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CLAUDE LEVI- STRAUSS A ANTROPOLOGIA DIANTE DOS PROBLEMAS DO MUNDO MODERNO a Copyright © 2093 ty Eton du seu _ Cleaba Laid xt il sob depo de Maurice Olen Sumario edt Mare Onder apace Monique i Sra, ue compart ira toga e gecesi ce apa da pb dete ole hardness de Cte Lv Sans ters sd ei fi etualizeda segundo 0 Acordo Orlogrdio da Lingua Portuguesa de 1950, aque entou sm gor Brasl 2m 208. tal orginal Anthropologie fe aux problemes da monde moderne capa Victor Baron Preporacio ‘Maria Fernanda Alares Revseo \ Carmen TS. Cost i Jane Pessoa Apresentagao, 7 _— 1, O fim da supremacia cultural do Ocidente, 9 eee en | “Aptender com os outros, 9 Seagal Stefi Gmpetiactoners Fatos singulares e estranhos, 12 ‘i gasp prebined onde | Um denominador comum, 18 entre aga | “Autenticidade” ¢ “inautenticidade”, 23 {soar oo is. kee Mae “Na perspectiva ocidental que 6a minha”, 28 Um “optimum de diversidade”, 34 | 2. Trés grandes problemas contemporaneos: a sexualidade, canna ‘0 desenvolvimento econdmico ® pensamento mitico, 39 Genitor, emprestadora de titerc efiliagao social, 40 beovs} Procriagdo artificial: mulheres virgens e casais Todatos diets dea edi reienadon nee a Bandeia Paulista yon 6) 3 Do silex da pré-histéria & cadeia industrial moderna, 49 (4532-002 — Sie Paolo — $ Carter ambiguo da “natureza”, Telefone (01) 3707-3500 Seed ax (10) 707-3594 rw companhindssleteascom be wor blogdacompanha.com br “Nossas sociedades sio feitas para mudar”, 57 Que afinidades entre pensamento cientifico, histérico € mitico?, 62 3. Reconhecimento da diversidade cultural: 0 que nos ensina a civilizagao japonese, 69 Antropdlogos e geneticistas, 69 “Raga” — um termo impréprio, 74 Oeescindalo da diversidade, 79 “A arte do imperfeito”, 84 Relativismo cultural ¢ julgamento moral, 89 Apresentagao Maurice Olender Por ocasio de sua quarsa viagem ao Japao, na primavera de 1986, Claude Lévi-Strauss escreveu os trés capitulos que com- poem este livro — trés conferéncias proferidas em Téquio a con- vite da Pundagao Ishizaka. Ele escolheu para esse conjunto 0 titulo que agora é o deste livro: A antropologia diante dos proble- ‘mas do mundo moderno. Para destacar os grandes temas de sua obra, comenté-los e atualizé-los, Claude Lévi-Strauss volta livremente a seus escritos. Assim, relé este ou aquele texto que 0 tornou célebre, retomando 0s principais temas de sociedade que sempre o inquietaram, em especial a respeito dos lagos entre “raca”, histéria e cultura, Ou entio, medita sobre o futuro possivel de novas formas de huma- nismo num mundo em plene transformagéo. Se os leitores de Lévi-Strauss reencontram neste volume as, ‘questdes que servem de base a seus trabalhos, as novas geragdes poderio descobrir aqui uma visio de futuro proposta pelo famoso antropélogo. Sublinhando a importancia da antropologia como novo “humanismo democratico”, Claude Lévi-Strauss se inter- -oga sobre “o fim da supremacia cultural do Ocidente”, sobre os acos entre relativismo cultural e julgamento moral. Quando exa- mina os problemas de uma sociedade que se tornou mundial, ambém interroga as praticas econdmicas, as questdes ligadas & procriacio artificial, aos lagos entre pensamento cientifico e pen- samento mitico. Nestas trés conferéncias, Claude Lévi-Strauss revela, por fim, suas inquietagées relativas aos problemas cruciais de um mundo prestes a entrar no século xx1, como as afinidades entre as diversas formas de “explosio ideoldgica” eo futuro dos integrismos. Reconhecida mundialmente, a obra de Claude Lévi-Strauss é hoje um laboratério de pensamento aberto para o futuro. Este livro ser, sem diivida, para os estudantes e para as novas geragdes, a melhor introducao 4 inteligencia sensivel do mundo de Claude Lévi-Strauss. 1.O fim da supremacia cultural do Ocidente Minhas primeiras palavras sero para agradecer & Fundacao Ishizaka pela imensa honra que me faz confiando-me este ano conferéncias ilustradas desde 1977 por tantas eminentes persona- lidades, Agradeco-lhe igualmente por ter me proposto como temaa maneira como a antropologia — disciplina a que dediquei minha vida — encara os problemas fundamentais com 0s quais é confrontada a humanidade de hoje. Comegarei por lhes dizer como a antropologia formula esses problemas na perspectiva peculiar que é a sua. Tentarei em seguida definir 0 que é a antropologia e mostrar como ela langa sobre os problemas do mundo contemporaneo um olhar original, sem pretender resolvé-los sozinha, mas na esperanga de melhor compreendé-los. APRENDER COM OS OUTROS Ha cerca de dois séculos, a ci lizagao ocidental definiu a si mesma como a civilizagao do progresso. Irmanadas no mesmo ideal, outras civilizagdes acreditaram dever toma-la como modelo, Todas partilharam a convicgao de que a ciéncia eas téc- nicas avangariam sem cessar, proporcionando aos homens mais poder e felicidade; que as instituigées politicas, as formas de organizagdo social surgidas no final do século xvimt na Franca e nos Estados Unidos, ea filosofia que as inspirava, dariam a todos 08 membros de cada sociedade mais liberdade na conduta de suas vidas pessoais ¢ mais responsabilidade na gestio dos negé- cios comuns; que 0 julgamento moral, a sensibilidade estética, em suma, 0 amor ao verdadeiro, ao bom e ao belo se propaga- riam por um movimento irresistivel e ganhariam 0 conjunto da terra habitada, Osacontecimeatos de que o mundo foi palco durante o pre sente século desmeatiram essas previsdes otimistas. Ideologias totalitarias se espalharam e, em varias regiées do mundo, conti nuam a se espalhar. Os homens foram exterminados as dezenas de milhdes, entregaram-se a terriveis genocidios. Mesmo uma vez restabelecida a paz, nio Ihes aparece mais como certo que a cién- cia e a técnica tragam apenas beneficios, nem que os principios filos6ficos, as instituigdes politicas e as formas de vida social nas- cidas no século xvi1t constituam solugdes definitivas para os grandes problemas postos pela condigao humana, As cigncias e as técnicas estenderam prodigiosamente nosso conhecimento do mundo fisico e biolégico, Deram-nos um poder sobre a natureza que ninguém poderia suspeitar ha apenas um século, Comecamos, porém, a calcular o prego que foi preciso Pagar para obté-lo, De modo crescente, apresenta-se a questio de saber se essas conquistas nao tiveram efeitos deletérios. Elas puse- ram meios de destraicao macigos a disposi¢ao dos homens, e, conquanto inutilizados, apenas por sua presenga esses meios ameagam a sobrevivéncia de n ssa espécie. De modo mais insi dioso, porém real, essa sobrevivencia também é ameagada pela rarefacgo ou pela poluigao dos bens mais essenciais: 0 espago, 0 ara dgua, a riqueza ea diversidade cos recursos naturais Gragas,em parte, aos progresses da medicina, 0 numero de setes humanos nao parou de crescer, a tal ponto que, em vérias regides do mundo, j4 nao se chega a satis mentares de populagoes sujeitas a fome. regides capazes de garantir sua subsisténcia, ainda assim se mani- fazer as necessidades ele- Em outros lugares, nas festa um desequilfbrio pelo fato de cue, para dar trabalho a indi- ‘viduos cada vez mais numerosos, é necessério produzir cada vez mais. Sentimo-nos, assim, arrastados numa corrida sem fim amo a uma produtividade maior. A produgio apela ao consumo, que, por sua vez, exige ainda mais produgao. Fracdes cada vez maiores de populagao sio como queaspiradas pelas necessidades diretas ou indiretas da indastria. Vao se concentrar em enormes aglomeragées urbanas que Ihes imp3em uma existéncia artificial e desumanizada, O funcionamento das instituiges democraticas, as necessidades de protecao social provocam, por sua ve7, a cria 20 de uma burocracia invasora quetende a parasitar e a paralisar © corpo social. Chegamos a nos perguntar se as sociedades modernas construfdas sobre esse modelo nao se arriscam a, em breve, se tornar ingoverndveis. Por muito tempo um ato de fé, a crenga em um progresso material ¢ moral votado a jamais se interromper sofre, assim, sua crise mais grave. A civilizagao de tipo ocidental perdeu 0 modelo que dera a si mesma, jé nao ousa oferecer esse modelo as outras Portanto, nao convém olhar para outros lugares, alargar os quadros tradicionais em que se fechavam nossas reflexdes sobre a condigio humana? Nao devemos ai integrar esperiéncias sociais mais varia das e mais diferentes das nossas, além dessas em cujo horizonte estreito por muito tempo nos confiramos? Posto que a civilizagao de tipo ocidental nio encontra mais em seu préprio fundo com 0 que se regenerar e tomar novo impulso, pode ela aprender alguma coisa sobre © homem em geral, ¢ sobre si mesma em particular, nessas sociedades humildes ¢ por muito tempo desprezadas, que até época relativamente recente haviam escapado a sua influéncia? ssas sio as perguntas que hi algumas dezenas de anos se fazem os Pensadores, eruditos ou homens de agao, e que os incitam — jé que 45 outras ciéneias sociais, mais centradas no mundo contempor’- neo, nao Ihes fornecem resposta — a interrogar a antropologia. O gue é, entao, essa disciplina que por muito tempo permaneceu na sombra, e sobre a qual se percebe que ela tem talvez alguma coisa a dizer sobre esses problemas? FATOS SINGULARES E ESTRANHOS Tao longe quanto se procuram exemplos no tempo ¢ no espago, a vida ea atividade do homem inscrevem-se em quadros que oferecem caracteres comuns. Sempre ¢ em todo lugar, 0 homem ¢ um ser dotado da linguagem articulada. Ele vive em sociedade. A reprodugao da espécie nao esté abandonada ao caso, mas esta sujeita a regras que excluem um certo mimero de uunides biologicamente vidveis. O homem fabrica e utiliza ferra- mentas, que ele emprega em técnicas variadas. Sua vida social se exerce em conjuntos institucionais cujo contetido pode mudar de um grupo a outro, mas cuja forma geral permanece constante. Por procedimentos diferentes, certas fungdes — econdmica, edu- cativa, politica, religiosa — so regularmente garantidas. Entendida em seu sentido mais amplo, a antropologia é a disciplina que se dedica ao estudo dese “fendmeno humano” Sem diivida, este faz parte do conjunto de fendmenos naturais. No entanto, apresenta, em relacio as outras formas da vida ani mal, caracteres constantes ¢ especificos que justificam que seja estudado de modo irdependente Nesse sentido, pode-se dizer que a antropologia é tao velha quanto a prépria humanidade. Nas épocas sobre as quais pos- ‘suimos testemunhos histéricos, preocupagé que chamariamos hoje de antropologico sio manifestas nos ‘memorialistas que acompanharam Alexandre, o Grande, na Asia, de um género a bem como em Xenofonte, Herédoto, Pausanias e—de um angulo mais filoséfico — também em Aristételes e em Lucrécio, No mundo érabe, Ibn Batuta, grande viajante, ¢ Ibn Khal- dun, historiador e filésofo, testemunham no século xv1 um espi- rito autenticamente antropolégico, assim como, varios séculos antes, 0s monges budistas chineses que foram a India para se documentar sobre 2 religido deles, ¢ os monges japoneses que, hina. com 0 mesmo objetivo, visitaram a Nessa época, as trocas entre 0 Japao e a China se faziam sobretudo por intermédio da Core.a ¢, neste pais, a curiosidade antropolégica é atestada desde o século vit de nossa era. O meio-irmao do rei Munmu, dizem as antigas crdnicas, s6 aceitow se tornar primeiro-ministro com a condigao de, primeiro, viajar incégnito pelo reino para observar a vida popular. Pode-se ver af uma primeira pesquisa etnografica,embora, a bem da verdade, os etnégrafos de hoje nao costumem teceber do anfitriao indigena que os acolhe, como esse dignitario coreano, uma encantadora concubina para partilhar seu leito! Sempre nas crdnicas coreanas, esta dito que o filho de um certo monge que escrevia livros sobre 0s costumes populares da China e de Sila foi, por essa razao, posto entre os dez grandes sabios desse reino. Na Idade Média, a Europa descobre o Oriente, primeiro por ocasido das cruzadas, depois pelos -elatos de emissarios enviados no século xuir junto aos monggis pelo papa e pelo rei da Franca; @, sobretudo, no século xiv, gracas a longa temporada de Marco Polo na China. No inicio do Renascimento, comecam-se a dis tinguir as fontes muito diversas des quais, dai em diante, decor rerd a reflexdo antropolégica, como, por exemplo, a literatura suscitada pelas invasées turcas na Europa oriental e no Mediter neo; as fantasias do folclore medieval prolongam as da Anti- guidade sobre as “racas plinianas”, assim chamadas porque con- descendentemente descritas no século 1 de nossa era por Plinio, © Velho, em sua Histéria natural: povos selvagens monstruosos pela anatomia e pelos costumes, O Japao nao ignorou tais imagi- nagGes, € decerto porque o pais se isolava voluntariamente do resto do mundo elas ali sobreviveram mais tempo no espirito popular. Durante minha primeira temporada no Japio, recebi de presente uma enciclopédia publicada em 1789, intitulada Zoho Kunmo Zui. Na parte geografica, consideram-se reais os povos exéticos gigantes, ou dotados de bracos e pernas desmesurada- mente longos. Na mesma época, a Europa, mais bem informada, acumu. Java 0s conhecimentos ositivos que, desde o século xv1, come ‘savam 2 afluir da Africa, da América e da Oceania por ocasio das grandes descobertas, Muito depressa as compilagdes desses rel la- tos de viagem viraram na Alemanha, na Suiga, na Inglaterra e na Franga uma moda prodigiosa. Essa enorme literatura de viagem alimentaré a reflexac antropolégica que se inicia na Franga com Rabelais e Montaigne e que ganha toda a Europa a partir do século xvint Nela se encontra, aliés, o eco do Japao nas viagens apresenta das como imaginarias, por falta de conhecimento direto dos pai ses distantes. Tal como a viagem ficticia de Oe Bunpa ao pais de Harashirya, palavra atrés da qual se reconhece o Brasil, habitado Por indigenas “que ignoram a cultura dos cereais, se alimentam de raizes secas, nao tém rei e s6 tém como nobres os mais habeis em atirar com o arco’. £, com pouca diferenga, 0 que dois séculos antes relatava Montaigne depois de ter conversado com indios brasileiros levados para a Franca por um navegador. Mesmo se datarmos do século x1x 0 inicio da pesquisa antropolégica tal como € praticada hoje, ea teve como primeira motivagdo 0 que se poderia chamarde curiosidade de antiquatr. Observava-se que as grandes disciplinas classicas — histdria, ar quecloga, lologia, cincias que goravam plenamente do direito de existir nos curriculos niversitérios — esqueciam atras de si toda espécie de residuos, de detritos. Um pouco como trapeiros, curiosos empreendiam recolher esses fiapos de conhecimentos, esses fragmentos de problemas, estes detalhes pitorescos que as outras ciéncias rejeitavan desdenhosamente em suaslatas de lixo intelectuais, No inicio, a antropologia nao foi decerto nada além do que essa coleta de fatos singulares e estranhos. E no entanto desco bria-se pouco a pouco que esses detritos, esses residuos eram ais importantes do que se pensava. A razio é facil de entender. © que impressiona 0 homem no espeticulo dos outros, homens sao os pontos em que se assemelham, Historiadores, ar- quedlogos, filésofos, moralistas, liseratos pediram primeiro aos povos recém-descobertos uma confirmagio de suas prdprias cren- «as sobre o passado da humanidade. Isso explica porque, durante 0 grandes descobrimentos do Rerascimento, os relatos dos pri- meiros viajantes néo tenham causado surpresa: acreditava-se menos em descobrir novos mundas que encontrar o passado do mundo antigo, Os géneros de vida dos povos selvagens demons. travam que a Biblia, os autores gregos ¢ latinos diziam a verdade a0 descrever ojardim do Eden, a dade de Ouro, a Fonte da Juven tude, Atlantida ou as Thas A fortunadas Todos negligenciavam, e até mesmo se recusavam a ver, as diferengas que, porém, sio essencais desde que se trata de estu dar o homem. Pois, como devia dizer mais tarde Jean-Jacques Rousseau, “é preciso primeiro observar as diferencas para desco- brir as propriedades” la-se também fazer outra descoberta: essas singularidades, essas estranhezasse ordenavam entre si de modo muito mais coe- rente que os fenémenos considerados como 0s tinicos importan- tes sobre os quai is se havia fixado a atengao. Fatos negligenciados ‘owapenas estudados, tal como a maneira de sociedades diferentes partilharem o trabalho entre os sexos — em determinada socie- dade, sio os homens ou as mulheres que se dedicam a ceramica, & tecelagem, ou que cultivam a terra? —, permitem comparar ¢ classificar as soc.edades humanas a partir de bases muito mais sélidas do que antes se conseguia fazer. Citei a divisio do trabalho; poderia falar também das regras de residéncia, Quando ocorre um casamento, onde vio morar os jovens recém-casados? Com os parentes do marido? Com os da mulher? Ou instalam uma residéncia independente? Da mesma maneita, as regras da filiagao e do casamento, por muito tempo deixadas de lado, de tal forma pareciam caprichosas € destituidas de sentido. Por que um grande niimero de povos do mundo diferencia os primos em duas categorias, dependendo se sao oriundos seja de dois irmaos ou de duas irmas, seja de um irmao e de uma irma? Por que, nesse caso, condenam 0 casa- mento entre primos do primeiro tipo ¢ o preconizam, ¢ até 0 impoem, entre primos do segundo tipo? E por que 0 mundo arabe, praticamente 0 tinico, é excegao a essa regra? ‘Também, da mesma forma, as proibigées alimentares, que fazem com que, mundo afora, nao haja povo que nao procure afirmar sua originalidade proscrevendo esta ou aquela categoria de alimentos: o leite na China, 0 porco para os judeus ¢ 0s mucul manos, 0 peixe para certas tribos americanas, a carne de cervi- deos para outras,e assim por diante. Todas essas singularidades constituem outras tantas dife- rengas entre os povos, No entanto, essas diferengas so compa- raveis na medida em que nao existe praticamente povo em que nao seja possivel observa-las. Dai o interesse que tém os antro- pologos pelas variagdes aparentemente fiiteis mas que permi- tem estabelecer classificagbes relativamente simples, introdu- rindo na diversidade das sociedades humanas uma ordem comparavel aquela que os 206logos ¢ 0s botnicos utilizam para classificar as espécies naturais. A esse respeito, as pesquisas mais eficazes foram aquelas referentes as regras da filiacao e do casamento, De fato, as socie- dades estudadas pelos antropélogos podem ter efetivos muito varidveis, indo de algumas dezenas de pessoas a diversas cente- nas ou varios milhares, Todavia, comparadas As nossas, essas sociedades tém dimensdes muito reduzidas, de sorte que as rela- gdes humanas ai oferecem um caréter pessoal. Nada o mostra melhor do que a tendéncia das sociedades sem escrita a conce- berem as relagdes entre seus membros @ partir do modelo do parentesco: ali todos sao irmao, irma, primo, prima, tio, tia ete. de todos, E quem nao é parente, é um estrangeiro, portanto, um. inimigo potencial. Nem sequer é necessirio retragar as genealo gias: em muitas dessas seciedades, regras simples permitem atribuir cada individuo, pelo fato de seu nascimento, a esta ou Aquela categoria entre as quais prevalecem relagdes equivalentes a lagos de parentesco. Ora, nao existem sociedades, por mais humilde que seja seu nivel técnico e econdmico, € por mais diferentes que sejam por seus costumes sociais e suas crengas religiosas, que nao possuam uma nomenclatura de parentesco e de regras de casamento que distingam os individuos aparentados entre conjuges permitidos e conjuges proibidos, Portanto, tem-se ai um primeiro meio de dis. tinguir as sociedades umas das outras e dar a cada uma seu lugar numa tipologia. UM DENOMINADOR COMUM Quais sao, pois, essas sociedades estudadas por predilecio pelos antropélogos e que estamos habituados, por uma longa tradi- ‘gio, a qualificar ée “primitivas”, termo que muitos hoje recusam gue, de qualquer maneira, seria necessirio defini com exatidio? Em geral designam-se assim agrupamentos humanos que diferem principalmente dos nossos pela auséncia de escritae de meios mecanicos, mas a respeito dos quais convém nao esquecer certas verdades primeiras: essas sociedades oferecem o tinico modelo para se compreender a maneira como os homens vive- ram juntos durante um periodo histérico correspondendo sem diivida a 99% da duragao total da vida da humanidade, e, do ponto de vista geografico, numa época ainda recente, em trés quartos da superficie da terra habitada. Portanto, as informagoes que nos trazem essas sociedades nao decorrem tanto do fato de que elas poderiam ilustrar etapas de nosso passado longinquo. Elas ilustram mais uma situacio geral, um denominador comum da condigio humana, Vistas dessa perspectiza, sio as altas civilizagbes do Ocidente e do Oriente que constituem excegdes. Na verdade, os avancos das pesquisas etnoldgicas nos con- vencem mais € mais de que essas sociedades vistas como atrasa- das, consideradas como “abandonadas” pela evolucao, rejeitadas a regiOes marginais ¢ fadadas & extin¢ao, constituem formas de vida social originais, So perfeitamente viéveis enquanto nao forem ameagadas do exterior. Assim, procuremos melhor delimitar seus contornos. Em ultima instancia, elas consistem em pequenos grupos compreendendo entre algumas dezenas e algumas centenas de pessoas, afastadas u nas das outras por varios dias de viagem a pé,e cuja densidade demogratica se situa em torno de 0,1 habi tante por quilémetro quadrado. Sua taxa de crescimento é muito baixa, nitidamente inferior a 1%, de modo que os ganhos de populagao compensam aproximadamente as perdas. Por conseguinte, seu efetivo nao varia. Essa constancia demografica é consciente ou inconscientemente garantida por diversos pro- cedimentos: tabus sexuais depois do parto, aleitamento prolon- gado que retarda na mulher o restabelecimento dos ritmos fisio- logicos. E impressionante que, em todos os casos observados, um crescimento demogritfico nao incite o grupo a se reorgani- zar em novas bases. Tornando-se mais numeroso, o grupo se cinde e da origem a duas pequenas sociedades da mesma ordem de grandeza que a anterior Esses pequenos grupos tém uma capacidade espontnea de eliminar de seu seio as doergas infecciosas. Os epidemiologistas deram a razio: os virus dessas doengas s6 sobrevivem em cada individuo durante um numero limitado de dias, e devem por- tanto circular constantemente para se manter no conjunto da populacao. Isso s6 é possivel se o ritmo anual dos nascimentos for elevado o suficiente, condigao possivel apenas a partir de um efe- tivo demogréfico de varias centenas de milhares de pessoas. Ha que acrescentar que, nos meios ecolégicos complexos coma aqueles onde vivem povos cujas crengas e praticas, que erradamente julgamos como supersticdes, visam a preservar recursos naturais, as espécies vegetais e animais sio muito diver- sas. Mas, sob os tr6picos, cada uma sé conta com um pequeno numero de individuos por unidade de superficie, e este é também 0 caso das espécies infecciosas ou parasitas: portanto, as infeccdes podem ser multiplas embora permanecendo de baixo nivel cli- nico. A doenga chamada Sida na Franga, e Aids em inglés, oferece um exemplo de atualidade. Essa doenga viral, localizada em alguns focos da Africa tropical onde provavelmente vivia em equilibrio com as populagoes indigenas hé milénios, tornou-se tum risco maior quando os acasos da histéria a introduziram nas sociedades mais volumosas. Quanto is doengas nao infecciosas, em geral esto ausentes por virias razdes: grande atividade fisica, regime alimentar muito mais variado que o dos povos agricultores, apelando para uma centena de espécies animais e vegetais, as vezes mais, pobre em gorduras, rico em fibras e em sais minerais, garantindo um aporte suficiente em proteinas e em calorias. Daf a auséncia de obesi- dade, de hipertensio, de distirbios circulatérios Portanto, nada de espantoso se um viajante francés que visi- tou 0s indios do Brasil no século xvi pudesse se admirar porque esse povo — cito-0 — “composto dos mesmos elementos que nés [..] nunca [...] é atingido por lepra, paralisia, letargia, doengas cancrosas, nem tilceras, ou outros vicios do corpo que se veem superticialmente e no exterior”; ao passo que, no século ou século € meio que se seguiu a descoberta da América, as populagées do México e do Peru cairam de uma centena de milhdes para quatro ou cinco, sob os golpes, menos dos conquistadores que das doen- 628 importadas, que se tornaram mais virulentas por causa dos novos géneros de vida impostos pelos colonizadores: variola, sarampo, escarlatina, tuberculose, maliria, gripe, caxumba, febre amarela, cdlera, peste, difteria, e paro por aqui. Assim sendo, estariamos errados em depreciar essas socieda- des porque as conhecemos num estado miseravel. © que, mesmo empobrecidas, Ihes da um valor inestimavel é que as milhares de sociedades que existiram, e das quais algumas centenas continuam a existir na superficie da Terra, constituem experiéncias jd prontas: as tinicas de que dispomos, ji que, diferenga de nossos colegas das ciencias fisicas e naturais, ndo podemos fabricar nossos objetos de estudo, que sio as sociedades, e fazé-las funcionar no laboratério. Es ‘mais diferentes das nossas nos proporcionam o meio de estudar os as experiéncias tiradas de sociedades escolhidas porque sao as homens, suas obras coletivas, para tentar compreender como 0 espirito humano funciona nas situagdes concretas mais diversas em que a histéria e a geografia o puseram. Ora, sempre e em qualquer lugar, a explicacao cientifica repousa sobre 0 que se podria chamar de boas simplificagdes. Desse ponto de vista, a antropologia faz da necessidade virtude. Como acabo de dizer, uma fracao importante das sociedades que ela escolhe estudar é pequena pelo volume, ¢ concebe a si mesma sob 0 modo da estabilidade. Essas sociedades exéticcs estdo afastadas do antropélogo que as observa. Uma distancia néo s6 geografica mas também intelec- {ual e moral os separa, Esse afastamento reduz nossa percepgao a alguns contornos essenciais. De bom grado eu diria que, no con- junto das cincias sociais e humanas, o antropélogo ocupa lugar compardvel aquele que cabe ao astrnomo no conjunto das cién- ciasfisicase naturais. Pois, sea astronomia péde se constituir como ciéncia desde a mais alta Antiguidade, foi porque, na propria falta de um método cientifico que ainda nao existia,o afastamento dos corpos celestes permitia ter deles uma visio simplificada, Os fendmenos que observamos esto extremamente longe de nds, Longe, como eu disse, primeiro no sentido geografico, ja que outrora precisivamos vajar durante semanas ou meses para alcancar nossos objetos de estudo. Mas longe, sobretudo, num sentido psicolégico, na medida em que esses detalhes menores, esses fatos humildes em que fixamos nossa atengao repousam em motivag6es de que os individuos nao tém clara ou nenhuma cons: ciéncia. Estudamos linguas mas os homens que as falam nao tém consciéncia das regras que aplicam para falar e ser entendidos. Nao somos tampouco conscientes das raz6es pelas quais adota mos um alimento e proscrevemos outro, Nao somos conscientes da origem e da fungao real de nossas regras de boa educagao ou de nossas maneiras & mesa. Todos esses fatos, que mergulham nos- sas raizes no mais profundo do inconsciente dos individuos e dos grupos, sio aqueles mesmos que tentamos analisar e com- preender apesar de uma distancia psiquica interior que, em outro plano, duplica 0 afastamento geografico. Mesmo em nossas sociedades, em que nia existe essa distan- «ia fisica entre 0 observador e seu objeto, subsistem fenomenos compardveis aqueles que vamos procurar muito longe. A antropo- logia retoma seus direitos e reencontra sua funcao em qualquer lugar onde usos, géneros de vida, praticas ¢ técnicas nao foram var- ridos pelas reviravoltas histéricas e econdmicas, atestando assim que eles correspondem a algo suficientemente profundo no pensa- mento e na vida dos homens para resist as forgas de destruid0; portanto, por todo lado onde a vida coletiva das pessoas comuns — esas que o ilustre antropdlogo Yanagida Kunio chamava de jémin — ainda se baseia, em primeiro lugar, nos contatos pessoais, nos lacos de familia, nas relagdes de vizinhanga, seja nas aldeias, seja nos bairros das cidades: em suma, nos pequenos ambientes tradi- cionais em que a tradigao oral se mantém. Alids, parece-me tipico dessas relagdes de simetria que observamos entre a Europa ocidental eo Japao o fato de que a pesquisa antropoldgica ai se inicia na mesma época — no século XVIII —, mas, na Europa ocidental, sob o impulso das grandes viagens que dio acesso ao conhecimento das culturas mais dife- rentes, a0 passo que no Japio, entdo fechado sobre si mesmo, a pesquisa antropolégica tem provavelmente suas raizes na escola Kokugaku, em cuja linha, um século mais tarde, o monumental empreendimento de Yanagida Kunio ainda parece se inscrever, pelo menos aos olhos do observador ocidental. Também é no século xvint que a pesquisa antropolégica se inicia na Coreia, com 0s trabalhos da escola de Silhak, que se concentram na vida rural € nos costumes populares no préprio pais, e nao, como na Europa, nos povos distantes. Recolhendo uma multidéo de fatos mitidos que, por muito tempo, 0s historiadores julgaram indignos de sua atengao, suprindo pela observacao direta as lacunas ¢ as insuficiéncias dos documentos escritos, tentando conhecer 0 modo como as pessoas rememoram o passado de seu pequeno grupo — ou como o ima ginam —, 0 modo também como vivem o presente, chegamos a constituir arquivos de um tipo original ea por de pé o que Yana. gida Kunio, para cité-lo de novo, chamava bunkagaku, “ciéncia da cultura”, isto é, numa palavra, a antropologia. “\UTENTICIDADE” E “INAUTENTICIDADE™ Chegando a esse ponto, estamos em melhores condicdes de compreender o que € a antropologia e o que faz sua originalidade. A primeira ambigao da antropologia é atingir a objetividade. Para ela nao se trata apenas de uma objetividade que permite a quem a pratica fazer abstracao de suas crengas, de suas preferéncias ede seus preconceitos. Tal objetividade caracteriza todas as cién- cias sociais, do contrério ndo poderiam pretender ter o nome de ciéncia. O tipo de objetividade a que pretende a antropologia vai ‘mais Jonge. Ela nao se contenta em elevé-la acima dos valores pré- prios & sociedade ou ao meio social do observador, mas de seus métodos de pensamento: alcangar formulagdes vélidas nao s6 para uum observador honesto e objetivo, e sim para todos os observado. res possiveis. Portanto, o antropélogo nao faz apenas calar seus sentimentos. Ele molda novas categorias mentais, contribui para introduzir nogdes de espago e de tempo, de oposigao e de contradi- ‘lo, 180 estranhas a seu pensamento tradicional como as que se encontram hoje em certos ramos das cigncias fisicas e naturais Essa relagdo entre a maneira como os mesmos problemas se apre sentam em disciplinas muito afastadas foi admiravelmente perce- bida pelo grande fisico Niels Bohr, quando ele escreveu em 1939: “As difereneas tradicionais entre culturas humanas |... se parecem ‘em muitos pontos as diversas maneiras equivalentes como os resul- tados de experiénciasfisicas podem ser descritos”.* A segunda ambcdo da antropologia ¢ a totalidade. Ela vé na vvida social um sistema em que todos os aspectos esto organica- mente ligados. Ela reconhece de bom grado que, para aprofundar 0 conhecimento de fendmenos de certo tipo, ¢ indispensavel frag- mentar um conjunto, como fazem o jurista, 0 economista, o demé- grafo, o especialista de ciéncia politica. Mas 0 que o antropélogo procura é a forma comum, sio as propriedades invariantes que se ‘manifestam por tris dos mais diversos géneros de vida sociais. Para ilustrar com um exemplo consideracdes que podem parecer aos senhores abstratas demais, vejamos como um antro- pologo apreende certos aspectos da cultura japonesa. ‘Sem duivida, nao é preciso ser antropdlogo para observar que ‘o marceneiro japonés se serve do serrote e da plaina ao contrério de seus colegas ocidentais: ele serra e aplaina puxando a ferta- menta em diregao a si, e nao a empurrando para longe, O fato ja tinha impressionado Basil Hall Chamberlain no fim do século XIX, Esse professor da universidade de Téquio, observador sagaz da vida e da cultura japonesas, era um eminente fildlogo. Em seu célebre livto Things Japanese, ele registra o fato, assim como varios outros, na rubrica “Topsy-turvidom”, que traduzo aproxi- madamente por “onde tudo esti de ponta-cabeca”, como uma ‘esquisitice & qual ndo dé significado particular. Em suma, nao vai mais longe que Herédoto ao observar, ha mais de 24 séculos, que em relagao a seus compatriotas gregos os antigos egipcios faziam tudo pelo avesso. * Niels Bohr. Physique atomique et connaissance humaine, Paris: Gallimard, 1991, p.33 (Col. Folio Essais, n° 157) \ i | i \ De seu lado, especialistas da lingua japonesa notaram como sendo uma curiosidade o fato de que um japonés que se ausenta por um curto instante (pér uma carta no correio, comprar 0 jornal ou um maco de cigarros) dira de bom grado algo como “Itte mairi- ‘mdsu"; a0 que lhe respondem “Ite irasshai”, Portanto, a énfase nao é posta, como nas linguas ocidentais em circunstancia semelhante, na decisio de sair, mas na intencdo de um préximo retorno. Da mesma maneira, um especialista da antiga literatura japonesa sublinhara que a viagem aqui é ressentida como uma dolorosa experiéncia de dilaceragdo, e permanece cercada pela obsessio do retorno ao pais. Do mesmo modo, enfim, em nivel mais prosaico, parece que a cozinheira japonesa nao diz, como na Europa, “mergulhar na fritura” mas‘ levantar” ou “elevar” (ageru) para fora da fritura, © antropélogo se recusard a considerar esses fatos menores como varidveis independentes, particularidades isoladas. Ao con- trario, ficaré admirado com 0 que eles tem de comum. Em campos diferentes e com modalidades diferentes, trata-se sempre de trazer para si, ou de levar a si mesmo para dentro, Em vez de por no inicio ‘0 “eu” como entidade auténoma e jé constituida, tudo se passa como se o japonés construisse seu eu partindo do exterior. O “eu” japonés aparece assim nao como um dado primitivo mas como um resultado para o qual se tende, sem certeza de atingi-lo. Nada de espantoso se, como me afirmam, a famosa proposta de Descartes “Penso, logo existo” é rigorosamente intraduzivel em japonés. Em ‘campos tio variados como a lingua filada, as técnicas artesanais, as preparacées culindrias, a histéria das ideias (eu poderia acrescentar aarquitetura domestica, pensando nas numerosas acepgoes que os senhores do a palavra “uchi"),* uma diferenga ou, mais exata- * Uchi significa a0 mesmo tempo a casa como consteucio,o interior, a familia, © ‘grupo intimo, a empresa para os homens de negdcios, em linguagem popular. ‘mente, um sistema de diferencas invariantes se manifesta em nivel profundo entre oque, para simplificar, chamarei de alma ocidental € de alma japonesa, que se pode resumir pela oposigao entre um movimento centripeto e um movimento centrifugo. Esse esquema servird ao antropélogo de hiptese de trabalho para tentar melhor compreender a relacao entre as duas civilizages. Para o antroplogo, enfim, a busca de uma objetividade total 86 pode se situar num nivel em que os fendmenos guardem um significado para uma consciéncia coletiva. £ esta uma diferenca essencial entre o género de objetividade & qual aspira a antropolo- gia e aquela com que se contentam as outras ciéncias sociais, As realidades que visam, por exemplo, a ciéncia econdmica ou a demografia nao s4o menos objetivas, mas nao se pensa em Ihes pedir para ter um sentido na experiéncia vivida do sujeito, que af nao encontra objetos como o valor, a rentabilidade, a produtivi- dade marginal ou a populagdo maxima. Essas so nogies abstra- tas, situadas fora do campo das relagdes pessonis, dos lagos con- cretos entre os individuos, que so a marca das sociedades pelas quais se interessam os antropéloges. Nas nossas sociedades modernas, as relagées com 0 outro nao so mais, senio de modo ocasional e fragmentirio, fundadas nessa experiéncis global, nessa apreensio concreta dos sujeitos uns pelos outros. Elas resultam, na maioria, de reconstrugdes indiretas com 0 auxilio de documentos escritos. Estamos ligados @ nosso passado, nao mais por uma tradigao oral que supde um contato vivido com pessoas, mas por livros e outros documentos empilhados nas bibliotecas, por meio dos quais a critica se empe- nha em reconstituir 0 rosto de seus autores. E no presente nos comunicamos com a imensa maioria de nossos contemporaneos Por intermedidrios de toda espécie — documentos escritos ou ‘mecanismos administrativos — que multiplicam imensamente nossos contatos mas ao mesmo tempo thes conferem um carter de inautenticidade. Este marca doravante com seu seloas relagdes, entre 0s cidadios e os poderes. ‘A perda de autonomia,o afrouxamento do equilibrio interno que resultou da expansio das formas indiretas de comunicagao (livro, fotografia, imprensa, ridio, televisio) destacam-se no pri- meiro plano das preacupacées dos tedricos da comunicagao. Desde 1948 as encontramos na pluma do grande matematico Norbert Wiener, criador, com Von Neumann, da cibernética, e, com Claude Shannon, da teoria da informagao. Raciocinando sobre bases totalmente diferentes das do antropélogo, Wiener observava no iiltimo capitulo de seu livro fundamental Cybernetics. Control and Communication in the ‘Animal and the Machine (1948) — cito: “As pequenas comunida- des estreitamente soldadas tm um grau de homeostasia conside- rave € isso, que se trate de comunidades muito cultas no seio de ‘um pais civilizado ou de aldeias de selvagens primitivos”. E pros- seguia: “Portanto, nio ¢ surpreendente que as grandes coletivida- des, expostas a influéncias perturbadoras, contenham muito menos informagdes acessiveis a todos do que as pequenas, para nada dizer dos elementos humanos de que sio feitas todas as, comunidades”.* Sem diivida, as sociedades modernas nao sio completa- ‘mente inauténticas. Virando-se hoje para o estudo das sociedades modernas, 0 antropélogo se empenha em detectar ¢ isolar niveis, de autenticidade, O que permite ao antropélogo encontrar um terreno familiar quando estuda uma aldeia ou um bairro de grande cidade é que todos ali conhecem a todos ou quase todos. ‘Um antropélogo se sente & vontade numa aldeia de quinhentos * Norbert Wienes. Cybernetics. Control and Communication in the Animal and the Machine, Traduzido para 0 “rancés por Paul Chemla, Paris: Librairie Her ‘mann & Cie, 1948, pp. 187-8. habitantes, 20 passo que uma cidade grande ou mesmo média The resiste, Por qué? Porque 50 mil pessoas nao constituem uma sociedade da mesme maneira que quinhentas, No primeiro caso, a comunicagéo nao se estabelece principalmente entre as pessoas, ou a partir do modelo das comunicagées interpessoais. A reali dade social dos “emissores" e dos “receptores” (para falar a lin- guagem dos teéricos da comunicagao) desaparece atris da com- plexidade dos “cédigos” e dos “retransmissores” futuro decerto julgara quea mais importante contribuigao tedrica da antropologia as ciéncias sociais vem dessa distingio capital entre duas modalidades de existéncia social: um género de vida percebido, primeiro, como tradicional e arcaico, mas que é aquele das sociedades auténticas; e formas de aparigao mais recente, de que o primeiro tipo nao est ausente mas em que gru- Pos imperfeita e incompletamente auténticos emergem como pequenas ilhas na superficie de um conjunto mais vasto, ele ‘mesmo atingido pela inauienticidade NA PERSPECTIVA OCIDENTAL QUE & A MINHA” No entanto, nao se deveria reduzir a antropologia ao estudo de sobrevivéncias que iriamos buscar muito longe ou muito perto. © que imports antes de tudo nao é 0 arcaismo dessas for- mas de vida mas as diferengas que oferecem entre si ou com aque- Jas que se tornaram as nossas. Os primeiros trabalhos sistematicamente dedicados aos costumes e as crengas dos povos selvagens nao datam de aquém de 1850, isto é, da época em que Darwin lancava os fundamen- tos do evolucionismo biolégico, ao qual respondia, no espirito de seus contemporneos, a crenga numa evolugao social e cultu- ral. E é mais tarde ainda, no primeiro quarto do século xx, que 9s objetos ditos “negros” ou “primitives” foram reconhecidos ‘como tendo um valor estético, Estariamos errados ao concluir dai que a antropologia éuma cigncia nova, oriunda das curiosidades do homem moderno. Quando nos esforgamos para po-la em perspectiva, para Ihe atri- puir um lugar na historia das ideias, a antropologia aparece, a0 ‘contrério, como a expressio mais geral e o ponto conclusivo de uma atitude intelectual e moral que teve sew nascimento ha varios séculos e que designamos com a palavra “humanismo”. Permitam-me colocar-me um instante na perspectiva oci dental que é a minha. Quando, na Europa, 0s homens do Renas- cimento redescobriram a Antiguidade greco-romana, ¢ quando 0s jesuitas fizeram do latim a base da formacio escolar e universi- tria, ndo era esse, jé, um procedimento antropolégico? Reconhe- cia-se que uma civilizagio nao pode ela mesma se pensar caso nao disponha de uma ou de varias outras para servir de termos de comparagao. Para conhecer € compreender sua prépria cultura, é preciso aprender a olha-la do ponto de vista de outra: um pouco & maneira do ator de né de que fala o grande Zeami, que, para jul- gar o préprio jogo, deve aprender a ver a si proprio como se fosse oespectador. Na verdade, quando procure o titulo que poderia dar a um livro publicado em 1983, para fazer o leitor captar a dupla essén- cia da reflexao antropol6gica, que consiste, de um lado, em olhar muito longe, para culturas muito diferentes daquela do observa- dor, mas também, para o observador, em olhar sua propria cul- tura de longe, como se ele mesmo pertencesse a uma cultura dife- rente, 0 titulo que finalmente escolhi, Le Regard éloigné (O olhar distanciado}, me foi inspirado pela leitura de Zeami, Com o auxi- lio de meus colegas japonélogos, sirmplesmente transpus em fran- césa formula riken no ken que ele emprega para designar o olhar do ator olhando para si mesmo como se ele fosse o piblico. Da mesma maneira, os pensadores do Renascimento nos ensinaram a pdr nossa cultura em perspectiva, a confrontar nos- S08 costumes e nossas crencas com as de outros tempos e outros lugares. Em resumo, criaram os instrumentos do que se poderia chamar uma técnica de desenraizamento, Nao foi esse também o caso do Japao, quando a escola cha- mada de “nativista”, de Motoori Norinaga, empreendeu destacar os caracteres especificos,a seus olhos, da cultura e da civilizagio Japonesas? E iniciando um didlogo apaixonado com a China que le consegue fazé-o, Motori confronta as duas culturas, e é desta- cando certos tracos, tipicos em seu entender da cultura chinesa — “pomposa verbosidade”, como diz, gosto pelo taoismo para as afir- magbes categoricese arbitrarias —, que ele consegue, por contraste, definir a esséncia da cultura japonesa: sobriedade, concisio, diseri- s@o, economia de meios, sentimento de impermanéncia e da pun. 'éncia das coisas (mono no aware), relatividade de qualquer saber. Esse modo de ver a China como meio de afirmara especifici dade da cultura japonesa foi vulgarizado de maneira muito suges- tiva nas estampas sobre temas chineses — ilustragdes do romance Suikoden ¢ de reletos guerreiros tirados do Kanjo — produridas por Kuniyoshi e Kunisada em torno de 1830. Elas manifestam um gosto marcado pela énfase, o estilo flamejante, o barroco exacer- bado, a riqueza ¢ a complicagio dos detalhes vestimentares, muito afastado das tradigies do ukiyo-e, Essas estampas refletem tima interpretagao tendenciosa, sem duvida, da China antiga, ‘mas que se pretenderia etnogr: ica Na época de Motoori, 0 Japao s6 tinha conhecimento direto ou indireto da China ou da Coreia. Na Europa também, a dife renga entre cultura clissica e cultura antropologica decorre das dimensdes do mundo conhecido nessas épocas respectivas, No inicio do Renascimento, crito pelos limites da bacia medite © universo humano é cireuns- ‘rrinea. Quanto ao resto, apenas 30 se suspeita de sua existéncia. Mas ja se compreendeu que nenhuma fragao da humanidade pode aspirar a se compreender, sendo por referéncia a outras. Nos séculos xvii e x1x, 0 humanismo se alarga com 0 avango da exploragao geografica. A China, a India, 0 Japao se ins- crevem progressivamente no quadro. Interessando-se hoje pelas Ultimas civilizagdes ainda mal conhecidas ou negligenciadas, a antropologia faz o humanismo transpor sua terceira etapa. Com. certeza ela sera também a tltima, jé que depois disso o homem, nao tera mais nada a descob-ir sobre si mesmo, pelo menos na extensio (pois existe outra pesquisa, esta em profundidade, da qual nao estamos prestes a alcangar o fim). : © problema comporta outro aspecto. Os dois primeiros humanismos, um limitado 20 mundo mediterraneo, ¢ outro englobando 0 Oriente eo Extremo Oriente, viam sua extensio limitada nao sé em superficie mas também em natureza. Tendo desaparecido as civilizacdes antigas, nao era possivel atingi-las senao através dos textos e dos monumentos. Quanto ao Oriente e ao Extremo Oriente, onde nao se esbarrava na mesma dificul- dade, o método continuava a ser 0 mesmo porque, acreditava-se, civilizagdes tao longinquas e -80 diferentes s6 mereciam interesse por suas produgées mais eruditas e mais requintadas. © campo da antropologia compreende civilizagbes de outro tipo que também apresentam problemas diferentes. Sendo sem escrita, elas nao fornecem documentos escritos. E como seu nivel técnico ¢ geralmente muito baixo, a maioria nao deixou monu- mentos figurados, Dai a necessidade de dotar o humanismo de novos instrumentos de investigasao (Os meios de que dispde a antropologia sio a um s6 tempo mais exteriores e mais interiores (também se poderia dizer: mais grossos mais finos) que aqueles de suas predecessoras: a filologia e a histé- ria, Para penetrar nas sociedades de acesso dificil, o antropdlogo deve se por muito no exterior (como fazem a antropologiafisica, a pré-hist6ria, a tecnologia) ¢ também muito no interior, pela identi- ficagao do etnslogo com o grupo cuja existéncia ele divide, e pela importancia que cle deve atribuir — na falta de outros meios de informacao — aos menores matizes da vida psiquica dos indigenas, Sempre aquém e além do humanismo tradicional, a antro- pologia o transborda em todos os sentidos. Seu terreno engloba a totalidade da terra habitada, a0 passo que seu método retine pro- cessos que dizem respeito a todas as formas do saber: cigncias humanas e ciéncias naturais, Sucedendo-se no tempo, os trés humanismos se integram, portanto, e fazem avangar 0 conhecimento do homem em trés direcdes: na superticie, sem diivida, mas é 0 aspecto mais “super- ficial” no sentido proprio como no sentido figurado, Em riqueza dos meios de investigagio, ja que percebemos pouco a pouco que, se a antropologia foi obrigada a forjar novos modos de conheci- mento em fungao dos caracteres particulares das sociedades “resi- duais” que Ihe eram deixadas como quinhao, esses modos de conhecimento podem ser aplicados com proveito ao estudo de todas as sociedades, inclusive a nossa, Mas ha mais: o humanismo classico nao era restrito somente a seu objeto, como também aos beneficidrios, que formavam a classe privilegiada. ‘Ohumanismo exético do século x1x se viu ele mesmo ligado 408 interesses industriais e comerciais que lhe serviam de suporte © 208 quais ele devia o fato de existir. Depois do humanismo aris- tocratico do Renascimento e do humanismo burgués do século X1X, a antropologia marca, assim, 0 advento, para 0 mundo aca- bado que se tornou o nosso planeta, de um humanismo dupla- mente universal, Buscando sua inspiragdo no sei das sociedades mais humildes e por muito tempo desprezadas, ela proclama que nada de humano deveria ser alheio ao homem. Funda assim um humanismo democritico que ultrapessa aqueles que o precede- ram, criados para os privilegiados, a >artir de civilizagies privi- legiadas. E, mobilizando métodos e técnicas emprestados de todas as ciéncias para fazé-las servi ao conhecimento do ho- ‘mem, apela para a reconciliagao do homem e da natureza num hnumanismo generalizado. Se compreendo bem o tema que as senhores me pediram para tratar nestas conferéncias, a questao serd, para nés, saber se essa terceira forma de humanismo, constituida pela antropologia, se mostraré mais capaz.que as formas anteriores de trazer solu- ‘goes aos grandes problemas com os quais a humanidade de hoje esté confrontada. Durante trés séculos, 0 pensamento humanista teré alimentado e inspirado a reflexdo ea agéo do homem ociden- ar os tal. E hoje verificamos que ele tera sido impotente para e' massacres em escala planetaria que foram as guerras mundiais, a miséria e a subnutri¢ao que castigam de forma crdnica grande parte da terra habitada, a poluigdo doare da dgua, a pilhagem dos recursos e das belezas naturais.. O humanismo antropolgico seré mais capaz que 0s outros de trazer respostas as interrogacdes que nos assaltam? Nas conferéncias seguintes, tentarei definir e delimitar algumas grandes questdes as quais @ antropologia pode, creio, nos ajudar a responder. Para concluir hoje, gostaria de indicar uma contribuicao da antropologia que, mesmo sendo modesta, oferece ao menos a vantagem de ser certa. Pois um dos benefi- cios da antropologia — talvez, no final das contas, seu beneficio essencial — é nos inspirar, a nés, membros de civilizagées ricas € poderosas, uma certa humildade, ensinar-nos uma sabedoria Os antropélogos estao ai para testemunhar que a maneira como vivemos, os valores em que acreditamos, nao sao os tinicos possiveis; que outros géneros de vida, outros sistemas de valores permitiram, permitem ainda a comunidades humanas encontrar a felicidade, A antropologia nos convida, portanto, a temperar nossa gloriola, a respeitar outros modos de viver, a nos recolocar em questo pelo conhecimento de outros usos que nos surpreendem, nos chocam ou nos repugnam — um pouco a maneira de Jean-Jac- ques Rousseau, que preferia acreditar que os gorilas, pouco antes descritos pelos viajantes de seu tempo, eram homens, a correr 0 rrisco de recusar a qualidade de homens a seres que, talvez, revelas- sem um aspecto ainda desconhecido da natureza humana As sociedades estudadas pelos antropélogos ministram ligdes ainda mais dignas de ser ouvidas na medida em que, por todas as espécies de regras — que, como eu dizia hé pouco, estarfamos erra- dos de considerar meras superstighes —, elas souberam estabelecer entre o homem e o meio natural um equilibrio que nao sabemos ‘mais garantir. Vou ne deter um instante neste ponto, UM “OPTIMUM DE DIVERSIDADE” Na Franga, no século x1x, 0 filésofo Auguste Comte formu- Jou uma lei da evolugdo humana chamada dos trés estados, segundo a qual a humanidade teria passado por dois estados sucessivos: religioso, depois metafisico, e estaria prestes a aceder a.um terceiro estado positivo e cientifico. ‘Talvez a antropologia nos revele uma evolucao do mesmo tipo, embora 0 contetido e o significado de cada estado sejam diferentes dos concebidos por Comte. Sabemos hoje que povos qualificados de “primitivos”, igno- rando a agricultura e a criacao, ou praticando somente uma agri- cultura rudimentac, is vezes sem conhecimento da ceramica e da tecelagem, vivendo principalmente de caca e pesca, de colheita e apanhadura de produtos selvagens, nao estio atenazados pelo temor de morrer de fome e pela angustia de nao conseguir sobre- -viver num meio hostil. Seu pequeno efetivo demografico, seu conhecimento prodi- gioso dos recursos naturais thes permitem viver no que hesitaria- ‘mos talvez chamar de abundancia, Ero entanto — estudos minu- ciosos mostraram na Australia, na América do Sul, na Melanésia ena Africa —, de duas a quatro horas de trabalho cotidiano bas- tam amplamente a seus membros ativos para garantir a subsis- téncia de todas as familias, inclusive das criangas e dos velhos que nao participam ainda ou nao participam mais da produgao ali- menticia, Que diferenca com o tempo que nossos contempora- neos passam na fabrica ou no escritério! Seria, pois, falso acreditar que esses povos sio escravos dos imperativos do meio. Muito ao contrario, gozam diante do meio de maior independéncia que 0s cultivadores € os criadores. Dispem de mais tempo livre que lhes permite atribuir um amplo espaco a0 imaginario, interpor entre sie o mundo externo, como almofadas amortecedoras, crengas, devaneios, ritos, em suma, todas essas for- mas de atividade que chamarfamos de religiosa e artistica. Admitamos que, desse ponto de vista, a humanidade tenha vivido num estado compardvel durante centenas de milénios. Observariamos entao que com a agricultura, a criagdo, e depois a industrializagio, cada vez mais ele “engatou", se ouso dizer, estreitamente no real. Mas, no século x1x ¢ até hoje, esse engate se operava indiretamente, por intermédio de concepgdes filosofi cas ¢ ideoldgicas Totalmente outro é 0 mundo em que penetramos hoje em dia: mundo em que a humanidade se encontra abruptamente confron- tada com determinismos mais duros. Sao aqueles que resultam de seu enorme efetivo demogréfico, da quantidade cada vez mais limi- tada de espaco livre, ar puro, agua nio poluida de que ela dispoe para satisfazer suas necessidades biolégicas e psiquicas, Nesse sentido, podemos nos perguntar se as explosdes ideo- logicas que se produzem hi quase um século e continuam a se produzir ~ as do comunismo e do marxismo, a do totalitarismo, que nao perderam sua forga no Terceiro Mundo, e esta mais recente do integrismo islamico — nao constituem reagées de revolta diantedas condiges de existéncia em ruptura brutal com as do passado. Produziu-se um divércio, um fosso se cava entre os dados da sensibilidade, que para nés nao tém mais significado geral fora daqueles, restritos ¢ rucimentares, que eles nos fornecem sobre 0 estado de nosso organismo, e um pensamento abstrato em que se concentram todos 0s nossos esforgos para conhecer e para com- preender 0 universo, Nada nos afasta mais desses povos estuda- dos pelos antropdlogos, para quem cada cor, cada textura, cada odor, cada sabor tém um sentido. Esse divércio é irrevogivel? Nosso mundo vai talver rumoa tum cataclismo demogréfico ou a uma guerra atémica que exter- minard trés quartos da humanidade. Nesse caso, 0 quarto res- ante reencontrara condigdes de existéncia nio tao diferentes daquelas das saciedades em vias de extingio de que falei Mas, mesmo afastando hipdteses tao aterradoras, podemos nos perguntar se sociedades que se tornam enormes, cada uma Por sua conta, ¢ que tendem a se tornar parecidas umas com as outras, nao recriardo fatalmente em seu préprio seio diferencas situadas em outros eixos que nao aqueles em que se desenvolvem similaridades. Talvez exista um optimum de diversidade que, sempre € em qualquer lugar, se imponha & humanidade para que ela permanega viivel. Esse optimum variaria em fungio do niimero das sociedades, de sua importancia numérica, de seu afastamento gzogrifico e dos meios de comunicagao de que dis- poem, Pois esse problema da diversidade nao se apresenta apenas a respeito das culturas encaradas em suas relagdes reciprocas. 6 Apresenta-se também em cada sociedade que reiine em seu seio grupos ou subgrupos que nio sio homogéneos: castas, lasses, ‘meios profissionais ou confessionais... Esses grupos desenvolvem entre si diferengas &s quais cada um da grande importdncia, e é possivel que essa diversificagao interna tenda a crescer quando a sociedade se tornar mais numerosa e mais homogénea de outros pontos de vista Provavelmente os homens elaboraram culturas diferentes em razio do afastamento geogréfico, das caracteristicas particula- res do meio onde se encontravam, da ignorancia em que estavam, de outros tipos de sociedades. Mas, ao lado das diferengas decor- rentes do isolamento, ha aquelas, igualmente importantes, devi- das 4 proximidade: desejo de se opor, de se distinguir, de ser si mesmo. Muitos costumes nasceram nao de alguma necessidade interna ou de um acidente favordvel, mas unicamente da vontade de nao ficar para trds em relago a um grupo vizinho que subme- tia.a normas precisas um campo de pensamento ou de atividade em que o outro grupo nao tisha pensado em estabelecer regras. ‘A atengao eo respeito demonstrados pelo antropdlogo as diferencas entre as culturas como aquelas préprias a cada uma constituem o essencial de seu procedimento. Assim, o antropdlogo nao procura elaborar uma lista de receitas em que cada sociedade ird se servir segundo seu estado de espirito toda vez que perceber ‘em seu seio uma imperfeigio ou uma lacuna. As formulas proprias a cada sociedade nao sto transponiveis a nenhuma outra © antropdlogo apenas convida cada sociedade a nao acredi- tar que suas instituicdes, seus costumes e suas crengas sao os Uni- cos possiveis; ele a dissuade de imaginar que, pelo fato de que os julga bons, essas instituigdes, esses costumes e crengas estio ins critos na natureza das coisas e que é possivel impunemente impé-los a outras sociedades cujo sistema de valores é incompa- tivel com o seu. Eu dizia hd pouco que a mais alta ambicéo da antropologia é inspirar aos individuos e aos governos uma certa sabedoria. Nao osso Ihes oferecer melhor exemplo que o testemunho de um antropélogo americano que foi Public Affairs Officer do general MacArthur durante a ocupagao do Japao. Li dele uma entrevista em que conta como a publicacao, em 1946, do famoso livro de Ruth Benedict, The Chrysanthemum and the Sword, dissuadiu o ocupante americano de impor ao Japio a aboligao do regime imperial, contrariamente 4 sua primeira intengao. Ruth Benedict, que conheci bem, nunca foi ao Japao antes de escrever seu livro;e, tanto quanto sei, tinha trabalhado em campos muito diferentes. Mas era antropéloga, e portanto pade-se creditar ao espirito antropol6gico, i sua inspiragao e a seus métodos, ainda que abor- dando uma culture de muito longe e sem experiéncia prévia, 0 fato de ter sabido penetrar em sua estrutura e ter Ihe evitado um desmoronamento cujas consequéncias teriam sido ainda mais trdgicas,talvez, queas da derrota militar. Como primeira ligéo, a antropologia nos ensina que cada costume, cada crenga, por mais chocantes ou irracionais que pos- sam nos parecer quando os comparamos com os nossos, fazem parte de um sistema cujo equilibrio interno se estabeleceu ao longo dos séculos, ¢ que, desse conjunto, nao se pode suprimir um elemento sem corter 0 risco de destruir todo o resto. Ainda que ela ndo trouxesse outros ensinamentos, s6 este bastaria para justificar o lugar cada vez mais importante que a antropologia ocupa entre as ciéncias do homem e da sociedade. 2. Trés grandes problemas contemporaneos: a sexualidade, o desenvolvimento econdmico eo pensamento mitico Em minha primeira conferéncia. disse que tentaria definir € delimitar alguns problemas que se apresentam a0 homem moderno, ¢ para cuja solugao o estudo das sociedades sem escrita pode em parte contribuir. Para isso, terei de considerar essas sociedades sob trés angulos: sua organizagao familiar e social, sua vida econdmica e por fim seu pensamento religioso Quando se consideram de um ponto de vista muito geral as caracteristicas comuns s sociedades estudadas pelos antropélo- gos, impde-se uma constatagao: como indiquei brevemente, essas sociedades apelam para © parentesco de maneira muito mais sis- temitica do que é 0 caso hoje entre nds, Primeiro, utilizam as relagdes de parentesco e de casamento para definir o pertencimento ou o nio pertencimento ao grupo, Muitas dessas sociedades recusam aos povos estrangeiros a quali- dade de seres humanos. E, se a humanidade cessa nas fronteiras do grupo, ela é reforgada, no interior, por uma quelidade suple- mentar: 0s membros do grupo nao sio apenas os tinicos huma nos, 0s tnicos verdadeiras, os inicosexcelentes. Eles nao sio ape- nas concidadiios, mas parentes de fato ou de direito. | | Em segundo lugar, essas sociedades considera o paren- tesco e as nogées a ele vinculadas como anteriores e exteriores as relagdes biol6gicas, tal como a filiagdo pelo sangue, as quais nés ‘mesmos tendemos a reduzi-las. Os lagos biolégicos fornecem o modelo sobre » qual sao concebidas as relacdes de parentesco, ‘mas estas oferecem ao pensamento um quadro de classificagdo logica, Uma vez concebido, esse quadro permite distribuir os individuos em categorias preestabelecidas atribuindo a cada um seu lugar no seio da familia e da sociedade. Por fim, essas relagdes ¢ essas nogSes compenetram o campo inteiro da vida e das atividades sociais, Reais, postuladas ou inferi- das, elas implicam direitos e deveres bem definidos, diferentes para cada tipo de parentes, De modo mais geral, pode-se dizer que nessas sociedades o parentesco e os lagos do casamento constituem uma linguagem comum, prépria a expressar todas as relagdes sociais, econdmicas, politicas, religiosas etc., e ndo apenas familiares. GENITOR, EMPRESTADORA DE UTERO © FILIAGAO SOCIAL A primeira exigéncia que se impde as sociedades humanas & se reproduzir, em outras palavras, manter-se no tempo. Toda sociedade deve, portanto, possuir uma regra de filiago que per- ita definir o pertencimento de cada novo membro ao grupo: tum sistema de parentesco que determine a maneira como se clas. sificarao os parentes, consanguineos ow aliados; por fim, regras que definam as modalidades da alianga matrimonial estimulando quem se pode ow nao se pode desposar, Toda sociedade deve tam- bém dispor de mecanismos para remediar a esterilidade. Ora, é esse problema dos remédios@ esterilidade que se apre- senta de modo muito agudo nas sociedades ocidentais desde que las descobriram os meios para assistir a procriagéo, ou obté-la artifictalmente. Nao sei como se passa no Japéo. Mas 0 assunto obceca os espiritos na Europa, nos Estados Unidos, na Australia, paises onde comissdes foram oficialmente constituidas para debaté-lo. As assembleias parlamentares, a imprensa ea opiniao pblica ecoam amplamente esses debates. De que se trata exatamente? Agora € possivel — ow, para cer- tos processos, breve o ser — que um casal com um dos mem- bros, ou ambos, estéril tenha filhos, empregando diversos méto- dos: inseminacao artificial, dom de dvulo, empréstimo ou aluguel de sitero, congelamento de embrido, fecundacio in vitro com espermatozoides provenientes do marido ou de outro homem, 6vulo proveniente da esposa ou de outra mulher. ‘As criancas nascidas de tais manipulagées poderao, por- tanto, dependendo do caso, ter um pai e uma mae, como é nor- mal, uma mae e dois pais, duas maes e um pai, duas maes e dois pais, trés mes e um pai, eaté trés maes e dois pais quando o geni- tor nao for o mesmo homem que o pai, € quando trés mulheres intervierem: a que dé um 6vulo, a que empresta seu titero ea que seria mae legal da crianga. Nio é tudo, pois nos encontramos confrontados com situa~ des em que uma mulher pede para ser inseminada com o esper- ‘ma congelado de seu marido defunto, ou entio em que duas mulheres homossexuais solicitam a possibilidade de ter juntas um fiho proveniente do évulo de uma, fecundado artificial- mente por um doador anénimo e logo implantado no ater da outra. Tampouco se vé por que o esperma congelado de um bisavé ndo poderia ser utilizado, um século depois, para fecun- dar uma bisneta;o filho seria entao tio-bisavb de sua mie e irmao do proprio bisavo. Os problemas assim colocados sao de duas ordens, uns de natureza juridica, outros de natureza psicoldgica e moral

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