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Diferenças sociais e ações afirmativas

A luta pela igualdade

Hamilton Vieira Ramos

Sumário
1. Introdução. 2. Diferenças sociais. 3. Desi-
gualdades sociais. 4. A evolução do Estado de
Direito. 5. Ações afirmativas. 6. Conclusão.

1. Introdução
As Políticas de Ação Afirmativa pressu-
põem uma situação de desigualdade nos
níveis de gozo e fruição dos bens e direitos
produzidos numa determinada sociedade.
Neste artigo, primeiro vislumbraremos
alguns dos fatores históricos que deram ori-
gem a essas distorções para, em seguida,
lançarmos nossa opinião acerca da viabili-
dade ou não das políticas idealizadas com
vistas à sua correção.
O tema ações afirmativas é muito atual e
encontra-se intimamente relacionado com
a evolução do princípio da igualdade. Nos-
so objetivo é verificar se, frente ao significa-
do que os textos constitucionais modernos
consagram para esse princípio, estaria o
Poder Público juridicamente autorizado a
levar a efeito políticas públicas de caráter
Hamilton Vieira Ramos é Analista Legisla-
diferencialista1 que tenham por finalidade
tivo do Senado Federal, Especialista em Análi-
se de Constitucionalidade. a igualação das oportunidades entre os di-
Artigo produzido com base no Trabalho de versos segmentos sociais.
Conclusão do Curso de Especialização em Aná-
lise de Constitucionalidade, promovido pela 2. Diferenças sociais
Universidade do Legislativo Brasileiro – UNI-
LEGIS em parceria com a Universidade de Bra- O problema das diferenças sociais está
sília – UnB, como requisito para a obtenção do relacionado com a existência, no seio de uma
título de Especialista. Orientador: Prof. José mesma sociedade, de grupos humanos ca-
Eduardo Elias Romão. racterizados por variados padrões estéticos
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e fenotípicos, bem como por costumes, hábi- ticas psicológicas de cada grupo analisado
tos alimentares, práticas religiosas, e valo- e, a partir daí, à sua hierarquização. O re-
res culturais diversos. sultado era a confirmação das teses socioló-
Para explicar as diferenças físicas e com- gicas já em vigor, o homem branco era, sem
portamentais observáveis entre os grupos dúvida, de raça superior, o amarelo situa-
humanos, foram criados dois termos: raça e va-se numa posição intermediária, e o ne-
etnia. gro estava, realmente, mais próximo do rei-
O primeiro, a raça, é utilizado para dife- no animal (Vieira Júnior, 2005, p. 46).
renciar elementos da mesma espécie, estan- O Professor Munanga (2003) observa que
do, portanto, relacionado a aspectos biofisi- “a concepção do racismo baseada na ver-
ológicos, como os padrões estéticos e fenotí- tente biológica começa a mudar a partir dos
picos. anos 70 [...]” e, em 15 de novembro de 1998,
O segundo, a etnia, constitui uma cate- a revista Isto É publica recente pesquisa de
goria antropológica destinada à considera- autoria do biólogo Alan Templeton, que de-
ção de elementos culturais como língua, re- pois de comparar mais de oito mil amostras
ligião, costumes alimentares e comporta- genéticas colhidas alheatoriamente de pes-
mentos sociais, reproduzidos no interior de soas em todo o mundo, concluiu que não há
grupos humanos não muito distantes em sua raças entre os seres humanos porque “as
aparência, ainda que não necessariamente diferenças genéticas entre grupos das mais
vinculados por nacionalidade comum, em- distintas etnias são insignificantes”.
bora quase sempre compartilhando territó- Assim, toda referência a raça não passa
rio comum e se organizando como popula- mesmo de pretexto para exploração, domi-
ção geral desse território. nação e manutenção de status. É o que pode-
Sant’Ana (2005, p. 43) informa que até a mos depreender também das palavras de
Idade Média, a exploração do homem pelo d’Adesky (2001, p. 48): “[...] Embora o conti-
homem com base em suas características nente africano devesse ser, teoricamente,
grupais se dava em consideração a fatores isento de tensões raciais, a realidade mos-
relacionados à religião, à política, à naciona- tra serem (ali) abundantes os conflitos inte-
lidade ou à linguagem do grupo dominado, rétnicos. É o caso de Ruanda e do Burundi,
mas nunca a eventuais diferenças biológicas em especial, onde etnias encontram-se ex-
ou raciais. As teorias e doutrinas biológicas cluídas do centro das decisões políticas, ali-
surgiram depois, como instrumentos destina- jadas dos altos postos das funções públi-
dos à geração de argumentos mais sólidos, cas, sofrendo igualmente restrições no aces-
que melhor garantissem a dominação, propi- so à escola e à universidade. Nesses países,
ciando para que essa se desse de maneira o a inserção étnica caracteriza-se, não pela cor
menos possível contestada e, conseqüente- da pele, uma vez que todos são negros, mas
mente, menos dispendiosa e arriscada. principalmente pela forma do rosto, pela
Embora a submissão com base na raça envergadura e pela altura do indivíduo”.
haja se iniciado ainda no início do século Com a cessação das formas de discrimi-
XVI, a introdução de elementos biológicos nação mais explícitas, como a escravidão e
nesse conceito só veio a ocorrer no final do o apartheid, o mundo pareceu convencer-se
século XVIII, após a revolução industrial de que a prática do racismo estava elimina-
européia, tendo resultado de estudos com- da e de que suas conseqüências prossegui-
parativos procedidos no crânio (frenologia) am em decorrência do processo de introje-
e no rosto (fisionomia) de exemplares hu- ção, fenômeno que faz com que formulações
manos pertencentes aos diversos grupos. culturais antigas sejam retransmitidas e
Por meio dessas análises, os pesquisadores continuem atingindo, moral e psiquicamen-
se julgaram aptos a definirem as caracterís- te, as sucessivas gerações, provocando, nos

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grupos estigmatizados, um senso comum de Essa evolução da idéia de raça, que pas-
inferioridade e de perda da auto-estima, e sou, então, a ser compreendida a partir de
reforçando, no grupo dominante, o seu com- caracteres étnicos e políticos, possibilita, nas
plexo de superioridade. palavras do Professor Kabengele Munanga,
Dante Moreira Leite, apud Vieira Júnior qualificar de racismo “qualquer atitude ou
(2005, p. 179), sustenta que: “o passado atua comportamento de rejeição e de injustiça
no presente e pode ser uma força determi- social”.
nante da ação, mas isso só ocorre quando Nesse contexto, é de notar-se que as prá-
forças do passado continuam no presente ticas racistas se adequaram ao novo concei-
(...). Não existe a ‘misteriosa comunicação’ to e que as desigualdades sociais com as
do passado com o presente, a não ser que quais nos deparamos não resultam apenas
aquele continue a atuar diretamente neste; das discriminações do passado, mas cons-
ou, em outras palavras, quando se transfor- tituem também efeitos de atos preconceituo-
ma a situação, o que continua a influir é sos do presente.
apenas o que, na situação nova, restou da A transformação verificada permite tam-
anterior”. bém que a idéia de racismo retroaja, pois,
No mesmo sentido são as palavras do como vimos, até a Idade Média a explora-
Professor Munanga (2003), que assegura que, ção do homem pelo homem justificava-se em
depois do descrédito das teorias que susten- fatores como religião, política, nacionalida-
tavam a cientificidade da idéia de raça, assiste- de e linguagem do grupo dominado, os mes-
se “ao deslocamento do eixo central do racis- mos em que atualmente se funda.
mo e ao surgimento de formas derivadas, tais
como racismo contra mulheres, contra jovens, 3. Desigualdades sociais
contra homossexuais, contra pobres, contra
burgueses, contra militares, etc. [...]”. Essa consideração dos grupos humanos
Prestigiando esse entendimento, em se- a partir de sua posição nessa idealizada
tembro de 2003, nossa maior Corte de Justi- hierarquia, vai gerar a idéia de maioria e
ça decidiu o Habeas Corpus no 82.424/RS, minorias, conforme o pertencimento ao gru-
que tinha como paciente um escritor e edi- po de mando ou às camadas de subserviên-
tor gaúcho acusado de editar, distribuir e cia, variáveis de acordo com o território e o
vender obras literárias de cunho anti-semita. período histórico. Da perspectiva que temos
Em seus itens de números 3, 4 e 16, a aqui, que seria a busca de um instrumento
ementa do respectivo acórdão pronuncia- hábil a definir os grupos de menor grau de
se sobre os problemas raça e racismo, reafir- prestígio e influência no seio de determina-
mando a imprescritibilidade dos crimes a da sociedade, o sentido que se deve dar ao
eles relacionados. termo minoria é o antropológico social, que,
Dada a sua natureza de síntese, a ementa no Dicionário Aurélio Eletrônico, por opo-
desse julgamento, não podendo se alongar sição ao termo maioria, aparece como
muito na referência que faz a respeito de raça, “Subgrupo que, dentro de uma sociedade,
limitou-se a dizer que “A divisão dos seres considera-se e/ou é considerado diferente
humanos em raças resulta de um processo do grupo maior e dominante, em razão de
de conteúdo meramente político-social”. características étnicas, religiosas, ou de lín-
Vemos, então, que também para o Judici- gua, costumes, nacionalidade, etc., e que em
ário brasileiro o conceito de raça ultrapassa razão dessas diferenças não participa inte-
os limites das características físicas para gralmente, em igualdade de condições, da
assumir as mais diversas formas, especial- vida social”.
mente as relacionadas ao comportamento A pretexto de suas particularidades, às
social. minorias não é dado participar das decisões

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do Estado, não dispondo elas, conseqüen- foi a enorme acumulação e concentração de
temente, das mesmas oportunidades de renda e de patrimônio. Em decorrência dis-
gozo e fruição dos direitos fundamentais. E so, o que se viu foi uma rápida dissemina-
é exatamente essa distância, essa diferença ção da pobreza e da miséria.
de poder, de influência e de prestígio, refle- É nesse clima que vai se revelar o estado
tida nas oportunidades de efetivo acesso aos social-democrático. Seguramente não antes
bens e serviços produzidos pela sociedade, de muitas lutas e muitos protestos. A carac-
que vai constituir as chamadas desigualda- terística deste novo modelo de Estado é o
des sociais. dirigismo econômico. Desaparece o État Gen-
darme, que dá lugar ao Estado ativo, inter-
4. A evolução do Estado de Direito vencionista, preocupado com o bem-estar
do cidadão.
A primeira forma de Estado de Direito A liberdade individual é afetada também
foi o Estado Liberal, que apareceu em con- pela transformação do princípio da igual-
traposição ao Estado Absolutista, assim ca- dade, que abandona seu aspecto formal para
racterizado pelo poder absoluto que detin- assumir um caráter material. A livre inicia-
ha o soberano, no qual vigorava uma situa- tiva e a livre concorrência, tidos como pila-
ção estamental de privilégios e sujeições res do liberalismo, começam a ser restringi-
baseadas na condição de nascimento. dos. A propriedade passa a ter seu uso con-
Como reação a esse sistema “elitizante” dicionado à sua função social2.
e discriminatório, eclode, em 1789, a Revo- Surgem os direitos sociais, uma segun-
lução Francesa, que logrou consagrar e nor- da geração de direitos fundamentais que tem
matizar os direitos fundamentais do homem, por finalidade democratizar o acesso aos
inicialmente identificados com a liberdade, direitos de primeira geração, às liberdades
a igualdade e a fraternidade. clássicas que se pensava poderiam, por si
Nesse novo contexto, perante a lei todos sós, fazer de cada pessoa efetivamente um
eram considerados iguais. Juridicamente, cidadão. Era o reconhecimento de que os
nenhuma distinção poderia ser feita. Era o direitos a serem deferidos por meio da auto-
auge do formalismo. Na área econômica vi- nomia garantida pelo absenteísmo do Esta-
gia absoluto o princípio da não-intervenção do só estariam a todos realmente disponibi-
do Estado. Só havia lugar para o regime de lizados se todos tivessem atendidas as suas
competição. As leis do mercado faziam o necessidades vitais básicas, tais como a ali-
único regulamento. mentação, a habitação, a saúde e a educa-
O compromisso do Estado Liberal era, ção. Sem o acesso a essas condições bási-
então, exclusivamente com os direitos indi- cas, ficava inviabilizado o sistema de com-
viduais. Para que não houvesse risco de que petição institucionalizado. Não havia igual-
fossem esses prejudicados, foram positiva- dade de oportunidades na disputa. Enquan-
dos os princípios da legalidade, da separa- to uma parcela lutava pela sobrevivência,
ção dos poderes e da liberdade contratual. pelo atendimento de suas necessidades bá-
Nesse ambiente de extrema empolgação e sicas, a outra, já livre dessas limitações,
apreço pela liberdade, não se fez nenhuma avançava para a conquista e acumulação,
previsão para direitos de ordem social, eco- cada vez maiores, de riqueza e de poder.
nômica ou cultural. A autonomia individu- Assumindo como seu o encargo de a to-
al só encontrava limites nos direitos que os dos garantir essas condições mínimas de
outros detinham sobre a mesma autonomia. bem-estar econômico, social e cultural, ne-
O resultado dessa irrestrita liberdade de cessárias para que a concorrência pudesse
iniciativa econômica, associada à total proi- se dar em um ambiente de maior igualdade
bição de tratamento jurídico diferenciado, de oportunidades, o Estado Providência,

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superando seu papel fiscalizatório, visan- ção nas decisões do Estado. Clama-se, en-
do, então, o desenvolvimento social mais tão, por Democracia, pelo reconhecimento a
justo e equilibrado, passou a intervir no se- todos de igual humanidade, pelo igual de-
tor econômico, algumas vezes dando ao sis- ferimento de direitos fundamentais, enfim,
tema produtivo privado a orientação que pelo direito à diferença. É um momento de
melhor convinha a seus objetivos, outras nova transformação do Estado, cujo para-
vezes atuando diretamente como agente pro- digma passa a ser a dignidade da pessoa
dutor de bens e de serviços, tornando-se um humana. É o surgimento do Estado Demo-
verdadeiro concorrente do setor privado. crático de Direito, que tem como maior obje-
Tais mudanças principiaram pelas cons- tivo a concretização da igualdade de opor-
tituições mexicana e alemã3, migrando, em tunidades.
seguida, para os demais países constitucio- A despeito dessa nova mudança no cons-
nalistas. titucionalismo mundial, a idealizada igual-
Em que pese todo o esforço, todo o ativis- dade jurídico-constitucional, destinada a
mo empreendido pelo Estado nessa sua propiciar tratamento condigno a todos, res-
nova fase histórica, as condições de vida gatando as minorias desprivilegiadas, tam-
continuaram muito desiguais. O progresso bém não tem conseguido produzir resulta-
científico e tecnológico sem dúvida trouxe dos satisfatórios. Desiludidos com as inefi-
melhorias para todos, mas a distância entre cientes políticas públicas de caráter univer-
a parcela dominante e a parcela dominada, salista4, incapazes de cessar a concentração
perceptível pela diferença no padrão de de rendas e a conseqüente ampliação dos
vida ostentado e nos níveis de prestígio e quantitativos minoritários, os grupos em
influência exercidos, pareceu conservar-se desvantagem prosseguem em suas manifes-
ou, em alguns casos, até aumentar. Insufici- tações. No contexto da diversidade e da plu-
entes ou inócuas haviam sido as políticas ralidade propiciado pelo estado democráti-
de intervenção até então adotadas pelo Es- co, pleiteiam, agora, políticas públicas de
tado com vistas à igualização das oportuni- caráter diferencialista. Enquanto no passado
dades. A maior parte dos direitos constan- as manifestações eram feitas em conjunto e,
tes das declarações e dos textos constitucio- assim, as reivindicações eram por políticas
nais à época vigentes não passava ainda de públicas de caráter geral ou universal, mais
mera afirmação de intenções, constituindo recentemente os movimentos e protestos têm
normas programáticas a serem efetivadas sido realizados separadamente, visando po-
no futuro, dependentes da vontade política líticas públicas de caráter específico.
e das possibilidades de cada Estado. A nova feição que no Estado Democráti-
Percebida a clara dissintonia entre o di- co toma o conteúdo da isonomia sugere o
reito e a realidade, passa a ser questionada entendimento de que, mais do que nunca, o
a eficiência do Estado Social. Reiniciam-se Estado está, agora, autorizado a abandonar
as lutas pela igualdade, pela efetiva imple- sua posição de neutralidade, devendo iden-
mentação dos direitos formalmente reconhe- tificar as minorias em desvantagem e sair
cidos nas cartas constitucionais. Ainda na em sua defesa.
primeira metade do século XX, em vista da Em sua fase Democrática, com a respon-
opressão e marginalização de que continu- sabilidade de a todos garantir a igualdade
avam vítimas, as minorias voltam às ruas de oportunidades e o respeito à diferença, é
para apresentar suas reivindicações. Desta de pressupor-se que o Estado tem compro-
vez, a pauta é mais complexa. Além da im- missos com as políticas públicas específi-
plementação dos direitos já consagrados e cas aptas à redução das desigualdades so-
não satisfatoriamente disponibilizados, exi- ciais, possuindo a autoridade de que neces-
ge-se também o poder de efetiva participa- sita para discriminar entre os seus cidadãos.

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Aqui nos reportamos à discriminação igualmente e os desiguais de forma desigual,
benigna, àquela que, sem contrariar o orde- na medida de suas desigualdades.
namento jurídico, sem desrespeitar os direi- Visando auxiliar nessa busca pela
tos fundamentais de quem quer que seja, equanimidade sem desrespeito à isonomia,
viabiliza o resgate e propicia o desenvolvi- interessantes teses têm sido desenvolvidas.
mento da pessoa humana. Celso Antônio Bandeira de Mello (2004,
A dificuldade reside, porém, na delimi- p. 17) entende que: “as discriminações são
tação dos parâmetros com base nos quais recebidas como compatíveis com a cláusula
essa discriminação possa ser legitimamen- igualitária apenas e tão-somente quando
te feita. existe um vínculo de correlação lógica entre
Konrad Hesse, apud Silva (2005, p. 145), a peculiaridade diferencial acolhida por re-
anota que: “o princípio da igualdade proí- sidente no objeto, e a desigualdade de trata-
be uma relação desigual de fatos iguais; ca- mento em função dela conferida, desde que
sos iguais devem encontrar regra igual; a tal correlação não seja incompatível com
questão é, quais fatos são iguais e por isso, interesses prestigiados na Constituição”.
não devem ser regulados desigualmente”. Gomes (2001, p. 21) informa que existem
A questão nos remete ao problema da duas espécies de discriminação juridica-
definição dos critérios de justiça. É com base mente admitidas: a primeira, relacionada
numa possível subjetividade por parte dos com o emprego, é tida como inevitável e diz
operadores do Direito que a maioria no co- respeito à natureza da atividade a ser de-
mando ainda consegue dar sobrevida ao senvolvida ou às características pessoais do
princípio de igualdade perante a lei. A pre- candidato. Como exemplos mais comuns
texto de possíveis ilegalidades, consegue desse tipo de discriminação, o autor menci-
adiar a adoção das políticas sociais de ca- ona a legítima exclusividade dada às pes-
ráter diferencialista, prorrogando, assim, o soas de sexo feminino nas contratações para
estado de desigualdades que lhe é favorável. os cargos de guarda de presídio feminino e às
Os riscos de quebra da isonomia na exe- pessoas de sexo masculino nas contratações
cução das políticas públicas de caráter es- para certos setores das Forças Armadas; a
pecífico existem, mas podem perfeitamente segunda é aquela levada a efeito por meio de
ser superados pela atuação do Poder Judi- políticas públicas ou privadas de caráter di-
ciário, que adquire fundamental importân- ferencialista, obrigatórias ou voluntárias.
cia nesse processo de concretização da Fora daí, qualquer discriminação seria
igualdade de oportunidades e de realiza- ilegítima ou ilícita, podendo ocorrer de ma-
ção dos direitos fundamentais. Destinadas neira intencional ou de forma inconsciente.
a prevenir tais riscos e a restabelecer a situ- Carvalho (2005, p. 180) observa que, ao
ação isonômica, eficientes técnicas interpre- contrário do que supõe 99% da intelectuali-
tativas já foram desenvolvidas. dade brasileira, a Índia é o país com mais
longa história e experiência de ações afir-
5. Ações afirmativas mativas no mundo e não os Estados Unidos.
O mesmo autor assegura que também na
As ações afirmativas surgem, então, no Malásia as políticas de ação afirmativa ti-
contexto de evolução do Estado. veram grande importância. De acordo com
No cumprimento de sua tarefa de discri- os dados em que se baseia, tais políticas
minação, o Estado continua, sem dúvida, apresentaram, naqueles dois países, exce-
submisso ao princípio isonômico. O que lentes resultados: na Índia, os dalits, que em
pretende é a efetivação desse preceito. Seu 1950 correspondiam a 17% da população e
esforço é no sentido de realização da fórmu- detinham apenas 1% dos postos mais gra-
la clássica: que os iguais sejam tratados duados do país, hoje ocupam 12% desses

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postos; e, na Malásia, onde em 1971 os bu- na em sociedade. Além disso, as ações afir-
miputeras estavam inteiramente excluídos mativas importam em conferir aos grupos
das posições de poder e da riqueza nacio- vulneráveis o mesmo ponto de partida dos
nal, hoje “... a igualdade étnica (no país) já é grupos em situação de vantagem, possibili-
aceitável e o sistema pode agora dar lugar tando àqueles a sua integração econômica e
às leis universalistas dentro de uma lógica social. Trata, por conseguinte, a ação afir-
realista de igualdade étnica e racial”5. mativa, de uma forma de obtenção de justi-
Para Gomes (2003, p. 21), o país pionei- ça social6”.
ro na adoção das políticas de ação afirmati- Admitindo-as tanto para o setor público
va foram os Estados Unidos da América, quanto para a iniciativa privada, os concei-
onde foram concebidas como mecanismo tos supratranscritos atribuem às políticas
tendente a acabar com a marginalização de ação afirmativa o objetivo de contribuir
social e econômica do negro, passando, pos- para com a busca da igualdade de oportu-
teriormente, a beneficiar as demais minorias. nidades, abrangendo como seus beneficiá-
Silva (2005, p. 68) ressalta que uma das rios todas as minorias.
primeiras menções à idéia de ações afirma- A idéia de políticas de ação afirmativa
tivas constou do famoso discurso proferido enseja, então, uma espécie de discrimina-
na Howard University, em junho de 1965, ção positiva por parte do Estado, que, em
pelo então presidente norte-americano, determinado momento histórico, tendo per-
Lyndon Johnson: “Você não pega uma pes- cebido o fracasso das proclamações jurídi-
soa que, por anos, esteve presa por corren- cas que viam na institucionalização da
tes e a liberamos, a levamos para o início da igualdade formal o justo e adequado estí-
linha de partida de uma corrida, e então di- mulo para o desenvolvimento da socieda-
zemos ‘você está livre para competir com de, abandona sua posição de neutralidade,
todos os outros’, e ainda acreditamos que seu compromisso de não-intervenção em
fomos completamente justos. Assim, não é o assuntos de natureza econômica, espiritual
bastante apenas abrir as portas da oportu- e íntima do cidadão, para agir e incentivar
nidade. Todos os cidadãos devem possuir a ações tendentes à concretização do ideal de
habilidade necessária para atravessar essas efetiva igualdade de oportunidades, consi-
portas”. derando, para isto, as especificidades dos
Gomes (2001, p. 40) define as ações afir- diversos segmentos sociais.
mativas como “um conjunto de políticas Podemos dizer que a idéia de ações afir-
públicas e privadas de caráter compulsó- mativas reconhece na sociedade a existên-
rio, facultativo ou voluntário, concebidas cia de preconceito e discriminação e que na
com vistas ao combate à discriminação ra- sua proposta de superação desses males
cial, de gênero e de origem nacional, bem pressupõe a transformação consciente e pla-
como para corrigir os efeitos presentes da nejada dos costumes e comportamentos, es-
discriminação praticada no passado, tendo timulando os envolvidos a uma revisão nas
por objetivo a concretização do ideal de efe- formas de relacionamento, levando-os à per-
tiva igualdade de acesso a bens fundamen- cepção e valorização das diferenças que
tais como a educação e o emprego”. cada um traz em si sem deixar que quais-
Ana Emília Andrade Albuquerque da quer constatações produzam o sentimento
Silva (2005, p. 28) salienta que a “ação afir- de hierarquização ou de segregação.
mativa põe fim à neutralidade do Estado, Uma primeira teoria visando justificar
obrigando-o a uma conduta de natureza as políticas de ação afirmativa é a da justiça
positiva com vistas à eliminação das desi- compensatória. Para essa teoria, o Estado
gualdades que impedem alguns de usufruir deve agir em favor das minorias em decor-
dos direitos mínimos necessários à vida dig- rência da necessidade de reparação dos

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danos suportados pelos diversos grupos meja essa mesma redistribuição, mas justi-
minoritários que, no decorrer da história, ficando-a de maneira diferente. O funda-
foram vítimas do preconceito e da discrimi- mento utilitarista sustenta que a redistribui-
nação que, fundados em doutrinas racistas, ção equânime de ônus e benefícios é justa
foram praticados com vistas à dominação. não porque preserva a igualdade que todos
A legitimação das políticas de ação afir- possuem ao nascer, mas porque implica o
mativa com base na compensação encontra bem-estar geral, já que reduzindo-se as de-
sérias restrições na via jurídica, uma vez que sigualdades desaparecem os ressentimen-
os requisitos para a indenização nos casos tos e sobrevém um clima de paz e fraterni-
de responsabilidade civil consistem na in- dade social que propicia o melhor aprovei-
dicação do fato ilícito, do dano e da cone- tamento das potencialidades individuais
xão entre ambos, exigindo-se, ainda, que com o conseqüente progresso da sociedade,
eventual ação judicial seja promovida por que, assim, passa a ter um conceito mais
parte de quem haja sofrido o dano e em face positivo acerca das minorias.
de seu causador. Nesses termos, a respon- Para o utilitarismo, as ações afirmativas
sabilização jurídica, ao demandar a perfei- podem representar, ainda, uma grande
ta identificação do causador do dano e de arma com vistas à promoção da harmonia e
sua vítima, só se faz possível nas relações do desenvolvimento social. Uma das gran-
entre particulares, o que impossibilita o aci- des vantagens dessas políticas seria a cria-
onamento coletivo das atuais gerações por ção de modelos. Quando um membro de
atos de gerações passadas, com a agravante uma minoria vê um dos seus ocupando po-
de que, também o pólo ativo de eventual sição de prestígio, espelha-se nele e passa a
demanda, não poderia ser ocupado por suas acreditar que não haverá óbices em sua tra-
vítimas diretas, mas por sucessores muito jetória. O sucesso de alguns certamente esti-
distantes. mularia a luta de muitos.
Outra teoria destinada à justificação das Cruz (2003, p. 181/184) é um dos que
políticas de ação afirmativa é a da justiça coloca o utilitarismo como vertente da justi-
distributiva. Enquanto a idéia de justiça ça distributiva. Entretanto, critica tanto a
compensatória se relaciona com as postula- teoria da justiça compensatória quanto a da
ções de natureza reparatória, apresentadas justiça distributiva. Com vistas à satisfação
em razão de danos surgidos no passado, a dos direitos essenciais da humanidade, esse
idéia de justiça distributiva preocupa-se em autor abraça como fundamento das políti-
obter justiça no presente. Seu postulado bá- cas de ação afirmativa o princípio do plura-
sico é o de que, por ocasião do nascimento, lismo jurídico e da dignidade humana.
todos os seres humanos são essencialmente Nesse contexto, a eficiente aplicação dos
iguais, igualdade que deve ser preservada programas de ação afirmativa demanda o
mediante a redistribuição equânime dos reconhecimento da identidade de cada in-
ônus, direitos e demais benefícios gerados divíduo e do grupo ao qual pertence, res-
pela sociedade. surgindo, assim, a exigência de concretude
Com a finalidade de justificar as políti- e diferencialismo, ao invés da abstração,
cas de ação afirmativa, existe ainda a tese ordinariamente orientadora das políticas
utilitarista. Alguns autores a consideram públicas.
apenas uma vertente da teoria da justiça Embora não se referindo direta e expres-
distributiva, pois sua meta é, também, a re- samente ao tema, os fundamentos jurídicos
distribuição equânime dos ônus, direitos e para as ações afirmativas no Brasil são per-
demais benefícios produzidos pela socieda- ceptíveis desde o preâmbulo de nossa Cons-
de. Outros, no entanto, consideram-na uma tituição Federal de 1988, onde, sintetizando
forma de justificação autônoma, porque al- as orientações a serem seguidas por nossos

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governantes, os Constituintes se declaram era possível prever todos os casos em que se
reunidos para “...instituir um Estado demo- faz razoável o tratamento diferenciado. E é
crático, destinado a assegurar o exercício dos exatamente por isto que fixou princípios a
direitos sociais e individuais, a liberdade, a nortearem os agentes públicos na necessá-
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, ria complementação de seu trabalho. A dig-
a igualdade e a justiça como valores supre- nidade da pessoa humana, como funda-
mos de uma sociedade fraterna, pluralista e mento de existência da própria Nação, se
sem preconceitos, fundada na harmonia apresenta como o maior vetor.
social...”. Conforme previsto no § 2o, art. 5o, da Cons-
Dessa mensagem já se depreende que tituição Federal, além das políticas públi-
nossos representantes na Assembléia Naci- cas de caráter diferencialista ditadas pelo
onal Constituinte idealizaram um Estado texto constitucional ou com base nele for-
que, além de democrático, seja ativo, pois muladas, outras podem surgir em decorrên-
destinado a assegurar o exercício de direi- cia de tratados internacionais dos quais faça
tos, assegurar o bem-estar, assegurar o de- parte a República Federativa do Brasil.
senvolvimento, assegurar a igualdade e a jus- Consoantes com os preceitos fundamen-
tiça, finalidades que não podem ser alcança- tais supracitados, existem, em nosso siste-
das por via da inércia ou da abstenção. ma constitucional, muitas disposições com
Pela redação do artigo 1o da Constitui- base nas quais se deve ou se pode adotar,
ção Federal, notamos que todos os funda- no Brasil, políticas de ação afirmativa.
mentos da República Federativa do Brasil Vários são os diplomas infraconstituci-
levam à pessoa humana, a quem, no míni- onais que, destinados a concretizar as polí-
mo, deve ser garantida a dignidade. ticas de ação afirmativa viabilizadas pela
Em consonância com essas premissas, Constituição Federal, encontram-se já em
nossos Constituintes fixaram, no art. 3o de vigor no âmbito dos três poderes de nossa
nossa Carta Constitucional, como objetivos República.
fundamentais a serem alcançados pela Re- Na área de ensino principalmente, em
pública Federativa do Brasil, mais alguns nível federal, estadual, distrital e municipal,
preceitos a guiar os atos de nossos gover- já temos muitos exemplos de medidas posi-
nantes. São eles: I – construir uma socieda- tivas em favor de segmentos desfavorecidos.
de livre, justa e solidária; II – garantir o de- Entretanto, nossa Corte Constitucional
senvolvimento nacional; III – erradicar a ainda não teve a oportunidade de se pro-
pobreza e a marginalização e reduzir as nunciar sobre a legitimidade das políticas
desigualdades sociais e regionais; e IV – de ação afirmativa.
promover o bem de todos, sem preconceitos Em 2003 foi proposta Ação Direta de In-
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer constitucionalidade em razão das Leis no
outras formas de discriminação. 3.524, de 2000, e 3.708, de 2001, promulga-
À primeira vista, o inciso IV do art. 3o, das pelo Estado do Rio de Janeiro, as quais
assim como o caput do art. 5o, de nossa Cons- estabeleciam cotas para afro-descendentes
tituição, parecem privilegiar a igualdade na Universidade daquele Estado, na UERJ.
formal e, portanto, determinar a abstenção e Várias entidades se habilitaram como ami-
a neutralidade do Estado no trato com seus cus curiae no processo correspondente. En-
cidadãos. No entanto, esses dispositivos tretanto, antes que acontecesse o julgamen-
visam unicamente a prevenir a discrimina- to, o Governo do Rio de Janeiro, por meio da
ção ilícita, injustificada, desarrazoada. A Lei no 4.151, de 2003, reformulou seu pro-
própria Constituição, em variadas oportu- grama de ações afirmativas, o que tornou
nidades, adota tratamentos diferenciados. prejudicada a Ação de Inconstitucionalida-
É de se compreender que ao Constituinte não de à época em tramitação.

Brasília a. 44 n. 173 jan./mar. 2007 125


A reformulação procedida não satisfez que seriam destinadas a brasileiros natos
os opositores do programa, que, em 2004, um mínimo de 2/3 das vagas em empresas,
voltaram ao Supremo Tribunal Federal com associações, companhias e firmas comerci-
a Ação Direta de Inconstitucionalidade no ais que explorassem concessões do Gover-
2858, por meio da qual pedem a eliminação no Federal ou dos Governos estaduais e
da Lei no 4.151, de 2003, e, conseqüentemen- municipais ou que com esses contratassem
te a extinção do programa de ação afirmati- quaisquer fornecimentos, serviços ou obras.
va instituído para o sistema de ensino su- Outras formas menos utilizadas de ação
perior daquele Estado. afirmativa são: a) o sistema de metas, pelo
Silva (2005, p. 254/255) nos informa que, qual se busca estabelecer determinados ob-
em primeira instância, o sistema de cotas jetivos a serem alcançados em relação a de-
da Universidade do Estado do Rio de Janei- terminado segmento social minoritário,
ro tem se deparado com muitas resistênci- como, por exemplo, a ampliação da presen-
as. Entretanto, perante o Tribunal do Esta- ça negra nos postos mais elevados da Ad-
do, tem encontrado abrigo. O autor conta ministração; b) o sistema de preferência, uti-
que, inconformada com a preterição, uma lizado mais em casos de empate na satisfa-
estudante branca entrou com Mandado de ção dos demais requisitos exigidos; c) o sis-
Segurança perante a 6a Vara da Fazenda tema de concessão de bônus, que pressupõe
Pública da Comarca da Capital do Rio de uma estimativa na capacidade competitiva
Janeiro, junto à qual alegou a inconstitucio- dos concorrentes com o objetivo de uma
nalidade do sistema de cotas contra o qual maior precisão na compensação da diferen-
se insurgia. Sua pretensão foi rejeitada, ten- ça; d) o sistema de incentivos fiscais, que
do a mesma recorrido ao Tribunal Estadu- podem resultar em programas semelhantes
al, que, por decisão unânime de sua Décima ao PROUNI, que concede bolsas de estudos
Primeira Câmara Cível, nos autos da Ape- em estabelecimentos particulares; e e) o sis-
lação no 2003.001.27.194, também rechaçou tema de financiamento estudantil, cujo exem-
seu pedido. plo é o FIES, que disponibiliza linha de cré-
A espécie mais conhecida e utilizada de dito em condições privilegiadas para o cus-
ação afirmativa é o sistema de cotas, que é teio de despesas de graduação.
também a mais criticada. Heringer, apud Sil- Dentre os argumentos que se opõem às
va (2005, p. 227), alerta para o fato de que a políticas de ação afirmativa, o mais consis-
associação que se faz entre ação afirmativa tente com o qual nos deparamos parece ser
e política de cotas não reflete a realidade. a crítica em relação ao mérito individual,
As cotas foram impostas no passado para que estaria sendo desprezado principal-
corrigir situações de permanente e recorrente mente na implementação do sistema de co-
segregação, oportunidade em que outros tas.
esforços se provaram ineficazes na supera- Também a esse argumento a doutrina já
ção de padrões discriminatórios. Silva acen- oferece respostas convincentes. Reportando-
tua que, apesar das recentes reclamações se à questão do acesso aos cursos de nível
contra as políticas de cotas, o sistema não superior, Carvalho (2005, p. 184/185) sus-
constitui novidade no Brasil, pois, em 1968, tenta que “[...] A idéia de mérito que circula
publicou-se a Lei no 5.465, que criava, para no nosso meio é fruto de uma ideologia in-
os agricultores ou para os filhos destes, uma dividualista, alienada da dimensão coleti-
reserva de vagas nos cursos de ensino mé- va da produção de conhecimento. O mérito
dio agrícola e superiores de veterinária e isola a parte do trabalho feita pelo indiví-
agronomia. Segundo o mesmo autor, antes duo da colaboração que recebeu de inúme-
disso, o Governo Getúlio Vargas, pelo De- ras pessoas. Na realidade, quase nenhum
creto no 20.291, de 1931, já havia instituído trabalho é inteiramente individual; a maio-

126 Revista de Informação Legislativa


ria das realizações científica ou artística Quando se luta pelo direito à diferença,
dependeu de regimes desiguais de co-auto- luta-se pela igualdade e pela não discrimi-
ria. Há sempre os que apóiam, ensinam, con- nação. Sabemos que até há pouco vigora-
tribuem, corrigem, defendem, substituem, de vam doutrinas pseudocientíficas que ti-
modo a tornar possível o mérito atribuído a nham por objetivo justificar a subjugação e
posteriori à realização de um único indiví- a dominação sem as quais não teria sido
duo. Contudo, uma vez alcançado aquele possível a concentração de recursos e a mo-
objetivo, todo o apoio e co-autoria são silen- nopolização dos poderes que caracterizam
ciados imediatamente. O vestibular mede a a hierarquia social.
pontuação final alcançada pelos candida- Quando se viu demonstrada a farsa das
tos, mas não mede a quantidade de apoio e ditas ciências legitimadoras da exploração
estímulo que cada um recebeu [...]”. de uns pelos outros, criaram-se fórmulas
As políticas de ação afirmativa têm sido jurídicas exaltadoras da igualdade e da fra-
cada vez mais utilizadas. São aplicadas já ternidade que deveriam existir entre os ho-
em grande parte do mundo. Essa expansão mens.
só é possível pela grande capacidade de A se julgar pelo quadro de desigualda-
convencimento dos argumentos colocados des que permanece, as prescrições jurídicas
em sua defesa. substituíram com eficácia as doutrinas pseu-
Não esqueçamos, porém, que, temendo docientíficas destinadas à espoliação.
a perda dos privilégios e do status quo, a par- As posições que na ilegítima classifica-
cela dominante ainda se debate na busca de ção hierárquica de hoje ocupam os diferen-
teses que lhe permitam continuar no con- tes segmentos sociais não refletem a capaci-
trole. Na falta de novas idéias, continua dade de realização de cada um, senão o re-
apegada às velhas teses racistas e aos anti- sultado dos artifícios mediante os quais a
gos princípios do Estado Liberal. parcela dominante conseguiu anular a ca-
Em nota de rodapé constante da página pacidade de competição e até mesmo a iden-
47 de seu trabalho, Vieira Júnior (2005) in- tidade de determinados grupos. A vida em
forma que, em 1994, nos Estados Unidos da sociedade implica uma constante disputa
América, os autores Hernstein e Murray lan- por bens econômicos, que são, por nature-
çaram o livro The Bell Curve, no qual “sus- za, escassos e, às vezes, acessíveis somente
tentam que as ações afirmativas nos EUA por meio da cooperação. Alijada da dispu-
são um desperdício de recursos públicos ta, por não reunir as condições de competi-
tendo em vista que o QI dos estudantes ne- tividade que o processo histórico não lhe
gros é inferior ao dos brancos por imposi- permitiu desenvolver, a parcela dominada,
ção genética”. por conseqüência, vê-se excluída também
politicamente.
10. Conclusão Embora de forma desarticulada e con-
traditória, é ainda com esperança no mode-
O ativismo do Estado inaugurado com o lo jurídico que as minorias apresentam suas
advento das Constituições Sociais, embora propostas. O que se deseja é a substituição
voltado para as políticas universalistas, já das fórmulas vazias que perenizam o status
constituiu novidade longamente resistida. quo. O que se pretende é que, deixando de
Então, não era mesmo de se esperar que logo lado a percepção abstrata e universalista que
encontrassem apoio as reivindicações mais faz da sociedade, o Estado passe a enxergar
recentes, que, formuladas a partir de uma em sua concretude o indivíduo. Se o propó-
concepção pluralista de nação, visam a con- sito do Estado Democrático é promover o
cretizar os ideais da igualdade de oportuni- desenvolvimento equânime de seus cida-
dades e do direito à diferença. dãos, ele deve se colocar numa posição de

Brasília a. 44 n. 173 jan./mar. 2007 127


onde possa constatar as reais condições de uma forma de discriminação positiva e,
cada segmento, adotando e estimulando as para colocá-las em prática, o agente, seja ele
medidas aptas a resgatar as parcelas em público ou privado, deve atender a procedi-
desvantagem. mentos minuciosos de verificação de sua
Para a parcela dominante o momento é oportunidade e legitimidade.
de apreensão. Quando não pôde mais fun- Conforme já vimos, no Estado moderno
damentar seus interesses nas teorias racis- o princípio da igualdade formal deve ser
tas, substituiu-as pelas ordens jurídicas que aplicado aos iguais, constituindo uma clá-
diziam neutras, mas que, em sua aparência usula de segurança a lembrar que toda igua-
anódina, preservavam a situação que lhe era lação tem que ser minuciosamente justifica-
favorável. da. Só é aceita a discriminação que vise a
Desiludidas, as minorias em desvanta- igualação de oportunidades, a discrimina-
gem pleiteiam agora políticas públicas de ção benigna. Rejeita-se a discriminação que
caráter diferencialista, demandando, assim, possa trazer a desigualação.
uma revisão das normas universalistas pre- Ressalte-se que num sistema bem menos
tensamente neutras que lhe são desfavorá- explícito que o nosso, que é o ordenamento
veis. norte-americano, A Suprema Corte de Justi-
Sem um novo discurso que a livre de sus- ça, na apreciação do caso Bakke vs. Univer-
peitas, a parcela dominante se apega ao ve- sidade da Califórnia, assegurou que qual-
lho princípio da igualdade perante a lei e quer plano de ação afirmativa pode ser com-
tenta adiar a transformação que sabe inevi- patível com a Constituição, desde que ade-
tável. quadamente concebido, devendo essa com-
Conscientes de que no mundo político patibilidade ser verificada por meio de pa-
as mudanças seguras somente ocorrem por drões rigorosos, semelhantes aos que já nos
via do convencimento, as minorias elabo- reportamos.
ram suas teses e buscam demonstrar as ra- Em relação a determinados segmentos
zões pelas quais acreditam fazer jus a um minoritários, a legislação é clara em admitir
tratamento diferenciado. e, às vezes, até em ordenar a implementação
O que se percebe é que, optando por uma de atos que lhes tragam certos benefícios.
ou por outra forma de justificação, grande Visando favorecer a situação de mulheres,
parte dos envolvidos com o tema ações afir- idosos, deficientes e índios, por exemplo, já
mativas já defendem sua legitimidade e con- contamos com variados atos.
veniência. A polêmica se intensifica é no Nossa Constituição não prevê expressa-
momento de definição dos critérios em rela- mente a possibilidade de ações afirmativas
ção aos quais devam ser formuladas. baseadas no critério cor. Dada a existência
Tendo como grande objetivo propiciar às de grande contingente no país de membros
minorias a igualdade de oportunidades, vi- da raça negra, contesta-se com muito mais
abilizando para que alcancem níveis satis- veemência as propostas que tendam a bene-
fatórios de gozo e fruição dos direitos fun- ficiá-la. Apesar de já quase vencido o mito
damentais, as políticas de ação afirmativa da democracia racial7 e de já haver um razo-
só se realizam quando o Estado reconhece a ável nível de consciência acerca da história
fragilidade de determinado segmento soci- da raça negra, por vários séculos escraviza-
al e, considerando suas características pe- da, injustiçada e anulada em seu poder pes-
culiares, promove uma discriminação posi- soal de arbítrio, insiste-se em negar-lhe o
tiva, viabilizando para que usufrua de di- reconhecimento de que necessita para sua
reitos aos quais já têm acesso os demais. completa integração. Será a voz da conveni-
Constituindo políticas de caráter diferen- ência? O que parece preocupar não é tanto o
cialista, as ações afirmativas surgem como custo financeiro a pagar por essas políticas

128 Revista de Informação Legislativa


de inclusão, mas o velho medo da perda do brevivência. Entretanto, certamente nin-
poder, aquele mesmo que deu origem às teo- guém poderia ter acesso a bens de consumo
rias racistas destinadas a sustentar a domi- mais sofisticados, ficando inviabilizadas as
nação. espécies mais significativas de indústria.
Se a preocupação é com a preservação No atual momento histórico, quando a
de direitos legítimos, devemos ter em mente globalização já transformou o sistema polí-
que se os direitos fundamentais a todos ga- tico-econômico em via de mão única, nota-
rantidos pelo Estado são a igualdade e a damente marcado pela competição, aumen-
liberdade, bem como os decorrentes de seus ta a dificuldade em aceitar-se as medidas
desdobramentos, então o problema da legi- de ação afirmativa. Por desinformação ou
timidade das ações afirmativas está em como por conveniência, muitos têm tentado con-
demonstrar que o ativismo do Estado em fundir políticas de ação afirmativa com es-
favor das minorias discriminadas não pre- molas ou puro assistencialismo. No entan-
judica direito fundamental de quem quer to, a opção pelo progresso, consciente de que
que seja. A disponibilização a todos dos di- este demanda certa concentração de rendas,
reitos fundamentais constitui garantia mí- recomenda que aos menos aquinhoados seja
nima imposta pelo mandamento supracons- garantido um mínimo que viabilize sua dig-
titucional da dignidade humana. na participação no processo social. A ga-
Uma só preocupação é em relação ao rantia de direitos básicos como alimentação,
período máximo que deve durar cada medi- habitação, saúde e educação constitui me-
da de ação afirmativa, pois, se em vigor além dida destinada a viabilizar a igualação de
do prazo necessário, pode apresentar, como oportunidades e não o favorecimento. Igua-
único efeito, a inversão do pólo onde se as- lando as oportunidades alcançaremos ní-
sentam as diferenças que ameaçam o equilí- veis semelhantes de competitividade, o que
brio social. Os benefícios a serem concedi- tornará real a expectativa de revezamento
dos por meios de políticas de ação afirmati- nos postos de comando e propiciará um fu-
va não podem ir além da efetivação dos di- turo mais seguro e harmônico para a Na-
reitos necessários à plena capacidade de ção. A inclusão equivale a um somatório de
competir. Em certos casos, como nas hipóte- forças, a um sistema de cooperação que cer-
ses em que se faz necessária a criação de tamente tornará mais célere o progresso.
modelos nos quais se inspirem os demais Destinados à prevenção de possíveis in-
membros de determinados grupos vulnerá- justiças nos atos de efetivação das políticas
veis, tolera-se a concessão direta de bens da de ação afirmativa, um volumoso aparato
vida. Como regra, entretanto, não nos pare- jurídico e doutrinário já se encontra dispo-
ce possível uma sociedade onde todos os nível.
bens produzidos sejam repartidos equani- Então, não tenhamos medo de fazer jus-
memente. Num mundo onde as pessoas ain- tiça.
da estão completamente dependentes dos
bens materiais, o progresso econômico ter-
mina sendo a razão de fundo para a pró- Notas
pria existência e, conseqüentemente, a base 1
Aquelas pelas quais, visando a implementa-
para todas as formas de desenvolvimento. ção de direitos sociais ou a promoção da igualdade
Temos que admitir que o desenvolvimento de oportunidades, o Estado leva em conta as pecu-
econômico exige uma certa concentração de liaridades e o pertencimento dos beneficiários, es-
rendas. Se, por exemplo, dividíssimos o pro- pecialmente no momento em que contrata, regula
as contratações ou disciplina o acesso aos estabele-
duto interno bruto de uma sociedade entre cimentos de educação.
a totalidade de seus membros, provavelmen- 2
A função social que se exige seja cumprida
te todos teriam o mínimo necessário à so- pela propriedade inviabiliza a utilização deste di-

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reito de forma exclusivamente individual, impe- Constituição de 1988: Texto Constitucional de 5 de
dindo a busca do lucro pelo lucro. Os interesses do outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas
proprietário devem ser compatibilizados com os Emendas Constitucionais n os 1/92 a 52/2006 e
interesses da sociedade. Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94.
3
É bom lembrar que, à mesma época, ocorria a Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições
revolução socialista soviética, cujos princípios tam- Técnicas, 2006. 408 p.
bém se difundiram para boa parte do mundo. O
Cruz, Álvaro Ricardo de Souza. O Direito à dife-
socialismo não foi considerado um avanço no cons-
rença: as ações afirmativas como mecanismo de
titucionalismo porque, apesar de ter consagrado
inclusão social de mulheres, negros, homossexuais
amplos direitos sociais, extinguia a propriedade
e portadores de deficiência – Belo Horizonte: Del
privada e deixava nas mãos do Estado toda a ati-
Rey, 2003.
vidade econômica, o que terminava por aniquilar
direitos de liberdade cuja conquista levara séculos. d’Adesky, Jacques, Pluralismo étnico e multi-cul-
4
Aquelas pelas quais, embora visando a imple- turalismo: racismos e anti-racismos no Brasil, Rio
mentação de direitos sociais ou a promoção da de Janeiro: Pallas, 2001. 248 p.
igualdade de oportunidades, o Estado não leva em
conta as peculiaridades ou pertencimento dos be- Gomes, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa &
neficiários. Em geral considera o fator econômico, a Princípio Constitucional da Igualdade: (o Direito
variável renda. como instrumento de transformação social. A ex-
5
De qualquer forma, acreditamos que uma con- periência dos EUA), Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
clusão acerca da viabilidade das políticas de ação Lobato, Fátima; Santos, Renato Emerson. Ações
afirmativa não pode ser extraída unicamente com Afirmativas: políticas públicas contras as desigual-
base nos resultados até agora conhecidos, haja vis- dades raciais. - Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 216 p.
ta que inúmeras e talvez ainda inimagináveis são
as maneiras pelas quais podem ser implementa- Munanga, Kabengele. Palestra proferida no 3o Se-
das. O histórico parece ser positivo, mas, acaso não minário Nacional Relações Raciais e Educação–PE-
fosse, a razão poderia estar indicando erro na me- NESB-RJ, 05/11/03. Disponível na http://
dida escolhida ou na forma de levá-la a efeito, e www.acaoeducativa.org.br/downloads/09abor
não necessariamente a inconveniência do modelo. dagem.pdf
6
No contexto, a justiça social pode ser entendi- Sant’Ana, Antônio Olímpio de. Alfabetização e
da como uma situação na qual todos os membros Diversidade. Artigo publicado no livro Superando
de uma determinada sociedade têm o efetivo gozo o Racismo na Escola. 2a edição – Brasília: Ministério
e fruição dos direitos considerados fundamentais. da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
7
O entendimento de que no Brasil não há pre- Alfabetização e Diversidade, 2005. 204 p. – Artigo:
conceito nem discriminação racial. História e Conceitos Básicos sobre o Racismo e seus
Derivados.
Silva, Ana Emília Andrade Albuquerque da - Dis-
Referências criminação Racial no Trabalho. São Paulo: LTr 2005.
Silva, Sidney Pessoa Madruga da. Discriminação
Bandeira de Mello, Celso Antônio. O Conteúdo Ju- positiva: ações afirmativas na realidade brasileira.
rídico do Princípio da Igualdade. 3a Edição, 12a ti- Brasília: Brasília Jurídica, 2005.
ragem. São Paulo: Malheiros, 2004.
Vieira Júnior, Ronaldo Jorge Araújo. Responsabili-
Buarque de Holanda, Aurélio. Dicionário Aurélio zação Objetiva do Estado. Curitiba: Juruá, 2005.
Eletrônico – Século XXI – Versão 3.0 – Novembro de 248 p.
1999.
Vilas-Bôas, Renata Malta. Ações Afirmativas e o
Carvalho, José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Princípio da Igualdade. Rio de Janeiro: América
Brasil: a questão das cotas no ensino superior – São Jurídica, 2003.
Paulo: Attar, 2005.

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