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JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

Uma abordagem sociológica


sobre a informalização
da justiça penal no Brasil*

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Introdução exercerem a autoridade (Weber, 1996, p. 172).


Nesse tipo de Estado, a legitimidade deriva de as
Os modernos Estados constitucionais podem normas terem sido produzidas de modo formal-
ser visualizados como um conjunto de órgãos ins- mente válido, e da pretensão de que sejam respei-
tituídos para a criação, aplicação e cumprimento tadas por todos aqueles situados no âmbito de po-
das leis. Com a despersonalização do poder do der desse Estado.1
Estado, este passa a fundar sua legitimidade não Entre as principais características desse tipo
mais no carisma ou na tradição, mas em uma ra- de Estado está o controle centralizado dos meios
cionalidade legal, isto é, a crença na legalidade de de coerção. O Estado moderno apresenta-se, as-
ordenações regularmente estatuídas e nos direitos sim, como um complexo institucional artificial-
de mando dos chamados por essas ordenações a mente planejado e deliberadamente erigido, que
tem como característica estrutural mais destacada
o monopólio da violência legítima, garantido pelo
* O presente artigo é um resumo do material empíri-
que Weber chama de um quadro coativo (Weber,
co pesquisado e das conclusões da dissertação de
mestrado, intitulada Informalização da justiça e 1996, p. 28). O controle centralizado dos meios de
controle social: estudo sociológico da implantação coerção é fortalecido pela legitimidade que lhe
dos Juizados Especiais Criminais em Porto Alegre, confere a racionalidade jurídica, tornando a coer-
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em So- ção mais tecnicamente sofisticada e exercida por
ciologia da UFRGS, em abril de 1999, tendo como
orientador o prof. Dr. José Vicente Tavares dos San-
um setor especializado do Estado. Esta caracterís-
tos, e publicada pelo Instituto Brasileiro de Ciências tica constitui-se em um marco do que Elias deno-
Criminais. mina processo civilizador, com a adoção de for-

RBCS Vol. 16 nº 47 outubro/2001


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mas mais racionais e previsíveis de instauração de mento econômico, vistos como padrão necessário
processos e de punição pela prática de atos legal e suficiente para o desempenho de cada Estado, e
e previamente previstos como crimes.2 na garantia da efetividade dos mecanismos for-
Correspondendo, como paradigma teórico, mais de controle social para a manutenção da or-
aos modernos Estados liberais, a doutrina do direi- dem, justificando com isso deslocamentos na li-
to como conjunto orgânico e universalmente váli- nha Estado/sociedade civil (Poggi, 1981, p. 140).
do de normas institucionalmente reconhecidas é A busca de prosperidade interna, como um fim
progressivamente minada, na época contemporâ- em si mesmo, e a manutenção da ordem pública
nea, por tentativas de adequar a regulamentação tornam-se as principais justificativas para a exis-
legal e a sua implementação pelas instâncias judi- tência do Estado e a sua fonte de legitimidade, so-
ciais a um contexto de onde emergem discursos brepondo-se à mera racionalidade jurídico-legal.
normativos rivais e se exige do Estado a execução No âmbito do sistema formal de controle so-
de funções crescentemente político-administrativas. cial, ou seja, o sistema penal, as reformas institu-
A concentração de poder no Estado, a com- cionais que daí decorrem são apresentadas como
plexificação da sociedade e a regulamentação le- tentativas de dar conta do aumento das taxas de
gal de setores cada vez mais amplos da vida so- criminalidade violenta, do crescimento geométri-
cial culmina, nas sociedades urbano-industriais do co da criminalidade organizada e do sentimento
final do século XX, com a crise de legitimidade de de insegurança que se verifica nos grandes aglo-
uma ordem baseada em um discurso jurídico es- merados urbanos. A pressão da opinião pública,
vaziado, paralela e simultaneamente à crise fiscal amplificada pelos meios de comunicação de mas-
do Estado-Providência. Começam a aparecer as sa, aponta no sentido de uma ampliação do âmbi-
fissuras neste aparato que ainda sustenta sua legi- to de incidência do controle penal, tendo como
timidade em uma legalidade abstrata, constituída paradigma preferencial a chamada política de “to-
de acordo com normas gerais e apropriadamente lerância zero”, adotada pela prefeitura de Nova
promulgadas. Isso ocorre porque algumas premis- York no início dos anos 90 e defendida por dife-
sas da racionalidade legal começam a ser minadas rentes setores do espectro político. O pressuposto
ou desgastadas (a divisão de poderes, a suprema- dessa política de segurança pública é a perda de
cia e generalidade da lei etc.) ante a concentração eficácia das estratégias brandas ou informais de
de expectativas no âmbito do poder executivo e controle social.4
dos recursos limitados de que dispõe para garan- O problema é que as mudanças sociais ocor-
tir a estabilidade social e a acumulação de capital. ridas durante o século XX foram gradualmente
Além disso, na medida em que se desgasta a enfraquecendo os mecanismos de controle comu-
crença na naturalidade das hierarquias de poder nitário sobre os comportamentos, exacerbando
ou de distribuição de riqueza, a atividade gover- determinados focos de conflito antes abafados por
namental (inclusive a judicial) passa a depender hierarquias tradicionais de poder. Com o debilita-
cada vez mais de suas conseqüências em termos mento dos controles sociais informais, o crescen-
da satisfação de interesses fracionários. A linha di- te sentimento social de desordem ampliou a de-
visória entre Estado e sociedade civil começa a se manda para que o Estado restaurasse a ordem
tornar mais difusa,3 aumentando a influência e a mesmo em domínios familiares e de vizinhança.
pressão sobre as políticas governamentais e as de- Para assegurar a consistência das expectativas
cisões judiciais por parte das forças sociais (desde normativas existentes na sociedade, o sistema pe-
as camadas subprivilegiadas até as grandes em- nal passa a ter de responder a uma demanda cres-
presas multinacionais) que se rebelam contra a es- cente por resolução de conflitos privados.
trita observância de normas processuais e legais. Em sociedades com alto grau de complexi-
Busca-se, então, a renovação das fontes de dade, no entanto, se expressam muito mais ex-
legitimidade do Estado na sua capacidade em pro- pectativas normativas do que podem ser efetiva-
mover o desenvolvimento industrial e o cresci- mente institucionalizadas. Para assegurar a consis-
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tência das expectativas normativas criadas pelo di- pensão condicional do processo) nos chamados
reito, o mecanismo eleito é a pena ou sanção, delitos de menor potencial ofensivo, e incorporan-
principalmente pelo seu papel simbólico, e não do a participação da vítima para o encaminhamen-
por sua real incidência sobre os autores de deli- to da questão. No âmbito processual, as alternati-
tos. Enquanto nas décadas de 60 e 70 a explosão vas de informalização apontam para a redução da
de litigiosidade se deu sobretudo no domínio da competência do sistema penal tradicional em rela-
justiça civil, no período mais recente (anos 80 e ção ao controle de condutas que permanecem
90) a justiça penal assume o papel de protagonis- sendo consideradas socialmente indesejáveis. São
ta, que além de dar conta da “velha” criminalida- as chamadas soluções conciliatórias, que visam
de individual, passa a ter de responder a uma promover a interação face a face entre vítima e
nova demanda, já que desde a proteção ao meio acusado como forma de superar o conflito que
ambiente até as regras de trânsito são ancoradas está na origem do delito. As soluções de concilia-
no poder de punir do Estado. Isto somado à cres- ção constituem uma das manifestações mais ex-
cente demanda social pelo fim da impunidade dos pressivas do movimento de “deslegalização” ou
crimes de corrupção (“colarinho branco”) e ao au- “informalização” da justiça.
mento da criminalidade urbana violenta coloca os Nas heterogêneas comunidades urbanas
tribunais no centro de um complexo problema de contemporâneas, os programas de mediação e in-
controle social. formalização da justiça penal obtêm uma rápida
Diante da crise fiscal do Estado e do aumen- adesão graças à insatisfação com as sanções pe-
to da demanda por controle penal, as novas estra- nais tradicionais para a solução de disputas e con-
tégias de controle vão incorporar a contribuição flitos interpessoais, e apelam para as estruturas
dos estudos sociológicos e antropológicos que existentes na comunidade, embora muitas vezes
tiveram por objeto o sistema jurídico. Paralela- não passem de um apêndice do sistema legal for-
mente aos mecanismos convencionais de adminis- mal. De qualquer forma, correspondem à busca
tração da justiça, surgem novos mecanismos de de alternativas de controle mais eficazes e menos
resolução de conflitos através de instituições mais onerosas do que as oferecidas pelo sistema penal
ágeis, relativa ou totalmente desprofissionalizadas tradicional, que permitam um tratamento indivi-
e menos onerosas, de modo a maximizar o aces- dualizado, particularista, de cada caso concreto,
so aos serviços, diminuir a morosidade judicial e em vez da orientação pela generalidade e univer-
equacionar os conflitos por meio da mediação. salidade das normas jurídicas.
Na esfera penal, essas reformas operam me- Pesquisas sobre os modelos de informaliza-
diante movimentos de despenalização e de infor- ção adotados em diversos Estados norte-america-
malização, na busca de alternativas de controle nos identificaram uma importante diferenciação,
mais eficazes e menos dispendiosas do que as ofe- embora determinadas características fossem recor-
recidas pelo sistema penal tradicional. Quer se rentes.5 Em alguns casos, enfatiza-se a mediação
fundamentem em razões de legitimidade, quer pri- como processo terapêutico e a pressão da comuni-
vilegiem uma perspectiva de eficácia, as reformas, dade é o meio para alcançar soluções voluntaria-
no sentido da informalização, assumem caracterís- mente acordadas entre as partes, no interior das
ticas diversas. No âmbito do direito material, pode cortes tradicionais. Em outros casos, os modelos
ser adotada a forma direta de descriminalização, apresentam-se como uma alternativa ao sistema
pela revogação da norma incriminatória, ou ser in- formal, por exemplo, as chamadas community
corporados princípios gerais de aplicação da pena, courts, que tem jurisdição exclusiva sobre certas
excluindo de sua incidência os chamados delitos ofensas. A corte comunitária tem funções concilia-
de bagatela. No âmbito do direito processual, as tórias e adjudicatórias, e os mediadores são eleitos
mudanças têm visado o alargamento do princípio pela comunidade onde residem e recebem um trei-
de oportunidade da ação penal, conferindo ao namento formal mínimo. Esse modelo aproxima-se
acusado uma gama de alternativas (transação, sus- da chamada democracia participativa, com o envol-
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vimento maior da comunidade em questões antes entendida não como a renúncia do Estado ao con-
restritas e resolvidas pelo aparato estatal. trole de condutas e no alargamento das margens
Em que pese a existência de modelos dife- de tolerância, mas como a procura de alternativas
renciados, os elementos conceituais que configu- de controle mais eficazes e menos onerosas (Dias
ram um tipo ideal de informalização da justiça nos e Andrade, 1992, p. 403). Para esses Juizados vão
Estados contemporâneos são: estrutura menos bu- confluir determinados tipos de delitos (com pena
rocrática e relativamente mais próxima do meio máxima em abstrato até um ano) e de acusados
social em que atua; aposta na capacidade dos dis- (não reincidentes). Com a sua implantação, espe-
putantes de promover sua própria defesa, dimi- ra-se que as antigas varas criminais possam atuar
nuindo a necessidade de profissionais e o uso da com maior prioridade sobre os crimes de maior
linguagem legal formal; preferência por normas potencial ofensivo.
substantivas e procedimentais mais flexíveis, par- Promulgada a Lei 9.099/95, o rito processual
ticularistas, ad hoc; mediação e conciliação entre nela previsto passou a ser imediatamente aplica-
as partes mais do que a adjudicação de culpa; par- do, pelas Varas Criminais comuns, para os delitos
ticipação de não juristas como mediadores; preo- de menor potencial ofensivo, especialmente a
cupação com uma grande variedade de assuntos suspensão condicional do processo e as novas al-
e evidências, rompendo com a máxima de que “o ternativas de conciliação entre vítima e autor do
que não está no processo não está no mundo”; fa- fato e de transação entre Ministério Público e au-
cilitação do acesso aos serviços judiciais para pes- tor do fato.
soas com recursos limitados para assegurar auxí- Porto Alegre foi uma das primeiras comarcas
lio legal profissional; ambiente mais humano e de grande porte a criar os Juizados Especiais Cri-
cuidadoso, com uma justiça resolutiva rápida, e minais, que passaram a ter competência exclusiva
ênfase em uma maior imparcialidade, durabilida- para o processamento dos delitos previstos na lei
de e mútua concordância no resultado; geração 9.099/95, com a edição da Lei Estadual n. 10.675,
de um senso de comunidade e estabelecimento em 2 de janeiro de 1996, que criou o Sistema dos
de um controle local através da resolução judicial Juizados Especiais Cíveis e Criminais no Estado do
de conflitos; maior relevância em sanções não Rio Grande do Sul.
coercitivas para se obter acatamento. Pelo pioneirismo de sua implantação,6 os Jui-
zados Especiais Criminais de Porto Alegre consti-
tuem-se em um importante laboratório para a ve-
A Lei 9.0999/95 e a informalização da jus- rificação da aplicabilidade dos dispositivos da Lei
tiça penal no Brasil 9.099/95, das mudanças no movimento processual
efetivamente ocorridas, assim como das dificulda-
No Brasil, a incorporação dessas inovações des estruturais existentes na máquina burocrática
no sistema judicial teve impulso a partir dos anos do poder judiciário no sentido de oferecer uma
80, em especial após a promulgação da Constitui- prestação de justiça mais ágil e voltada para a de-
ção de 1988. Uma série de novos mecanismos fesa dos interesses e a resolução dos dilemas da
para a solução de litígios foi criada com vistas à clientela do sistema penal (vítimas e acusados).
agilização dos trâmites processuais, entre os quais A Lei 9.099/95 deu aos Juizados Especiais
têm um significado relevante os Juizados Espe- Criminais a competência para a conciliação e o
ciais Cíveis e Criminais, voltados para as chama- julgamento das infrações penais de menor poten-
das pequenas causas e para os delitos de menor cial ofensivo, que compreendem as contravenções
potencial ofensivo, previstos no ordenamento penais (Decreto-Lei n. 3.688, de 03.10.1941) e os
constitucional e regulamentados pela Lei Federal crimes cuja lei penal comine pena máxima não
n. 9.099, de setembro de 1995. superior a um ano de detenção ou reclusão, exce-
A implantação dos Juizados Especiais Crimi- tuados os delitos para os quais está previsto um
nais (JEC) integra uma lógica de informalização procedimento especial.
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Até a edição dessa Lei, as contravenções pe- cação imediata de pena não privativa de liberda-
nais e os delitos punidos com pena de detenção de ao autor do fato (art. 72).
eram processados pelo rito processual previsto no Nos crimes de ação penal privada e de ação
Capítulo V, Título II, do Livro II (art. 531 a 540) do penal pública condicionada à representação, o
Código de Processo Penal, denominado Processo acordo para a composição dos danos extingue a
Sumário. Pouca diferença havia entre este tipo de punibilidade. Não obtido o acordo, o juiz dá ime-
procedimento e o Processo Ordinário, aplicado diatamente à vítima a oportunidade de exercer o
aos delitos apenados com reclusão. A lei previa direito de oferecer queixa-crime ou representação
apenas a redução de alguns prazos e o abrevia- verbal (art. 75). Havendo queixa-crime ou repre-
mento de determinados momentos processuais, sentação ou sendo o crime de ação penal pública
mas a estrutura do processo era basicamente a incondicionada, o Ministério Público poderá pro-
mesma: inquérito policial, denúncia do Ministério por ao autor do fato a transação penal, com a apli-
Público, interrogatório do réu, defesa prévia, au- cação imediata de pena restritiva de direitos ou
diência de instrução, debates orais, julgamento. multa, a não ser no caso de o acusado ser reinci-
Não havia a possibilidade de reparação civil dos dente ou de “não indicarem os antecedentes, a
danos sofridos pela vítima no próprio processo conduta social e a personalidade do agente, bem
penal, relegando-a ao papel de mero informante como os motivos e as circunstâncias, ser necessá-
da justiça penal. Nem tinha o réu qualquer inte- ria e suficiente a adoção da medida” (art. 76). Não
resse em reconhecer o fato que lhe era imputado, aceita a proposta, o representante do Ministério
com a negociação em torno da pena. Público oferecerá ao juiz, de imediato, uma de-
De acordo com o que estabelece a legislação núncia oral, e o processo seguirá o rito sumaríssi-
no art. 62 da Lei 9.099/95, o processo perante os mo, previsto na Lei. Oferecida a denúncia, pode-
Juizados Especiais Criminais deve ser orientado rá ainda o representante do Ministério Público
pelos critérios de oralidade, informalidade, econo- propor a suspensão do processo por dois a qua-
mia processual e celeridade, objetivando, sempre tro anos, desde que o denunciado não esteja sen-
que possível, a reparação dos danos sofridos pela do processado ou não tenha sido condenado por
vítima e a aplicação de pena não privativa de li- outro crime. A suspensão será revogada se, no
berdade. Dispensando a realização do inquérito curso do prazo, o denunciado for processado por
policial, a Lei 9.099/95 determina que a autorida- outro crime ou descumprir qualquer outra condi-
de policial, ao tomar conhecimento do fato deli- ção imposta. Expirado o prazo sem revogação, o
tuoso, deve imediatamente lavrar um termo juiz declarará extinta a punibilidade.
circunstanciado do ocorrido e encaminhá-lo ao Caso não seja possível a suspensão do pro-
Juizado, se possível com o autor do fato e a víti- cesso, o juiz deverá intimar as partes para a au-
ma, providenciando a requisição dos exames diência de instrução e julgamento, que se inicia
periciais necessários para a comprovação da ma- com a resposta oral da defesa à acusação formu-
terialidade do fato (art. 69). lada na denúncia ou queixa-crime. Aceita a argu-
Não sendo possível o comparecimento ime- mentação da defesa, o juiz não recebe a denúncia
diato de qualquer dos envolvidos ao Juizado, a ou queixa e encerra o processo. Recebida a de-
Secretaria do Juizado deverá providenciar a inti- núncia ou queixa, são ouvidas a vítima e as teste-
mação da vítima e do autor do fato, por corres- munhas de acusação e de defesa, o acusado é in-
pondência com aviso de recebimento, para que terrogado e realizam-se os debates orais entre a
compareçam à audiência preliminar (art. 71). Nes- defesa e a acusação. Em seguida, o juiz profere a
ta, presentes o representante do Ministério Públi- sentença final condenatória ou absolutória.
co, o autor do fato e a vítima, acompanhados de Os recursos previstos pela Lei 9.099/95 – a
advogado, o juiz esclarecerá sobre a possibilidade apelação (em caso de sentença condenatória ou
de composição dos danos, assim como sobre as absolutória ou da decisão de rejeição da denúncia
conseqüências da aceitação da proposta de apli- ou queixa) e os embargos de declaração (em caso
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de obscuridade, contradição, omissão ou dúvida dados obtidos dizem respeito ao movimento pro-
na sentença) – são encaminhados a uma Turma cessual penal na comarca de Porto Alegre, no pe-
Recursal composta de três juízes em exercício no ríodo imediatamente anterior (1994 e 1995) e pos-
primeiro grau de jurisdição. terior (1996 e 1997) à implantação dos Juizados.
Também estavam disponíveis as decisões termina-
tivas adotadas nos Juizados Especiais Criminais de
A implantação dos Juizados Especiais Cri- Porto Alegre, cuja fonte eram os mapas de movi-
minais em Porto Alegre mento processual fornecidos mensalmente pelas
secretarias dos Juizados à Corregedoria Geral de
Para dar conta da análise do período de im- Justiça. Por fim, obteve-se também o gráfico com-
plantação dos Juizados Especiais Criminais na Co- parativo de morosidade judicial entre os Juizados
marca de Porto Alegre, a partir de uma perspecti- e as Varas Criminais, para os processos concluídos
va sociológica, foi adotado o método do estudo no primeiro semestre de 1998.
de caso, reunindo dados a partir de diferentes téc- A partir do levantamento de dados estatísti-
nicas de pesquisa, para abarcar o conjunto de cos acima citados, e levando em consideração a
questões que deveriam ser enfrentadas. carência de dados quanto a uma série de elemen-
Como se sabe, as instâncias judiciais singula- tos essenciais para a compreensão de como a lei
rizam-se, entre as demais instâncias de controle vem sendo aplicada na prática (tipos de delito,
social, por serem as mais opacas e resistentes à dados sobre as partes, tipos de conflito etc.), par-
“devassa” da investigação sociológica. Tal situação tiu-se para a etapa de observação sistemática de
é compreensível, uma vez que, de todas as insti- audiências nesses Juizados, nos meses de junho a
tuições, são os tribunais judiciais aqueles cuja le- outubro de 1998.
gitimidade depende em maior medida da integri- Quando da realização das observações, já
dade de uma imagem decantada e hipostasiada havia entrado em vigor o novo Código Nacional
em séculos de teorização política e jurídica (Dias de Trânsito, retirando dos Juizados Especiais Cri-
e Andrade, 1992, pp. 527-528). minais a competência para julgar a maioria dos
A análise de um objeto com este grau de delitos de trânsito. Embora no primeiro semestre
complexidade compreende uma série de passos ainda estivessem em funcionamento os três Juiza-
fundamentais na investigação: a construção do dos especializados neste tipo de delito, extintos
objeto científico; a relação entre o investigador e em agosto de 1998, optamos por restringir a ob-
o investigado; o questionamento dos métodos e servação aos JEC comuns, que passaram a julgar
técnicas de investigação; a perspectiva da descon- também os poucos delitos de trânsito que manti-
tinuidade do pensamento sociológico no momen- veram a pena máxima até um ano (por exemplo,
to da elaboração interpretativa. É a perspectiva da direção sem habilitação), para que a análise pu-
complexidade, “mediante a qual o conhecimento desse contemplar essa nova situação.
é definido como um processo multidimensional, Ingressando nas salas de audiência como
marcado pela diversidade, pela multiplicidade e qualquer estagiário de direito, realizamos o traba-
pela multidimensionalidade” (Tavares dos Santos, lho de observação sistemática de um total de ses-
1995, p. 74). O reconhecimento dos limites de senta audiências, sendo 28 delas nos Fóruns Re-
toda técnica e da própria relação entre sujeito-in- gionais e 32 no Fórum Central. A verificação do
vestigador e sujeito-investigado leva a um pluralis- que efetivamente ocorre no momento de intera-
mo teórico-metodológico. ção face a face entre os operadores jurídicos do
Em um primeiro momento, buscou-se obter sistema e a sua clientela permitiu verificar a exis-
os dados estatísticos disponíveis para o período tência de uma série de padrões de judicialização
pesquisado. Coletados e tabulados pela Correge- de conflitos nos Juizados Especiais Criminais. Fo-
doria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do ram constatados alguns tipos de delito predomi-
Rio Grande do Sul, com o auxílio da Procergs, os nantes, vinculados a determinadas formas de
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conflitualidade social. Em relação às partes envol- Tomando por base os dados fornecidos pelos
vidas, foi possível verificar como se distribuem ví- mapas de andamento processual da Corregedoria
timas e autores do fato a partir da variável de gê- Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio
nero. Também foi possível identificar como tem Grande do Sul referentes à Comarca de Porto Ale-
sido alcançada a conciliação ou a transação pe- gre para o período considerado, o que se verifica
nal, ou seja, qual o conteúdo concreto deste tipo é que, enquanto nos anos de 1994 e 1995 foram
de solução nos casos observados, bem como as distribuídos para as Varas Criminais Comuns em
diversas situações em que o juiz é colocado dian- torno de 6.000 processos por ano, em 1996 o nú-
te de limitações estruturais para o exato cumpri- mero de processos distribuídos salta para 54.687,
mento de que dispõe a legislação (ausência de baixando para 37.608 processos no ano de 1997.
defensor para as partes, ausência do Ministério
Público etc.).
Após a tabulação dos dados estatísticos e a
observação das audiências nos Juizados de Porto
Alegre, partimos para as entrevistas com juízes
que atuavam ou haviam atuado nesses Juizados, já
que a observação das audiências indicava que,
entre os operadores jurídicos, cabia aos juízes um
papel preponderante na dinâmica de funciona-
mento dos novos Juizados, conferindo maior ou
menor eficácia dos instrumentos processuais pre-
vistos pela Lei 9.099/95. Foram entrevistados seis
juízes criminais, contemplando a diversidade de
experiências, fruto do maior ou menor tempo de
atuação nos Juizados, bem como pela atuação em Apesar da significativa redução percentual, o
diferentes Fóruns Regionais. Entre os entrevista- volume de processos distribuídos nas antigas Va-
dos, encontramos juízes que atuavam nos Juiza- ras Criminais se mantém praticamente inalterado.
dos Criminais desde sua implantação, em 1996, e Como essas Varas foram reduzidas de 18 para 14
outros que estavam substituindo o titular havia a partir da criação dos Juizados, há de fato um au-
apenas um mês. Também encontramos profissio- mento do número de processos para as Varas Cri-
nais que já haviam atuado em outros Juizados, minais Comuns. A conclusão é que, em vez de as-
como os de trânsito, e agora tinham sido realoca- sumir uma parcela dos processos criminais das
dos para um Juizado comum, além de juízes que Varas Comuns, os Juizados Especiais Criminais
vinham de experiências em Juizados Especiais no passaram a dar conta de um tipo de delituosidade
interior do Estado. Quanto à diversidade territo- que não chegava até as Varas Judiciais, sendo re-
rial, as entrevistas contemplaram juízes com pas- solvido através de processos informais de “media-
sagem por dois Juizados do Fórum Central, pelos ção” nas Delegacias de Polícia ou pelo puro e
Juizados Regionais de Sarandi, Alto Petrópolis e simples “engavetamento”. Com a entrada em vi-
Partenon. gor da Lei 9.099/95, as ocorrências policiais deste
Com a implantação dos Juizados Especiais, tipo de crime, que se encontravam nas Delega-
havia a expectativa de uma significativa redução cias, aguardando a realização de inquérito poli-
do movimento processual nas Varas Criminais Co- cial, e que normalmente resultavam em arquiva-
muns, que poderiam, assim, concentrar a atenção mento pela própria Polícia Civil, foram remetidas
nos delitos mais graves. A análise do movimento para os Juizados Especiais.
processual verificado na Comarca de Porto Alegre Quanto ao tempo médio de tramitação dos
nos dois anos anteriores e posteriores à implanta- processos criminais, constata-se que o rito proces-
ção não confirma essa expectativa. sual adotado pelos Juizados Especiais é efetiva-
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mente mais rápido do que nas Varas Criminais. Os arquivado por decadência do direito de represen-
dados disponíveis quanto à morosidade judicial tação (art. 103 do Código Penal), resultando em
dizem respeito ao tempo médio de tramitação dos uma situação de impunidade e na manutenção da
processos criminais encerrados no primeiro se- descrença da população quanto à possibilidade de
mestre do ano de 1998 em Porto Alegre. Enquan- judicialização desse tipo de delito. Outra causa co-
to nas Varas Criminais o tempo médio de tramita- mum de arquivamento é o não encaminhamento,
ção foi de 520 dias, nos Juizados Especiais Crimi- pela Polícia Judiciária, dos exames de corpo de de-
nais a média foi de 130 dias de tramitação. lito, necessários para a comprovação da materiali-
dade do fato.

Entre os mais de cem delitos considerados


Uma das principais evidências obtidas a par- pela Lei 9.099/95 de menor potencial ofensivo, por
tir da análise dos mapas de andamento processual terem pena de prisão até um ano, tanto a observa-
da Corregedoria Geral de Justiça é quanto ao alto ção das audiências quanto as entrevistas com os
número de processos cujo término se deveu ao juízes que atuam nos Juizados Especiais Criminais
arquivamento, situação em que não chega a ser de Porto Alegre confirmaram uma ampla predomi-
realizada nenhuma audiência durante o processo. nância de dois tipos penais: os delitos de ameaça
Como se pode verificar pelas entrevistas rea- e de lesões corporais leves, que juntos correspon-
lizadas e em contato com os próprios funcionários deram a 76% das audiências observadas.
dos cartórios, isto ocorreu em grande parte por-
que um dos dispositivos da Lei 9.099/95 não foi
respeitado pelas Delegacias de Polícia, muito me-
nos pelas secretarias de muitos dos Juizados Espe-
ciais, nesse período de implantação: a intimação
das partes para a audiência de conciliação (art. 71
da Lei 9.099/95).
Indo até a Delegacia para registrar a ocorrên-
cia, a vítima permanecia aguardando o encaminha-
mento judicial da questão. Não sendo intimada
para a audiência de conciliação, e nem avisada de
que o registro na polícia não era considerado uma
representação, passados seis meses o processo era
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A observação das audiências permitiu tam- justiça consensual, e aqui nos juizados especiais
bém verificar quais os conflitos sociais que estão criminais, a figura do juiz se transmuda, o juiz
por trás dos delitos tipificados pela lei penal. Nes- passa a ser uma espécie de conciliador, uma es-
pécie de aconselhador até mesmo das partes.
se sentido, constatou-se que a maioria dos delitos
Muitas vezes se pacificam os ânimos das pessoas,
de menor potencial ofensivo é originária de situa- e aí um dos desejos do legislador, ao editar a lei
ções de conflito entre vizinhos (41%), entre côn- 9.099, que é justamente o de restabelecer a har-
juges (17%), entre parentes (10%), ou em relacio- monia nas relações.
namentos entre consumidor e comerciante (10%).
Além destes, foram também encontrados conflitos O reconhecimento de que se trata de uma
na relação entre patrão e empregado (8%), brigas nova função, voltada para a recomposição dos la-
eventuais em locais públicos entre desconhecidos ços de sociabilidade, que passa a ser exigida dos
(5%), e ainda alguns conflitos de trânsito (5%), juízes, em vez de uma simples decisão punitiva ou
embora a grande maioria dos delitos de trânsito absolutória de uma figura neutra e alheia ao am-
tenha retornado às Varas Criminais, com a eleva- biente social, começa a aparecer no discurso de
ção das penas previstas pelo novo Código Nacio- alguns magistrados:
nal de Trânsito.
Eu acho que o juiz passa a ter uma função muito
mais ativa. Antigamente a função do juiz era pra-
ticamente ouvir as partes, ouvir, antes o juiz era
um grande ouvido, digamos assim. E ao final, de-
pois de tanto ouvir, prolatava uma sentença. Ago-
ra, eu acho muito interessante essa disposição do
art. 72, que diz que competirá ao magistrado ex-
plicar os objetivos da audiência, e eu acho que
essa explicação, se feita de um maneira bem ade-
quada ao caso concreto, produz resultados, em
níveis pedagógicos, fantásticos. Então eu acho
que o juiz passa a ser um agente de pacificação
social, dependendo da postura dele nessa audiên-
cia inicial.

Com uma visão mais reticente a respeito da


nova sistemática processual, um dos entrevistados
manifestou opinião diversa, no sentido de que o
Deparando-se com um tipo de conflitualida- papel que agora se exige do juiz já deveria ser
de social que poucas vezes chegava até a sala de praticado na sistemática anterior:
audiências, e tendo de conduzir um processo de
conciliação entre os envolvidos, os juízes que pas- O julgador virou mais um conciliador, ele tem
sam a atuar nos Juizados Especiais Criminais agora a lei a favor dele, embora eu me lembre
enfrentam dificuldades para assumir este novo pa- que na prática muitas vezes eu tentava, antes da
pel. Entre os entrevistados, foi freqüente o reco- Lei 9.099, fazer certas conciliações, dentro do pos-
sível. Por exemplo, essas lesões corporais causa-
nhecimento de que se trata de uma mudança
das por marido na mulher, eu acho até que era
significativa: mais eficiente o sistema, porque a gente julgava e
dava o sursis, com uma condição para o marido
Eu diria que a mudança é fundamental, porque cumprir. Normalmente essas lesões eram decor-
enquanto a figura do julgador na justiça tradicio- rentes de alcoolismo do marido, então se coloca-
nal adota uma postura bastante rígida, com rela- va no sursis a obrigatoriedade dele se submeter a
ção ao fato de presidir um processo criminal, na tratamento, acompanhamento dos alcoólicos anô-
106 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

nimos. Então a impressão que se tinha é que não magistrados que já estavam na judicância antes do
gerava tanta impunidade. E a impressão que eu advento da lei estão se adaptando, e acredito que
tenho é que em relação às mulheres vítimas de esses magistrados é que vão passar essa experiên-
violência doméstica essa lei acaba gerando uma cia para os novos magistrados.
certa impunidade, porque a mulher não chega
nem a representar. Se ao menos houvesse uma Uma das entrevistadas lamentou essa falta de
medida, pagasse uma multa, prestasse serviços à preocupação institucional mais efetiva para a for-
comunidade, mas o marido simplesmente olha mação dos juízes que vão atuar nos Juizados Es-
para a mulher na hora, o juiz pergunta: a senho-
peciais Criminais, pela compreensão de que de-
ra quer representar contra o seu marido, e pelo
olhar dele ela acaba não tendo coragem de repre-
pende em grande medida da conduta dos juízes a
sentar, enquanto que antes, quando não era con- configuração dessas novas instâncias judiciais in-
dicionada a representação e o promotor é que formalizadas:
oferecia a denúncia, podia a vítima mentir, mas
ela era advertida que não deveria mentir. Na ver- Uma outra sugestão é que se se promovesse mais
dade, se aplicava uma pena mínima, curta, se uma reflexão sobre o papel dos operadores jurí-
dava o sursis, e depois, quando entrou em vigor dicos no JEC, porque se os operadores que esti-
a nova parte geral de 84, se podia aplicar presta- verem naquela audiência não tiverem um posicio-
ção de serviços a comunidade, multa, quer dizer, namento, uma visão do JEC como algo de uma
penas alternativas. Eu acho que nesse tocante a eficácia social muito grande, nós vamos perder a
lei não foi muito feliz, agora as pesquisas, as es- chance de poder fazer um bom trabalho em ter-
tatísticas é que vão mostrar. mos de pacificação e de luta contra a impunida-
de. Então eu acho que essa reflexão seria impor-
tante, não sei se através de cursos específicos, do
Quanto à existência de iniciativas institucio- estímulo dos magistrados a fazerem publicações,
nais para a conscientização e o preparo dos ope- sobre esse assunto especificamente: qual a impor-
radores jurídicos sobre as funções que lhes foram tância do operador jurídico no JEC enquanto
delegadas nos Juizados Especiais Criminais, cons- atuação na comunidade.
tatou-se que muito pouco tem sido feito. A maio-
ria dos atuais juízes teve formação acadêmica que
não contemplou a possibilidade de informalização Conclusão: as antinomias da informaliza-
processual. Nessa fase de implantação da Lei ção da justiça penal
9.099/95, a busca de resultados positivos tem de-
pendido do empenho daqueles juízes que assumi- Boaventura de Sousa Santos, no início dos
ram a nova legislação como um avanço, seja na anos 80, em um trabalho exploratório que visava
perspectiva da conciliação, do desafogamento do a construção de novas hipóteses de trabalho e o
judiciário, seja de fim da impunidade para os pe- alargamento do campo analítico da sociologia ju-
quenos delitos: rídica para o estudo do fenômeno informalista, re-
conhecia a carência de uma sólida base empírica
Eu não sei se está havendo uma preocupação, por que desse sustentação às suas proposições, mas
exemplo, dentro da Escola da Magistratura, quan- sugeria que a novidade nos programas de infor-
do dos cursos de preparação para o concurso, em
malização e comunitarização da justiça era que, se
enfatizar essa questão. Também não sei se dentro
até aquele momento as classes oprimidas foram
da Corregedoria está havendo essa preocupação.
Acho que hoje em dia a coisa se resolve mais de- desorganizadas individualmente – enquanto cida-
pendendo da forma como o juiz encara a lei 9.099, dão, eleitor ou beneficiário da previdência –, no
e como o próprio juiz encara o seu papel e como futuro passaria a sê-lo em nível societal ou comu-
o juiz pode se adaptar a esse novo papel. Ele nitário – como moradores de um bairro, trabalha-
pode se adaptar ou não. Então eu posso estar er- dores de uma fábrica, consumidores de um pro-
rada, mas imagino que ainda não estamos na fase
duto. A hipótese formulada à época era de que a
da formação dos juízes, de largada. Acho que os
organização comunitária tutelada pelo Estado se-
JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS 107

ria uma forma de desorganização das classes tra- bem-sucedidos em remover do sistema casos con-
balhadoras no capitalismo tardio (Sousa Santos, siderados inúteis ou menores, que em sua grande
1985, pp. 92-93). maioria envolvem mulheres, negros e pessoas de
Na medida em que o Estado consegue, pela nível socioeconômico baixo, do que em fornecer
via da informalização, articular ao mesmo tempo uma forma mais acessível de justiça.
uma resposta à crise fiscal e o controle sobre Nesse ponto, constatou-se que, no caso dos
ações e reações sociais dificilmente reguláveis por Juizados Especiais Criminais brasileiros, há uma
processos jurídicos formais, ele está de fato a ex- situação bastante diferenciada. Em vez de retirar
pandir-se por sobre a sociedade civil. A dicotomia do sistema formal os casos considerados de me-
Estado/sociedade civil, tão cara ao pensamento da nor potencial ofensivo, a Lei 9.099/95 incluiu
modernidade, deixa de ter sentido teórico, e o esses casos no sistema, através de mecanismos in-
controle social pode ser executado na forma de formalizantes para o seu ingresso e processamen-
participação social, a violência na forma de con- to. A dispensa da realização do inquérito policial
senso, a dominação de classe, na forma de ação para os delitos de competência dos Juizados Espe-
comunitária. ciais Criminais retirou da autoridade policial a
Assim, como o próprio projeto da moderni- prerrogativa que tinha de selecionar os casos con-
dade encontra-se permanentemente tensionado siderados mais “relevantes”, que resultava no ar-
entre o aumento da regulação e a demanda por quivamento da grande maioria dos pequenos de-
emancipação, Sousa Santos já visualizava, na épo- litos. O problema é que a estrutura judiciária não
ca, a presença de um elemento emancipador nas foi adequada para o recebimento dessa nova de-
reformas informalizantes: sua associação ideológi- manda, que passou a representar quase 90% do
ca a símbolos emancipatórios com forte implanta- movimento processual penal.
ção no imaginário social (participação, auto-ges- A especificidade do caso brasileiro é que a
tão etc.). Nesse sentido, embora aprisionados por informalização da justiça penal na verdade não
uma estratégia global de controle social, estes sím- ampliou o controle social formal do Estado sobre
bolos apresentariam um potencial utópico ou novas condutas, uma vez que esse controle era
transcendente, que faria com que a justiça infor- exercido pelas delegacias de polícia. Na prática,
mal não pudesse “manipular” sem oferecer algum as delegacias acabavam cumprindo informalmen-
pedaço genuíno de conteúdo ao público que vai te uma função de filtro para a descriminalização
ser manipulado (Sousa Santos, 1985, pp. 97-98). de certas condutas, como as ameaças e lesões
No caso dos Juizados Especiais Criminais leves no ambiente doméstico, consideradas de
brasileiros, embora a Lei 9.099/95 tenha previsto a menor importância para ingressar no sistema ju-
utilização de conciliadores escolhidos fora dos dicial. A Lei 9.099/95 permitiu a incorporação
quadros da justiça criminal, até hoje essa disposi- desses delitos ao sistema judicial, numa espécie
ção legal não foi implementada, e os juízes que de recriminalização, substituindo o delegado pelo
atuam nos Juizados são os mesmos que atuam nas juiz no exercício da função de mediação. En-
Varas Criminais, valendo-se mais de uma relação quanto a mediação policial, informal e arbitrária
de poder hierárquica e intimidatória sobre as par- era freqüentemente combinada com mecanismos
tes para encaminhar uma solução do caso do que de intimidação da vítima (sobrevitimização) e do
de uma proximidade advinda de vínculos socie- acusado, a mediação judicial tende a ampliar o
tais comunitários. espaço para a explicitação do conflito e a adoção
Em vez de permitir um acesso mais fácil a de uma solução de consenso entre as partes, re-
grupos excluídos do sistema judicial, compensan- duzindo a impunidade.
do suas limitações, Lance e Bohn concluem que, É preciso reconhecer, portanto, os aspectos
no caso norte-americano, os centros de justiça in- emancipatórios que fazem parte do processo de
formal funcionam mais como saída do que como informalização da justiça no caso brasileiro. No
entrada no sistema de justiça formal, sendo mais entanto, são justamente essas características as
108 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

mais facilmente relegadas quando da implementa- identificar seus direitos lesados e arcar com as
ção prática das medidas informalizantes. A manu- custas do processo, no âmbito penal somente che-
tenção do sentido emancipatório do informalismo gam ao judiciário os inquéritos policiais dos cri-
depende de níveis de entusiasmo moral, consen- mes dolosos contra a vida e contra a propriedade,
so e convencimento por parte dos operadores ju- ficando sob o arbítrio policial os delitos relaciona-
rídicos, especialmente os juízes/conciliadores, a dos com a conflitualidade interpessoal nas favelas
fim de evitar que procurem reforçar seu status e e cortiços, das relações domésticas e de vizinhan-
autoridade adotando toda a pompa formalista: tra- ça, das relações entre vendedor e consumidor, de
jes e discursos, procedimentos etc. patrão e empregado. Em todos esses contextos, a
Além disso, é preciso destacar que tendên- violência interpessoal emerge como um mecanis-
cias históricas e atuais apontam para a mesma mo de excesso de poder,7 em que a parte mais
conclusão: formalidades criam barreiras, mas tam- forte impõe a sua vontade através da humilhação
bém proporcionam um espaço no qual é possível do outro, em relacionamentos sociais freqüente-
proteger os setores socialmente desfavorecidos, mente duradouros.
enquanto que procedimentos informais são mais Para tirar as lições da implantação da Lei
facilmente manipuláveis. Isto sugere que a efeti- 9.099/95 no âmbito criminal, na comparação com
vação de direitos através de procedimentos infor- as demais experiências de informalização da justi-
mais somente pode ser bem-sucedida se forem ul- ça penal, é preciso compreender essa especificida-
trapassadas as limitações inerentes à falta de de do Estado brasileiro, em que se delegou à po-
apoio jurídico àqueles que pretendem exercer es- lícia o relacionamento com a maioria da popula-
tes direitos. Portanto, um extraordinário esforço ção para a intermediação dos seus conflitos, e as
será necessário para conduzir o movimento de in- salas de audiência nas Varas Criminais foram reser-
formalização procedimental da justiça em uma di- vadas à punição pública de ladrões e homicidas.8
reção favorável. Os resultados deste esforço vão Os Juizados Especiais Criminais, tendo
ter um significativo impacto sobre a vida cotidia- surgido sob a ideologia da conciliação e da dis-
na das pessoas comuns. persão para desafogar o judiciário, acabaram
No Brasil, o processo de abertura e informa- abrindo as portas da justiça penal a uma confli-
lização da prestação estatal de justiça ocorre em tualidade antes abafada nas delegacias, e para a
uma situação na qual ainda não há de fato um Es- qual o Estado é chamado a exercer um papel de
tado de Direito funcionando plenamente sob cri- mediador, mais do que punitivo. Com a promes-
térios racionais-legais de legitimação. O Estado sa de resolver disputas por meio da comunicação
brasileiro ainda não rompeu com relações tradi- e do entendimento, e permitindo uma interven-
cionais de poder, que pouco espaço concedem ção menos coercitiva e mais dialógica, em um es-
para a representação dos interesses e reivindica- paço estrutural (a domesticidade, os relaciona-
ções populares no quadro institucional. Particular- mentos interpessoais) que antes ficava à margem
mente, o poder judiciário, pelo distanciamento da prestação estatal de justiça, a informalização
que lhe confere um discurso especializado e so- da justiça penal pode ser um caminho para o res-
mente acessível aos estudiosos do direito, perma- tabelecimento do diálogo, contribuindo para re-
nece hermético ao senso comum e seletivo em verter a tendência de dissolução dos laços de so-
suas decisões, além de disputar espaço com mé- ciabilidade no mundo contemporâneo.
todos informais de resolução de conflitos, que vão
desde formas comunitárias de mediação até a
atuação do próprio sistema policial, que em mui- NOTAS
tas situações cria a sua própria legalidade.
A seletividade do sistema judicial opera em 1 Sobre as formas de legitimidade em Max Weber, ver
Economia y sociedade, pp. 170 ss., em que Weber, ao
duas vias: enquanto no âmbito civil a promoção estabelecer uma tipologia da dominação, começa de-
de demandas depende da capacidade da parte em
JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS 109

finindo as formas de legitimidade, vista esta última BIBLIOGRAFIA


como fundamento de toda dominação duradoura.
2 Sobre este tema, ver o vol. 2 da obra O processo ci- BERGALLI, Roberto (1991), “Sociology of penal
vilizador, de Norbert Elias, sobre a formação do Es- control within the framework of the so-
tado, em especial o capítulo II, “Sobre a sociogêne-
ciology of law”. Oñati Proceedings, I. I. S.
se do Estado”, pp. 87-190.
L., 10: 25-45.
3 Sobre a dicotomia Estado/sociedade civil, ver a obra
de Bobbio e Bovero (1986), em que é traçado um BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo
paralelo entre o modelo hegeliano e o modelo mar- (1986), Sociedade e Estado na filosofia po-
xista de distinção entre sociedade civil e Estado, e lítica moderna. São Paulo, Brasiliense
também, no âmbito da sociologia, o artigo de Boa-
(trad. Carlos Nelson Coutinho).
ventura de Souza Santos (1986), “Para uma sociolo-
gia da distinção Estado/sociedade civil”, publicado CERVINI, Raúl (1995), Os processos de descrimina-
em obra coletiva organizada por Doreodó Araújo
lização. São Paulo, Ed. Revista dos Tribu-
Lyra em homenagem a Roberto Lyra Filho, intitula-
da Desordem e processo. nais.
4 Sobre “tolerância zero”, ver Loïc Wacquant (2001). COSTA-LASCOUX, Jacqueline (1994), “La régula-
5 Para se ter uma amostra das pesquisas empíricas so- tion des petits désordres sociaux”. Les Ca-
bre a informalização da justiça norte-americana, ver hiers de La Sécurité Intérieure, 18: 139-
os artigos de Lance Selva e Robert Bohm (1987); 158, 4º trimestre.
Stella Hughes e Anne Schnider (1989); Dennis Pa-
lumbo e Michael Musheno (1994); ver também a DIAS, J. F. e ANDRADE, M. C. (1992), Criminolo-
tese de Luis Roberto Cardoso de Oliveira (1989), em gia – o homem delinqüente e a sociedade
que analisa as sessões de mediação de pequenas criminógena. Coimbra, Ed. Coimbra, 1ª.
causas cíveis de um ponto de vista antropológico. reimpressão.
6 Para se ter uma idéia, no Estado de São Paulo, os
primeiro Juizados Especiais Criminais somente fo- HUGHES, Stella e SCHNEIDER, Anne (1989),
ram criados no ano de 1998. “Victm-offender mediation: a survey of pro-
gram characteristics and perceptions of ef-
7 Sobre a noção de violência como um mecanismo de
excesso de poder, ver o artigo de José Vicente Ta- fectiveness”. Crime e delinquency, 35(a2).
vares dos Santos (1995, pp. 290-291): “Em seu con-
KANT DE LIMA, Roberto (1996), “A administração
junto, poderíamos considerar a violência como um
dispositivo de poder, no qual se exerce uma relação dos conflitos no Brasil: a lógica da puni-
específica com o outro, mediante o uso da força e ção”, in VELHO, G. e ALVITO, M., Cida-
da coerção: isto significa estarmos diante de uma dania e violência, Rio de Janeiro, Ed.
modalidade de prática disciplinar, um dispositivo, UFRJ/FGV.
que produz um dano social, ou seja, uma relação
que atinge o outro com algum tipo de dano. [...] a LIMA LOPES, José Reinaldo de (1996), “Uma intro-
violência compõe-se por linhas de força, consiste dução à história social e política do pro-
em um ato de excesso presente nas relações de po- cesso”, in WOLKMER, A. C. (org.), Fun-
der. Os processos de violência efetivam-se em um
damentos de história do direito, Belo Ho-
espaço-tempo múltiplo, recluso ou aberto, instau-
rando-se com justificativas racionais, desde a pres- rizonte, Ed. Del Rey.
crição de estigmas até a exclusão, simbólica ou físi- MERRY, Sally Engle (1982), “The social organization
ca. Porém, no dispositivo da violência, aparecem
também linhas de fratura, o que possibilitaria a pas- of mediation in nonindustrial societies, in
sagem a outros dispositivos, a outras formas de pos- ABEL (org.), The politics of informal justi-
sibilidade; a emergência de lutas sociais contra a ce, Nova York, Academic Press, vol. 2.
violência poderia representar uma dessas linhas de
fratura no dispositivo da violência.” OLIVEIRA, Luis Roberto Cardoso de (1989), Fair-
ness and communication in small claims
8 Sobre este tema, ver o artigo de Roberto Kant de
courts. Cambridge, Harvard University,
Lima (1996, pp. 165-177).
mimeo.
110 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

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varría et. al.).
ZAFFARONI, Eugenio Raúl (1991), Em busca das
penas perdidas: a perda de legitimidade
do sistema penal. Rio de Janeiro, Editora
Renavan (trad. Vania Romano Pedrosa e
Amir Lopes da Conceição).
182 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

JUIZADOS ESPECIAIS CRIMI- SPECIAL CRIMINAL COURTS: TRIBUNAUX PÉNAUX SPÉ-


NAIS: UMA ABORDAGEM SO- A SOCIOLOGICAL APPROACH CIAUX: UN ABORDAGE SO-
CIOLÓGICA SOBRE A INFOR- ON THE INFORMALIZATION CIOLOGIQUE À PROPOS DU
MALIZAÇÃO DA JUSTIÇA PE- OF THE PENAL JUSTICE IN CARACTÈRE INFORMEL DE LA
NAL NO BRASIL BRAZIL JUSTICE PÉNALE AU BRÉSIL

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Palavras-Chave Keywords Mots-clés


Controle penal; Administração da Penal Control, Administration of Pe- Contrôle pénal; Administration de la
justiça penal; Informalização; Juiza- nal Justice, Informalization, Special justice pénale; Caractère informel;
dos Especiais Criminais; Conflito so- Criminal Courts, Social Conflict and Tribunaux Pénaux Spéciaux; Conflit
cial e mediação. Mediation. social et médiation.

Por meio do estudo de caso da im- Through a case study of the implan- L’auteur a cherché, par l’étude de
plantação dos Juizados Especiais tation of the Juizados Especiais Cri- l’implantation des Tribunaux Pénaux
Criminais na cidade de Porto Alegre, minais (Special Criminal Courts) in Spéciaux dans la ville de Porto Ale-
confrontando as previsões legais the city of Porto Alegre, confronting gre, à comprendre le sens et les limi-
com a realidade empírica de um legal previews with empirical reality tes du caractère informel de la pres-
novo modelo de justiça penal, bus- of a new model of criminal justice, tation étatique de la justice pénale
cou-se compreender no presente this article aims to understand the au Brésil, depuis la promulgation de
trabalho o sentido e os limites da in- meaning and the limits of the infor- la Loi 9.099/95. Dans ce travail, il
formalização da prestação estatal de malization of the criminal justice in confronte les prévisions légales avec
justiça penal no Brasil, desde a pro- Brazil, since the enactment of the la réalité empirique d’un nouveau
mulgação da Lei 9.099/95. Ao retirar 9.099/95 law. By taking away from modèle de justice pénale. En sous-
do domínio da polícia o exercício the police the exercise of selectivity, trayant à la police l’exercice de la sé-
da seletividade e ao oferecer à víti- and giving to the victim the possibi- lectivité et en offrant à la victime la
ma a possibilidade de participação lity of participating in the process, possibilité de participation au pro-
no processo, o sistema penal infor- the informalized criminal system cès, le système pénal informatisé ou-
malizado abre novas perspectivas, opens up new possibilities, chan- vre de nouvelles perspectives, subs-
substituindo a punição pela media- ging punishment by mediation and tituant la punition par la médiation
ção e a violência pelo diálogo. Po- violence by dialog, even though it et la violence par le dialogue. Néan-
rém esbarra na dinâmica burocrati- collides with the bureaucratic and moins, il se heurte à la dynamique
zante e autoritária dos mecanismos authoritarian dynamics of the insti- bureaucratisante et autoritaire des
de vigilância e controle social insti- tutionalized vigilance and social mécanismes de vigilance et de con-
tucionalizados. control mechanisms. trôle social institutionnalisés.

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