta concepsao teve de ser abandonada quando La- voisier mostrou experimentalmente que 0 produto final do pro- 5 Exaigo da carta de Pascal detada de 15 de norembeo de 1647, em J. H. Bee ANG. Spier ‘ead, The Phyucal Treats of Pascal (Sova York Cosma Univensy Piesn 1937), pe 10h ‘A Veniricagio DE UMA HiP6TEsE 45 esso de combustio pesava mais que o metal inicial. Ainda assim, alguns adeptos obstinados da teoria do flogistico pro- curaram reconcilid-la com os resultados de Lavoisier propondo a hipotese ad hoc de que o flogistico teria peso negativo, de modo que sua perda aumentaria 0 peso do residue. ‘Nao esquecamos, entretanto, que se, com 0 recuo do tempo, torna-se aparentemente fécil recusar certas sugestées do pas- sado como hipéteses ad hioc, pode ser muito dificil julgar uma hipdtese proposta num contexto contemporiineo. Nao existe de fato critério preciso para caracterizar as hipSteses ad hoc, se bem que as questdes sugeridas anteriormente fornecam alguma orientacio: a hipétese € proposta apenas com o fim de salvar luma concepciio corrente contra a evidéncia adversa, ou dé razio também a outtos fendmenos gerando implicagées. significati- vas? Importa finalmente observar que, introduzindo hipdteses restritivas para reconciliar certa concep¢ao basica com uma no- va evidéncia, o sistema resultante poder tornar-se tio comple- Xo que terii de ser abandonado quando uma concepsio alterna- tiva mais simples for proposta. VERIFICABILIDADE EM PRINCIPIO E SIGNIFICAGRO EMPIRICA Como mostra a discussio precedente, nenhum enunciado ou conjunto de enunciados 7 pode, de modo significativo, ser pro- posto como uma hipétese ow teoria cientifica a menos que seja suscetivel de uma verificagio empirica objetiva, pelo menos “em Principio". Isso equivale a dizer que deve ser possivel derivar de T no sentido lato considerado certas implicagées da forma ‘se se realizarem as condigdes C, entdio ocorrerd o resultado E’ mas essas condigées nao precisam ser realizadas ou tecnologica- mente realiziveis na época em que T & proposto ou entrevisto. Tomemos, por exemplo, a hipdtese de que a distincia percorrida em f segundos por um: corpo caindo livremente a partir do te pouso na vizinhanga da superficie da Lua é s = 89r cm. Dela decorre dedutivamente que as distincias percorridas por esse corpo em 1, 2, 3, ... segundos serio 89, 376, 801, ... centi- metros. A hipétese € portanto verificavel em principio, embora seja atualmente impossivel realizar a verficagio descrita, Mas se um enunciado ou um conjunto de enunciados nao for verificével pelo menos em principio, isto é em outras pala- 46 FILOSOFIA DA CIENCIA NATURAL ‘vras, se néo possuir implicagio alguma confrontével com a ex- periéncia, entao no poderd ser proposto ou acothido como uma teoria ou hipotese cientifica, pois nenhum dado empitico pode estar de acordo ou em desacordo com ele. Neste caso, nao tem apoio algum nos fendmenos empiricos; falta-lhe, como di- rremos, significaco empirica. Considere-se, por exemplo, a opi- nido de que @ mtua atragéo gravitacional dos corpos fisicos seja uma manifestagdo de certos “apetites ou tendéncias natu- rais” inerentes a esses corpos, como 0 amor, € que tornam “inte- ligiveis e possiveis os movimentos naturais’deles”.® Que impli- cagées podem ser derivadas dessa interpretacao dos fenémenos gravitacionais? Atendendo a certos aspectos caracteristicos do amor no sentido que nos é familiar, essa opinigo parece impli- car que a afinidade gravitacional seria um fendmeno seletivo: nem todo par de corpos fisicos se atrairia mutuamente. Nem seria a intensidade da afinidade de um corpo por um outro sempre igual a deste por aquele, nem dependeria de um modo significativo das massas dos corpos ou das distincias entre eles. Como todas essas conseqiiéncias sio sabidamente falsas, © sen- tido da concepeao considerada no pode ser tal que as implique. Certo, ela pretende apenas que as afinidades naturais subjacen- tes a atracao -gravitacional sfio como 0 amor. Mas, como se pode ver agora claramente, essa assergio ¢ tio evasiva que © lui a derivagdo de qualquer conseqiléncia confrontivel com a experigncia, Nenhum fato empirico pode ser invocado por esta interpretagao; nenhum dado observacional ou experimental pode confirmé-la ou refuté-la. Logo, em particular, nao tem implica- gio concernente aos fendmenos gravitacionais ¢, portanto, nio pode explicar esses fendmenos ou torné-los “inteligiveis”. Para esclarecé-lo ainda melhor, suponhamos que alguém proponha a tese alternativa de que os corpos fisicos se atraem gravitacional- mente uns aos outros ¢ tendem a se mover uns para os outros em virtude de uma tendéncia natural semelhante a0 édio, de uma inclinagao natural para colidir com os outros objetos fisicos, destruindo-os. Haver mancira concebivel de emitir parecer sobre essas opinides conflitantes? F claro que nao, Nenhuma delas conduz a qualquer implicacio verificével; nenhuma discri- minacio empfrica entre clas & possivel. E no se diga que a questéo € “demasiado profunda” para. ser decidida cientifica- 6 Est itl € expoia, por exemmls, es J, F. O'Ben, “Gravity and Love as Using Pcie"? Tae Thuan vo! 3 (956), 10833 a A VERIFICAGKO DE UMA HipOTESE 47 ‘mente: as duas interpretagdes verbalmente antagOnicas simples- mente nao fazem asser¢ao alguma. Portanto, néo faz. sentido perguntar se sao verdadeiras ou falsas ¢ & por isso que a inves- tigagdo cientifica nao pode decidir entre elas. Sao pseudo-hipd- teses: so hipéteses apenas em aparéncia, Niio se esqueca, entretanto, que uma hipétese cientifica em geral s6 conduz a implicagées verificaveis quando combinadas com suposigées auxiliares apropriadas. Assim € que a concep- sao de Torricelli da pressio exercida pelo oceano de at 56 conduz a implicagdes verificaveis precisas supondo que pres- so do ar obedece a leis andlogas i da pressio da agua; é 0 pressuposto, por exemplo, da experiéncia de Puy-de-Déme. Pa- 1a julgarmos se uma hipétese proposta tem ou nfo significagao empirica, devemos indagar portanto quais hipéteses auxiliares estdo explicita ou tacitamente.pressupostas no contexto dado € se, conjuntamente com estas, a hipétese dada admite implicagdes verificdveis (além das que decorrem diretamente das suposigdes. auxiliares). De resto, freqiiontemente uma idéia cientifica é introduzida sob forma que oferece apenas possibilidades limitadas e frégeis de verificacao; com bases nesses testes iniciais iri adquirindo gradativamente uma forma mais definida, mais precisa veri- ficivel de um modo mais diversificado. Por estas razées e por outras que nos levariam muito lon- ge.7 nio é possivel tragar uma linha divis6ria entre hipéteses € teorias que sio verificaveis em principio e. as que no 0 sao Mas embora scja algo vaga, a disting’io mencionada € impor- tante para avaliar a significagdo do potencial explanatério das hipdteses e teorias propostas. 7, questzo & tevada adiante em outro volume desta coleslo: Witlgm Also, Patron of neue fab do: “Tags pan panne rob iscsi, mais corpicta 6 mais tecnica encom no reams “impinge Crier St Coeniive Spnleance’, Promemr snd’ Changi, "on eG. Wenpels Aoecee F Settle Explanation (Nora York: The Piet Fria 1965), 4 CRITERIOS DE CONFIRMACAO E ACEITABILIDADE Como jé notamos anteriormente, um resultado favoriivel das verificagées, ainda que numerosas ¢ exatas, no fornece prova conclusiva para uma hipdtese, mas apenas 0 apoio de lima evidéncia mais ou menos forte, que € a confirmagdo dela, Quo forte € esse suporte & questio que depende de varias caracteristicas da evidéncia, que vamos agora examina: Na avaliagéo do que poderia ser chamado a accitabilidade ou credibilidade cientifica de uma hipétese, um dos fatores mais importantes a ser considerado €, naturalmente, a resisténcia do apoio que Ihe dé a.extensio ¢ 0 carster da evidéncia relevante disponivel. Mas ndo € 0 tinico, como veremos também neste capitulo, Inicialmente, falaremos algo intuitivamente do que torna tum apoio mais ot menos forte, do que aumenta muito ow pouco uma confirmago, do que faz crescer ou decrescer a accitabil dade de uma hipétese e de questOes semelhantes. No fim do capitulo, examinaremos rapidamente se os conceitos aqui intro- duzidosadmitem ou néo uma interpretago quantitativa pre QUANTIDADE, VARIEDADE E PRECISAO DA EVIDENCIA SUSTENTADORA Na auséncia de evidéncia desfavorével, a confirmagio de uma hipétese ser4 normalmente considerada como crescente com numero dos resultados favordveis nas verificacdes. Por exemplo, cada nova varivel Cefcida encontrada com periodo © luminosidade conforme & lei de Leavitt-Shapley serd conside- ada como suporte adicional A evidéncia da lei. Mas, falando Crirérios DE CoNFIRMAGKO"E ACEITABILIDADE 49 de modo geral, o aumento em confirmagio trazido por um novo feaso favoravel vai-se tornando menor & medida que cresce 0 numero. de casos favoriveis previamente estabelecidos. Ha- vendo jé milhares de casos confirmat6rios, a adigio de mais um aumenta pouco a confirmacio, E preciso porém acrestentar: se 0 novo caso for obtido pe- lo mesmo tipo de verificagdo que 0s casos anteriores. Pois se resultar de um outro tipo, a confirmago da hipétese ficaré majorada de um modo significative. A confirmacéo depende no somente da quantidade de evidéncia favorével, mas tam- ‘bém da sua variedade: quanto maior for esta, tanto mais forte 0 apoio resultante. Suponhamos, por exemplo, que a lei em questio seja a de Snell, segundo a qual um raio de luz ao passer de um meio Sptico para outro € retratado na superficie de separacio de tal modo que a relagdo sen a/sen entre os senos dos Angulos de incidéncia e de refracdo & uma constante para qualquer par de meios. E suponhamos que tenham sido feitos trés conjuntos de 100 medidas cada um. No primeiro, os meios ¢ (05 Angulos de incidéncia foram mantidos constantes: em cada experimento 0 raio passava do ar para a égua com um angulo de incidéncia de 30° ¢ 0 Angulo de refragao era medido, tendo sido encontrado 0 mesmo valor para todos os casos. No se- ‘gundo conjunto, os meios eram mantidos 0s mesmos, mas 0 fingulo @ variava, tendo sido encontrado o mesmo valor para sen a/sen B cm todas as medidas. No tercciro conjunto, tanto (0s meios como o fngulo a variavam: 25 pares diferentes de meios eram examinados e para cada par quatro valores diferentes do Angulo a eram usados, tendo a medida de 8 mostrado que para cada par de meios os quatro valores associados de sen a/sen 6 eram iguais, tendo as relagoes associadas com diferentes pares diferentes valores. ‘Cada um desses conjuntos constitui uma classe de resulta- dos favordveis & lei de Snell. Todas as trés classes tm a ‘mesma extensio, Mas a terceira, que oferece a maior variedade de casos, sera considerada como um apoio muito mais forte que a segunda, e esta como um apoio mais forte que a priv meira, Poderia parecer que assim se julga porque no primeiro conjunto nao se fez outra coisa senio repetir 0 mesmo expe- imento, de modo que o resultado positive em todos os 100 casos nio sustenta a hipdtese com mais forca do que jé fazia 0 50 FILOsOFIA Da CiBNCIA NaTURAL resultado dos dois primeiros casos do conjunto. Mas isso é um erro. © que se repetiu 100 vezes nao foi literalmente o mesmo experimento, pois as sucessivas execugdes diferiam em varios aspectos: certamente a distincia, do aparelho a Lua, talvez a temperatura da fonte de luz ou a pressio atmosférica etc. O que se “manteve o mesmo” foi simplesmente certo conjunto de Condigbes, entre as quais determinado Angulo de incidéncia e um particular par de meios. E ainda que as primeiras medidas nessa circunstincias tivessem fornecido © mesmo valor para sen a/sen f, néo € logicamente impossivel que as subsequien- tes, nas mesmas circunstancias, fornecessem outros valores. A repetigio de medidas com resultado favordvel aumentou de fato a confirmacao da hipétese, embora muito menos do que fiz. ram as medidas executadas numa variedade mais ampla de casos. Em geral, as teorias cientificas esto apoiadas por uma variedade consideravel de fatos. Lembremo-nos da confirmagéo encontrada por Semmelweis para a sua hipétese final. Lem- bbremo-nos sobretudo da impressionante confirmagao recebida pela teoria newtoniana do movimento e da gravitagio: dela so deduzidas as leis de queda livre, do péndulo simples, do movimento da Lua em torno da Terra e dos planetas em torno do Sol, das érbitas dos cometas e dos satélites feitos pelo ho- mem, do movimento relativo das estrelas duplas, dos fendmenos das marés e de muitos outros fendmenos, Todos os resultados observacionais © experimentais que estio’ de acordo com essas leis trazem apoio a teoria de Newton. A razio pela qual a diversidade de evidéncia € um fator tao importante na confirmacéo de uma hipdtese pode ser su- Berida pela seguinte consideragio, relativa ao nosso exemplo das vitias verificagdes da lei de Snell. A hipdtese em ques- to — que vamos designar por § — se refere a todos os pares de meios épticos € afirma que para um par qualquer a relagéo sen a/sen B tem o mesmo valor para todos 0s associados Angulos de incidéncia © de refracdo. Quanto mais distribufdas forem as experiéncias sobre essas diversas possibilidades, tanto ‘maior seré a probabilidade de achar um caso desfavoravel se $ for falsa. Pode-se dizer que 0 primeito conjunto de experi- imentos examina uma hipstese mais particular S,, segundo a qual sen.a/sen tem 0 mesmo valor toda vez que 0 raio luminoso passa do at para a dgua com uma incidéncia de 30°. Por- tanto, se S; fosse verdadeira mas S falsa, o primeiro tipo de CriTérios DE CONFIRMAGAO E ACEITABILIDADE st teste no o revelaria. Analogamente, o segundo conjunto de ex- perimentos verifica uma hipdtese Sz, que afirma distintamente mais do que S; mas nao tanto quanto S — a saber, que sen a/sen B tem 0 mesmo valor para todos os angulos a € seus correspondentes angulos @ quando a luz passa do ar para a Agua. Aqui também, se Ss fosse verdadeira mas S falsa, 0 se- gundo tipo de teste nao 0 revelaria, Pode-se, pois, dizer que 6 terceito conjunto de experimentos verifica a lei de Snell mais completamente que os outros dois e que por isso um resultado dele, inteiramente favordvel, fornece um apoio mais forte pa- ra cla Mas nio estamos exagerando a importincia da evidéncia diversificada? Afinal de contas, um aumento de variedade pode as vezes ser considerado como insignificante, justamente por set.incapaz. de elevar a confirmacdo da hipotese. Assim é que no nosso primeiro conjunto de verificagdes da Ici de Snell a variedade poderia ter sido aumentada realizando a experiéncia em locais diferentes, sob diferentes fases da Lua ou por expe- rimentadores com olhos de diferentes cores. Mas procurat tais variagdes poderia ser uma alitude razoavel se nada soubéssemos on soubéssemos extremamente pouco sobre os fatores.capazes de afetarem os fendmenos dpticos, Na época da experiéneia de Puy-de-Déme, por exemplo, os experimentadores nao tinham idéia precisa sobre quais fatores, além da altitude, poderiam afetar 0 comprimento da coluna de mercério no barémetro; quando 0 cunhado de Pascal e seus associados repetiram a experiéncia de Torricelli no alto da montana ¢ acharam que a coluna de mercirio diminuira mais de oito centimetros, decidiram logo refazer a experiéncia em diferentes lugares fem diferentes épocas, mudando as circunstincias de varios mo- dos. Eo proprio Périer quem o diz em seu relatério: “Pro- curei a mesma coisa ainda cinco vezes, com grande preciso, ‘em diferentes locais no alto da montanha; no interior da ca- pela que 14 se acha, fora dela, em pleno vento e abrigado dele, em bom tempo e durante a chuva ¢ o nevoeiro que 3s vezes caiam sobre n6s, tomando sempre a precaugio de eliminar © ar no tubo; em todas essas circunstincias achou-se a mesma altura de azougue. ..; este resultado nos satisfez plenamente.”* ‘© julgamento, portanto, de certas maneiras de variar a evidéncia como importantes e de outras como insignificantes 1 W. Mase, ont, A Source Book tn Phosis, p. 6 92 FILOSOFIA DA CIENCIA NATURAL bbaseia-se em pressupostos — talvez resultantes de pesquisas anteriores — quanto a influéncia provivel dos fatores a serem variados sobre 0 fendmeno a que se refere a hipotese, E, as vezes, quando esses pressupostos so contestados e so por isso introduzidas variacdes experimentais até entio con- sideradas insignificantes, uma descobsrta revolucionaria pode so- brevir. Eo que aconteccu com a recente derrubada de um dos pressupostos basicos da Fisica, o principio da paridade, segundo o qual as leis da natureza so imparciais entre a dircita a esquerda: se um processo fisico & possivel (.e., sc sua ocorréncia nao esta excluida pelas leis da natureza), também © & sua imagem por reflexo (0 processo visto num ‘espelho), onde a dircita ¢ a esquerda sio trocadas. Em 1956, Yang © Lee, que procuravam a razio de alguns resultados experi- mentais enigmiticos sobre particulas elementares, sugeriram atrojadamente que principio de paridade fica violado em certos casos; 0 que nfo tardou a ser claramente confirmado pela experiéncia, As vezes um teste pode ser refeito de modo mais rigoroso © 0 sew resultado mais ponderiivel, aumentando a precisio dos processos de observagdo e de medida que ele usa. Assim & que a hipétese da identidade das massas de inércia e gravita- cional — justificada, por exemplo, pela igualdade da acclera- 40 em queda livre’ de todos os corpos — foi recentemente Feexaminada com métodos extremamente precisos; © os resul- tados, que até agora sustentaram a hipétese, reforgaram enor- memente a confirmagao dela ConrinMacio POR “Novas” IMPLICAGOES Quando uma hipétese se destina a explicar ‘certos fenéme- nos observados, seri naturalmente formulada de tal modo que implique a ocorréncia deles; logo 0 préprio fato a ser explicado constituird evidéncia confirmalGria dela, Mas € altamente de- sejdvel para uma hipétese cientifica que seja também con- firmada por “nova” evidéncia, por fatos que nfo eram conhe- erdadeia PCR ou néo R, F) eUH ou nso HK) As hipoteses as que tém a for nun de, probabiidade etastien poem set, © sho, venicadae pelo exame das freqiiéncias relativas em longas séries de exe- cugdes; ¢, falando em linhas gerais, a confirmagao delas é julgada em termos da proximidade do acordo entre as proba- bilidades hipotéticas as freqiiéncias observadas. A légica de As Lets £ SEU PAPEL NA EXPLICAGAo 85 tais verificagdes, entretanto, apresenta problemas especiais que pedem por um exame, ainda que breve. Consideremos a hipétese, H, de que a probabilidade de langar um 48 com um certo dado seja 0,15; em notagéo con- isa p(4,D) = 0,15, onde D € 0 expetimento fortuito de langar 0 dado em questio. A hipdtese H néo implica dedu- amente quantos ases sairao numa série finita de langamentos, Nao implica, por exemplo, que exatamente em 75 dos primeitos 500 lancamentos sairé um 4s, nem mesmo que o niémero de vezes em que saird um 4s esteja compreendido, digamos, entre 50 100. Logo, se a proporcdo dos ases realmente ‘obtida num grande numero de langamentos diferir consideravelmente de 0,15, isso nio refuta H no sentido em que uma hipdtese de forma cstritamente universal, como “Todos os cisnes. sto brancos”, pode ser refutada por um s6 contra-exemplo, como fo de um cisne préto, em virtude do argumento modus tollens. ‘Analogamente, se numa longa série de lancamentos a proporgtio dos ases aparecer de fato muito préxima de 0,15, isso nfo confirma H no sentido em que uma hipétese fica confirmada pela descoberta de que uma sentenga I, logicamente implicada por ela, é de fato verdadeira, Pois, neste dltimo caso, a hipétese assevera I por implicagao iégica e 0 resultado da verificagao € confirmat6rio no sentido de mostrar que uma certa parte do que a hipétese assevera é de fato verdadeira, Mas nada de estritamente anilogo fica mostrado para H por medidas de fre giiéncia confirmatérias, pois H{ nao assevera por implicagao que a freqiiéncia dos ases numa longa série de langamentos sera certamente muito prOxima de 0,15, ‘Mas embora H no impeca logicamente que a proporgio dos ases obtidos numa longa série de langamentos possa afas- tar-sé grandementa de 0,15, certamente ‘implica logicamente que esses afastamentos sejam altamente improvaveis no sentido estatistico, isto é, que se repetirmos um grande nimero de vezes 0 experimento de executar uma longa séric de langamen- tos (digamos, 1000 deles por série), entéo somente uma dimi ‘nuta proporgio dessas longas séries produziré uma proporcio de ases que difere consideravelmente de 0,15. ‘Admite-se habitualmente que os resultados de sucessivos langamentos de um mesmo dado sejam “estausticamente inde- pendentes”, isto €, grosso modo, que a probabilidade de obter lum 4s num langamento ndo dependa do resultado do langamen- to precedente. A andlise matemética mostra que, juntamente 86 FILOSOFIA DA CIENCIA NATURAL com esta suposigo de independéncia, nossa hipétese H deter- mina dedutivamente a probabilidade estatistica para que a pro- porso dos ases obtidos em m langamentos nao difira de 0,15 além de uma quantidade determinada. Por exemplo, é de 0,976 2 probabilidade para que, numa série de 1000 langamentos, proporcao dos ases obtidos fique entre 0,125 ¢ 0,175; ¢ € de 0,995. a probabilidade para que, em 10000 langamentos, a proporsao dos ases fique entre 0,14 ¢ 0,16, Pode-se dizer entio que, sendo H verdadeira, é praticamente certo que numa longa série de execugdes a proporgio dos ases diferiré muito pouco da probabilidade hipotética 0,15. Logo, se a freqiiéncia obser- vada de um resultado numa longa série nao estiver proxima da probabilidade a cla atribuida por uma hipstese probabilistica, ento € muito provavel que a hipétese seja falsa. Neste caso, a freqiléncia observada conta como uma desconfirmago da hhip6tese ou como reducdo de sua credibilidade; e se for achada uma evidéncia desconfitmadora suficientemente forte, a hipétese seid considerada como praticamente refutada, embora nio logica- mente, ¢ seré por isso rejeitada. Analogamente, uma concor- dancia estreita entre probabilidade hipotética ¢ freqiiéncia obser- vada tenderé a confirmar a hipétese probabilistica e pode levar 2 sua aceitacdo, Para que hipéteses probabilisticas sejam acci- tas ou rejeitadas & luz da evidéncia estatistica fornecida pelas freqiiéncias observadas, ha que apelar para normas apropria- das que determinaréo a) quais desvios das freqiiéncias obser- vadas em relagio as probabilidades enunciadas por uma hip6- tese podem ser considerados como razdes para rejeitar a hipétese eb) com que aproximagio devem as freqiiéncias observadas concordar com a probabilidade hipotética para que se possa aceitar a hipdtese. Essas normas podem ser mais ou menos rigidas conforme a escolha ¢ serio de uma severidade varidvel em geral com 0 contexto ¢ com os objetivos da pesquisa em questo, Em linhas gerais, a severidade dependera da impor- fancia que se dé, no contexto, A conveniéncia de evitar duas espécies possiveis de erro: rejeitar a hipétese que est sendo examinada apesar de scr ela verdadeira e aceité-la apesar de falsa. A importincia deste ponto é particularmente clara quan- do a actitagdo ou a rejeicio da hipdtese serve de base 4 acio pritica. Por exemplo, se a hipdtese se refere a provavel efi- cécia e seguranca de uma nova vacina, a decisio sobre sua aceitagio teré que levar em conta o grau de concordancia dos resultados estatfsticos com as probabilidades especificadas pela AS Leis £ SEU PAPEL NA EXPLICAGaO 87 hipdtese, mas também quo séria seria a conseqiiéncia de acei- tar a hipdtese ¢ agir em conformidade (v. g., inoculando criangas com a vacina) quando de fato cla é falsa ou de rejelitar a hipotese e agir em conseqiiéncia (¢. g., destruindo a vacina modificando ou interrompendo o proceso de _manufatura) quando de fato a hipétese & verdadeira, Os problemas com- plexos que surgem neste contexto formam a matéria da teoria das. verificagées © decisées estatisticas, que se desenvolveu nas décadas recentes baseada na teoria matemética da probabilidade e estatistica’ Muitas leis © muitos prineipios teéricos importantes das Ciéncias Naturais sio de carter probabilistico, embora scjam freqiientemente de forma mais complicada que os simples enun- ciados de probabilidade que discutimos. Por exemplo, de acor- do com a teoria fisica corrente, a desintegracdo. radioativa um fendmeno fortuito em que ‘os étomos de cada elemento radioativo possuem uma probabilidade caracteristica de desinte- grar durante um determinado periodo de tempo. As leis pro- babilisticas correspondentes so usualmente formuladas como enunciados que dio a “vida média” do elemento refetido por cles, Assim, as leis de que a “vida média” do rédio™ € de 1620 anos ¢ a do poliniot € de 3,05 minutos significam set de 1/2 a probabilidade para um tomo de rédio™ desin- tegrar-se dentro de 1620 anos ¢ ser de 1/2 a probabilida para um tomo de poldnio desintegrar-se dentro de 3,03. mi- nutos. De acordo com a interpretagao estatistica citada ante- iormente, 33a leis implicam que, de um grande néimero de dtomos de ridio®® ou de poldnio®® existentes a um certo instante, praticamente a metade continuard existindo ainda 1620 anos ou 3,05 minutos depois; a outra parte desintegrou-se radioativamente. Outro exemplo bem conhecido & 0 das hipd- teses feitas em teoria cinstica para explicar varias uniformida- des no comportamento dos gases, inclusive as leis de Termo- dinimica: sio hipéteses probabilisticas sobre a regularidade es- tatistica nos movimentos ¢ nos choques das moléculas. Convém finalmente acrescentar algumas observagées sobre 1a nocio de lei probabilistica. Poderia parecer que todas as leis cientificas devessem sor classificadas como probabilisticas, de vez ‘York: John’ Wily & Son, Ine. 1957). 88 Fitosoria pa CIENCIA NATURAL, que a evidéncia de apoio achada para clas € sempre a de um conjunto de descobertas e verificagées finita ¢ logicamente in- conclusive, que Ihes pode conferir somente uma probabilidade mais ou menos alta, Mas este argumento esquece que a dis- tingo entre leis de forma universal ¢ leis de forma probabilfs- tica néo se refere & forga do suporte evidencial para os dois tipos de enunciado, mas a forma deles, que reflete o cardter 6gico do que eles afirmam. Uma Ici de forma universal é essencialmente uma afirmacdo de que em todos os casos onde so realizadas condigées da espécie F, realizam-se também con- digdes da espécie G; uma lei de forma probabilistica assevera, essencialmente, que sob certas condigées, que constituem a execugdo de um experimento fortuito R, uma certa espécie de resultado ocorreré numa determinada percentagem dos casos. Verdadeiros ow nao, bem amparados ou mal amparados, esses dois tipos de afitmacio diferem quanto a0 caréter I6gico ¢ é sobre essa diferenca que se baseia a nossa distingao, ‘Como foi visto antes, uma lei de forma universal ‘Sempre que F entéo G’ nao é de'modo algum 0 equivalente abreviado de um relatério onde se registrou a associagdo de uma ocorrén- cia de G a cada ocorréncia'de F até entio examinada. Pois contém também assergdes sobre todos os casos néio examinados de F, passados, presentes e futuros; e implica, ainda, condicio- nais contrafatuais e hipotéticos sobre, por assim dizer, “pos- siveis ocorréncias de F": é justamente essa caracteristica que da a essas leis 0 seu poder explanatério, E o mesmo se pode dizer das leis de forma probabilistica. A lei que diz set a desintegracéo radioativa do rédio®™ um processo fortuito com uma vida média associada de 1620 anos no equivale eviden- temente a um relatério sobre as taxas de desintegragéo que foram observadas em certas amostras de radio™. Ela refe Fe-se ao provesso de desintegracdo de qualquer corpo de ré- dio, passado, presente ou futuro; e implica condicionais sub- juntivos © contrafatuais como, por exemplo: se dois corpos d2 radio™ forem combinados num 36, as taxas de desintegragao Permaneceriio as mesmas como se os dois corpos se manti vvessem separados. Aqui também esta & a caracteristica que dé as Ieis probabilisticas sua forca oreditiva e explanatéria. As Lels & SEU PAPEL NA EXPLICAGAO 89 (© CARATER INDUTIVO DA EXPLICAGAO PROBABILISTICA Um dos tipos mais simples de explicagao probabilistica & © que esti ilustrado pelo nosso exemplo do sarampo de Pauli- nho. A forma geral desse argumento explanat6rio pode ser enunciada do seguinte modo: PUR) € préximo de Fé um caso de F (faz altamente_provivel) 7 € um caso de R Ora, a alta probabilidade que, conforme esta indicado en- tte colchetes, 0 explanans confere a0 explanandum, certamente nao é uma probabilidade estatistica, pois caracteriza uma re- lagdo entre sentengas e nfo entre (espécies de) eventos. Po- demos dizer, empregando um termo introduzido no capitulo 4, que a probabilidade em questo representa a credibilidade ra- cional do explanandum, dada a informacdo fornecida pelo ex- lanans; © como foi notado anteriormente, na medida em que essa nogdo pode ser interpretada como uma probabilidade ela Feptesenta uma probabilidade légica ou indutiva. Em alguns casos simples, existe um modo natural e dbvio de exprimit numericamente esta probabilidade. Se, por exem- plo, for determinado o valor numérico de p(R.F) num argu- mento do tipo que vimos de considerar, entio sera razoavel dizer que a probabilidade indutiva conferida pelo explanans a0 explanandum tem este mesmo valor numérico; a explicagio probabilistica resultante tem a forma: PURE) = f Fé um caso de F Se 0 explanans for mais complexo, a determinago das corres pondentes probabilidades indutivas para o explanandum levanta problemas dificeis, em parte ainda no resolvidos. Mas, seja ou nao possivel atribuir probabilidades numéricas exatas ‘a to- das essas explicagSes, as consideragdes precedentes mostram que quando um evento é explicado mediante leis probabilisticas, © explanans confere ao explanandum somente um suporte indu- tivo mais ou menos forte. Podemos entio distinguir as expli- cages dedutivo-nomolégicas das explicagées probabilisticas di- 90 FILOSOFIA DA CifNCIA NATURAL zendo que as primeiras efetuam uma subsungdo dedutiva sob leis de forma universal ¢ que as tiltimas efetuam uma subsungdo indutiva sob leis de forma probabilistica Diz-se as vezes que justamente por causa do seu cardter indutivo, uma interpretagao probabilistica nio explica a ocor- réncia de um evento, ja que o explanans no exclui logica- rréncia. Mas 0 papsl importante © cada vvez maior que as Ieis ¢ as teorias probabilisticas desempenham na cigncia © nas suas aplicagdes faz que soja _preferivel considerar as interpretagdes baseadas nesses principios também. como explicagées, embora de espécie menos rigorosa que as de forma dedutivo-nomolégica. Tomemos, para exemplo, a desintegragéo radioativa de um miligrama de polénio™’. Su- ponhamos que o que fica dessa quantidade ap6s 3,05. minutos tenha uma massa compreendida entre 0,499 ¢ 0,501 miligra- mas, Podemos dizer que este fato fica explicado pela lei pro- babilistica da desintegracao do poldnio™*; pois essa lei, em combinacéo com os principios da probabilidade matematica, implica dedutivamente que, dado 0 enorme niimero de stomos num miligrama de poldniot", a probabilidad: do resultado mencionado é incomparavelmente maior, de modo que a sua ocorréncia num caso particular pode ser esperada com “cer- teza pritica”. Tomemos, para outro exemplo, a explicagio dada pela teoria cinética ‘dos gases para a generalizacdo estabelecida em- piricamente que se chamou lei de difusfo de Graham. Scgun- Go ela, nas mesmas condigoes de temperatura ¢ de pressio, as velocidades com que diferentes gases escapam, ou difundem-se, através de uma parede porosa delgada sao inversamente pro- porcionais as raizes quadradas dos seus pesos moleculares; de modo que, quanto maior for a quantidade de gis difundida por segundo através da parede, mais leves serio as suas moléculas ‘A. explicagio se apdia_na consideragio de que a massa do ‘gis que se difunde através da parede, por segundo, é propor- ional & velocidade média de suas moléculas e, portanto, que a lei de Graham terd sido explicada se se puder mostrar que as velocidades moleculares médias dos diferentes gases puros so inversamente proporcionais as raizes quadradas dos. seus pesos moleculares. Para mostré-lo, a teoria faz certas supo- sigdes cuja significago ampla é a de que um gas consiste de ‘um némero muito grande de moléculas movendo-se ao acaso com velocidades diferentes, que mudam freqiientemente em ee As Leis E SEU PAPEL NA EXPLICAacio oO virtude das colisdes, e que este comportamento fortuito exibe certas uniformidades probabilisticas — em particular, a de que as moléculas de um dado gis, com temperatura e pres determinadas, terio diferentes velocidades cujas _ocorréncias tm probabilidades diferentes bem determinadas. Essas. sup: sigSes permitem calcular os valores probabilisticamente espe- rados — os chamados valores ‘‘mais provaveis" — que as v locidades médias dos diferentes gases possuirio nas mesmas condigdes de temperatura ¢ pressio. Como mostra a tcoria, esses valores médios mais provaveis sio de fato inversamente proporcionais js raizes quadradas dos pesos moleculares dos gases. Mas as velocidades reais de difusio, que sio medidas experimentalmente € estio sujeitas & lei de Graham, depende- io dos valores reais que as velocidades médias tém nos vas- tos mas finitos enxames de moléculas que constituem os gases em questio. E os valores médios reais estao relacionados aos correspondentes avaliados probabilisticamente, aos valores ‘mais provaveis", de maneira que € essencialmente andloga a relacdo entre a’ proporcéo de gases que ocorrem numa vasta mas finita série de langamentos de um mesmo dado ¢ a cor respondente probabilidade de sair um as com este dado. Do que teoricamente se concluiu sobre as avaliagées probabilisticas segue-se apenas que, em vista do nimero muito grande de mo- léculas envolvidas, € esmagadoramente provével que a qual- quer instante as velocidades médias reais tenham valores mui- to préximos dos “mais proviveis” © que, portanto, € pratica- mente certo que clas sejam, como estes, inversamente pro- porcionais as raizes quadradas de suas massas moleculares, satisfazendo assim a lei de Graham? Parece razodvel dizer que esta interpretagio fornece uma explicagio, embora “apenas” com probabilidade _associada muito alta, da razdo pela qual os gases exibem a uniformidade expressa pela Ici de Graham; de fato, nos compéndios e nos tratados de Fisica, as interpretacdes teéricas deste género pro- babilistico sio amplamente apresentadas como explicagées. 1, ri, nog mans gerne ds oe sal i ee ea eames te oe sre eee Bat eee ait eine aca seniagdo, entre “9 valor médio de una’ grandeza para’ um pamero. fini. de cases oe eee SES, Sa AP ae laine: dee Publishing Co,, 1963) ° * “ey

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