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Sumário
1. Breve introdução ao direito comparado.
2. As famílias de direitos. 3. O nivelamento dos
sistemas jurídicos. 4. A globalização como fa-
tor de nivelamento. 5. A ética do capitalismo e
o renascimento do direito comparado.
1. Breve introdução ao
direito comparado
Anna Maria Villela foi uma das poucas
personalidades do mundo jurídico brasilei-
ro que cultivava o direito comparado como
ponto de vista especial referido ao saber ju-
rídico. Mercê de seu trabalho intelectual
como professora da Universidade de Brasí-
lia e do Instituto Rio Branco, de sua atuação
como Consultora Legislativa do Senado Fe-
deral, onde também se destacou como Dire-
tora de Publicações, além de haver atuado
como assessora da Assembléia Nacional
Constituinte, que elaborou a Constituição
de 1988, pode-se dizer que Anna Maria Vil-
lela foi a grande representante no Brasil, não
somente do direito comparado como dou-
trina, mas também do comparatismo como
ideal de ética nas relações internacionais.
A reflexão sobre as possibilidades de res-
gate do direito comparado, com o sentido e
alcance que os mestres da Assotiation Inter-
nationale de Droit Comparé e da Faculté Inter-
nacionale pour l’Enseignement du Droit Com-
paré, de Estrasburgo e Barcelona, cujos cur-
sos e seminários foram por ela freqüenta-
dos, é, portanto, uma homenagem que cer-
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tamente haverá de apreciar, desde a dimen- se cogitava de limitações geográficas ou
são atemporal em que se encontra. políticas em relação ao estudo científico de
O direito comparado desenvolveu-se a suas instituições, do mesmo modo que o es-
partir de uma concepção universalista do tudo da filosofia grega não circunscrevia a
direito, denominador comum das tentativas filosofia a seu país de origem, a Grécia clás-
de estruturar o saber jurídico como ciência sica. Idêntica universalidade também ocor-
universal, a despeito da compartimentação rera na Idade Média, quando o direito canô-
de seu objeto, decorrente das fronteiras geo- nico unia os Estados feudais sob um único
políticas dos Estados. Nesse contexto, o re- ordenamento em relação a diversas ques-
pensar dos fundamentos do direito, em fun- tões, e na época pré-renascentista, quando
ção da metodologia engendrada pelo direi- o direito romano redescoberto era ensinado
to comparado, representou um dos esforços nas primeiras universidades e se constituí-
mais profícuos para a superação do vetusto ra em jus commune da Europa.
ceticismo epistemológico que minimizava o O processo de separação dos sistemas
caráter científico dos estudos jurídicos, re- jurídicos acompanhara a racionalização da
legando-os a mera técnica de persuasão, sim- sociedade e se afirmara com a consolidação
ples exercício de um jogo argumentativo. do Estado moderno, o que culminou, quan-
Entretanto, o desiderato de restabelecer to à jurisprudência, com as escolas dogmá-
a dimensão universalista do direito como ticas desenvolvidas após as grandes codifi-
forma de saber viu-se frustrado, em virtude cações, especialmente o Código Napoleão.
da conjugação de fatores os mais diversos: A compartimentação dos direitos positi-
a parafernália legislativa que tem inunda- vos importou em idêntica compartimenta-
do os direitos positivos das nações moder- ção da ciência do direito, pois o ensino jurí-
nas, a maior complexidade das relações ju- dico passara a ser tão dogmático quanto seu
rídicas, o domínio cada vez maior da men- objeto, o que, em função da mentalidade
talidade dogmática na atuação profissional positivista que via na filosofia uma ancilla
dos operadores do direito, a própria educa- scientiarum, havia absorvido a tendência a
ção jurídica, insistentemente voltada para a minimizar os estudos de teoria geral e de
busca de resultados imediatos nesse traba- filosofia do direito, último baluarte da uni-
lho, a conseqüente minimização da teoria versalidade do direito, chegando até sua eli-
geral e da filosofia do direito nos currículos minação dos currículos dos cursos jurídi-
dos cursos jurídicos, tudo isso contribuiu cos ou sua redução qualitativa e quantitati-
para que o direito comparado, como méto- va no conjunto das disciplinas, fato esse
do e como ciência, caísse em relativo esqueci- agravado pela perda do alcance ético dos
mento. Daí a importância de seu resgate, um fundamentos do direito.
serviço a ser prestado à ciência do direito. Estudado em algumas instituições uni-
O direito comparado haure suas raízes versitárias especialmente importantes, ao
na própria história do direito europeu. Lem- tomar-se consciência desses fatos da evolu-
bre-se que a compartimentação dos estudos ção histórica da ciência jurídica, o direito
jurídicos já é fruto dos tempos modernos, comparado surgira como possível resposta
pois época houve em que os conhecimentos à necessidade de resgate daquele tradicio-
jurídicos tinham o mesmo foro de universa- nal sentido de universalidade, o que igual-
lidade que os de qualquer outra ordem cien- mente respondia às exigências cada vez
tífica. Foi a época em que as instituições ro- maiores determinadas pelo incremento das
manas, por sua racionalidade técnica, im- relações internacionais.
punham-se ao direito costumeiro da Euro- O ponto de partida do direito compara-
pa ocidental e, embora se tratasse de um di- do é o fato de o Estado não ser mais que
reito referente a um povo e a um Estado, não acidente histórico, sem dúvida durável, mas