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O renascimento do direito comparado

Luiz Fernando Coelho

Sumário
1. Breve introdução ao direito comparado.
2. As famílias de direitos. 3. O nivelamento dos
sistemas jurídicos. 4. A globalização como fa-
tor de nivelamento. 5. A ética do capitalismo e
o renascimento do direito comparado.

1. Breve introdução ao
direito comparado
Anna Maria Villela foi uma das poucas
personalidades do mundo jurídico brasilei-
ro que cultivava o direito comparado como
ponto de vista especial referido ao saber ju-
rídico. Mercê de seu trabalho intelectual
como professora da Universidade de Brasí-
lia e do Instituto Rio Branco, de sua atuação
como Consultora Legislativa do Senado Fe-
deral, onde também se destacou como Dire-
tora de Publicações, além de haver atuado
como assessora da Assembléia Nacional
Constituinte, que elaborou a Constituição
de 1988, pode-se dizer que Anna Maria Vil-
lela foi a grande representante no Brasil, não
somente do direito comparado como dou-
trina, mas também do comparatismo como
ideal de ética nas relações internacionais.
A reflexão sobre as possibilidades de res-
gate do direito comparado, com o sentido e
alcance que os mestres da Assotiation Inter-
nationale de Droit Comparé e da Faculté Inter-
nacionale pour l’Enseignement du Droit Com-
paré, de Estrasburgo e Barcelona, cujos cur-
sos e seminários foram por ela freqüenta-
dos, é, portanto, uma homenagem que cer-
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tamente haverá de apreciar, desde a dimen- se cogitava de limitações geográficas ou
são atemporal em que se encontra. políticas em relação ao estudo científico de
O direito comparado desenvolveu-se a suas instituições, do mesmo modo que o es-
partir de uma concepção universalista do tudo da filosofia grega não circunscrevia a
direito, denominador comum das tentativas filosofia a seu país de origem, a Grécia clás-
de estruturar o saber jurídico como ciência sica. Idêntica universalidade também ocor-
universal, a despeito da compartimentação rera na Idade Média, quando o direito canô-
de seu objeto, decorrente das fronteiras geo- nico unia os Estados feudais sob um único
políticas dos Estados. Nesse contexto, o re- ordenamento em relação a diversas ques-
pensar dos fundamentos do direito, em fun- tões, e na época pré-renascentista, quando
ção da metodologia engendrada pelo direi- o direito romano redescoberto era ensinado
to comparado, representou um dos esforços nas primeiras universidades e se constituí-
mais profícuos para a superação do vetusto ra em jus commune da Europa.
ceticismo epistemológico que minimizava o O processo de separação dos sistemas
caráter científico dos estudos jurídicos, re- jurídicos acompanhara a racionalização da
legando-os a mera técnica de persuasão, sim- sociedade e se afirmara com a consolidação
ples exercício de um jogo argumentativo. do Estado moderno, o que culminou, quan-
Entretanto, o desiderato de restabelecer to à jurisprudência, com as escolas dogmá-
a dimensão universalista do direito como ticas desenvolvidas após as grandes codifi-
forma de saber viu-se frustrado, em virtude cações, especialmente o Código Napoleão.
da conjugação de fatores os mais diversos: A compartimentação dos direitos positi-
a parafernália legislativa que tem inunda- vos importou em idêntica compartimenta-
do os direitos positivos das nações moder- ção da ciência do direito, pois o ensino jurí-
nas, a maior complexidade das relações ju- dico passara a ser tão dogmático quanto seu
rídicas, o domínio cada vez maior da men- objeto, o que, em função da mentalidade
talidade dogmática na atuação profissional positivista que via na filosofia uma ancilla
dos operadores do direito, a própria educa- scientiarum, havia absorvido a tendência a
ção jurídica, insistentemente voltada para a minimizar os estudos de teoria geral e de
busca de resultados imediatos nesse traba- filosofia do direito, último baluarte da uni-
lho, a conseqüente minimização da teoria versalidade do direito, chegando até sua eli-
geral e da filosofia do direito nos currículos minação dos currículos dos cursos jurídi-
dos cursos jurídicos, tudo isso contribuiu cos ou sua redução qualitativa e quantitati-
para que o direito comparado, como méto- va no conjunto das disciplinas, fato esse
do e como ciência, caísse em relativo esqueci- agravado pela perda do alcance ético dos
mento. Daí a importância de seu resgate, um fundamentos do direito.
serviço a ser prestado à ciência do direito. Estudado em algumas instituições uni-
O direito comparado haure suas raízes versitárias especialmente importantes, ao
na própria história do direito europeu. Lem- tomar-se consciência desses fatos da evolu-
bre-se que a compartimentação dos estudos ção histórica da ciência jurídica, o direito
jurídicos já é fruto dos tempos modernos, comparado surgira como possível resposta
pois época houve em que os conhecimentos à necessidade de resgate daquele tradicio-
jurídicos tinham o mesmo foro de universa- nal sentido de universalidade, o que igual-
lidade que os de qualquer outra ordem cien- mente respondia às exigências cada vez
tífica. Foi a época em que as instituições ro- maiores determinadas pelo incremento das
manas, por sua racionalidade técnica, im- relações internacionais.
punham-se ao direito costumeiro da Euro- O ponto de partida do direito compara-
pa ocidental e, embora se tratasse de um di- do é o fato de o Estado não ser mais que
reito referente a um povo e a um Estado, não acidente histórico, sem dúvida durável, mas

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mutável de acordo com as influências eco- sos institutos entre si, no que elas possuem
lógicas, demográficas, econômicas e de or- de perene, bem como as relações desses ins-
dem subjetiva, que o influenciam e que con- titutos com a política geral dos povos e com
dicionam a ordem jurídica. Mais ainda, par- os grandes agrupamentos humanos.
te-se da constatação elementar de que os Esse largo objetivo não se deixa restrin-
homens, com o progresso da civilização, gir pelo aspecto puramente normativo, mas
com o aperfeiçoamento dos meios de comu- envolve considerações interdisciplinares de
nicação e com a maior complexidade das natureza sociológica, econômica, histórica,
relações sociais, estão a exigir agrupamen- política e filosófica. Isso não obstante, o pon-
tos mais amplos aos quais nossas fórmulas to de vista formal da própria jurisprudên-
de legalidade estatal já não mais se enqua- cia tende a prevalecer, pois o direito compa-
dram. Isso tende a gerar um hiato cada vez rado vislumbra a redução dos diferentes
mais acentuado entre a realidade jurídica e conhecimentos oriundos daquelas ordens
as fórmulas de legalidade que, por força do científicas a uma expressão de positividade
poder político conservador, procuram man- normativa. Com isso, procura-se afastar o
ter-se. Ou, em outras palavras, tende acen- risco de enciclopedismo e a possível confu-
tuar a inadequação entre a vivência do di- são com outras ciências sociais e culturais,
reito e sua forma, entre a norma e sua matéria, em especial a teoria geral do Estado e a ciên-
entre a conduta e sua expressão normativa, cia política, considerando que essas disci-
entre os modelos jurídicos e a matéria social. plinas oferecem analogias quanto ao respec-
Pelo que já se tem feito, graças ao traba- tivo objeto material, que tanto poderá ser a
lho de inúmeros Institutos de Direito Com- sociedade quanto o Estado e sua organiza-
parado, pode-se distinguir algumas das ção normativa. A teoria geral do Estado con-
noções fundamentais da novel disciplina. sidera a estrutura do fenômeno Estado, seja
O objeto do direito comparado releva da quanto à forma, divisão política e adminis-
confrontação entre situações reguladas por trativa, seja quanto ao regime político, orga-
diferentes sistemas normativos. Extravasa nização e funcionamento do respectivo sis-
a legislação comparada, entendida como tema de governo, e objetiva a explicação cau-
confrontação, aproximação, cotejo ou compa- sal-teleológica, segundo uns, ou a compre-
ração de instituições jurídicas de Estados di- ensão dialético-valorativa, segundo outros,
ferentes, com o fito de anotar suas discrepân- desse fenômeno. A política estuda o poder
cias e determinar as analogias encontradas em suas diferentes manifestações, inclusive
com vistas à aproximação ou reconciliação os meios de conquista do poder político, as
das legislações diferentes ou, ainda, objeti- formas de seu exercício e os fins a que se
vando a solução de um contencioso em que propõe, e objetiva relacionar essas manifes-
as fontes tradicionais do direito local sejam tações, isoladamente ou em conjunto, com
consideradas insuficientes para o dirimir. determinados valores historicamente vigen-
O direito comparado é muito mais am- tes na comunidade considerada.
plo. Seu objeto é constituído pelo conjunto Em relação ao objeto do direito compa-
das fontes do direito, com a finalidade de rado, há que se distinguir ainda o direito
descobrir as constantes de sua evolução. E, comparado histórico, que considera os orde-
assim, a disciplina se afirma com foros de namentos jurídicos do passado, entre si ou
autonomia científica, pois, não se restrin- relacionados ao direito atual, e o direito com-
gindo à mera contemplação e descrição dos parado dogmático, que tem por objeto os sis-
ordenamentos estrangeiros, pretende rela- temas jurídicos atuais. A rigor somente este
cionar as correntes do pensamento com as último constitui ciência jurídica em sentido
regras de direito e práticas judiciais e extra- estrito, já que o direito comparado histórico
judiciais, reconstituir as relações dos diver- pode ser considerado especialização da his-

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tória do direito. Mas nada impede que sua Já se observam os primeiros resultados
metodologia e objetivos sejam os mesmos, do direito comparado em matéria de unifor-
ao fazer-se referência ao passado. mização dos sistemas jurídicos, pois, nos
Deve-se distinguir ainda entre o direito Institutos de Direito Comparado, já se pes-
comparado puro e o aplicado, tomando quisa o direito europeu, entendido como o
como critério dessa divisão a prevalência direito uniforme dos países da União Euro-
de objetivos teórico-científicos, como a for- péia, um direito desenvolvido a partir do
mulação de teorias jurídicas, teses e concei- direito uniforme do mercado comum euro-
tos, ou técnico-práticos, como, por exemplo, peu, e, embora em fase embrionária, pode-
a elaboração de um projeto de lei. se falar em direito latino-americano, referin-
O método do direito comparado tem al- do-se às normas específicas do Mercosul ou
gumas nuanças que o distinguem da meto- às normas comuns dos diferentes mercados
dologia concernente ao estudo de um único comuns, como o Grupo Andino e o Merca-
ordenamento jurídico histórico ou estran- do Comum Centro-Americano.
geiro, ou de coleções de fontes jurídicas es- No campo dogmático, a grande contri-
tranhas, ou ainda de situações casuísticas. buição do direito comparado à moderna ci-
O direito comparado se inicia com a apre- ência do direito é a classificação dos orde-
sentação de pontos comuns e dessemelhan- namentos jurídicos, os quais são agrupados
ças existentes, considerando-se várias or- em sistemas jurídicos ou famílias de direito.
dens jurídicas. Tal método envolve uma con- Infelizmente, nossa concepção de ensi-
tínua confrontação das normas jurídicas no jurídico se apóia sobre uma prevalência
nacionais e estrangeiras, consideradas den- quase absoluta das normas de direito posi-
tro da estrutura social, que é produto da tivo, e a organização curricular segue as di-
evolução histórica e do conjunto das as- visões tradicionais que separam o público e
pirações materiais e tendências espiritu- o privado.
ais da época no país ou no conjunto de O essencial no ensino jurídico não é
nações tomadas como ponto de referên- apresentar as normas jurídicas vigentes, mas
cia. Assim, as regras de direito interessam familiarizar o estudante com a estrutura, as
ao comparatista, menos em sua expres- categorias gerais e particulares e os concei-
são normativa do que na manifestação de tos de determinado sistema de direito posi-
certa posição doutrinária. tivo, considerado no contexto formado pe-
Os processos de trabalho do direito com- los da mesma família, ensinando-lhe o vo-
parado são derivados dos próprios institu- cabulário, a terminologia e os conceitos fun-
tos jurídicos e dos procedimentos da técni- damentais desse direito. É ensinar-lhe os
ca jurídica, sendo aplicáveis as mesmas re- métodos de aplicação, interpretação e inte-
gras válidas para a distinção entre ciência e gração das leis, com a ajuda dos quais ele
técnica. No plano científico, o objeto da ju- poderá encontrar a solução adequada aos
risprudência pode receber tratamento soci- problemas jurídicos concretos. É desenvol-
ológico, histórico ou dogmático-jurídico, ver no estudante a sensibilidade própria do
sendo que as respectivas regras de metodo- jurista para perceber essas soluções e, sobre-
logia igualmente se aplicam ao direito com- tudo, para impregná-lo da idéia da justiça.
parado, subordinadas aos fins retro indica- A classificação dos ordenamentos jurí-
dos. Assim, a pesquisa empírica, sociológi- dicos traz nova distinção metodológica, a
ca e histórica, bem como a generalização que se procede entre microcomparação e
indutiva dos fenômenos que podem ser con- macrocomparação.
siderados no campo do direito, e a conside- Na microcomparação, considera-se o
ração dialética da conduta fornecem elemen- direito nacional ou determinada norma po-
tos ao direito comparado. sitiva, a qual deve ser comparada com nor-

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ma semelhante de outro direito estrangeiro, normas. Isso é de tal forma importante que a
ou de vários deles. Na macrocomparação, o consideração pura e simples das normas
direito é encarado estruturalmente como jurídicas vigentes em determinado momen-
parte de uma família de direitos, e a compa- to histórico fornecerá uma visão incomple-
ração se processa em nível menos casuísti- ta e evidentemente falsa do direito. Não que
co e mais conceitual, apurando-se as possí- esses elementos deixem de estar sujeitos à
veis similitudes conceituais entre diversas mesma evolução, mas que se trata de um
ordens jurídicas, também encontradas na desenvolvimento muito mais lento que não
estrutura global de sua respectiva família se compara com as freqüentes mutações a
de direitos. que estão sujeitas as leis.
Micro e macrocomparação revestem-se Daí que a preocupação central da dog-
de importância especial logo que se siste- mática comparatista seja a fixação de crité-
matizam os procedimentos hermenêuticos, rios seguros para a classificação dos orde-
nos quais, ao lado da interpretação grama- namentos jurídicos de todo o mundo.
tical, lógica e histórica, alinha-se a interpre- A tais ordenamentos convencionou-se
tação sistemática, pela qual a norma jurídi- chamá-los de “sistemas jurídicos”, devido
ca a ser interpretada é considerada parte de à predominância doutrinária que vê nas
um conjunto normativo, seja o formado por ordens jurídicas positivas uma normativi-
outras normas da mesma espécie, seja em dade estruturada segundo os princípios da
relação ao sistema geral constituído pelo lógica formal tradicional. As leis componen-
ordenamento positivo, seja no contexto mais tes de um ordenamento positivo estariam
amplo formado pela família de direitos na assim dispostas segundo uma estrutura de
qual este se insere. derivação a partir da constituição, que seria
a norma básica da qual todas as outras de-
2. As famílias de direitos rivariam, até as normas individualizadas
nos atos e negócios jurídicos e nas decisões
Essa tese, do agrupamento dos direitos judiciais casuísticas, formando uma espé-
positivos em famílias, é uma decorrência do cie de pirâmide normativa, tendo nas leis
fato de que, no domínio do direito, como no ordinárias e regulamentos os escalões in-
das demais ciências, por trás da grande va- termediários.
riedade de direitos particulares, podem ser É claro que uma tal estrutura analítica é
reconhecidas categorias gerais, de número deveras discutível, quando comparada com
limitado, em torno das quais é possível agru- a realidade dos direitos dos povos, os quais
par-se os diferentes ordenamentos jurídicos. ostentam leis inconstitucionais, normas
Existem elementos variáveis e elementos contraditórias e lacunas jurídicas e axioló-
constantes no direito. Sendo o comparatis- gicas, mas serve como modelo ideal racio-
mo ainda uma ciência jovem, não chegaram nal a ser concretizado em função da racio-
os comparatistas a um acordo sobre qual nalidade que deve reger as relações jurídi-
elemento seria prevalecente para agrupar os cas, ou então como modelo teórico que auxi-
direitos em conjuntos. Mas o fato é que em lia a demonstrar como se processam ou de-
todos os ordenamentos, independentemen- vem proceder as relações intra-ordenamen-
te das regras vigentes, existe todo um jogo tais.
de conceitos, de métodos de pesquisa, um Quando em direito comparado se fala em
modo peculiar de encarar o mundo, a socie- classificação dos sistemas jurídicos, afasta-
dade e a justiça. São elementos extranorma- se essa conotação analítica e almeja-se tão-
tivos que dão ao direito suas características somente a reunião dos diferentes ordena-
típicas e asseguram sua por meio através de mentos positivos em torno de característi-
todas as variações que possam sofrer as cas comuns que apresentam, tais como, gê-

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nese histórica, influência religiosa, ideolo- mundo socialista, convencionou-se classi-
gia e objetivos políticos. Na verdade, não há ficar os sistemas jurídicos segundo os crité-
consenso entre os comparatistas a respeito rios político-ideológicos que dividiam o
dos critérios de classificação, mas somente mundo ocidental em dois blocos antagôni-
ensaios de aproximação de caracteres co- cos, o mundo capitalista em oposição ao
muns. socialista. Nesse sentido, a classificação
Por isso, em vez de falar em sistemas ju- usual adotada opunha o direito burguês ao
rídicos, parece mais adequada a terminolo- direito socialista.
gia proposta por René David (1964), que fala Numa visão tão universal quanto possí-
em “famílias” de direitos. vel das ordens jurídicas existentes atual-
O autor distingue cinco grandes famíli- mente, duas grandes categorias podem ser
as de direitos, com base na influência pre- desde logo distinguidas: ordenamentos ju-
ponderante das respectivas civilizações: o rídicos de fundamento religioso e ordens
sistema ocidental, compreendendo o grupo jurídicas de fundamento civil ou secular.
romano-germanista e o anglo-americano, o Enquanto a primeira categoria abrange os
sistema soviético, o sistema muçulmano, o povos pertencentes a uma mesma comuni-
sistema hindu e o sistema chinês. dade religiosa, que pode extravasar as fron-
Solà Cañizares adota como critério a in- teiras nacionais ao aplicar-se a indivíduos
fluência religiosa, distinguindo assim os unidos por uma fé comum, a segunda tem
sistemas ocidentais, de inspiração cristã, um campo de vigência puramente territorial.
mas cujas fontes não são constituídas pela Os direitos confessionais dos judeus,
religião, o sistema soviético, de espírito ateu cristãos, muçulmanos, hindus e budistas
e anti-religioso, e os sistemas religiosos, em têm validade de direito civil, principalmen-
que as fontes são constituídas pela religião te nos países islamitas e nos do sudeste asi-
de maneira prevalecente, compreendendo o ático, em especial quando se trata de famí-
direito canônico, o muçulmano, o hindu e o lia e sucessões. Isso é igualmente válido
israelita. para muitos povos cristãos em assuntos que
Na atualidade, levando em conta as envolvem questões religiosas, como o ma-
transformações ocorridas no mundo de hoje, trimônio e a paternidade, e ainda a respeito
principalmente a falência dos modelos so- de problemas cujo alcance ético transcende
cialistas de Estado, deixaram de subsistir os limites impostos pelas leis positivas, tais
as condições que levaram esses autores a como, transfusão de sangue, suicídio, euta-
considerar o sistema soviético à parte dos násia e aborto.
demais. Leve-se ainda em conta que a tradi- A validade e efetividade do direito reli-
ção doutrinária dos países outrora subme- gioso pode ocorrer de maneira direta, quan-
tidos à dominação política da ex-União So- do ele tem sua validade própria e imediata
viética é portadora de tradições romanistas por meio de jurisdições religiosas, ou indi-
e cristãs, estas pela presença histórica da reta, quando é aplicado por meio do direito
Igreja Bizantina. Por isso, não vejo motivos estatal.
para considerar o sistema soviético, mas, em Quanto aos direitos seculares ou não-
relação a Cuba e China, eles formam uma confessionais, distinguem-se dois grandes
família distinta que pode ser definida como sistemas, o romano-germanista e o anglo-
de direitos socialistas, em virtude da influ- americano.
ência da ideologia socialista em suas insti- O sistema romano-germanista compre-
tuições, principalmente em matéria de pro- ende os ordenamentos jurídicos forjados à
priedade. base do direito romano e que incorporaram
É mister assinalar finalmente que, na ci- alguns institutos característicos do direito
ência jurídica desenvolvida nos países do consuetudinário dos povos germânicos. A

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ele pertence o direito francês e a imensa cau- de de diversos fatores históricos e sociológi-
dal de sistemas jurídicos nacionais, desde cos, o que não impede que, no mundo atual,
os Estados latinos até a Holanda, que sofre- verifique-se a tendência a maior uniformi-
ram sua influência doutrinária e prática, zação de ambos os sistemas, isso devido aos
notadamente com o Código Civil de 1804. E fenômenos da globalização, do aperfeiçoa-
o grupo formado pelos ordenamentos das mento dos meios de comunicação e do do-
nações germânicas, principalmente a Ale- mínio da informática.
manha, a Áustria e a Suíça. Esses direitos se Convém assinalar que, em alguns paí-
caracterizam pela mistura dos direitos ro- ses outrora pertencentes à antiga Comuni-
mano e canônico com numerosos costumes dade Britânica, como a África do Sul, a pro-
germânicos que foram assimilados pelas co- víncia de Québec, no Canadá, e o Estado
dificações nacionais, e que mais tarde tive- americano da Luisiana, constata-se a con-
ram recepção na Ásia Ocidental e na Turquia. vivência, espécie de meio-termo, entre am-
O sistema anglo-americano caracteriza- bos os sistemas, pois nessas regiões subsis-
se pela coexistência de um direito costumei- te uma tradição romanista de origem fran-
ro e jurisprudencial (Common Law) e um di- cesa, pelo menos com validade formal, já que
reito escrito (Statutes). na prática vem-se impondo o tradicional
As diferenças entre os dois sistemas são direito do precedente.
bastante nítidas. No sistema romanista, as Fenômeno análogo ocorre nos países es-
leis constituem expressão eminentemente candinavos, os quais não se apóiam em ne-
legislativa, enquanto o sistema anglo-ame- nhuma das tradições peculiares aos dois
ricano é eminentemente consuetudinário. grandes sistemas jurídicos indicados, mas
Ainda que na atualidade se verifique certa ostentam leis e instituições que os inserem
tendência a conceder espaço maior ao direi- ora no sistema romanista, ora no da Com-
to escrito, a tradição e a própria mentalida- mon Law, ressaltando-se a notável influên-
de jurídica transmitida pela educação uni- cia doutrinária do pensamento jurídico an-
versitária na Inglaterra e nos EUA forçam a glo-americano nesses países.
prevalência do jus non scriptum. É um assunto verdadeiramente fascinan-
Na tradição romanista européia conti- te e que oferece grandes possibilidades de
nental, exportada para a América Latina, o desenvolvimento às vocações jurídicas au-
papel do juiz é passivo, ele interpreta as leis tenticamente científicas e inconformadas
e as aplica. Na common law, o juiz participa com a relativa estagnação da jurisprudên-
da criação das regras de direito segundo o cia, causada pelo isolacionismo ainda do-
princípio do precedente, consubstanciado minante na ciência jurídica de cada país.
na regra do stare decisis.
Nos sistemas jurídicos de tradição roma- 3. O nivelamento dos
nista, a regra de direito é concebida como sistemas jurídicos
princípio normativo geral e abstrato, acima
das situações concretas, formando a premis- A variedade dos sistemas jurídicos pode
sa maior de um silogismo em que a senten- ser verificada tanto nas regras de direito
ça se constitui. No sistema jurídico da Com- substancial quanto no espírito das normas
mon Law, a norma jurídica é concebida ao jurídicas e nas formas de sua produção. Daí
nível da casuística, isto é, o juiz forma uma que um mesmo instituto jurídico pode assu-
regra para cada caso concreto, na conformi- mir diferentes formas. A tutela, por exem-
dade dos precedentes, em vez de uma regra plo, ora surge como sistema de proteção ao
geral (cf. DAVID, 1964, p. 339). menor, incapaz de fato, ora como garantia
É claro que estamos falando de diretri- para a família, com fundamento no pressu-
zes e princípios que se afirmaram em virtu- posto de que o menor poderia fazer mau uso

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dos bens em detrimento de sua família, ora cer distinções entre os ordenamentos. Na
com ambos os aspectos, sem que tal mudan- concepção tradicional francesa, os direitos
ça de atitude em relação ao instituto tradu- subjetivos são definidos como poder da von-
za modificação relevante no tratamento nor- tade. No Estado nazi-fascista e no antigo
mativo que receba. E sabe-se que as origens Estado soviético, a concepção que as leis
greco-romanas da tutela prendem-se à im- assimilaram em matéria de direitos subjeti-
posição religiosa de manutenção do culto vos atribuía aos indivíduos certo poder de
aos antepassados. coerção no interesse de um grupo social que
Todos os ordenamentos jurídicos do os absorve, o Volk alemão ou a Internacio-
Ocidente assimilaram a tese de que o direito nal Comunista. Em ambos, umafacultas agen-
de propriedade deve sofrer limitações legais, di que não é exercida no interesse pessoal.
pois seu uso não pode vir em prejuízo da Outro exemplo marcante é o modo de
coletividade. Mas o conteúdo dessas limita- desenvolvimento das diferentes instâncias
ções é mais restrito em alguns ordenamen- de normatividade, tratadas pela doutrina
tos, dentro do princípio do direito individu- como fontes formais do direito.
alista da função social da propriedade, e Essas divergências entre os sistemas ju-
mais amplo em outros, de acordo com as rídicos decorrem de vários fatores que po-
doutrinas coletivistas, segundo as quais a dem ser divididos em dois grupos: fatores
propriedade é de todos, podendo estar a ser- de diversificação e fatores de nivelamento.
viço do indivíduo como delegação da co- Os principais fatores de diversificação
munidade. Em ambos, as limitações ao di- são as diferenças de origem dos ordenamen-
reito de propriedade estabelecem sua subor- tos. O individualismo extremado das tribos
dinação a objetivos superiores, que se iden- da floresta contrasta com o associacionis-
tificam com o respeito aos direitos de ou- mo profundo das tribos do deserto, com re-
trem, em uns, e com os ideais coletivistas, percussões nos respectivos usos, costumes
em outros. e leis. Tais diferenças se explicam pelas res-
Nos países capitalistas, a tradição jus- pectivas condições geográficas, pois na flo-
naturalista levou a que se mitigasse o abso- resta as fontes de água potável existem em
lutismo que o instituto do direito de propri- abundância e são relativamente próximas
edade herdara do direito romano, imprimin- umas das outras, ao passo que nos desertos
do-lhe a idéia da função social. Nos países e savanas essas fontes estão separadas por
socialistas, o direito de propriedade foi sim- enormes distâncias. Assim, a união em tor-
plesmente abolido, o que não obstou ao Es- no de uma fonte de água potável é condição
tado atribuir a indivíduos o uso e fruição de de sobrevivência para os habitantes dessas
certos bens, com resultados semelhantes aos regiões, o que não se aplica aos povos da
que os países capitalistas haviam consegui- floresta.
do, embora por caminhos radicalmente Idêntica explicação pode ser dada à evo-
opostos. lução de certos grupos sociais, que, do no-
No mundo contemporâneo, a rigidez das madismo primitivo em função da caça e do
disposições atinentes ao uso da proprieda- pastoreio, evoluíram para o sedentarismo
de, em países que ainda mantêm um siste- das populações que se dedicavam à explo-
ma socialista de governo, tem sido mitigada ração da terra.
pela necessidade de desenvolver uma eco- Os fatores de nivelamento são as condi-
nomia de mercado, em condições de partici- ções que provocam migrações jurídicas. Es-
par do comércio internacional. sas ocorrem tanto pela imposição brutal das
O tratamento dado pela doutrina e pelas leis de um país invasor, como pela pacífica
legislações aos direitos subjetivos também assimilação de um ordenamento jurídico
oferece nuanças que possibilitam estabele- por outro.

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Os exemplos de invasões são inúmeros. envolvimento aumentou de modo tal que, até
Quando os espanhóis ocuparam a América o advento das codificações, erigiu o direito
Latina, introduziram com extrema brutali- romano em jus commune da Europa ocidental.
dade suas leis, sem nenhum respeito pelos Nivelamento semelhante se observa em
costumes autóctones. Na Áustria, o direito matéria de direito de família, mas devido ao
nazista foi imposto no dia seguinte ao da direito canônico.
anexação. Tal como na fase de expansão doutriná-
Nem sempre, porém, o colonialismo de- ria do direito romano, mesmo em assuntos
terminou o nivelamento dos direitos: os fran- em que os juízes não eram obrigados a esta-
ceses tentaram fazer penetrar pela força o tuir conforme o direito canônico, este se im-
seu direito nos países ocupados, mas o fize- punha auctoritate rationis, pois as soluções
ram parcialmente, conservando as leis e cos- canônicas eram consideradas mais conve-
tumes dos nativos em matéria de estatuto nientes do que as preconizadas pelas tradi-
pessoal, e procuraram introduzir suas pró- ções locais.
prias concepções em matéria de direitos re- A influência do direito canônico exerceu-
ais. Certo respeito aos costumes e à tradição se de maneira direta, pois em determinados
dos povos dominados talvez explique o re- assuntos ele se impunha de ofício, não im-
lativo sucesso da colonização portuguesa portando a nacionalidade do juiz, ainda que
na África. as leis e costumes locais estatuíssem de
Mas os exemplos mais notáveis de mi- modo diferente.
gração jurídica foram a expansão do direito Mas ocorreu também uma influência in-
romano e o nivelamento propiciado pelo direta, pois, levando em conta as diferenças
direito canônico. entre a Igreja de Bizâncio e a Igreja Romana,
A expansão do direito romano conheceu os cânones relativos à família eram aplica-
duas fases. dos em toda a Europa, inclusive a oriental,
Inicialmente, em decorrência da expan- favorecendo o nivelamento do direito de fa-
são militar do Império Romano, ocorreu um mília europeu.
nivelamento de costumes dos povos que O movimento de codificação também
habitavam a Europa ocidental. Muito em- contribuiu para a aproximação e nivelamen-
bora tivesse havido no início uma imposi- to dos sistemas jurídicos da Europa e da
ção forçada das regras do jus gentium, sua América Latina, devido principalmente à
assimilação pelos bárbaros se explica me- influência do Código Napoleão, de 1804.
nos pela maneira como ocorreu a imposi- No mundo de língua inglesa, a common
ção manu militari do que pela evidente supe- law britânica foi assimilada pelos Estados
rioridade das leis de Roma e pelo fascínio Unidos da América durante o período colo-
que a civilização romana exercia sobre as nial e expandiu-se por toda a Commonwealth.
tribos bárbaras. Na América do Sul, não se deve olvidar
A segunda fase ocorreu muitos séculos a obra de Teixeira de Freitas, cujo Esboço,
após o desaparecimento do Estado romano. publicado em 1860 como ensaio1, repercu-
Trata-se da expansão doutrinária conheci- tiu na elaboração do Código Civil da Ar-
da como recepção do direito romano, pois, por gentina, de 1867, o qual foi adotado em 1871
sua racionalidade e tecnicismo, pela coerên- pelo Paraguai.
cia e logicidade de seus conceitos, o direito Além da influência doutrinária de Tei-
romano, redescoberto e estudado a partir do xeira de Freitas, registra-se a influência le-
século XI, utilizado inicialmente como fonte gislativa do Código Civil do Chile, de 1855,
subsidiária, foi aos poucos sendo utilizado que serviu de modelo ao Código argentino e
por magistrados que freqüentemente se viam foi adotado pela Colômbia e Equador, com
perdidos no emaranhado de costumes. Esse poucas modificações.

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Costuma-se apresentar a existência da pelos movimentos de subversão da ordem
parte geral do Código Civil Brasileiro, de preestabelecida, saem do circuito onde gra-
1916, como exemplo de influência legislati- vitam os povos vizinhos e vão encontrar-se
va do Código Civil Alemão, de 1900. Segun- em situação de excentricidade em relação a
do a lição de René David (1964, p. 90, § 66, estes. A diversificação começa a se fazer sen-
nota 1), a adoção de uma Parte Geral para o tir quando um grupo social se afasta da re-
Projeto Clóvis Beviláqua se deve menos à lativa uniformidade jurídica que decorrera
influência do Burgerliches Gesetzbuch (BGB) da influência dos desejos comuns, das civi-
do que ao precedente da Consolidação das lizações imitadas e das migrações jurídicas
Leis Civis, de Teixeira de Freitas, de 1858, brutais. Mas esse processo se transforma em
quando, pela primeira vez no mundo, pro- fator de nivelamento se a revolução tiver
pôs-se sob forma legislativa uma parte geral. sido exportada, devido a certo grau de he-
Entretanto, a proposta de Teixeira de Frei- gemonia que leve os grupos vizinhos ao ca-
tas pareceu quebrar a unidade do sistema minho trilhado pela aludida revolução.
jurídico ocidental, se considerarmos a uni- Exemplos históricos significativos desse
formidade que decorreu da expansão dou- processo foram a Revolução Socialista e o
trinária e legislativa do Código Napoleão, Terceiro Reich, que conduziram a Rússia e a
mas se sabe que as vertentes doutrinárias Alemanha a uma posição excêntrica. Mas
de Teixeira de Freitas radicam na escola his- foram experiências revolucionárias efême-
tórica do direito e na hermenêutica concep- ras, que não tiveram o condão de impor-se
tualista dos pandectistas germânicos. aos povos vizinhos, embora tivessem tem-
Outro fator de nivelamento dos sistemas porariamente determinado o nivelamento de
jurídicos, talvez o mais freqüente, é a sim- seus sistemas jurídicos.
ples imitação, pois o conhecimento dos sis- A Revolução Francesa, de 1789, atuou
temas estrangeiros e a comparação com as como importantíssimo fator de nivelamen-
regras nacionais induzem à busca de uni- to, pois os fermentos ideológicos que a ins-
formização. Após a Primeira Guerra Mun- piraram desde logo se impuseram à imita-
dial, verificou-se uma europeização dos ção de todo o mundo ocidental.
Códigos Civis da China e do Japão, o que se Por um caminho diferente, pode o com-
explica em boa parte pelo prestígio da civi- paratista explicar a divergência entre os sis-
lização ocidental no Extremo Oriente. O temas jurídicos, bastando observar o modo
mesmo ocorreu na Turquia, onde o Código como as leis são propostas. Existem assim
Civil Suíço foi adotado integralmente. duas possibilidades: primeiramente, procu-
As revoluções, finalmente, têm-se cons- ra-se exprimir os desejos do grupo interes-
tituído em fator tanto de diversificação quan- sado segundo as aspirações que recebem o
to de nivelamento. assentimento da maioria dos homens que
Sob um ponto de vista sociológico, o fe- compõem o grupo; a segunda possibilidade
nômeno que se convencionou chamar de é a promoção, junto aos membros do grupo,
revolução sintetiza o desenvolvimento de fer- do ideal moral ou político-ideológico que
mentos ideológicos que, à medida que são inspira uma minoria atuante, a qual realiza
absorvidos ou simplesmente impostos pe- esse ideal mediante um certo número de re-
los donos do poder social, tendem a modifi- formas sociais e econômicas. No primeiro
car quase radicalmente os comportamentos caso, temos normas estáticas, também cha-
dos membros do grupo. madas leis naturais, nesse sentido evocado
Tais fermentos se caracterizam por in- pelo comparatismo; no segundo, temos leis
tenso poder de diversificação dos sistemas políticas ou revolucionárias. Leis naturais
jurídicos, ainda que temporário, que se faz ou políticas, segundo a nomenclatura ora
sentir quando os grupos sociais, agitados proposta, são necessariamente divergentes:

256 Revista de Informação Legislativa


primeiro, sobre os pontos nos quais a influ- texto de facilitar o intercâmbio internacio-
ência geográfica ou ecológica é determinan- nal de pessoas, bens e serviços.
te; segundo, na medida em que elas se diri- Em função das necessidades e interes-
gem a grupos cujos graus de evolução ses do mercado mundial, as decisões políti-
econômica ou cujas estruturas sociais sejam cas que devem expressar-se em normas jurí-
diferentes. Assim, admite-se que os Estados dicas assumem cada vez mais uma conota-
Unidos da América e o Brasil não atingiram ção financeira e mercantil, mas ditadas por
idêntico grau de desenvolvimento econômi- grandes organizações empresariais e orga-
co e social, é evidente que suas leis de di- nismos internacionais, tais como o FMI, o
reito econômico não sejam as mesmas; s e BID e o BIRD, além das grandes instituições
a estrutura social da França é diferente financeiras multinacionais, as quais tendem
da estrutura social dos países árabes, o a impor de maneira uniforme suas próprias
direito sindical de ambos não poderá ser regras aos países onde se procura expandir
idêntico. o modo de produção capitalista.
Por conseguinte, na medida em que as Desenvolve-se assim nova lex mercato-
leis são “naturais”, isto é, expressão da ria a presidir o comércio entre firmas, as
maioria, a simples consideração das dife- quais estabelecem uma organização insti-
renças no grau de desenvolvimento econô- tucional que compreende extensa rede de
mico ou nas estruturas sociais explica a dis- franqueadas, representantes e filiais espa-
paridade dos sistemas de direito positivo. lhadas pelo mundo todo, ou seja, as própri-
Quanto às leis políticas ou revolucionárias, as empresas engendram as regras de suas
seu particularismo se demonstra ainda mais trocas comerciais, muitas vezes à margem
evidente, pois em sua maioria são determi- do direito positivo dos lugares onde se ins-
nadas por acidentes históricos. Mas, se no talam.
início as leis revolucionárias são sempre um Além desse pluralismo jurídico transna-
fator de diversificação, elas se constituem cional (COELHO, 2001, p. 100 et seq.), o Es-
em fator de nivelamento quando ocorre a já tado contemporâneo vê minimizada sua
mencionada tendência à expansão no cir- soberania, pois as ordens jurídicas nacio-
cuito onde gravitam os países vizinhos; ou, nais aos poucos se adaptam às exigências
mesmo não sendo do mesmo círculo, naque- dessas novas formas de juridicidade, e que
les que pelo menos possam absorver os ide- o interesse financeiro e mercantil assoma ao
ais que inspiraram a revolução, que devem primeiro plano. Só que essa adaptação é dis-
necessariamente possuir um grau muito farçada por teses sedutoras que a novilín-
grande de atração, podendo repetir-se o ci- gua do direito introduz, tais como, flexibili-
clo das migrações jurídicas ou manifestar- zação, desregulamentação, desconstitucio-
se a lei sociológica da imitação. nalização, etc., eufemismos que disfarçam o
retrocesso em muitas das conquistas histó-
4. A globalização como fator ricas das sociedades, conquistas que já se
de nivelamento achavam consolidadas nas constituições
dos Estados modernos.
A contemporaneidade convive com novo Mas não se trata da retirada do direito
fator de nivelamento dos sistemas jurídicos. positivo em relação à vida social, no senti-
É o fenômeno da globalização, que, articu- do preconizado historicamene pelo libera-
lada com o crescente domínio da informáti- lismo, de que os cidadãos cuidariam muito
ca em todos os setores, está levando as na- melhor de seus negócios à margem do Esta-
ções do mundo a uma unificação de seus do regulamentador, mas de um deslocamen-
direitos positivos, com vistas a estereotipar to da capacidade de normar, implicando
os modelos econômicos das nações, a pre- sua transferência para a esfera privada. Por

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outro lado, esse processo interfere na sobe- a manutenção de um grau razoável de liber-
rania dos Estados quando estes se vêem dade.
obrigados a transigir com grandes organi- Tal afirmação veio a constituir o núcleo
zações financeiras e mercantis, as quais ideológico da tese do fim da história, tratan-
impõem normas previamente negociadas do desde logo o saber oficial de internalizar
por grandes escritórios multinacionais de a convicção de que, com a vitória do capita-
advocacia, contabilidade, auditoria, nego- lismo, nada mais restaria a ser criado, inven-
ciação e arbitragem, os quais atuam em vári- tado ou descoberto pelas ciências humanas.
os países no intuito de adaptarem as respec- Essa vitória do capitalismo teve duas
tivas legislações às exigências dessa nova for- implicações basilares. Num primeiro mo-
ma de dominação (CAPELLA, 1996, 1999). mento, reforça a ideologia que lhe é subja-
Uma análise ainda que superficial des- cente, com a tese de que não existem solu-
sa ideologia põe em relevo um fenômeno de ções para os grandes problemas da huma-
profundo significado: o triunfo do modo nidade e para o equilíbrio da sociedade que
capitalista de produção, calcado no direito sejam alternativas ao capitalismo neolibe-
privado de propriedade e nos princípios da ral. Num segundo, o capitalismo articula-
livre iniciativa e da economia de mercado, o se com a globalização e com a informação,
qual se impõe como modo de produção pre- de modo muito conveniente para sua expan-
valecente, se não o único, no mundo con- são no mundo, já que o capital não tem
temporâneo. quaisquer compromissos com as fronteiras
Esse fato é tão evidente que mesmo os nacionais.
países que, a exemplo de China e Cuba, con- Assiste-se hoje a uma banalização das
servam um sistema de governo inspirado tendências, outrora circunscritas a organi-
no marxismo-leninismo abrem-se aos pou- zações marginais, a afastar o Estado dos
cos para a economia de mercado e tratam de processos multifacetados de tomada de de-
adaptar suas velhas estruturas aos mode- cisões. Organizações não governamentais,
los empresariais capitalistas. serviços de voluntariado, instituições reli-
Trata-se da vitória do individualismo giosas, comunidades de base, associações
consumista sobre o coletivismo socialista. de moradores e outras iniciativas, as mais
Além de banalizar a visão darwinista da das vezes tendentes a suprir deficiências da
sobrevivência do mais forte, agora revesti- atuação oficial do Estado, acabam por re-
da de uma dimensão social e universalista, forçar os ideais comunitários e fundamen-
essa visão é portadora de uma lógica que tar a doutrina da autonomia regulamentar
estabelece a causalidade pura e simples en- da sociedade.
tre meios e fins e uma escala de valores que Esse comunitarismo social repercute
subordina todos os fatores da vida social às também nas organizações empresariais,
exigências da economia capitalista. engendrando certa tendência a elas também
Essa avassaladora arrancada do capita- adquirirem autonomia frente ao Estado, mas
lismo incrementou-se com a derrocada da uma autonomia de caráter jurídico, quando
União Soviética, simbolizada pela queda do organizações empresariais cada vez mais
muro de Berlim, simbolismo que desde logo amplas instituem sua própria regulamen-
sinalizou o fracasso das políticas e dos pla- tação normativa e procuram submeter o di-
nos econômicos socialistas e, paralela e con- reito positivo estatal.
seqüentemente, a afirmação, recepcionada A sociedade atual ostenta, portanto, a
como definitiva, do modo de produção ca- imagem de um complexo de interesses, va-
pitalista como, se não o melhor, pelo menos lores, projetos e exigências de indivíduos e
o único a viabilizar a articulação entre cres- grupos, uma rede de dimensões globais ex-
cimento econômico sustentável, bem como pressada mediante estruturas dos mais di-

258 Revista de Informação Legislativa


versos aspectos, instituídas e constituídas nossas idéias acerca do direito, do papel do
por amplas redes comerciais, sistemas de Estado, das profissões jurídicas e, especial-
produção e distribuição, pelo sistema finan- mente, das teorias da justiça.
ceiro e também pelo mercado de trabalho, Desde tempos imemoriais, a atividade
estruturas que transcendem as fronteiras política da humanidade tem-se resumido na
geopolíticas e culturais. tecnologia de dominar as forças produtoras
Essa realidade repercute evidentemente do homem para que elas não se desviem de
nas concepções comuns de direito, as quais seu objetivo primordial: o lucro. E, para que
passam a articular-se com a idéia de regula- o lucro seja ainda mais lucrativo, vale dizer,
ção autônoma ou semi-autônoma de regi- para que a aplicação do dinheiro se tradu-
ões, localidades, grupos e empresas. Nesse za em maior quantidade de mais-valia, é
amplo contexto, cuja complexidade é agra- necessário que lucro gere lucro, mais-valia
vada em função de uma infinita variedade produza mais-valia, num processo denomi-
de fins e escalões que os expressam, e que nado acumulação de capital.
são articulados por uma rede complexa de A história da civilização não o desmen-
declarações, novas formas de organização te, e nenhuma retórica economicista, nenhu-
social podem dimanar da extrapolação ter- ma sofisticação discursiva vai desmentir
ritorial, nacional e política do conceito de esse fato prosaico, que o capitalismo tende
Estado. a aperfeiçoar-se à medida que se sofistica a
Apesar dessas transformações, a teoria tecnologia da exploração do homem pelo
política mantém o idealismo de sua concep- homem, a qual engendrou as formas primi-
ção juridicista, o Estado concebido em fun- tivas, medievais e modernas de escravidão,
ção de seu território e soberania, voltado as formas modernas e de colonialismo mer-
para o bem do povo. Mas o que verdadeira- cantil, industrial e tecnológico, e agora, a
mente se verifica é o deslocamento do lugar forma pós-moderna de colonialismo virtual.
geométrico da soberania, quando o Estado Nenhum eufemismo será capaz de dis-
perde sua exclusividade para a criação e farçar o fato de que, amparado numa tecno-
revelação do direito, sendo cooptado pelas logia cada vez mais sofisticada, cujo domí-
decisões, impositivas ou participativas, nio tende a restringir-se a países cada vez
oriundas do conjunto econômico de organi- mais ricos e suas organizações empresari-
zações empresariais mundiais. Tal é a nova ais transnacionais, o capitalismo ingressa
forma de organização política da socieda- em nova fase, caracterizada por nova forma
de, por meio da qual se impõe a nova ordem de acumulação que transcende as frontei-
mundial, dominada pelos magnos interes- ras geopolíticas dos Estados nacionais. Ou
ses empresariais mundiais e pelas nações seja, o capitalismo contemporâneo retoma
mais ricas do planeta. sua primitiva e essencial tendência para a
acumulação, com vistas a preparar o desen-
5. A ética do capitalismo e o volvimento de um modo de produção ade-
renascimento do direito quado à nova civilização global.
Esse capitalismo global e virtual está fir-
comparado
memente embasado no neoliberalismo, que
Além dessas conseqüências, a globali- é ao mesmo tempo uma filosofia, uma ideo-
zação, conjugada com o binômio capitalis- logia e um projeto político, a proposta do
mo/neoliberalismo, torna presente uma ter- Estado mínimo, aquele que, mediante um
ceira implicação: a renovada afirmação da processo de desregulamentação da econo-
ética do capitalismo, a qual repercute pro- mia, afasta-se do mercado e retira os obstá-
fundamente na ideologia jurídica e política culos à competição e à livre concorrência,
do mundo contemporâneo, impregnando reservando-se tão-somente às tarefas ineren-

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tes à educação, saúde pública, cultura, la- ração da riqueza, abrem-se questionamen-
zer e administração da justiça. Mesmo nes- tos sobre as vantagens do capitalismo em
ses setores, porém, deve o Estado estimular relação às pessoas, povos e nações margi-
tanto quanto possível as iniciativas empre- nalizados. Isso porque seu efeito distributi-
sariais. vo passa a ser objetivo secundário, somente
O neoliberalismo tem portanto sua uto- tolerado se não obstaculizar a produção em
pia, que paradoxalmente coincide com a si e não interferir no processo de acumula-
utopia socialista, no sentido de que o Esta- ção. É que, paralelamente às necessidades
do tende a tornar-se desnecessário à medi- da produção, gera-se a necessidade de acu-
da que a sociedade se auto-institui, na ple- mulação dos seus resultados, o que importa
nitude da realização dos indivíduos que a afirmar que os ricos tendem a ser cada vez
compõem. mais ricos e menos numerosos, enquanto os
Essa é em síntese a ideologia que se lê pobres permanecem naquele patamar de
nas entrelinhas dos tratados de economia pobreza intrínseca ao sistema.
política e nos documentos que subsidiaram O mal radica então na falta de ética do
a política do governo inglês, eleito pelo Par- discurso capitalista, o qual, centrado na
tido Conservador em 1980, e do governo defesa intransigente da acumulação a pre-
Reagan, a popular reaganomics, que tem ser- texto de favorecer a produção, faz com que
vido de inspiração para os programas polí- essa ótica acumulativa e marginalizadora
ticos neoliberais do mundo subdesenvolvi- prevaleça em todos os espaços da vida soci-
do, inclusive o Brasil, sob a supervisão das al. Só que esse ponto de vista assume hoje
organizações econômicas mundiais, im- uma dimensão planetária.
pregnadas da mesma ideologia e subordi- Se levarmos em conta que a ideologia do
nadas, ainda que subjacentemente, aos mes- capitalismo impõe de modo cada vez mais
mos interesses da dominação econômica enfático a submissão da ética à economia,
mundial. podemos inferir, prosaicamente, que a ética
A ética do capitalismo é a exploração do do capitalismo global é a carência de ética,
homem pelo homem, tornada legítima por ou seja, uma ética aética.
mecanismos ideológicos que a disfarçam sob Quando se observa o atual panorama
forma de princípios, valores, conquistas, mundial, nota-se que o progresso científico
benefícios e outros mitos. E a lógica do capi- e tecnológico muito pouco está contribuin-
talismo é o nexo imputativo que liga a ex- do para superar as mazelas que ainda se-
ploração do homem pelo homem com a acu- param os povos da terra, pois o mundo está
mulação de capital, hoje cada vez mais iden- sendo levado a aprofundar os desequilíbri-
tificada como concentração de renda, mas os sociais e, em muitas regiões, ao agrava-
igualmente dissimulada sob eufemismos e mento da fome, da miséria, do desemprego
mentiras filosóficas e pseudocientífica, tais e da desesperança.
como, desenvolvimento, bem-estar social, Esperava-se que, após a queda do muro
ordem e progresso, etc., mas que no fundo de Berlim em novembro de 1989, as amea-
se subordinam à necessidade de gerar ri- ças de guerra em nível mundial envolvendo
queza material. as superpotências estariam relegadas ao
Evidentemente, a produção material da passado. Entretanto, dados coligidos por
riqueza não é um mal, pois a racionalidade entidades governamentais e não governa-
humana a impõe como causa e efeito do pro- mentais, como o Alto Comissariado das
gresso da humanidade. Isso não obstante, Nações Unidas para Refugiados e o Conse-
quando ela se articula com a necessidade lho de Defesa Nacional dos EUA, reportam
de acumulação e com a marginalização das que, na década anterior a novembro de 1995,
pessoas excluídas dos benefícios dessa ge- mais de cinqüenta milhões de pessoas ha-

260 Revista de Informação Legislativa


viam sido forçadas a abandonar seus lares sorve apenas parte da mais-valia apropria-
para fugir de conflitos, atrocidades e diver- da, a qual tende a jamais ser suficiente para
sas formas de intolerância, perseguição e fazer reverter a produção.
opressão. Cerca de setenta e um conflitos Essa lógica do crescimento contínuo está
armados haviam sido contados entre 1789 aliada à busca do maior lucro possível, o
e 1989, destacando-se as atrocidades come- que exige a destruição de todas as formas
tidas por déspotas e ditadores contra seu alternativas ligadas à economia voltada
próprio povo. Reporta a agência de notícias para a satisfação das necessidades elemen-
Associated Press que, durante o século XX, tares de uma vida digna.
os assassinatos perpetrados no interior das A situação atual confirma essa caracte-
nações, a guerra da nação contra si mesma, rística essencial do capitalismo e sua lógica
haviam excedido as mortes causadas pelas intrínseca, exigindo a concentração da pro-
guerras convencionais contra inimigos de dução com tendência a monopólios, ao for-
fora das fronteiras. E cita os expurgos esta- talecimento dos bancos, que manipulam
linistas, a revolução cultural chinesa, os valores cada vez maiores, e à exportação de
campos da morte do Camboja, a limpeza ét- capitais, que tende a ser mais característica
nica na Bósnia, os horrores de Ruanda, mais da atual fase de expansão do que a exporta-
de 170 milhões de vidas sacrificadas pela in- ção de mercadorias.
tolerância ideológica (ROY, 199-?, p. 8 et seq.). Como conseqüência, o excedente de ca-
O que esperar do século que ora inicia? pitais não se consagra à elevação do nível
O historiador Arthur Schlessinger, ganha- de vida interno, mas à emigração e busca de
dor do prêmio Pulitzer, adverte que, se o sé- áreas menos desenvolvidas onde encontre
culo XX foi o da guerra das ideologias, o aplicação mais lucrativa. Ou seja, mais do
século XXI começa como sendo o das guer- que aético, o capital é apátrida.
ras étnicas (ROY, 199-?, p. 8 et seq.). Com Algumas respeitáveis opiniões, entre as
efeito, as antigas ameaças guerreiras, que quais as de Pierre Bourdieu e Alain Tour-
opunham Estados e nações, hoje foram subs- raine, admitem uma ética do mercado con-
tituídas por guerras relacionadas com ter- traposta às exigências da eqüidade social
rorismo, fundamentalismo político e religi- como a única que se mantém após o desmo-
oso, conflitos étnicos e tribais, narcotráfico ronamento do comunismo. Uma ética de
e novas formas de escravidão, como a pros- comerciantes, a qual faz as vezes de moral
tituição e o tráfico internacional de traba- pública e persegue a trindade moral clássi-
lhadores. Estes, para fugir do desemprego ca da bondade, beleza e verdade.
em seus países de origem, preferem a condi- Por outro lado, os atuais teóricos do ca-
ção de imigrantes ilegais e são submetidos pitalismo procuram banalizar uma ética
a condições desumanas de trabalho. que, se não é nova, como já asseverara Max
Não será exagero afirmar que por detrás Weber (1967), renova-se em argumentos de
desse panorama impressionante, nada alen- base empírica que vão fundamentar uma
tador, está a ética, ou melhor, a falta de ética escala de valores adequada aos interesses
do capitalismo global, a ética aética do ca- do capital, com repercussões no conceito
pitalismo. mesmo de justiça, subordinando-o aos sen-
A tendência fundamental do capitalis- timentos das well ordered societies2, bem como
mo é seu próprio fortalecimento, o que exige uma racionalidade que tudo subordina à
uma expansão contínua, dissimulada sob o relação de causalidade entre meios e fins.
eufemismo do crescimento econômico. Daí, A cavaleiro das transformações da eco-
o não menos constante crescimento da de- nomia mundial, e reforçada pela idéia es-
manda de mercadorias, pois o consumo, por drúxula do fim da história3, essa ética tende
mais que cresça em termos absolutos, ab- hoje a identificar os valores da cultura euro-

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péia e americana, impregnados das noções privadas de sua funcionalidade e são sub-
básicas do capitalismo, que reforçam o di- metidas à funcionalidade dimanada das
reito de propriedade, a liberdade contratual grandes organizações capitalistas centrais,
e a livre iniciativa, como o que de melhor a que atuam por meio de extensa rede de em-
humanidade terá produzido e que jamais presas franqueadas, filiais, coligadas, aglo-
produzirá. meradas ou simplesmente representantes.
A produção da mais-valia como meca- Tal como as organizações sociais primi-
nismo pelo qual o capitalismo se desenvol- tivas, essas formas de sobrevivência da eco-
ve, e sua tendência predatória diante de nomia natural ainda formam a base da exis-
outros modos de produção, sempre consti- tência material das sociedades e constitu-
tuiu o núcleo do pensamento dos grandes em uma alternativa ao desemprego ou su-
teóricos do socialismo, e nenhuma ética é bemprego, ou meio de escapar à miséria sem
hoje capaz de elidir ou justificar esse fato deixar-se cooptar por organizações crimi-
prosaico, que para alguém enriquecer é ne- nosas. É fato notório que os bolsões de misé-
cessário, além do próprio trabalho, o con- ria na periferia das grandes cidades alimen-
curso do trabalho de outros, cuja produção tam a mão-de-obra do narcotráfico e do cri-
transformada em mercadoria tende a acu- me organizado. Isso não obstante, na medi-
mular-se nas mãos de quem enriqueceu à da em que representam obstáculo à expan-
custa do trabalho alheio. são do capitalismo como forma prevalecen-
O fato é que a generalização da forma te de produção, o poder desagregador do
mercantil do produto atribui ao modo de capital leva ao aniquilamento sistemático
produção capitalista um poder fortemente das organizações sociais que procuram vi-
desagregador. Enquanto as formações pré- abilizar esses resquícios de economia natu-
capitalistas se caracterizam pela coexistên- ral, tendo como resultado o aumento dos
cia estável de modos diversos, articulados e bolsões de miséria e deixando a juventude à
hierarquizados, o modo capitalista se carac- mercê da sedução da criminalidade.
teriza pela tendência a converter-se em ex- Nessas formações ligadas à economia
clusivo, destruindo os demais, o que pres- natural, procura-se produzir para consumo
supõe expansão e aprofundamento do mer- próprio, e como muito dificilmente ocorre
cado interno. demanda de mercadorias estranhas ao con-
Se esse fato é evidente nos países de eco- sumo, as formas de economia natural ofere-
nomia mais desenvolvida, que puderam es- cem rígidas barreiras às necessidades do
truturar centros industriais altamente sofis- capital. Isso explica porque, onde quer que
ticados e poderosíssimas redes mercantis e se instalem as grandes organizações repre-
financeiras, nos países ditos emergentes, sentativas do capital central, a exemplo dos
como o Brasil, a Argentina, o Chile e o Méxi- “shopping centers” e das redes de super-
co, a situação é mais cruel. mercados gigantes, surge a necessidade de
Nessa espécie de capitalismo periférico, travar um combate mortal contra a econo-
cujas regras são impostas ou induzidas a mia natural na forma histórica com que se
partir daquele capitalismo central, ainda apresenta, o pequeno comércio urbano e
sobrevivem formas de economia natural que, rural, os botequins de beira de estrada, as
nos centros urbanos, manifestam-se por feiras livres e os camelôs, por exemplo.
meio das pequenas e médias empresas, ou No Brasil, como de resto nos países situ-
simples atividade de sobrevivência, a exem- ados na periferia do capitalismo, a destrui-
plo dos camelôs, constituindo uma econo- ção predatória das formas de economia na-
mia informal. tural ligadas à exploração da terra, ao pas-
Essas formas periféricas não são destru- toreio, à indústria e comércio familial, ao
ídas ou desagregadas totalmente, mas ficam artesanato e outras formas espontâneas, nas

262 Revista de Informação Legislativa


quais se incluem também as microempre- nham o produto interno bruto dos quarenta
sas e outras iniciativas geradoras de empre- e oito países mais miseráveis do mundo, e
go, engendrou o abandono do campo, a des- ainda que, mesmo nos países mais ricos do
truição da pequena propriedade rural e o mundo ocidental, um quarto da população
absurdo crescimento das populações urba- seja classificada como em estado de pobre-
nas, onde as elites econômicas e a classe za. Ou seja, o capitalismo hoje patrocina a
média vêem-se sitiadas por uma imensa produção em série de ricos nos países po-
população de favelados. E quaisquer tenta- bres e pobres nos países ricos.
tivas de reversão desse processo perverso, Trata-se de uma irresistível tendência à
promovendo-se, por exemplo, uma reforma marginalização das pessoas, articulada com
agrária coma da redistribuição da terra, ou uma implicação avassaladora que a própria
a implementação de uma política de favore- lógica do sistema engendra, a exigência de
cimento à pequena empresa, encontram os acumulação das riquezas produzidas pelo
obstáculos da dificuldade de acesso ao cré- trabalho social.
dito, do enfrentamento dos monopólios e Se levarmos em conta que a atual crise
cartéis dissimulados e até da incompreen- do direito se confunde com a crise ética do
são ideológica dos que ainda vislumbram capitalismo neoliberal globalizado, que o
os fantasmas do comunismo e da destrui- mundo atual em nada difere do vivido pe-
ção dos valores cristãos. los comparatistas dos anos sessenta, salvo
Ciuro-Caldani (2000, p. 10), a propósito, o agravamento dos problemas que sempre
destaca outro paradoxo do capitalismo con- afligiram a humanidade, bem como sua
temporâneo: ele inclui, quase sem fronteiras, maior amplitude, eis que hoje extravasam o
as pessoas, materiais e espaços de que ne- âmbito relativamente restrito em que ocorri-
cessita, e exclui todo o resto. Por isso, especi- am para adquirir dimensões planetárias, a
almente quando se trata de pessoas, pode- lembrança do contexto em que se desenvol-
se dizer que o atual processo de globaliza- veu o comparatismo servirá para justificar
ção é ao mesmo tempo um processo de mar- a retomada de seus estudos.
ginalização, o qual ocorre em nossos dias com No mundo atual, o projeto epistêmico de
a força especial que possui o capitalismo uma ciência jurídica universal parece cada
desenvolvido, cujas técnicas o fazem ocu- vez mais distante, em face do triunfo da con-
par todo o âmbito planetário. Enfatiza o cepção dogmática do direito e da avassala-
autor que já não se pode falar numa divisão dora virtualização decorrente de uma tec-
do trabalho social, mas de uma crescente ex- nologia de informação jurídica cada vez
clusão do trabalho (CIURO-CALDANI, 2000, mais sofisticada, que, paradoxalmente, iso-
p. 11). Com efeito, ao que hoje assistimos é la e exclui em vez de aproximar. Apesar dis-
um distanciamento crescente das socieda- so, o mundo atual oferece o quadro para um
des em geral quanto à tão sonhada igualda- renascimento, não somente do direito com-
de, à medida que se aprofundam as desi- parado como forma de saber jurídico, como
gualdades como meio de incrementar a pro- também, e principalmente, para um resgate
dução competitiva que impõe uma espécie dos ideais do comparatismo.
de darwinismo social, que joga na fossa co- As reflexões sobre a ética aética da for-
mum da exclusão social o hipossuficiente, ma atual do capitalismo podem ser articu-
o débil, o enfermo, o velho, o imigrante, o ladas com as reflexões em torno das possi-
pobre, os quais sucumbiram na luta contra bilidades de resgate desses ideais, o que tal-
o mais forte. O darwinismo neoliberal glo- vez sirva de inspiração para que o direito se
balizado permite que duzentos e vinte e cin- transforme em veículo de impregnação de
co ricos possuam tanto quanto dois bilhões um mínimo de ética na comunidade das
e meio de pobres, e que três bilionários dete- nações.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 263


Relembremos que o ideal do compara- dêmicos, a comunicação mais intensa entre
tismo surgiu e se desenvolveu nos anos ses- as instituições universitárias e o desejo ja-
senta, num mundo dividido pela guerra fria mais sufocado de promover a solidarieda-
e numa Europa ainda mais dividida pela de entre as nações fornecem efetivamente
herança da segunda guerra mundial. Essa o caldo para resgatar a dimensão univer-
herança guardava as imagens do holocaus- sal do direito por meio do direito compa-
to e das atrocidades cometidas contra as rado.
populações civis, o que redundava em ódio Que se possa igualmente impregnar a
e ressentimento. teoria e a práxis do direito com o sentido
O direito comparado, que sempre fora ético de uma ciência que, respeitando as
considerado somente um método auxiliar diferenças, volte-se para a união dos po-
na interpretação da lei, passou a ser visto vos.
como um esforço para suprir as conseqüên-
cias teóricas e práticas da nacionalização
dos ordenamentos jurídicos. Como resulta- Notas
do, foram consolidados os fundamentos
epistemológicos que possibilitaram seu es-
1
NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império,
v. 3, p. 212, nota 2, apud Beviláqua (1959, v. 1, p.
tudo como disciplina jurídica autônoma e,
12).
mais ainda, como a própria ciência jurídi- 2
Rawls (1981).
ca voltada para um objeto que transcen- 3
Fukuyama (1989).
dia as fronteiras geopolíticas dos Estados
nacionais, o direito como fenômeno uni-
versal.
Mas uma conotação ética profunda pre- Bibliografia
sidia seus estudos, pois se almejava a união
BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil comentado. [S. l:
dos povos mediante a unificação dos siste- s. n.], 1959. v. 1.
mas jurídicos nacionais em “famílias de di-
CAPELLA, Juan Ramón. En el límite de los derechos.
reitos”, expressão cunhada por René David
Barcelona: EUB, 1996.
(1964).
Essa ética da união dos povos levava em ______. Fructa prohibida. 2. ed. Valladolid: Siman-
cas, 1999.
conta a estrutura do Estado e o poder políti-
co, ainda que privilegiando a face jurídico- CIURO-CALDANI, Miguel Angel. Globalización/
normativa desses fenômenos, com a função Marginación: implosión demográfica? Bioética e Bi-
odireito, Rosário, n. 5, 2000.
definida de unificar o direito, promover a
compreensão e a colaboração internacional, COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro. Flori-
estimular a solidariedade entre os povos e anópolis: Fundação Boiteux, 2001.
valorizar o conhecimento do direito nacio- DAVID, René. Les grands systèmes de droit contempo-
nal, mediante a sua integração no contexto rains. Paris: Dalloz, 1964.
geral da cultura dos povos (DAVID, 1964, FUKUYAMA, Francis. The end of history? The Na-
p. 8 et seq.). tional Interest, n. 16, Summer, 1989.
No mundo atual, ainda que o projeto RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de
epistêmico de uma ciência jurídica univer- Vamireh Chacon. Brasília: Ed. UnB, 1981.
sal pareça cada vez mais distante, em face
ROY, Michel. The future foretold. Orange: Family Care
do triunfo da concepção dogmática do di- Foundation, [199-?].
reito e da avassaladora virtualização decor-
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capita-
rente de uma tecnologia de informação jurí- lismo. Tradução M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e
dica cada vez mais sofisticada, esse alcance Tamás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Pioneira,
ético se faz presente. Os intercâmbios aca- 1967.

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