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Capítuo 3 – Recepção e artisticidade

3.1 – Os limites do jogo poético (p. 2)


3.2 – Experiência estética e recepção (p. 12)
3.3 – Recepção e sensibilidade (p. 23)

VALVERDE, Monclar. Estética da Comunicação. Salvador: Quarteto, 2007 (p. 117-171).


3.1 – Os limites do jogo poético

A formatividade do processo artístico

Do ponto de vista de sua produção, a tradição ocidental concebeu a arte,


sucessivamente, como construção, como conhecimento e como expressão. A discussão
estética do século XX tende a aproximar esses três modos de compreensão do processo
artístico, e a teoria desenvolvida por Luigi Pareyson chega a aproximar esses três sentidos,
através do conceito de formatividade, pelo qual a artisticidade de uma obra remeteria, antes de
tudo, à formação do modo de formar segundo o qual ela foi produzida.
De maneira sucinta, pode-se dizer que, no mundo arcaico, a techné estava associada à
habilidade no fazer, a um certo desempenho e, portanto, era vista segundo o prisma da
atividade produtiva envolvida em sua construção. Na Antiguidade clássica e no Renascimento,
ela é vista predominantemente como mimesis, como imitação ou cópia, como representação de
uma realidade anterior e exterior à própria obra, estando, portanto, associada a uma forma de
conhecimento. E, desde o Romantismo, a arte é vista como expressão de uma subjetividade,
como uma forma de manifestação que estaria tonalizada basicamente pelos afetos, pela
dimensão emocional da condição humana.
Na atualidade, reconhece-se que as práticas criativas da cultura parecem envolver
todos os aspectos assinalados, embora em um sentido distinto. Se a arte é construção, isso não
significa que ela seja uma prática exclusivamente ativa, imune a toda passividade e
inteiramente voltada à tarefa de dominar, de maneira meramente instrumental, uma natureza
absolutamente inerte, porque, em qualquer produção, o agente sofre continuamente o efeito de
sua atuação e a continuidade de sua própria ação depende de um feedback, através do qual o
artista é afetado, como receptor, por sua própria atividade.
Esta concepção da atividade mostra que o paradigma dualista é um meio precário para
a compreensão de fenômenos complexos, como a experiência estética, pois submete a
experiência a uma polarização que opõe sujeito e objeto como instâncias isoladas,
respectivamente condenadas à atividade e à inércia, à transcendência e à imanência, à
transparência e à opacidade. Não se pode conceber o fazer como uma atividade meramente
positiva, de simples acumulação de gestos, porque a ação só vem a ser configuradora, à
medida que modifica uma condição prévia. Toda ação é histórica e opera também como uma
resposta a algum tipo de interpelação.
Por outro lado, se associamos a arte ao conhecimento, é preciso livrar este conceito da
cristalização a que foi submetido na idéia moderna de “representação”. Os filósofos da
Modernidade conceberam o conhecimento do mundo como a representação que o homem
constrói da realidade exterior na sua consciência, e, do ponto de vista da imagem, a pintura do
Renascimento foi talvez a arquetípica tradução formal dessa concepção, pelo cuidado com a
representação figurativa e pelos recursos criados para projetar numa superfície plana a
realidade tridimensional.
Para o pintor de então, estava claro que tal representação não se reduzia a uma simples
reprodução do mundo visível, mas ficamos tão acostumados com os truques da geometria
perspectiva que chegamos a acreditar que a própria visão obedece a suas leis, o que, de fato,
não acontece, já que temos dois olhos, situados num corpo que se move, e a perspectiva
geométrica é a invenção de um olhar monocular, fixo e descarnado. Nossa relação efetiva com
o mundo é uma experiência da profundidade, enquanto a perspectiva é uma operação em que
as distâncias relativas são representadas, no plano, pela diferença de tamanho entre as figuras,
causando a impressão de profundidade. Ou seja, a perspectiva é uma invenção técnica capaz
de simular a profundidade do mundo exterior, numa representação plana.
Tudo isso é muito conhecido, mas estamos de tal maneira familiarizados com a
representação figurativa que resulta desse procedimento, que concebemos espontaneamente a
nossa própria apreensão visual do mundo segundo os moldes dessa representação, acreditando
que perceber o mundo é o mesmo que tê-lo representado numa imagem plana projetada na
retina e decifrada em algum lugar do cérebro. Isto supõe uma vez mais aquela dicotomia que
separa homem e mundo, para aproximá-los mediante essa idéia de uma representação do
mundo pelo homem. Mas o mundo não está diante de nós, o mundo é o que está em torno, é
uma realidade tridimensional que nos inclui e, nesse sentido, se o representamos
bidimensionalmente, essa representação é uma redução da complexidade do universo
circundante, para efeitos de apropriação e dominação.
Numa análise etimológica da palavra “conhecimento”, revela-se um sentido que, nos
idiomas modernos só se mantém evidente na língua francesa, na qual a expressão
connaissance sugere que o “conhecimento” seja algo como um co-nascimento, um nascimento
simultâneo. Conhecer algo seria nascer para o que se conhece, na medida e no momento em
que aquilo se revela; seria um advento conjunto e recíproco de sujeito e objeto. Não haveria,
assim, duas substâncias dadas e separadas, um sujeito e um objeto previamente constituídos,
que se encontrariam e se corresponderiam, pela adequação entre a coisa e sua representação.
Pensando dessa forma, podemos recuperar o sentido da arte como conhecimento, como
advento de uma verdadeira relação entre sujeito e objeto ou como essa relação de advento
recíproco, como co-nascimento, origem comum. E isso é válido tanto para o espectador, que
sai transformado pela experiência estética proporcionada pela obra, renascendo como sujeito,
a partir desse encontro quanto para o artista, que nasce para a obra, enquanto se capacita a
executá-la, na medida mesmo em que ela surge como fruto do seu trabalho de elaboração.
Do mesmo modo, podemos livrar o conceito de expressão da conotação romântica, em
que ele é visto como simples manifestação: a exteriorização de uma subjetividade
naturalmente privilegiada. Hoje, entendemos que o sujeito é indissociável de sua expressão,
que se reconhece nela e através dela se constitui. Ninguém sabe exatamente o que vai dizer,
quando inicia um diálogo, pois quase nunca sabe antecipadamente como vai dizer o que quer
dizer, e só o descobre à medida que fala. Ao mesmo tempo, esse discurso é modulado pelo
contexto, pela relação entre os interlocutores, por seus interesses e intenções. A expressão não
pode ser, portanto, reduzida a uma simples manifestação da subjetividade de uma pessoa, pois
efetua uma transição dinâmica entre as tendências profundas e as marcas superficiais que
constituem o sujeito concreto de um determinado modo.
Mas falar dessas tendências “profundas” não nos remete necessariamente a uma
obscura esfera de interioridade individual. Se a expressão pode ser vista como a tradução de
uma força numa forma, essa força não remete apenas a uma capacidade individual, mas
também à potência e às possibilidades de um determinado modo de ser, que é impessoal e que
se compartilha nas formas simbólicas da cultura. Desse ponto de vista, nossa “disposição de
espírito” é simultaneamente herdada e exercitada por nós, enquanto sujeitos; é uma força que
estabelece e reitera os quadros da nossa experiência: seus limites e possibilidades. Isso remete
ao pathos que está na origem de toda experiência, pois, quando experimentamos algo, nós o
fazemos sempre de um determinado modo, e nossa recepção dos acontecimentos e das obras
está submetida a padrões que resultam da ação de forças anônimas, que nos arrebatam e nos
colocam em uma certa disposição prévia. Assim, a própria expressão está ligada a um
padecimento, não no sentido de sofrimento e infelicidade, mas no sentido de que a própria
experiência é vivida segundo o modo como somos afetados originariamente pela disposição
vigente em nossa cultura, sedimentada em nossas formas de ver e agir e dizer.
Portanto, podemos reconfigurar nossa idéia de arte, entendendo que ela é construção,
conhecimento e expressão (num sentido agora distinto do habitual) e que, sendo essas três
coisas, ela pode ser vista, sinteticamente, como uma atividade formativa. Dizer, pois, com
Pareyson, que a arte é formatividade, equivale a dizer que ela é, num sentido radical, invenção,
ou seja, um tipo de ação que não apenas executa uma idealização prévia, mas que, ao produzir
um objeto, cria, antes, o modo de produzi-lo, produzindo também o produtor, naquilo que lhe é
mais próprio: o seu estilo. A artisticidade própria das obras de arte estaria nessa criatividade
em segundo grau, embora se possa reconhecer a artisticidade de atividades em que não se dá a
produção do seu modo de produção.
Todavia, o reconhecimento dessa qualidade não significa a priori uma equivalência
entre as obras: o valor de cada uma delas está ligado a sua capacidade de impor-se por si
mesma como forma – o que, nos termos de Pareyson, “realiza aquela especial adequação de si
consigo que caracteriza o puro êxito” (1989, p. 139). Reconhecido como belo pelo fruidor,
esse êxito é experimentado pelo criador como acabamento, perfeição, síntese e inclusão do
processo de formação no próprio resultado, pois “o processo artístico consiste precisamente no
acabar, no levar a termo, no fazer amadurecer; em suma, no perficere” (p. 147).
O “êxito interno” de uma obra determinada está vinculado também aos êxitos de um
gênero ou de um estilo e depende, portanto, de uma feliz correspondência entre os
enquadramentos formais estabelecidos pela norma poética adotada pelo criador – de maneira
inconsciente ou programática – e os padrões genéricos a que o próprio criador, enquanto
receptor, está submetido, segundo os hábitos cristalizados nos formatos vigentes.
A condição de possibilidade desse êxito artístico (e também de sua eficácia) é, pois, o
solo comum da experiência estética, que aproxima criador e fruidor, à medida que ambos se
deparam com a resistência que a matéria (ou a obra) opõe a sua ação (ou interpretação). Além
disso, esses dois agentes têm muito mais em comum do que uma polarização superficial pode
sugerir. Se o fruidor interpreta a obra acabada, o criador precisa igualmente “interpretar” a
base física e cultural da qual se apropria como matéria-prima, antecipando e concretizando
suas possibilidades formais. Do mesmo modo, se o criador é o primeiro espectador dos efeitos
dos seus atos, o fruidor é convocado, por sua vez, a reagir aos estímulos que a obra lhe envia,
“executando-a” para realizá-la.
Do ponto de vista poético, essa resistência da matéria-prima faz a “criação” oscilar
entre a liberdade e a obediência, a incerteza e a impossibilidade, a inspiração e a obstinação,
manifestando-se igualmente através da tensão entre o processo de trabalho e o seu resultado,
naquilo que a estética da formatividade concebe como “a dialética entre a forma formada e a
forma formante”: a correspondência dinâmica entre imagem imaginada e imagem figurada; a
constituição recíproca de ato e efeito, descoberta e reconhecimento, desempenho e apreciação.

A criação artística como diálogo

Tudo o que dissemos até aqui mostra que, mesmo quando analisamos a experiência
estética apenas do ponto de vista da produção artística, não podemos mais conceber a própria
ação criativa como fruto exclusivo da atividade de um sujeito que seria sempre a fonte de toda
a iniciativa. Se a criação é uma aposta singular, é igualmente uma resposta aos desafios
materiais e aos apelos culturais e históricos.
Baseando-se em Huizinga, Pareyson mostrou, com muita propriedade, o papel
fundamental do elemento lúdico no investimento formativo. O processo de criação, enquanto
tal, é visto como um jogo, o que significa dizer que ele é afetado pela incerteza das condutas,
mas está igualmente submetido a uma certa ordem de convenções; e essa dialética entre
regularidade e indeterminação é o que garante simultaneamente sua riqueza e sua solidez.
Certamente, do ponto de vista dinâmico, o jogo é um palco para tensões que podem traduzir a
simples diferença, o conflito ou a sedução, que, do ponto de vista expressivo, podem-se
traduzir numa brincadeira solitária, numa disputa amistosa ou numa atraente provocação; mas,
mesmo em sua condição de atividade estruturante, desenvolvida em função da aposta numa
expectativa de desdobramentos futuros, todo jogo é um comportamento estruturado a partir do
que foi feito no passado. Desse modo, ao encarar a criação como jogo, estamos admitindo que
as estratégias da invenção artística são indissociáveis da obediência a certos padrões de
regularidade, representados por suas regras estilísticas.
Mas o jogador não carrega essas regras consigo, como um estandarte, como um
repertório de que tenha consciência o tempo todo; ele as apreende e as assimila em seus
procedimentos, de modo que, ao produzir uma obra, está empenhado apenas no objetivo
estratégico de expressar algo através de seus “lances”, sem pensar nas regras, mas sem deixar
de respeitá-las, porque elas foram adotadas por ele, como balizas para seu modo de atuação; e
quanto mais experiente for, mais essas regras estarão incorporadas, e mais espontâneo será o
seu desempenho produtivo. Ao mesmo tempo, é possível alterar as próprias regras, com o fim
de ampliar os limites dos lances que o jogo propõe, de modo que, se nenhum jogador admite
que as regras do jogo sejam mudadas durante uma partida, todos sabem que, com o tempo, as
jogadas inovadoras transformam-se em procedimentos sistemáticos e recorrentes, e podem
gerar novas regras, o que acontece também no jogo mais universal, que é o jogo da linguagem.
Neste último caso, obedecemos o tempo todo à regularidade gramatical, somos
submetidos às regras da sintaxe e, no entanto, ninguém pensa nessas regras ao falar, ao
entregar-se à conversação. A nossa fluência advém do fato de que essas regras foram
incorporadas por nós paulatinamente e nos entregamos à fala de um modo aparentemente livre
de qualquer legislação. Num primeiro momento da aprendizagem e da socialização, o
desrespeito às regras é punido como erro e inadequação, mas à medida que alguém se desvia
de algumas regras, em função de uma efetiva necessidade de expressão, fazendo com que seu
desvio seja partilhado por outros, seu “lance” pode passar a constituir também uma regra.
Quando um poeta introduz um neologismo ou um modo de falar que é repetido e retomado por
outros, ele introduz na língua, através de sua intervenção singular, algo que assume um papel
estrutural, mas isto não depende apenas de uma decisão sua.
Com isso, damo-nos conta da necessidade de relativizar a interpretação que trata a
experiência artística apenas do ponto de vista da atividade de produção, dos procedimentos
que um autor adota na concepção e execução de suas obras. Além de estar submetido a
condições que não determina, o autor não é onisciente em relação a esses procedimentos e
seus resultados. Ele não sabe exatamente o que vai fazer, ele só o descobre fazendo e depois
de ter feito, depois que aprende a tratar as condições de trabalho como meio de expressão; e
nisso ele se descobre também, liberando nuanças da sua personalidade que permaneceriam
ocultas se não se manifestassem através da obra.
Nesse sentido, é importante ressaltar que os procedimentos adotados por um autor, na
realização de seu trabalho, estão associados a critérios e a escolhas que ultrapassam a esfera
idiossincrática da sua subjetividade. Concebendo a arte como jogo, percebemos a criatividade
artística como uma força que resulta da tensão entre o padrão e o desvio. Todo processo
simbólico, todo processo em que a configuração de signos ou elementos plásticos visa à
construção de um sentido partilhado, só é possível através do permanente confronto e
combinação entre o regime espontâneo de uma performance que assimila o acaso, a
circunstância e o próprio “erro”, e os quadros sistemáticos, regrados e estruturais, que
restauram continuamente a tensão entre diferença e repetição. Portanto, ao falar das formas de
expressão cultural como “criação”, não devemos supor, apressadamente, que um desses dois
aspectos do processo simbólico deva ser privilegiado. Ao contrário do que prega o discurso de
vanguarda, o sentido não vem apenas da diferença, mas do rebatimento do desvio sobre os
padrões de repetição. Cada lance no jogo entre o outro e o mesmo parte de uma condição
prévia, que se atualiza uma vez mais frente a cada desvio.
De maneira geral, as possibilidades de fazer valer e expandir nossa singularidade são
limitadas e qualificadas pelos modos de visão, disposição e compreensão que herdamos de
nossos pais e legaremos aos nossos filhos, graças justamente a nossa atuação desviante e, não
obstante, recorrente. É fácil perceber que, se fizermos uma anamnese da nossa vida, da nossa
experiência, nós poderemos retroceder a camadas cada vez mais primitivas, em nossa
formação psicológica ou na formação cultural de nossa sociedade, mas jamais conseguiremos
chegar a um instante originário. É característico da experiência simbólica o fato de que não
exista o grau zero do sentido, ou, dito de outro modo, que não seja concebível um estado de
experiência nula, pois, à medida que somos acolhidos numa convivência coletiva, segundo
padrões simbólicos prévios, antes mesmo que possamos desempenhar qualquer papel que nos
proporcione uma experiência própria, já estaremos partilhando os formatos e os padrões da
experiência vigentes em nossa cultura.
Caminhando na direção oposta e tendo em vista o desenvolvimento de nossas
“faculdades superiores”, ainda seremos obrigados a admitir que, mesmo as nossas opções mais
racionalmente fundadas, têm também um fundo obscuro que é exatamente o horizonte de
nossa cultura, que nós não escolhemos, que nós não adotamos por meio de uma opção
temática, como se tivéssemos possibilidade de eleger os nossos valores. Os valores são
exatamente os padrões de julgamento que nós acionamos diante das obras e das coisas, mas
que nunca aparecem para nós como coisas ou obras e nunca se apresentam diante de nós.
Dessa forma, raramente temos em vista os valores que nos instruem em nossas opções, porque
eles funcionam para nós como uma ambiência simbólica e afetiva que possibilita as nossas
escolhas, mas não está entre as escolhas possíveis.
Do mesmo modo, nós não podemos escolher e nem podemos nos desvencilhar
completamente dos nossos preconceitos. Sobre esse ponto, aliás, talvez seja oportuno lembrar
aqui a observação de Octávio Paz, para quem o grande preconceito da época moderna foi
justamente o preconceito iluminista contra o preconceito, materializado na idéia de que a
ciência se faz contra o senso comum. Esta idéia, que penetrou no próprio senso comum, vem
sendo abandonada na prática científica de fronteira, para dar lugar à constatação de que não se
pode fundar logicamente o discurso lógico e não se pode fundar racionalmente o discurso
racional, pois, em última instância, eles dependem de certos padrões culturais e institucionais,
de certos modos de experiência do mundo, que não podem ser reduzidos a um simples modelo
intelectual.

Jogo poético e enquadramento estético

A utopia “vanguardista” lança o artista num estado paranóico, porque lhe impõe a
obrigação de se afastar de si mesmo todo o tempo, para impedir a sedimentação de um
“identidade” definitiva. Para escapar da cristalização, ele tem que se tornar um mutante
obsessivo, um verdadeiro transformista, que deve continuamente produzir revoluções
sintáticas no seu próprio discurso ou subverter as regras do seu próprio estilo. Ele vive num
regime de insegurança premeditada, tentando alcançar a originalidade absoluta, buscando a
novidade pela novidade, o efeito do choque, o efeito do escândalo. Isso, de certa maneira,
comprometeu a expressividade da arte de vanguarda: a busca desmesurada da originalidade,
da novidade, do efeito de estranhamento. E, paradoxalmente, isso também a aproximou de seu
gêmeo antípoda – o kitsch –, pela busca de um efeito facilmente previsível, embora de
natureza contrária.
A arte e a comunicação, com as devidas proporções, são simultaneamente
estranhamento e reconhecimento, porque não se pode experimentar o estranhamento enquanto
tal, a não ser no abismo da angústia existencial. Numa atividade qualquer, é preciso ter a
referência de um padrão, para poder-se desviar dele. O sentido da palavra tradição é, na
verdade, o de um movimento complexo, capaz de reproduzir um quadro de referências,
assimilando as inovações mais diversas. A tradição não é o monolitismo de um conjunto de
valores que se impõem pela força, de cima para baixo, de maneira unilateral. Ao contrário, ela
é essa capacidade de pôr em movimento o jogo simbólico a partir de determinadas regras,
constituindo um sistema capaz de assimilar a aparição a desaparição e os desvios, sem perder
sua estrutura.
Neste sentido, a nossa época conquistou, por assim dizer, uma serenidade
hermenêutica em relação ao passado recente. A tradição não mais nos ameaça, no sentido de
ser uma imposição ou uma interdição; pelo contrário, ela nos motiva a permanecer ativos
dentro dos costumes estabelecidos e nos desafia a produzir essa singularidade e essa diferença
que nós somos, sem ter necessariamente que romper (ou proclamar a ruptura) com todos os
padrões vigentes. Por isso, ainda continua sendo mais desafiador e instigante, para o poeta,
compor um bom soneto do que simplesmente adotar o verso livre e escrever um poema sem
rima e sem métrica. É mais complexo e interessante responder com originalidade aos desafios
de uma velha regra, do que instaurar ou adotar uma regra nova, sem grande alcance, apenas
para se tornar o senhor do seu próprio gênero.
De certo modo, uma parte muito grande da “arte moderna” está marcada por esse
procedimento: o artista instaura uma sintaxe própria e, nela, impõe-se como mestre absoluto,
já que, como seu inventor, tem maiores chances de se mover com agilidade, segundo uma
gramática que, no entanto, só concerne a ele e ninguém mais reconhece como regra. É muito
mais fácil fazer as coisas dessa forma e a criatividade, nesse caso, transforma-se em um
expediente ardiloso e egocêntrico. O velho desafio continua sendo o mesmo, para todo artista:
ser expressivo a partir do formato, da estrutura e das formas dadas, até esgotá-las, e não se
deixar levar precocemente por essa obsessão de produzir uma nova sintaxe a cada obra, como
artifício para distinguir-se radicalmente dos seus contemporâneos e alimentar a presunção de
pertencer ao mundo futuro.
Com isso, evidentemente, não se está condenando a busca da originalidade, mas, sim, a
presunçosa ilusão de se poder ser voluntariamente extemporâneo, sendo “absolutamente”
original. Todo grande criador é obrigado, pelo simples desenvolvimento de sua busca
expressiva, a ultrapassar os limites normativos de sua própria poética, mas ele faz isto
espontaneamente, por um desdobramento necessário de seu percurso, acabando por assumir,
em relação aos procedimentos ou recursos materiais empregados em sua atividade criadora,
um papel inovador, sem precisar adotar explicitamente um programa ou uma pose de
vanguarda.
No que diz respeito a esse último aspecto, aliás, não se pode deixar de mencionar a
verdadeira histeria provocada, em nossa época, pela adoção da tecnologia eletrônica e digital
no processo artístico. Há artistas e teóricos que supõem que esta tecnologia introduziu padrões
tão distintos na operatividade humana, que estabeleceu a possibilidade de configurações
absolutamente originais, situados totalmente além de todas as expectativas. Em função disso,
temos testemunhado, não só na mídia, mas também na esfera da cultura artística e mesmo
acadêmica, uma verdadeira mistificação das questões postas pela atualidade, um certo
deslumbramento e até mesmo uma “nova” fetichização da tecnologia.
Do ponto de vista da experiência estética, o procedimento construtivo enquanto tal é o
que menos importa, se não se tem em mente os resultados, os efeitos e o grau de vigência de
uma determinada obra. A tecnologia digital, como qualquer tecnologia, traz diferentes
instrumentos, que permitirão produzir obras cujo resultado, no entanto, precisa ainda ser
fruído por alguém. Nesse sentido, é completamente ingênua a dicotomia entre átomos e bits,
essa idéia de que tínhamos vivido até hoje no universo dos átomos e hoje passamos a viver no
universo dos bits, das configurações numéricas, submetidas a algorítimos lógicos. É preciso
não esquecer que a base da experiência estética é a forma, cujo regime de funcionamento é
irredutível ao seu modo de produção. Se olhamos uma imagem na página de um livro ou na
tela de um computador, o que vemos é uma figura, e não dígitos ou átomos.
Não deixa de ser chocante ler, em certos textos sobre cibercultura e arte eletrônica, que
a criação de imagens digitais é uma atividade intelectual, porque processa informações. O
artista (ou o webdesigner) configura formas e mesmo que utilize algoritmos numéricos como
instrumentos para produzí-las, ele toma suas decisões sobre a construção de uma imagem a
partir do que vê numa tela. Suas escolhas são, portanto, baseadas na percepção, e não na
racionalidade de uma fórmula abstrata ou na suposta objetividade de uma tabela de valores
numéricos. Excetuando o caso da geometria fractal, na qual não ocorre exatamente a produção
de formas, mas a tradução visual de processos numéricos iterativos e automáticos, o artista
não cria formas escrevendo equações; além disso, ele continua a acionar a sua sensibilidade
para decidir se uma obra está pronta, assim como o espectador continua a depender dos
próprios olhos e dos próprios valores para poder decidir se ela é bela, não importando se foi
formada por pixels ou pigmentos.
Equívoco semelhante, embora ainda mais grave, é o de supor que a cultura
contemporânea instaurou uma estética do fragmento, uma estética da fuga ou da desaparição,
por ser a época em que as formas de expressão dominantes no âmbito das poéticas
audiovisuais, auxiliadas pelo processamento digital da informação, apelam para a
fragmentação e a aceleração. A exigência básica da experiência estética é, e sempre será, o
critério da unidade, porque essa é também a exigência básica da percepção, em qualquer
experiência mundana. Perceber o mundo é viver a experiência da unidade na diversidade e
criar representações belas não é senão produzir essa unidade em termos expressivos.

3.2 – Experiência estética e recepção

Das “belas artes” à “arte digital”

Ao procurarmos refletir sobre o complexo percurso que leva das chamadas “belas
artes” às poéticas audiovisuais contemporâneas, a primeira dificuldade que enfrentamos diz
respeito ao uso da própria palavra arte. Será que podemos falar de “arte” ainda hoje, com
referência ao videoclipe, por exemplo, ou à canção pop que toca no rádio? Por outro lado, por
que, desde Hegel, fala-se da “morte da arte” e esse cadáver renasce sem cessar? Tudo isso não
traduzirá apenas nossa insegurança em relação a sua natureza?
De início, é necessário admitir que é pouco pertinente, hoje, conceber as práticas
expressivas de uma maneira unitária e uniforme, sem qualquer referência a seu caráter
específico. A rigor, deveríamos simplesmente evitar a utilização abstrata desse termo, pois a
“Arte”, neste sentido singular e maiúsculo, surgiu apenas com o nascimento do museu.
Como já foi assinalado (cf. especialmente DEBRAY, cap. V-VII), esta noção é uma
particularidade histórica da cultura européia moderna, já que a Antigüidade não conhecia “a
arte”, e os astros da cultura pop não fazem questão de utilizar esse rótulo para caracterizar o
seu trabalho. Ironicamente, os próprios publicitários, que receberam, sem pleitear, o título de
“verdadeiros artistas da sociedade de consumo”, recusam-se a considerar como arte as peças
que criam; pelo contrário, mantêm uma verdadeira cruzada contra essa interpretação “pouco
profissional” de sua atividade.
No entanto, na vida cotidiana, quando comemos uma comida feita com esmero,
dizemos que ela é uma “obra de arte”, da mesma forma que, no futebol, ao assistir a um gol
mirabolante, misto de ousadia e habilidade, nós dizemos que ele é “uma pintura!”. O que quer
que possa estar na origem dessa situação – que se caracteriza, por um lado, pela necessidade
de reconhecer a beleza dessas realizações (seu caráter “artístico”) e, por outro, pela virtual
interdição em chamá-las de “arte” – eis aí algo que parece difícil desvendar.
Quando Marcel Duchamp colocou um urinol numa galeria de arte, antes de estar
apenas praticando um ato de iconoclastia, estava talvez antecipando uma compreensão do
fenômeno artístico, como algo de natureza institucional. Não deveríamos, segundo esta
perspectiva, perguntar-nos “o que é arte?”, buscando identificar os atributos de um tipo ideal,
mas procurar compreender quando algo produzido por membros da comunidade é destacado
de todos os usos prosaicos e erigido em padrão de beleza digno de ser contemplado e cultivado
pelo grupo. O gesto de Duchamp serviu para sugerir que, se o museu é a instituição que diz o
que é e o que não é arte, tudo o que estiver no museu deverá ser considerado arte, porque o
que assegura o seu caráter artístico não é sua natureza substancial ou suas qualidades
intrínsecas, mas exatamente uma relação social que se encarna nessa instituição.
A radicalização modernista desta crítica às tradições acabou por inverter aquela
equação, recusando a autoridade dos salões e dos museus e proclamando a chegada de uma era
de anti-arte. Paradoxalmente, o desejo vanguardista de se colocar fora dos espaços
tradicionalmente reservados à arte, mostrou-se, a médio prazo, uma veleidade, à medida que
as instituições artísticas se apressaram em assimilar todas as atitudes pretensamente anti-
institucionais. À propósito, é muito interessante observar que propostas artísticas que
pretendiam colocar em questão os suportes tradicionais, como o “happening”, a
“performance” e a “instalação”, por exemplo, acabaram sendo considerados como formatos
plenamente aceitáveis pelas instituições que elas procuravam justamente questionar. Como já
se disse várias vezes, a ruptura com a tradição acaba instituindo outras tradições, mesmo que
sejam tradições de ruptura, que não deixam de se tornar institucionais por causa disso.
Desde que o cinema, depois da fotografia, obrigou os críticos a ampliarem seu quadro
classificatório das “belas artes”, para conceder-lhe o título de “sétima arte”, tornou-se
supérflua a preocupação em saber qual seria a oitava, a nona ou a décima arte, e nós passamos
a encarar com naturalidade o fato de não sabermos se um formato plástico como o videoclipe
se enquadraria nessa classificação, embora sejamos obrigados a reconhecer a sua qualidade
artística.
Um urinol no museu é uma obra de arte, mas em casa é um utensílio, e é aquele
contexto institucional que decide a questão, pois não existe uma substância artística que nos
permita identificar uma “obra de arte” com isenção e segurança. Mas tal conclusão não
deveria deixar-nos frustrados pela falta de garantias quanto a tais definições, pois, na verdade,
liberta-nos da angústia e da insegurança quanto ao que é ou não é arte… Independentemente
disso, continuaremos a correr o risco de julgar se algo é belo, quer os museus o aclamem, ou
não, como “arte”.
Segundo a estética da formatividade proposta por Luigi Pareyson, ao admitir que uma
obra é bela, estamos reconhecendo que ela é íntegra, que se sustenta, que sua elaboração
obedeceu a sua própria vontade, a sua própria lei, que conseguiu ir até o seu próprio limite e
impor-se ao próprio “autor” como um estilo de abordagem do material de que é feita. E é esse
seu êxito que nos faz reconhecer sua excelência e tomá-la como uma nova matriz de sentidos,
capaz de ampliar o horizonte da própria experiência ordinária.

Experiência estética e experiência artística

Pareyson foi, provavelmente, o primeiro estetólogo que freqüentou o ateliê. Talvez por
essa razão, elaborou uma teoria estética que não foi deduzida de princípios filosóficos gerais,
mas procurou penetrar no processo produtivo, tentando conhecer a relação que o artista tem
com o seu métier, bem como sua reação à resistência do material. Assim, ele escreveu um
texto de estética que o artista recebe muito bem. Contudo, se esse foi certamente um dos seus
principais méritos, foi também, provavelmente, sua maior limitação, porque, ao concentrar-se
no âmbito da criação, ele, que foi também um dos primeiros a assinalar a importância da
interpretação e da leitura da obra de arte, acabou interpretando a própria leitura segundo o
paradigma da produção.
A teoria estética dominante depois de Kant, voltada para as “belas artes” e guiada pela
concepção da criatividade como um dom de personalidades excepcionais, reduziu a
experiência estética à mera contemplação, considerando o fruidor como um coadjuvante
passivo, prostrado à frente da obra, à espera do milagre. Desse modo, a contemplação estética
foi associada a uma forma de inatividade, que correspondia ao oposto da ação.
O grande mérito de Pareyson e da estética ligada a ele – especialmente a esboçada por
seu aluno mais famoso, Umberto Eco – foi o de mostrar que a recepção estética é uma forma
de atividade: uma ação de leitura, interpretação e avaliação. A partir daí, tornou-se
fundamental para a investigação estética a compreensão da dimensão performativa da
recepção*.
Todavia, numa estética que, em meados do século XX, ainda tinha como referência o
círculo das formas tradicionais de manifestação artística, a ênfase na formatividade só poderia
desembocar numa disfarçada apologia da produção. Dessa forma, talvez inadvertidamente, o
próprio Pareyson, ao tentar descrever o regime da atividade do receptor, acaba caindo num
jogo especular e fazendo da prática receptiva o reflexo das práticas do produtor. Tal posição
está muito clara na dialética que ele propõe, ao descrever a relação entre o processo de
produção artística e a fruição que caracteriza a experiência estética, nos termos de uma
simetria entre o percurso do autor – que parte do projeto para a obra, ou da forma formante
para a forma formada – e o movimento do fruidor, que faz o caminho inverso, partindo da
obra, enquanto produto realizado, para penetrar na dinâmica do seu processo de configuração.
Essa idéia é interessante porque tenta sublinhar o caráter ativo da recepção, mas é frustrante
porque descreve a atividade típica do receptor nos termos da atividade do produtor, o que
significa, em última instância, denegar a especificidade da prática da leitura, não reconhecer
que ela tem uma particularidade, que exige uma abordagem própria e não admite ser tratada
apenas como uma imagem no espelho. Como Dufrenne já havia apontado, a sensibilidade é o
elo de ligação entre o artista e seu público, mas, enquanto o primeiro “pensa em termos de
regras e operações”, o segundo “pensa em termos de efeitos” (1981, p. 97). Existiria, pois,
uma diferença sutil entre a perspectiva do autor, para o qual a obra se impõe quando está
pronta e a do receptor, para quem a obra é bela quando se impõe.
Do ponto de vista da formação pessoal, a capacidade produtiva de alguém depende, em
grande medida, da sua habilidade receptiva, e, quanto mais ele for sensível a determinada

*
Ao mostrar que esta ação de leitura é uma prática social, a chamada estética da recepção – cujas teses
discutiremos mais adiante – viria complementar a estética da formatividade, pondo em relevo a dimensão
histórica da recepção.
forma de expressão, mais poderá instruir-se nela, mais possibilidades terá de penetrar na
dinâmica de sua produção. Indo mais além, podemos dizer que, de certo modo, a recepção é
mais abrangente e originária do que a própria produção, pois mesmo o artista tradicional tem o
seu primeiro aprendizado na experiência da fruição e não no treinamento formal. Alguém se
decide, por exemplo, a ser pintor, através da fruição da pintura e é aí que tem a sua introdução
ao universo pictural. Quando entra num ateliê para pintar, ele já fez, antes, várias escolhas, e
suas predileções tendem a se tornar regras de estilo, ainda que provisórias e não-conscientes. E
uma vez mais, no momento mesmo da conclusão de uma obra, quando tiver que decidir se ela
está pronta, será como receptor que tomará esse decisão.
Observa-se aí uma assimetria entre os processos de produção e de recepção, pois esta é
mais abrangente que aquela, uma vez que nem todos os homens se pretendem “autores” e
todos são, de certa forma, “leitores”. Provavelmente está aí a profunda verdade de toda a
problemática da recepção e da artisticidade, na época da reprodutibilidade tecnológica e das
sínteses digitais: numa situação em que as técnicas de produção e reprodução são
universalmente acessíveis, a autoria se transforma numa espécie sofisticada de leitura. Mas
talvez tenha sido sempre essa a condição de toda téchne.
Em última instância, seria necessário reconhecer que não só a experiência estética, mas
a própria comunicação cotidiana é, antes de tudo, um processo de recepção. Indo mais longe,
poder-se-ia mesmo dizer que não há sujeito da comunicação, pelo menos no sentido do sujeito
fundador da filosofia moderna, à medida que o “emissor” não é a causa da sua mensagem,
nem do sentido que se realiza na comunicação. Cada locutor que toma a palavra põe em jogo
uma série de mecanismos que ele não criou e uma série de processos dos quais ele não é a
origem; e, mesmo em situações muito concretas, quando parece que só ele pode ser a causa de
suas atitudes, certamente não poderá ignorar o papel da reação do seu interlocutor, na
configuração do sentido do seu próprio discurso, e não poderá jamais pretender ser a fonte das
estruturas que permitem que esse discurso seja pronunciado por ele e partilhado com os
outros.
Nesse sentido, a comunicação é um fluxo sem paternidade e cada interlocutor ingressa
numa corrente que o antecede e o sucederá. Cada locutor diz sempre mais do que diz e é
legítimo que as interpretações divirjam, justamente porque é próprio da palavra a polissemia, a
riqueza, a equivocidade, a capacidade, enfim, de abrir mundos, de gerar uma cadeia de
significações que faz deslizar os significantes em várias direções, permitindo que cada um
retome a palavra do outro e a leve a participar em diferentes jogos de linguagem,
independentemente da sua vontade e, mais ainda, livre do seu controle.
Está claro que o autor de um texto pode tentar legislar sobre as possibilidades de
superinterpretação que possam vir a ocorrer, especialmente se sua obra tiver caráter
discursivo, mas, em termos de expressão artística, e no que se refere aos aspectos plásticos,
esse controle é ainda mais relativo, à medida que as obras resistem à simples decodificação.
Por essa razão, seria inútil, para o autor, tentar estabelecer definitivamente o modo como se
deve interpretar uma obra que ele produziu num determinado momento. Não há como não
admitir que, uma vez tornada pública, uma mensagem ou uma obra não tem mais paternidade,
não pode mais ser remetida a uma origem, a uma causa, muito menos se essa causa for
concebida como esse centro psicológico que seria o autor. Mas como o leitor só se forma em
contato com várias gerações de obras, que citam e comentam outras obras, é totalmente
insatisfatório inverter simplesmente as coisas e passar a afirmar que o leitor empírico é o
verdadeiro sujeito da leitura.
Os hábitos mentais dominantes ainda hoje, herdeiros das tradições e instituições
modernas, enquadram a experiência estética a partir da produção artística e nós tendemos a
analisar o problema da arte a partir do exercício da atividade voluntária de uma subjetividade
especial, a subjetividade do autor, do criador, do inventor, do “artista”, chegando a tematizar a
própria experiência estética a partir das operações construtivas que o autor desenvolve ao
elaborar o seu produto. A exacerbação modernista desse ponto de vista leva-nos a uma atitude
que procura decifrar a experiência estética a partir de uma análise exclusivamente
procedimental daquelas operações que o autor aciona para produzir efeitos no seu público,
sem se dar conta propriamente do modo como esses efeitos se produzem ou do tipo de
dinâmica que eles envolvem. A discussão propriamente estética é, assim, rebaixada ao plano
poético e este último é reduzindo à mera descrição dos gêneros, modos e técnicas de
expressão.
Certamente, a crítica estruturalista já anunciou a morte do autor e o “fim” do sujeito,
mas apenas para proclamar o primado do texto, que passava, assim, a ser encarado como uma
espécie de sujeito hipertrofiado, capaz de conter, ao mesmo tempo, o autor e o leitor, ainda
que “implícitos”. Ao afirmar que a produção de sentido se dá na leitura e não na escritura, é
claro que nos afastamos do estruturalismo e também do paradigma semiótico, exatamente
porque este igualmente denega o aspecto de recepção que toda obra implica, permanecendo na
esfera da produção. Hoje já não acreditamos que tenha sentido tratar o texto como uma espécie
de arquétipo do seu próprio sentido. O sentido não é algo que esteja simplesmente embutido
nas obras e nas coisas, e se o próprio texto funciona como uma espécie de instrução a partir da
qual o leitor vai operar para produzir sentido, ele herda estas suas “estruturas de apelo” de
outros textos e outras experiências de leitura. Além disso, é esse mesmo sentido,
compreendido de maneira extra-textual, a partir do conjunto das interpretações a que o texto
esteve sujeito numa certa tradição, que vai, por sua vez, produzir o leitor e “sua” leitura.

Padrões culturais da recepção estética

Uma alternativa a esse privilégio do do autor, do texto e do leitor foi proposta, na


década de 60, na Alemanha, no âmbito de um movimento que se autodenominou estética da
recepção e que procurava reconhecer, na discussão estética relacionada ao campo da literatura,
a posição e a função da leitura. Com grande repercussão, Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser
denunciaram, em 1967, a história da literatura como “história dos autores”. Para eles, se a
literatura chega a ser um fato cultural de dimensão nacional, se ela plasma a língua em que
uma comunidade se reconhece e se ela fornece as figuras simbólicas e imaginárias com as
quais uma determinada comunidade elabora sua própria identidade, então não se pode pensar a
literatura a partir do ato idiossincrático de um autor isolado ou de um grupo de autores que
obedecem a um programa determinado.
A história da literatura deve explicar a sua vigência enquanto referência cultural, e a
reivindicação que a estética da recepção colocou em pauta foi a de que ela levasse em conta a
leitura e o leitor, enquanto agentes do acolhimento social que realiza a obra. Essa postura, a
princípio restrita à literatura, expandiu-se quase espontaneamente, de modo a abarcar outras
formas de expressão, a tal ponto que, hoje, temos plena convicção de que um empreendimento
expressivo qualquer não se completa no momento da sua conclusão, mas só se realiza de fato
quando faz sentido para alguém e torna-se parte de “sua” experiência.
Todavia, a experiência da recepção não se reduz à esfera dos atos individuais de um
receptor singular; é preciso considerar a dimensão social da experiência estética. E a primeira
coisa a observar é que o que nós chamamos de experiência não se reduz à vivência subjetiva,
psicológica, íntima, de um sujeito isolado. O que merece a designação de uma “experiência” é
toda vivência passível de ser compartilhada. Mesmo as vivências mais solitárias de alguém só
se tornam parte de sua experiência, à medida que possa expressar sua vida interior através
desse bem comum que é a língua. O sentido, na vida como na arte, não é uma coisa, nem um
conteúdo que se decifra e que já está incrustado nas coisas ou nas obras. Mas também não é
apenas esse movimento de construção que se reduz à atividade de um sujeito autônomo. Ele é,
antes de tudo, o fruto de um movimento intersubjetivo de atualização simbólica que reitera
uma partilha social prévia. No sentido sugerido por Maurice Merleau-Ponty, podemos, pois,
dizer que a experiência é, antes de tudo, o meio da instituição do sentido, a via pela qual se
estabelece aquilo que faz sentido para alguém, numa determinada época e numa determinada
cultura, segundo os padrões dessa cultura.
Desse modo, o simples nascimento de uma criança ultrapassa o âmbito dos fenômenos
biológicos ou fisiológicos; e, mesmo para o nascituro, ele é já um acontecimento histórico-
cultural que supõe a assimilação, desde o útero, de alguns padrões de comportamento vigentes
na sua sociedade, entre os quais as estruturas fonológicas da língua materna, recebidos como
um tipo de musicalidade primordial. Compreendemos, assim, que a idéia, aparentemente
ingênua, de que a mãe deva conversar com o bebê tem um sentido profundo, porque ela está
comunicando ao filho, de modo sensorial e afetivo, a ambiência sonora de sua língua e de sua
cultura nessa “conversa”; a criança está-se familiarizando com as configurações frasais, antes
de ter acesso às dimensões sintática e semântica da língua. Mais tarde, quando adulto, poderá
reconhecer “naturalmente” se uma frase, da qual não ouve todas as palavras, é uma pergunta
ou uma ordem, posto que identifica o sentido desse ato de fala a partir da sua entonação. E
essa conclusão não decorre da decifração de um código abstrato, mas da intimidade estética
com um certo padrão de plasticidade que é próprio de sua língua.
Podemos dizer que nossa primeira relação (ainda pré-simbólica) com o mundo
simbólico, nossa primeira relação com o mundo lingüístico, enquanto campo sonoro, é essa
relação de caráter estético, que passa exatamente pela assimilação dos padrões plásticos da
língua e da cultura. Quando um sujeito vem ao mundo e passa pela socialização, entrando em
contato com as práticas sociais, em geral, e com as práticas educacionais, em particular, ele é
evidentemente adestrado a reconhecer como naturais aquelas condutas que sua cultura elegeu.
Daí porque se pode dizer que pais e educadores, embora involuntária e inconscientemente,
cerceiam as crianças, pois estão a todo momento corrigindo sua fala e moldando seus gestos,
para que se aproximem do cânone da língua adulta e se integrem à vida social, o que significa
dizer que é preciso, de certa forma, reduzir a sua imensa capacidade fonológica, em função das
características fonéticas e dos padrões acústicos que são típicos da “sua” língua. Daí também
porque é tão difícil aprender uma língua estrangeira na idade adulta, pois já estamos de tal
modo formatados pela fonética, pelas estruturas sintáticas, as regras semânticas e as
convenções pragmáticas da nossa língua, que o novo aprendizado demanda um esforço muito
maior do que a aquisição gradual da língua materna, através desse contato familiar, que é o
protótipo do convívio social.
Com isso, deparamo-nos com a exigência de uma concepção hermenêutica da vida
social e da própria experiência mundana, enquanto experiência compreensiva; uma apreensão
do nosso modo de estar na cultura como algo que requer determinados meios de inserção
social, como a interpretação e o diálogo. A hermenêutica procura descrever os modos pelos
quais a aquisição do sentido se torna possível a partir de um sentido prévio (PALMER;
RICOEUR). Para isso, ela apela para dois grandes conceitos fundamentais, que serviram de
base para a elaboração da estética da recepção: os conceitos de círculo hermenêutico e
horizonte de expectativa. O primeiro contempla o fato de que toda compreensão é sempre a
modulação de uma pré-compreensão, o que os hermeneutas assinalam, de maneira
provocativa, afirmando que “só compreendemos o que já compreendíamos”, no sentido de que
só podemos assimilar algo novo a partir de um padrão de assimilação já sedimentado. O
segundo aponta o fato de que toda recepção se dá em confronto com uma expectativa que é
gerada pelo campo da experiência constituído historicamente.
Cada experiência singular que temos, vai-se incorporar ao repertório da experiência
acumulada e por isso podemos dizer que a experiência mesma tem uma estrutura circular
(GADAMER). Mas, para que seja uma experiência singular (DEWEY), deverá diferir, em
algum grau, daquele patrimônio estabelecido, de modo a provocar uma efetiva transformação
no sujeito que a vivencia, e por isso podemos dizer que a experiência mesma está submetida a
uma dinâmica desviante, que envolve uma certa frustração da expectativa.
No campo expressivo, essa dialética entre o horizonte de expectativas, projetado pela
experiência acumulada, e a experiência singular, proporcionada por uma determinada obra,
constitui o mecanismo básico de toda recepção e a experiência estética ocorrerá como efeito
da tensão entre as propostas da obra e as estruturas já cristalizadas pela recepção anterior. O
êxito estético – que não se confunde com o êxito artístico, embora esteja em relação com ele –
depende, assim, do deslocamento que uma obra é capaz de realizar na reação do receptor
frente às disposições poéticas já codificadas e reforçadas pelos hábitos de leitura
estabelecidos.
Segundo Jauss (1994, p. 27-29), o caso ideal para o deslocamento frente a tais sistemas
histórico-literários de referência é o daquelas obras que, primeiramente, graças a uma
convenção do gênero, do estilo ou da forma, evocam propositadamente um marcado horizonte
de expectativas em seus leitores para, depois, destruí-lo passo a passo. Mas a possibilidade de
objetivação do horizonte de expectativas verifica-se também em obras historicamente menos
delineadas. Na ausência de sinais explícitos, a predisposição específica do público, com a qual
um autor conta ao lançar uma determinada obra, pode ser igualmente obtida a partir de fatores
derivados de normas gerais conhecidas ou da poética imanente ao gênero, da relação implícita
com obras aclamadas no contexto histórico-literário ou da contraposição entre ficção e
realidade.
No caso dos produtos da comunicação mediática, a predisposição do público estará
associada aos hábitos estéticos infundidos por determinados meios ou tecnologias da
expressão, à relação implícita com outras peças do universo mediático internacional ou ao
corte semiótico estabelecido pelo enquadramento característico de cada formato estético (a
dimensão sócio-técnica de sua forma histórica de apresentação). Este último conceito procura
estabelecer uma articulação dinâmica entre forma, meio e modo de expressão, com o campo
da recepção. O formato é a forma em ato, incarnada em seu corpo mediático e investida de sua
vigência institucional. É o meio pelo qual as praxes de recepção se transmitem a uma dada
situação receptiva, estabelecendo o quadro necessário para o desenrolar da experiência
estética.
Quando alguém diz, por exemplo, que gosta muito de ir ao “cinema” ou de ouvir
“música”, podemos compreender tais expressões, mas sabemos que elas não são precisas,
porque ninguém efetivamente vai ao cinema ou ouve música, neste sentido genérico. A nossa
fruição das formas de expressão está sempre formatada, pois está subordinada a determinadas
configurações socio-técnicas estabelecidas: não se vai ao cinema, assiste-se a um filme, que
desenvolve algum tipo de trama (com início, meio e fim), durante um período médio de duas
horas.
Da mesma forma, quando ligamos o rádio do carro, não esperamos ouvir uma sinfonia
e sim uma seqüência de pequenas canções. Mas a configuração típica da canção popular (uma
estrutura de partes separadas por um refrão, cantados por uma voz solo que contrasta com um
acompanhamento instrumental, num desenvolvimento que dura cerca de três minutos e meio)
não foi estabelecida arbitrariamente, ela é o resultado de uma série de transformações práticas,
que envolvem progressos técnicos, inovações mediáticas e alterações na atitude do ouvinte.
Quem vai a um concerto se predispõe a ouvir peças musicais que duram entre trinta e quarenta
e cinco minutos e se desdobram em três ou quatro movimentos. Quem liga o rádio está com
uma predisposição inteiramente distinta.
Há uma certa maneira de descrever esta situação de modo muito instrumental e
maniqueista, supondo que a indústria cultural nos manipule a ponto de poder definir as nossas
preferências estéticas, impondo certos formatos com o propósito de obter maiores lucros.
Contudo, essas configurações e essas formatações não obedecem apenas aos desígnios
industriais ou às conveniências comerciais, mas igualmente à dinâmica da própria recepção,
que pode ser – isto sim – codificada e explorada pela indústria cultural, de modo a transformar
aqueles padrões em esquemas rígidos, estereotipados e excludentes.
Existe uma certa expectativa social, que não pode ser eliminada na interação que o
espectador tem com uma determinada peça. E o que pretendemos enfatizar aqui é
simplesmente o fato de que essa predisposição deriva de uma história da configuração deste
formato em que tal peça se inscreve. A experiência estética não ocorre no encontro entre um
sujeito genérico e uma obra abstrata, ou entre um sujeito absolutamente singular e um objeto
material, simplesmente dado, mas dentro de determinados locais, configurações, instituições e
relações pragmáticas. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que não se trata de formatos
sucessivos, a canção popular não derrubou a sinfonia, ela simplesmente colocou a sinfonia no
seu devido lugar, enquanto música de concerto, assumindo também o seu lugar, enquanto
música de entretenimento.
Em suma, a nossa experiência comunicacional mediática não é só a relação direta com
uma obra singular, mas a relação com uma obra que é produzida dentro de determinado
formato, que obedece a certos padrões, que foram estabelecidos socialmente e que, do ponto
de vista estético, são equivalentes às estruturas da pré-compreensão hermenêutica. Assim
como, do ponto de vista semântico, temos um certo padrão prévio de compreensão, do ponto
de vista estético, temos um certa expectativa prévia em relação aos formatos expressivos. Daí
porque a riqueza da obra singular não tem a ver, necessariamente, com a instauração de um
formato original, mas com a capacidade expressiva que se manifesta nos formatos dados, os
quais serão gradualmente abandonados, a partir da necessidade expressiva de ultrapassar os
modelos estabelecidos e promover outros padrões.

3.3 – Recepção e sensibilidade

Os estudiosos da recepção reconhecem que as discussões em torno deste tema ainda


não levaram à constituição de uma abordagem autônoma e sistemática. Aparecendo, aqui ou
ali, nas mais diversas obras sobre a teoria da comunicação, só muito recentemente ele veio a
ser destacado, em função da carência de marcos teóricos capazes de gerar uma reflexão que
soubesse contemplar devidamente a dimensão cultural do fenômeno da comunicação,
freqüentemente menosprezada, frente à consideração dos seus aspectos técnicos, econômicos e
políticos.
Todavia – como já assinalamos, com relação à leitura –, muito precocemente, a
atenção que o conceito de recepção suscitou foi sutilmente canalizada para a análise das
vicissitudes em que se vê envolvido o receptor empírico (individual ou coletivo), na cultura
mediática. Passou-se da investigação sobre uma prática à análise de um ato, segundo o
atomismo típico das concepções empiristas. Mas a análise da recepção de um produto cultural
não pode ser reduzida apenas ao estudo do que ocorre ao receptor, como efeito direto de uma
leitura singular; e ele mesmo não pode ser considerado, legitimamente, como um pólo isolado
de um processo de puras trocas exteriores.
Se o tema da recepção merece o destaque que vem recebendo nos meios acadêmicos é
porque ele não se restringe à mera aplicação, no âmbito comunicacional, do modelo causal ao
jogo de correlações entre “estímulo” e “resposta”. Apesar de sua comodidade operacional –
seja no primitivo esquema da teoria da informação (emissor-mensagem-canal-receptor), seja
no chamado “paradigma de Laswell – esses modelos, em seu reducionismo, mostraram-se
incapazes de dar conta da complexidade envolvida pelo fenômeno da comunicação. Afinal de
contas, se a discussão sobre a recepção envolve o próprio tema da assimilação da cultura, é
porque ela tem em vista algo mais geral e fundamental que a simples troca de informações ou
mensagens, e aponta para a análise sociológica, antropológica, psicológica e ontológica da
sensibilidade mesma, enquanto condição de possibilidade da própria comunicação.
No entanto, estudar a recepção implicava compreeder o receptor como elemento
significativo do processo de comunicação, atribuir importância a sua condição efetiva e às
circunstâncias de sua vida, invertendo um esquema interpretativo que sempre tendeu a
privilegiar a cultura institucional como sistema de idéias capazes de organizar e pacificar a
sociedade como um todo.
Voltando-se para aspectos da vida cotidiana e procurando captar os atributos
mascarados de uma subjetividade duplamente reprimida pelo exercício do poder e pelos
discursos da dominação, os estudos sobre recepção passam a acionar, como pressuposto
conceitual e artifício discursivo, a hipótese de alguma alteração estrutural no regime receptivo
– a emergência de “uma nova sensibilidade” capaz de reconhecer os receptores populares
como sujeitos capazes de promover a produção de sentido e de elaborar o conhecimento de
sua própria situação.
Dessa forma, o abandono daquele viés instrumental e positivista da teoria condutivista
resultou na adoção de uma perspectiva “crítica” talvez excessivamente empenhada na
denúncia do potencial de exclusão dos meios de comunicação de massas. Por esta inflexão de
caráter, em última instância, político, a problemática da recepção passou muito naturalmente a
vincular-se à questão da hegemonia ideológica, oscilando entre o reconhecimento da suposta
manipulação dos meios de comunicação e a revelação das possibilidades de resistência do
consumidor frente aos produtos culturais característicos da sociedade de consumo.
Imbuídos de uma missão conscientizadora, os estudos sobre recepção tenderam a
aproximar-se de uma “pedagogia da leitura”, desenvolvida como uma espécie de antídoto
contra a mistificação dos mass media. Ironicamente, apesar do matiz supostamente
progressista de suas análises, tais abordagens acabaram reforçando a idéia de que a recepção
opera espontaneamente num modo passivo e submisso.
Além do mais, tal acento crítico-pedagógico fez com que o tema da recepção fosse
analisado de um ponto de vista intelectualista e sob um viés puritano, que tendia a enfatizar os
aspectos racionais e normativos da comunicação e a desprezar as condições emocionais
envolvidos em sua pragmática. A recorrente desqualificação do entretenimento nas teorias
críticas da comunicação não deixa de ser um sintoma desta dificuldade das abordagens
universitárias, predominantemente racionalistas, em reconhecer a dimensão existencial e
mesmo a valência cognitiva do sentimento e do prazer.
Nossa convicção é a de que o recorte do tema da recepção, como uma problemática
autônoma, apontou a insuficiência das abordagens centradas numa idéia excessivamente
intelectual de “leitura” (ora compreendida como decodificação, ora como interpretação), para
descrever o complexo movimento de acolhimento e de assimilação especialmente das obras e
dos discursos, mas também das disposições e dos acontecimentos. Há um aspecto de adesão
imediata na recepção que não remete à convicção intelectual ou à mera obediência dogmática.
Esse aspecto, de ordem tímica, aproxima a temática da recepção daquela referida à experiência
estética, especialmente no que diz respeito à mobilização das paixões, à sua dimensão retórica,
uma vez que a recepção dos produtos culturais contemporâneos, indissociáveis dos novos
meios de comunicação, supõe não apenas leitura, interpretação e crítica, mas, igualmente, ou
mesmo principalmente, envolvimento e fruição.
O que procuramos sugerir, enfim, é que os estudos da recepção teriam muito a ganhar
revisando certas formulações clássicas da teoria da comunicação e retomando a discussão
estética sobre o tema da sensibilidade. Isto seria ainda mais significativo pelo fato de que a
maioria das análises comunicacionais de nossos dias faz referência à emergência de uma
“nova sensibilidade” como um dos traços característicos da nossa época, sem, no entanto,
considerar o que aquela tradição de pensamento tem a dizer sobre o assunto.

O tema da “nova sensibilidade” na comunicação e na cultura mediáticas

Desde o momento em que se procurou identificar a crise da Modernidade, o furor


classificatório dos analistas sociais ganhou um novo campo de atuação, através da busca das
características “típicas” da atualidade. Da associação óbvia do contemporâneo com o
simultâneo até a problemática relação entre o mundo digital e a fragmentação, multiplicaram-
se os quadros de atributos desta suposta “época”, sem que os seus autores se questionassem
sobre a “pós-modernidade” desse método de compreensão através da classificação.
Utilizando critérios empíricos para captar as mudanças de sensibilidade que
caracterizariam o novo estágio de desenvolvimento da cultura humana, não espanta que esta
démarche parta de um conceito empirista de sensibilidade. Não por acaso, é esta mesma
ambiência teórica que domina nos estudos “científicos” (isto é, biológicos, fisiológicos e
psicológicos), os quais procuram explicar os mecanismos da percepção, a partir da sua
observação e manipulação em laboratório. E, como não poderia deixar de ser, é também esta
concepção que predomina na esfera do senso comum.
Mas a sensibilidade que se manifesta num experimento controlado e isolado não pode
deixar de ser passiva e contemplativa, e sua abrangência está previamente limitada pelos
próprios critérios de observação. Além do mais, trata-se de uma sensibilidade segmentada
(como os mercados…), dividida em regiões e regimes autônomos, associadas unilateralmente
a situações em que cada um dos órgãos dos sentidos é afetado isoladamente.
Neste sentido, embora a definição enciclopédica da sensibilidade seja sempre
nuançada em várias acepções – “1. Faculdade do organismo vivo de experimentar impressões
de ordem física (…). 2. Percepção aguda (…). 3. Faculdade que tem uma pessoa (artista,
poeta, escritor) de captar ou transmitir impressões capazes de causar emoção. 4. Tendência,
disposição a ser dominado pelas impressões, sentimentos, emoções; impressionabilidade,
suscetibilidade, irritabilidade (…)” –, predomina muito freqüentemente a compreensão de
caráter funcional derivada da abordagem neuro-fisiológica, para a qual a sensibilidade “se
organiza a partir dos receptores que levam às fibras nervosas uma mensagem codificada
descrevendo a forma e a intensidade de um estímulo mecânico ou químico” (GRANDE
ENCICLOPÉDIA LAROUSSE CULTURAL: 1998, vol. 22).
Concebida, portanto, como “faculdade” especializada na função de captação de dados,
ela seria muito mais apta a reconhecer os objetos e os cenários já devidamente identificados
por uma dada representação do que a traduzir nossa imersão numa situação efetiva. Mais
sensível à representação do que à presença, a sensibilidade, concebida deste modo, assumiu
desde cedo um papel subsidiário em relação ao entendimento e não é de estranhar que ela
apareça, nos termos de hoje, como uma espécie pouco maleável de interface sensorial entre o
espírito e o mundo, através do corpo, mas as limitações dessa imagem da sensibilidade devem-
se muito mais ao modelo que a descreve desse modo.
Ironicamente, não é nova a idéia da emergência de uma “nova sensibilidade” por
efeito da tecnologia. No âmbito das teorias da comunicação formuladas neste século, a relação
entre sensibilidade e tecnologia esteve inicialmente no centro da reflexão de pelo menos dois
autores clássicos: Walter Benjamin e Marshall McLuhan.
Motivados, fundamentalmente, por meios de comunicação cujo aparecimento foi
possibilitado por novas tecnologias de reprodução (fotografia e cinema) e difusão (rádio e
televisão), suas considerações, de certo modo, prepararam o terreno para as atuais discussões
sobre os efeitos produzidos pela comunicação digital e interativa (o hipertexto e sua versão on
line: a multimídia e a rede), desenvolvida a partir das micro-tecnologias de processamento da
informação.
Apesar do profetismo e do reducionismo presentes em muitos dos textos de ambos, sua
reflexão não pode reduzir-se simplesmente à idéia de que cada nova tecnologia gera uma nova
sensibilidade, e assim sucessivamente, segundo o esquema de um historicismo fundado na
técnica, uma caricatura do já questionável modelo de interpretação socio-antropológica típico
do “materialismo histórico” de Marx e seus inúmeros intérpretes.
Surpreendentemente, contudo, parece ser justamente esta a interpretação pós-
modernista da dinâmica da cultura, presente, por extensão, nas concepções mais recentes sobre
o fenômeno comunicacional na atualidade. Por essa razão, o entusiasmo voluntarista dos
velhos utopistas revolucionários parece retornar agora na euforia da nova era eletrônica. E
como o desenvolvimento tecnológico é, ao menos teoricamente, sem limites, supõe-se que a
“expansão da sensibilidade” também o seja.
Mas uma sensibilidade indefinidamente expandida e ampliada não corresponderia mais
a nenhuma das condições existenciais em que se enraíza a experiência cultural: a finitude, a
corporeidade e a expressividade. Ilimitada, imaterial e indizível, tal sensibilidade etérea se
traduziria na substituição da memória por um arquivo inesgotável, da linguagem por um
algoritmo e do corpo por uma prótese auto-atualizável. Não seria propriamente uma “nova
sensibilidade”, mas, antes, a própria eliminação da sensibilidade enquanto tal...
Caminhemos por partes. Procuremos estabelecer quanto deste discurso estava
efetivamente presente nas formulações daqueles precursores (Benjamin e McLuhan), e de que
outro modo podemos interpretar a relação que estabelecem entre sensibilidade e tecnologia,
sem cair nas aporias assinaladas.
Quando dizemos que nossa sensibilidade, nosso “modo de ver” as coisas, foi
modificada, precisamos esclarecer o caráter da modalização considerada. É certo que o modo
humano de ver as coisas é diferente daquele dos pássaros e dos macacos, e estes não captam o
mundo do mesmo modo que os peixes. Da mesma forma, falamos também em diferentes
modos de percepção humana, tendo em vista a diversidade de época, localização,
nacionalidade, faixa etária, situação econômica etc.
No primeiro caso, situamo-nos no plano das diferenças genéricas entre as espécies e
nos remetemos ao campo descrito pelas ciências da vida e do comportamento. A sensibilidade
humana é encarada, então, como disposição neuro-fisiológica particular à espécie e sua
modificação corresponderia a uma alteração na própria estrutura de funcionamento de nossa
capacidade de apreender o mundo exterior, através dos órgãos dos sentidos. No segundo,
referimo-nos às práticas coletivas, através das quais partilhamos, por meios simbólicos, a vida
social. Neste âmbito, a sensibilidade remete aos padrões culturais vigentes, e sua modificação
corresponderia à alteração dos hábitos perceptivos.
A confusão entre esses dois planos é tão freqüente quanto problemática, e talvez seja
ela a maior responsável por um certo exoterismo do discurso pós-moderno. À medida que ele
fala da emergência de uma “nova sensibilidade”, a partir do advento de novas tecnologias, sem
distinguir os dois níveis assinalados, tende a justificar antecipadamente sua naturalização da
técnica. Parecendo ter esquecido que o desenvolvimento da tecnologia confunde-se com a
história da cultura, e que esta é simultaneamente condição e efeito da própria tecnologia, ele
compreende a “incorporação das tecnologias” de modo literal e naturalista. Parecendo ignorar
a interpretação que vê nos meios e nas tecnologias a extensão de nós mesmos, ele proclama a
bombástica e suspeita “descoberta” de que não passamos de uma extensão das novas
tecnologias.
Se no âmbito neuro-fisiológico a idéia da assimilação da técnica significaria a sua
incorporação orgânica, no âmbito comportamental, ela remete às “técnicas do corpo”,
incorporadas como condutas e, portanto, transformadas em hábitos ativos e receptivos. Desse
modo, o discurso pós-moderno sobre a “nova sensibilidade” e seus desdobramentos nos
estudos sobre a recepção perdem de vista o que é certamente mais importante na obra daqueles
autores: a relação entre as tecnologias, os meios de comunicação e os nossos hábitos
perceptivos.
É bem verdade que a referência alternada à “estrutura orgânica” e ao “hábito” já está
em textos clássicos como A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1936) ou Os
meios de comunicação como extensões do homem – Understanding media (1964). Como se
verá, trata-se de uma imprecisão terminológica, que não esconde o sentido último da
interpretação proposta por aqueles autores.
Benjamin, por exemplo, fala das “metamorfoses profundas” do “aparelho perceptivo”
(s/d, p. 192), das “estruturas perceptivas” (p. 194) ou do “sistema perceptivo” (p. 194), associa
a importância crescente da estatística, na esfera teórica, à estandardização provocada, na
“esfera sensorial” (p. 170), pela reprodução em série e chega a afirmar que “a natureza que se
dirige à câmara não é a mesma que se dirige ao olhar” (p. 189 – grifos meus, M.V.). Mas a
idéia-mestra que atravessa toda a sua formulação é a de que “o modo pelo qual se organiza a
percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas
também historicamente” (p. 169).
Ao considerar, portanto, que “no interior de grandes períodos históricos, a forma de
percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de
existência” (p. 169), ele pretende destacar justamente a dimensão cultural das mudanças em
questão. E, ao tratar particularmente das relações entre o cinema, a fotografia e a pintura – no
plano óptico – ou entre o cinema, a escultura e a arquitetura – no plano tátil – o essencial de
sua análise está em mostrar que “transformações sociais muitas vezes imperceptíveis
acarretam mudanças na estrutura da recepção, que serão mais tarde utilizadas pelas novas
formas de arte” (p. 185 - grifos meus, M.V.). O que sugere, por outro lado, que essas
mudanças estão, de algum modo, ancoradas em práticas anteriores, numa regressão sem fim. E
que nenhuma mudança de hábitos perceptivos pode ser tão radical quanto o corte que há entre
“automatismo natural” e “hábito”, ou entre a idealização que fazemos da “natureza” e a auto-
compreensão que exercitamos na cultura.
Tendo em vista a arquitetura, Benjamin se dá conta de que a recepção exigida pelo
meio torna inadequada a atitude de recolhimento típica do viajante que contempla um
monumento, como se a sua monumental grandiosidade lhe exigisse uma igualmente
monumental passividade. Com argúcia, ele observa que “os edifícios comportam uma dupla
forma de recepção: pelo uso e pela percepção” (p. 193). Mas completa esta penetrante
observação, de modo novamente impreciso, vinculando o uso aos “meios táteis” e a percepção
aos meramente “ópticos”. Ora, poder-se-ia falar de modo igualmente legítimo de uma
contemplação auditiva ou mesmo tátil, e de um uso visual (ou “óptico”) do mesmo edifício.
Na verdade, Benjamin associa o termo “tátil” ao movimento, à mudança de tônus, posição e
angulação, que experimentamos na ação corriqueira ou na distração cinematográfica. Antes do
tato, em si mesmo, ele tem em mente o sentido cinestésico; e, dessa forma, acentua, mesmo
sem dizê-lo com todas as letras, o caráter prático da recepção em geral, a condição ativa e
coletiva, pela qual ela se configura como uma pragmática, com praxes diferenciadas, que se
efetuam “menos pela atenção que pelo hábito” (p. 193).
Reconhecendo que, “no que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande
medida a própria recepção óptica” e esclarecendo que também esta, “de início, se realiza mais
sob a forma de uma observação casual que de uma atenção concentrada”, ele conclui que “essa
recepção, concebida segundo o modelo da arquitetura, tem em certas circunstâncias um valor
canônico”(p. 193).
O que se anuncia aí, portanto, é a idéia de que as diferentes formas de sensibilidade são
diferentes padrões de recepção adquiridos pelos hábitos introduzidos por diversos meios,
sustentados em diferentes tecnologias. E, além disso, que a recepção facultada pela
sensibilidade compreende a mediação tecnológica e depende, portanto, da relação física com
alguma interface; ou seja, é sustentada pela percepção sensorial, mas não se reduz a ela, uma
vez que opera num ambiente discursivo e segundo uma disposição (um pathos), que se traduz
em determinados usos e costumes.
Da mesma forma, McLuhan fala da percepção como “apreensão sensória” (p. 27) e,
quando classifica o artista como “perito nas mudanças da percepção” (p. 34), descreve essas
alterações como uma reorganização da “vida dos sentidos” (p. 34 – ambos os grifos são meus,
M.V.). Mas já num texto de 1954, ele analisa o efeito da introdução de novas formas de
divulgação sobre o espectador como “um desvio considerável, porém, inconsciente, de suas
maneiras de pensar e sentir” (McLUHAN, 1978, p. 146) e, de um modo geral, podemos dizer
que a ênfase de suas colocações recai sobre o aspecto comportamental e não sobre o aspecto
neuro-fisiológico. Em suas palavras, a “mensagem” de qualquer meio ou tecnologia é “a
mudança de escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas
humanas” (p. 22), e é dessa forma que a introdução de um novo meio de comunicação
reconfigura o meio ambiente.
Como já tivemos oportunidade de assinalar, mais que procurar o efeito dos meios no
plano das “opiniões” e “atitudes” frente ao ambiente, McLuhan nos propõe considerar o
próprio ambiente, não como um simples envoltório, mas como um processo ativo que está
sendo continuamente recriado pela intervenção de novas tecnologias. Tal abordagem permite-
lhe estudar os efeitos dos novos meios a partir do tipo de envolvimento que eles provocam,
suscitando novos comportamentos e novas formas de atribuições de sentido e valor aos objetos
e processos do mundo simbólico.
Tendo em vista a comunicação de massa, mas já atento às potencialidades do
computador na comunicação, McLuhan afirma que, ao romper com a seqüência linear da
palavra impressa, a eletricidade não só teria permitido um novo tipo de experiência simultânea
como teria realmente posto em xeque a universalidade do critério de articulação causal
subjacente à organização do discurso. Com ela, teríamos passado “do mundo das seqüências e
dos encadeamentos para o mundo das estruturas e das configurações criativas” (McLUHAN,
s/d, p. 26), mais ou menos o contrário, diga-se de passagem, do que afirmam hoje os
apologistas da idéia de uma fragmentação promovida pelos processos digitais.
Mesmo quando ao se deter na análise do entorpecimento relativo de um dos sentidos
por estimulação controlada ou quando analisa o usuário de um determinado meio ou
tecnologia como seu servomecanismo, é ainda a uma teia de relações que McLuhan se refere.
Ele assinala claramente que “como extensão e acelerador da vida sensória, todo meio afeta de
um golpe o campo total dos sentidos” (p. 63 – grifos meus, M.V.), o que mostra que ele
concebe a percepção como um fenômeno geral da existência e não como uma dimensão
unilateral ou uma faculdade especializada. E quando analisa os sentidos isoladamente, como,
por exemplo, em suas observações sobre a percepção da cor, aí também se refere a uma
dinâmica estrutural que não se deixa apreender por uma abordagem atomista, fundada em
“sensações” concebidas como “puras qualidades sensíveis” (p. 62).
Por fim, ao assinalar que “os efeitos da tecnologia não ocorrem nos níveis das opiniões
e dos conceitos (…), mas se manifestam nas relações entre os sentidos e nas estruturas da
percepção” (p. 34), ele está enfatizando os mesmos aspectos pragmáticos a que se referia
Benjamin, ao falar das mudanças nos hábitos perceptivos. Para McLuhan, o “conteúdo” de
um meio é um outro meio e em sua teoria não resta lugar para nenhum substrato ideal puro,
isento de qualquer mediação. Da mesma forma, ao afirmar que “o meio é a mensagem”, ele
procura associar a vigência de um meio determinado às condutas que tornam possível o seu
funcionamento.
Desse modo, as idéias de McLuhan substituem a ênfase habitual nos aspectos
conscientes e normativos da cultura instituída pela atenção ao plano inconsciente das ações
espontâneas e instituintes. Na sua perspectiva, a análise da ação dos meios sobre a
sensibilidade enquanto tal é também um reconhecimento de que eles não atuam apenas
segundo mecanismos estritamente intelectivos ou sensoriais, mas envolvem aspectos
emocionais, que estão na base dos julgamentos de valor geralmente associados a uma
determinada tradição. Benjamin e McLuhan chegam, assim, muito perto de uma descrição
fenomenológica da sensibilidade, na qual a percepção dos “objetos” ocorre num campo visual
estabelecido no contexto de alguma ocupação prática.

A sensibilidade como gosto e percepção

A simples consideração dos debates acerca da sensibilidade no terreno da filosofia


clássica obriga-nos a ampliar consideravelmente o horizonte de nossa discussão. Além de
forçar-nos a admitir que a sensibilidade não se reduz à percepção sensorial e que esta última
não é passível de apreensão apenas pelo jogo entre estímulos físicos e representações mentais,
eles nos levam a reconhecer, neste âmbito, o papel decisivo das emoções.
Como assinala Ferrucci, “o conceito de sensibilidade, com os seus significados de
aparelho perceptivo e de capacidade intuitiva, de ‘excitabilidade’ e de fantasia criativa, de
gosto e de ‘delicadeza de sentir’, esteve sempre no centro tanto das reflexões sobre os
mecanismos do conhecimento como das teorias sobre os sentimentos e a arte” (1992, p. 122).
Na filosofia grega esses dois âmbitos da sensibilidade – o cognitivo e o afetual –
mantêm-se vinculados, embora com estatutos distintos. Mas já aí, na diferença entre as
abordagens de Platão e Aristóteles, vemos anunciar-se uma clivagem em torno do estatuto
ontológico da sensibilidade, que será continuamente atualizada no debate filosófico
subseqüente, opondo realismo e idealismo, especialmente na esfera dos estudos sobre a arte.
Enquanto a desvalorização platônica do corpo e das coisas sensíveis sugere, por contraste, que
o acesso ao conhecimento verdadeiro exige a superação das paixões, a defesa aristotélica das
sensações e das representações, como base de todo tipo de conhecimento, reforça a
importância da catarse, que caracteriza a fruição estética, “sublinhando os efeitos libertadores
e purificadores que a obra trágica produz na sensibilidade do público” (Ibid., p. 123).
No Renascimento, esta conexão entre esfera gnosiológica e esfera artística volta a
colocar em pauta o significado e o valor da intuição sensível, “pondo em discussão o ser
absoluto e sobremundano das idéias platônicas, em nome da indagação da natureza e da
experiência concreta (…)” (Ibid., p. 123). Partindo da natureza sensível, mas seguindo a
imaginação, o artista-teórico renascentista é o emblema do modo de apreensão e assimilação
características de uma sensibilidade capaz de “agarrar e sintetizar tanto os dados da realidade
natural como os impulsos do sentimento” (Ibid., p. 124).
Postula-se, então, uma construtiva colaboração entre as esferas da sensação, da
intelecção e da imaginação com a dimensão emocional explorada pela arte. Como assinala,
com muita propriedade Ferrucci, o pensamento e a arte renascentistas introduzem
simultaneamente a idéia de que as leis da razão e da ciência nascem da procura de relações
matemáticas aplicáveis à realidade percebida. Isto alimenta a crença numa nova “colaboração”
entre sensibilidade e pensamento, e torna plausível a visão da arte como “forma
particularmente instrutiva de mediação (…) entre dados dos sentidos e indagação teórica”
(Ibid., p. 123). Desse modo, do ponto de vista da atitude de cada época frente à sensibilidade e
a seu eterno confronto com o entendimento, o que há de mais importante a observar na cultura
renascentista é a surpreendente conciliação entre dois regimes discursivos que, a partir de
então, passarão a se opor cada vez mais até se constituírem como campos autônomos: o da
estética e o da epistemologia.
A espantosa fertilidade do casamento entre a observação empírica e a descrição
matemática, nas ciências naturais, não só impulsionou o pensamento epistemológico e os
temas da teoria do conhecimento, como passou a segregar a reflexão estética, confinando-a à
região das “idéias confusas” produzidas pela arte e situadas a meio caminho, entre o caos das
sensações e a unidade abstrata das idéias claras e distintas. Não é à toa que o próprio
Baumgarten, criador da Estética como disciplina específica, reconhece que sua “ciência”
pertence ao âmbito da “gnosiologia inferior”.
No racionalismo cartesiano e também, mais tarde, na dialética do espírito absoluto, de
Hegel, a beleza artística se sustenta à medida que manifesta a verdade e a objetividade
racional, acessível apenas mediante a superação da realidade sensível. Por essa razão, a
estética hegeliana elege a poesia como arte absoluta, uma vez que só no discurso verbal o
material sensível se nega como tal para se tornar “o meio da extrinsecação do espírito ao
espírito”.
Será Kant quem tentará superar completamente as “contaminações residuais entre a
esfera das ciências rigorosamente demonstrativas e a organização artística do sensível” (Ibid.,
p. 125). Na Crítica da razão pura, alia a sensibilidade – concebida como receptividade, isto é,
“capacidade de receber representações, graças à maneira como somos afetados pelos objetos”
(KANT, 1985, p. 61) – ao entendimento, como condição de possibilidade da experiência de
qualquer objeto ou acontecimento do mundo físico. Já na Crítica da faculdade do Juízo, é a
conciliação entre a imaginação e o entendimento, no “sentimento do livre jogo das faculdades
representativas”, que fundamenta a aquiescência universal que o juízo sobre o belo busca
alcançar, afastando-se, simultaneamente, da esfera sensorial, em que se manifesta o juízo
pessoal sobre o que é meramente agradável, e da esfera conceitual, em que se visa ao que é
necessariamente universal.
Embora, no plano da percepção ordinária, Kant descreva como uma sensação o “efeito
de um objeto sobre a capacidade representativa”, no plano propriamente artístico, a estética
kantiana vincula os aspectos ativo (produtivo) e passivo (receptivo) da sensibilidade, mediante
a idéia da adequação exercida, pelo gênio criativo, entre o conceito do que deve ser a obra e as
condições sócio-culturais que caracterizam o gosto do público que irá recebê-la. Neste sentido,
a específica capacidade do artista para comunicar o conceito da obra, sem a coação das regras
vigentes no domínio intelectual, encontra correspondência na comunicabilidade universal
proporcionada pelo gosto.
A introdução do conceito de gosto, para designar a capacidade de sentir e julgar a arte,
criando assim uma rubrica capaz de acolher a dimensão da sensibilidade que não se deixa
confinar ao círculo traçado pelas exigências do discurso científico, havia sido a singular
contribuição do empirismo inglês à compreensão da própria atividade artística, enquanto
investimento construtivo regulado por sua recepção. Tomando como modelo a imaginação
criadora do artista da renascença, o pensamento inglês dos séculos XVII e XVIII (Hobbes,
Locke, Hume, entre outros) caracteriza a criatividade artística como combinação de
sensibilidade e “engenho”. A partir disto, desenvolve, como critério mais flexível de
apreciação e julgamento, entre a rigidez da “vocação” medieval e o irracionalismo do “gênio”
romântico, a noção de “bom senso”, como discernimento, sentido de medida e capacidade de
discriminação, ao mesmo tempo espontânea e passível de aperfeiçoamento. Tomando de
empréstimo, mais uma vez, as palavras de Ferrucci:

Ligando-se embora ao lado intuitivo da inteligência e, portanto, dependendo também das


predisposições inatas dos singulares, o gosto é uma faculdade largamente susceptível de ser
cultivada e afinada pelo constante e direto contato com os testes e as opiniões críticas que a
opinião pública apresenta à atenção de todos quantos, como protagonistas ou como simples
cultores, acedem ao mundo da arte. Por outras palavras, representa o conjunto das normas
extremamente fluidas e largamente inconscientes que, num dado contexto cultural, definem a
propriedade de linguagem e de estilo sem a qual o deleite que a obra estabelece não seria
alcançado, e canalizam a sensibilidade privada do artista de modo a fazê-la coincidir com a
sensibilidade coletiva (Ibid., p. 127).

Apontando a sensibilidade como um limite e uma instância reguladora do processo


criativo, a abordagem centrada no conceito de gosto procura, evidentemente, domar o seu
aspecto irracional, que escapa à tutela da metafísica, da lógica e do intelecto científico. Por
essa razão, o reconhecimento de que o gosto obedece a regras, ainda que inconscientes, pode
também abrir espaço para um discurso moralizante, disposto não só a reconhecer tais regras
como a prescrevê-las. Desta forma, o caráter regulador do gosto poderia justificar seu papel
normativo e, em certas circunstâncias, até mesmo diretivo. O “bom gosto”, o gosto requintado,
tomado como critério de julgamento, estaria assim muito próximo do comportamento de “bom
tom”, como prática e exemplo do necessário controle das paixões.
Talvez por essa razão a noção de gosto tenha caído no ostracismo teórico, após a
Revolução Francesa, não só por efeito do formalismo kantiano, nem pelo olímpico desprezo
hegeliano, mas especialmente pelo pequeno racionalismo que se estabelece com o advento do
materialismo progressista e cientificista do século XVIII e sua radicalização dialética, na qual
a problemática do gosto se confunde com aquela da ideologia e da política de classes.

Gosto e experiência estética

Os movimentos modernistas do século XX serão, neste sentido, o resultado da


exacerbação racionalista da Modernidade tardia. Chegando a importar do campo da ciência e
da epistemologia a idéia de um método de invenção, eles se miram na ciência (qualquer
“ciência”, ainda que seja a psicanálise, como no caso do surrealismo), para exorcizar as
mistificações, embora acabem por instaurar a mistificação heróica da vanguarda, enquanto
iluminada portadora de uma sensibilidade avançada e libertadora. Nesse âmbito, a
“sensibilidade” do artista é magnificada e separada da sensibilidade mediana e muito das
estratégias poéticas da arte de vanguarda, desde então, resume-se ao “revolucionário” projeto
de contrariar e mesmo chocar o gosto do público (embora procurando agradar o gosto dos
críticos), como forma de assegurar a sua “pureza”.
Tal atitude de assimilação da sensibilidade do artista a uma faculdade superior
remonta, pois, ao Romantismo de um Novalis (para quem o poeta é um “sacerdote” em
comunhão mística com as forças da natureza), tem antecedentes no ideário renascentista de um
Leonardo Da Vinci (para quem a pintura tem um “caráter divino” e “representa a sensibilidade
das obras da natureza com mais verdade e certeza do que o fazem as palavras ou as letras” – §
327, p. 81) e reaparece nas antecipações “pós-modernas” de um McLuhan (para quem o artista
é dotado de uma personalidade tão excepcional que pode “corrigir as relações entre os
sentidos, antes que os efeitos de uma nova tecnologia hajam entorpecido os processos
conscientes” – apud FERRUCCI, Ibid., p. 134).
Essa apologia da sensibilidade artística moderna (e “pós-moderna”) opera, pois, como
uma eficiente forma de denegação da sensibilidade “normal”; do mesmo modo como atua, no
horizonte do “novo espírito científico”, a ênfase no corte epistemológico, concebido como
ruptura radical entre o saber legítimo e o espúrio “senso comum” (Bachelard chega mesmo a
dizer, na primeira fase de sua obra, que a intuição é muito útil, pois “serve para ser
abandonada”!).
Não é por acaso, portanto, que a arte eletrônica acolhe com tanta simpatia o
modernismo tardio da “poesia concreta” e seu paideuma, uma vez que, desde Poe e, depois,
Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, o que se busca é “uma precisão das figuras poéticas afim da
precisão das operações da matemática, que, graças ao contraste entre o rigor da composição e
a liberdade dos conteúdos, torne ainda mais forte o choque produzido no leitor” (Ibid., p. 135).
Nas palavras de Ferrucci, “esta fratura que a nova “estética militante” institui entre a
sensibilidade inspirada e a percepção “neutra” do mundo, entre a sensibilidade do artista e a do
homem comum, é acentuada pela teorização de uma arte que, além de se debruçar sobre os
abismos do inaudito e do invisível, se liberte de qualquer envolvimento emotivo” (Ibid., p.
135), em aberta polêmica com a “sensibilidade média” dos contemporâneos, considerados
obtusos e “filisteus”. Pretendendo, pois, criticar, e mesmo atacar, os hábitos emotivos e
perceptivos do público, o modernismo estético, assim como, agora, a “estética pós-moderna”
(isto é, o discurso estético hiper-moderno derivado das poéticas digitais), produz uma forma
de arte que se refugia no formalismo e no intelectualismo, para exorcizar o “gosto médio” da
massa ignara.
No caso dos teóricos da comunicação, envolvidos com a análise da arte de massa, esse
tom nem sempre tem sido o hegemônico e o próprio McLuhan, mesmo fazendo o elogio do
artista, como personalidade superior, afasta-se da posição elitista dominante, por dar-se conta
de que o aspecto comunicativo da atividade artística é preponderante e por perceber que é
desse âmbito, em última instância, que provêem as mais decisivas provocações à inovação
expressiva. Ao comentar, por exemplo, as mudanças introduzidas na poesia de Dylan Thomas,
depois que este passou a dispor do rádio como meio de publicação da sua obra, McLuhan
observa que “Thomas descobriu uma nova dimensão na sua linguagem quando estabeleceu
uma relação nova com o público” (McLUHAN, 1978, p. 145).
Naquela altura, o pensador canadense perguntava-se se não seria precisamente devido
ao fato de estabelecermos uma ampla separação entre a cultura e os novos meios que teríamos
nos tornado incapazes de encarar estes novos meios como cultura séria. Hoje, talvez
devêssemos perguntar se não é por considerarmos os novos meios de comunicação da
atualidade como meros transmissores de informação numérica, voltada a uma tradução formal
e a uma interpretação supostamente intelectual, que temos dificuldade para compreender o
sentido cultural da sua introdução na vida cotidiana.
Para nós, é justamente esta tensão entre as formas artísticas e simbólicas (supostamente
dirigidas a nossa atividade emocional e a nossa capacidade de fruição e avaliação
propriamente estéticas) e as formas do mundo físico (dirigidas a nossa atividade cognitiva,
através das nossas capacidades perceptiva e intelectiva) que deveria ser investigada, para
melhor compreendermos as relações entre as discussões sobre a sensibilidade e os estudos
sobre recepção. Conforme mostramos anteriormente, esta “tensão atrativa” reaparece na
complexa relação entre gosto e conhecimento, mas parece significar mais do que um simples
reflexo da relação entre sensibilidade e entendimento.
Na verdade, quando revisitamos o debate sobre o gosto, damo-nos conta de que esta
associação da experiência estética com a atividade de um sentido considerado inferior, como o
paladar, esconde o reconhecimento involuntário de que ela se refere a uma forma profunda,
mas inconsciente, de compreensão, a qual, se não pode ser definida como ciência, não pode
deixar de ser associada a algum tipo de conhecimento, ou, como definiria Kant, um tipo muito
especial de cognitividade sem cognição. Tal vinculação entre o gosto e o saber, através do
sabor, não é, aliás, nova. Como afirma Agamben,

Quando, no decurso dos séculos XVII e XVIII se começa a distinguir uma faculdade específica
a que são confiados o juízo e o gozo da beleza, é justamente o termo “gosto”, oposto
metaforicamente como um “sobre-sentido” à acepção própria, que se impõe na maior parte das
línguas européias para indicar aquela forma especial de saber que goza o objeto belo e aquela
forma especial de prazer que ajuíza da beleza (AGAMBEN, 1992, p. 139).

Trata-se, portanto, de desvendar a natureza mesma desse “outro saber” que é, ao


mesmo tempo, um “outro prazer”, representado pelo gosto; um saber que não pode explicar o
seu conhecer, mas é capaz de gozá-lo, como assinalava Montesquieu, já em 1755. O discurso
estético, à medida que é referido à sensibilidade, entretém-se, justamente, na busca desse “não
sei quê” que caracteriza toda recepção. Conforme Agamben,

A idéia de uma forma de conhecimento outra, que se opõe tanto à sensação quanto à ciência, e
é ao mesmo tempo prazer e saber, é o traço dominante das primeiras definições do gosto como
juízo sobre o belo (p. 144). (…) Nesta perspectiva, o gosto aparece como um sentido
supranumerário, que não pode encontrar lugar na divisão metafísica entre sensível e inteligível,
mas cujo excesso define o estatuto particular do conhecimento humano (p. 145).

Esta colocação do gosto numa região intermediária entre saber e prazer parece indicar,
nas formulações habituais, uma perniciosa confusão entre o tipo de conhecimento prático, que
se veicula espontaneamente através da atividade simbólica da cultura e a cognição
propriamente intelectiva, associada aos processos racionais e formalizados do conhecimento
científico.
O belo suscita em nós um tipo de satisfação indissociável da surpresa, portanto, uma
forma de compreensão que não se poderia reduzir ao simples reconhecimento da adequação
dos nossos modelos de interpretação e explicação e a realidade que eles pretendem
representar. O que gozamos no belo é “o puro remeter de uma coisa a outra coisa; por outras
palavras, o seu caráter significante, independentemente de qualquer significado concreto”
(AGAMBEN, 1992, p. 146). Por esta razão, Diderot definiu o belo como um “significante
excedente” e Kant, antes dele, como “um excesso da representação sobre o conhecimento”,
excesso este que se experimenta, justamente, como prazer propriamente estético.

Na sua formulação mais radical, a reflexão setecentista sobre o belo e sobre o gosto culmina
assim no reenvio a um saber, que não se pode explicar porque se apóia num puro significante
(…), e tem um prazer que permite julgar, porque se apóia não numa realidade substancial, mas
naquilo que no objeto é pura significação. (AGAMBEN, 1992, p. 147).

Tendo se dedicado essencialmente à análise da interpretação dos significados


atribuídos pelo receptor às mensagens que o atingem, os estudos sobre a recepção afastaram-se
da dinâmica significante, deixando escapar, assim, todo um campo de motivações que envolve
necessariamente a compreensão do modo como somos afetados no processo comunicacional.

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