Vous êtes sur la page 1sur 29

BOZON, Michel e HEILBORN, Maria Luiza. “As carícias e as palavras.

Iniciação sexual no Rio de


Janeiro e em Paris, Novos Estudos CEBRAP, nº 59, março 2001.

AS CARÍCIAS E AS PALAVRAS
INICIAÇÃO SEXUAL NO RIO DE JANEIRO E EM PARIS1

Michel Bozon e Maria Luiza Heilborn

RESUMO

Trata-se de uma análise comparativa sobre trajetórias afetivo-sexuais de homens e


mulheres de diferentes universos sociais presentes no Rio de Janeiro e em Paris. Examinam-se
as representações acerca da primeira experiência amorosa, o desenvolvimento da primeira
relação sexual e as classificações que os homens e as mulheres têm de seu primeiro parceiro e
das pessoas do sexo oposto no momento de sua entrada na vida amorosa. A interação verbal e
o contato corporal entre parceiros como ilustrativos da modelação cultural das emoções
exprimem diferenças modalidades distintas de processos civilizatórios na França e no Brasil.

Palavras-chave: iniciação sexual; relações amorosas; Paris; Rio de Janeiro.

SUMMARY

Based on anthropological data, this article is a cross-cultural analysis of early sexual


experience of men and women from different social settings in Rio de Janeiro and in Paris. The
authors examine the representations of early love experience, the reports of first sexual
intercourse and the ways men and women consider and classify first partners and persons of
the other sex at the time of sexual initiation.. The specificities of sexual initiation in France and
in Brazil are referred to differences in the style of body training, in the cultural modelling of
emotions and in the construction of the limits of individuals, which point to distinctive types of
civilizing processes.

Keywords: sexual initation; loving relationships; Paris; Rio de Janeiro.

Em uma relação amorosa, os primeiros contatos são sempre um momento delicado. No


Ocidente, o processo civilizatório, segundo a descrição de Norbert Elias, implementou fronteiras

1
Este artigo foi originalmente publicado em Terrain (Paris, no 27,setembro de 1996, pp.
37-58). A presente versão foi modificada e acrescida de novas referências
bibliográficas.

1
entre os corpos, alargou o domínio íntimo dos indivíduos e censurou a espontaneidade.
Transpor as barreiras erguidas ao redor dos indivíduos não é tarefa fácil. Em um trabalho sobre
idosos em Paris e no Rio de Janeiro, Clarice Peixoto, observando formas de “puxar papo” em
locais públicos, constatou uma atitude reservada entre os habitantes de Paris e uma atitude
inversa entre os do Rio:

Na França é raro falar com desconhecidos e não os encaramos [...]. Não se pode entrar em
contato com o corpo do interlocutor, uma vez que há regras bastante restritas no que concerne
ao toque: os contatos físicos se restringem ao nível privado [...]. No modo de vida brasileiro
[...] é o inverso: fala-se, encara-se e toca-se o desconhecido2.

Esse uso menos contido dos corpos no Brasil, que os faz mais permeáveis ao contato, produz
um estilo extrovertido de prática amorosa, com maior contato físico. Será que a modernização
dos costumes seguiria, no contraste aqui proposto entre França e Brasil, um curso diferente do
processo, descrito por Elias, de autocontrole, de interiorização dos constrangimentos e de
dilatação do eu? Descrever como os constrangimentos sociais atuam sobre sujeitos menos
interiorizados é uma das metas deste artigo.
Essas questões são examinadas aqui a partir da análise da iniciação amorosa observada no Rio
de Janeiro e confrontada com observações feitas em Paris. A análise está centrada no Brasil,
servindo o estilo de vida francês urbano de guia de leitura e de contraponto. A expressão dos
sentimentos, na medida em que é apreendida cotidianamente, resulta de uma construção social
que determina seus contornos. As sensações afetivas vivenciadas pelos sujeitos resultam de
marcas sociais que exprimem o sentido geral de uma cultura. O amor, aqui, é considerado
menos sob o ângulo da ideologia amorosa do que como configuração de regras, gestos,
comportamentos e manifestação de sentimentos (tal qual apontava Malinowski em 19293):
formas de aproximação entre homens e mulheres, tipos de relação e de vínculos autorizados
(flerte, relações ocasionais sem compromisso, casal formal ou informal), atividade dos corpos
expressa nas práticas sexuais. A atenção que continua sendo dada à virgindade feminina, por
exemplo, faz parte da configuração do amor no Brasil, tanto quanto a aparente espontaneidade
no contato entre os corpos.

2
Peixoto, Clarice. “Les modes d’appellation dans les lieux publics. Une comparaison
entre la France et le Brésil”. Ethnologie Française, no 4, 1995, pp. 559-568.
3
Malinowski, Bronislaw. A vida sexual dos selvagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
[1929], 1983.

2
A virtude de uma comparação a partir de dados não quantitativos é trazer à tona os processos
que permanecem invisíveis aos analistas que trabalham sobre sua própria sociedade4, os quais
podem considerá-los banais5. O estatuto do toque e dos contatos corporais no início de um
relacionamento no Brasil raramente é analisado por antropólogos brasileiros6. Inversamente, a
importância extrema das palavras e dos contatos verbais no estabelecimento de uma relação
amorosa na França é percebida por um sociólogo francês apenas no contraste com as
observações feitas sobre um outro país.
Realizamos uma pesquisa a partir de entrevistas utilizando o mesmo protocolo no Rio de
Janeiro e em Paris: homens e mulheres entre 25 e 40 anos7 foram entrevistados sobre o
desenrolar de suas vidas amorosa e sexual. As entrevistas francesas foram realizadas em Paris
e em seus subúrbios, e no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Na França não foi feita
inicialmente nenhuma recomendação sobre a classe social dos entrevistados: a maioria
pertence às camadas médias e altas. No Brasil, duas amostras bastante distintas foram
solicitadas: membros das camadas médias e uma amostra de moradores de favelas. Na França
foram realizadas oitenta entrevistas, entre 1993 e 1995, e no Brasil, 45, em 1994 e 1995.
Selecionamos doze entrevistas de cada país (seis mulheres e seis homens), levando em
consideração a qualidade (roteiro bem seguido, boa qualidade da reconstituição biográfica) e

4
Os autores, até o momento, trabalharam sobretudo sobre sua própria sociedade.
Michel Bozon realizou pesquisas sobre a formação de casais e a sexualidade na França,
a partir de dados quantitativos. Maria Luiza Heilborn empreendeu estudos sobre
conjugalidade heterossexual e homossexual no Brasil. Este artigo limita-se a relações
heterossexuais. Outros autores fizeram pesquisas comparativas sobre relações
homossexuais (cf. Mendes-Leite, Rommel. “Le sida et la (re)construction de
l’imaginaire social des sexualités. Approche qualitative auprès de la population
masculine à pratiques homosexuelles: une recherche comparée France-Brésil”. In:
Bajos, Nalalie e outros (eds.). Sexualité et sida. Recherches en sciences sociales. Paris:
ANRS, 1995, pp. 293-298).
5
Jean-Claude Kaufmann (Corps de femmes, regards d’hommes. Sociologie des seins
nus. Paris: Nathan, 1995) analisou de forma admirável a complexidade do processo de
“banalização” dos comportamentos, que nos faz “ver sem ver”, a propósito da gestão do
olhar na sociedade francesa.
6
Leal, Ondina. (org.). Corpo e significado. Ensaios de antropologia social. Porto
Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1995; Schuch, Patrice.
Carícias, olhares e palavras: uma etnografia sobre o “ficar” entre jovens
universitários de Porto Alegre. Porto Alegre: dissertação de mestrado em Antropologia
Social, UFRGS, 1998.
7
As pessoas que têm 40 anos e as de 25 não pertencem à mesma geração. No entanto,
segundo pesquisas quantitativas sobre o comportamento sexual (Bozon, Michel.
“L’entrée dans la sexualité adulte. Le premier rapport et ses suites”. Population, no 5,
1993, pp. 1.317-1.352; Caraël, Michael. “La mesure de l’activité sexuelle dans les pays
en développement”. In: Bajos e outros (orgs.), op. cit., pp. 57-80), a idade na primeira
relação sexual mudou pouco entre uma geração e outra. Em contrapartida, o acesso à
contracepção tornou-se mais fácil, especialmente no Brasil.

3
escolhendo sujeitos comparáveis, ao menos parcialmente, de um país e outro, seja por suas
características sociais, seja por sua biografia amorosa.
A comparação França–Brasil deve considerar que os dois países são bastante distintos. O Brasil
apresenta-se como uma sociedade muito hierarquizada, onde a família e as relações pessoais
constituem um valor e uma instituição estruturantes, em que as posições sociais e os papéis de
gênero são estritamente marcados. Grandes contrastes socioeconômicos também estão
presentes. Em razão da heterogeneidade também do ponto de vista cultural, optou-se por
selecionar entrevistados apenas do Rio de Janeiro, que é considerado uma metrópole de
vanguarda no que tange à liberalização dos costumes8. A diversidade entre as camadas sociais
é muito mais acentuada do que na França, em virtude de um acesso desigual à educação e de
diferenças de renda consideráveis. Em sua forma tradicional, a sociedade brasileira constitui-se
como uma totalidade hierarquizada que define espaços e posições distintos para homens e
mulheres, brancos e negros, pobres e ricos9. O Brasil tem sido freqüentemente analisado a
partir do denominado “complexo cultural mediterrâneo”10, em razão da ênfase ao valor da
família e à noção de honra, da demarcação rígida de papéis de gênero e do controle sobre a
conduta das mulheres. Nesse modelo hierárquico, o masculino é identificado com a dominação
e a atividade sexual e se opõe ao feminino, à submissão e à passividade sexual11.
Nas três últimas décadas, porém, mudanças profundas ocorreram no modo de vida das
camadas médias brasileiras, às quais pertence a maior parte dos entrevistados. O aumento da
taxa de atividade das mulheres, as mudanças na família em virtude da queda da fecundidade e
a legalização do divórcio alteraram o quadro das relações de gênero. Nas camadas médias
difundiu-se uma ideologia igualitária que ensejou o aparecimento de um modelo mais simétrico
de casal, tanto heterossexual quanto homossexual12. A França é uma sociedade socialmente
menos diferenciada, onde o ideário individualista faz que os laços familiares e de amizade
atuem de maneira mais indireta sobre os indivíduos13, sem imputar fortes constrangimentos14.

8
Cf. Heilborn, Maria Luiza. “Corpos na cidade: sedução e sexualidade”. In: Velho,
Gilberto. Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, pp. 98-108.
9
Da Matta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
10
Cf. Peristiany, John. Honra e vergonha: valores das sociedades mediterrâneas.
Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1971.
11
Cf. Parker, Richard. Corpos, prazeres e paixões. A cultura sexual no Brasil
contemporâneo. São Paulo: Best Seller, 1991.
12
Cf. Heilborn, Maria Luiza. “Homosexualité masculine, homosexualité féminine au
Brésil”. In: Ephesia, La place des femmes. Les enjeux de l’identité et de l’égalité au
regard des sciences sociales. Paris: La Découverte, 1995, pp. 290-295.
13
Cf. De Singly, François. Libres ensemble. L’individualisme dans la vie commune.
Paris: Nathan, 2000; Peixoto Clarice, De Singly, François e Cichelli, Vicenzo. Família
e individualização. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000.

4
Neste artigo são examinadas de início as representações da primeira experiência amorosa; em
seguida analisam-se o desenvolvimento e o significado da primeira relação sexual; por fim,
aborda-se a representação que homens e mulheres têm de seu primeiro parceiro e das pessoas
do sexo oposto no momento de sua entrada na vida amorosa.

A primeira experiência amorosa

A entrevista tinha início com a seguinte questão: “Você poderia nos falar sobre a sua primeira
experiência amorosa?”. Propositalmente ambígua, a pergunta permitia aos entrevistados reagir
livremente, a partir de suas próprias representações. As respostas são reveladoras da
divergência de concepções e realidades vividas no amor.

Sentimental ou sexual?

No Rio e em Paris, as mulheres nunca citam em primeiro lugar uma experiência que tenha tido
caráter apenas sexual. Elas perguntam com freqüência aos entrevistadores em que sentido se
entende “experiência amorosa”. Isso não significa que elas hesitem pessoalmente sobre esse
ponto, mas antes que procuram uma confirmação de sua interpretação “sentimental” do amor.
Uma entrevistada brasileira reformulou a questão, perguntando se era “aquela vez que gostou
mesmo da pessoa” (Tânia, vendedora, 26 anos). As respostas indicam que a primeira
experiência amorosa é muito mais do que uma “experiência” no sentido restrito. Na França
fala-se do primeiro amor, de ter encontrado “o homem da sua vida”, de relações muito
românticas; as brasileiras das camadas médias descrevem seu primeiro namoro. A primeira
experiência amorosa é geralmente uma relação em que as mulheres se sentem muito
envolvidas, na medida em que anuncia um possível distanciamento da família de origem. A
reflexão retrospectiva que fazem sobre elas mesmas a partir da entrevista pode fazer surgir um
ponto de vista crítico sobre a maneira como encaravam essa primeira relação na época, agora
considerada ingênua. O fato de a experiência sexual propriamente dita não aparecer jamais em

14
É importante ressaltar que as pesquisas foram realizadas em grandes metrópoles e que
no Brasil, em particular, as tendências que aparecem na análise não podem ser
estendidas ao país. Nosso ponto de vista, mediante o exame dos contrastes, consiste em
fazer emergir os processos de construção das emoções e dos sentimentos amorosos em
cada um dos contextos. Ele não substitui os estudos aprofundados de cada país, que
analisam as diferenças internas.

5
primeiro plano significa que ela é considerada uma conseqüência da consolidação do vínculo
amoroso.
A atitude dos homens em face da questão é menos uniforme. Alguns citam espontaneamente
uma experiência “puramente sexual”, mas esse não é o caso mais freqüente. Muitas vezes os
homens se perguntam sobre o sentido da “experiência amorosa”, mas de uma forma bem
diferente das mulheres: consideram a dimensão sexual e a amorosa pertencentes a realidades
bem distintas, de modo que se impõe uma escolha sobre de qual se vai falar: “Minha primeira
experiência amorosa? Sexual ou amorosa? As duas são muito diferentes, não são as mesmas”
(Thomas, estudante, 27 anos). Os homens não ignoram nem os sentimentos amorosos nem as
decepções que eles podem provocar, mas mantêm separadas a ordem dos sentimentos e a
ordem da sexualidade, que correspondem a duas aprendizagens distintas. A tendência a
considerar a sexualidade e o sentimento duas realidades separadas, que apenas
temporariamente pode-se aspirar reunir, é uma atitude dominante entre os homens, tanto no
Brasil quanto na França.
A maior parte das pesquisas qualitativas e quantitativas demonstra essa dicotomia entre as
representações masculinas e femininas da vida amorosa, que surge a partir da entrada na
sexualidade adulta15. Isso não impede que na maioria dos países da Europa homens e mulheres
tenham sua primeira relação mais ou menos na mesma idade16. Já nos países do Sul da Europa
e no Brasil a iniciação feminina é mais tardia que a masculina17.

O namoro brasileiro e a relação casta18 francesa

Entre as mulheres brasileiras das camadas médias, o primeiro namoro sério é considerado a
primeira experiência amorosa. O namoro adolescente, às vezes traduzido como flerte, é uma

15
Apostolidis, Themis. “Pratiques ‘sexuelles’ versus pratiques ‘amoureuses’: fragments
sur la division socioculturelle du comportement sexuel”. Sociétés (“Sexualités et sida”),
no 39 1993, pp. 39-43; Bozon, op. cit.; De Singly, François. “Le vizir et le sultan ou les
deux amours”. In: Bajos e outros (orgs.), op. cit., pp. 159-181.
16
Wellings, Kaye e Bradshaw, Sally “First intercourse between men and women”. In:
Johnson, Ann e outros (orgs.). Sexual attitudes and lifestyles. Oxford: Blackwell, 1994,
pp. 68-109; Traeen, Bente, Lewin, Bo e Sundet, John. “The real and the ideal. Gender
differences in heterosexual behaviour among Norwegian adolescents”. Journal of
Community and Applied Social Psychology, no 2, 1992, pp. 227-237; Bozon, Michel e
Kontula, Osmo. “Sexual initiation and gender in Europe. A cross-cultural analysis of
secular trends”. In: Bajos, Natalie, Hubert, Michel e Sandfort, Theo (orgs.). Aids and
sexual behaviour in Europe. Londres: Taylor and Francis, 1996.
17
Caraël, op. cit.; Bemfam. Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde 1996. Rio de
Janeiro, 1997.
18
Em francês, “fréquentation chaste”.

6
relação de exclusividade entre dois namorados que podem permanecer um longo tempo sem
relação sexual. Em sua forma tradicional, o namoro começava em torno de 12 a 14 anos entre
as meninas e um pouco mais tarde entre os meninos; o casal que se formava então visava uma
relação durável ou um casamento19. A socialização da díade permitia avaliar a compatibilidade
entre parceiros. No início dos anos 1960, o ideal para as mulheres era casar com o primeiro
namorado, aquele que lhes garantiria o atributo moral da pureza, na medida em que o contato
com outros homens que não o marido tinha sido evitado. Essa forma de aproximação entre os
sexos era fortemente controlada pela família da menina, que mobilizava particularmente os
irmãos para exercer intensa vigilância sobre a conduta das moças, uma vez que a honra
familiar estava em jogo.
Assim, as mulheres de mais de 30 anos mencionam namoros que duraram muitos anos, sem
relação sexual. Muitos homens e mulheres entrevistados narraram que a autorização dos pais
da moça era necessária para começar um namoro: o namorado estava então autorizado a
“namorar em casa”. No modelo tradicional do namoro, o homem estabelece a relação e depois
faz propostas que a mulher deve recusar, pois não conhece as pretensões dele. Resistência da
mulher e insistência do homem fazem parte do regime ideal das relações de gêneros. A mulher
deve saber julgar em que momentos pode conceder maior intimidade corporal. Contraponto da
honra, a vergonha é uma permanente ameaça20. Assim, Denise (fonoaudióloga, 28 anos)
declara sobre um namoro aos 19 anos: “O primeiro cara que encostou a mão nos meus seios...
fiquei morrendo de vergonha depois pra encarar ele. Ah, será que eu fui muito fácil?”. Com o
tempo, os contatos corporais tornam-se mais íntimos e avançados, já que é preciso manter o
interesse do homem em prosseguir na relação, mas é a (preservação da) virgindade, no sentido
da recusa da penetração vaginal, o ponto central da negociação. Natália (professora primária,
35 anos), apesar de ter se recusado sempre a ter relações sexuais com seu primeiro namorado,
mantinha contatos bastante íntimos com ele: “Só uma vez a gente ficou nu. Já tinha um tempo,
quase no final do namoro. Eu comecei a ficar com pena dele: ele queria tanto transar
comigo...”.
Se o namoro continua existindo nas gerações mais jovens como relação de exclusividade entre
pessoas que se gostam, a pressão dos homens no sentido de atingir o mais rápido possível o
estágio da relação sexual (vaginal) é experimentada por todas as mulheres. Tânia (26 anos)
declara: “Dois anos depois [do início do namoro] é que a gente teve a primeira transa. Dois
anos e meio pra ele me convencer [risos]. Ele conseguiu”. Essa crescente insistência masculina

19
Azevedo, Thales. “Namoro à antiga: tradição e mudança”. In: Velho, Gilberto e
Figueira, Sérvulo (orgs.). Família, psicologia e sociedade. Rio de Janeiro: Campus,
1981, pp. 219-276.
20
Duarte, Luiz Fernando. “Pouca vergonha, muita vergonha: sexo e moralidade entre as
classes trabalhadoras urbanas”. In: Leite Lopes, José Sérgio (ed.). Cultura e identidade
operária. São Paulo: Marco Zero/Prœd, 1987; Fonseca, Cláudia. “Honra, humor e

7
indica uma crise desse modelo de relação: a “sexualização” mais rápida do namoro faz que as
mulheres percam uma parte de seu poder advindo da resistência em ceder. Nos anos 1980
apareceu uma nova forma de relação denominada “ficar”21. Trata-se de um encontro que se
estabelece geralmente em um espaço público (festa, discoteca), e a atração pode dar lugar a
um contato corporal imediato, com beijos e carícias (até mesmo mais), sem que isso implique
qualquer compromisso entre os parceiros. Essa forma de relação contrasta fortemente com o
namoro.
Na França, uma forma similar de relação pré-matrimonial casta, prolongada e estável era o
modelo para as mulheres nos anos 1950 e em grande parte da década de 1960. Desde os anos
1970 esse modelo praticamente desapareceu. Contudo, se ainda persistem relações que as
mulheres qualificam como amorosas, mas sem atividade sexual, estas situam-se no início da
adolescência e tendem a ser muito breves. Na segunda metade da adolescência (a partir de 17
ou 18 anos), para as mulheres a sexualidade é um horizonte imediato, desde que haja uma
relação contínua22: do sentimento amoroso decorre naturalmente uma sexualização da relação,
que contribui para consolidar um laço sentimental. Assim, uma entrevistada do meio operário,
Gisèle (auxiliar de enfermagem, 32 anos), apaixonada aos 17 anos por um homem de 22, diz
apreciar muito a seriedade da relação que se estabeleceu, que ela atribui ao caráter
progressivo da passagem à sexualidade: “Ele não me atropelou”. Os encontros antes da
primeira relação duraram, entretanto, poucos meses. O bom desenrolar do início da relação é
importante para o julgamento positivo da experiência amorosa. É um modelo que difere do
namoro brasileiro; na França esse estágio corresponde a uma entrada mais precoce na
sexualidade. Relações sexuais se apresentam como um meio de esboçar e aprofundar uma
relação incipiente, sem ansiar ou exigir um vínculo durável23.

A aprendizagem amorosa

No Rio, como em Paris, a pergunta sobre a primeira experiência amorosa deixa os homens
bastante perplexos. Eles sentem que devem decidir entre o sentimental e o sexual, mas alguns
não conseguem fazê-lo. Um jovem francês menciona sua primeira experiência amorosa com
uma colega da escola e sua primeira experiência sexual, aos 15 anos, com uma mulher mais

relações de gênero: um estudo de caso”. In: Costa, Albertina e Bruschini, Cristina


(eds.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, pp. 310-333.
21
Cf. Schuch, op. cit.
22
Cf. Bozon, Michel. “La nouvelle place de la sexualité dans la constitution du couple”.
Sciences sociales et santé, no 4, 1991, pp. 69-88.
23
Cf. Lagrange, Hughes e Lhomond, Brigitte. L’entrée dans la sexualité. Le
comportement des jeunes dans le contexte du sida. Paris: La Découverte, 1997.

8
velha: “Eu estava loucamente apaixonado [pela menina da escola], ela certamente menos, o
que eu podia fazer? Eu saí de férias e tive nesse momento minha primeira experiência sexual
[com uma outra]” (Frédéric, jornalista, 36 anos). Nos relatos masculinos sobre a primeira
experiência amorosa, a noção de fracasso aparece com freqüência desde o início, como
incapacidade de se fazer reconhecido sentimentalmente pela parceira — “Era unilateral, quer
dizer, eu era o único apaixonado e ela não, evidentemente” (Patrice, executivo, 25 anos) —,
incapacidade de transformar uma relação estável em uma relação sexual (sobretudo no Brasil),
incapacidade técnica de ir até o fim na primeira relação. Nesse sentido, as narrativas dos
homens sobre a aprendizagem, a aquisição de experiência, referem-se a uma iniciação pessoal
ativa, marcada por erros, fracassos e passos adiante. Já a narração das mulheres sobre sua
primeira experiência amorosa é mais simples e geralmente mais positiva: trata-se de um
discurso sobre uma relação que se situa na fronteira entre o sonho adolescente (príncipe
encantado) e a realidade adulta pretendida (primeiro par).
A noção de primeira experiência amorosa, da forma como é compreendida pelos sujeitos,
revela muito mais uma diferença de gênero do que uma diferença entre culturas. Deter-se
sobre a primeira relação sexual como uma situação mais delimitada e identificável, e menos
subjetiva, faz aparecer conteúdos contrastantes entre duas sociedades.

A “primeira vez”, uma passagem difícil

A primeira vez não se esquece24... Analisando os relatos dos parisienses e dos cariocas, nota-se
que o desenrolar e as funções dessa passagem não têm caráter universal. A perda da
virgindade continua sendo objeto de atenção para as brasileiras. A primeira relação é vista
como uma iniciação para os homens, na França e no Brasil. As formas de aproximação do
primeiro parceiro diferem sensivelmente nos dois países.

Tornar-se um homem

Entre os homens do meio popular a iniciação sexual é um limiar esperado, porém temido.
Comparamos duas descrições da primeira relação feitas por um francês e um brasileiro, ambos
jovens de 17 anos, de meio modesto, fortemente ligados a seus pares, que têm a primeira
relação depois de uma festa, sem investimento afetivo:

24
Cf. Bozon, “L’entrée dans la sexualité adulte...”, loc. cit.

9
Sébastien (garçom, 34 anos, primeira experiência sexual em torno de 17 anos num albergue
para jovens no Calvados)25:
Quinta à noite sempre tinha festa no albergue. E então encontrei uma garota. Foi uma
confusão depois, porque as meninas dormem no térreo e nós, os meninos, no primeiro andar;
a gente tinha que descer a escada para chegar nos quartos delas. O problema era o peão que
ficava lá. Então partimos, ao todo quatro de nós, porque três amigos tinham namoradas
embaixo. A gente desceu devagar, a gente tinha uma senha. Abrem a porta, mais ou menos
uma da manhã, e foi dada a partida. Aí, tensão, você se diz que agora tem que fazer. Então,
você tenta conversar, faz um carinho, faz outra coisa, e pouco a pouco tenta se convencer que
no final das contas a pessoa que está na sua frente precisa tanto quanto você, mas você não
quer se precipitar. Você tenta, você já ouviu como as coisas se passavam, seus pais explicaram
e tudo o mais. Sem ser brusco, eis a história. Não se pode ser brusco, porque vocês, garotas,
são muito sentimentais, então não devem ser assustadas desde o início [dirige-se à
entrevistadora] porque senão depois é uma catástrofe. E depois foi fácil, porque a gente estava
com muita vontade, todos os dois. E depois era bom, bem, era rápido. A gente teve que
retomar várias vezes, para compreender bem o sistema. [...] A primeira experiência foi
engraçada, foi linda, gentil, terna, foi agradável.
Entrevistadora: Você achou divertido?
É verdade, é engraçado. Você se diverte no ato sexual em si, nas preliminares. Eu digo que é
engraçado porque me diverti tentando fazer cócegas nela, eu procurava as zonas erógenas,
que depois conheci iniciando... Ela já tinha tido uma relação antes, então ela conhecia. Eu me
dizia: “Atenção, tenho que conseguir”. Verdade, você se diz, se não conseguir vou parecer um
babaca, vou mandar mal com os amigos. Isto porque, de fato, você se sente culpado. Não
devo fazer isso, tenho que pegar leve, é o sistema, ora.
Entrevistadora: E porque os amigos sabiam?
No dia seguinte a gente conta pros amigos. No dia seguinte todo mundo já sabia: “Cara, valeu,
eu sou um homem agora”. A gente contava tudo para os amigos, a gente se conta sempre
tudo; é como vocês, garotas [dirigindo-se à entrevistadora], vocês se contam tudo. É lógico. É
necessário a gente confiar em alguém. Eu não posso entrar na casa de minha mãe e dizer:
“Pronto, mamãe”. Minha mãe, ela soube, mas talvez um ano depois.

João Manoel (economista desempregado, 28 anos, primeira experiência sexual com 17 anos
num baile funk no Rio):
Eu estava num baile funk com uns colegas. Por acaso encontrei uma menina que tava
dançando e tinha um corpo bonito. A cara dela lembrava um pouco um travesti. Na hora eu

25
Trecho de entrevista traduzido por Helena Bocayuva.

10
estava meio doido, já tinha tomado umas cervejas, e cismei: “Vou pegar essa mulher”... E eu
encarei, fui lá, troquei uma idéia e a mulher ficou comigo... a gente ficou se arrochando o baile
todo, beijando, essa troca fervorosa. A gente ia pra parede, rolava um sarro, eu roçava nela, de
repente um beijo no pescoço, na orelha, aquela coisa bem lancinante. Mas eu ficava olhando
para as outras pessoas, porque eu tava com a pulga atrás da orelha: “Pô, será que é um
travesti? Como é que eu vou tirar essa dúvida? Bom, só posso tirar essa dúvida na hora, né?
Vou encarar”. Aí terminou o baile e a gente saiu. Foi numa época que eu estava sem dinheiro,
e nas estações de barcas, perto de uma praiazinha, a gente ficou lá, naquela troca de amassos,
e a gente teve uma relação, quer dizer, na hora. Tá certo, aquele local não era o mais
apropriado [risos], mas era o que dava. Na hora eu me senti superbem e tudo. Aí, depois eu
falei com um colega meu: “Pô, aí, fiz de tudo com a mulher”. Depois de um certo tempo
pensei: “Eu não fiz nada”.
Entrevistadora: E o que você fez?
Primeiro começou com um beijo, um amasso, peguei os peitinhos dela, chupei os peitinhos
dela, depois rolou um sexo oral e finalizando o coito propriamente dito. Mas não sei, depois eu
fiquei pensando bem, não foi aquela relação legal, as condições não foram das mais
apropriadas, sabe? Eu fiquei temeroso de fazer um vexame e foi uma coisa rápida também.
Questão de minutos. Parecia séculos...
Entrevistadora: O que você estava esperando?
Tava esperando explosões, estrelas passando, constelações... aquela coisa maravilhosa. Mas
primeiro que a mulher... a gente não falava nada, eu também tava um pouco mudo, a não ser
por aquelas expressões, assim, chulas... “Tesão, gostosinha, vou fazer”... Era só sacanagem
mesmo, mas eu queria uma coisa mais profunda.

Nos dois exemplos a dança facilita o contato: permite uma descoberta prévia do parceiro à
distância e logo uma aproximação, que se realiza sem um grande esforço verbal. Nota-se em
ambos os casos uma excitação particular ligada à conquista, percebida como uma aventura. O
brasileiro vai à caça de uma mulher misteriosa (“a cara dela lembrava um pouco um travesti”) e
quer verificar se ela é realmente uma mulher. O francês deve driblar a vigilância da instituição e
apresentar uma senha para ter acesso à mulher. Há uma ansiedade quanto ao desenrolar
técnico da relação. Um tem medo do “vexame” e o outro tem medo “de falhar”. Um assinala
que a relação foi muito curta e o outro que foram necessárias várias tentativas. Enfim, o
resultado da aventura é necessária e imediatamente comunicado aos pares e dá lugar a um
novo status: “fiz de tudo com a mulher”, diz um, e o outro conta a seus colegas que “agora é
um homem”. O acontecimento é apresentado e vivenciado nos dois casos como um rito de
iniciação.

11
Um exame mais atento, no entanto, revela diferenças. No discurso brasileiro os contatos
corporais e os atos físicos do ato sexual são descritos espontaneamente e sem rodeios. No
relato francês, aliás muito detalhado em relação aos outros entrevistados de que dispomos, a
atividade dos corpos é evocada apenas de forma eufemística e indireta.
Se em outra ocasião havíamos indicado que na maior parte das pesquisas qualitativas sobre
sexualidade no âmbito europeu a atividade sexual era raramente mencionada26, tal não parece
se aplicar aos relatos brasileiros. A entrevista de João Manoel testemunha uma verbalização
bastante fluente da atividade física entre os parceiros. O investimento dos corpos tem uma
importância relativamente maior no estabelecimento da relação: o jovem carioca estabelece
contato corporal imediato com a parceira, em público, após ter trocado apenas algumas
palavras. A relação sexual propriamente dita desenvolve-se imediatamente depois em um local
público-privado (estação das barcas), sem trocas verbais além das palavras utilizadas durante a
relação. O jovem francês acredita que o momento mais difícil é aquele em que se encontra a
sós com a moça no silêncio do quarto e deve conversar com ela sem saber até onde pode ir:
“Isso torna-se um pouco estressante porque você se pergunta o que fazer. Então você tenta
conversar”. A mediação da linguagem tem como efeito retardar a progressão em direção ao ato
sexual: o entrevistado interiorizou a idéia de que é preciso “ir devagar”, não “ser brusco”, sob
pena de “catástrofe”.
Nesses dois exemplos-limite de relações “de uma noite”, com características bastante
comparáveis, as diferenças do modus operandi são evidentes. Na aproximação verbal, o ator
procura mostrar, falando, que sabe se controlar, respeitando uma progressão. Na aproximação
física há também uma progressão em relação ao ato sexual, mas ela é regulada, sem chegar a
ser enunciada, por uma gradação bem sincronizada de contatos físicos cada vez mais
avançados, desde a troca de olhares até a relação propriamente dita.

A prostituta, a empregada doméstica, a “iniciadora”

Certos homens mencionam uma dificuldade de passar ao ato, apesar de seu desejo, com
pessoas próximas na idade ou na condição social. A dissociação entre iniciação sentimental e
iniciação amorosa tende, então, a aumentar. Assim, dois entrevistados, Thomas (27 anos) e
Luiz Fernando (25 anos), ambos estudantes atualmente, têm em comum certas experiências e
atitudes: não se relacionam com seus pares, e as primeiras relações são com prostitutas e/ou
empregadas domésticas. Para qualificar a iniciação, os dois empregam o mesmo termo,
“necessidade sexual”, que não é uma categoria aventada por todos os homens. Depois de

26
Bozon, Michel. “Observer l’inobservable: la description et l’analyse de l’activité
sexuelle”. In: Bajos e outros (eds.). Sexualité et sida, loc. cit., pp. 39-56, p. 41.

12
tentativas infrutíferas com jovens da mesma idade, por volta de 14 anos, ambos procuram
parceiras de um estrato social totalmente diferente. Thomas, francês, declara: “Eu conheci
Lucile e nada aconteceu, e acabei me desvirginando com uma prostituta aos 15 anos”. Como
seus recursos financeiros pessoais são limitados, pouco depois de sua “desvirginação” ele deu
início à sedução de uma faxineira portuguesa. O empreendimento foi conduzido de maneira
sistemática: “Eu tinha entre 15 e 16 anos. A gente tinha uma faxineira, uma jovem portuguesa
que devia ter 18 ou 19 anos, que era muito bonita e... foi assim! Eu a desejava, propus, ela
disse várias vezes não, e um dia aceitou”. O carioca Luiz Fernando, por sua vez, conta a
conquista da empregada doméstica dos vizinhos, que ia à casa dele visitar sua empregada. Os
contatos físicos diretos estão logo presentes e muito mais explícitos que no caso francês: “Aí
naquele eu comecei a passar as mãos nas coxas dela. Ela era gostosinha mesmo, muito
gostosinha... Eu devia ter 14 e ela, 22, 23... Foi muito fácil, porque ela era meio atirada, e me
achava um garotinho muito bonitinho. Como ela dava mole, eu também jogava, dava umas
apertadas. Então, de aperto pra cá, não sei quê pra lá, pintou essa oportunidade...”.
Luiz Fernando manteve essa relação por oito anos, paralelamente a outras relações amorosas
em geral bastante breves; quanto a Thomas, teve apenas algumas relações sexuais com a
portuguesa, que retornou ao seu país de origem. Conscientes da distância social que os separa
de suas parceiras e as desqualifica como relações amorosas ou companheiras eventuais, os
dois jovens acentuam as características corporais dessas mulheres, mais que suas identidades
sociais. Luiz Fernando declara: “Era só carne ali pra mim. Só sexo”. Ambos assinalam a beleza
delas nas primeiras palavras, mas Thomas nunca cita o nome da moça, ao passo que sua
memória registrou precisamente todos os nomes de todas as outras mulheres e meninas que
ele conheceu, enquanto Luiz Fernando diz o nome apenas com a insistência do entrevistador.
Nas relações estruturadas a partir de uma distância de classe opera uma lógica social
particular, retendo como aspecto positivo dos contatos com o “outro social” a lembrança dos
bons momentos e do divertimento. Convidado a comparar suas experiências com a prostituta e
a faxineira, Thomas assinala que a relação foi muito melhor com a segunda: “Foi muito melhor,
ela colocou sentimento. Ela fez por prazer, então foi diferente. Eu não precisava pagá-la, e eu a
desejava, ela me desejava, era muito mais excitante”. Ambos sublinham com insistência o
desejo da parceira, como se não fosse admissível para um homem, mesmo em uma posição de
dominação social, obter relações sem o desejo da mulher. As fantasias e a excitação ligadas à
situação, assinaladas da mesma forma por Luiz Fernando, indicam que esse tipo de relação
pertence aos cenários culturais, ou aos “roteiros sexuais”, de uma sociedade27: a situação de
dominação social, que facilita a sedução, é aqui sem dúvida um dos componentes da excitação
masculina.

27
Cf. Gagnon, John. e Simon, William. Sexual conduct. The social sources of human
sexuality. Chicago: Aldine, 1973.

13
Outros homens têm sua iniciação sexual com mulheres mais velhas ou mais experientes, sobre
as quais não exercem dominação social. O caso é estatisticamente freqüente na França28. Essa
situação corresponderia a uma maneira específica de viver a iniciação sexual? Dois parisienses,
Frédéric (36 anos) e Marc (estudante de sociologia, 27 anos), viveram essa experiência em
períodos de férias. A aprendizagem sexual se fez, assim, no contexto de uma relação breve e
sem continuidade. O primeiro encontrou, aos 15 anos, em uma cidade de praia, uma estudante
universitária que tomava conta dos filhos de seu tio, dez anos mais velha que ele. Foi ela quem
tomou a iniciativa, numa ocasião em que as crianças estavam ausentes: “Foi muito mais uma
experiência [do que um encontro amoroso]. Para ela, porque era certamente divertido
encontrar um jovem virgem. E para mim, ficar com alguém bem mais velha era muito
interessante”. Ele às vezes se declara impressionado (“Foi certamente uma grande aventura”) e
às vezes bastante tranqüilo (“Por outro lado, eu não tinha medo porque sabia que ela estava a
par de como as coisas tinham que acontecer”). Marc, que teve sua primeira relação com uma
amiga dois anos mais velha, salienta que ela não era mais virgem — “felizmente, porque senão
eu acredito que não teria gostado dessa experiência. Ela me ajudou muito”. Se essa hierarquia
de papéis é aceita facilmente, é porque os dois sabiam que a relação não duraria. A experiência
da mulher libera o homem da responsabilidade e da ansiedade de ser o iniciador.
O carioca Sérgio (técnico em informática, 26 anos) também relata uma iniciação sexual com
uma mulher mais experiente, ainda que da mesma idade. A diferença em relação aos exemplos
franceses é que uma relação durável de namoro estava para se estabelecer entre os dois (e
durou alguns anos). O fato de ela não ser mais virgem não é vivido de forma positiva e altera
visivelmente, segundo ele, o desenrolar da relação, conduzindo-o a qualificá-la como “sexual”
mais que “amorosa”: “A minha primeira experiência foi muito boa, não pelo fato de ser a
primeira transa, mas porque eu fiz com alguém que eu sentia paixão. Nós começamos a
namorar num dia da semana, e antes de terminar essa semana a gente já tinha ido pra cama”.
O entrevistado acabara de mencionar um primeiro relacionamento, somente sentimental:
“Começou lindo, mas por alguns motivos passou a ser só o sexo. Essa menina não era mais
virgem e já tinha passado até por um aborto. Eu, totalmente inexperiente, estava tendo um
relacionamento com uma mulher que já tinha passado até por um aborto!”. Não ter sido o
iniciador priva, implicitamente, o homem do papel masculino-ativo-dominante na relação. No
Brasil, a preservação/perda da virgindade permanece um significante central no sistema de
representações acerca do gênero feminino.

Preservar-se

28
Cf. Bozon, “L’entrée dans la sexualité adulte...”, loc. cit.

14
As entrevistas cariocas, tanto de homens quanto como de mulheres, sugerem uma clara
evolução das atitudes em relação à virgindade feminina; esta, porém, continua a ser objeto de
atenção social no Brasil, enquanto a primeira relação sexual das mulheres na França não é mais
do que um evento privado, um momento de sua trajetória individual.
Na cultura mediterrânea, a partir da qual se pode compreender o Brasil, a preservação da
honra da família passa tradicionalmente pela preservação da virgindade das moças antes do
casamento. O controle parental visa prevenir uma possível desonra. A virgindade é, em si, um
valor mais social do que moral. O depoimento de Maria (faxineira, 26 anos) sobre a perda de
sua virgindade aos 12 anos em uma favela ilustra bem o contexto tradicional. Sua “desonra” se
remete a três elementos: vergonha, sentimento de fracasso e medo. A vergonha decorre da
difusão imediata da informação na comunidade local (por intermédio do jovem sedutor), que
tem o efeito de enquadrá-la na categoria das “meninas fáceis”. Esse cenário esclarece a
expressão empregada: “Eu me perdi”. O sentimento de fracasso está ligado ao fato de ter sido
logo abandonada por seu namorado, uma vez que ela acreditava que ele “ia ficar com ela e
assumir”. E seu medo não é de estar grávida, mas de ser espancada e rejeitada por seu pai e
sua família: ela foge de sua casa e volta apenas muitos meses depois.
A atitude tradicional quanto à virgindade também pode ser encontrada nos meios sociais mais
abastados, mas com conseqüências diferentes, como testemunha o depoimento de Denise (28
anos), jovem de classe média que se iniciou sexualmente aos 22 anos. Ela insiste na atitude de
seu pai nordestino que a impede de namorar por muito tempo por conservadorismo, mas
fazendo uso de argumentos “modernos”: a necessidade que ela conclua seus estudos, por
exemplo. Ela ressalta sua crença muito forte de que haveria uma mudança no comportamento
de sua família se ela perdesse a virgindade, estando convencida de que eles seriam capazes de
perceber. Afirma ter sido marcada pelas ressalvas que sua mãe, ex-dona de papelaria, fazia
sobre as moças: “Ela dizia assim: ‘Fulana, senta desse jeito, já não é mais virgem’. Sabe?
‘Fulana anda desse jeito... Olha o jeito daquela ali... é provocante, não é mais virgem’”. Essa
conjuntura familiar provoca nela um “bloqueio” sobre a questão da virgindade, que reforça as
experiências, observadas ao redor dela, de amigas que foram obrigadas a casar com o primeiro
namorado porque ficaram grávidas.
O controle dos pais sobre suas filhas é redobrado com as expectativas e a vigilância dos
namorados ou futuros namorados, que querem ser os primeiros. Assim, Natália (35 anos)
declara que seu primeiro namorado, mais velho que ela, sentia-se orgulhoso com sua
virgindade e mesmo com sua recusa em ceder. A regra é namorar apenas mulheres sérias:
uma das formas de controlá-las e impedir que tenham namoros suplementares é encontrá-las
na casa dos pais, reduzindo parte das saídas comuns. Hoje em dia tal comportamento é
considerado “conservador”.
O enfraquecimento do modelo tradicional da virgindade não levou a uma transformação total. A
decisão de preservá-la (ou não) é cada vez mais efeito de uma estratégia feminina e de um

15
cálculo decorrente de uma regra de prudência, mais do que de respeito por um valor social ou
moral. Preservar a virgindade é preservar o futuro, estando a prudência ligada a dois
fenômenos.
Os depoimentos dos entrevistados demonstraram, em primeiro lugar, conhecimentos escassos
da maioria sobre o corpo e a sexualidade, aos quais se acrescentam dificuldade de acesso aos
métodos contraceptivos e pouca informação. A dificuldade em abordar esses temas com os pais
é extrema. Um indicador desse desconhecimento é a forma como é vivenciada a primeira
menstruação. Muitas mulheres relatam seu medo de terem se cortado ou ferido, o que indica
não ter recebido informações de sua mãe sobre o evento. Tudo se passa como se para as
mulheres mais velhas a preservação da pureza feminina estivesse ligada a uma ausência de
conhecimento mais preciso sobre o corpo. Nessa situação de incerteza, algumas mulheres
temem fortemente as conseqüências da relação sexual e procuram não antecipá-las.
A prudência feminina também é explicável pelo desejo de não se ligar precocemente ao
primeiro namorado. Não “se entregar” a ele é manter a possibilidade de interromper o namoro
sem conseqüências e ter novo parceiro. É reservar-se uma margem de negociação e guardar
um poder sobre o homem. A decisão de ter uma primeira relação sexual, depois de um tempo
mais longo ou mais curto de namoro, é difícil de ser tomada e tem sempre um valor de
compromisso: a perda da virgindade não está banalizada. Assim, Tânia (26 anos), depois de
sua primeira relação sexual com seu namorado, aos 18 anos, declarou que se sentia “perdida”,
perguntando-se “o que foi que eu fiz”: “Você perdeu a virgindade e não é nem casada nem
nada... Há oito anos isso era mais forte. Até agora mesmo para qualquer mulher é uma coisa
superimportante, a primeira vez. A primeira transa mesmo, você não é mais virgem, porque há
o rompimento do hímen”.
A redução do valor social intrínseco à virgindade feminina no Brasil não fez desaparecer a
importância que as mulheres lhe concedem nem a atenção que os homens lhe dedicam.
Segundo recentes pesquisas quantitativas, a idade média das mulheres na primeira relação
sexual não se modificou sensivelmente nas últimas duas décadas no Rio de Janeiro, e sete
entre dez casos ocorreram no início da primeira união29. O fato de ter ocorrido, em segmentos
das gerações mais jovens, uma verdadeira inversão em relação ao pressuposto tradicional — e
algumas entrevistadas manifestam sentir hoje em dia uma pressão social em favor da não-
virgindade — tem sentido apenas em grupos específicos.
O valor tradicional da virgindade feminina não implica erguer barreiras entre os corpos, como
seria o caso em um contexto mais puritano ou reservado. Nos encontros pré-conjugais,
múltiplos contatos corporais acontecem: apenas a penetração vaginal é proibida (ou
retardada). Virgindade não é, portanto, ausência de contatos sexuais. Além das carícias e da
masturbação, podem acontecer relações orais e inclusive penetração anal. O vocabulário
brasileiro é recheado de termos para designar várias nuanças de carícias (“arrochar”,

29
Cf. Caraël, op. cit.; Bemfam, op. cit.

16
“amassar”) em comparação com aquele disponível na França. O tabu da virgindade, longe de
restringir os contatos, propicia o desenvolvimento de um código de aproximação física: o grau
de intimidade nos contatos assinala a progressão da relação.

Uma decisão privada

Na França, a virgindade das mulheres no momento do casamento ou no início de uma união


não mais corresponde a uma expectativa social controlada e valorizada pela comunidade. No
entanto, há não muito tempo tratava-se de uma norma: em 1959, segundo pesquisa sobre a
escolha do cônjuge30, 72% dos franceses entrevistadas consideravam importante que “a
mulher se guardasse até o casamento”. Trinta anos mais tarde, um calendário mais tardio de
formação de casais, a diminuição do número de casamentos e a difusão da contracepção desde
as primeiras relações criaram condições para a redução da idade da primeira relação sexual e
contribuíram para o desaparecimento da sincronicidade entre as primeiras relações sexuais e a
formação de casal31. O termo “virgindade” jamais é empregado e não mais designa um bem a
ser preservado.
Assim, a primeira relação sexual de uma mulher na França é vivenciada de forma bastante
diferente do Brasil. Não há dificuldades de acesso à informação sobre contracepção, e o tema
pode ser abordado entre mãe e filha. Gisèle (32 anos), dois meses depois de encontrar seu
primeiro namorado sério, optou pela pílula, sob recomendação de seu médico e depois de ter
conversado com sua mãe. Ela se preparou para uma relação que ocorreria cinco meses mais
tarde, porque quando estavam juntos “[as carícias] começavam a ir muito longe”, e se decidiu
porque “sentia que seria alguma coisa mais que um flerte, que cedo ou tarde teria progressos”.
A primeira relação foi bem vivida: “Eu tinha 17 anos, mas ele tinha experiência. Tudo se passou
bem, a gente não tinha medo que ninguém atrapalhasse, não estávamos incomodados. Eu
tenho uma boa lembrança”.
A primeira relação serve para tecer um relacionamento. Uma variação dessa representação é a
virgindade como dádiva oferecida a um homem em uma troca amorosa e destinada a alimentar
a troca. Assim, Justine (vendedora, 24 anos) teve sua primeira relação sexual no seu primeiro
relacionamento sério, apenas dois meses depois de ter conhecido o rapaz. Era um momento
com o qual ela havia sonhado anteriormente. Oferecendo-se para ele, mais experiente e quatro
anos mais velho que ela, acredita que “alguma coisa se criou” e que “a partir daquele momento
ele me respeitou muito”. Ela considera “ter descoberto o amor” ao longo de uma relação de um
ano. Menos interessada em formar um casal propriamente dito do que viver uma história

30
Girard, Alain. Le choix du conjoint. Une enquête psychosociologique en France.
Paris: PUF/Ined, 1964.

17
romântica com a qual sonhava, ela utilizou a dádiva (o dom) como isca para uma história de
amor. Há assim uma grande diferença em relação às entrevistadas brasileiras: a rapidez com a
qual as primeiras relações sexuais sobrevêm no relacionamento.
Existe uma outra visão acerca da virgindade na qual esta é fortemente desvalorizada, como um
fardo do qual é preciso se livrar. Essa representação começa a aparecer no Brasil. O exemplo
de Eléonore (estilista, 26 anos) ilustra bem esta maneira de viver a virgindade como uma
desvantagem. Decepcionada depois de uma história de amor platônica, ela resolveu “chutar o
balde” para não ser considerada “retardada”, buscando entrar na categoria das mulheres com
quem se pode ter relação. Uma amiga sua procura um iniciador para ela, mais velho: eles têm
uma relação mas ela não experimenta nem desejo nem prazer. Ela declara que esse evento faz
parte das coisas que ela “esquece”, que “não viveu”, exprimindo assim a vergonha de ter
“dormido com qualquer um” para se livrar de sua inexperiência inconfessável, e não ter sido
capaz de ter uma verdadeira experiência amorosa. Seu depoimento ilustra a dificuldade para
uma mulher pretender viver a primeira relação sexual como uma simples operação técnica, sem
a menor implicação afetiva.
Embora a perda da virgindade não mais seja um risco moral ou social na França, a maneira
como as mulheres vivem essa passagem continua a diferir fortemente daquela dos homens.
Enquanto para elas a primeira relação sexual é freqüentemente um momento decisivo (e inicial)
na construção do primeiro relacionamento, para eles trata-se de um momento de iniciação
pessoal no qual a relação com a parceira conta menos.
O discurso das mulheres sobre a virgindade e a primeira relação sinaliza os contrastes na
construção da pessoa e nas relações de gênero no Brasil e na França. No primeiro caso
observa-se a ação de uma moral relacional na qual a experiência individual está sempre
submetida à avaliação do grupo e à preeminência das considerações sociais. A mulher existe
como pessoa por meio da apreensão de sua conduta pelos outros: a virgindade continua a ser
um bem social. No segundo caso existe uma moral que se aplica a seres singulares e que
concebe as relações entre os sexos em um contexto individualista. Mesmo que as mulheres na
França acentuem, mais do que os homens, o laço afetivo, essa visão mais relacional
(comparação com os homens) não significa um retorno a um modo de estruturação tradicional
das relações entre os gêneros, como no Brasil; trata-se de uma característica diferencial do
gênero feminino, em um contexto mais simétrico das relações entre os gêneros32.

Avaliação da primeira experiência

31
Bozon, “L’entrée dans la sexualité adulte...”, loc. cit.

18
Nos relatos sobre a “primeira vez” há, freqüentemente, julgamentos. Mais do que
características anedóticas das relações, esses julgamentos revelam, ao mesmo tempo,
expectativas e cenários culturais prévios e uma avaliação da experiência sexual vivida em face
daquelas expectativas. Vários elementos são levados em consideração pelos sujeitos: a
experiência de seu parceiro, a história e o devir da relação, apreciados retrospectivamente, o
contexto dessa relação, seu desenrolar sob o ângulo técnico, o conteúdo sentimental da
relação...
As primeiras relações sexuais tecnicamente mal-sucedidas, por falta de ereção do homem
(Marc) ou por reticência da mulher à penetração no último minuto (Denise), são avaliadas
como fracasso. Contudo o fracasso não impede os atores de considerar que esta experiência foi
de fato uma primeira vez, na medida em que decidiram que assim o seria. A escolha do
contexto conta bastante: Denise e seu namorado foram a um motel; Marc está de férias na
praia e recebe uma amiga em seu apartamento. A intenção, materializada em parte pela
escolha do local, pesa mais do que a realização.
Na França, observa-se que inúmeras primeiras relações acontecem em um contexto de férias.
Em uma pesquisa qualitativa sobre o comportamento sexual dos jovens33, 63% dos
entrevistados dizem ter tido sua primeira relação sexual nas férias, e as entrevistas francesas
aqui utilizadas corroboram esse resultado. Já nas entrevistas realizadas no Rio não aparece
qualquer ligação entre férias e entrada na sexualidade adulta. Na França pode-se falar em um
verdadeiro cenário cultural, inscrito em um contexto de organização sazonal da vida cotidiana34.
As férias representam um pólo de liberdade, de renovação do meio de sociabilidade e de
relaxamento dos constrangimentos normativos que criam as condições favoráveis para uma
primeira passagem ao ato: o tempo e o local de férias passaram a ser, na França, um elemento
do script da iniciação sexual.
Dentre os elementos que contribuem para uma avaliação positiva da iniciação sexual, a
“experiência” do parceiro é com freqüência mencionada pelas mulheres, na França e no Brasil.
Um parceiro é considerado experiente quando é mais velho e já deu início à sua aprendizagem
sexual. Inúmeros valores são associados a essa situação: do homem experiente elas esperam
que as ajude a atravessar essa passagem delicada, sendo seguro de si e carinhoso, atencioso,
paciente. A inexperiência dos pares, em contrapartida, é estigmatizada e pouco desejada. As
mulheres procuram evitar situações “igualitárias”: o homem é quem deve ser o iniciador em
matéria de sexo, segundo elas.
Na França e no Brasil, os homens não têm necessariamente a mesma apreciação em relação à
“experiência” que as mulheres, no momento da primeira relação sexual. O fato de a primeira

32
Heilborn. Maria Luiza. “Gênero e hierarquia: a costela de Adão revisitada”. Estudos
Feministas. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, no 1, 1993.
33
Lagrange e Lhomond, op. cit.
34
Cf. Besnard, Philippe. Moeurs et humeurs des Français au fil des saisons. Paris:
Fayard, 1989.

19
parceira não ser novata é uma situação muito mais apreciada pelos franceses, enquanto alguns
brasileiros consideram com desconfiança a “experiência” de sua parceira, pelo que essa revela
de seu passado.
A história do relacionamento com o primeiro parceiro é um dos elementos que mais intervém
na avaliação das mulheres acerca de sua primeira experiência sexual: uma boa primeira relação
é a concretização de uma vínculo amoroso que se desenvolveu gradualmente e que terá um
seguimento. Ao contrário, a iniciação limitada a uma relação sexual, sem elo estável nem antes
nem depois, é uma experiência considerada detestável e que se prefere esquecer. As cariocas
sonham com o mesmo processo, mas para elas a primeira relação sexual acontece, em geral,
no meio de um relacionamento que tem um reconhecimento social informal (o namoro). Ao
contrário das mulheres, os homens encontram-se divididos. Alguns se sentem bem em viver
sua iniciação sexual em uma relação sem futuro. Mas outros, tanto no Brasil quanto na França,
sonham em conhecer, por meio da sexualidade, uma verdadeira iniciação sentimental.

Primeiro relacionamento: distâncias, contatos, mal-entendidos

Ainda que a maioria das mulheres espere “o homem de sua vida”, os homens não estão
preparados para viver uma relação. A distância entre as expectativas produzidas pelos roteiros
de gênero é espantosamente grande.

O homem dos sonhos... e depois

Na França, a maioria das mulheres vive sua adolescência à espera de um homem que as
iniciará no amor e será seu cônjuge, que elas chamam de “homem da sua vida”. A essa pessoa
elas freqüentemente atribuem traços físicos ou características sociais e morais precisos. Tendo
ou não uma representação substancial do homem esperado, sempre vivem com a idéia de que
vão encontrar o homem que lhes foi destinado. Essa espera pode estar atrelada ao mito do
príncipe encantado evocado por Karine (secretária, 28 anos), que lia muitos romances na
adolescência (“Eu era uma verdadeira pateta, não sabia nada. Eu lia romances, é sempre muito
platônico, utópico, príncipe encantado chegando em seu cavalo, me beijando”), ou às regras de
uma educação tradicional que prescreve que uma mulher deve conhecer apenas um homem.
Independentemente da forma como seja produzida, essa representação está fortemente
interiorizada pelas mulheres. Eléonore (26 anos) declara: “Eu acreditava nisso, completamente:
um amor louco, para toda a vida”. Nesta lógica, a iniciação sexual não é possível sem um

20
compromisso sentimental, que é a ante-sala da formação do casal, como assinala Florence (40
anos): “Eu precisava, para ter uma relação sexual com alguém, de uma relação afetiva
profunda, de me sentir segura, de me sentir serena com essa pessoa”. No Brasil, esse “homem
dos sonhos” é considerado o (primeiro) namorado sério. Essa concepção do “homem da sua
vida” corresponde, para as mulheres, a uma representação do amadurecimento pessoal e da
construção de uma identidade adulta que prescinde da mediação de um (só) homem.
Há algumas décadas se produz na trajetória amorosa das mulheres uma ruptura com a idéia de
um “homem de sua vida”, e isso acontece cada vez mais cedo. O transtorno não se limita a um
desencantamento em relação ao primeiro parceiro ou ao primeiro amor (ruptura com um
homem), implicando de modo mais geral a rejeição de toda a representação anterior do
desenrolar da vida feminina (negação da idéia de homem mediador). Essa ruptura pode
acontecer na primeira adolescência, antes de qualquer relação sexual. O fim de um flerte
ardente pode levar a um novo arranjo dos sonhos. Nathalie (gerente de loja, 29 anos) relata
que aos 14 anos teve de deixar de ver um jovem de 18, sob pressão de seus pais: “Eu estava
apaixonada. Eu sonhava estar casada com ele, com filhos. E depois acho que meus sonhos se
quebraram quando meus pais interromperam aquela relação”. Eléonore, ao ver, aos 18 anos,
que o homem por quem ela estava ardente e platonicamente apaixonada havia muitos anos
“não a esperou”, exprime uma decepção e sente suas certezas vacilarem: “No seu barco, ele
chegou com uma mulher. Eu tive a impressão de cair de um precipício... Eu havia construído
minha própria história e ele nunca havia dito que me esperaria... Ele nunca concebeu essa
relação como eu a via”. Que o homem escolhido e amado não preencha os requisitos abala,
para a mulher, a idéia de que existe um homem de sua vida a priori: a iniciação sexual é vivida
mais tarde de forma muito menos “romântica”.
Certas mulheres descrevem as dificuldades particulares que vivenciaram no momento do
rompimento com o primeiro parceiro sexual. Justine, que ficou um ano com seu primeiro amor,
teve dificuldade em aceitar o término da relação, ainda que tenha sido dela a idéia de romper.
“Eu não parei de dizer que o amava. Eu fazia uma certa encenação; como nos filmes, as
mulheres são apaixonadas, elas os amam... Fazia o estilo romântica. Eu fiquei apaixonada
durante dois ou três meses talvez, e em um determinado momento eu disse a mim mesma:
‘Acho que você não o ama mais’. Mas me dava muito medo pensar nisso porque para mim era
o homem da minha vida”. Gisèle ainda se pergunta, depois de quinze anos, por que seu
primeiro namorado, com quem ela pensava em viver um dia, decidiu romper. “Talvez ele tenha
tido medo de constituir uma família... Acho que ele não queria se envolver... Depois ele
conheceu a minha família, e eu a dele. Talvez para ele tenha sido muito brusco tudo isso”. Se o
rompimento é assim tão difícil, é porque é preciso renunciar não apenas ao parceiro, mas
também a um desenrolar da vida que havia sido imaginado. As mulheres sugerem ter tido,
nesse momento, atitudes “pseudomasculinas” para se vingar dos homens: “levá-los na
conversa”, ter relações sem desejo. A desidealização da estréia amorosa jamais chegou,

21
entretanto, a uma renúncia definitiva à busca de uma relação durável, mas essa procura está
cada vez mais “realista” e mais progressiva.
No Brasil, a persistência da instituição social “namoro”, porquanto implica um vínculo
reconhecido e enquadrado pela rede de relações, pode tornar o rompimento da mulher com
seu primeiro namorado um processo interminável, difícil de ser aceito, custoso do ponto de
vista pessoal, tal qual um divórcio. Assim, Denise conta que seu namorado insistiu para que
eles se encontrassem na casa de seus pais e que ele entrou na sua família: “Quando eu
terminei com ele, minha irmã virou pra mim: ‘É meu único cunhado. Você pode namorar
qualquer outro, mas ele é meu cunhado’. Ele entrou pra minha família. Fiquei com um monte
de cara. E quando eu comecei a namorar o José [o atual marido] ele ainda freqüentava a
minha casa”. A mesma dificuldade foi apontada por Tânia em relação a seu primeiro namorado,
o que a incentivou a mudar de comportamento em relação aos outros namorados: “Eu fiquei
meio marcada com aquele meu primeiro namorado. A gente namorou dois anos e meio, eu
conheci a família, conheci tudo. Depois terminei com ele e senti falta também da família, dos
irmãos, das sobrinhas, não sei o quê. Aí eu falei assim: ‘Ah, de agora em diante não quero
saber da família de namorado nenhum. Se tiver que namorar, vai ser só a pessoa, não vou
mais na casa. Se tiver que terminar, vou sentir falta só da pessoa, não vou sentir falta mais de
familiar nenhum’”. O rompimento com o primeiro namorado pode incitar as mulheres a levar
uma vida amorosa mais singularizada, evitando namorar em casa e ser íntima da família do
parceiro. Essa primeira ruptura indica, assim como na França, a passagem a uma apropriação
mais pessoal, por parte das mulheres, de sua vida amorosa.
É rompendo com o mito do “homem de sua vida” que as mulheres saem do conto de fadas ou
da tradição para entrar em uma história de amor ativa, não escrita previamente. E é assim que
retrospectivamente o indivíduo amado é rebatizado como “primeiro amor”, ou mesmo “primeiro
homem da vida”, o que indica que houve outros; a relação vivida com ele passa à condição de
“experiência”. No Brasil, a decisão de renunciar ao “homem de sua vida” inscreve-se em um
contexto social que não inclui apenas a mulher e seu parceiro, mas um conjunto de relações.
Na França, já há algumas décadas, é uma decisão individual.

Primeiras parceiras e construção de si entre os homens

Para os homens, desde a adolescência, iniciação sexual, vida sentimental e formação de um


casal são considerados fenômenos distintos, não se desenrolando com o mesmo calendário.
Contrariamente à maioria das mulheres, os homens nunca imaginaram a entrada na vida sexual
como um desfecho. Querer formar uma relação durável e encontrar uma mulher com esse
objetivo são aspirações que aparecem ao fim de um amadurecimento social. Quando um

22
homem fala da “mulher da sua vida”, significa que a juventude já passou e que ele quer “tomar
juízo”35. A literatura antropológica brasileira assinala recorrentemente o caráter de aquisição da
identidade masculina; a juventude é o momento da construção da masculinidade36.
A passagem para a sexualidade adulta, que não se limita à primeira “transa”, é umas das
transições complexas para o homem. A primeira relação tem um caráter de prova, de
experiência aventureira e arriscada. Os discursos masculinos são centrados sobre o indivíduo,
sua satisfação ou suas dúvidas sobre si mesmo; a parceira não é o maior foco de interesse. As
primeiras relações são uma experiência da qual o sujeito masculino deve sair fortalecido. Marc,
que pertence a um meio abastado, depois de uma experiência nas férias em que não conseguiu
levar uma relação sexual ao fim, consegue, de volta a Paris, uma experiência mais satisfatória
com uma jovem, que vai durar aproximadamente dois meses: “Era muito ritualizado. Cada vez
que eu a via, sabia que era para transar. Digamos que eu tivesse adquirido confiança suficiente
em mim e que minha relação com o corpo feminino estivesse muito mais segura. Eu adorava
transar, porque eu provava minha força, meu potencial”. Convidado a precisar a natureza da
relação que estabelecia com sua namorada, Marc aponta um grande descompasso entre as
expectativas de um e de outro: “Ela era gentil comigo, ela me escutava, conversava comigo.
Era muito carinhosa, botava a cabeça em mim assim. Em um determinado momento isso
começou a me deixar pouco à vontade... Eu teria preferido que ela estivesse como eu... Eu
achava que ela estava mais apaixonada do que eu. Das mulheres, eu me interessava em ser
colega. A idéia de casal, para mim, era uma coisa que não funcionava muito”. Esse entrevistado
ficava desconcertado com a demanda de relação afetiva de sua namorada, sua expectativa de
um namoro oficial, significando convites e saídas em comum. O relacionamento se interrompe
em razão da diferença de concepção da natureza do vínculo: um vive sua iniciação sexual
quando o outro aspira a uma relação total.
Uma outra manifestação da clivagem interna da iniciação amorosa masculina, que separa
estritamente aprendizagem sexual, aspirações sentimentais e desejo de formar um casal, é a
tendência dos homens, não apenas das camadas populares, de transpor essa clivagem para a
população feminina, classificando as mulheres segundo os usos que pudessem ter delas. As
categorias de classificação são mutuamente excludentes. Desta forma, um morador de favela
do Rio, Mário, distingue as mulheres fáceis (“meninas de farra”) das mulheres sérias, ditas
também de “família”: as primeiras perderam a honra por não serem mais virgens e com quem
os homens podem ter relações sexuais sem compromisso; as últimas podem e devem namorar
oficialmente e eventualmente casar. Nesse contexto moral é crucial uma mulher não perder sua

35
Cf. Bozon, 1990 <???>
36
Parker, op. cit.; Leal, Ondina. e Boff, Adriana “Insultos, queixas, sedução e
sexualidade. Fragmentos de identidade masculina em uma perspectiva relacional”. In:
Leal, Ondina (org.). Corpo, sexualidade e reprodução. Porto Alegre: Nupacs, 1995, pp.
89-111; Heilborn, Maria Luiza. “A primeira vez nunca se esquece: trajetórias sexuais
masculinas”. Estudos Feministas. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 6(2), 1998, pp. 394-405.

23
reputação37. Nas camadas populares francesas, o mesmo tipo de classificação é produzido
pelos homens38. No depoimento de Sébastien encontramos uma distinção bastante
“instrumental” entre dois tipos de mulheres: aquelas com quem é preciso “ser romântico”, isto
é, “conversar e fazer carinho” e aquelas com quem se pode “ir sem rodeios” (“trepar
imediatamente”).
Essas dicotomias nas práticas de sujeitos de camadas populares têm sua equivalência nos
meios sociais mais elevados. Denise, uma brasileira, ficou indignada com o fato de seu
namorado, com quem estava há muitos anos e não mantinha relações sexuais, ter transado
com uma outra mulher; não era o fato de transar que colocava o problema (ela sabia que não
era a primeira vez), mas o fato dela conhecer esta mulher. Para os homens, existem duas
categorias de mulher: as que é preciso namorar, pacientemente, e aquelas com as quais é
possível transar. Esse duplo padrão moral é reservado ao gênero masculino. Entre os
entrevistados franceses de um meio mais abastado há uma tendência a distinguir as mulheres
ou as jovens qualificadas como “românticas” de outras que não são designadas por um termo
único, mulheres que “já viveram bastante”, que têm “muita experiência”, ou, em um grupo de
estudantes, “a menina que namora todo mundo” (Patrice). No Brasil, há uma distinção
essencial entre as mulheres com as quais é possível casar e aquelas com quem só é possível
ter relações sexuais; na França, entre aquelas com quem é preciso ter uma relação sentimental
(sem referência necessária ao casamento) e as com quem se pode limitar a sexo. A
característica essencial dessas categorizações masculinas é que elas não têm equivalente entre
as mulheres, que não classificam os homens segundo seu comportamento sexual: essa
dissimetria provém do fato de as mulheres não fazerem uso tão diferenciado dos homens em
matéria amorosa, em razão de sua representação mais global do amor e do fato de
classificarem os homens sobretudo em termos de papel social.
Contudo, o desejo de fazer coincidir a experiência sentimental e a experiência sexual também
existe entre os homens. Pode se tratar de um desejo presente desde o início da vida amorosa.
Na França e no Brasil uma minoria de homens procura ter sua primeira experiência sexual no
contexto de uma relação sentimental ou de uma relação estável (namoro). Em geral, a
aspiração de encontrar a “mulher da sua vida” é mais tardia; o desejo de unir sexualidade,
sentimento e parceria origina-se de uma vontade de estabilização pessoal que se forja e se
reforça progressivamente durante a juventude. É o caso de David (27 anos, brasileiro,
professor de segundo grau), que após uma relação de três anos durante a adolescência (“na
qual não se entregava totalmente”) e várias relações breves na universidade torna-se professor
de segundo grau aos 23 anos e começa a aspirar a uma relação durável: ele decide namorar

37
Cf. Heilborn, “A primeira vez nunca se esquece...”, loc. cit.
38
Para exemplos recentes, ver Calvez, Maurice. La sélection culturelle des risques du
sida. Paris: Rapport ANRS, 1992; Coppel, Anne; Boullenger, Nelie e Bouhnik, Patricia.
Les réseaux d’échange sexuels et de circulation de l’information en matière de
sexualité chez les jeunes de quartiers à risque. Paris: Rapport ANRS, 1993.

24
uma de suas alunas mais velhas, mas procura conhecer imediatamente seus pais para mostrar
a seriedade de suas intenções. João Manoel (28 anos) encontrou, em torno dos 20 anos,
quando de bailes e noitadas, muitas mulheres fáceis, com as quais tinha contatos corporais
rápidos. Mas afirma ter sempre aspirado a sentimentos e relações mais profundas e que essas
aspirações eram expressas na escrita: ele escrevia poemas de amor a mulheres imaginárias. Ele
começou o namoro com a parceira atual aos 24 anos. O anseio masculino pela estabilização
amorosa se exprime sob a forma de um desejo de romper, em um dado momento, com a vida
e as experiências anteriores ou com o grupo dos pares. É uma verdadeira conversão que pode
ocorrer na juventude.

As formas de contato entre homens e mulheres

Entrar em contato com parceiros do outro sexo no momento das primeiras experiências
amorosas faz ressaltar as distâncias que separam homens e mulheres. No Brasil, essas
distâncias continuam percebidas como oposição entre dois universos. Na França, trata-se de
conceber tal dificuldade de contato como oriunda da relação entre os indivíduos, dificuldade
redobrada pela diferença de sexo.
Um dos entrevistados brasileiros, João Manoel, lembra-se da impressão que tinha na
adolescência de que as mulheres pertenciam a um “outro mundo”: “Eu tinha altas barreiras,
acho que tinha medo de mulher, eu não conseguia chegar. Medo de conversar, de entrar em
contato com esse outro mundo que eu desconhecia... Praticamente meu mundo era só os meus
colegas. A gente só ficava jogando bola, aquele papo de homem. E as mulheres a gente
desprezava, assim como elas desprezavam a gente”. Nesse contexto de separação absoluta
entre os sexos, a aproximação amorosa, necessária para tornar-se homem, é concebida como
uma operação de guerra, que segue certas regras. O ataque aparenta ser uma incursão no
território inimigo, na qual o álcool parece transmitir segurança. Os conselhos dos pares de João
Manoel indicam os passos: “Meus amigos falavam: ‘Olha, você tem que chegar na mulher, ela
vai te dar um sorriso, aí você fala umas palavras doces’. Eu não conseguia falar isso pra elas...
primeiro porque eu não sentia nada por elas. Eu queria alguma coisa mais poderosa, um
sentimento maior”. A cultura de João é de rua; nela as mulheres são totalmente ausentes, de
modo que o contato verbal é o mais temido.
As mulheres de camadas médias, que têm suas primeiras experiências amorosas no contexto
seguro do namoro, experimentam um sentimento de estranheza em relação à condutas dos
parceiros. Tânia queixa-se do machismo de seu primeiro namorado, enquanto não tinham tido
relações sexuais: ela se chocava com sua vontade permanente de controlar seus passos e
impedi-la de ver seus amigos. Ele a obrigava a acompanhá-lo aos jogos de futebol nos fins de

25
semana, assim como aos campeonatos de judô dos quais participava. Denise aponta, da
mesma forma, um controle cerrado de seu namorado, que no entanto se encontrava com
outras mulheres. Na linguagem das mulheres cariocas, os machistas são os homens que
querem controlar as mulheres, escapando, eles mesmos, de qualquer controle. Às vezes os
parisienses descrevem as mulheres como uma caça. Mas esses comportamentos não são
generalizados: os homens franceses não têm o sentimento de uma exterioridade em relação ao
mundo das mulheres. Quando apontam uma distância referem-se sobretudo a características
individuais (diferença de idade, afastamento geográfico, diferença cultural). Por sua vez, as
mulheres tendem a psicologizar e a individualizar as dificuldades encontradas com os parceiros,
mais do que atribuí-las à natureza masculina.
O contato entre homens e mulheres pode seguir vários caminhos, percorrendo diferentes
etapas. Na aproximação corporal as palavras contam pouco: troca de olhares e sorrisos e
depois a aproximação. O depoimento de João Manoel sobre a primeira relação, aos 17 anos, é
um bom exemplo. Logo no início do namoro, durante um ou dois meses, ele teve uma vida
sexual intensa e variada, descrita de forma precisa: “Era só questão sexual mesmo, questão
mecânica, física, a gente trocava muito poucas informações. Era só ‘legal, vamos?’, ‘agora,
isso’... Aí depois de um certo tempo isso foi se acalmando um pouco, a gente extravasou
demais”. Somente após uma fase intensa ele começou a conversar mais com ela e se
aproximar no plano sentimental. É neste momento que ele aprende gestos conjugais como
andar de mãos dadas na rua ou abraçá-la. O jovem entrevistado passou por um verdadeiro
processo de educação sentimental no contato com a sua namorada. Entretanto, esse caso é
excepcional. A opinião geral é que os homens cariocas falam pouco, ainda que sejam ativos
sexualmente. Natália declara sobre seu segundo namorado: “Ele falava pouco e fazia muito.
Acho que ele era um cara reprimido. Conversar sobre sexo com ele também foi complicado. A
gente praticava muito, mas conversa, não”. Ela não ousava lhe falar de várias insatisfações que
experimentava em seus encontros sexuais. Nélio diz que sua namorada, que ficou grávida dele,
o censurava por “não prestar nenhuma atenção nela”, “não ter nenhum sentimento”. Esse
leitmotiv das mulheres brasileiras não tem equivalente na França, onde a aproximação entre os
parceiros se faz de maneira marcadamente verbal.
Nas entrevistas parisienses menciona-se freqüentemente que as conversas entre os parceiros
tiveram um papel importante no período inicial de relação. Patrice encontrou sua primeira
namorada em um longo trajeto a pé em Londres: “Foi muito bom, e nós nos contamos nossas
vidas”. Eléonore menciona as longas conversas telefônicas que mantinha com seu “amor
platônico”; mais tarde ela menciona que o homem com quem viveu quatro anos “conseguiu
seduzi-la com seu discurso, sua forma de falar. Ele não estava me paquerando, estava falando
dele, era muito sincero, muito honesto, ele não jogava”. À aproximação verbal pode-se associar
o contato epistolar, que encontra sua razão de ser no fato de que muitas das primeiras
histórias de amor na França contemporânea se travam em locais de férias, o que reúne pessoas

26
afastadas geograficamente. Os encontros em locais de férias acontecem às vezes entre pessoas
cujas residências são afastadas. Frédéric, que mora em Paris enquanto sua namorada mora em
Toulouse, afirma: “É uma história que se tornou progressiva através de cartas. No início,
quando eu voltei, a gente se escrevia uma vez por semana, depois passou a ser muito mais
regular, duas ou três vezes por semana, até praticamente todos os dias. Havia um intercâmbio
importante com relação às nossas idéias políticas. No início trocávamos idéias sobre as coisas
que se passavam no momento. Durante três meses nos correspondemos assim. E essa
correspondência foi se tornando mais e mais insistente sobre amor. Nós nos seduzimos pela
escrita. E quando ela chegou de férias sabíamos que aquilo se concretizaria em alguma coisa”.
A aproximação verbal é mais freqüente que a epistolar, mas ambas são formas de aproximação
indireta: cada um fala de si, de suas idéias e gostos, antes de falar de amor. A comunicação
verbal tem importância na seqüência da história do casal. Inúmeras discussões e conversas são
relatadas. As parisienses reclamam menos do que as cariocas de homens que não falam ou
com quem é impossível conversar sobre sexo ou sentimentos. Entretanto, os homens
assinalam, quando experimentam rupturas no início de sua vida amorosa, uma certa dificuldade
de falar com sua parceira, como se falassem apenas quando tudo ia bem.
A aproximação corporal, que pode ser considerada uma comunicação por meio dos corpos, se
distingue por seu imediatismo, mas também por sua ambigüidade: é sempre difícil saber se os
gestos consumados implicam um compromisso mais durável ou um sentimento. Isso explica o
desejo das mulheres de que o contato corporal esteja associado a uma comunicação verbal.

Conclusão

Na iniciação amorosa no Rio de Janeiro, dois traços característicos, que não entram em
contradição, são observados: a extroversão dos corpos, no contato, e o peso do controle do
grupo (familiar ou de pares). A possibilidade de uma aproximação física direta, utilizando o
olhar e o toque, mais do que a mediação pela linguagem, aparece como um elemento
distintivo: esta possibilidade é levada ao extremo entre as gerações recentes, no
desenvolvimento das relações do tipo “ficar”, que tem como característica não necessitar de
nenhuma troca verbal. Quando os cariocas relatam seus namoros “castos”, a riqueza
surpreendente das descrições e dos termos empregados sugere uma grande atividade dos
corpos nessa fase de constituição do casal: o tipo de gesto e de contato codifica precisamente
a progressão da intimidade. Uma vez havendo atividade sexual, os relatos (dos homens e das
mulheres) fornecem detalhes concretos, o que contrasta fortemente com o caráter indireto e
metafórico da abordagem do sexo nos relatos franceses. Essa maneira de abordar o sexo sem
rodeios está diretamente relacionada à importância primordial que os cariocas reconhecem que

27
ele tem no desenvolvimento e na manutenção de uma relação amorosa; comparativamente, os
parisienses lhe concedem uma importância menor.
A expressividade dos corpos não se desenvolve em um universo sem restrições: o olhar e o
controle dos outros estão bem presentes, avaliando as condutas conforme os padrões de uma
moral relacional pregnante. As relações amorosas apresentam uma organização estruturada: o
namoro. O namorado (a namorada) deve ser apresentado(a) ao grupo familiar e de amizade e
aprovado por este. A conduta dos namorados é (mais ou menos) diretamente controlada. Em
um contexto social em que os papéis de gênero são claramente delimitados, a coação pesa
mais sobre as mulheres. Assim, a perda da virgindade continua a ser considerada uma
passagem essencial que faz que a mulher mude de status social.
No início deste artigo nos perguntávamos, na linha de trabalho de Norbert Elias, sobre as
formas particulares dos processos de modernização dos costumes fora da Europa. No
pensamento social brasileiro o país foi descrito como uma sociedade “cordial”39. O tipo ideal de
“cordialidade”, que se opõe ao da civilidade de Elias, designa um modelo de sociedade no qual
as relações pessoais, a proximidade e a autoridade familiar patriarcal funcionam como
elementos estruturantes do campo social. Essas análises dirigiam-se a uma sociedade que
desapareceu, em razão da urbanização e das novas diferenciações sociais introduzidas.
Contudo, o processo de modernização dos costumes foi construído, no Brasil, sob o
fundamento de comportamentos herdados dessa organização relacional e hierarquizada da vida
social, ao passo que em uma sociedade como a França a instauração da civilidade
acompanhava o desenvolvimento da “individualização”40. Formula-se aqui a idéia de que os
comportamentos observados no Rio de Janeiro em termos amorosos corresponderia a um tipo
moderno de cordialidade, e não a uma civilidade européia. Trata-se assim de preservar na
análise as diferenças expressivas41 que opõem dois estilos civilizatórios.
A essa “cordialidade moderna” somam-se o papel e a expressividade do corpo nas relações
interpessoais (das quais fazem parte as relações amorosas), que funcionam como um operador
de contato. Mais do que uma troca de palavras, a expressividade dos corpos introduz um jogo e
um movimento dentro de um sistema social potencialmente rígido. No domínio amoroso, em
que a força dos papéis de gênero não facilita o estabelecimento das relações, os contatos
corporais, mas também as trocas de olhares e sorrisos, funcionam como uma linguagem prática
e sutil, assinalando o estado das relações e operando as aproximações: os atores dominam o
sentido relacional de seus atos físicos ou corporais, sem ter necessidade de traduzi-los em
palavras. O caráter físico dos primeiros contatos não acelera forçosamente a passagem ao ato
sexual, dado que as mulheres controlam estreitamente o ritmo da aproximação. O contexto

39
Freyre, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933;
Buarque de Holanda, Sérgio. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.
40
Elias, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
41
Souza, Jessé. “Elias, Weber e a singularidade brasileira”. In: Waizbort, Leopoldo
(org.). Dossiê Nobert Elias. São Paulo: Edusp, 1999.

28
restrito do namoro e o autocontrole das mulheres fazem que a expressividade dos corpos não
reflita um panorama desgovernado de império das pulsões.
Na França, em paralelo à atividade sexual e aos contatos corporais, a troca verbal entre
cônjuges e namorados é bastante praticada e valorizada socialmente, ao passo que os jovens
casais brasileiros raramente relatam longas conversas entre eles. O aumento do componente
verbal nas trocas amorosas é um dos resultados do processo de civilização e sinaliza um alto
grau de controle das emoções e o avanço da reflexividade. Entretanto, tais características não
têm como efeito retardar a passagem ao ato sexual, que se opera rapidamente no curso de um
relacionamento na França42. Esta sexualização rápida das relações amorosas pode ser
interpretada como elemento de uma segunda fase do processo de civilização, marcada pelo
afrouxamento dos constrangimentos exteriores (a prescrição da continência sexual), uma vez
que os indivíduos incorporaram suficientemente o autocontrole social43.
Nos dois países, o laço particular entre o gênero feminino e a afetividade se exprime nas
demandas feitas ao gênero masculino. No Rio de Janeiro, as jovens não rejeitam a
corporalidade dos contatos, mas demandam que seja acrescida por palavras e gestos
“conjugais”, para além da atividade sexual. Em Paris, as jovens solicitam igualmente palavras e
gestos de compromisso sentimental. Mediante a demanda por uma expressão de sentimentos e
de ternura nos gestos, aos quais alguns homens são sensíveis, elas sinalizam para uma nova
etapa civilizatória dos costumes amorosos.

Recebido para publicação em 17 de janeiro de 2001.

Michel Bozon é sociólogo e diretor de pesquisas do Institut National d’Études Démographiques


(Paris). Maria Luiza Heilborn é antropóloga e professora do Instituto de Medicina Social da
UERJ.

42
Bozon, “La nouvelle place de la sexualité...”, loc. cit.
43
Kaufmann, op. cit.

29

Vous aimerez peut-être aussi