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Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional. ico Nacional. Pesquisa efetuada em 08/11/2015. Acesso: . PELLEGRINI, Américo. Ecologia, Cultura e Turismo. 73 Ed. Campinas pees 'd. Campinas, Papirus, RICOEUR, Paul. A meméria, a histéria, 0 esquecimento. Editora da UNICAMP, 2007, a Bee SANTOS, Myriam Septleds dos. Meméria Coletva Teoria Soci. Si Paulo: Annablume, 2003. eee 28. Elis Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siqueira (Orgs,) VALE TUDO? IDENTIDADE, CULTURA E PATRIMONIO NA POS-MODERNIDADE Euler David de Siqueira Introducgdo © suposto consenso em torno dos critérios que deft- im 0 patriménio parece definitivamente superado em vista dos assim chamados novos patrimédnios que adentram a cena nacional e internacional contemporanea. As fronteiras que an- tes demarcavam 05 limites entre algo dotado de um valor ex- traordinério frente ao ordinario tornaram-se porosas e fluidas 0 suficiente para permitir a passagem de objetos, coisas, pessoas e eventos antes considerados corriqueiros e sem importancia. No centro das mutagGes e da revolu¢do que permitiram a im- plosio do conceito classico de patriménio como distincao social situa-se principalmente a nogo antropolégica de cultura bem como outros fatores que, na falta de um nome melhor, agrupa- rei sob o nome de globalizacao e que reflete o atual momento pelo qual passa a sociedade capitalista. ‘lista dos bens inscritos como patriménio cultural de natureza material ou imaterial - voltarei a esse ponto controverso e pleno de ambigiiidades mais tarde - cresceu acentuadamente has ltimas décadas e, ao que parece, esse movimento ndo pare- ce dar sinais de esgotamento, muito ao contrério. E interessante Concepedes, memérias e patriménio cultural 29 Notar que a inflacdo patrimonial ganha félego na mesma medida €m que a globalizacdo avanca a lugares os mais recdnditos do planeta desencadeando reagdes como as que implica em reco- nhecimento de novas identidades. Certamente, a tese que vé na globalizac3o um movimento inexoravel de homogeneizacao das. culturas, e que remete a nogo ultrapassada e infeliz de acultura- $40, no parece ter folego suficiente para dar conta da complexi- dade dos desafios locais assim como do engajamento dos atores € de seus interesses. Independentemente disso, o fato é que 0 Patriménio é inventado ou reinventado em todos os lugares do mundo por grupos, coletividades, minorias, Estados, etc. No Brasil esse processo responde a situages variadas, Certamente, uma delas diz respeito ao fato de que grupos so- Ciais antes nao reconhecidos como importantes & fundacio da matriz cultural brasileira ganharam visibilidade nas dltimas dé- cadas, notadamente depois da constituigéo de 1988', cujo arti- £0 216 declara que o patriménio cultural brasileiro é constitui- do de bens de natureza material e imaterial. Nao obstante, em seu §5°, pela primeira vez os Quilombos so reconhecidos atra- vés do tombamento de documentos e dos lugares fato que pos- sibilitard mais tarde & construco das identidades quilombolas como base no fator étnico. Outro expediente importante que veio a se somar a carta magna brasileira foi o Decreto n° 3.551 de 04 de agosto de 2000’. Esse decreto instituiu 0 Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacio- nal do Patriménio Imaterial. Frente ao decreto-lei n” 25 de 1937 que criou 0 SPHAN e que privilegiou o patriménio construfdo segundo critérios de excepcionalidade histérica, artistica e es- tética, 0 decreto n* 3.551 destaca uma outra dimenso que nso 1 __hitp://wwwuplanalto.gowbr/ccivil_03/constit ado.htm acesso em: 31/05/2014 2 httpi//Awmw.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm acesso em: 31/05/2014 -ao/constitulcaocompi 30 Elis Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siqueira (Orgs.) aquela valorizada até ento. Acredito que foi todo esse quadro que possibilitou um ambiente favordvel 8 instalacdo de deman- das de reconhecimento e valorizago do patriménio imaterial, sobretudo. rs ‘Ao invés de casardes coloniais e igrejas barrocas tipi cas das cidades mineiras, os novos e inusitados patrim6nios, sobretudo de ordem imaterial, colocam em evidencia novas fepresentacdes, grupos, territérios, sujeitos, identidades e me- modrias. Os novos patriménios, materiais ou imateriais, datam, sobretudo, do comeco dos anos 2000 e agrupam manifestagdes diversas como: a torcida do Flamengo, 0 oficio de fotdgrafo de rua mais conhecido como lambe-lambe, a Capoeira, 0 Samba, 0 Jongo, os poemas do profeta Gentileza, 0 oficio de vendedor ambulante de mate, limonada e biscoito de polvilho praias do Rio de Janeiro’, a feijoada carioca, a Cachaga, a Caipirinha, o sanduiche Bauru, o Empadao Goiano, a voz da narradora oficial do aeroporto do Galedéo, Iris Lettieri, a feira Hippie de Ipanema, 0 Tatui, rosquinha produzida hd mais de cem anos em Concel 0 de Macabu, no Rio de Janeiro; 0 Funk carioca, a Serra das Cervejas em Petropolis, Bloco do Cordao do Bola Preta, a Esca- datia Selaron, na Lapa, centro do Rio, o Sambédrome, a Estatua de Martinho da Vila, além de outros. Uma questo importante parece, portanto, se Yon: que tipo de debate esse tipo de fenémeno pode suscitar? Ind- meros pesquisadores do fendmeno da patrimonializagdo se jebrugaram sobre a questo com pontos de vistas distintos a respeito de suas razées e suas conseqiiéncias. De antemao é preciso deixar claro que estamos em um terreno movedico, am- biguo e difuso, uma vez que lidamos com valores. Nao preciso 3 Decreto municipalda prefeltura do Riode laneiron’ 35.179 de02 de marco de 2012, http://daweb.io.r.gov.br/visualizar_pdf.php?reload=okBedi_ |di=00001669&page=1&search=vendedores%20de%20limonada Acesso em: 03/06/2014 Concepeées, memérias e patriménio cultural 31 ir to longe mas apenas sublinhar que onde ha patriménio hé interesse e onde hd interesse ha atores organizados capazes de trilar 0 apito como diz Becker (1978) ou, segundo Berger (1980), evidenciar mais de uma definicio ou ponto de vista em jogo. A questo, em definitivo, néo pode ser abordada de forma objeti- va, outro grande embuste da pesquisa académica por simples- mente nao haver neutralidade (BECKER, 1978}, O presente artigo 6 0 resultado de um projeto de pes- quisa que toma o patriménio como objeto de estudo em suas relagdes como os meios de comunicacio. Metodologicamente essa é uma pesquisa de natureza qualitativa que se orienta por um alhar antropolégico e sociolégico relacional. Através da pes- auisa bibliogréfica, principalmente, e do auxilio da interpretacio, busco compreender o quadro em que se situa hoje o patriménio. PatrimGnio, cultura e turismo Um dos mais importantes analistas do campo do patri- ménio e do turismo foi o francés Rachid Amirou, morto prema- turamente em 2011. Amirou (2000) e 0 antropdlogo brasileiro José Reginaldo Goncalves, outro importante pensador do campo do patriménio, assinalaram isso que se tem chamado de ‘boom’ da patrimonializacao procurando, nele, sinais de movimentos so- clais e culturais mais amplos operando no seio da sociedade con- temporanea. A importancia que o patriménio assumiu para as sociedlades contemporéneas ¢ tamanha que Goncalves mostra que “Os chamados “patriménios culturais” tornaram-se objeto de uma obsessio coletiva.” (GONGALVES, 2007, p.239), Uma das principais conseqiiéncias do processo cres- cente de patrimonializacao ou da obsessio coletiva, segundo 32. Elis Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siqueira (Orgs,) Goncalves (2009), seria 0 enfraquecimento do poder de ané- we da categoria do patriménio. O receio, justificado, seria o ile banalizacdo de uma categoria importante a construgdo da Memdria e da identidade. Amirou insiste sobre o fendmeno da patrimonializagao crescente de bens, sobretudo voltados a as- ppectos tradicionais, que apontam para a ideia de autenticidade. Ninguém mais do que o turismo parece ter investido na ideia tle autenticidade como parte de um discurso de produgio da #xoticidade como turismo, como nos mostra o autor: “Patrimonaliza-se muitos fenémenos, notadamente | saberes-fazeres (tal como a fabricacdo de um quei- jo ou a cultura de um legume) ditos tradicionais ou de terroir — expresso que atrai um imaginario da | autenticidade muito apreciado e instrumentalizado \pelos profissionais do turismo. A ideia de patriménio, Inesse caso evoca mais a nocdo de selo, no sentido comercial de marca coletiva depositada, que a pro- tegao stricto sensu dos objetos testemunhas de uma historia coletiva’. (AMIROU, 2000, p.25} No Brasil também assistimos ao crescente uso do ins- trumento do tombamento ou do registro de elementos que ‘apontam também a ideia de autenticidade, como é 0 caso do oficio das baianas do Acarajé ou das paneleiras de goiabeiras, No Espirito Santo ou ainda do modo artesanal e tradicional de fazer 0 queijo do Serro ou da Serra da Canastra em Minas Ge- fais. Lado a lado observamos a tensdes que se desdobram em torno das dimensées econdmicas e aquelas voltadas s acdes de cunho mais preservacionistas. € evidente a tensdo entre os sos econémicos e “culturais” do patriménio. As medidas de protecdo e salvaguarda do patriménio de terroir sdo justifica- das principalmente do ponto de vista econémico, assinala Ami- rou. O efeito mais imediato desse movimento, mostra o autor, Concepgies, memérias e patrimSnio cultural 33 rem tendéncia a levar a uma patrimonializagio de producées menos investidas culturalmente e a um empobrecimento da di- versidade das outras, quando no sao postas de lado”. (2000, p.25). Vemos aqui claramente que nos encontramos diante de uma verdadeira arena de disputas cuja concorréncia envolve mecanismos e processos de acumulacao de capital cultural nos moldes descritos por Bourdieu (2009). A producao da autenticidade parece colocar em desta- que os modos de fazer e saber que, por sua vez, acionam me- mérias que remontam em muitos casos as origens de muitos daqueles que hoje habitam nas cidades, conformo argumenta Amirou: "Essa patrimonializacaio do saber-fazer ou de objetos usuais 0 resultado de uma reativaco do imagindrio do terroir a0 qual sao sensiveis os citadinos que tem, a gente sabe, majo- ritariamente uma origem rural”. (2000, p.25). Talvez isso expli- que porque na Franca, sublinha Amirou, alguns dos objetos que estavam em vias de serem patrimonializados, como o frango de Bresse, 0 feljdo Tarbais, o Azul de Gex, o presunto de Bayonne, a castanha de Ardéche ou a cidra de Domfrontais expressem essa valorizagao do “imagindrio da terra ou do solo” (2000). Nunca é demais frisar 0 papel que o imaginario joga 8 producdo das localidades turisticas. Nas palavras de Amirou, “E primeiro um imagindrio que transforma um lugar neutro em des- tinagao turistica, um bom nlimero de responsaveis de sitios des- cobrem esse fato antropolégico”. (2000, p.01). O autor sublinha ocarater eminentemente social do patriménio a0 mesmo tempo em que afasta qualquer possibilidade de naturalizacdo, presente em grande parte do discurso dos produtores do turismo. A and- lise de Goncalves faz coro com aquela tecida por Amirou, afinal, segundo 0 autor: “Em sua busca obsessiva pelo objeto de uma perda irrepardvel, esteja ele situado no universo auténtico do passado” ou das “culturas populares”, ou das culturas “primiti- vas", 0 patriménio na verdade transforma localidades em pontos de atracdo turistica”. (GONGALVES, 2007, p.243), 34. Elis Regina Barbosa Angelo & Euler Da de Siqueira (Orgs.) ‘A importancia atribuida ao imaginario ndo deve ficar, primeiro, restrita a ideia de algo difuso sem fronteiras e, em se- undo, muito menos aos efeitos sobre a a¢ao dos atores socials, final, “A nocao de imaginario nos ajuda a descrever simples mente as relagdes entre um sujeito e outros dominios onde se exerce a atividade do espirito: arte, pensamento, mito, religido # turismo.” (AMIROU, 2009, p.03). ‘O turismo é um dos muitos fendmenos que interagem fortemente com o patrimonio (AMIROU, 2000; GUILLET, 2011; BLETON-RUGET, 20011). Fendmeno cuja forca Se pon palmente no fim dos anos 1960 e com repercusses dramaticas sobre 0 patrimdnio, 0 turismo joga papel chave a emergéncia de novos patriménios, notadamente aqueles que apontam mais 8s relagGes sociais do que para os objetos. Meméria, identidade, pertencimento, criagdo, patriménio, etc, so categorias articuladas frequente- mente & produgao das destinag6es turisticas. Conforme destaca ‘Amirou, “A turistificacao do espaco e do patriménio rural se faz sempre invocando esse tema recorrente desde os anos 1970 da jutenticidade, da identidade cultural, se nao € a etnicidade. (AMIROU, 2000, p.01). Conforme nos mostra Francois Guillet em seu estudo sobre “A construgéio da Normandia enquanto objeto turistico durante a primeira metade do século XIX”, uma localidade tu- Jistica também ¢ produzida através do recurso de promotores f intelectuais, Guias turisticos e demais materiais publicitarios, como cartdes-postais, também colaboram a producao turistica de uma localidade, como argumenta o autor: continuidade, ‘A literatura turistica procede a uma teatralizagso do ‘espaco regional e sua transformacdo em cendrio para uma populaciio de veranistas que ndo tém muitas afi- nidades com as preocupacées das populagdes locais; ela responde assim a um processo de consagracao do Concepcées, memérias e patriménio cultural 35 espaco constituindo uma das caracter mo”. (GUILLET, 2011, p.104). icas do turis- inda de acordo com Guillet, a emergéncia do tipico 2 do pitoresco, inscritos ambos pela ldgica cénica do turismo, atém-se a aspectos que privilegiam a construco de um ima- gindrio da autenticidade, como foi o caso da Normandia, cujos Penteados femininos e trajes foram selecionados para expres- sar um mundo mantido distante da civilizacdo para a felicidade dos citadinos vidos por encontrar gentes e povos tradicionais: “O olhar etnogréfico que guiava os observadores desde as topografias medicais do fim do século XVIII cede seu lugar a um pitoresco que encontra uma ex- pressdo privilegiada nos penteados e trajes dos habi tantes ¢, sobretudo, das habitantes. As populacdes litoraneas, pescadores ou catadores das praias, ofe- recem a imagem de uma vida simples e livre @ que a proximidade com 0 oceano preservou dos efeitos ‘emolientes da civilizaco e que tem freqtientemente conservado, intactos, os tracos de suas distantes ori gens. Essa visdo idilica pintada de exotismo se aplica também as populacées rurais, cujos trajes, em par- ticular os penteados, so sistematicamente valoriza- dos”. (GUILLET, 2011, p.104), J4 em seu artigo “O uso turistico das tradi¢Bes. O caso da Borgonha de entre as duas Guerras: entorno de Gabriel Jean- ton (1881-1943)’, Annie Bleton-Rouget sublinha o uso turistico das tradigdes nos revelando modelos que ainda hoje se fazem presentes na maneira de promover uma destinagao turistica. Segundo a autora: “O modelo dessa invenc3o das tradicées, ara 0 uso de novos turistas - compradores potenciais e, so- bretudo, do pequeno mundo do jornalismo parisiense, que é Preciso captar a atencio e a pluma - é bem evidentemente na 36 Elis Regina Barbosa Angelo & Euler Da de Siqueira (Orgs,) Confraria dos Cavalheiros do Tastevin criada & Nuits-Saint-Geor- #8 em 1934”, (2011, p.50). Um dos riscos desse tipo de aco, assinalam os analis- 5, 6 0 de folclorizacao. Dito de outro modo, de essencializar im grupo social mantido a margem da sociedade moderna pre- wervando, assim, sua forma original, 0 que nao é 0 caso, como Jos explica ainda a autora: “O sucesso da estética dos rituais da ‘onfraria dos Cavalheiros do Tastevin e as redes de jornalistas que ela podia de agora em diante mobilizar asseguraram ao fol- Jore comercial uma autonomia que Ihe permitia de se liberar jo folclore erudito e de fazer valer sua modernidade”, (BLETON- OUGET, 2011, p.52). A utilizagdo do patriménio como um tipo ” encontra eco nessas abordagens com tos draméticos em muitos casos. A despeito das criticas que se possam conjecturar con- © processo crescente de patrimonializagao, e que parece ssponder satisfatoriamente bem aos interesses dos profissio- Is do turismo e de certos produtores locais, é verdade que mbém encontramos fendmenos sociais significativos por de- is dessas manifestacdes, como explica Peralta: "Sendo uma idealiza¢ao construida por uma socieda- de sobre quais so os seus proprios valores culturais, © patriménio serve, antes de mais, a fins de identi. ficagio coletiva, veiculando uma consciéncia_e um sentimento de grupo, para 0s prdprios e.os.demals, erigindo, nesse proceso, fronteiras diferencladoras ‘ue permitem manter e preservar a identidade cole- tiva’, (2003, p.85). © Estado desde cedo se interessou pelo patriménio 10 parte de seu arranjo ideoldgico de constituicdo de uma intidade nacional, Responsavel pelo monopélio da construcso passado da nagiio, também cabe ao Estado a exclusividade Concepeées, memérias e patriménio cultural 37 de eleger os critérios de eleicio do patriménio. A esse respeito, Lima Filho, Eckert e Beltrio (2002) nao deixam duvidas de que: “0 patriménio seria, portanto, o lugar em que agentes estatais especialmente treinados coletariam fragmentos de tradigdes cul turais diversas para reuni-los num conjunto artificialmente criado Para representar a ideia de uma totalidade”. (p.23). E no comego dos anos 1970 que verificam-se muta- G6es de maior envergadura no seio da sociedade moderna e em seu modelo de producdo e acumulacdo (OFFE, 1994; GID- DENS, 1991; BAUMAN, 2003). A erosao provocada pela desre- gulamentag3o generalizada das instituices sociais que antes ancoravam o sujeito a identidades mais estéveis aprofundou a crise da sociedade capitalista. De alguma forma, o pat parece emergir como espaco capaz de fornecer aos indi um porto seguro aos riscos da liquidez contemporénea como explica Peralta: -) 0 patriménio tem ainda, grosso modo, um ter- ceiro uso. Trata-se do uso econdmico do patriménio por via do seu aproveitamento turistico que, no con texto de uma sociedade “pés-tradicional” nostalgica € carente de elementos de identificacdo coletiva, confere ao patriménio uma nova vitalidade”, (PERAL- TA, 2003, p.87). A despeito do papel jogado pelo patriménio em con- ferir um folego aos problemas da identidade coletiva, 0 capital penetra nesse campo com o objetivo de valorizar-se. E nessa esteira que analistas como Alvaro Banducci criticam a forma como 0 turismo ampara-se do patriménio para fins estritamen- te econémicos: “(...) 0 uso turistico do patriménio, ainda que mante- nha seu componente simbélico contradiz 0 seu po- 38: Elis Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siqueira (Orgs.) tencial de significagdo identitaria na medida em que, recriando e espetacularizando permanentemente 0 patriménio, transforma-o em mercadoria, que passa a servir aos interesses do mercado e nao aos da co- munidade que o detém” (BANDUCCI, 2003, p.123). No so poucos os que duvidam da legitimidade dos Novos recém-chegados patriménios julgados como desprovidos das prerrogativas necessarias para figurarem como patriménio. Um dos principais argumentos levantados contra a entrada de bens vistos por outros como no téo nobres no rol do pa- riménio indica que se tratam de objetos ordinarios e mesmo Yulgares. Quando comparados aos bens tradicionais, mate- flais, sobretudo, inscritos como patriménio segundo critérios Wefinidos pela sua significativa excepcionalidade artistica, his~ {Orica ou politica e estética, de fato, somos confrontados com ls que poder-se-ia chamar de ‘profanacao’. Contudo, ver essa problemética somente desse ponto de vista seria restringir a §nalise a somente um dos muitos lados envolvidos (BERGER, 41980). Selecionados ¢ eleitos segundo critérios orientados pela fogdo elitista de cultura como distincdo e cuja origem remonta } no¢do alema de Kultur, o conjunto dos bens patrimoniais s40 leconhecidos como sendo dotados de um poder singular, nico ncompardvel, em poucas palavras, tornam-se sagrados. A or- jem de objetos que ndo se adéquam aos critérios tradicionais ile patriménio figura, entretanto, um papel importante nesse proceso. Vistos como profanos, ordindrios, comuns e vulgares, {udo aquilo que escapa aos parametros que definem classica- mente o patriménio, possibilita demarcar 0 polo dos bens ditos ‘sagrados. Para classificar algo como patriménio é necessario, sntes de mais nada, definir o que nao é patriménio, Uma fron- jeira 6 assim erguida, fixada e vigiada por aqueles a quem cabe jplar pela sua distingao. Concepeties, memérias e patriménio cultural 39 As mutagées do conceito de cultura Tudo parece mudar de figura quando nos amparamos de outros critérios que colocam em voga aspectos que no sao valorizados pela nocio tradicional de patriménio. Sem duvida nenhuma, as mutagées sofridas pela noco de cultura desde o final do século XIX e ao longo de todo o século XX e que sio. 0 resultado mais concreto da consolidacao do pensamento antro- polégico so responsaveis, também, por isso que Amirou (2000) chamou de implosao do conceito tradicional de patriménio, Segundo Amirou (2000), a palavra cultura aparece no fim do século XI ela designa, sobretudo, uma parcela do solo dedicada ao cultivo de vegetais. Conforme nos explica Amirou, foi Hanna Arendt quem mostrou que a origem da palavra é romana e que ela deriva do latim colere que significa cultivar, morada, cuidar, preservar, manter, etc. Nesse sentido, avanca Amirou, a palavra implica em conservar e melhorar a terra tor- nando-a prépria para a vida humana. (p.14). Frequentemente somos remetidos a ideia, falsa, de que a cultura da terra implicaria em uma aco de dominacao ou de exploracdo. Amirou mostra que ela também se articula a ideia de um cuidado com a natureza e por isso ela também assinala o culto dos deuses. Cultura e culto aproximam-se dessa maneira. Voltada 2 luz, tanto o mundo vegetal quanto o huma- no ganham sentido segundo essa concepsao. Mesmo no campo do turismo a ideia de cuidado ganha centralidade seja com a di- mensio natural ou cultural. Amirou ainda langa mao de Cicero, para quem o espirito tal como o campo deve ser cultivado para produzir bons frutos. O sentido figurado de cultivar o espirito sera mais tarde retomado pelos pensadores renascentistas, nos conta Amirou (2000), e, uma vez associado ao individuo mo- derno, terd a esfera individual privilegiada, O homem cultivado 40 Ells Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siqueira (Ores.) 4 Inventado e com ele 0 culto ao individualismo. Aqui a ideia We liberdade, de autonomia e de livre arbitrio marcham juntas, janha relevancia a ideia de uma cultura individual assim como le um certo aprofundamento no conhecimento de si préprio. Esse fendmeno apontado por Amirou encontra-se lon- 10 de esgotar. A utopia de um sujeito cultivado, livre e aut6no- mmo e que é denunciada por muitos como uma ideologia bur- juesa moldou e ainda molda “nossas relacdes contemporaneas fharte e & cultura”, (2000, p.15). Patriménio, Estado e identidade A nocdo de patrim@nio possui um longo percurso cujas contradigGes so muitas. Amirou (2000) nos fala de um primeiro sentido forte da nocio de patriménio que remete ao sentido ju- Fidico e encontra eco na antiguidade, mais precisamente na so- cledade romana. Nesse sentido, “Ele remete, portanto, a ideia de bem préprio, de fortuna, de ter, de heranga familiar, de proprie- lade”. (p.8). Outro sentido levantado por Amirou assinala a tota- (dade de bens naturais ou culturais, isto é, criados pelo homem, # que nao encontram limites espaciais e temporais. Aqui parece lio haver distingdo entre a dimensdo espiritual ou material, am- yas se confundindo. De acordo com Amirou, quando os particu- lnres se ausentam, nao conseguindo responder suficientemente 4 conservaco do patriménio, ele passa a ser assegurado pelas coletividades locais, ou seja, pelo poder puiblico. Estado joga um papel fundamental a constituico da dem ou do discurso patrimonial. Segundo Amirou (2000), foi principalmente no século XIX que se pode observar a emergéncia ide politicas patrimoniais ligadas & constituicao de um Estado for- Concepgées, memérias e patriménio cultural 41. \bnio coloca problemas de uma grande complexidade. O ris- grande, em efeito, de querer tudo integrar ao patriménio, todo artefato pertence a histéria dos homens”, (p.19). A tio de definir os critérios de elei¢ao do patriménio é mais aparece aqui, segundo ‘Amirou, coma o fiel depositério da heranca de outros momentos histéricos, como os monumentos monarquicos. Também os mo- numentos nacionalizados ganham relevancia, conforme mostra © autor: “(... principio da obra de arte detido por um particular 6 potencialmente uma propriedade coletiva (estatal)”. (p.18). 0 coletivo, associado ao estatal, ganha forca segundo essa perspec- tiva patrimonial. Amirou assinala essa ideia como central 3 cons- titui¢ao do imaginério turistico. Segundo essa anilise, a vigilancia do passado passa a ser legitimamente responsabilidade exclusiva do Estado. Ele passa a deter 0 monopdlio legitimo de protecio e conservaco do patriménio, assegura Amirou. Na Franga, avanca Amirou, o monopdlio estatal sobre © patriménio durou do fim do século XIX até os anos 1960. Os critérios histéricos dominaram a cena acerca do que deve ou no figurar como bem patrimonial. Somente mais tarde, crité- rios como os etnoldgicos, sociolégicos e historicos comecaram a figurar como alternativas aos critérios tradicionais, que no desaparecem totalmente, apenas passam a figurar ao lado de outros, como nos mostra o autor: “As dimensdes histéricas e sociolégicas ndo sao tomadas em conta: 0 patriménio foi visto enquanto que obra de arte e nfo enquanto que vivide por uma Populagao. As produgées locais, salvo algumas excegdes, nao entram no patriménio nacional”. (AMIROU, 2000, p.19). As mutagdes que possibilitaram novos sentidos ao pa- trim8nio somente foram possiveis em decorréncia das cartas de Venere (1964) e de Malta. A primeira aborda os parques e 08 jardins histéricos e a segunda o patriménio arqueolégico. De acordo com Amirou, 0 que hoje entendemos por patriménio cultural foi o resultado principalmente dessas transformacées. Chegamos finalmente a um ponto importante dessa analise: tudo pode ser considerado patriménio? De acordo com as palavras de Amirou: “A extensdo progressiva da noco de pa- iiversal sobre o que é ou nao pat ass ‘A despeito do que muitas pessoas pensam, o patrimé- 6 uma categoria de pensamento que ultrapassa 0 ambiente época em que surgiu, como enfatiza Goncalves, ela: “ndo & plesmente uma invenco moderna, Esta presente no mundo lissico e na Idade Média. (..) Podemos dizer que a categoria “pa- jmonio” também se faz presente nas sociedades tribais. (GON- VES, 2009, p.26). Presente nas sociedades modernas, isso ndo ignifica que os mesmos sentidos estejam em jogo. Em um contex- de modernidade, o patriménio pode ser concebido como “co- Igbes de objetos moveis ou iméveis, apropriados e expostos por joterminados grupos socieis’. (GONGALVES, 2009, p.26). : ‘Aberto, amplo e passivel de usos variados, see,| filo se presta bem ao jogo movedico das identidades sempre im permanente reconstruc. A maleabilidade do patrimonio jermite que ele possa adequar-se ao clima do momento. Como ssinala Peralta, o patriménio “..) de que tipo seja, serve sem- fe para qualquer coisa”. (2003, p.85). Servindo para qualquer £sa, 0 patriménio também serve para a consttuigao de subje- {ividades, enfim, do sujeito, como enfatiza Goncalves, “O patri- "mOnio, de certo modo, constréi, forma as pessoas”. (GONCAL- fra como os sultos manipula os obletos pei te que os incorporem ao seu patriménio gestual ou corporal. O patriménio também constréi o sujeito segundo a maneira que 8 utiliza, Os objetos que so subtraidos do mundo ordinério ou hneutro, se quisermos, ganham sentidos segundo 0 investimento feitos por grupos ou individuos. Conforme explica Peralta, rias e patriménio cultural 43 42. Elis Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siqueira (Orgs.) Concepebes, memérias e patti porque para que determinados elementos se constituam como Jo que é classificado como patriménio pelas agéncias oficiais. patriménio tém de ser resgatados de um corpus cultural mais ou mm geral tendemos a conceber o patriménio como somente menos difuso e sujeitos a uma engenharia social que Ihes confere \ullo que 6 reconhecido pelas agéncias oficiais do Estado. valor e significado”. (PERALTA, 2003, p.85). A engenharia social de “(...) a experiéncia ter mostrado que que fala Peralta € operada notadamente por intelectuais situa- considerado patriménio aquilo que é objeto da legisiacdo ou dos no interior do Estado, como mostra a autora: que € exolorado comercialmente.” (BANDUCCI, 2003, p.123). lunca é demais lembrar que antes de ser reconhecido pelos ér- ) 0 patriménio ¢ sempre uma autodefinicéo cul- fi0s oficiais que se ocupam do patriménio, ele j4 patriménio |, materializada em estandartes piiblicos, que se lunto 20s membros de um grupo soci fundamenta no pasado e numa especificidade etno- cultural, cujos elementos sao articulados de forma arbitraria para servir 0 projeto coletivo, sendo que esse projeto é definido, as mais das vezes, por pro- yee ., a postas de cunho ideolégico emanadas das esferas fatriménio imaterial e relativizagdo icas”. (PERALTA, 2003, p.85). © antropdlogo brasileiro Ruben Oliven reforca essa crescimento dos bens inscritos como patriménio corrente de pensamento ao mostrar que: « Para preservar, pre- Incontra na categoria imaterial o seu maior representante. cisamos, antes, classificar e colecionar. Por isso, temos agentes jamos isso um pouco mais de perto. Em “Patriménio imate que detém o poder legitimo de definir o que faz parte do patri- lal: perspectivas de interpretagdo do conceito de patriménio ménio, Esses guardiées do patriménio definem o que é digno (2006), a francesa Mariannick Jadé nos mostra 0 complexo e de ser preservado». (OLIVEN, 2009, p.80). itrincado jogo em torno da terminologia da nocao de patrimé- Contudo, o fato de que algo seja selecionado, eleito e lo, Segundo a autora, 0 uso da terminologia adotado por fran- elevado a categoria de patriménio segundo o trabalho de inte- es € por ingleses expe muito mais do que simplesmente lectuais dentro ou fora do Estado nao é a unica condi¢ao para Ima questo técnica: ela é também politica, ; que ele tenha ressonancia, como explica José Reginaldo Gon- De acordo com Jadé, os termos heritage e patrimoine salves: «(...) determinados bens culturais, classificados por uma Jossuem muitas similitudes, mas também muitas diferencas. O determinada agéncia do Estado como patriménio, em seguida mo em inglés heritage nos remete @ ideia de uma pessoa explorados de formas diversas pelo mercado, nao chegam a en- lorta cujo patriménio é transmitido por direito de sucesséo. O contrar respaldo ou reconhecimento junto a setores da popula- mo “patriménio, “(pater monium = bien du pére) Ihe acorda, G40». (GONCALVES, 2007, p.245).” Jor extensdo, o sentido de heranca do pai”. (2006, p.30). Nesse Assim, muitos dos novos patriménios suscitam ques- fentido ambos aparecem como sindnimo, mas no quer dizer t6es referentes a sua legitimidade junto aos diferentes grupos ue tenha a mesma natureza. Na lingua francesa o termo pa- da sociedade. Esse tipo de debate nos desloca para além daqui- I"imoine se distingue do termo héritage, sendo esse segundo 44. Elis Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siquelra (Orgs.) Concepgées, memérias e patriménio cultural 45 termo muito mais proximo do termo inglés heritage. Conform Jadeé, essa distingo repousa sobre: ma nuance capital um descreve a transmissai tro descreve a transmissdo em um quadro da esfera privada, Os eventos histéricos franceses da Revolu- 60 francesa permitem compreender essa sutileza conceitual. No curso desse episédio revolucionario, a transferéncia de propriedade dos Bens da Nobreza € do Clérigo ao povo selou a passagem desses bens de um estatuto privado a um estatuto piblico. Por um fenémeno de apropriago nacional, eles sdo tor- nados bens comuns, isto é, 0 bem de todos e de nin- guém em particular 0 que nos podemos igualmente aceitar como a res nullius ~ coisa que nao pertence a ninguém — ou a res communis ~ alguma coisa que pertence a todos’, (p.31).. Da mesma forma que o patriménio de pedra e cal, 0 patriménio imaterial possui um percurso. A primeira vez que se mencionou a palavra patriménio imaterial foi em 1982, du- rante a Mexicult — Conferéncia Mundial da UNESCO dedicada as politicas culturais. Ainda segundo Amirou, foi somente em 1989 em Paris que uma recomendacao foi adotada e em 1993 foi reconhecido como componente fundamental do patrimé- nio. (AMIROU, 2000, p.23). Jadé junta-se a Amirou quando sublinha o contexto de surgimento do patriménio imaterial situando-o em um quadro cuja preocupago inicial era com as culturas tradicional e po- pular: “A preocupacdo inicial da UNESCO sobre a questo do patriménio cultural imaterial remonta a recomendagao sobre a protecdo da cultura tradicional e popular de 15 de novembro de 1989. A existéncia da denominagao cultura tradicional e po- pular coloca novamente no centro a preocupagdo do organismo sobre a preservacdo da cultura’. (2006, p.85] 4G Elis Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siqueira (Orgs.) de um bem em um quadro da esfera publica, 0 ou- Conforme ressalta a autora, o patriménio diz respeito Jgo que encontra-se na iminéncia de ser destruido. Segundo is palavras: “Longe de se coagir a um estatuto, ainda menos 1m estado, o patriménio se realiza como um proceso ativo, Is ole & 0 reflexo de uma reagio em face. da perda”. (JADE, (06, p.144). Essa perspectiva aproxima-se da de Guillet, que ¥ mostra que a destruigao de igrejas, prédios e bens da mo- quia e da aristocracia pelos revolucionarios desencadeou verdadeiro proceso contrario cujo efeito foi o de produzir yma consciéncia sobre o que estava sendo perdido. “4 revolugao representa um momento essencial de cristalizagio dessa consciéncia. A tabula rasa que ela quer fazer com o passado se encarna de maneira concreta nas destruiges infligidas aos monumentos entre 1792 e 1794 nisso que foi convencionado cha~ mar de iconoclasmo revolucionario; mas essa febre provoca um retorno, ao menos entre os oponentes @ Revolucdo, uma tomada de consciéncia e uma apro- priacéio coletiva dos objetos tornados os simbolos de um passado revolucionado”. (GUILLET, 2011, p98). ‘a em sutilezas ‘A nogio de patriménio imaterial im gonceituais que no fazem unanimidade, Como nos ensina ‘Amirou, espacos concretos e materiais s4o algados ao status de patriménio mais em funcao de aspectos como a sociab to que propriamente a arquitetura: lade ‘Nos assim inscrevemos no inventério do patriménio de bens culturais ditos ‘imateriais’ tais como a praca Djama el Fna em Marrakech, aceito recentemente pela UNESCO na lista do patriménio mundial em razéo ndo da arquitetura, mas da sociabilidade e da vida que se desdobram para a felicidade dos visitantes desse lugar que serve sempre de mercado”. (AMIROU, 2000, p.22). Concepgées, memérias e patriménio cultural 47 Signo de um olhar que deixa de lado os objetos para se le I aciona representa- des que desafiam as concep¢oes tradicionais relacionadas ao ” recebi- deter nas relagdes, 0 patriménio imate patriménio material: “E possivel preservar uma “grag da? E possivel tombar os “sete dons do Espirito Santo”? (2009, .30). Um olhar mais atento, contudo, nos ensina que nenhum patrim6nio por mais imaterial ou abstrato que seja abdica da materialidade e vice-versa O patriménio imaterial nos remete assim a expressdes € representacées cuja visibilidade nao € obvia, Amirou entende © patriménio imaterial como tudo 0 que diz respeito a capaci- dade do homem de refletir e pensar: “Pelo termo imaterial a gente reconhece assim um novo tipo de patriménio que engloba 0 conjunto das produces espirituais do homem. (...) Utilizamos igualmente a expresso patriménio vivo para identi- ficar mais precisamente 0 conjunto das tradigBes ou praticas ludicas inscritas na vida cotidiana de uma comunidade; dito de outra forma, os modelos e os valores que constituem a base da identidade cultural de um grupo ou de uma sociedad”, (2000, p.23). Apesar da distincdo que existe entre patriménio mate- rial e imaterial e cuja praticidade certamente responde aos an- seios dos profissionais de turismo, Amirou procura mostrar que em todos os casos a perspectiva imaterial encontra-se presente no fato patrimoni “Poderiamos objetar que um quadro é certamente material, mas que é sua imaterialidade (0 sentido estético, a assinatura, a época, etc.) que o faz patri- Ménio. Vimos mais no alto que o objeto somente & cultural ou artistico se ele sugere outra coisa que sua materialidade imediata, Para nos, a imaterialidade & 48 Elis Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siqueira (Orgs.} constitutiva de todo objeto patrimonial, ela é a con- digdo necesséria e suficiente”. (2000, p.24). Visto sob esse angulo, ndo € possivel separar o senti- que experimentamos quando visitamos uma cidade tombada mo Ouro Preto ou Paraty com suas igrejas, ruas € casardes. A ja que atribuimos a essas construgdes historicas, assim como {uma panela de barro, como as fabricadas artesanalmente pelas ineleiras de Goiabeiras de Vitéria, no Espirito Santo, fornece a have para superarmas a distincao entre o material e 0 imaterial Contudo, essa distincdo est longe de estar superada, Jinda hd um longo caminho a percorrer até que a nocao de witerialidade ou de intangibilidade adquira ressonancia junto um publico mais amplo. As razSes para isso sao histéricas, Jomo nos mostra Jadé: “0 mundo ocidental é considerado como aquele das civilizagBes da escrita, do original, do Unico. Além da pregnancia da ideologia da reliquia, a preocupaco do material sempre foi uma preocupacao muito viva porque a organizacdo social se constituiu sobre pro- vas administrativas: contratos, documentos de pro- priedade, atas de notarios....ou seja de tracos mate- riais”. (2006, p.55). Accritica deve ser uma via de mao dupla. Mesmo a clplina que por exceléncia foi responsdvel pela virada na concep- lio de cultura derrapava em suas primeiras tentativas de ultra- passar os marcos da materialidade ou dos objetos. Esse percurso Inclui pelo menos dois grandes nomes do pensamento antropo- légico, Marcel Mauss e Lévi-Strauss. Se o primeiro pode ultra- passar as limitagdes impostas pelo positivismo acentuado de seu tio Durkheim ao fundar a nogdo de Fato Social Total, o segundo Jevou adiante o caminho aberto por Mauss rumo a uma ciéncia do simbélico. Independente das criticas dirigidas contra o estru- Concepedes, memérias e patriménio cultural 49 turalismo apolitico de Lévi-Strauss que deslocou radicalmente o sujeito para fora da cena do que estava em jogo, o fato é que sua contribuicdo para a compreensao do homem e da cultura foi de- cisiva a instauracdo de uma ciéncia das relacées. nsideragdes provisorias , fm um mundo onde tudo parece ter sido volat judo pode tornar-se patrim6nio? A resposta ndo é sim- s, assim como a pergunta. Primeiro, é preciso levar em {ta 0 quadro cultural onde os sentidos em torno do patri- inlo so negociados. A questo é histérica e também, ou incipalmente, po ‘A lista dos bens que foram oficialmente reconhecidos smo patriménio ~ é preciso ter em conta que patriménio nao snifica necessariamente o bem que foi assim foi reconhecido os drgaos oficiais - sofreu um aumento significativo desde omeco dos anos 2000, Sao patriménios que dizem respei sobretudo, a um universo popular antes mantido a distancia 1 critérios de selecdo intransponiveis. Os critérios que conferiam valor inquestiondvel aos pjetos dotados de uma excepcionalidade histdrica, estética & Jt(stica foram, entdo, implodidos. O conceito mesmo de pa- |imdnio foi posto em cheque por diferentes pesquisadores ao jostrar como s40 construidos os discursos de sacralizacao dos Jetos. A distingo nao é algo que emana somente do objeto, J 6 um processo de investimento que quanto mais complexo jenor é a chance de revelarmos sua l6gica. ‘As mutagdes do conceito de cultura deixaram de lado 45 objetos para se deter nas relagdes, 0 que implicou na des- \ubstancializagiio do conceito de cultura. O mundo das rela- Bes é movedico, arbitrario e sujeito a interpretagSes. O patri- ‘onio, como no poderia deixar de ser, experimentouefeito slessas mudangas. ' , ‘A chegada de novos atores a cena politica também Jogou papel chave nesse processo, primeiro porque contesta- ‘yam os discursos hegeménicos do patriménio articulados pelo “Reflexo de seu tempo e de novas mentalidades, os caminhos do patriménio conhecem um periodo de transicao vivido por numerosas disciplinas cujo obje- to € 0 fato material. A relago de Interesse para com 0 imaterial é um fenémeno conhecido; a crise assu- mida pela etnografia oferece um sé exemplo. Para ‘0 etndgrafo, o traco material sob todas as suas for- mas era considerado como o testemunho social de za¢do cuja coleta levava prova do discurso cientifico. Nesse sentido Marcel Mauss declarava que “uma colher nos ensina tanto quanto uma mascara Mas, progressivamente, um desinteresse apareceu para com os objetos com ganhos de outras manifes- tag6es do real. Na continuidade de Lévi-Strauss, 0 es- tudo do imaterial suplantou aquele do material nos dominios da pesquisa”. (JADE, 2006, p.59). Creio que as agdes que levaram a selecdo e 3 entrada de bens do mundo ordindrio ndo impliquem uma profanac3o como pensam alguns, como também nao acredito que a cate- goria patriménio teve sua capacidade de analise afetada ou que estejamos banalizando o ato de patrimonializar. O que acontece com 0 patriménio é 0 reflexo de demandas de novos atores so- ciais 8 arena politica fazendo uso do patriménio como elemen- to de diferenciacéo, assim como a revolucdo pela qual passou a nocéo de cultura. Ndo menos importante é a desregulamenta- do dos mercados, a crise do Estado moderno e o desmonte de instituigdes sociais que ancoravam as identidades. Se isso tudo & chamado de pés-modernidade ou de uma fase da moderni- dade resta ainda a discutir através de estudos e investigacées. 50 _ Elis Regina Barbosa Angelo & Euler David de Siqueira (Orgs. Concepgées, memésis epatriménio cultural 52 Estado e, segundo, porque reivindicavam a entrada ou 0 reco- nhecimento de seus patriménios por parte dos érgaos oficiais. Esse processo no se deu em mao unica, muito ao contrario. A medida que o Estado reconhecia novos patriménios de grupos sociais, aqueles reconhecidos pelo Estado retribufam reconhe- cendo 0 Estado como o legitimo detentor do monopdlio de se- lecio e eleicdo do patriménio. Retorno a pergunta inicial: tudo pode tornar-se patri- ménio? A pergunta talvez devesse ser reformulada: quem de de quais critérios serao usados para selecionar e eleger aquilo que se chama de patriménio? Nesse sentido, trata-se de uma disputa que mais do que ganhadores ou vencedores nos coloca diante da distribuicdo desigual de capital cultural e simbélico, 0 que nao significa que 0 jogo esteja perdido, apenas que novas estratégias tém de ser definidas. Initiateurs et entrepreneurs culturels du tourisme : 1850-1950. Jean- ss Andrieux, Patrick Harismendy (Orgs.). Rennes : Presse Universitaire de. JURDIEU, Pierre. Questions de sociologie. Paris : Editions de Minut, 9.2779. iA FILHO, Manuel F; BELTRAO, Jane F; ECKERT, Cornélia. Quando o campo riménio, In: Antropologia e patriménio cultural: didlogos e desafios temporaneos, Organizadores: Manvel Ferreira Lima Filho, Jane Felipe iho, Cornélia Eckert. Blumenau: Nova Letra, 2007. 368p, JODENS, Anthony. As conseqiiéncias da modernidade. Sao Paulo: Unesp, i. INGALVES, José R. S. O patriménio como categoria de pensamento: In: Wimndria e patriménio ensaios contemporéneos. 2a. ed. Regina Abreu; Jo Chagas (Orgs.). 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