Vous êtes sur la page 1sur 17

Etnicidade em Assentamentos do Rio Grande do Sul

Paulo Freire Mello1


UFRGS
José Carlos Gomes dos Anjos2
UFRGS

RESUMO: De forma homóloga à realidade geral da sociedade brasileira, por meio de um


diagnóstico de sistemas de produção, realizado na safra 2004/2005, parauma amostrade
13%dapopulação total, observamos, nosassentamentos do Rio Grande do Sul, umdiferencial
de renda(neste caso, agrícola) entre brancos e não brancos. A discussão desse resultado
permitiu perceber que o processo de dominação simbólica(o racismo) nareformaagráriase
dápelaconstrução de umtipo-ideal de assentado (o colono de origemeuropeia), tendendo
apromover adesmoralização, individual ecoletiva, doschamados“brasileiros”– maisvoltados
auma economiade aprovisionamento –, seja pelo efeito de destino que engendra entre os
estigmatizados, ou mesmo naprópria(não)ação dosagentesdedesenvolvimento. Tal situação
nosproporcionou desenvolver umadiscussão voltada àanálise das contradições de políticas
públicas universalistas que ignoramo viés étnico.
PALAVRAS-CHAVE: Racismo. Reformaagrária. Rendaagrícola

ABSTRACT: From an homologous form to the brasilian society general reality, using a
production systems diagnostic, in the 2004/2005 harvest, for a sample of 13%from the total
population, we observed in the Rio Grande do Sul settlements, adifferential income (in this
case, agricultural) between whiteand non-white people. Thediscussion results haspermitted
to perceive that the simbolic domination process (the racism) in agrary reform works by
means of a settled ideal-type construction (the european origin farmer), tending to promote
the desmoralization, individual and coletive, of the called “brazilians” – more inclined to an
provisioning economy –, as thedestiny effect that engender among the stigmatizated, even
in the same (non) action of the development agents. Such situation has proportioned to
develop adiscussion turned to analysis of the universalistic public policy contraditions that
has ignored the ethnic bias.
KEYWORDS: Racism. Agrarian reform. Agricultural income

AR TIGO 125
PAULO FREIRE MELLO - JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS

Não hásol asós.


(Arnaldo Antunes)

RAÇA/ETNIA EM NÚMEROS NA REFORMA AGRÁRIA DO RIO GRANDE DO


SUL:

Nos últimos anos procuramos explorar algumas dimensões do viver de


um assentado no Rio Grande do Sul, tanto no que tange aos processos internos
quanto em sua relação com o meio circundante, com uma ênfase especial – haja
vista sua centralidade – na atuação dos mediadores, onde o tema do racismo
surgia com certa frequência nos discursos. Foram, porém, os resultados de um
diagnóstico realizado nos assentamentos, em 2005, que forneceram a base para a
análise estatística e a sempre difícil análise sociológica (graças ao risco de expor-
nos às leituras apressadas ora de condenação, ora de exaltação) que se pretendem
apresentar aqui.
Por que utilizar a categoria raça conjuntamente com etnia para analisarmos
a estrutura de distribuição de recursos, de assistência técnica e de poder nos
assentamento? Embora esteja estabelecido que, do ponto de vista biológico, não
existam raças para a humanidade, parte dos mecanismos de dominação da sociedade
brasileira têm justificativa implícita em pressupostos de inferioridade biológica.
A pressuposição de inferioridade racial produz efeitos de expectativas e reforça
destinos sociais, naturalizando espaços e expectativas de desempenhos inferiores
para os não brancos. Os efeitos sociais da utilização rotineira de pressupostos
racializantes só podem ser medidos tomando raça como categoria pertinente às
relações sociais no Brasil. Uma das reações ao efeito de raça é a afirmação positiva
das diferenças reforçando pertenças culturais e o estabelecimento de alianças e
fronteiras com base no imperativo da adscrição étnico-racial. Esse segundo momento
lógico, mas consecutivo na prática, tem um efeito de etnização das diferenças que,
num primeiro momento, foram racializadas. Assim, usamos o termo diferenças
étnico-raciais para marcar os dois processos enquanto construções sociais, próprias
de uma configuração das relações sociais no Brasil.
Raça é uma questão central para boa parte dos mediadores da reforma
agrária neste Estado. Os espaços de interação entre agentes do INCRA e assentados
estão informados por esquemas geradores de apreciações e de expectativas de
desempenho negativo da parte dos não brancos. Nos nossos diários de campo,
são frequentes as constatações de verbalizações dos agentes do INCRA no sentido
de se explicar pelo “fator raça” um suposto “fracasso” dos assentamentos. Um
aspecto a se considerar é a grande influencia da mídia e do sindicato patronal
rural (bastante próximos e atuantes aqui) na conformação de uma opinião pública

126 AR TIGO Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009


Etnicidade em Assentamentos do Rio Grande do Sul

desfavorável aos assentados, cada vez mais estigmatizados. Assentados são vistos,
em regra geral, como pessoas que não têm afinidade com a terra, seja por serem
“urbanos”, por não disporem de uma “cultura” para a agricultura ou por falta de
afinidade mesmo com o trabalho.
Preliminarmente, colocaremos em dúvida esta ideia do fracasso dos
assentados. Num segundo momento discutiremos o perfil típico do assentado em
correlação com os pressupostos da ineficiência dos assentamentos. No fim
retomaremos as discussões sobre os conceitos de raça e de etnia.

O MITO DO FRACASSO DOS ASSENTAMENTOS:

Em outros trabalhos já demonstramos que a produção média por lote dos


principais produtos da reforma agrária (milho, soja, arroz, aves, ovos, feijão e
leite) é maior nos assentamentos do que a produção média das propriedades de 10
a 50 hectares nas microrregiões onde estão localizados estes assentamentos
(MELLO, 2007) e, ainda, que as rendas auferidas por aqueles não se mostram
desprezíveis (MELLO; SANTOS, 2007).
A renda agrícola é o valor bruto da produção agrícola menos custos de
insumos e depreciação, ou seja, tudo o que a família produz, convertido em reais
(mesmo que consuma ou troque uma parte) menos os custos, excetuando mão-de-
obra familiar. Isto possibilita o acesso indireto à quantidade e à eficiência do
trabalho na agricultura e na pecuária. Efetuamos a análise estatística de dados
referentes a 1.466 famílias assentadas, cuja amostra representa, aproximadamente,
13%da população total assentada até o ano da amostragem (safra 2004/2005). As
informações foram coletadas pela EMATER-RS3 para o INCRA-RS4 com base em
metodologia de diagnóstico de sistemas de produção, metodologia que pode ser
acessada em Dufumier (2007). A renda agrícola por família/ano, nossa variável
dependente, é apresentada para três grupos étnicos diferentes: 1. caboclos, luso-
brasileiros, indígenas, negros; 2. misto do grupo 1e do grupo 3, ou seja, a mulher
de uma etnia, e o homem de outra; 3. fundamentalmente descendentes de italianos,
de alemães e de poloneses, ou seja, os três principais grupos imigrantes5 .
Há bem poucos negros nos assentamentos gaúchos e estes se concentram
mais em alguns municípios com histórico de charqueadas, não havendo, portanto,
possibilidade estatística de diferenciá-los dos outros grupos estigmatizados.
Geralmente são ex-peões das estâncias ou, eventualmente (talvez numa tendência
ascendente, de qualquer modo, não captada neste diagnóstico), originários da
região metropolitana. Estamos falando, em grande medida, de “brasileiros”, como
assim são chamados pelos descendentes dos imigrantes (grupo 3) os pardos,
caboclos, descendentes de indígenas e de portugueses.
Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009 AR TIGO 127
PAULO FREIRE MELLO - JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS

A definição étnica foi realizada mediante uma composição da auto-


declaração com a opinião do entrevistador. O entrevistador começa definindo o
entrevistado segundo os marcadores étnico-raciais comumente usados pelos
imigrantes para classificar os “brasileiros”. Num segundo momento da entrevista,
os entrevistados confirmam ou não a definição sugerida pelo entrevistador. Por
esse dispositivo quisemos neutralizar em alguma medida as tendências dos
entrevistados a se aproximarem do padrão (branco) tido como superior, para escapar
ao estigma. A simples pergunta pela cor/raça, numa sociedade racista, com as
especificidades culturais brasileiras, pode ganhar um caráter alvejante, na medida
em que impõe ao entrevistado que escape ao estigma (ANJOS, 2006), por meio do
encobrimento (GOFFMAN, 1988), que visa a um pacto tácito entre entrevistador e
entrevistado. Entrevistas de testes nos fizeram ver que os entrevistados, em
assentamentos gaúchos, normalmente tendem a se apresentar como branco mesmo
quando não se pensam como tal, julgando que essa é a expectativa do entrevistador.
Ao sugerirmos a identidade pelo qual o entrevistado é normalmente reconhecido,
propomos uma outra negociação de identidades, aquela que passa também pela
negação do estigma, mas agora através da afirmação positiva da identidade
estigmatizada.
Para efetivar a análise, realizamos a ANOVA (análise de variância)
univariada com testes de diferença mínima significativa (Duncan, Tukey, Bonferroni
e LSD) no programa SPSS. Como constatamos diferenças significativas entre as
seis regiões de atuação do INCRA-RS – discutidas em outros trabalhos (MELLO,
2007; MELLO; SANTOS, 2007) –, realizamos a análise da interação entre etnia e
região para confirmar se estaria havendo uma distribuição desigual de etnias nas
regiões. Sabe-se, de antemão, que há regiões mais valorizadas que outras, podendo
refletir-se nos procedimentos de seleção e de distribuição de famílias mediante um
corte étnico, o que não se confirmou. Ou seja, baseados nestes dados, não há
influência da região na renda agrícola para cada etnia.
É, porém, analisando a renda agrícola por etnia (conforme a Tabela 1) que
encontramos diferenças marcantes, onde o grupo 1apresentou resultados menores
que o grupo 2 e 3, ao passo que, entre estes, não encontramos diferenças
significativas: os dados indicam que a presença de pelo menos um membro da
etnia 3 no grupo já é suficiente para a renda apresentar-se significativamente maior.

128 AR TIGO Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009


Etnicidade em Assentamentos do Rio Grande do Sul

TABELA 1. GRUPOS DE SIGNIFICÂNCIA PARA ETNIA:


Grupo étnico Renda agrícola (R$/fam/ano) Número de amostras
1 3.211,53a 602
2 4.432,42b 508
3 4.688,60b 356

Fonte: elaborada pelos autores.

Com base nos números que, num primeiro olhar, parecem confirmar a
ideia do fracasso étnico, passamos a explorar alguns caminhos analíticos possíveis
ao entendimento da razão pela qual as etnias estigmatizadas têm renda agrícola
menor. Frente ao postulado explicativo das diferenças étnicas na intensidade e na
eficiência do trabalho, buscamos analisar a construção social do discurso
embranquecedor da reforma agrária por meio do desvelamento das categorias de
percepção que são forjadas ao longo desse processo para demarcar a diferença
entre os “verdadeiros colonos” e os “ilegítimos”.

ESTIGMA VISTO DE PERTO

A primeira questão arrolada pelos adeptos do “fracasso”, o pretenso caráter


urbano destes assentados, não parece se sustentar na realidade. Avaliamos a evasão
no norte do Estado e observamos que ela se dá no mesmo grau tanto nos
assentamentos do MST (onde estariam os “urbanos”) como naqueles oriundos de
áreas indígenas e de atingidos por barragens, ambos num patamar de
aproximadamente 10%de evasão. Ora, não há controvérsia que estes dois últimos
tipos de assentamentos sejam compostos por agricultores familiares, de modo
que, mesmo na hipótese de os assentamentos do MST serem compostos de urbanos,
estes estariam teoricamente se adaptando à vida rural (pelo menos não desistiram).
De outro lado, através de etnografia, constatamos altas taxas de evasão de
agricultores familiares em dois assentamentos no município de Santana do
Livramento, na metade sul do Estado (MELLO, 2006a, 2006b).
De qualquer modo, grande parte dos assentados vem de municípios
essencialmente rurais (passível de ser constatado nos cadastros do INCRA, mesmo
que não permitam ir além disso), onde parece pouco provável que não houvesse
experiência familiar em agropecuária. É o caso do Assentamento Viamão, onde
somente 4,2% das famílias têm origem na região metropolitana de Porto Alegre,
sendo em sua grande maioria oriunda do Alto Uruguai, região essencialmente
Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009 AR TIGO 129
PAULO FREIRE MELLO - JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS

agrícola no norte do Estado, onde, aliás, surgiu o MST. Isto não impediu que
essas famílias, diante das contingências e das oportunidades, optassem (mesmo
que em meio ao sofrimento que implica uma clivagem de seu habitus camponês)
por atividades não agrícolas, mais do que agrícolas (MELLO; BASTOS, 2007).
Evidentemente, há outras formas de se constatar um modo de ser camponês,
entre elas, a própria observação da hexis corporal, esta materialização do mundo
social no corpo (BOURDIEU, 2007). Camponeses possuem uma forma peculiar
de se vestir, de falar, gestos sutis, por vezes, que revelam as ações cotidianas de
inculcação de limites sociais, e das classificações, erigindo uma “categoria” ou
um tipo social, em alguma medida, visualizável. Deve-se tomar, contudo, os
cuidados necessários para que não se tirem, apressadamente, conclusões somente
com base nesta via. Jovens recém-assentados num outro município da região
metropolitana de Porto Alegre, facilmente confundidos com rapazes da periferia
da região metropolitana, são, na verdade, filhos de assentados do norte do Estado,
revelando o que parece ser um crescente processo de rurbanização do público da
reforma agrária, fato constatado em outros locais do país também (CASTRO, 2004).
O outro argumento recorrente é o ponto de partida para a reflexão deste
texto. “Assentados não gostam ou não sabem trabalhar”. Aqui se deve dar lugar à
assertiva que está por trás desta: “[...] caboclos, negros, índios, luso-brasileiros
(enfim, todas as categorias raciais forjadas na alteridade com os grupos ‘realmente
trabalhadores’, a saber, os de origem branco-européia) não gostam ou não sabem
trabalhar”. Há longa literatura histórica (e sociológica) que invisibiliza o trabalho
agrícola destas categorias estigmatizadas. A própria abertura do Estado à imigração
apresentou um desejo explícito de “embranquecer” o Estado como pressuposto
para ampliar a produção agrícola (ZARTH, 2002).
Entretanto, um recente trabalho de Osório (2004), baseado em sua tese
de doutorado e valendo-se de uma documentação até então inexplorada, demonstra
que havia uma grande frequência de agricultura, na metade sul do Estado, praticada
pelos peões, agregados e cativos negros. A autora dá conta, também, que o termo
estância não era sinônimo de grande propriedade, ou seja, havia muitas propriedades
com semelhanças ao que se chama hoje de pecuária familiar, mas que também
praticavam a agricultura. Maestri (2006), igualmente, confirma a presença de negros
na agricultura em estâncias e em chácaras de periferias urbanas. Fenômeno
semelhante também se deu na metade norte do Estado: os “brasileiros”, mesmo
quando não tinham propriedade, trabalhavam (e trabalham) em cantos dentro da
propriedade de agricultores familiares, ou seja, em alguma medida, gerenciando
uma fração do terreno, deixando espaço para que caracterizemos, pelo menos
parte deles, como camponeses.
O público da reforma agrária é, em parte, sucedâneo étnico e cultural
desses agricultores-criadores do século XVIII e XIX. Esse público ingressa nos
130 AR TIGO Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009
Etnicidade em Assentamentos do Rio Grande do Sul

assentamentos por três vias básicas: pelo MST, participando das lutas; pela “via
legal”, caso dos peões das fazendas desapropriadas que têm direito a um lote; ou
pela via “informal”, quando, residindo nas vizinhanças dos assentamentos, acabam
estabelecendo relações que lhes permitem “adquirir” um lote, nem que, para isso,
passem pela “obrigação” de acampar junto ao MST (MELLO, 2006a). Assim, diante
do histórico deste grupo, das experiências concretas fora da reforma agrária e das
diferentes estratégias pró-ativas de “entrada” nos assentamentos, parece apressada
a consideração de que os não imigrantes não têm tradição de plantio, por isso sua
propalada “apatia” nos assentamentos.
Se o argumento da falta de conhecimento, no que tange ao cultivo e à
criação, não se sustenta (o que não quer dizer, evidentemente, que não exista
espaço de aperfeiçoamento, embora não seja privilégio dos “brasileiros”), então
passamos à análise dos efeitos do racismo no Brasil.

RACISMO NO BRASIL E A REFORMA AGRÁRIA

Para Guimarães (2000), o debate sobre o racismo no Brasil até a década


de 1970 foi baseado na ideia freyriana de democracia racial. Descrevia-se um país
sem racismo, embora com discriminação de classe, onde as desigualdades raciais
eram fruto da escravidão e das diferentes dotações iniciais, entre brancos e não
brancos, em termos de capital (econômico, cultural, social, educacional). Ou, de
outra forma, focava-se na assertiva de que a dinâmica de classes iria superar as
diferenças raciais (para o autor, era caso de Florestan Fernandes). A partir de
então, os estudos assumem novas hipóteses, especialmente abordando as diferenças
de oportunidades e a polaridade entre brancos e não brancos (ou seja, pretos e
pardos teriam o mesmo estatuto) e na ideia de que as desigualdades ampliariam-se
a cada geração. É o momento em que o movimento negro adota uma postura
racialista, relacionada à “identidade” negra, em consonância com o surgimento da
noção multirracial de nação, em oposição à ideia freyriana de “mestiçagem”.
Nesta esteira, Silva (2000) demonstra que as diferenças de renda no Brasil,
associadas à cor, não são totalmente explicadas por outras diferenças, tais como
origem social, localização geográfica ou educação (para ele, explicação necessária,
mas não suficiente), concluindo para a existência de discriminação racial no mercado
de trabalho. Com dados do IBGE, o autor confirma a ideia de que as menores
chances de mobilidade social (na comparação com os pais) dos não brancos
explicam as desigualdades muito mais do que as diferenças na situação familiar.
Este é o ponto. Não se trata de negar, mas nem de reificar as diferenças
culturais e, sobretudo, históricas entre os assentados e, sim, de analisar, agora
com mais uma confirmação empírica, as desigualdades raciais, num campo, talvez
Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009 AR TIGO 131
PAULO FREIRE MELLO - JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS

por alguns considerado “imune” a qualquer tipo de injustiça, a reforma agrária.


A colonização do Estado permite ao olhar eurocêntrico ganhar hegemonia
sobre o “sistema brasileiro”, cujo ritmo, calcado em valores diferentes, foi visto
como entrave à colonização. Da mesma forma, o que se entendeu como a “resignação
da pobreza” conforma uma dissonância entre o modelo externo e o objeto de
análise de diversos autores estudados por Renk (1990), mais próximos dos colonos
de origem do que dos caboclos. Estes dispõem de concepções de terra, de patrimônio
e de trabalho diferenciadas em seu mapa cognitivo, ou seja, seu habitus, produto
de uma história diferente (o que pode gerar um comportamento ostentatório, em
detrimento de um outro mais voltado a uma racionalidade estritamente econômica).
Podemos constatar a campo uma frequência bem maior entre os
“brasileiros” de uma “cultura do gado e do cavalo”, com o artesanato de couro,
vestimenta, música, com o modo de se movimentar e de falar, com a prática do laço
e da doma (onde, às vezes, a constatação da falta de uma horta pode vir acompanhada
de uma parede cheia de troféus, atestando os valores de coragem, honra, liberdade)
e com a forte tendência à produção de gado de corte enquanto linha de produção
principal. Este conjunto, razoavelmente bem delimitado, de disposições, forjadas
em condições específicas, conforma um habitus gaúcho6 .
Ainda que numa outra situação, devemos considerar o já clássico trabalho
de Candido (2001), que argumenta sobre a precariedade dos direitos de acesso à
terra na manutenção, entre as comunidades caboclas de São Paulo, de níveis mínimos
sociais e na conformação de uma cultura caracterizada por isolamento, posse da
terra, trabalho doméstico, auxílio vicinal e margem de lazer, com raízes históricas
de fuga do trabalho, o que, para o autor, não se deve confundir com vadiagem.
Por outro lado, àqueles “brasileiros”, chamados na literatura histórico-
sociológica de caboclos ou nacionais, Gehlen (1988) acrescenta a noção de ética
ambiental, argumentando que estes, em oposição aos colonos, cultivariam uma
relação diferenciada com a natureza. O autor, todavia, os apresenta como uma
categoria estigmatizada e descreve seu trabalho como orientado pela lógica da
subsistência – para ele, assemelhando-se aos camponeses –, pois aqueles “não
têm o instrumental tecnológico, a racionalidade da disciplina do trabalho, o capital
acumulado e nem o saber técnico específico para, em curto prazo, recriar-se como
agricultor familiar moderno” (GEHLEN, 1988, p. 126).
Numa linha diferente, optamos pela ideia de economia de aprovisionamento,
conforme sugere Sahlins (1970), em oposição à noção de economia de subsistência,
pois, abarcando as trocas, escapa da perspectiva de um improvável camponês
limitado ao binômio trabalho contínuo-sobrevivência. Sahlins apresenta sociedades
camponesas com características semelhantes, tais como atividades econômicas
intermitentes e necessidades limitadas todas como fatores limitantes da acumulação
e redundando em menos trabalho, na comparação com as sociedades ocidentais.
132 AR TIGO Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009
Etnicidade em Assentamentos do Rio Grande do Sul

Em contrapartida, a necessidade de distribuição aos despossuídos, gerada e


coordenada no e pelo parentesco (ou por meio das chefias), é força estimulante do
aumento da produtividade e, consequentemente, do próprio desenvolvimento
econômico, ainda que, também, de forma limitada.
De forma semelhante, Pietrafesa de Godói (1999), buscando entender uma
racionalidade econômica diferente da “nossa” (no caso, de camponeses do Piauí),
e não uma pretensa “irracionalidade”, lança mão da noção de economia moral,
enquanto um conjunto de normas e obrigações recíprocas, ideias de justiça social
e de bem-estar – numa palavra, um éthos. É preciso levar em conta, desta forma,
que a ideia de aprovisionamento, na medida em que é calcada em reciprocidade,
tem uma dimensão econômica fundamental que não apresenta contradição com o
desenvolvimento propriamente, pois, potencialmente, gera uma produção
socialmente motivada, como constata Sabourin (2004, p. 8): “para ser socialmente
numa sociedade agrária precisa dar; para dar, precisa produzir.”
Em suma, as diferentes racionalidades econômicas são, afinal,
racionalidades econômicas e tendem, mesmo que em graus diferentes, a satisfazer
as necessidades que estão colocadas para cada povo e cada época. Nas lutas étnicas
do Rio Grande do Sul, as consequências da justaposição desses estilos de vida é
uma contradição estrutural na relação com o Estado em Ação (Jobert; Muller,
1987) desenvolvimentista. Traçando um paralelo da situação em tela com os estudos
citados, estaríamos diante de diferentes habitus ou de diferentes lógicas que
explicariam as diferenças de renda. Ou seja, de um lado uma pretensa economia de
subsistência dos “brasileiros” (mesmo que relativizada e ajustada a uma situação
de “modernidade”), tida como irracional. De outro, o sistema “mais racional” da
agricultura familiar engendrou no Rio Grande do Sul um tipo-ideal de agricultor,
o “colono”, branco, descendente de europeus (à exceção de portugueses) e
proprietário de terras. Tudo se passa como se houvesse um direito estatutário dos
colonos de exercer a agricultura e, consequentemente, de receber um lote num
assentamento, de modo que a legitimidade de estar num processo de reforma
agrária tende a ser medida de acordo com este padrão, restando aos não colonos
conviver com a desmoralização que isto implica, individual e coletivamente.
Essa desmoralização é reforçada e demarcada pelo estigma arquitetado
nessa via. Conforme Goffman (1988), estigma, na Grécia antiga, era o termo usado
para referir-se a um sinal corporal usado para evidenciar algo mau sobre o status
moral de alguém, sendo usado atualmente mais à própria desgraça do que a sua
evidência corporal. Neste sentido, o estigmatizado tende a incorporar o ponto de
vista dos “normais”, assumindo as crenças da sociedade mais ampla em relação ao
que significa a identidade estigmatizada (GOFFMAN, 1988).
Entretanto, o que está em jogo é perceber de que maneira ocorre o reforço
nas políticas públicas e, em especial, dos mediadores, tanto da não-percepção das
Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009 AR TIGO 133
PAULO FREIRE MELLO - JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS

diferentes economias e racionalidades em jogo, como da estigmatização desses


grupos étnicos. O discurso racializante implícito é especialmente autorizado pela
eficácia de enunciação desse banco central de capital simbólico que é o Estado
(BOURDIEU, 2007). Da família aos assentamentos, passando pelas escolas, os
julgamentos classificatórios, e o “efeito de destino” (BOURDIEU, 2003) que estes
promovem, ajudam a demarcar um lugar de miséria coletiva aos que estão nesses
lugares de rejeição social, tais como acampamentos e assentamentos.
Contentar-nos-emos em indicar, de forma bastante sistemática, algumas
situações-exemplo dentro de assentamentos. De um ponto de vista daqueles que
sabem o que é sentir na pele um estigma (revelado por uma história de longa
exposição ao racismo), um agente do INCRA, negro, atuante em assentamentos,
comenta (o que, de resto, já havíamos constatado tantas outras vezes) os fracassos
dos projetos de crédito em assentamentos, especialmente nas regiões mais
desfavorecidas, que não dialogaram com essas diferentes economias. Quer dizer,
o que poderia ser apresentado como um desejo de parte dos agricultores em criar
gado de corte, ovelha e cavalo, ou mesmo de executar trabalhos não agrícolas
correlatos (artesanato em couro ou lã, por exemplo), foi sistematicamente
substituído por projetos tipicamente “colonos”, entre outros exemplos, a produção
intensiva de leite. Diante das dificuldades adaptativas dos diferentes habitus e dos
ambientes físicos mais rudes às tecnologias propostas (a exemplo de aquisições
de raças produtivas, mas sem atenção às condições inóspitas, ou mesmo diante da
falta de infraestrutura que viabilizasse seu desenvolvimento) não resultaram em
êxito econômico, levando grande parte dos agricultores a assumir dívidas ou mesmo
a evadir. A agência do INCRA acabou, com isso, reforçando a “comprovação” de
sua propalada ineficiência congênita.
De outra parte, mesmo que partindo de um exemplo anedótico, não poderá
haver despreocupação diante de repetidas afirmações por parte de líderes do MST
quando da divisão dos recursos públicos (diversos, por exemplo, aqueles destinados
à implantação de pomares domésticos) de que: “só vamos dar para quem merece!”.
Apesar do caráter pouco republicano, curiosamente, esta expressão pode não soar
mal entre os mediadores da reforma agrária, e seu viés racista, por vezes, não é
sequer camuflado.
Por conseguinte, as diferenças nas estratégias de vida, mesmo que
explicando parcialmente as diferenças de renda, acabam servindo fundamentalmente
para o agravamento da desigualdade, na medida em que, vistas de forma pejorativa
(ou não vistas), promovem a estigmatização e o consequente desinvestimento por
parte daqueles que, justamente, deveriam ser os agentes de “desenvolvimento social”.
Dessa forma, a renda menor das etnias estigmatizadas poderia ser, em parte,
explicada por diferentes estratégias econômicas e pelos efeitos do racismo.
Para os não brancos, a economia da reciprocidade é mais estruturador
134 AR TIGO Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009
Etnicidade em Assentamentos do Rio Grande do Sul

das práticas com relação à agricultura, porém a cultura do desenvolvimento


incorporada pela instituição favorece apenas o sentido mercantilista de orientação
da produção. Ao mesmo tempo, o resultado da atuação dos agentes de mediação,
seus mecanismos de estigmatização e o consequente reforço da desigualdade,
tende a contribuir para a limitação do alcance da outra racionalidade econômica,
essa que satisfaz necessidades, distribui e encaminha em menor proporção para o
mercado.

ECONOMIA DE RECIPROCIDADE E SUA RACIONALIDADE INVISÍVEL

Impõe-se, aqui, explicitar plenamente em que sentido a economia da


reciprocidade predominante entre os não brancos poderia ser pertinente a um
outro sentido de desenvolvimento, para darmos pleno alcance às consequências
perversas (Giddens, 2003) da ação do Estado nos assentamentos.
Retomando a noção de reciprocidade de Mauss, Caillé (2002) confere ao
conceito sociológico de dádiva um alcance para os estudos de desenvolvimento.
Ele define dádiva como “qualquer prestação de bens ou serviços efetuada sem
garantia de retorno, tendo em vista a criação, manutenção ou regeneração do vínculo
social. Na relação de dádiva, o vínculo é mais importante do que o bem”, e esta
criação de vínculo social é que configura o ato político. Neste sentido, carrega
uma dimensão de interesse e desinteresse (ou interesse pelo outros), podendo
gerar amor, amizade, solidariedade e paz. Meio pelo qual se estabelece o pacto
associativo, a dádiva, objetivando a aliança, subordina os interesses instrumentais
aos não instrumentais.
Esse autor a vê como um terceiro paradigma da sociologia, referindo-se
ao individualismo (ideia de interesse) e ao holismo (ideia de obrigação). Essa
sociabilidade baseada em reciprocidade é chamada, por ele, de primária, a qual
está imbricada com uma sociabilidade secundária, relacionada às leis de mercado,
do direito e da ciência. Para Caillé (2002), o fato associativo está exatamente na
interface entre essas duas sociabilidades, isto é, entre o consumo e o societário,
ou liberdade e interesse individual (enquanto economia de mercado) e obrigação
(interesse público). Conclui que só há duas maneiras de “fazer sociedade”, pela
violência superior ou pela associação, esta última calcada na dádiva. A questão
colocada pelo autor traz um novo elemento ao debate na medida em que a troca de
dádivas não opera mediante coação explícita, porém os agentes são premidos pela
existência de valores humanos e da moral.
Sabourin (2004) discorda de Levi Strauss quando encara a reciprocidade
como o mesmo que intercâmbio, pois, para o primeiro, assim como para Temple
(1999 apud Sabourin, 2004), a reciprocidade é a reprodução da dádiva numa relação
Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009 AR TIGO 135
PAULO FREIRE MELLO - JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS

reversível entre sujeitos, e o intercâmbio é apenas uma permuta de objetos.


Evidentemente, essas duas categorias são consideradas aqui como modelos ideais,
de forma que, na vida real, elas convivem nas mais diferentes proporções e formas.
Para o estudo em assentamentos, consideramos que a reciprocidade, embora venha,
por um lado, perdendo espaço para o intercâmbio mercantil, por outro, se mantém,
como sugere Sabourin (2005), referindo-se às comunidades rurais brasileiras,
onde podemos constatar valores e práticas associadas à reciprocidade camponesa.
Estudando assentamentos, esse autor constata a importância de investimentos em
infraestrutura social, esportiva, cultural e religiosa, especialmente para aqueles
com dificuldades de organização, sem associação formal e sem formas de
reciprocidade aplicadas à produção, pois é “por meio das estruturas de reciprocidade
aplicadas ao nível simbólico (as estruturas religiosas, culturais, sociais, festivas)
que se pode reunir um número significativo de famílias” (SABOURIN, 2005, p.11)
e, por essa via, produzir um outro caminho de desenvolvimento.
Em suma, a noção de reciprocidade nos permite compreender as estratégias
de produção e de reprodução de valores humanos com vistas ao estabelecimento
de laços sociais, gerando sentimento de pertencimento e uma crescente corporação,
que, somadas aos mecanismos de controle interno, como verificamos em Elias e
Sctoson (2000) e Wolf (2003), conformam a própria ideia de comunidade, vista
aqui como mantenedora dos assentados no campo. Por outro lado, as relações de
reciprocidade assimétricas, como as estabelecidas com fazendeiros, líderes
religiosos, assistência técnica, órgãos de terra e o MST, assim como as rixas
internas (reciprocidade negativa), muitas com bases em imperativos de adscrição
étnica, nos permitem compreender a gestão dos conflitos e a tendência à
desagregação de que muitos assentamentos são acometidos, processo este
potencializado pelas carências materiais a que são submetidos os assentados.
Esse processo tem o poder de acelerar a evasão de lotes, num ambiente dominado
simbolicamente pelo mundo urbano.
A contradição estrutural entre exigência de igualdade perante a lei e
desigualdade de status racial gera um conjunto de condições estimulantes de conflito
racial. Trabalhamos aqui com o conceito de contradição estrutural no sentido de
Giddens (2003), que diferencia contradição de conflito social. Dos sociólogos
contemporâneos, talvez ele tenha sido aquele que mais sublinhou a importância
da questão, chegando a fazer da diferença entre contradição e conflito social um
elo fundamental de sua “teoria da estruturação”. Não é possível fazer aqui um
balanço exaustivo desse tópico de sua teoria. Basta dizer que ele entende por
conflito a luta entre atores ou coletividades expressas em práticas sociais definidas,
ao passo que o conceito de contradição (estrutural) diz respeito à disjunção de
princípios estruturais da organização do sistema, que, no seu processo de
reprodução social, se negam mutuamente, embora dependam um do outro. Ainda
136 AR TIGO Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009
Etnicidade em Assentamentos do Rio Grande do Sul

que as contradições estruturais sejam um pressuposto para os conflitos sociais


(inclusive, mas não só entre classes ou raciais), o essencial é que eles não decorrem
necessariamente delas. No nosso caso, a contradição estrutural não chega a gerar
conflitos raciais maiores embora levem a ação do Estado a efeitos perversos.
Sob o efeito do racismo, as políticas universais de assistência técnica
tendem à contradição estrutural e podem levar à ocorrência de conflito social.
Embora a contradição e o potencial do conflito racial nos assentamentos gaúchos
antecedam a política pública, tendem a ser acirrados por conta das consequências
perversas das políticas universalistas em condições de desvantagens culturais e
raciais.
Não estamos sugerindo que, numa sociedade racista como a brasileira, as
políticas universalistas gerem sempre contradições, mas, quando os referenciais
(MULLER, 1990) paradigmáticos das políticas públicas (as concepções atualmente
dominantes de desenvolvimento da agricultura familiar) favorecem uma das culturas
em pauta, sob o pressuposto de sua universalidade, a tendência, a longo prazo, é
a piora da situação daqueles a quem a política mais deveria beneficiar.
Mais ainda. Quando, através desse tipo de políticas públicas, se generaliza
o senso de que todos foram beneficiados e apenas alguns puderam aproveitar, as
consequências mais perversas estão relacionadas ao reforço do racismo e das
fronteiras raciais no interior do assentamento. No nosso exemplo, a contradição
entre o incentivo à melhoria na produção do leite e o aumento da distância entre
brancos e não brancos é uma espécie de perversidade estrutural.
Diante da distância entre a cultura familiar dos não brancos e a cultura do
desenvolvimento assumida pela instituição pública, é provável que políticas
universalistas de assistência técnica produzam constantemente as consequências
perversas do aumento do fosso entre brancos e não brancos. É certo que é só a
partir do momento em que passam a se perceber racialmente é que, nos mais
destituídos em assistência, os resultados perversos são suscetíveis de gerar
ressentimento e, portanto, uma mobilização, pelo menos potencial, para a luta.
A entrada no mercado está duplamente interditada aos não brancos. Em
primeiro lugar pelas exigências vinculadas à incorporação das disposições próprias
à constituição de empreendimentos e à constituição de si como empreendedor. Em
segundo lugar, porque a relação com os mediadores, pautada pelo racismo, tende
a reforçar a estagnação de situações de miséria. O modo de funcionamento do
racismo limita tanto mais as expectativas dos não brancos com relação a si mesmos
quanto a dos mediadores com relação aos não brancos. Há uma desigualdade na
distribuição de expectativas de ascensão social, tal que, mesmo em situações
aparentemente iguais, a tendência é a da reprodução sistemática de desigualdades
raciais.

Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009 AR TIGO 137


PAULO FREIRE MELLO - JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS

ETNIZAR PARA DESRACIALIZAR

Conceituar raça do ponto de vista sociológico é levar em conta o peso


histórico do efeito agregado de milhares de reconhecimentos cotidianos e
insustentáveis como esse desses agentes de políticas fundiárias que, no modo de
atuar, reforçam fronteiras e conformam destinos sociais. Trata-se do efeito histórico
de dispositivos objetivos e de disposições subjetivas para repartir e definir o
lugar das pessoas a partir do fenótipo, subtendendo disposições culturais e
propensões biológicas. São esses dispositivos que confinam o lugar dos não
brancos, na inferioridade, mesmo num espaço a princípio igualitário como é um
assentamento.
A necessidade de se considerar o pensamento da diferença na problemática
da (des)racialização da sociedade brasileira, proposta por Anjos (2006), implica
a superação da crítica de Bourdieu (2005) quanto aos métodos de luta antirracista
que não escapam às categorias de percepção dominantes, expressas, por exemplo,
pela arbitrária dicotomia branco/não branco. Para Bourdieu (2005), a mudança
nas representações deveria se dar nas categorias incorporadas, nos esquemas de
pensamento que, através da educação, conferem o estatuto de realidade evidente,
indiscutida às categorias sociais que elas produzem. Nesta linha argumentativa,
não se trata de inverter o estigma (a exemplo da bandeira black is beautiful), na
medida em que a tentativa de constituir como valor propriedades negativamente
avaliadas não solapa as bases cognitivas que colaboram para o desconhecimento
da própria dominação e da arbitrariedade que esta representa quando classifica e
desclassifica as pessoas de acordo com seu fenótipo.
Mesmo considerando a constatação já estabelecida da inexistência de raças,
portanto, o caráter arbitrário dessa dicotomia, se impõe ainda, na sociedade
brasileira, a conclusão do processo de etnização das diferenças produzidas pelo
racismo. A afirmação positiva das diferenças culturais (produzidas pela própria
história do racismo brasileiro) mostra-se fundamental num processo de revolução
simbólica que possa vir a desconstituir tanto as diferenças raciais quanto as culturais
entre brancos e negros. Na medida em que, exatamente por se tratar de um processo
de violência simbólica – onde o desconhecimento impede os agentes sociais de
perceber a arbitrariedade dos sistemas classificatórios –, a ação política eficaz
necessita efetivar um reforço da diferença no sentido da inversão do sinal do
estigma para aqueles com capital simbólico negativo, a ação dos agentes do Estado
poderia etnizar as diferenças mediante apresentação como políticas afirmativas
em favor dos não brancos em lugar de racializá-los na inferiorização que desconhece
e estigmatiza as diferenças. E o aparente imediatismo dessa estratégia poderá,
paradoxalmente, colaborar para o lento processo de edificação de novas bases de
percepção da realidade: etnicizar para desracializar, isto é politizar as diferenças
138 AR TIGO Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009
Etnicidade em Assentamentos do Rio Grande do Sul

positivamente para desconstruir os pressupostos biológicos carregados pela


racialização.
Não é porque cientistas dizem que raças não existem que elas passam a
não existir socialmente. Historicamente, a não-existência de raças precisa ser
praticada, inventada, imaginada em dispositivos institucionais concretos como as
políticas afirmativas.

NOTAS

1
Engenheiro agrônomo do INCRA-RS, mestre e doutorando emDesenvolvimento Rural, PGDR/
UFRGS. pfreiremello@yahoo.com.br.
2
Antropólogo, pós-doutor emSociologiapelaEcole Normale Spuerieurede Paris, ENSP, França.
Professor Adjunto da UFRGS na pós-graduação da Sociologia e do Desenvolvimento Rural.
jcdosanjos@gmail.com.
3 Empresa que prestaassistência técnica paraaproximadamente 40%das famílias assentadas.
4 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, órgão de terras do Brasil.
5 Baseamo-nos em Guimarães (2000), que propõe reunir as diferentes etnias num mesmo
estatuto, no que tangeàsdesigualdadessociais, conformeaoposição central brancos/não brancos.
Não desconhecemos a existênciade processos de hierarquização entre os imigrantes, onde os
polonesestendemaser consideradoscomo inferioresaosoutrosdoisgrupos, masnadacomparável
àoposição entre imigrantes (brancos) e não imigrantes (não brancos).
6 Não se trataaqui de estabelecer qualquer referênciadireta àconotação mais recente do termo
rio-grandense, nascido no Rio Grande do Sul, o qual só surge no início do século XX, muito
menos às definições do movimento tradicionalista, nascido nadécadade 1940, ou do movimento
nativista, este, da década de 1970 (MACIEL, 1994).

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. 2003: “A ordemdascoisas”. In: A misériado mundo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes.
p. 81-85.
_____. 2005: A dominação masculina. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
_____. 2007: Meditações pascalianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
CANDIDO, A. 2001: Osparceirosdo Rio Bonito: estudo sobre o caipirapaulistae atransformação
dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34.
CASTRO, E. G. de. 2004: Sonhos, desejos e a “realidade”: herança, educação e trabalho de

Tempo da Ciência (16) 31 : 125-141, 1º semestre 2009 AR TIGO 139


PAULO FREIRE MELLO - JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS

“jovensrurais”daBaixada. Fluminense/RJ. Rio deJaneiro. Disponível em: <http://www.nead.org.br/


index.php?acao=biblioteca&publi cacaoID=298>.. Acesso em: 30 nov. 2004.
DUFUMIER, M. 2007: Projetosde desenvolvimento agrícola: manual paraespecialistas. Tradução
de Vitor de Athayde Couto. Salvador: EDUFBA.
ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. 2000: Os estabelecidos e os outsiders: sociologiadas relações de
poder apartir de umapequena comunidade. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar.
GEHLEN, I. 1998: “Identidadeestigmatizadaecidadaniaexcluída: atrajetóriacabocla”. In: ZARTH,
P. A. et alii. Os caminhos da exclusão social. Ijuí: UNIJUÍ. p. 121- 141.
GIDDENS, A. 2003: A constituição dasociedade. São Paulo: Martins Fontes.
GOFFMAN, E. 1988: Estigma: notas sobre amanipulação da identidade deteriorada. 4. ed. São
Paulo: Ed. LTC.
GUIMARÃES, A. S. A. 2000: “Apresentação”. In: GUIMARÃES, A. S. A.; HUNTLEY, L. Tirando
amáscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra. p. 17-30.
JOBERT, B; MULLER, P. 1987 : L’Etat en action: Politiques Publiques et corporatismes. Paris:
PUF.
MACIEL, M. E. de S. 1994: “Considerações sobre gaúchos e colonos”. In: BAQUERO, M. et alii
(Coord.). Diversidade étnicae identidade gaúcha. SantaCruz do Sul: EditoradaUNISC.
MAESTRI, M. 2006: O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistênciae sociedade – 3. ed.
rev. atual. Porto Alegre: Editora daUFRGS.
MELLO, P. F. 2006a. Evasão e rotatividade em assentamentos rurais no Rio Grande do Sul.
Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) – Faculdade de Ciências Econômicas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
_____. 2006b: “Rotatividade em assentamentos rurais”. Raízes. CampinaGrande, v. 25, n. 1e
2, p.55-64, jan.–dez.
_____. 2007: Produção agrícolanos assentamentos rurais do Rio Grande do Sul: um estudo
comparativo. Notatécnica. Porto Alegre, INCRA.
MELLO, P. F.; MIELITZ NETTO, C. G. A. 2005: “O assentamento rururbano e a reformaagrária
naatualidade brasileira”. In: Congresso daSociedade Brasileirae Economiae SociologiaRural,
43. Ribeirão Preto. Anais... . Ribeirão Preto: FEARP/USP, PENSA/USP. Não paginado, CD-
ROM.
MELLO, P. F.; BASTOS, M. A. 2007: “A construção social do distrito de irrigação: umaanálise
preliminar do assentamento Viamão”. In: Encontro e Ciências Sociais e Barragens, 2, Salvador,
BA. Anais... Salvador: UFBA/MGEO. Não paginado, CD-ROM.
MELLO, P. F; SANTOS, A. N. dos. 2007: “Assentamentos do Rio Grande do Sul: um retrato
atual”. Congresso Brasileiro de Sistemas de Produção, 7, Fortaleza. Anais... . Fortaleza: SBSP/
EMBRAPA, 2007. Não paginado, CD-ROM.

140 AR TIGO Tempo da Ciência (16) 31 : 157-173, 1º semestre 2009


Etnicidade em Assentamentos do Rio Grande do Sul

MULLER, P. 1990 : Les politiques publiques. Paris: PUF.


OSÓRIO, H. 2004: “Estancieiros que plantam, lavradores que criam e comerciantes que
charqueiam: Rio Grande de São Pedro, 1760-1825”. In: GRIJÓ, L. A. et alii (Org.). Capítulos de
história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EditoraaUFRGS.
PIETRAFESA DEGODÓI, E. 1999: O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão do
Piauí. Campinas: EditoradaUNICAMP, 165p.
RENK, A. A. 1990: A luta da erva: um ofício étnico da nação brasileira no Oeste Catarinense.
Dissertação (Mestrado emAntropologiaSocial) – Museu Nacional, UniversidadeFederal do Rio
de Janeiro.
SABOURIN, E. 2004: Dádivaereciprocidadenas sociedadesrurais contemporâneas. Tomo, São
Cristóvão, SE, n.7, p. 75-104.
______. 2005: Organização dosagricultores e produção de valores humanos. In: Congresso da
Sociedade Brasileira de Sociologia, 12. Belo Horizonte. Anais.... Belo Horizonte: Ed. UFMG.
Fotocópia.
SAHLINS, M. D. 1970: Sociedades tribais. Rio de Janeiro: Zahar.
SILVA, N. do V. 2000: “Extensão e naturezadasdesigualdadesraciais no Brasil”. In: GUIMARÃES,
A. S. A.; HUNTLEY, L. Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e
Terra. p. 33-52.
WOLF, E. 2003: “Parentesco, amizade e relações patrono-cliente emsociedades complexas”. In:
FELDMAN-BIANCO, B.; RIBEIRO, G. L. (Org.). Antropologiae poder. Brasília: UNB. p. 93-113.
ZARTH, P. A. 2002: Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí, RS:
Ed. Unijuí.

Tempo da Ciência (16) 31 : 157-173, 1º semestre 2009 AR TIGO 141

Vous aimerez peut-être aussi