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Introdução
Na perspectiva dos direitos humanos, de seu avanço e consolidação na agenda do direito
internacional, questiona-se sua legitimidade, seus limites e sua incidência no cárcere.
Compreendendo o presídio como um instrumento de repressão social, como concebido por
Michel Foucault, questionamos as violações de direitos quotidianamente nele atestadas e a
legitimidade deste instituto enquanto mecanismo punitivo estatal compatível com um Estado
Democrático de Direito. A partir da caracterização foucaultiana da penitenciária enquanto
locus da ausência de direito real e da constatação da incompatibilidade dos locais de privação
de liberdade com a nossa estrutura normativa vigente, identificamos o cumprimento de pena
nos respectivos institutos como um ato capaz de violar direitos humanos fundamentais e
contrariar toda a lógica protetiva dos direitos constitucional e internacional.
A estrutura punitiva em questão desponta, neste contexto, como elemento atentatório a
um real regime democrático, uma vez que consagra a existência de uma massa carcerária que
pode ser inserida no conceito de estado de exceção, analisado por Giorgio Agamben. No
cárcere, a norma jurídica parece excepcionar-se na medida em que este deixa de ser um
simples lugar de reclusão, passando a representar uma instituição onde há a criação de uma
normativa de fato, que se constitui na violência e na afirmação da condição de vulnerabilidade
do detento. Deste modo, a normativa jurídica vigente é afastada em prol de um não-direito,
atestado na violação de garantias fundamentais.
Os sujeitos que habitam os presídios, identificados por Raúl Zaffaroni na figura do
inimigo, são analisados, na perspectiva do autor argentino, a partir da noção de ente perigoso
que possui condição de pessoa negada pelo direito. Neste contexto, o presente trabalho coloca
em pauta nosso modelo seletivista penal e analisa os desdobramentos que este evidencia,
perpassando as relações de poder a ele circunscritas e o entrave à democracia que nossos
presídios hoje representam.
Objetivos
O objetivo central do trabalho, inserido no percurso da pesquisa sobre fundamentação
teórica dos direitos humanos, consiste no avanço dos estudos e leituras no campo da filosofia
do direito. Tem-se como fim a construção de uma abordagem crítica e emancipatória do
direito, a partir do contato com autores não apenas jurídicos, mas também das ciências
sociais. Pretende-se, deste modo, uma análise comprometida com a realidade, preocupada
com o real papel dos direitos humanos na sociedade atual e com seu desafio de mudança.
Metodologia
O desenvolvimento da pesquisa teve como base a leitura de textos e confecção de seus
respectivos fichamentos. O processo foi realizado a partir de encontros para direcionamento e
debate, que permitiram a sistematização da temática do cárcere partindo da órbita dos direitos
humanos e de seus paradoxos. Paralelamente, o projeto inclui o auxílio na manutenção do
Arquivo Hannah Arendt e sua disponibilização para o público.
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1
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 218.
2
Ibid., p. 217.
3
Ibid., p. 219.
4
ABRAMOVAY, Pedro Vieira. O grande encarceramento como produto da ideologia (neo)liberal. In: Depois
do Grande Encarceramento. Rio de Janeiro: Editora Revan , p. 14.
5
SCHETTINI, Andrea. A era do biopoder e o discurso dos direitos humanos. PUC-Rio, p. 44.
6
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 230.
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7
Ibid., p. 170.
8
Ibid., p. 172.
9
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 162.
10
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 218.
11
BATISTA, Nilo. Entrevista publicada na Revista Poli n. 29. Disponível em:
http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=67. Acesso em: 20/07/14.
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(A) nova gestão da lei-e-ordem transforma a luta contra o crime em um titilante teatro
burocrático-midiático que, simultaneamente, sacia e alimenta os fantasmas da ordem do
eleitorado, reafirma a autoridade do Estado através de sua linguagem e de sua mímica viris, e
erige a prisão como o último baluarte contra as desordens, que, irrompendo de seus porões,
são vistas como capazes de ameaçar os próprios fundamentos da sociedade (WACQUANT,
Loïc, 2007, p. 11).
12
LOPES, Juliana. Letalidade seletiva e exceção: a política de segurança pública do Rio de janeiro, p. 44.
13
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 16.
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O humanismo jurídico postulou o homem como o autor e o fim da lei e culminou na ideia dos
direitos humanos. Mas, quando os direitos humanos minam a distinção entre o real e o ideal,
eles se transformam no alicerce do historicismo moderno. Ao contrário de construir uma
defesa contra o Estado e o positivismo jurídico, eles acabam virando aliados do positivismo,
incapazes de oferecer um padrão de crítica e totalmente inadequados em sua proclamada tarefa
de defender o indivíduo solitário contra as exigências do Soberano todo-poderoso, ele próprio
apresentado na forma de uma entidade supra-individual com seus desejos, direitos e poderes
(DOUZINAS, Costas, 2009, p. 250).
14
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 248.
15
Ibid., p. 262.
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16
CNJ. Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil, de junho de 2014. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf. Acesso em: 21/07/14.
17
DARKE, Sacha e KARAM, Maria Lucia. Administrando o cotidiano da prisão no Brasil. In: Discursos
Sediciosos, Ano 17. Números 19-20. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012, p. 406.
18
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 9.
19
Ibid., p. 11.
20
Corte IDH. Medida Provisória Urso Branco e Medida Provisória Complexo Penitenciário de Curado.
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/medidas-provisionales. Acesso em: 21/07/2014.
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Em Urso Branco, foi evidenciada a morte de oitenta e sete detentos, entre 2002 e
2006, enquanto que em Aníbal Bruno sessenta e um internos faleceram, desde 2008. Os
referidos números, apesentados perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, ao
lado do levantamento realizado pela Folha de São Paulo, que atestou que no ano de 2013
houve uma média de uma morte a cada dois dias em nossas prisões21, são a expressão máxima
da absoluta negação da vida e da dignidade nos presídios brasileiros, representando
verdadeiras chacinas de indivíduos que encontram-se sob os cuidados estatais.
21
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1395204-prisoes-brasileiras- registram-uma-
morte-a-cada-dois-dias.shtml. Acesso em: 21/07/14.
22
Relatório Human Rights Watch. Disponível em: http://www.hrw.org/sites/default/files/reports/brazil1209pt
webwcover.pdf. Acesso em: 21/07/14.
23
BATISTA, Nilo. Entrevista publicada na Revista Poli n. 29. Disponível em:
http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=67. Acesso em: 20/07/14.
24
DORNELLES, João Ricardo W. Direitos humanos, violência e barbárie no Brasil: uma ponte entre o passado
e o presente. In: Direitos humanos: justiça, verdade e memória. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2012, p. 435.
25
ALMEIDA, Angela. Estado autoritário e violência institucional. In: Discursos sediciosos, p. 481.
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jurídica encontra-se suspensa, por decisão do soberano, para que o ordenamento jurídico seja
resguardado. Trata-se de uma exclusão, atestada para que a integridade da norma positiva não
venha a ser abalada. Assim, no estado de exceção encontramos a vigência da norma jurídica
por meio da determinação de sua não incidência. Nas palavras de Agamben:
31
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 16.
32
Ibid., p. 175.
33
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 4.
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Conclusão
Tendo os direitos humanos como norte, conclui-se pela necessária alteração da
estrutura carcerária hoje vigente em nosso país, de modo a compatibilizá-la com os standards
internacionais de proteção do homem e, ainda, avançar no percurso da consolidação de uma
verdadeira democracia. Pautando-se na procura pela concretização de direitos, devemos
defender a reforma do modelo punitivista penitenciário como condição indispensável para
uma harmonização entre os direitos abstratamente cominados e seus referenciais práticos.
A constatação de um cenário carcerário imerso em violações de direitos e redução de
pessoas, clama pela atuação baseada na mudança e na utopia. O número de mortes nos
presídios brasileiros e a consignação destes enquanto locais à parte em uma sociedade de
proteção e de garantia, requer a busca pela ampliação de direitos e a inclusão de territórios e
grupos sociais. Frente ao limbo que hoje representa nosso sistema penitenciário, se faz
necessário resgatar a utopia e a crença na transformação. Nas palavras de Douzinas:
(P)recisamos pesar em como soltar mais, prender menos, acabar com os constrangimentos e
violências contra os familiares dos presos, favorecer a comunicação entre muros, em vez de
perseguir a incomunicabilidade, interromper o filicídio, essa matança de jovens pelo Estado e
a morte e o sofrimento dos que trabalham na segurança pública (BATISTI, Vera, 2010, p. 35).
34
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 252.
35
Ibid., p. 9.
36
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 4.
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Referências
1 - AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002.
2 - ALMEIDA, Angela Mendes de. Estado autoritário e violência institucional. In: Discursos
Sediciosos, Ano 17. Números 19-20. Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro:
Editora Revan, 2012.
3 - BATISTA, Nilo. Entrevista publicada na Revista Poli n. 29, de julho e agosto de 2013.
Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=67. Acesso
em: 20/07/14.
4 - BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro:
Revan, 2003.
5 - BATISTA, Vera Malaguti. Depois do grande encarceramento. In: BATISTA, Vera
Malaguti e ABRAMOVAY, Pedro Vieira. Depois do Grande Encarceramento. Rio de Janeiro:
Editora Revan, 2010.
6 - CNJ. Novo diagnostico de pessoas presas no Brasil, de junho de 2014. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf. Acesso em:
21/07/14.
7 – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Medida Provisória Urso Branco e Medida
Provisória Complexo Penitenciário de Curado. Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/medidas-provisionales. Acesso em: 21/07/2014.
8 - DARKE, Sacha e KARAM, Maria Lucia. Administrando o cotidiano da prisão no Brasil.
In: Discursos Sediciosos, Ano 17. Números 19-20. Instituto Carioca de Criminologia. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 2012.
9 - DORNELLES, João Ricardo W. Direitos humanos, violência e barbárie no Brasil: uma
ponte entre o passado e o presente. In: Direitos humanos: justiça, verdade e memória. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2012.
10 - DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Traduzido por Luzia Araújo. São
Leopoldo: Unisinos, 2009.
11 - FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV: Estratégia, poder-saber. Organizado por
Manoel Barros da Motta. Traduzido por Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.
12 - FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1977.
13 - LOPES, Juliana. Letalidade seletiva e exceção: a política de segurança pública do Rio de
janeiro. Dissertação de mestrado. Faculdade de direito: PUC-Rio, 2013.
14 - SCHETTINI, Andrea. A Era do Biopoder e o discurso dos direitos humanos: um olhar
genealógico a partir da obra de Michel Foucault. Dissertação de mestrado. Faculdade de
direito: PUC-Rio, 2013.
15 - SODRÉ, Nelson apud DIETER, Maurício Stegemann. Sistema econômico e tutela penal
do escravo no Brasil Imperial. In: Discursos Sediciosos. Ano 17. Números 19-20. Instituto
Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
16 - WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007.
17 - ZAFFARONI, Raúl. O inimigo no direito penal. Traduzido por Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 2007.