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Erotismo, sexualidade e gênero

Aula 2

Na aula de hoje, vamos começar nosso módulo dedicado ao conceito de “erotismo” a partir de Georges
Bataille. Gostaria de, inicialmente, apresentar Bataille e, em um segundo momento, tecer algumas
considerações gerais sobre sua experiência intelectual.
“Eu sou um filósofo... até certo ponto”. Talvez essa frase de Bataille (1897-1962) seja uma boa
maneira de começarmos a nos introduzir a sua obra multifacetada. Composta de vários livros de literatura
(como, por exemplo, A história do olho e Madame Edwarda, livros que passaram à história da literatura
devido a sua maneira explícita de falar de sexo e que parecem se colocar na linha direta de produções como
as de Sade, dos libertinos franceses, entre outros), sua obra não é, no entanto, a obra de um escritor. Seus
romances são a elaboração literária de uma problematização filosófica, um pouco como os romances de
Sartre, de Diderot e Rousseau. Há algo de “romance de tese” em sua obra literária, já que a literatura
aparece quase como um regime discursivo de explicitação de proposições filosóficas.
No entanto, sua produção filosófica também não parece se enquadrar claramente no modelo de
produção que poderíamos esperar de textos filosóficos. Por exemplo, a parte alguns escritos sobre
Nietzsche e dois artigos sobre Hegel, não encontraremos textos diretamente dedicados ao comentário da
obra de outros filósofos. Sua formação não foi típica de um filósofo. Ela se deu na Ecole des Chartes, de
Paris, de onde saiu como arquivista e bibliotecário com uma tese sobre o manuscrito A ordem da cavalaria,
o que explica, entre outros, porque encontraremos em sua produção textos técnicos sobre numismática.
Durante praticamente toda sua vida, Bataille foi arquivista da Biblioteca Nacional, ficando completamente
à margem da vida universitária.
Esta formação híbrida, assim como uma grande abertura de interesses, pode explicar porque os
temas de sua filosofia muitas vezes se constroem em um campo de interface entre a antropologia, a
teologia, a estética e a filosofia. O que lhe fornece uma capacidade não negligenciável de elaborar temas
filosóficos até então inexistentes, como este que versa sobre o erotismo e suas relações com o sagrado.
Se voltarmos os olhos para o sistema de influências presente na obra de Bataille veremos, ao menos,
duas influências maiores vindas do campo da filosofia. A primeira é Nietzsche. De fato, a peculiaridade da
recepção de Nietzsche na França seria incompreensível sem o impacto dos textos de Bataille e sua maneira
de, nos anos trinta, demonstrar a incompatibilidade entre o filósofo alemão e o nazismo que procurava à
sua maneira recuperá-lo. Já a segunda influência filosófica é Hegel, mas um Hegel muito peculiar pois
descoberto através dos cursos de Alexandre Kojève.
Kojève foi um emigrante russo responsável, nos anos trinta, por um seminário de leituras da
Fenomenologia do Espírito na Escola Prática de Altos Estudos. Entre os alunos de seu curso encontravam-
se: Bataille, Jacques Lacan, Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Eric Weil e de forma mais
esporádica Jean-Paul Sartre e André Breton. Como vocês podem ver, uma boa parte da núcleo do
pensamento francês dos anos 30 e 40 estava presente ao mesmo seminário, aprendendo um modo de
leitura dos textos hegelianos que privilegiava questões ligadas ao desejo, à luta por reconhecimento, à
morte e ao fim da história. Bataille seguiu de maneira assídua os seminários, de 1933 a 1940, sendo a única
formação filosófica de longa duração que teve.
Mas além da influências filosóficas, devemos salientar ainda outras duas matrizes para a
constituição de seu pensamento. A primeira vem do surrealismo e das aspirações abertas pelo modernismo
estético. Desde de meados dos anos vinte, Bataille participa assiduamente das discussões a respeito do
surrealismo, animadas principalmente por André Breton. No entanto, suas relações com Breton são tensas
e logo serão levadas à ruptura. Bataille se vê em uma posição mais radical do que a de Breton, que ele
compreende como uma porta-estandarte de uma versão “oficial” e “institucionalizada”. A seu respeito,
Breton dirá: “O Sr. Bataille faz profissão de querer considerar apenas o que há de mais vil, mais
desencorajador e corrompido e ele convida o homem, a fim de evitar que ele se torne útil ao que quer que
seja de determinado a correr absurdamente com ele em direção a algumas casas provinciais assombradas,
mais vis que as moscas mais viciosas, mais rançoso que salões de cabelereiro”1.
Podemos definirmos um dos eixos centrais do surrealismo como a crítica da realidade social em prol
de uma sobre-realidade na qual encontraríamos o que teria sido recalcado pelos processos de
racionalização na modernidade, como o inconsciente, o infantil e o arcaico. Neste sentido, a experiência
modernista é um paradoxal apelo à recuperação do que foi expulso do nosso tempo histórico. Recuperação
da capacidade de escrever como um criança, sem objetivo e em completa errância; escrever com as
condensações, os deslocamentos e as associações próprias às formações do inconsciente; escrever
deixando retornar experiências sociais que a modernidade quer marcar com o selo do arcaismo. Dentro
desse horizonte, a posição de Bataille consiste em explorar tal retorno do recalcado através de uma reflexão
sobre a potência de uma escrita da transgressão.
Com este projeto em mente, Bataille irá organizar o campo de uma vertente do surrealismo que se
constituirá através de revistas como Documents, Minotaure e, principalmente, Acéphale. Talvez a síntese
do espírito de tais revistas se encontre na capa de Acéphale, desenhada por André Masson. Nela,
encontramos um desenho inspirado no Homem de Vitruvio, de Leonardo da Vinci. Mas, pelas mãos de
Masson, ele perde sua cabeça, ganha uma caveira no lugar de seu sexo, suas vísceras estão expostas e nas
mãos ele carrega um coração em chamas e uma adaga. Ou seja, a figura que talvez melhor sintetize a crença
renascentista no humanismo e na razão que se expressa no equilíbrio sereno da boa forma perde sua
cabeça e se vê obrigada a segurar a violência da adaga, a paixão que queima e a morte ligada ao sexo. O
que não nos surpreende se lembrarmos como Bataille escreve o primeiro texto da revista anunciando:
“Chegou o momento de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É muito tarde para tentar ser razoável
e instruido – o que levou a uma vida sem atrativos. Secretamente ou não, faz-se necessário se transformar
em algo totalmente outro ou cessar de ser”.
Lembrem como, na aula passada, eu falara sobre a solidariedade entre todo verdadeiro projeto
filosófico e a elaboração, até as últimas consequências, de um acontecimento. Aqui, nós encontramos um
bom exemplo do que significar ter a consciência de estar diante de um acontecimento. Ele se dá sobre a
forma de um momento de abandono. Um abandono impulsionado, principalmente, pela consciência de se
viver em uma época de esgotamento estético à procura de superação. A arte aparece como uma
experiência marcada pela procura em sintetizar novas formas capazes de nos desacostumar de uma
realidade que, longe de ser naturalizada, é uma construção social responsável pelo empobrecimento da
vida do homem moderno. Por isto, ela nos levará não apenas a uma nova ordem, mas, principalmente, à
destruição da figura atual do homem. Daí porque o gesto estético por excelência é a decapitação, a perda
do centro que define uma hierarquia.
Por fim, o terceiro campo de influência do pensamento de Bataille deriva da antropologia de Marcel
Mauss e da psicanálise de Sigmund Freud. Vale a pena lembrar que Bataille fundará, juntamente com
Michel Leiris, Roger Caillois e Pierre Klossoviski uma espécie de sociedade secreta chamada “Colégio de
sociologia”. Nela, era questão de desenvolver um saber capaz de fazer não apenas uma antropologia da
sociedades primitivas, mas principalmente uma antropologia das sociedades modernas, colocando à luz
aquilo que, em nossas sociedades, não se deixa pensar a partir de explicações utilitaristas. Para tanto,
Bataille se serve principalmente de conceitos de Marcel Mauss, como dádiva, dom, mana, fato social total,
entre tantos outros. Ele também não deixa de se apoiar em Freud a fim de construir um conceito que fará
fortuna na psicanálise, através principalmente de Jacques Lacan, a saber, o conceito de gozo.

1
BRETON, André; MAnifestes do surréalisme, Paris: Gallimard, 1962, p. 132
Um crítica da sociedade do trabalho

Uma forma possível de começar a compreender o sentido da experiência intelectual de Georges


Bataille é prestando atenção no modo de funcionamento de sua crítica social. Como vocês podem imaginar,
ela não é apenas uma crítica social, mas ao mesmo tempo, crítica da razão e crítica do sujeito. Ou seja, ela
compreende que a única maneira de fazer uma verdadeira crítica social não é contentando-se com a
denúncia das condições de exploração e injustiça econômica. A verdadeira crítica precisa, ao mesmo
tempo, estar atenta para a maneira com que nossa realidade social só será modificada à condição de nos
livrarmos de um conceito de razão onde esta aparece principalmente como um modo instrumental de
dominação e de um conceito de sujeito profundamente alienante.
Em vários momentos, Bataille lembrará que nossas sociedades modernas ocidentais são
caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho. O trabalho aparece como atividade
fundamental para a constituição das identidades sociais e para o meu reconhecimento como sujeito. Neste
sentido, lembremos de duas características maiores do trabalho. Primeiro, o trabalho fornece um modelo
fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades sociais intersubjetivamente partilhadas, isto
devido ao fato dele ser (juntamente com o desejo e a linguagem) um dos eixos de constituição daquilo que
podemos entender por “forma de vida”. Tal expressão realiza exigências maiores de autenticidade. Procuro
realizar, através do trabalho, a expressão de algo que definiria minha autenticidade, a singularidade do meu
estilo.
No entanto, e este é o segundo ponto, o trabalho aparece como modalidade privilegiada de
formação em direção à autonomia. Não é por acaso que compreendemos a maturação psicológica como
este momento em que, entre outras coisas, deixamos de brincar e começamos a trabalhar. Pois a
maturação implica mutação no padrão de atividades subjetiva. Ou seja, a expectativa de realização
conjunta de exigências de expressão e formação é elemento definidor dos valores que mobilizamos na
avaliação social do trabalho. Pois trata-se de dar conta de uma dupla demanda presente na definição
moderna de liberdade. Dupla demanda referente à constituição da autonomia e à manifestação social da
autenticidade. Por sua vez, o fracasso em realizar tais expectativas explica muito do espectro de
sofrimentos que ainda encontramos na vida social.
Se o trabalho tem esta dimensão formadora é porque ele é uma das versões mais bem acabadas de
certo processo de auto-governo. Só aqueles capazes de se auto-governar são capazes de trabalhar. Pois,
como dizia Marx, através do trabalho, aprendemos a impor uma lei à vontade, lei que deve ser reconhecida
por mim como expressão da minha própria vontade. Esta vontade que submete outras vontades e que
aparece assim para o sujeito com um dever que ele mesmo põe para si, dever que lhe permite relativizar
as exigências imediatas de auto-satisfação, é um fator decisivo na constituição da noção moderna de
autonomia. Por isto, só aqueles capazes de trabalhar são autônomos; não apenas no sentido material de
serem capazes de prover seus próprios sustentos, mas no sentido moral de serem capazes de impor para
si mesmo uma lei de conduta que é a expressão de sua própria vontade. E se lembramos da ideia de
Rousseau2, para quem a verdadeira liberdade é a capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, ser
legislador de si mesmo, então seremos obrigados a dizer que o trabalho é exercício mais importante para
a liberdade.
Para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle socialmente validado não é possível ao
trabalho aparecer, em qualquer momento que seja, como modalidade bem sucedida de reconhecimento
social. Trabalhar sempre será uma operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a divisão social
imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham a posse dos meios de produção e de
seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da
produção e que produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de tempo e metas, não se
2
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000
deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final de cada objeto produzido, avaliar
cada ação a partir do valor que ela produziu. Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso
calcular valores que são homogêneos, intercambiáveis. A lei que imponho para mim mesmo quando
organizo minhas atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me ensina a calcular, a medir, a
quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste
ponto que se encontra, para Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de alienação produzida pela
sociedade do trabalho. Por isto, ele precisará lembrar:

O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à eficácia produtiva, é
constante. Exige uma conduta razoável, em que os movimentos tumultuosos que se liberam na festa
e, geralmente, no jogo, não são admitidos. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razão de refreá-los3.

Nesta citação, vemos Bataille introduzir uma oposição importante. Há um modelo de cálculo
derivado da lógica do trabalho. Tal modelo é indissociável da noção de “utilidade”, assim como de um
tempo no qual as atividades são calculadas tendo em vista sua utilidade. Se nos perguntarmos sobre o que
devemos entender por “utilidade” neste contexto, teremos que apelar a um texto do início dos anos 30,
intitulado “A noção de dispêndio”. Nele, lemos:

A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob uma forma moderada,
pois o prazer violento é tido como patológico – e se deixa limitar, por um lado, à aquisição
(praticamente à produção) e à conservação dos bens e , por outro, à reprodução e à conservação
das vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a atividade social subentende
o princípio de que todo esforço particular deve ser redutível, para ser válido, às necessidades
fundamentais da produção e da conservação4.

Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de descrição da
racionalidade própria a um sistema social determinado, mas principalmente como o princípio fundamental
de definição da natureza dos sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo
são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-conservação, a conservação de seus bens e
a fruição de formas moderadas de prazer. Eles são aqueles que se julgam racionais por sempre se
perguntarem pela utilidade de suas ações, não apenas suas ações no interior do mundo do trabalho, mas
também suas ações relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx a respeito do problema
do fetichismo da mercadoria, as relações entre pessoas acaba ganhando a forma de relações entre coisas:
“a humanidade, no tempo humano, antianimal do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas”5.
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela compreende como
excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se confunde com o cálculo do prazer e desprazer e,
principalmente, toda ação social que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por
“gozo” aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer e alegria. Daí o
sentido de uma afirmação como:

A atividade humana não é inteiramente irredutível a processos de reprodução e de conservação, e


o consumo deve ser dividido em duas partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo
uso do mínimo necessário para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservação da vida e ao

3
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64
4
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
5
Idem; O erotismo, p. 184
prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto, simplesmente da condição fundamental
desta última. A segunda parte é representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os
enterros, as guerras, os cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os espetáculos,
as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da finalidade genital) representam atividades
que, pelo menos nas condições primitivas, têm em si mesmas seu fim6.

Há várias questões que poderíamos colocar a partir de afirmações desta natureza. Elas apontam
para o fato de toda sociedade ser atravessada pela necessidade de experiências de excesso, de dispêndio
e de destruição que, do ponto de vista das exigências econômicas de produção e maximização, são
simplesmente irracionais. Mas, ao menos neste momento, gostaria de desdobrar a ideia de que a atividade
sexual seria um exemplo privilegiado de atividade improdutiva, de excesso e de dispêndio sem finalidade.
Ela está bem expressa em uma afirmação como:

Há entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual, uma incompatibilidade


cujo rigor não poderia ser negado. Na medida em que o homem se definiu pelo trabalho e pela
consciência, ele teve não apenas que moderar, mas desconsiderar e por vezes maldizer nele mesmo
o excesso sexual. Em certo sentido, essa desconsideração desviou o homem, senão da consciência
dos objetos, ao menos da consciência de si7.

O excesso e os números

Notem, inicialmente, a peculiaridade da construção de Bataille. Primeiro, trata-se de dizer que há


uma incompatibilidade entre a lógica do trabalho e a vida sexual. Isto exige não apenas aceitar desvincular
a vida sexual dos imperativos de reprodução (pois se sexo servisse principalmente para a reprodução, então
ele entraria sem maiores problemas no interior das exigências de conservação das sociedades), mas
também, e este é o passo mais singular, desvincular sexo e prazer. Pois poderíamos, sem muita dificuldade,
imaginar, como afinal sempre se imaginou, que o desgaste do mundo do trabalho pede um complemento
através do uso do tempo livre enquanto momento de prazer. Não por outra razão, mais ou menos à mesma
época, filósofos ligados à Escola de Frankfurt, como Herbert Marcuse e Theodor Adorno, lembravam como
as sociedades capitalistas não podiam ser compreendidas como sociedades repressivas em relação às
exigências da sexualidade. Elas eram sociedades de contínua incitação à sexualidade, sociedades nas quais
o poder fornece, ao mesmo tempo, o paradigma da ordem e as figuras da desordem. Desde o advento das
sociedades de consumo, a experiência do prazer é um argumento constantemente presente para o
fortalecimento da coesão social.
Por uma razão desta natureza, Bataille procura pensar a experiência sexual como aquilo que não se
encaixa dentro da racionalidade instrumental dos que procuram maximizar seus prazeres e se afastar de
seus desprazeres. Por isto, sua incompatibilidade com o trabalho não é simplesmente derivada da ideia de
quanto mais tempo para o trabalho, menos tempo para a vida sexual. Na verdade, trata-se de afirmar que
a incompatibilidade é estrutural: o tempo profano do trabalho em nada se assemelha ao tempo sagrado
do erotismo. Eles não tem medida comum, eles não seguem a mesma lógica. Sua relação é de completa
heterogeneidade. Quem habita o primeiro tempo, não sabe como habitar o segundo e quem habita o
segundo despreza profundamente o primeiro.
Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, não significa dizer que o erotismo é mais intenso
que o trabalho. Seu excesso não é da ordem da grandeza, mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo”
significa o que é muito grande, pois isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois

6
Idem; A parte maldita, p. 21
7
Idem; O erotismo, p. 188
fenômenos, sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa aqui o que
excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que não se mede, o que colapsa toda medida,
porque sua lógica não é a lógica dos objetos mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e
silencioso, mesmo quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo. Porque
seu excesso é a recusa do que não aceita ser sentido e vivido da mesma forma que sentimos as coisas que
podemos calcular, mensurar e quantificar. O erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza
é exatamente aquilo que não entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do trabalho e
da lógica utilitária. Por isto, que Bataille irá procurar se apoiar em tudo o que parece inumano no sexo:

A sexualidade, qualificada de imunda, de bestial, é mesmo o que mais se opõe à redução do homem
à coisa: o orgulho íntimo de um homem se liga a sua virilidade. Ela não responde de modo algum
em nós àquilo que é o animal negado, mas ao que o animal tem de íntimo e de incomensurável. É
mesmo nela que não podemos ser reduzidos como bois à força de trabalho, ao instrumento, à
coisa8.

Inumano é o que o homem precisou expulsar para ter uma imagem na qual reconheça as normas
aos quais a vida social o vinculou, como a animalidade. Tal animalidade não é o selvagem, mas o
incomensurável, o que não se descreve como descrevemos um instrumento.
Isso explica, em nosso texto, a indignação de Bataille com estudos “sobre a vida sexual” como os
Relatórios Kinsey. Alfred Kinsey foi um biólogo e “sexólogo” norte-americano responsável por estudos
sobre o comportamento sexual masculino e feminino que marcaram os anos cinquenta. Seu estudos
procuraram criar escalas (como uma que definia tendências homossexuais e heterossexuais a partir de uma
escala de 0 a 6) e organizar comportamentos a partir de variáveis de ocupação, idade, religião, entre tantas
outras. Bataille se insurge contra a ideia de que poderíamos falar de sexo como se estivéssemos diante de
um objeto do mundo físico. Ou seja, uma ciência da sexualidade é, para Bataille, impossível. Pois a ciência
é um regime de descrição que não se diferencia do padrão de racionalidade que encontramos no mundo
do trabalho.
Mas podemos dizer que, para Bataille, uma ciência da sexualidade é impossível porque, primeiro:
“não podemos em geral participar da pedra, da tábua, mas participamos da nudez da mulher que
enlaçamos”9. Ou seja, não há um observador indiferente aos fenômenos ligados à sexo, pois eles provocam
necessariamente nossa participação. Olhar para eles, descrevê-los é entrar em um regime de participação
e de implicação, como participaríamos e nos implicaríamos se descrevêssemos a dor ou a morte de alguém
próximo. Por isto, o discurso que crê descrever fenômenos sexuais como se fossem coletados por
observadores imparciais e imunes ao que veem só pode ser uma mistificação. Nossa descrição do que é da
ordem do sexual sempre será uma descrição sexualmente investida, libidinalmente interessada. Melhor
procurar um regime de discurso que possa lidar melhor com tal realidade.
Por isto, e este é o segundo ponto, falar de sexo não pode ser, para Bataille, reduzi-lo a dados
estatísticos. Não que eles não sejam precisos, eles são simplesmente irrelevantes:

Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a dar números, medidas,
classificações de acordo com a idade ou a cor dos olhos? O que o homem significa a nossos olhos se
coloca sem dúvida para além dessas noções: estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a
um conhecimento já dado senão aspectos inessenciais10.

8
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 183
9
Idem, p. 179
10
Idem, p. 180. Ou ainda: “la science a pour objet de fonder l’homogénéité des phénomènes ; elle est, en un certain sens, une des
fonctions eminentes de l’homogénéité. Ainsi, les éléments hétérogènes qui sont exclus par cette dernière se trouvent également
Consciência de si e soberania

Em uma citação anterior, vimos Bataille a afirmar que desconsideração pela natureza excessiva do sexo
teria desviado o homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da consciência de si. Seria
interessante perguntar-se aqui porque vincular a revelação do sexo à consciência de si. Normalmente,
poderíamos pensar no contrário, a saber, que a natureza excessiva da vida sexual é o avesso de toda
consciência de si, pois ela nos colocaria em um regime de descontrole e inconsciência, de distância em
relação a algo como um “si mesmo”, como quem se entrega à servidão de algo que lhe ultrapassa e lhe
subjuga.
No entanto, Bataille afirma que o reconhecimento da natureza excessiva da vida sexual é condição
para quebrarmos o círculo de alienação no qual se encontramos enquanto indivíduos das sociedades
capitalistas do trabalho, enquanto objetos de um discurso científico objetificador e acedermos à condição
de consciência de si emancipada.
Este conceito de consciência de si é profundamente vinculado a um outro conceito importante de
Bataille, a saber, o conceito de soberania. Normalmente, o conceito de soberania é utilizado no interior da
filosofia política para descrever aquele que se encontra em um lugar excepcional, pois fonte de emanação
do poder. O exemplo mais paradigmático aqui é o lugar do rei no poder monárquico. O rei é soberano
porque, sendo a fonte do poder, a lei é expressão da sua vontade. Por isto, ele pode, ao mesmo tempo, ser
o fundamento da lei e suspendê-la quando entender dever ser o caso. O soberano é aquele que pode estar
dentro ou fora da lei, aplicá-la ou suspendê-la, porque é dele que emana o poder.
Por outro lado, o soberano é aquele que pode consumir as riquezas sem trabalhar, enquanto aquele
submetido à servidão produz riquezas sem consumi-las. Ou seja, a soberania pressupõe o descolamento
entre gozo e trabalho, pois se baseia no direito ao gozo desvinculado de toda atividade laboral. Do ponto
de vista da lógica econômica, o soberano é improdutivo.
Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que se encontra no centro do poder
político para transformá-lo em um conceito capaz de descrever a posição subjetiva de quem não se
encontra mais em posição de alienação e servidão. Mas o paradoxal no uso batailleano do conceito de
soberania é que ele não descreve alguma experiência de dominação baseada na sobreposição da vontade
do Outro à minha vontade. Ao contrário, soberano é aquele capaz de depor toda vontade de domínio, todo
projeto, porque ele tem a segurança de que nenhuma vontade de domínio vinda do Outro poderá lhe
submeter.
Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as coisas através da sua
submissão à utilidade delas para mim, que normalmente sou seu proprietário, nem controlar o tempo
através da submissão do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações
que aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde só faz sentido o que
se submete à necessidade definida na idealidade do futuro. Futuro para o qual o esquecimento de si no
presente aparece como um dispêndio improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades
que a utilidade não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)” 11, ou ainda, “o que é
soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não ser esse tempo presente”. Desta forma,
a improdutividade do soberano se transforma na descrição de uma posição subjetiva na qual a liberação
do tempo e das coisas é indissociável de uma experiência de emancipação.

exclus du champ de l'attention scientifique : par principe même, la science ne peut pas connaître d'éléments hétérogènes en tant
que tels” (BATAILLE, Georges; )

11
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se nego em mim mesmo o primado do instante
por vir sobre o instante presente”12. Pois só assim, não sou mais um objeto submetido à suspensão do gozo
do presente em nome do trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensão que sempre é feita para que
um outro, este sim em posição soberana, possa consumir o que produzo. Não há trabalho, lembrará
Bataille, sem consumo dos produtos trabalhados por um soberano que não trabalha. Graças ao efeito do
meu trabalho, há sempre um soberano que pode viver no instante.
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de habitar outro tempo, distinto
do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille, próprio ao milagre:

Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio do sol que, em uma
manhã de primavera, transfigura uma rua miserável (o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode
ser o vinho, do primeiro copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de riqueza; também sob a
forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada; enfim, sob a forma de glória13.

Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por Bataille, característica que
veremos com mais calma na próxima aula, é sua posição de transgressão em relação à lei. Se na teoria
política o soberano é aquele que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o fundamento da lei,
mas à ela ele não se submete por completo, na filosofia de Bataille, o homem soberano é aquele que
estabelece com a lei uma relação de transgressão. Ele pode ir em direção ao que é interdito, ao que estava
separado do contato dos homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e a transgressão
da lei”14. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este jogo de transgressão na qual as leis que
definem os lugares e identidades sociais, as posições, as práticas interditadas são continuamente colocadas
em questão e profanadas. Pois o erotismo é próprio a: “um mundo que se desnuda na experiência do limite,
faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride”15. Veremos melhor este ponto na aula que vem
Mas Bataille também acrescenta algo à noção de soberania, a saber, a ideia de que a consciência de
si soberana não é a realização final de uma identidade reconquistada. O verdadeiro soberano não é aquele
que se deleita na segurança de sua própria identidade. Ele é aquele que depôs todo desejo de auto-
identidade. O verdadeiro soberano é aquele que não teme se perder, que não teme ser habitado pelo
profundamente heterogêneo, isto a fim de se abrir a uma experiência que, do ponto de vista da utilidade,
da produção, da conservação de si e do domínio dos objetos, é completamente irracional. Essa consciência
de si é fundada na capacidade de transformar a relação a si em uma relação que não será relação
homogênea, mas uma relação heterogênea. Veremos na aula que vem como a experiência do erotismo nos
coloca no caminho em direção a tal consciência.

12
Idem, p. 289
13
Idem, p. 249
14
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
15
FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264
Erotismo, sexualidade e gênero
Aula 3

Na aula de hoje, daremos continuidade ao nosso módulo dedicado ao conceito de erotismo, em Georges
Bataille. Gostaria de discorrer sobre três temas centrais no pensamento de Bataille, a saber, a) a função e
o sentido da relação entre erotismo e morte, b) o fundamento da ideia de uma sobreposição entre erotismo
e sagrado, c) o conceito de transgressão.
Na aula passada, terminamos através de uma discussão sobre o conceito de soberania. Bataille
afirmara, em dado momento, que a desconsideração pela natureza excessiva do sexo teria desviado o
homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da consciência de si. Eu sugeri que, compreender a
relação entre sexo e consciência de si, ou seja, sexo como uma forma de tomar consciência de si mesmo,
passava por organizar discussões a respeito da maneira com que Bataille compreende ser possível superar
o círculo de alienação no qual se encontramos enquanto indivíduos das sociedades capitalistas do trabalho,
enquanto objetos de um discurso científico objetificador. Se confrontar-se com a natureza excessiva da
vida sexual é condição para tomar consciência de si mesmo, é porque, ao menos para Bataille, há algo na
experiência sexual que nos coloca nas vias da soberania. Sendo assim, o conceito de soberania aparece
como um operador importante para compreendermos o que está em jogo na ideia de erotismo.
Lembremos mais uma vez, normalmente, o conceito de soberania é utilizado no interior da filosofia
política para descrever aquele que se encontra em um lugar excepcional, pois fonte de emanação do poder.
O exemplo mais paradigmático aqui é o lugar do rei no poder monárquico. Do lugar do rei, Bataille sublinha
duas características principais: sua posição, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, assim como a
preferência pelo uso improdutivo da riqueza (já que o uso produtivo seria ligado à acumulação, processo
próprio à ascensão da mentalidade burguesa). Bataille chegará a dizer: “economicamente, a atitude
soberana se traduz pelo uso do excedente para fins improdutivos”16.
O exemplo mais claro desse uso improdutivo da riqueza próprio à soberania nos é dado pelo
fenômeno social do potlatch (“nutrir” ou “consumir” em chinook), que pode ser encontrado em tribos
norte-americanas, na Melanésia e na Nova Guiné. É o antropólogo Marcel Mauss que descreve o fenômeno
como uma “prestação total do tipo agonístico”. Mauss quer dar conta desses fenômenos sociais baseados
na obrigação de retribuir o presente recebido, obrigação de retribuir um dom como forma de afirmar o
prestígio e o poder de um clã, chefe ou tribo. Tal obrigação pode chegar: “à destruição puramente suntuária
das riquezas acumuladas para eclipsar o chefe rival”17. Ou seja, a fim de engajar rivais em uma relação
soberana, um chefe pode, por exemplo presentear ou simplesmente destruir parte significativa de sua
riqueza, degolar escravos, jogar fora bens preciosos a fim de obrigar seu rival a fazer o mesmo em maior
escala. Bataille segue uma colocação de Mauss a respeito do caráter paradigmático de tal atividade:

Pesquisas mais aprofundadas mostram um número bastante considerável de formas intermediárias


entre essas trocas com rivalidade exasperada, com destruição de riquezas, como as do noroeste
americano e da Melanésia, e outras com emulação mais moderada em que os contratantes rivalizam
em presentes: assim rivalizamos em nossos brindes de fim de ano, em nossos festins, bodas, em
nossos simples convites para jantar, e sentimo-nos ainda obrigados a nos revanchieren, como dizem
os alemães18.

16
BATAILLE, Georges; La souveranéité, p. 326
17
MAUSS, Marcel; Sociologia e antropologia, p. 192
18
MAUSS, idem, p. 193
Com tais características em mente, Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que se
encontra no centro do poder político para transformá-lo em um conceito capaz de descrever a posição de
todo e qualquer sujeito que não se encontre mais em situação de alienação e servidão. Mas eu insistira
com vocês que o conceito batailleano de soberania tinha um caráter fundamental: ele não descreve o poder
que domina. Normalmente, o soberano, enquanto fonte do poder, submete a vontade do outro à sua
vontade, submete às coisas à condição de coisas das quais ele pode gozar como proprietário, submete o
tempo ao tempo do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que não
domina, poder de quem tem segurança suficiente de não precisar de dominar para se defender.
Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as coisas através da sua
submissão à utilidade delas para mim, que normalmente sou seu proprietário, nem controlar o tempo
através da submissão do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações
que aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde só faz sentido o que
se submete à necessidade definida na idealidade do futuro. Futuro para o qual o esquecimento de si no
presente aparece como um dispêndio improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades
que a utilidade não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)” 19, ou ainda, “o que é
soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não ser esse tempo presente”. Isto ocorre
porque: “eu me reencontro como sujeito, se nego em mim mesmo o primado do instante por vir sobre o
instante presente”20. Pois só assim, não sou mais um objeto submetido à suspensão do gozo do presente
em nome do trabalho que visa o projeto futuro. Uma suspensão que sempre é feita para que um outro,
este sim em posição soberana, possa consumir o que produzo. Não há trabalho, lembrará Bataille, sem
consumo dos produtos trabalhados por um soberano que não trabalha. Graças ao efeito do meu trabalho,
há sempre um soberano que pode viver no instante.
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de habitar outro tempo, distinto
do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille, próprio ao milagre:

Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio do sol que, em uma
manhã de primavera, transfigura uma rua miserável (o que, o mais pobre às vezes ressente). Pode
ser o vinho, do primeiro copo à bebedeira que afoga. Mais geralmente esse milagre, ao qual a
humanidade inteira aspira, manifesta-se em nós sob a forma de beleza, de riqueza; também sob a
forma de violência, de tristeza fúnebre ou sagrada; enfim, sob a forma de glória21.

Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por Bataille é sua posição de
transgressão em relação à lei. Se na teoria política o soberano é aquele que está, ao mesmo tempo, dentro
e fora da lei, ele é o fundamento da lei, mas à ela ele não se submete por completo, na filosofia de Bataille,
o homem soberano é aquele que estabelece com a lei uma relação de transgressão. Ele pode ir em direção
ao que é interdito, ao que estava separado do contato dos homens, pois ele conhece a: “profunda
cumplicidade entre a lei e a transgressão da lei”22. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este
jogo de transgressão na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais, as posições, as práticas
interditadas são continuamente colocadas em questão e profanadas. Pois o erotismo é próprio a: “um
mundo que se desnuda na experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride”23.

O erotismo, a continuidade e a heterogeneidade

19
BATAILLE, Georges; La souveraneité, p. 248
20
Idem, p. 289
21
Idem, p. 249
22
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
23
FOUCAULT, Michel; “Preface à la transgression” In: Dits e écrits, p. 264
A discussão sobre a natureza improdutiva do uso do excesso na soberania serve para adentrarmos no
sentido da relação, tão salientada por Bataille, entre erotismo e morte.
“Do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte”24. Com esta frase, Bataille
começa seu livro. Ela demonstra com clareza a ideia de que, para pensar a essência do erotismo, devemos
compreender como a vida serve-se da morte com uma de suas figuras, como ela transforma a morte em
aprovação da atividade vital. Neste ponto, juntam-se dos níveis de argumentação: um ligado a teoria social,
outro ligado à algo que poderíamos chamar de “filosofia da natureza”.
O nível ligado à teoria social já foi adiantado desde nossa última aula. As sociedades capitalistas
modernas são sociedades baseadas na redução do espectro das atividades humanas à figura do trabalho,
assim como na redução da experiência subjetiva à figura do indivíduo. Por um lado, o trabalho é a tarefa
de uma coletividade, no tempo do trabalho, a coletividade deve se opor a esses movimentos que nos fazem
nos abandonarmos ao universo violento do excesso, a saber, a relação sexual e a morte. A morte é a mais
forte desordem contra o mundo do trabalho.
Por outro lado, indivíduos são seres descontínuos, ou seja, que definem sua identidade da mesma
forma que países definem suas fronteiras: estabelecendo limites, usando a identidade como sistema
defensivo contra a submissão ao outro. Do ponto de vista do desejo, indivíduos são fundamentados em
sistemas particulares de interesses que se fazem reconhecer a partir de acordos entre outros sistemas
particulares. Daí porque as relações entre indivíduos serão, em larga medida, relações inspiradas nas
relações contratuais. Mesmo o casamento será compreendido como um contrato. Pois o contrato é a
expressão máxima de um modelo de vínculo entre indivíduos portadores de interesses que devem ser
restringidos mutuamente pelos interesses de outros indivíduos. Restrição que, normalmente, legitima-se
através da ficção jurídica de um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de serem
socialmente realizados e abro mão daqueles que não se submetem a esta condição. Ficção que, por sua
vez, deve se alimentar da elevação do medo a afeto central do vínculo político (medo da despossessão de
meus bens, medo da morte violenta, medo da invasão de minha privacidade etc.). No entanto, dirá Bataille,
indivíduos não conhecem o erotismo, já que:

“o que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Repito-o dessas
formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que
somos (...) trata-se de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda
a continuidade de que este mundo é capaz”25.

Ou seja, a experiência do erotismo pressupõe a capacidade de sair da ordem descontínua das


individualidades. Por isto, do ponto de vista da preservação das individualidades, o erotismo sempre será
violento e invasivo: “o que significa o erotismo dos corpos, senão uma violação do ser dos parceiros?” pois
“A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído
na ordem descontínua”26.
Esta violência própria ao erotismo é, no entanto, procura de passagem de um estado de
descontinuidade à continuidade, procura de supressão dos limites e dos indivíduos. Por ter esta
característica de supressão violenta dos indivíduos e de seus sistemas de organização de experiência e
afetos o erotismo, ao menos segundo Bataille, encontra sua fonte na morte. A morte, enquanto supressão
de um ser descontínuo, é o limite do qual o erotismo sempre se aproxima, podemos mesmo, em certos

24
BATAILLE, Goerges; O erotismo, p. 35
25
Idem, p. 42
26
Idem, p. 41
casos, alcançá-lo. Ela é a força que faz do erotismo uma experiência na qual os seres se livram de formas
antigas e configuram novas formas.
Pode parecer haver algo de passadista nesta maneira batailleana de contrapor o advento da
individualidade moderna e o erotismo. Pois tudo se passaria como se Bataille procurasse fenômenos sociais
nos quais a figura do indivíduo consciente de seus interesses e insubmisso a práticas ritualizadas não
poderia ser encontrada, isto a fim de insidiosamente pregar uma crítica da modernidade através de alguma
forma de retorno a estágios pré-modernos de individuação. Daí porque, por exemplo, ele precisaria insistir
tanto no vínculo entre sagrado e erotismo. Pois as sociedades para as quais a experiência religiosa aparece
como paradigma para toda e qualquer experiência social, sociedades na qual a religião ocupa um lugar
central na vida social, dando o sentido para práticas na esfera da economia, da política, da produção
cultural e na vida afetiva., seriam as únicas capazes de garantir algo da ordem da experiência dessa
continuidade tanto procurada por Bataille. Estaria Bataille a pregar alguma forma de volta de nossas
sociedades a esses estágios pré-modernos e, aparentemente, radicalmente ritualizados e codificados?
Na verdade, mais certo seria dizer que Bataille acredita que tais experiências ainda estão presentes
em nossas sociedades, mas sob uma forma distorcida e profundamente destrutiva. Para a geração de
Bataille, fenômenos como a ascensão do nazismo e do fascismo foram ocasiões para compreender como o
processo de formação das individualidades modernas era agenciado de forma tal a produzir sujeitos
indefesos à sedução dos regimes totalitários. Não por outra razão, Bataille foi um dos primeiros a sugerir
uma análise psicológica do fascismo em um texto chamado, exatamente, de : “A estrutura psicológica do
fascismo”.
Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da produção é uma sociedade
homogênea, ou seja, baseada na construção de uma estrutura social na qual relações e valores são
baseadas na utilidade e na quantificação. Sociedade homogênea produtora de indivíduos homogêneos.
“Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência dessa comensurabilidade (as relações
humanas podem ser mantidas por uma redução a regras fixas baseadas na consciência da identidade
possível de pessoas e de situações definidas)”27. Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a
exclusão do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é inconsciente, ou seja, sem forma
própria de apreensão pela consciência.
Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo, já que ele pode ser
definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente heterogêneo em relação ao mundo profano, como
aquilo dotado de uma força desconhecida e perigosa e, por isto, submetido a uma proibição social de
contato que o separa do mundo homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é apenas uma parte
do que Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam
como detrito sem valor ou como valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo
heterogêneo, preso entre a glória e a decadência, entre o puro e o impuro (como a própria palavra sacer
indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto, produzir tanto atração quanto repulsão e se
apresentam a nós através da força violenta do choque.
Bataille afirma então que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar, pertencem a tal
existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com a homogeneidade social e o peso
fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade,
a uma instância dirigente representada pela autoridade do líder. Cria-se assim uma soberania presa apenas
a um lado da heterogeneidade, o que produz uma soberania assentada na experiência da dominação.
Esta dominação, para se afirmar, volta-se contra tudo o que a sociedade homogênea definiu como
heterogêneo mas impuro, exterior. Ela se volta contra o outro lado da heterogeneidade que poderia
quebrar a experiência da dominação, revelando a força do descentramento. Assim, o fascismo se
transforma no uso do heterogêneo como astúcia última da sociedade homogênea. Contra ela, Bataille crê
27
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p. 137
que devemos procurar uma forma de heterogeneidade que não se submete a esta soberania monárquica
recuperada pelo fascismo. É isto que ele procura ao falar das experiências do sagrado e do erotismo.
Desta forma, duas concepções de soberania podem então se contrapor. Quando a soberania está
presente sob as múltiplas formas do poder monárquico, seres humanos são, no interior de uma relação de
dominação, apenas elementos negados. Quando ela é reapropriada pelos seres humanos, a própria
dominação é negada.

Sexo e morte

Mas poderíamos nos perguntar por que chamar de “morte” tal supressão da descontinuidade para
a qual o erotismo tenderia. Aqui nós devemos fazer apelo a uma certa filosofia da natureza presente no
horizonte do pensamento de Bataille. Ela parte da ideia de que a atividade vital está, a todo momento,
tendo que lidar com a noção de excesso:

O organismo vivo, na situação determinada pelos jogos de energia na superfície do globo, recebe
em princípio mais energia do que é necessário para a manutenção da vida: a energia (a riqueza)
excedente pode ser utilizada para o crescimento de um sistema (de um organismo, por exemplo);
se o sistema não pode mais crescer, ou se o excedente não pode mais ser inteiramente absorvido
em seu crescimento, é preciso necessariamente perdê-lo sem lucro, despendê-lo, de boa vontade
ou não, gloriosamente ou de modo catastrófico28.

Como vocês podem ver, trata-se de uma proposição biológica sobre a natureza. Ela consiste em
dizer que há um mobilidade interna ao fato vital que leva todo organismo a precisar saber como lidar com
algo que lhe aparece como excessivo, pois não submetido ao padrão atual de suas atividades e de normas.
Esta energia excessiva pode servir ao crescimento e desenvolvimento do próprio organismo, mas a partir
de certo ponto ela pode levar à sua destruição, ou seja, às destruição de sua forma. As formas vitais não
apenas se desenvolvem; elas procuram impedir que o princípio vital que as modifica (no caso, a energia) as
leve à destruição: “se não temos força para destruir a energia em acréscimo, ela não pode ser utilizada; e,
como um animal intato que não se pode domar, é ela que nos destrói, somos nós mesmos que arcamos
com os custos da explosão inevitável”29. Neste sentido, as individualidades orgânicas são estruturalmente
instáveis, pois para dar conta da energia que as atravessa, elas devem gastá-la como puro dispêndio, ou
seja, como algo que, do ponto de vista da pura conservação das formas atuais, não tem sentido algum.
Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de organismo biológico que age sem
ter em vista sua própria auto-preservação e reprodução. Não deixa de ser interessante encontrar tal
conceito de organismo em alguns dos setores mais avançados da biologia contemporânea. Lembremos,
por exemplo, desta afirmação do biólogo Henri Atlan, para quem o organismo biológico é uma organização
dinâmica capaz de ser um processo de:

Desorganização permanente seguido de reorganização com aparição de propriedades novas se a


desorganização pode ser suportada e não matou o sistema. Dito de outra forma, a morte do sistema
faz parte da vida, não apenas sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte
intrínseca de seu funcionamento e evolução: sem perturbação ou acaso, sem desorganização, não
há reorganização adaptadora ao novo; sem processo de morte controlada, não há processo de
vida30.

28
BATAILLE, Georges; A parte maldita, p. 45
29
Idem, p. 46
30
ATLAN, Henri; Entre le cristal et la fumée, p. 280
Aqui se delineia a diferença ontológica fundamental entre um organismo e uma máquina artificial.
Ao menos segundo o filósofo Georges Canguilhem: “na máquina, há verificação estrita das regras de uma
contabilidade racional. O todo é rigorosamente a soma das partes. O efeito é dependente da ordem das
causas”31. Já o organismo não conhece contabilidade: “Uma fiabilidade como esta do cérebro, capaz de
funcionar com continuidade mesmo que células morram todos os dias sem serem substituídas, com
mudanças inesperadas de irrigação sanguínea, flutuações de volume e pressão, sem falar da amputação de
partes importantes que perturbam apenas de maneira muito limitada as performances do conjunto não
tem semelhança com qualquer autômato artificial”32. Ou seja, há um princípio de auto-organização no
organismo capaz de lidar com desestruturações profundas, desordens e dispêndios.
No entanto, a possibilidade da destruição do organismo como sistema, de sua morte é um dado real
e é necessário que tal dado seja real para que a ideia da ação do organismo como marcada não pela
finalidade, mas pela errância possa realmente funcionar. Errância implica poder se perder por completo,
dispender todo o processo acumulado em uma profunda irracionalidade econômica, o que explica porque
a destruição do sistema é uma parte intrínseca de seu funcionamento. Pois apenas por poder perder-se por
completo, ou seja, por poder deparar-se com a potência do que aparece como a-normativo, que
organismos são capaz de produzir formas qualitativamente novas, migrar para meios radicalmente distintos
e, principalmente, viver em meios nos quais acontecimentos são possíveis, nos quais acontecimentos não
são simplesmente o impossível que destrói todo princípio possível de auto-organização. Tal figura do
acontecimento demonstra como as experiências do aleatório, do acaso e da contingência são aquilo que
tensionam o organismo com o risco da decomposição. Isto talvez explique porque Bataille afirma: “Com
uma venda nos olhos, recusamos a ver que só a morte assegura incessantemente um ressurgimento sem o
qual a vida declinaria. Recusamos ver que a vida é a armadilha oferecida ao equilíbrio, que ela é
inteiramente a instabilidade, o desequilíbrio em que precipita”33.
Não deixa de ser surpreendente que a vida sirva-se desta dinâmica para poder construir suas
formas, o que talvez mostre como não se trata de um mero dado anedótico lembrar que: “Mais de noventa
e nove por cento das espécies aparecidas desde quatro bilhões de anos foram provavelmente extintas para
sempre”34. Esta é apenas uma maneira um pouco mais dramática de lembrar que os valores mobilizados
pela atividade vital não podem ser a “utilidade”, a “função” ou o mesmo o “papel” a desempenhar. A vida
se passa dessa contabilidade de balcão de supermercado. Não podemos sequer definir o desenvolvimento
de órgãos a partir da necessidade de certas funções próprias a uma adaptação à configuração atual do
meio. Como a biologia evolucionista nos mostra, mais correto seria dizer que muitos órgãos são
inicialmente configurados para que, posteriormente, uma multiplicidade de funções deles se desenvolvam.
Assim, quando Bataille fala da proximidade entre o erotismo e a morte, não devemos ver nesse
tema apenas os resquícios possíveis de um topos romântico decadentista reciclado. Na verdade, essa é a
forma de Bataille insistir como o erotismo pode aparecer na vida social como potência de desestabilização
de formas ligadas à perpetuação da sociedade homogênea dos indivíduos e de produção possível de novas
formas baseadas na capacidade de estabelecer relações como o heterogêneo, sendo a morte o grau
máximo da heterogeneidade.

O interdito e a transgressão

31
CANGUILHEM, Georges; Connaissance de la vie, p. 149
32
ATLAN, Henri; Entre le cristal et la fumée, p. 41
33
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 84
34
AMEISEN, Jean-Claude; La sculpture du vivant: le suicide cellulaire et la mort créatrice, p. 12
Talvez neste ponto fique mais claro porque Bataille precisa pensar o erotismo como fenômeno indissociável
do interdito e da transgressão. Bataille lembra que a realidade humana difere daquela própria ao animal
porque ela é submetida a leis. A princípio, tal proposição pode parecer estranha pois conhecemos bem
como a natureza é espaço de normatividades. Tanto no mundo humano quanto no mundo natural, o peso
das normas se faz sentir. Mas no caso humano há, ao menos segundo Bataille, uma peculiaridade: os
interditos são indissociáveis de sua transgressão. Não há interdito sem transgressão regulada ou, muitas
vezes, prescrita. Não há proibição do assassinato sem a regulação de suas transgressões possíveis (como a
guerra). Há um jogo de equilíbrio entre interdito e transgressão, há uma profunda cumplicidade entre a lei
e a violação da lei que aparece tanto no erotismo quanto no sagrado. Daí porque, Bataille poderá dizer que:
“a transgressão difere do ‘retorno à natureza’: ela suspende o interdito sem suprimi-lo. Aí se esconde a mola
propulsora do erotismo, ai se encontra ao mesmo tempo a mola propulsora das religiões” 35.
É a essa “suspensão sem supressão” que devemos voltar nossos olhos. A princípio, ela tenderia a
indicar um movimento neurótico no qual o sujeito parece necessitar dos muros da prisão para poder
afirmar sua liberdade, pulando-o periodicamente. Como se o sujeito precisasse do sentimento de culpa e
do pavor ligado à transgressão do interdito como condição para o gozo. E Bataille não deixa de, em certos
momentos, escrever nesse sentido. Ele fala da sensibilidade tanto da angústia que funda o interdito quanto
o desejo que leva a infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o erotismo sem interditos? Ele
seria um erotismo acalmado no interior de uma região na qual a vida não força seus limites e não testa
novas formas. Tentemos, por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:

Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõe à natureza encarada como uma
dissipação de energia viva e como uma orgia de aniquilamento, não podemos mais diferenciar a
morte da sexualidade. A sexualidade e a morte são apenas os momentos mais agudos de uma festa
que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres; uma e outra tem o sentido do
desperdício ilimitado a que a natureza procede contrariando o desejo de durar, que é próprio a cada
ser (...) Nunca, com efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso de que se trata) um não
definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao movimento da natureza: tratava-
se de um tempo de parada, não de uma imobilidade derradeira36.

Ou seja, inicialmente, o sentido fundamental dos interditos é opor uma ordem à dissipação de
energia e à orgia de aniquilamento próprias à atividade vital. Os interditos são sistemas sociais de regras
que visam sustentar o duro desejo de durar, que é próprio a cada ser. Sistemas de regras que visam parar,
nem que seja por um momento, essa festa orgiástica que a natureza celebra com a multidão inesgotável
dos seres. Talvez porque a vida precise da suspensão temporária desses turbilhões. E ela precisa porque
faz-se necessário levar em conta princípios contrários: uma certa conservação e uma certa dissolução, ou
seja, uma flexibilização própria à continuidade do jogo entre interdição e transgressão.
Sendo assim, o próprio movimento vital seria um movimento de ereção de interditos e
transgressões periódicas. A condição de que aceitemos se tratar nem sempre dos mesmos interditos. As
sociedades são móveis na constituição de seus interditos, elas erigem interditos que conseguirão se
sustentar apenas por um certo tempo, até que o peso da transgressão contínua acaba por transformá-los
em interditos paródicos. Mas o que Bataille não concebe é uma abolição produtiva do jogo entre interdição
e transgressão. Voltaremos a este ponto na próxima aula.

35
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 60
36
Idem, p. 86
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 4

Terminamos a aula passada através de uma discussão a respeito das relações necessárias entre interdito,
transgressão e erotismo. Eu dissera à ocasião que Bataille precisa pensar o erotismo como fenômeno
indissociável do interdito e da transgressão. Para tanto, ele insiste que a realidade humana difere daquela
própria ao animal porque ela é submetida a leis. A princípio, tal proposição pode parecer estranha pois
conhecemos bem como a natureza é espaço de normatividades. Tanto no mundo humano quanto no
mundo natural, o peso das normas se faz sentir. Mas no caso humano há, ao menos segundo Bataille, uma
peculiaridade: os interditos são indissociáveis de sua transgressão. Não há interdito sem transgressão
regulada ou, muitas vezes, prescrita. Por exemplo, não há proibição do assassinato sem a regulação de suas
transgressões possíveis (como a guerra). Ou ainda: “todo o movimento da religião implica o paradoxo de
uma regra que admite a ruptura regular da regra em certos casos”37. Há um jogo de equilíbrio entre
interdito e transgressão, há uma profunda cumplicidade entre a lei e a violação da lei que aparece tanto no
erotismo quanto no sagrado. Daí porque, Bataille poderá dizer que: “a transgressão difere do ‘retorno à
natureza’: ela suspende o interdito sem suprimi-lo. Aí se esconde a mola propulsora do erotismo, ai se
encontra ao mesmo tempo a mola propulsora das religiões”38.
É a essa “suspensão sem supressão” que voltamos inicialmente os nossos olhos. A princípio, ela
tenderia a indicar um movimento neurótico no qual o sujeito parece necessitar dos muros da prisão para
poder afirmar sua liberdade, pulando-o periodicamente. Como se o sujeito precisasse do sentimento de
culpa e do pavor ligado à transgressão do interdito como condição para o gozo. E Bataille não deixa de, em
certos momentos, escrever nesse sentido. Ele fala da sensibilidade tanto da angústia que funda o interdito
quanto o desejo que leva a infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o erotismo sem interditos? Pois
Bataille não estaria preso a alguma forma singularmente repressiva de sexualidade, isto ao insistir que
sempre deve haver interdito para existir desejo, que o interdito é no fundo uma condição para o desejo?
Por que não admitir que é possível ultrapassar de vez esta peculiar dialética entre interdito e transgressão
a respeito da qual Bataille quer nos convencer de sua força?
A resposta possível é: porque um erotismo sem interditos seria um erotismo acalmado no interior
de uma região na qual a vida não força seus limites e não testa novas formas. Se nada aparece ao erotismo
como uma interdição, se ele não dilacera mais nada, então não há nada que já não esteja presente
atualmente como realidade para o erotismo. Então a realidade atual já é toda a realidade possível. Não há
uma possibilidade não explorada, interditada, ainda não realizada. A dimensão da realidade é toda a
extensão dos possíveis, o que faz com que os possíveis sejam configurados a partir da extensão da situação
atual.
Tentemos, por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:

Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõe à natureza encarada como uma
dissipação de energia viva e como uma orgia de aniquilamento, não podemos mais diferenciar a
morte da sexualidade. A sexualidade e a morte são apenas os momentos mais agudos de uma festa
que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres; uma e outra tem o sentido do
desperdício ilimitado a que a natureza procede contrariando o desejo de durar, que é próprio a cada
ser (...) Nunca, com efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso de que se trata) um não

37
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 134
38
Idem, p. 60
definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao movimento da natureza: tratava-
se de um tempo de parada, não de uma imobilidade derradeira39.

Ou seja, inicialmente, o sentido fundamental dos interditos é opor uma ordem à dissipação de
energia e à orgia de aniquilamento próprias à atividade vital. Os interditos são sistemas sociais de regras
que visam sustentar o duro desejo de durar, que é próprio a cada ser. Não por outra razão, os interditos
concernam principalmente a morte, o sexo, assim como a relação aos dejetos e excrementos. Em todos
estes casos, em maior ou menor grau, os interditos impedem o contato com situações e fenômenos nos
quais a duração das formas se encontra em risco, seja através da dissolução mortal ou através da
proximidade com o informe. Tendo isto em vista Bataille dirá, por exemplo: “Certamente, a morte difere
como uma desordem da ordenação do trabalho: o primitivo podia sentir que a ordenação do trabalho lhe
pertencia, ao passo que a desordem da morte o ultrapassava, fazendo de seus esforços um contrassenso”40.
Isto explica porque Bataille afirmará que o objeto fundamental dos interditos é a violência. Pois
“violência” não significa aqui apenas a vulnerabilidade em relação à força de um outro, ação externa que
não leva em conta os meus interesses. “Violência” é aqui, principalmente, o que me desordena, o que me
faz sair da ordem que me preserva. Neste sentido, há uma violência que é coextensiva à própria mobilidade
da vida. Talvez seja pensando nisto que Bataille pode dizer: “Não há nada que reduza a violência” 41. Pois:

A vida é sempre um produto da decomposição da vida. Ela é tributária, em primeiro lugar, da morte,
que desocupa a vaga; em seguida, da corrupção que segue a morte e recoloca em circulação as
substâncias necessárias à incessante vinda ao mundo de novos seres42.

Por pensar a atividade vital a partir da forma de um movimento no interior do qual organismos aparecem
como sistemas em perpétuo desequilíbrio é que Bataille dá à angústia uma função fundamental e paradoxal
na direção de nossas ações: “Se considerarmos globalmente a vida humana, ela aspira à prodigalidade até
a angústia, até a angústia, até o limite em que a angústia não é mais tolerável. O resto é conversa de
moralista”43.
Esta função da angústia se justifica aos olhos de Bataille porque: “na medida em que podem (é uma
questão – quantitativa- de força) os homens buscam as maiores perdas e os maiores perigos”44. Neste
sentido, eles não se afastam simplesmente do que lhes provoca angústia, mas são chamados por ela, como
quem mede suas forças.
Isso pode, entre outras coisas, nos explicar porque os interditos aparecem claramente como
sistemas de regras que visam parar, nem que seja por um momento, essa festa orgiástica e violenta que a
natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres. Poderíamos nos perguntar pela razão de tal desejo
de durar. Talvez porque a vida precise da suspensão temporária da angústia provocada por esses
turbilhões. E ela precisa porque faz-se necessário levar em conta princípios contrários: uma certa
conservação e uma certa dissolução, ou seja, uma flexibilização própria à continuidade do jogo entre
interdição e transgressão. Ou seja, através do erotismo a experiência humana dá forma àquilo que coloca
em cheque as estruturas da forma. E ao permitir tal aproximação, o erotismo aparece como fonte de
liberação da vida dos limites que ela, por um momento, precisou respeitar. Mas o erotismo só poderia
aparecer, ao contrário, como espaço no qual não forçamos mais os limites postos pelos interditos quando
ele perde sua dimensão renovadora.

39
Idem, p. 86
40
Idem, p. 67
41
Idem, p. 72
42
Idem, p. 79
43
Idem, p. 85
44
Idem, p. 110
Se aceitarmos tal ideia, deveremos afirmar que o próprio movimento vital seria um movimento de
ereção de interditos e transgressões periódicas. Como se, paradoxalmente, devessemos admitir que os
interditos estão aí para serem violados. Pois: “A frequência – e a regularidade – das transgressões não abala
a firmeza intangível do interdito, de que é sempre o completamente esperado como um movimento de
diástole completa um de sístole, ou como uma explosão é provocada por uma compressão que a
precede”45. À condição de que aceitemos se tratar nem sempre dos mesmos interditos. As sociedades são
móveis na constituição de seus interditos, elas erigem interditos que conseguirão se sustentar apenas por
um certo tempo, até que o peso da transgressão contínua acaba por transformá-los em interditos paródicos
ou em interditos fracos . Por exemplo:

É da nudez que fala o livro de Gênesis, enunciando, através do sentimento de obscenidade, a


passagem do animal ao homem. Mas o que ofendia o pudor no começo do século não o ofende
mais, ou ofende menos. A nudez relativa dos banhistas ainda é obscena em uma praia espanhola,
não em uma praia francesa: mas em uma vila, mesmo na França, a roupa dos banhistas constrange
um grande número de pessoas46.

Mas o que Bataille não concebe é a possibilidade de uma abolição produtiva do jogo entre
interdição e transgressão. Pois o interdito não suprime as atividades necessárias à vida, mas lhes dá o
sentido da transgressão religiosa. O que pode nos colocar a questão de saber por que a experiência da
transgressão é para Bataille tão importante. Se quisermos, podemos colocar tal questão da seguinte
maneira: por que, para Bataille, todo verdadeiro ato é uma transgressão?

Uma teoria da transgressão

Dos exemplos dados por Bataille a respeito da transgressão, certamente o mais paradigmático é a festa.
Seguindo uma ideia que encontramos inicialmente em Roger Caillois, Bataille verá na festa a essência da
transgressão porque ela seria: “sem dúvida, o cessar do trabalho, o consumo incontinente dos seus
produtos e a violação expressa de suas leis mais santas, mas o excesso consagra e completa uma ordem de
coisas fundadas sobre as regras, ela só lhes opõe temporariamente”47.
A sociedade humana não é apenas o mundo do trabalho. Ela é uma composição entre o mundo
profano do trabalho e dos interditos e o mundo sagrado dos espaços nos quais podemos produzir
transgressões limitadas. Por isto, o tempo sagrado será, para Bataille, necessariamente o tempo da festa.
Uma festa capaz de produzir laços sociais que não são apenas a expressão de um sistema de mútua
dependência entre trabalhadores que produzem produtos que circularão a fim de satisfazer necessidades
individuais. A festa como laço social fundado na transgressão do tempo profano, na dilapidação excessiva
própria a uma sociedade que procura, através da festa, adiantar imagens de uma sociedade mais próxima
da prodigalidade da vida.
Mas este sagrado que encontra na festa sua melhor expressão é, ao menos se seguirmos a leitura
de Michel Foucault, um peculiar sagrado sem Deus, ou seja, sem a separação ontológica em relação à
experiência do ilimitado e do infinito. Daí uma afirmação como: “a morte de Deus não nos restitui a um
mundo limitado e positivo, mas a um mundo que se desdobra na experiência do limite, faz-se e se desfaz
no excesso que a transgride”48. Esse sagrado que não admite mais a separação ontológica entre o divino e
o humano, mas que constitui o humano como a passagem incessante ao limite, como a passagem

45
Idem, p. 89
46
BATAILLE, Georges; Histoire de la sexualité, p. 45
47
Idem, p. 78
48
FOUCAULT, Michel; Preface à la transgression, in: Dits et écrits, vol. I, p. 264
incessante ao divino é uma espécie muito peculiar de “filosofia da encarnação”, ou seja, filosofia que
procura pensar em quais condições pode ocorrer uma encarnação do divino no humano, mesmo que tal
filosofia admita ao mesmo tempo o vazio ontológico que a morte de Deus representaria. Há de fato um
misticismo em Bataille, já que ele reconhece a força da experiência do sagrado, mas se trata de um peculiar
misticismo “ateológico”, como o próprio o nomeava. O sagrado aparece aqui, em conformidade com uma
certa tradição da teologia negativa, como o abissal, como o obscuro. O que explica porque Bataille dá a
experiências místicas como as de Santa Teresa D’ávila uma função central em seu conceito de sagrado.
Pois, a seu ver:

Santa Teresa soçobrou, mas não morreu realmente do desejo que teve de soçobrar realmente. Ela
perdeu pé, não fez mais que viver mais violentamente, tão violentamente que pôde se dizer no
limite de morrer, mas de uma morte que, exasperando-a, não fazia cessar a vida49.

No entanto, a pergunta interessante aqui é por que pensar tal passagem, por que pensar tal encarnação
violenta do divino como transgressão? Há duas maneiras de responder tais perguntas: uma dada por
Michel Foucault e outra voltando a uma das referências principais de Bataille, a saber, Hegel. A
interpretação de Foucault tenta, a todo custo, recusar que exista algo parecido a uma dialética na relação
entre interdito e transgressão, uma dialética que seria a expressão de uma relação entre o finito e infinito,
entre o limitado e o ilimitado.
Poderíamos falar em relação dialética porque se os interditos são postos para serem transgredidos,
é porque os homens precisam organizar a vida social a partir de uma contradição. Esta é inclusive uma boa
definição de dialética, fornecida por Hegel em uma conversa com Goethe: “espírito de contradição
organizado”, e que não deixa de, de certa forma, ressoar a definição que Bataille fornece da transgressão
como uma: “desordem organizada50. Maneira de compreender a contradição como forma de produzir
experiências através da tentativa de organizar, de produzir uma forma muito peculiar de síntese a partir da
diferença. Neste sentido, podemos dizer que a contradição dialética não é simplesmente a marca de uma
impossibilidade de pensar e de constituir objetos, como seria o caso se estivéssemos diante de duas
proposições contrárias sobre o mesmo objeto e sobre o mesmo aspecto (Sócrates é e não é homem sob o
mesmo aspecto e ao mesmo tempo). A contradição dialética é um modo do ser entrar em movimento e de
admitirmos que o ser não é aquilo que permanece sempre igual a si mesmo, como uma substância que
subsiste graças ao caráter inalterado de sua essência. O ser é aquilo que porta em si mesmo seu próprio
princípio de alteração, entrando em um contínuo vir-a-ser marcado pela superação. Movimento através da
qual o ser nega a si mesmo, nega sua própria identidade sem necessariamente se auto-destruir, nega seus
limites graças a uma negação que conserva algo do anteriormente negado. Neste sentido, a contradição é
interna ao ser.
Levando isto em conta, poderíamos dizer que a relação entre interdito e transgressão seria a
maneira de Bataille pensar a dialética. Sendo o interdito uma norma, então tudo se passa como se as
normas fossem, ao mesmo tempo, a definição do que devo fazer e de como é possível transgredir tal dever.
Neste sentido, podemos mesmo dizer que a verdadeira realização da norma sempre aponta para uma
superação da norma.
Isto é possível porque a negação da norma não é, para Bataille, alguma forma de retorno à
animalidade. Negar os interditos não significa voltar à condição animal inicial. Os interditos visam, de certa
forma, negar nossa condição animal, mas a transgressão visa negar tal negação, superando-a sem, no
entanto, retornar ao que ela negava inicialmente. Este movimento, que se inspira claramente na dinâmica

49
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 266
50
BATAILLE; O erotismo, p. 144
hegeliana de uma negação da negação implica possibilidade de, ao mesmo tempo, livrar-se das limitações
do interdito sem, no entanto, anular a experiência histórica que o produziu.
Foucault não admite tal leitura, por isto ele deve dizer que: “nada é negativo na transgressão”51. A
transgressão não nega nada. Ela seria, na verdade, uma bisonha “afirmação não positiva”, uma afirmação
que não afirma nada. Sua maneira de colocar em questão o ser através de uma linguagem da transgressão,
ou seja, de uma linguagem do limite não implicaria em contradição alguma. Pois a contradição pareceria
implicar que precisaríamos sempre conservar o que é negado no interior mesmo da determinação do ser.
Parece que sempre precisaríamos conservar, de alguma forma, os interditos. Mas, principalmente, ela
pareceria (e esta é uma leitura muito corrente e errada da dialética hegeliana) unificar os opostos em uma
síntese final. Pois sendo os diferentes aquilo que se articula em um movimento contínuo, então eles
acabam por se submeterem a uma síntese. O que não parece ser o sentido da transgressão em Bataille. Ela
não caminha em direção a uma síntese, mas a uma relação, sempre fulgurante e violenta, ao infinito e ao
absoluto.

O sacrifício

“O sacrifício – que é, como a guerra, a suspensão do interdito do assassinato – é o ato religioso por
excelência”52. Sendo o sagrado este espaço no interior do qual a transgressão é possível, então o sacrifício
aparece sua mais profunda expressão.
Mas por que o sacrifício seria o ato religioso por excelência? Certamente, Bataille não está a falar
do sacrifício como limitação da minha vontade em nome de um ideal moral. Algo presente quando falo,
por exemplo: “eu me sacrifiquei para defender nossa causa”. Sacrifício significa uma destruição
improdutiva, melhor meio de negar uma relação utilitária entre o homem, as coisas e os animais. Um animal
sacrificado é uma animal com o qual não tenho mais uma relação de uso e de submissão à lógica da
produção. Ele é objeto de uma “consumação sem lucro”. Mas, principalmente, um animal sacrificado é um
animal do qual eu participo, ele me representa e tomo parte no ritual do sacrifício através dele e,
principalmente, nele. No sacrifício do animal, eu posso ser um com ele. Por isto, Bataille pode dizer: “o
sacrifício é o calor em que se reencontra a intimidade daqueles que compõem o sistema das obras
comuns”53. Esta intimidade revelada pelo sacrifício implica certa forma de simbiose e de fusão que Bataille
aproxima da relação amorosa. Daí uma afirmação central como:

O que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui a vida ordenada do animal
pela convulsão cega dos órgãos. O mesmo se dá com a convulsão erótica: ela libera órgãos pletóricos
cujos jogos cegos prosseguem além da vontade refletida dos amantes. A essa vontade refletida
sucedem os movimentos animais desses órgãos inchados de sangue. Uma violência, que a razão
não controla mais, anima esses órgãos, tensiona-os até a explosão e, de repente, é a alegria dos
corações de ceder ao excesso dessa tempestade54.

O sacrifício revela a carne que nos constitui aquém da individualidade. Ele é a revelação de um corpo em
nós que é feito de carne, ou seja, de algo próprio a uma corporeidade que reage para além da vontade
refletida dos amantes. A carne, como dirá quase na mesma época Maurice Merleau-Ponty, é o “anonimato
inato de mim mesmo”, este ponto no qual sou habitado por uma matéria anônima que me aproxima do
que exige uma explosão violenta para aparecer.

51
Idem, p. 266
52
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 105
53
BATAILLE; A parte maldita, p. 73
54
Idem, O erotismo, p. 116
O recurso à ideia de carne pode ser visto como a expressão daquilo que Bataille chama por um
momento de “baixo materialismo”. Trata-se de uma ideia por ele apresentada nos anos trinta e que
consiste em dizer que todo ideal elevado assenta-se em uma base material constantemente negada. Neste
ponto, não parece que estejamos longe do Marx de A ideologia alemã com sua crítica à impossibilidade de
ver como o sistema metafísico de ideias era a expressão invertida dos processos de reprodução material
da vida. No entanto, Bataille insiste que tal base material tem uma base distinta daquela que encontramos
no materialismo histórico marxista. Ela é a composição material heterogênea e disforme da qual toda forma
é extraída. Ela é este solo primeiro anterior a toda forma e sempre negado como impuro, obsceno,
nauseabundo e repulsivo. Por isto, o termo “baixo materialismo”. É em direção a tal solo que o sacrífico
procura nos levar, em direção a uma matéria que é produção contínua de diferença e que pode aparecer
sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximação entre sacrifício e amor não é feita em nome da
visão moral de que a relação afetiva duradoura exige a restrição dos interesses próprios em nome da
construção de um empreendimento comum. Bataille aproxima sacrifício e amor para dizer que o erotismo
partilha deste sentimento de participação através do desvelamento de um elemento comum, a carne, que
é o elemento informe que me forma, o elemento impessoal que me personaliza e que, por isto, se encontra
partilhado em um sistema de partilha que une desiguais, homem e animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que não é movimento através do
qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele é levado em conta pelo outro. O reconhecimento
produzido pelo erotismo é reconhecimento de que em mim habita o que me leva a abrir-se como um animal
sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma e se submete a um agir que não pode ser visto como
expressão de um Eu. Ou seja, se o amor sempre foi, na filosofia, a figura de um modelo importante de
reconhecimento social no qual seria capaz de, através do outro, assegurar-me de minha identidade ao
mesmo tempo em que reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema de mútuo
estabelecimento de identidades, o erotismo, ao menos segundo Bataille, produz um fenômeno de outra
ordem. Pois: “o que, desde o início, é sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletórica, de uma
ordem que exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada”55. Entre o amor dos filósofos e o
erotismo de Bataille há uma diferença que se expressa na distinção entre um processo de reconhecimento
entre sujeitos e outro processo de reconhecimento de si na alteridade radical do que não aparece mais
como sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a segurança da minha identidade
e não sou mais capaz de assegurar a identidade do outro. Em seu lugar aparece esta intimidade que
descreve a força de um elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido não
como identidade, mas como espaço de confrontação com a heterogeneidade que não se submete a uma
unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusão que Bataille deve descrever como: violenta, excessiva,
disforme e desordenadora. Como se a existência de tal modelo de fusão fosse a condição para uma
experiência social de emancipação em relação às amarras da figura do indivíduo, assim como de toda e
qualquer fascinação pela identidade, tal como vimos, por exemplo, no modelo da fusão próprio às massas
fascistas, com sua fusão organizada a partir da identificação a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo Bataille, isto a fim de
compreendermos melhor a aposta política feita por ele com seu conceito de erotismo. Nós vimos na aula
passada como Bataille insiste que nossa sociedades sofrem por não saberem como dar conta de uma
experiência da heterogeneidade que se manifesta sob a forma de desejo de fusão e de perda de limites da
individualidade. Vimos também como o fascismo seria maneira de absorver tal desejo através de uma
política das massas, mas onde o desejo de fusão produz uma homogeneidade organizada sob a
55
Idem, p. 129
identificação, profundamente disciplinar, a um líder transcendente, cujo discurso é marcado pela unidade,
pela depuração e purificação do corpo social. Maneira da identidade ter a última palavra, mesmo se através
do uso do desejo de heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e purificar a heterogeneidade, o fascismo
acaba por destruir a heterogeneidade que está a usar”56.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as experiências descontínuas
ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só mesmo outra forma de heterogeneidade, esta mais
radical ligada ao que vem de baixo, ao que expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no
qual toda forma ainda é possível. Esta heterogeneidade é aquilo que não se disciplina, aquilo que quebra
toda hierarquia pois expressa a consciência da dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille,
um poder subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se transforme em
alto”57. Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do contato dos homens. Para Bataille, de uma
forma bastante peculiar, a melhor arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta não é entre regimes
políticos, mas entre formas de vida, e não haverá superação do fascismo se não lhe compreendermos como
uma forma de vida que só pode ser barrada através de outra forma de circulação do desejo. No fundo, a
questão política realmente relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmação importante
como:

Não apenas as situações psicológicas das coletividades democráticas são, como toda situação
humana, trasitórias, mas continua possível encontrar, como uma representação ainda imprecisa,
forças de atração diferentes das já utilizadas, tão distintas do comunismo atual ou passado quanto
o fascismo é das reivindicações dinásticas. É tendo em vista tais possibilidade que se deve
desenvolver um sistema conhecimentos permitindo prever as reações afetivas sociais que
percorrem a super-estruturas – talvez mesmo, em até certo ponto, delas se dispor58.

É possível se perguntar como poderíamos pensar uma experiência política revolucionária (pois é
isto que Bataille procura) apelando a aberturas desta natureza. Talvez a melhor resposta passe pela
influência que Bataille sofreu de Alexandre Kojève. Uma das principais características do ensino de Kojève
foi insistir na importância de compreendermos as dinâmicas dos conflitos sociais como problemas ligados
a demandas de reconhecimento. Conflitos sociais são, principalmente, conflitos por reconhecimento de
nossa posição de sujeitos. Bataille acrescenta a esta ideia a noção de que todas conflitos por
reconhecimento só pode ser efetivamente compreendidos se levarmos em conta como sujeitos aspiram à
soberania, ao dispêndio improdutivo, ao erotismo, ao sacrifício. No interior deste processo, cria-se um
problema importante e complexo, a saber, o que pode ser uma sociedade de sujeitos soberanos? Veremos
melhor este ponto na próxima aula.

56
NOYS, Benjamin; Georges Bataille’s base materialism, p. 506
57
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 157
58
Idem, p. 163
Erotismo, sexualidade, gênero
Aula 5

Na aula de hoje, terminaremos o primeiro módulo de nosso curso, dedicado à leitura de O erotismo, de
Georges Bataille. Durante este primeiro mês de curso, procurei apresentar a estrutura da experiência social
descrita por Bataille a partir do conceito de “erotismo”. O termo “experiência social” é adequado para
falarmos do erotismo porque se trata, ao menos para Bataille, de um fato, tal como o sagrado, o sacrifício
e a dádiva cuja realidade tem a força de fundar vínculos e modificar relações sociais. Vimos como o erotismo
do qual fala Bataille não é simplesmente um conjunto de práticas ligadas a processos de intensificação dos
prazeres sexuais e de incitação dos desejos. Bataille não quer fundar uma arte erótica mais completa e
atual. Na verdade, o erotismo aparece como experiência social com forte capacidade crítica em relação a
nossas formas hegemônicas de vida. Através do erotismo, Bataille procura aliar crítica social, crítica do
sujeito e crítica da razão apelando a uma peculiar materialismo que dá, a alguns temas clássicos do
pensamento marxista (como a reificação, o trabalho abstrato), uma versão completamente inusitada.
A importância dada por Bataille a um fenômeno como o erotismo, e sua maneira de insistir que o
erotismo traz em seu bojo uma concepção revolucionária de sociedade, vincula-se, por um lado, à
compreensão do que poderíamos chamar de “problematização política do desejo”. Bataille age como
quem acredita que o desejo, a maneira como ele circula e constitui laços, é um fator político decisivo. Já
em suas análise sobre o fascismo, ficava clara a perspectiva de avaliar situações sócio-políticas a partir da
compreensão da maneira com que a experiência da heterogeneidade era capaz de habitar o desejo. Há um
claro pensamento da diferença que serve de fundamento para a crítica gerada pela filosofia de Bataille.
Diferença que se configura principalmente através dos conceitos de heterogeneidade e excesso. Todo o
papel fundamental que a noção de diferença desempenhará no pensamento francês a partir dos anos
sessenta, principalmente através de filósofos como Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault é
incompreensível se não entendermos Georges Bataille um importante antecessor.
Por outro lado, lembremos como, em nossa primeira aula, eu afirmara que a caraterística maior de
uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um fenômeno ou um objeto é um evento.
Como dissera em nossa primeira aula, dentro da perspectiva filosófica, não se trata de simplesmente
descrever funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões de existência
a partir de uma reflexão sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia tenta compreender como o aparecimento
de certos objetos e fenômenos produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais
amplo possível. Pois um evento não é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que problematiza a
continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma de agir, de desejar e de julgar. Um evento
é sempre uma ruptura que reconfigura o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguração em nossas
formas de vida que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um mundo
totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a filosofia trata. Neste sentido,
podemos dizer que o erotismo é o nome dado por Bataille à compreensão de que há algo na experiência
sexual que tem a força de um acontecimento.
Para tanto, foi necessário que a dimensão do sexual aparecesse como espaço no qual o homem se
encontra distante tanto da natureza quanto de sua afirmação como indivíduo autônomo. Feita a crítica da
subordinação do sexo aos imperativos de reprodução, a distância em relação à natureza pode ser afirmada.
Feita a crítica da subordinação do desejo aos prazeres que guiam os sistemas individuais de interesse, o
segundo passo pode ser dado. Neste sentido, é inegável que a experiência do erotismo recupera, à sua
maneira, as expectativas disruptivas do surrealismo enquanto fundamento para uma crítica social
renovada. Por outro lado, há em todo acontecimento, a figura de um contra-acontecimento que é objeto
de nossos esforço de suspensão. Como vimos nas aulas passadas, o contra-acontecimento do qual o
erotismo é a melhor resposta é o facismo.
Vimos como a crítica social de Bataille era uma crítica radical da sociedade do trabalho. Nossas
sociedades modernas ocidentais são caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho, no
sentido do trabalho aparecer como atividade fundamental para a constituição das identidades sociais e
para o reconhecimento dos sujeito. Vimos como a expectativa de realização conjunta de exigências de
expressão da individualidade e formação em direção ao auto-controle era elemento definidor dos valores
que mobilizamos na avaliação social do trabalho.
Trabalhar sempre será uma operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a divisão
social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham a posse dos meios de produção e
de seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da
produção e que produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de tempo e metas, não se
deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final de cada objeto produzido, avaliar
cada ação a partir do valor que ela produziu. Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso
calcular valores que são homogêneos, intercambiáveis. A lei que imponho para mim mesmo quando
organizo minhas atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me ensina a calcular, a medir, a
quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste
ponto que se encontra, para Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de alienação produzida pela
sociedade do trabalho.
No entanto, o erotismo é uma atividade estranha à tal racionalidade instrumental própria à
sociedade do trabalho. Tal estranhamento se expressa na natureza excessiva do erotismo. Ao falar de
“excesso” neste contexto, Bataille não afirma que o erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso
não é da ordem da grandeza, mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande,
pois isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenômenos, sendo que um é
apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa aqui o que excede minha capacidade de
medir, simplesmente porque é o que não se mede, o que colapsa toda medida, porque sua lógica não é a
lógica dos objetos mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo quando
se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo. Porque seu excesso é a recusa do
que não aceita ser sentido e vivido da mesma forma que sentimos as coisas que podemos calcular,
mensurar e quantificar. O erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente
aquilo que não entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do trabalho e da lógica
utilitária. Assim, quando Bataille propor uma espécie de fórmula ontológica ao afirmar que: “o ser é
também o excesso do ser, elevação ao impossível”59, devemos entender com isto que é próprio da definição
do ser o reconhecimento de uma relação constitutiva com o que lhe determina. Neste contexto,
“impossível” não significa inexistente; “impossível” significa o que não se expressa na configuração atual
dos possíveis e que, por isto, força tal configuração a modificar-se.
Foi tendo tal contraposição em mente que introduzi o conceito de “soberania”. Para Bataille, a
resposta à alienação produzida pela sociedade do trabalho passa pela reconstrução do conceito de
soberania, agora aplicado à posição subjetiva. Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que
se encontra no centro do poder político para transformá-lo em um conceito capaz de descrever a posição
de todo e qualquer sujeito que não se encontre mais em situação de alienação e servidão. Mas eu insistira
com vocês que o conceito batailleano de soberania tinha um caráter fundamental: ele não descreve o poder
que domina. Normalmente, o soberano, enquanto fonte do poder, submete a vontade do outro à sua
vontade, submete às coisas à condição de coisas das quais ele pode gozar como proprietário, submete o
tempo ao tempo do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que não
domina, poder de quem tem segurança suficiente de não precisar de dominar para se defender.
59
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 201
Isto pode nos explicar porque, ao analisar a sociedade soviética, Bataille dirá que ela poderia
fornecer um caminho para uma soberania comum, a partir do momento em que todos abrem mão
soberanamente de todo traço de soberania monárquica. Para além do caráter dificilmente defensável de
uma proposição desta natureza (difícil aceitá-la se lembrarmos do lugar soberano do líder no stalinismo),
fica a compreensão do esforço em pensar algo que poderia significar a soberania comum no campo social.
Soberania da partilha comum da parte maldita.
Por outro lado, vimos como depor toda vontade de domínio significava não querer mais controlar
as coisas através da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente sou seu proprietário, nem
controlar o tempo através da submissão do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como
causa das limitações que aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde
só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro. Este tempo é um tempo
do gozo.
A fim de compreender porque Bataille associa a afirmação de tal soberania ao movimento de
transgressão, eu sugeri operarmos uma passagem em direção àquilo que poderíamos chamar de uma
“filosofia da natureza”. Ela se expressa em uma forma peculiar de pensar a relação entre a vida e morte,
entre a organização e a desorganização. Para Bataille, há um mobilidade interna ao fato vital que leva todo
organismo a precisar saber como lidar com algo desorganizador que lhe aparece como excessivo, pois não
submetido ao padrão atual de suas atividades e de normas. Esta energia excessiva pode servir ao
crescimento e desenvolvimento do próprio organismo, mas a partir de certo ponto ela pode levar à sua
destruição, ou seja, às destruição de sua forma. As formas vitais não apenas se desenvolvem; elas procuram
impedir que o princípio vital que as modifica (no caso, a energia) as leve à destruição: “se não temos força
para destruir a energia em acréscimo, ela não pode ser utilizada; e, como um animal intato que não se pode
domar, é ela que nos destrói, somos nós mesmos que arcamos com os custos da explosão inevitável”60.
Neste sentido, as individualidades orgânicas são estruturalmente instáveis, pois para dar conta da energia
que as atravessa, elas devem gastá-la como puro dispêndio, ou seja, como algo que, do ponto de vista da
pura conservação das formas atuais, não tem sentido algum. Mas gastar como puro dispêndio significa
admitir um conceito de organismo biológico que age sem ter em vista sua própria auto-preservação e
reprodução. Ele age fragilizando as normas que lhe servem como fundamento para a auto-preservação de
sua forma momentânea. Neste sentido, há uma violência que é coextensiva à própria mobilidade da vida.
Talvez seja pensando nisto que Bataille pode dizer: “Não há nada que reduza a violência” 61. Pois:

A vida é sempre um produto da decomposição da vida. Ela é tributária, em primeiro lugar, da morte,
que desocupa a vaga; em seguida, da corrupção que segue a morte e recoloca em circulação as
substâncias necessárias à incessante vinda ao mundo de novos seres62.

Por pensar a atividade vital a partir da forma de um movimento no interior do qual organismos
aparecem como sistemas em perpétuo desequilíbrio que Bataille precisa insistir que a soberania própria ao
erotismo é sempre transgressiva. A transgressão é o nome a para um movimento que se desdobra através
da perpétua reversibilidade das normas.
Mas, para Bataille, não basta que tais reversibilidades ocorram. Há um modelo de transgressão
privilegiado por seu pensamento, pois produtor de uma experiência substantiva de heterogeneidade. A
este respeito, Bataille censura o pensamento materialista de, até então, ceder à “obsessão de uma forma
ideal da matéria, de uma forma que se aproximaria, mais do que qualquer outra, daquilo que a matéria

60
Idem, p. 46
61
Idem, p. 72
62
Idem, p. 79
deveria ser”63. A seu ver, trata-se de um falso materialismo, incapaz de compreender o caráter polimórfico
e promiscuo da matéria. Este falso materialismo ainda é dependente de uma hierarquia própria ao caráter
elevado da ideia. Mas a verdadeira transgressão nos faz nos reconhecermos naquilo que Bataille chama de
matéria baixa: “A matéria baixa é exterior e estrangeira às aspirações ideais humanas e se recusa de se
deixar reduzir às grandes máquinas ontológicas”64. Uma matéria baixa que é a afirmação do caráter informe
da matéria, do caráter “baixo” que uma certa tradição filosófica sempre associou à matéria, a saber, caráter
do que se decompõe, do que se quebra, o que apodrece, o que não subsiste no interior do tempo e por isto
está em plasticidade contínua. A verdadeira transgressão, dirá Bataille, é reconhecimento de si na
heterogeneidade radical do que se decompõe, do que se quebra e apodrece. E algo do erotismo se deixa
tocar exatamente por tal tipo de experiência material: pelo corpo que não se submete integralmente à sua
própria imagem, pela fragilidade dos instantes que desaparecem no tempo, pela matéria que sempre se
perde e se decompõe, pela reversibilidade contínua dos corpos que perdem algo de suas formas.

Sade e a linguagem da violência

Dois artigos de O erotismo são dedicados ao Marques de Sade. De fato, foram os surrealistas que
recuperaram a importância literária de Sade, um autor recorrente no pensamento francês a partir de então,
seja através do próprio Bataille, seja através de Pierre Klossowski, de Blanchot, de Jacques Lacan, de Gilles
Deleuze e Michel Foucault.
Há algo da concepção batailleana de soberania que encontra expressão na obra de Sade. Tal
concepção está expressa em afirmações como:

Sade só quer ter acesso ao gozo mais forte, mas esse gozo tem um valor: significa a recusa de uma
subordinação ao gozo menor, uma recusa a condescender! Sade, em benefício dos outros, dos
leitores, descreveu o ápice que a soberania pode atingir: há um movimento de transgressão que
não para antes de ter atingido o ápice da transgressão. Sade não evitou esse movimento, seguiu-o
em suas consequências, que excedem o princípio inicial da negação dos outros e da afirmação de
si. A negação dos outros se torna, no extremo, negação de si mesmo (...) Há algo mais perturbador
do que a passagem do egoísmo à vontade de ser consumido por sua vez no braseiro que o egoísmo
acendeu?65.

A que Bataille alude aqui? Não compreenderemos nada da literatura de Sade se imaginarmos que
seus personagens são impulsionados pela simples procura de maximizar seus prazeres individuais. Na
verdade, Sade está à procura de uma purificação da vontade que a libere de todo conteúdo empírico e
patológico. Blanchot fala do desejo de: « fundar a soberania do homem sobre um poder transcendente de
negação »66. De onde se segue, por exemplo, o conselho do carrasco Dolmancé à vítima Eugénie, na
Filosofia na alcova: "todos os homens, todas as mulheres se assemelham: não há em absoluto amor que
resista aos efeitos de uma reflexão sã”67. Uma indiferença em relação ao objeto que pressupõe a
despersonalização e o abandono do princípio de prazer. Este é o sentido de um outro conselho de
Dolmancé à Eugénie: "que ela chegue a fazer, se isto é exigido, o sacrifício de seus gostos e de suas
afeições"68. Esta experiência de quem sacrifica seus gostos e afeições em nome de uma espécie peculiar de

63
BATAILLE, Georges; Matérialisme, In: Oeuvres complètes vol I, p. 179
64
BATAILLE, Georges; Le bas matérialisme et la gnose, In: idem, p. 224
65
Idem, p. 202
66
(BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Paris, Minuit, 1949, p. 36)
67
SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975, p, 172
68
SADE, ibidem, p. 83
imperativo é fundado na crença de aceder a um “gozo mais forte” que recusa sua subordinação a um gozo
menor.
Este gozo mais forte não é, pois, a afirmação dos interesses egoístas da pessoa. Há algo no
movimento do desejo sadeano que, como dirá Bataille, “excede o princípio inicial da negação dos outros e
da afirmação de si”. Se a negação dos outros se torna negação de si mesmo é porque sacrifico tudo o que
me individualiza para participar de um movimento incessante, exaustivo e gratuito de repetição do gozo.
Movimento que se dá para além do prazer. Um pouco como Madame de Saint-Ange que, em meio às orgias
produzidas por Dolmancé, o repreende por este estar tendo prazer em algo que deveria ser feito com apatia
e contenção. O gozo dos personagens de Sade, como vários observaram, é um gozo apático.
Neste sentido, o que Sade demonstra é a nudez do ápice em direção ao qual algo em nós caminha.
Nudez da vontade de ser consumido no braseiro que o próprio egoísmo acendeu. Daí uma afirmação como:

Sade consagrou intermináveis obras à afirmação de valores inaceitáveis: a vida era, se acreditarmos
nele, a procura do prazer; e o prazer era proporcional à destruição da vida. Dito de outro modo, a
vida atingia o mais alto grau de intensidade numa monstruosa negação de seu princípio69.

Em outro texto, Bataille descreve este “excessivo ápice daquilo que somos”70, este “mais alto grau
de intensidade” da vida como aquilo que define algo que o excesso próprio à vida subjetiva, a saber, a
“experiência interior”: “A experiência interior responde à necessidade na qual me encontro - a experiência
humana comigo – de colocar tudo em causa (em questão) sem repouso admissível”71. Esta é a descrição de
uma experiência sócio-histórica bastante precisa, ligada à consciência de que a modernidade traz consigo
uma modalidade específica de sofrimento: o sofrimento de ser apenas um eu, com suas limitações e
defesas. Pois Bataille age como se nosso sofrimento mais aterrador fosse resultante do caráter repressivo
da identidade. Esta é a temática maior de um certo pensamento francês contemporâneo (Lacan, Deleuze,
Derrida, Foucault). Podemos mesmo dizer que para todos eles, a modernidade não é apenas momento
histórico onde: “não somente está perdida para ele [o espírito] sua vida essencial; está também consciente
dessa perda e da finitude que é seu conteúdo”72. Perda que implicaria a pretensa angústia crescente do
sentimento de indeterminação. A modernidade seria também a era histórica de elevação do Eu a condição
de figura do fundamento de tudo o que procura ter validade objetiva. O que neste caso significa: era do
recurso compulsivo e rígido à auto-identidade subjetiva enquanto princípio de fundamentação das
condutas e de orientação para o pensar. Levando tal contexto em conta, poderemos compreender melhor
uma colocação como:

Se alguém me perguntasse o que nós somos, e, de qualquer modo, lhe responderia: essa abertura
a todo o possível, essa expectativa que nenhuma satisfação material poderá apaziguar e que o jogo
da linguagem não poderia enganar! Estamos à procura de um ápice. Cada um, se lhe agrada, pode
negligenciar a procura. Mas a humanidade em seu conjunto aspira a esse ápice, que se ele a define,
que só ele é sua justificação e sentido73.

Neste sentido, Sade teria, ao menos aos olhos de Bataille, o mérito de ter colocado em cena até
onde estaríamos dispostos a chegar para nos livrar de tal sofrimento. No entanto, a posição de Sade guarda
algo de profundamente reativo, e essa natureza reativa é sua limitação. Bataille explora com exaustão o

69
Idem, p. 207
70
Idem, p. 219
71
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
72
HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito I, Petrópolis : Vozes, 1992, p. 24
73
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 300
fato paradoxal de uma literatura como a apresentada por Sade. Pois se Sade é, de fato, um carrasco sádico,
há de se lembrar que carrascos não escrevem, pois: “a violência é silenciosa, já que a linguagem é, por
definição, a expressão do homem civilizado”74. A violência permaneceu em princípio sem voz. Por isto,
Bataille pode dizer:

Na verdade, essas dissertações da violência, que incessantemente interrompem os relatos de cruéis


infâmias de que os livros de Sade são formados, não são as dissertações dos personagens violentos
a que são atribuídas. Se tais personagens tivessem vivido, sem dúvida teriam vivido
silenciosamente75.

Por isto, dirá Bataille, a linguagem de Sade é a de uma vítima. Linguagem de quem estava preso na
Bastilha pelo homem que não aceita mais a própria desmesura de sua experiência interior. Vítima revoltada
de uma injustiça que lhe leva a transformar a violência naquilo que ela não é, no seu oposto, a saber: “uma
vontade refletida, racionalizada, de violência”76. Esta linguagem inventada por Sade é, assim, uma
linguagem reativa de quem procura criar uma violência que teria a calma da razão, linguagem de quem faz
entrar na consciência exatamente aquilo que revoltava a consciência, a desmesura que a consciência tudo
fez para esquecer. Daí porque os vínculos em Sade se constroem através da partilha da revolta que procura
a profanação desenfreada. A revolta das vítimas da incapacidade de uma sociedade fundada em fenômenos
sociais que estejam à altura do excesso próprio ao ser.

A filosofia, a experiência interior e o riso

Mas o que seria uma linguagem capaz de expressar tal experiência interior sem precisar, ao mesmo
tempo, colocar-se como reação e revolta à disciplina imposta pelo homem que não aceita a própria
desmesura? O que seria um vinculo social livre da obrigação de reagir através da transformação do silêncio
próprio à violência em palavra de revolta? Na verdade, poderíamos mesmo se perguntar sobre como seria
uma experiência que recuperasse a violência bruta própria ao silêncio. Neste ponto, encontramos uma
dicotomia importante entre saber e erotismo. Tal dicotomia está expressa em afirmações como: “O filósofo
pode nos falar de tudo o que experimenta. Em princípio, a experiência erótica nos obriga ao silêncio”77.
Uma obrigação ao silêncio que alguns, como Sartre, compreenderam como convite ao misticismo: “É contra
sua própria vontade que o sr. Bataille se serve do discurso. Ele o odeia e, através dele, ele odeia a linguagem
por completo. Este ódio, o sr. Bataille partilha com um bom número de escritores contemporâneos. Mas
os motivos que ele fornece lhe são próprios: é o ódio do místico que ele reivindica, não o ódio do
terrorista”78.
De fato, Bataille afirma: “entendo por experiência interior o que normalmente chamamos de
‘experiência mística’”79. Há algo na experiência de fusão e afastamento das estruturas de conhecimento
que se expressam na linguagem prosaica própria aos místicos capaz de fascinar Bataille. Mas, como vimos
na aula passada, este é um peculiar “misticismo ateu”, um misticismo após a morte de Deus. Ele indica,
muito mais, a consciência estética do esgotamento da força representativa da linguagem. Consciência tão
alargada que estaria mesmo disposta a fazer a crítica geral da linguagem poética:

74
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 214
75
Idem, p. 216
76
Idem, p. 219
77
Idem, p. 279
78
SARTRE, Jean-Paul; Situations I, p. 136
79
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
Se a poesia introduz o estranho, ela o faz pela via do familiar. O poético é o familiar se dissolvendo
no estranho e nós mesmos com ele. Ele nunca nos despossui por completo, pois as palavras, as
imagens dissolvidas, são carregadas de emoções já provadas, fixadas a objetos que as ligam ao
conhecido80.

Tal consciência do esgotamento da linguagem não se configura, assim, como uma passagem da
filosofia à literatura, com sua linguagem pretensamente menos descritiva e próxima do que não se deixa
representar. Ela é um paradoxal retorno à filosofia, já que só a linguagem filosófica seria capaz de guardar
o silêncio do heterogêneo, sem nos colocar nas vias da crença em alguma forma de imanência
reconquistada pela linguagem. A filosofia não é composta de palavras que carregam emoções já provadas,
pois ela é uma linguagem desdramatizada. Ou seja, de uma certa forma o reconhecimento da fraqueza da
linguagem filosófica acaba funcionando como sua força. Pois há uma mutação necessária da linguagem,
uma mutação através da qual ela não aparecerá mais como um meio de conhecimento, onde ela não servirá
para conhecer e descrever, mas para nos levar a algo que não se acomoda completamente à linguagem,
que se expressa nas formas do silêncio (e o que é o erotismo a não ser uma forma bastante peculiar de
silêncio):

O que eu quero dar a ver é o impasse da filosofia que não pode se realizar completamente sem a
disciplina, e que, por outro lado, fracassa por não poder abarcar os extremos de seu objeto, o que
designei outrora sob o nome de “extremo do possível”, que tocam sempre nos pontos extremos da
vida. (...) salvo, a rigor, se, no auge, a filosofia for negação da filosofia, se a filosofia rir da filosofia.
Suponhamos, com efeito, que a filosofia verdadeiramente ria da filosofia, isso supõe a disciplina e
o abandono da disciplina81.

Uma filosofia que ri da filosofia é aquela que paradoxalmente procura comunicar (já que o termo é
constantemente utilizado por Bataille) o que decompõe a linguagem, vivenciar o que paradoxalmente
coloca a vida em risco. Ela não produz exatamente um conhecimento, mas uma experiência que se abre no
interior do campo onde nossos modos de intuição e categorização desabam. Neste sentido, a função do
discurso filosófico não consiste em fornecer um saber prescritivo e normativo, mas de nos levar a procurar
ir em direção àquilo que Bataille chama de experiência interior. “Rir”, neste caso, é um modo de
funcionamento do discurso no qual disposições contrárias acabam por conviver. Este riso talvez não seja
exatamente o riso da ironia, com sua afirmação de existir sempre algo para além da enunciação e no interior
do qual o sujeito do enunciado se aloja. O riso de Bataille é impulsionado por um afeto paradoxal, que não
é nem prazer, nem desprazer, mas uma “angústia alegre ”. Um tipo de afeto para o qual talvez não
estejamos acostumados, pois é angústia que sabe que o que lhe angustia guarda algo de profundamente
necessário:

A angústia alegre, a alegria angustiada me dá, em um quente-frio o “dilaceramento absoluto” no


qual é minha alegria que termina de me dilacerar, mas no qual o abatimento seguiria à alegria se eu
não fosse dilacerado até o fim, sem medida82.

80
Idem, p. 17
81
Idem; O erotismo, p. 285
82
BATAILLE, Georges; Hegel, la mort, le sacrifice, In: Oeuvres complètes XII, p. 342

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