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SCALA AMORIS:
EROS E TRANSCENDÊNCIA NO BANQUETE DE PLATÃO.
FLORIANÓPOLIS
2017
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“Se você não é capaz de tirar de um livro consequências válidas para sua orientação
moral no mundo, você não está pronto para ler este livro”. – Olavo de Carvalho, O
mínimo que você precisa para não ser um idiota.
“Assim, ao buscarmos conhecer-nos, buscamos sempre mais o que devemos ser do que
o que somos: buscamos sempre o que nos falta, e só podemos encontrá-lo num princípio
que nos obriga sem cessar a renegar-nos a nós mesmos para superar-nos a nós mesmos.”
– Louis Lavelle, A consciência de Si, p. 28.
RESUMO
Nesse discurso, Sócrates relata o que aprendeu da sacerdotisa Diotima. É ela quem
introduz a scala amoris. A scala amoris, ou escada do amor, é o meio pelo qual o
Beleza-em-si. É somente nesse estado de contemplação, nos diz Diotima, que ele [o
esse estudo.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1- Introdução do diálogo
2- Fedro.
3- Pausânias.
4- Erixímaco.
5- Aristófanes.
6- Agatão.
1- Exame dialógico.
2- A sacerdotisa de Mantinéia.
5
3- Scala amoris
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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INTRODUÇÃO
“Mas então, por que algumas pessoas apreciam passar muito de seu
tempo em minha companhia? (...) Gostam de ouvir o questionamento das
pessoas que julgam serem sábias e não o são. Isto é divertido.” (Apologia de
Sócrates, 33c).
Relata então que permaneceu perdido por muito tempo quanto ao sentido real do
oráculo, até que decide lançar-se em uma investigação. Propõe-se investigar em sua
cidade todos aqueles considerados sábios. Começa pelos políticos; em seguida os poetas
e depois os artesãos (21 C – E). E qual é o resultado de sua investigação? Muitas
inimizades (22 E). A seguinte constatação a respeito de um político que Sócrates
encontrou resume o resultado de todas suas investigações: “Sou mais sábio do que esse
homem; nenhum de nós dois realmente conhece algo admirável e bom, entretanto ele
julga que conhece algo quando não conhece, enquanto eu, como nada conheço, não
julgo tampouco que conheço. Portanto, é provável, de algum modo, que nessa modesta
medida seja eu mais sábio do que esse indivíduo – no fato de não julgar que conheço o
que não conheço” (21 D).
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E é também com alguma ironia que Sócrates inicia seu discurso em elogio a
Eros, no Banquete. Após estrondosos aplausos ao discurso de Agatão, anfitrião do
banquete, Sócrates declara aos convivas encontrar-se em grandes dificuldades, haja
visto ser ele próprio quem deve discursar em seguida (198 A). Erixímaco, o médico, não
acredita em Sócrates, apesar de concordar que o discurso de Agatão foi maravilhoso.
Sócrates responde-lhe: ““ Como assim, varão bem-aventurado (...), de que jeito não
ficar atrapalhado, eu ou quem quer que tivesse de usar da palavra depois de uma oração
tão formosa e engalanada? (...) Esse discurso fez-me lembrado de Górgias, passando-se
comigo aquilo de Homero: tive medo de que Agatão, no fim da sua fala, atirasse contra
a minha cabeça a cabeça gorgônica de Górgias, esse orador terribilíssimo, e me privasse
de voz, transformando-me em pedra.”” (198 B).
Introdução ao diálogo.
1
PLATÃO. Idem.
10
(185 E – 188 E), o médico. Erixímaco expande o alcance de Eros, considerando-o não
só como presente em casais apaixonados mas também nos ciclos grandiosos da natureza
e do cosmos. O quarto discurso é o do comediógrafo Aristófanes. Aristófanes é
conhecido também por ter escrito a comédia As Nuvens, em que representa um Sócrates
delirante e risível; compondo uma anedota da busca intelectual socrática. O discurso de
Aristófanes (189 C – 193 E) é de caráter mítico e conta a origem de Eros na
humanidade. Em seu discurso, além da imagem cômica de um ser humano original, com
duplos membros, evoca a ideia de alma gêmea, ou “cara metade”, ideia que, até hoje,
exerce grande influência no imaginário popular a respeito do amor. O quinto discurso é
o de Agatão (194 E – 198 A), tragediógrafo e anfitrião do banquete. Seu discurso é
repleto de imagens belas e fluidez de expressão, como se espera que sejam as palavras
de um poeta. Eros é louvado por sua juventude, beleza e inspiração que dá aos poetas. O
sexto discurso é o de Sócrates. Ele começa por dialogar com Agatão, investigando e
refutando algumas das ideias presentes no discurso do poeta. Em seguida, Sócrates
relata o que aprendeu a respeito de Eros com Diotima, sacerdotisa da Mantineia. O
discurso de Diotima é o clímax do Banquete. Nele está contida, como já vimos, a ideia
central de scala amoris. Em seguida, há o discurso de Alcibíades que, ao receber a
proposta de elogiar Eros, decide por elogiar Sócrates. Seu discurso narra importantes
fatos a respeito de Sócrates e traça imagens e comparações interessantes a respeito de
sua natureza.
Camadas Narrativas.
O início do diálogo Banquete nos coloca na seguinte situação: estamos tendo acesso
à narrativa escrita em que Apolodoro narra, oralmente, a seu companheiro, aquilo que
conversou com Glauco, a quem conta, por sua vez, o relato que recebeu, oralmente, de
Aristodemo. Qual é o sentido dessas camadas narrativas, através das quais Platão nos
apresenta o diálogo Banquete? Em primeiro lugar, podemos destacar que essas
camadas narrativas dão ao leitor uma noção de temporalidade: desde o banquete real do
12
qual Sócrates participou e a narrativa que se está lendo, passou-se um bom tempo. O
leitor fica sabendo, também, que é graças à memória de Apolodoro e de Aristodemo que
esse relato não se perdeu. Mas, se considerarmos o conteúdo do relato, quando lemos a
respeito do banquete e de seu desenrolar, essas camadas narrativas parecem um
problema a parte, desconectado do restante do diálogo. Teria Platão colocado algo
completamente desconectado do tema do Banquete, o amor, no início desse diálogo?
A ligação entre amor e memória não é difícil de ser reconhecida. Basta pensar na
facilidade em decorar as letras ou a melodia de músicas que se ama. Isso também
acontece com histórias, pessoas e fatos. Parece que o amor predispõe aquele que ama a
memorizar tudo aquilo que diz respeito ao objeto ou pessoa amada.
2
PLATÃO. O Banquete. 1a ed. Tradução Edson Bini. Bauru/SP : EDIPRO. 2010.
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não convém ao filósofo. Nesse sentido, Apolodoro parece o idiota retratado na anedota:
alguém aponta o dedo para a lua; o idiota, ao invés de olhar para a lua, olha para o dedo
e pensa ter compreendido a indicação. Da mesma forma a filosofia, que em sua
etimologia indica o amor à sabedoria, é frustrada, se em vez de amar-se a sabedoria,
ama-se aquele que a busca ou a indica.
Qual será a razão de Platão nos introduzir ao Banquete através dessa personagem?
De maneira sintética, já encontramos nessa personagem pistas de um diagnóstico
espiritual que ficará mais claro ao avançarmos para a scala amoris e o discurso final de
Alcibíades. A definição de Eros que receberemos da boca de Sócrates radicalizará o
caráter de falta e busca, inerente à filosofia. É a própria Diotima quem diz de Eros: “(...)
é filósofo o tempo todo” (203 D). Em seguida, ao ouvirmos o discurso de Alcibíades,
compreendemos que ele também parece ter caído no mesmo erro de Apolodoro:
“confundiu o dedo com a lua”, ou seja, ao invés de amar a sabedoria (e tornar-se
filósofo), ama Sócrates desmesuradamente.
Esse erro ganhará uma imagem e um antídoto na parte central do diálogo: a scala
amoris. Alcíbiades e Apolodoro são aqueles que não conseguiram subir na escada do
amor, ficando presos a um corpo belo e seus discursos: Sócrates. O antídoto é
justamente o exercício de ascensão proposto por Diotima. Uma espécie de fidelidade à
Beleza-em-si.
Sócrates arrumado.
Já no início desse relato algo chama atenção. O fato de Sócrates estar de banho
tomado e sandálias indica, como ele próprio esclarece em seguida, que quer
impressionar alguém. E esse alguém é o próprio Agatão. Mas o que ele quer com esse
jovem e talentoso escritor de tragédias? Quererá tornar-se seu parceiro em uma relação
de pederastia, tradicional relação educativa entre um homem mais velho e um jovem na
Grécia de seu tempo? A sequência do diálogo nos revelará em que consiste, afinal, essa
atração de Sócrates pelos cidadãos ilustres e jovens de sua Atenas. Como veremos, o
desejo de Sócrates por atrair Agatão é a parte inicial de um caso amoroso que será bem
descrito por Alcibíades, ao final do diálogo.
O ensimesmamento socrático.
“Muitos outros fatos ainda poderiam ser lembrados neste elogio de Sócrates, e
todos admiráveis; mas em muitas atividades talvez se pudesse dizer a mesma coisa de
outras pessoas; todavia, o não parecer-se com ninguém, nem entre os antigos nem entre
os modernos, eis o que é verdadeiramente de espantar! (...) no que entende com a
originalidade deste homem (atopían anthropos), tanto dele como de suas palavras, por
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mais que procure, ninguém encontrará nem de longe quem se lhe assemelhe (...).” (221
C-D).
A alcunha serve-lhe bem. A palavra grega átopos tem tanto o sentido de original,
estranho, fora de lugar; como também não-espacial, aquilo que não está em lugar algum.
Quando ensimesmado, observamos Sócrates fora da realidade exterior, voltado para
dentro de si, alheio ao que se passa fora de si. Aliás, essa não-espacialidade não é uma
das características daquilo que chamamos ideias? Afinal de contas, onde é que elas se
encontram? Ortega y Gasset, com a característica fluidez de sua prosa, expressa esse
caráter utópico (no sentido etimológico de não pertencimento a lugar algum) das ideias:
3
Ortega y Gasset, Ensimesmamento e Alteração, in O homem e a gente, Editora Livro Ibero-americano,
pg. 58.
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Dessa maneira, sua ação torna-se sempre reativa. É o ambiente externo quem o
comanda. É nesse sentido que se diz que só o homem é capaz de agir,
verdadeiramente. Ele o é pelo fato de poder refletir e encontrar dentro de si mesmo o
princípio motor de sua ação.
4
Por essa razão podendo ser chamados também de fisiólogos (como os chamava Julian Marías) ou
filósofos da natureza. Naturalmente é problemático considerar esses filósofos em bloco, mas aqui se
recorre a esse meio com o objetivo de destacar a originalidade socrática.
5
CÍCERO, Tusc. Disp., V, 4, 10.
6
Fedro, 279 B
7
IDEM Pg. 61
18
“Vimos que a ação não é qualquer caminhar aos golpes com as coisas em torno,
ou com os outros homens: isso é o infra-humano, isso é alteração. A ação é atuar
sobre o contorno das coisas materiais ou dos outros homens conforme um plano
preconcebido em uma prévia contemplação ou pensamento.”8
(...)
“Por isso acreditavam que o destino do homem não era outro senão exercitar
seu intelecto, que o homem tinha vindo para meditar, ou, em nossa terminologia, para
ensimesmar-se”9.
Os cinco discursos
Nas páginas que seguem o objetivo é introduzir o leitor aos cinco discursos que
precedem o discurso de Sócrates/Diotima. Neles podemos observar temas que
retornarão no discurso de Diotima, que aqui é considerado o ápice do diálogo. É como
se o discurso socrático fosse um círculo maior que abrange a todos os círculos menores
8
IDEM, pg. 68.
9
IDEM, pg. 69.
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anteriores. Algo como uma síntese superior. É a esse conjunto de temas que será dado
maior atenção, reunindo-o na seção sete desse capítulo.
Fedro
O discurso de Fedro é aquele que abre a série de elogios ao deus Eros. Esse
mesmo personagem aparece nos diálogos Protágoras e no Fedro. É principalmente por
esse último diálogo que aprendemos ser ele um apaixonado de discursos. É natural,
portanto, que seja ele quem dá o tema a eles. Seu aspecto literato também ficará patente
ao notarmos as referências de que seu discurso está repleto, indicando alguém que de
fato ama discursos de diferentes áreas do saber.
Fedro inicia seu discurso referindo-se a origem de Eros. Segundo ele Eros é o
mais antigo dos deuses. “A prova disso é não ter pais, que, de fato, nunca são
mencionados pelo vulgo nem pelo os poetas” (178 A). Para firmar esse ponto, ele
recorre a Hesíodo:
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E, em seguida, Parmênides:
A primeira parte de seu discurso trata da origem de Eros e conclui: ele é o deus
mais antigo, não possui mãe nem pai. Aqui encontramos um tema recorrente que
retornará em outros discursos que o seguem, e também no discurso de Diotima. Qual é a
origem de Eros? Fedro deixa claro seu posicionamento: Eros é o primeiro dos deuses,
por isso não possui pais.
qualquer indivíduo, por mais pusilânime que seja, torna-se corajoso e conspícuo na
presença de seu amado. Eros insufla-lhe a coragem, tornando-o digno das façanhas dos
heróis homéricos (179 B). Tamanho é o poder transmitido pelo deus, que o sacrifício
supremo torna-se uma possibilidade real ao amante: “(...) morrer por outrem, só os
amantes a tanto se decidem, o que não se verifica apenas com os homens, mas com as
próprias mulheres” (179 B).
Já Orfeu, filho de Eagro, teve um destino diferente. Tendo sua mulher morrido e
sido conduzida ao Hades, Orfeu conseguiu penetrar vivo, através de algumas artimanhas
que envolviam seu talento de harpista, no lar dos mortos. Seu objetivo era resgatar sua
amada. Contudo, os deuses o castigaram por sua pusilanimidade: não teve a coragem de
Alceste, a de morrer por sua amada. Por isso, os deuses determinaram que morresse pela
mão de mulheres.
Sendo assim, continua Fedro, Aquiles mereceu honra ainda maior, por parte dos
deuses, que Alceste. Pois ao passo que Alceste deu sua vida por seu amado, Aquiles
morreu por seu amante. “Sendo verdade que os deuses apreciam particularmente a
virtude relativa ao amor, muito mais admiram, e amam, e recompensam quando o
amado se afeiçoa ao amante do que o inverso: o amante ao amado (180 A-B)”.
Dizendo isso, remata com uma frase de máximo interesse para aquilo que será tratado
no discurso de Diotima: “O amante é mais divino do que o amado, por estar possuído
pela divindade (180 B)”.
A maneira com que Fedro profere seu elogio a Eros torna patente o fato de que é
um amante de discursos, um literato. A começar, como já foi dito, por ter sido ele quem
sugeriu o tema do banquete, após ter notado que, em seu vasto conhecimento de
discursos, havia encontrado até um elogio do sal, mas ainda não havia se deparado com
um elogio de Eros. Em seu elogio observamos como ele recorre a diferentes autores,
tidos por ilustres na cultura grega, para fundamentar seu discurso: Hesíodo (178 B, 178
C); Acusilau (178 C); Parmênides (178 B); Homero (179 B, 180 A). Talvez ele seja o
scholar mais antigo de que temos notícia.
De seu discurso é preciso destacar algumas ideias, que serão importantes para a
sequência desse trabalho. A primeira delas é a interessante imagem do imbatível
exército de apaixonados. Entre amantes e amados Eros serve como um estímulo sem
igual para a prática de ações virtuosas. Inspira a “vergonha de praticar más ações” (178
D) e também a “emulação para o belo” (Idem). Esse estímulo é tão potente (muito além
de qualquer outro, como parentes, beleza, riqueza ou quaisquer dignidades (178 C)) que
chega a dar a força necessária para uma decisão radicalmente corajosa e que é , como
veremos através dos casos de Alceste e Aquiles, sumamente admirada pelos deuses:
morrer por outrem (179 B).
23
Pausânias.
10
MARROU, Henri Irinee. História da Educação na Antiguidade.
11
Idem, pág. 52.
24
contrário. Segundo Marrou, é preciso reconhecer que “(...) a antiga sociedade grega alojou a
forma mais característica e mais nobre do amor no intercurso passional entre homens ou, mais
precisamente, entre um mais velho, adulto, e um adolescente (a idade média do erômeno
oscilando dos quinze aos dezoito anos) 12”. Ou seja, na relação pederástica, havia dois polos:
um passivo e um ativo; havia o eromenos (o amante) e o erastes (o amado). Marrou
continua destacando a importância da pederastia na sociedade grega:
“O amor pelos jovens foi – como a nudez atlética, com a qual aliás se relaciona
estreitamente -, (...) , umas das características peculiares do helenismo, um dos costumes que
mais nitidamente o contrapunham aos “bárbaros”, e, portanto, para o mesmo helenismo, um
dos apanágios marcantes da nobreza civilizada.13”
“Inicialmente, o amor grego contribuiu para dar sua forma ao ideal moral que se arroga
toda a prática da educação helênica, ideal cuja análise comecei a propósito de Homero: o
desejo, no mais velho, de afirmar-se aos olhos de seu amado, de brilhar diante dele, e o desejo
simétrico, no mais moço, de mostrar-se digno de seu amante, só lograram reforçar, num e
noutro, este amor da glória que todo espírito agonístico exaltava por toda parte: a ligação
amorosa é o terreno de escolha em que se depara uma generosa emulação. Por outro lado, é
toda a ética cavalheiresca, fundada sobre o sentimento de honra, que reflete o ideal de um
companheirismo de combate. A tradição antiga é unânime em ligar a prática da pederastia à
bravura e à coragem.14”
12
Idem, pág. 52.
13
Idem, pág. 52.
14
Idem, pág. 55.
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proposto. Ao “(...) imporem a tarefa pura e simples de fazermos o elogio de Eros” (180
C), escapa o que Pausânias passará a primeira parte de seu discurso explicando: “ Eros
não é único” (180 C). Mas, se Eros não é único, quantos é?
Para chegar ao número correto de Eros, Pausânias fará uma associação essencial,
que reaparecerá, mais adiante, no discurso de Diotima: “Como todo mundo sabe, não há
Afrodite sem Eros” (180 D). Assim como existem duas Afrodites, assim também haverá
dois Eros: “Ora, se só houvesse uma Afrodite, Eros também seria um só; mas, como há
duas, será forçoso haver dois Eros” (180 D). Pausânias associa Eros à Afrodite e
introduz um novo elemento ao elogio, a dualidade. Ele iguala o ato de amar
(manifestação erótica) a qualquer outro ato: “(...) nenhum, em si mesmo, é belo ou
censurável (...)” (180 E -181 A). Tudo depende do modo como é praticado.
começam a revelar discernimento, ou seja, “(...) na idade em que aponta o buço” (181
D). E àqueles a quem ficar a dúvida de que essa idade seja, de fato, aquela em que a
beleza juvenil é mais encantadora é Sócrates quem interroga: “Ora, qual é o problema?
Será que desaprovas Homero, que declarou que a juventude revela seu supremo encanto
naquele cuja a barba está aparecendo, como agora ocorre com Alcibíades?” (Protágoras,
309 A-B). Assim se expressa Homero: “(...) sob a figura se adianta de um jovem de fina
prosápia, / na mais atraente das idades, quando o buço lhe aponta gracioso” (Íliada,
Canto XXIV, 348). E também na Odisseia, referindo-se a uma aparição de Hermes:
“(...) na figura de um moço radiante / a quem o buço começa a apontar na mais grata
sazão” (Canto X, 279).
Mas não se trata apenas da bella faccia que esses jovens ostentam, quando
começa a surgir o buço. Pausânias quer dizer mais do que isso. Como ele mesmo
explica, o buço na face é sinal de que o discernimento já chegou naquele jovem.
Portanto, qualquer relação pederástica em que seja eleito um jovem antes de que surja
seu discernimento é considerada, por Pausânias, reprovável, e fruto daquele eros vulgar
: “ (...) é muito fácil reconhecer nas relações entre os jovens os que em toda a sua
pureza são levados por esse Amor [Amor Celeste]: não se afeiçoam a nenhum rapaz
senão depois que este revela discernimento, isto é, só na idade em que aponta o
buço.”(181 D).
pessoas de bem, naturalmente, são aquelas que se deixam dirigir pelo eros superior. Já
os amantes vulgares deveriam, segundo Pausânias, serem constrangidos a não
relacionarem-se com esses jovenzinhos.
“Mas não venha Erixímaco, por brincadeira, torcer o sentido das minhas palavras,
como se eu me referisse a Pausânias e Agatão” (193 B).
admitirem definição fácil e muito simples, ao passo que as nossas são complicadas.”
(182 A).
Por um lado, “(...) tanto os deuses como os homens concedem plena liberdade a
quem ama, o que nossas leis confirmam (183C)”. Para aquele possuído pelo amor é
natural “(...) jurar, pedir com instantes súplicas e implorações, deitar-se na frente da
porta e prestar serviços que nenhum escravo concordaria em fazer (...) (183 A)”. Tudo
isso seria digno de repreensão, contudo “(...) o amante faz tudo isso com certa graça, o
que lhe é permitido pela liberalidade de nossos costumes, sem incidir na menor censura
de ninguém, como se se tratasse de um ato louvabilíssimo. (183 B)”. Ou seja, a quem
ama não existe ato vergonhoso que não seja perdoável, pois ele está possuído pelo
amor.
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Por outro lado, àquele que está sendo procurado pelo amante, o amado, os
costumes atenienses impõem restrições: “(...) os pais põem os filhos sob vigilância de
preceptores, para impedi-los de conversar com os amados, e isso mesmo recomendam a
seus prepostos, observando-se, outrossim, que seus coetâneos e companheiros o
repreendem sempre que o apanham nalguma prática desse tipo, sem que as pessoas mais
idosas se rebelem contra tais censores, nem lhes estranhem a linguagem, por injusta e
descabida” (183 C-D). O próprio Pausânias admite que, ao observar essas restrições,
seria cabível pensar que “(...) entre nós [atenieneses] o amor dos jovens é tido como
desonroso” (183 D).
Nesse sentido, Pausânias conclui seu discurso afirmando que o que torna o
desejo erótico belo e digno é o amor à virtude e ao aperfeiçoamento. É esse amor quem
deve dirigir o desejo erótico:
“Concluindo, direi que é louvável condescender alguém por amor da virtude. Esse é o
amor da Afrodite urânia, celeste como ela e da máxima importância para a cidade e os
particulares, por exigir, tanto da parte do amigo como da do amado, preocupação
constante com a virtude. Quanto aos outros amores, são todos da Afrodite pandemia ou
vulgar” (185 B-C).
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Erixímaco
“Parece-me certa a distinção por ele feita entre as duas variedades de Eros; mas, (...) a
influência do amor não se faz sentir apenas na alma dos homens em suas relações com
os belos mancebos, porém numa infinidade mais de coisas (...)”. – 186 A.
Erixímaco decide começar sua exposição pela medicina, sua arte. A medicina
combate, no que diz respeito ao corpo, o amor vulgar (que o leva à doença) e favorece o
amor nobre (que o leva à saúde). Sendo assim, o médico mais hábil é aquele que sabe
“(...) distinguir (...) entre o bom e o mau amor” (186 C-D). Além dessa distinção, o
bom profissional médico terá de ser capaz de “(...) mudar as disposições do corpo, a
ponto de substituir um amor por outro, fazendo nascer o amor que nele não existe mas
deveria existir, ou extirpá-lo de onde se encontre (...)” (186 D).
Erixímaco definiu a medicina como sendo a arte de “(...) restabelecer a amizade entre os
elementos do corpo irreconciliáveis entre si.” (186 D). Assim também definirá a música.
Para confirmar esse ponto ele recorre a um pensamento que atribui a Heráclito: “(...) a
unidade, opondo-se a si mesma, produz o acordo, tal como se dá com a harmonia do
arco e da lira” (187 A). Segundo Erixímaco é absurdo entender que esse pensamento
heraclitiano queira dizer que a harmonia é discordância, o que seria um contra-senso. O
sentido que encontra nesse pensamento é o de que a harmonia forma-se a partir de notas
inicialmente discordantes:
“Não se concebe que possa surgir harmonia de agudos e graves que continuem
a opor-se. Quem diz harmonia, diz consonância, a consonância é uma espécie de
acordo, não sendo possível haver combinação de opostos, enquanto se mantêm como
tais.” (187 B).
A música é a arte pela qual esse acordo (harmonia) é produzido (187 A):
31
Aristófanes
Aristófanes inicia seu discurso dizendo que fará algo diverso daquilo que fez
Pausânias e Erixímaco. No modo de ver do comediógrafo, “(...) os homens
absolutamente não fazem ideia do poder de Eros (...)” (189 C). Prova disso, prossegue
em sua argumentação, é ausência de culto e veneração a esse deus. Eros é o mais amigo
e também médico dos homens (189 C-D). É nesse título que Aristófanes atribui a Eros,
o de médico, que está o centro de todo seu discurso. Afinal de contas, que mal humano
é curado por Eros? Na sequência de seu discurso Aristófanes passará a explicar que
esse mal é constitutivo da natureza humana e que, por esse motivo, Eros merece tantos
louvores, pois ele é o único capaz de trazer a cura definitiva ao homem e em
consequência disso “(...) ventura indizível para o gênero humano” (189 D).
Esse enfrentamento por parte desses homens potentes não podia, naturalmente,
ser tolerado pelos deuses. Por esse motivo, Zeus reúne-se ao restante dos deuses
33
com o intuito de deliberar o que deverá ser feito para impedi-los (190 C).
Inicialmente não chegam a nenhuma conclusão, contudo, depois de muito refletir,
Zeus chega a uma solução pela qual não precisaria aniquilar a raça dos homens (que
afinal de contas prestava aos deuses agradáveis cultos e sacrifícios), mas, ainda
assim, corrigir sua afronta. Dividir para multiplicar, basicamente é essa a decisão de
Zeus, ei-la: “Agora mesmo vou dividi-los pelo meio, pois desse modo não somente
ficarão mais fracos, como nos serão também de maior utilidade, pelo fato de
aumentarem de número. Passarão a andar com dois pés, em posição erecta. Porém,
se vir que não abatem a arrogância nem ficam quietos, voltarei a cortá-los em dois,
passando eles a andar, aos pulinhos, só numa perna” (190 D). Frente à sentença de
Zeus, fico imaginando que impiedade ultrajante deve ter cometido nosso Saci
Pererê...
Portanto Zeus fez a divisão assim “(...) como cortamos ovos com o auxílio de
um cabelo” (190 E) e Apolo, a seu mando, foi remendando os homens. E aqui
Aristófanes nos presenteia com mais um detalhe curioso: após o corte, Apolo
remendou a pele esticando-a e dando uma espécie de nó, resultando naquilo que
chamamos umbigo (190 E). Virou o rosto das metades de modo a que pudessem pôr
os olhos nesse orifício e lembrarem-se de seu castigo. Contudo, um problema
inesperado assolou os seres humanos, divididos por Zeus e reconstituídos por
Apolo. Separados, os corpos sentiam muita saudade de suas respectivas metades,
buscando-as incansavelmente (191 A). Ao encontrarem-se “(...) estendiam
reciprocamente os braços, estreitavam-se, no anelo de se fundirem num só corpo, do
que resultou morrerem de fome e inanição, pelo fato de nenhuma parte querer fazer
nada separada da outra” (191 A-B). Desse modo, desaparecia a raça.
Por piedade Zeus resolve reconstituir novamente os seres humanos. Faz com que
os órgãos genitais passem para frente (191 B-C) e que passe a haver a geração e a
concepção, antes disso, nos informa o comediógrafo, a geração dava-se na terra,
como ocorre com as cigarras (191 C). Portanto se, movido por uma saudade
irresistível, um homem abraçasse uma mulher “(...) havia geração e propagação da
espécie; porém se se dava entre dois seres do sexo masculino, a saciedade os
separava por algum tempo, ficando ambos em condição de voltar para suas
atividades habituais e de prover às necessidades da vida” (191 C). Portanto, através
dessa estratagema, Zeus garante a procriação e a saciedade aos seres humanos. Essa
é, segundo Aristófanes, a origem de Eros dentre os homens:
“Desde então é inato nos homens o amor de uns para os outros, o amor que
restabelece nossa primitiva natureza e que, no empenho de formar de dois seres um
único, sana a natureza humana” (191 D).
Agatão.
Eros é justo, pois não ofende e nem recebe ofensa de ninguém, sejam
homens ou deuses (196 B); tudo aquilo que faz é sem constrangimento (196 C).
Além disso, ele é sumamente temperante, uma vez que “(...) nenhum prazer
sobrepuja o Amor (...)” (196 C). Quanto à coragem, Agatão lembra os versos
segundo os quais nem mesmo o “(...) próprio Ares ousa resistir-lhe (...)” (196
D). Desse fato, segue-se o seguinte raciocínio:
“Ora, o dominante é mais forte do que o dominado,e, uma vez que Eros
vence o deus mais corajoso, terá de ser destemeroso ao máximo.” (196 D).
36
CONCLUSÃO
Essa primeira parte teve por objetivo a contextualização daquilo que é o tema
central dessa dissertação: a scala amoris. Desse modo, ao avançar na investigação de
nossa pergunta central, os temas tratados nessa primeira parte poderão ser citados sem
prejuízo ao leitor.
37
Em seguida, Sócrates irá fazer uma crítica, de maneira a distinguir dois tipos de
elogio. Aquele que elogia, tendo por fundamento a verdade; e aquele que elogia por
elogiar:
“Na minha inocência, pensava que seria preciso dizer a verdade em tudo o que se
falasse do objeto elogiado; a verdade deveria ser o fundamento próprio do discurso,
para daí escolhermos o que houvesse de mais belo e apresenta-lo na melhor ordem
15
Adição minha.
38
possível. Deixei-me inflar de orgulho ao pensamento de que iria falar bem, visto
conhecer a maneira certa de elogiar. Mas ao que parece, não é esse o caminho
verdadeiro, senão o inverso: atribuir ao objeto quanto de belo e de grandioso se possa
conceber, sem decidir, primeiro, se tal processo corresponde ou não à realidade dos
fatos” (198 D-E).
A respeito do discurso de Agatão Sócrates diz ter-se “(...) lembrado de Górgias (...),
esse orador terribilíssimo (...)” (198 C). Não por acaso Sócrates faz essa referência, pois
no diálogo Górgias é feita uma distinção similar a esta que Sócrates faz a respeito dos
dois tipos de elogio. Nesse diálogo, cujo assunto principal é a retórica, Sócrates
compara o retórico a uma espécie de gastrônomo da alma: “(...) a contraparte da
culinária na alma, atuando nesta como a culinária atua no corpo” (465 D, Górgias). O
que ele quer dizer com isso? Que assim como o objetivo central da gastronomia é
produzir o prazer no corpo, através dos alimentos, assim também o objetivo da retórica
é produzir uma persuasão prazerosa na alma, através de seus discursos.
Portanto, como Sócrates deixa claro em sua crítica aos discursos que o precederam,
a verdade passa a margem, ficando em segundo plano. Atribuindo-se ao objeto do
discurso tudo quanto achar-se de belo e grandioso, de modo a que impressione e encante
a alma. A distinção básica é que um discurso belo não necessariamente é verdadeiro, e
vice-versa.
Tendo feito essa ressalva, Sócrates declara: “A única coisa que posso prometer, se
estiverdes de acordo, é dizer a verdade como a entendo, não segundo a bitola de vossos
discursos; não desejo tornar-me ridículo” (199 A-B).
Contudo, antes de fazer seu discurso em elogio a Eros, Sócrates inicia uma
depuração dialética com Agatão. Nessa depuração, algumas ideias centrais a respeito de
Eros são expostas. Podemos entender essa depuração como sendo uma espécie de
purificação pela qual um iniciado deve passar antes de receber as revelações.
É dessa maneira que Andrea Wilson Nightingale16 entende o diálogo Banquete. Ela
traça um paralelo entre o discurso de Diotima e os Mistérios de Elêusis: “(...) o discurso
de Diotima no Banquete, onde Sócrates explicitamente compara a visão que o filósofo
16
NIGHTINGALE, Andrea Wilson, in Spectacles of Truth in Classical Greek Philosophy.
39
tem das Formas com a revelação mística em Elêusis”17. Sendo assim, essa depuração
dialética a que Sócrates submete Agatão equivale a uma purificação necessária à
revelação dos mistérios. Sócrates, como ficaremos sabendo, já foi iniciado nesses
mistérios; quem está sendo iniciado agora são os convivas do Banquete e o leitor.
Vejamos em mais detalhe essa purificação feita por Sócrates.
17
Idem, pg. 83.
18
LAÉRCIO, DIÓGENES. Vidas e Doutrinas dos filósofos ilustres, UNB.
40
É mais uma vez Diotima quem nos esclarece: “O que adquire hoje, perde
amanhã, de forma que Eros nunca é rico nem pobre e se encontra sempre a meio
caminho da sabedoria e da ignorância. E a razão é a seguinte: nenhum dos deuses se
dedica à Filosofia nem deseja ficar sábio – pois isso ele já é – tal como entre os homens
não precisa filosofar quem já é sábio. Por outro lado, os ignorantes também não se
dedicam à filosofia nem procuram ficar sábios. A ignorância apresenta esse defeito
capital: é que, não sendo nem bela nem boa nem inteligente, considera-se muito bem
dotada de todos esses predicados. Quem não sente necessidade de alguma coisa, não
deseja vir a possuir aquilo de cuja falta não se apercebe”. O filósofo é aquele que
aceita radicalmente a tensão indissolúvel inerente à filosofia. Essa tensão constitui-se
pelo reconhecimento da sabedoria como aquilo que há de mais belo e digno de ser
amado. E também como algo que existe fora e independentemente do homem. O
filósofo é aquele que vive essa tensão. Se a extingue, deixa de ser filósofo. Ou para
mergulhar nas trevas da ignorância, ou na soberba de considerar-se sábio.
“ “Nesse caso, Diotima”, lhe perguntei, “quem é que se ocupa com a Filosofia, se não o
fazem nem os sábios nem os ignorantes?”
“ Até para uma criança”, me respondeu, “é claro que são os que se encontram entre
uns e outros, estando Eros incluído nesse número. A sabedoria é o que há de mais belo.
Ora, sendo Eros amante do belo, necessariamente será filósofo ou amante da
sabedoria, e, como tal, se encontra colocado entre os sábios e os ignorantes. A razão
desse fato, vamos encontra-la na sua origem: ele descende de um pai sábio e rico em
expedientes, e de mãe nada inteligente e de acanhados recursos. Essa, meu caro
Sócrates, é a natureza de tal demônio. Não é de admirar a ideia que fazias do Amor.
Pelo que posso concluir do que dissesses, imaginavas que o Amor fosse apenas o
indivíduo amado, não o que ama. Por isso, quero crer, ele se te afigurava tão belo. Pois,
em verdade, aquilo que amamos é, realmente, belo, delicado, perfeito e bem-
aventurado. Porém o amante é de natureza muito diferente, conforme te expliquei.”
(203 E – 204 C).”
“Ainda aqui, reconhece-se logo sob os traços de Eros não só o filósofo, mas Sócrates
que, aparentemente, nada sabe, como os ignorantes, mas que, ao mesmo tempo, é
consciente de nada saber: ele é diferente dos ignorantes, pelo fato de, consciente de
seu não-saber, desejar saber (...). Sócrates ou o filósofo é Eros, o que significa que ele é
o Desejo, não um desejo passivo e nostálgico, mas um desejo impetuoso, digno desse
“caçador terrível” que é Eros.” (p.77).
impossibilidade que o filósofo deve resignar-se sob o risco de, caso contrário, deixar de
ser filósofo. Mas isso não significa que o filósofo não possa adquirir, através de suas
investigações, vislumbres parciais daquela unidade absoluta, a sabedoria. O filósofo
resigna-se a reconhecer na sabedoria um ideal inalcançável, pois ela é o conhecimento
absoluto.
“Quem tiver sido levado até esse ponto pelo caminho do amor (...) perceberá de súbito
uma beleza de natureza maravilhosa (...). “ (210 E).
“(...) é sempiterna, não conhece nascimento nem morte, não aumenta nem diminui;
ao depois, não é bela de um jeito e feia de outro, ou bela num determinado momento
para deixar de sê-lo pouco adiante, nem bela sob tal aspecto e feia noutras condições,
ou aqui sim e ali não, ou bela para algumas pessoas, porém feia para outras; beleza
que não se lhe apresentará sob nenhuma forma concreta, como fora o caso de um
belo rosto ou de belas mãos ou de qualquer parte, num animal, por exemplo, na terra,
no céu, ou seja no que for, mas que existe em si e por si mesma e é eternamente uma
consigo mesma, da qual todas as coisas belas participam, porém de tal modo, que o
nascimento e a morte delas todas em nada diminui ou lhe acrescenta nem causa o
menor dano. “ (211 A – C).
Fica claro, pela descrição de Diotima do que é a ideia de Beleza, que ela
simplesmente é o não-ser, se considerarmos o ser tudo aquilo que experimentamos
como existente em nossa experiência cotidiana. Afinal de contas, o que é que não
conhece nem nascimento nem morte? Não aumenta, nem diminui? Que não se
apresenta sob nenhuma forma concreta?
43
Se o filósofo é aquele destinado a ser o amigo das ideias, parece natural que ele
tenha de aprender a morrer, pois as ideias encontram-se no âmbito do não-ser. Mas a
virada e a revolução platônica está justamente em afirmar o contrário. Não são as
ideias que são o não-ser, são os seres a que estamos habituados que são não-seres, as
ideias são os verdadeiros seres, são elas que de fato existem. Aqui é que está a
novidade platônica, seu aspecto revolucionário.
44
“Não existe maior amor do que este: de alguém dar a própria vida por causa dos seus
amigos” 19.
O que significa estar ébrio de amor? A embriaguez serve de símbolo para o amor, na
medida em que indica um estado alterado de consciência, em que se está fora de si. Amar é
estar fora de si. Essa é uma das mensagens centrais da scala amoris. Essa mensagem
traz em si um ideal ético implícito; em suas últimas consequências, esse ideal realiza-se
na prova suprema de amor: o auto sacrifício em prol de outro. Dizemos do ébrio: “ele
está fora de si”. Não é por acaso que Alcíbiades, quando chega ao banquete, está
embriagado.Mas, pensando bem, radicalmente, é o amante quem está fora de si. Sua
atenção está voltada para fora, ele é todo olhos para seu amado/amada, seja uma pessoa,
seja uma ideia ou objeto. Aspira intensamente a tal estado de amor em que chegue a
esquecer de si próprio, de tão imerso naquele ou naquilo que ama. O amante emprega
todas suas forças: sua emoção, imaginação, racionalidade; em busca de unir-se ao
amado. Eis uma expressão lindíssima desse fenômeno, por nosso poeta Camões:
Esse verso bem caracteriza a aspiração profunda daquele tomado por Eros, tomado
pelo desejo: transformar-se na coisa amada, de modo a não mais desejar, por ter, já, a parte
desejada. Encontramos aqui, o paradoxo amoroso, que é o mesmo paradoxo que compõe a
busca filosófica. No plano do desejo, a posse completa daquilo que se deseja significa a
extinção do desejo. É como expressa Sócrates, com muita clareza, em seu exame dialógico
com Agatão:
19
Bíblia, João (15:13).
20
Sonetos de Camões.
45
“-¿Y desea y ama lo que que desea y ama cuando lo posee, o cuando no lo
posee? -Probablemente -dijo Agatón- cuando no lo posee.
A posse plena significa a extinção do desejo. Eros, filho de Pênia e Poros, é, por
natureza, paradoxal. A realização de sua mais profunda aspiração significa sua extinção.
21
PLATÃO, Banquete.
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