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P S I C A N Á L I S E /A R T I G O S

dileto com quem compartilhamos fórmulas eficazes de convívio social, O QUE É NEURO-PSICANÁLISE
como este singelo lembrete de que “não há coisa que saia mais barata do que
os bons comedimentos”.
Yusaku Soussumi
II, pg. 393: Tendo abandonado a governança da “ilha” e tomando seu cami-
nho de volta à sua vida regular, encontra-se Sancho com um antigo vizinho,
um tal de Ricote, mouro foragido que voltara disfarçado à Espanha para res-

O
gatar um tesouro que escondera. Esse inesperado personagem oferece a San- objetivo deste trabalho é tratar da neuro-psicanálise,
cho uma parte de seu tesouro, caso ele se disponha a ajudá-lo na empreitada um novo método científico que consiste em combinar
mas, escaldado por sua frustrada ambição de alçar-se a uma condição que dois métodos já existentes, ou seja, um método que
não era a sua, ele recusa, dizendo: [...] Ricote, segue o teu caminho em boa hora busca integrar, sobre uma base empírica, a psicanálise e
e deixa-me seguir o meu, que bem sei que o que bem se ganhou, perde-se facil- a neurociência.
mente; mas o que mal se ganhou, perde-se ele e perde-se a gente. O início de movimentos, ainda tímidos, por parte de psicanalistas que ousa-
II, pg. 400: Sancho, ao ser salvo da cova por Dom Quixote e reencontrando vam contrariar a orientação das instituições psicanalíticas de buscar estudar
os duques: Saí, como digo, da ilha, sem mais acompanhamento que o do meu as possíveis correlações entre os conceitos, os achados da psicanálise com as
ruço; caí numa cova, vim por ela adiante até que esta manhã, com a luz do sol descobertas da neurociência, ocorreu na Década do Cérebro. Data de 1994
vi a saída mas tão difícil que, a não me deparar o céu o senhor Dom Quixote, a fundação do grupo de estudos de neurociência e psicanálise no Instituto
ali ficaria até ao fim do mundo. Assim, portanto, duque e duquesa meus senho- de Psicanálise de Nova York, quando os psicanalistas, encabeçados por
res, aqui está o vosso governador Sancho Pança que nestes dez dias de governo, só Arnold Pfefer, buscaram em neurocientistas da Universidade de Columbia
lucrou o ficar sabendo que não serve de nada ser governador de uma ilha, nem como James Schwartz, os conhecimentos neurocientíficos que pudessem
governador do mundo inteiro. E com isto os não enfado mais e, beijando os pés correlacionar com seus conhecimentos psicanalíticos. Iniciava-se um inter-
a Vossas Mercês, dou um pulo do governo abaixo, e passo para o serviço do meu câmbio de informações e conhecimentos entre psicanalistas e neurocientis-
amo Dom Quixote que, enfim com ele, ainda que coma o pão com sobressalto, tas. À essa época, em diversos pontos do mundo como em Frankfurt, Viena,
ao menos sempre me farto; e eu cá, em me fartando, pouco me importo que seja Londres, Bruxelas e São Paulo, existiam psicanalistas que sozinhos ou em
com feijões com que seja com perdizes. grupos buscavam estudar as possíveis correlações entre as duas ciências. Ini-
A frustrada experiência de “ser Rei por dez dias” funcionou para Sancho ciei na década de 1980 investigações neste campo tendo tido, somente em
como um choque de realidade, convencendo-o, facilmente, que os seus 1994, a possibilidade de apresentar um trabalho sobre o assunto num
recursos pessoais eram insuficientes para sustentar a ambição de ser rico e evento psicanalítico, a Bienal da Psicanálise de 1994. Em 1996, Mark
poderoso. Esta lição foi incorporada por ele com tal solidez que, tendo o des- Solms, psicanalista inglês com formação em neurociência, que vinha traba-
tino promovido o seu reencontro com este Ricote que novamente lhe ofere- lhando em Londres e publicando trabalhos sobre o assunto desde a década
ceu um ganho fácil, ele recusa de modo peremptório, oferecendo como de 1980, foi convidado pelo Instituto de Psicanálise de Nova York para coor-
argumentação que “o que mal se ganhou”, ou seja, o ganho corrompido, é denar o grupo de estudos de neuro-psicanálise. Com o aumento de psicana-
fonte de envenenamento para o próprio eu. listas e de neurocientistas interessados nos estudos das correlações das duas
Esta sábia ponderação, fruto do aprendizado emocional recém-adquirido, disciplinas que beneficiavam as duas entre si, resolveu-se, sob a coordenação
prepara no fundo o retorno do filho pródigo o qual, estando mergulhado na de Arnold Pfeffer e Mark Solms, fundar uma sociedade que congregasse
escuridão do arrependimento, “vê a luz do sol”, ou seja, a presença salvadora esses psicanalistas, neurocientistas, solitários ou organizados em grupos, e
do pai-patrão Dom Quixote que veio ao seu encontro para recebê-lo de que pudesse ser um pólo de orientação, atualização e de trocas. Assim, em
volta. Ao retornar, no entanto, Sancho traz consigo a fórmula redentora de julho de 2000, em Londres, durante a realização do I Congresso Internacio-
como o ser humano pode aprender a modificar suas frustrações, garantindo nal de Neuro-Psicanálise, um comitê fundador que foi constituído com as
assim a sua permanência no reino da realidade. Talvez esse tenha sido o fator lideranças de diversos pontos do planeta, fundou a Sociedade Internacional
crucial na recuperação da lucidez por parte de Dom Quixote, o qual, de Neuro-Psicanálise. Fui o representante brasileiro no comitê fundador,
estando no leito de morte ditando seu testamento, readquiriu a identidade criando o Centro de Estudos e Investigação em Neuro-Psicanálise de São
prosaica de Alonso Quijano, o Bom, a distribuir com bondade os seus bens Paulo que integrou o conjunto de grupos pelo mundo que compunha as
entre aqueles que o amaram com lealdade, a começar, naturalmente com seu bases da nova Sociedade.
querido Sancho Pança. Para compreender a proposta metodológica da neuro-psicanálise é interes-
sante esclarecer as razões pelas quais Freud, sendo neurologista, criou a psi-
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de canálise que, em essência, é um método psicológico para dar significados aos
São Paulo, filiada à International Psychoanalytical Association. processos mentais sem, no entanto, perder o vínculo com a neurologia, e
sem perder a esperança de que um dia a psicanálise voltaria a se unir à neu-
rologia, quando esta tivesse alcançado um grau de desenvolvimento e ofere-
cesse conhecimentos que faltavam naquela época.
No tempo de Freud, a neurologia ainda era uma disciplina relativamente
nova, e tinha incorporado da medicina interna o método anátomo-clínico,
que consistia nos levantamentos dos sinais e sintomas clínicos das doenças

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para buscar a confirmação anátomo-patológica nas autópsias. Isto queria por aceitar que as funções da fisiologia cerebral ocorrem na interação dinâ-
dizer que o clínico fazia as hipóteses diagnósticas das doenças através dos mica de diversas áreas espalhadas pelo cérebro, e não resultante de uma loca-
sinais e sintomas, e só tinha a comprovação quando o paciente era subme- lização num centro. Nestes termos, podemos afirmar que a psicanálise se
tido à autópsia. Com o decorrer do tempo, em face das experiências aná- comporta como uma neuropsicologia.
tomo-clínicas, os clínicos através dos sinais e sintomas inferiam as lesões Luria quando escreveu seu último livro em 1976, parece que tinha esgotado
anatômicas das doenças. A escola germânica privilegiava, acima de tudo, os os principais assuntos cognitivos, e se propunha a entrar num campo não
achados anátomo-patológicos, e assim os sinais e sintomas não explicados abrangido pelo cognitivismo: motivação, emoções profundas e personali-
pelas lesões anatômicas eram desconsiderados. Por esta época, os neurolo- dade. Ele faleceu antes de iniciar seu projeto.
gistas estavam às voltas com algumas doenças como histeria, neurastenias Freud descobriu que os conteúdos subjetivos da vida mental não são facilmente
que, apesar da exuberância dos sintomas – por exemplo, paralisias de mem- acessíveis à investigação científica. Forças poderosas trabalham para se oporem
bros – os patologistas nada encontravam nas autópsias para justificá-las. Tra- às tentativas de investigação de conteúdos privados da mente individual. Freud
balhando neste método, Freud se deu conta de suas limitações. A escola classificou estas forças – que se expressam clinicamente como vergonha, culpa,
francesa, tendo Charcot como figura central, atraiu a atenção de Freud, que ansiedade e outros – sob o nome de “resistências”. Essas dificuldades ocorrem
foi fazer um estágio com ele, em1885-86, para tomar contato com o que pelo fato de que as determinantes causais inferidas dos dados observacionais
também era método anátomo-clínico, mas que privilegiava os sinais e sin- primários (acontecimentos mentais inconscientes que subjazem os processos
tomas, obtidos na observação meticulosa. Ou seja, estes não eram rejeita- de pensamento conscientes) não são conscientes por definição. Ele experimen-
dos, mesmo que não se encontrassem os substratos anatômicos na autópsia. tou várias técnicas para vencer tais resistências (por exemplo: hipnotismo e téc-
Esta postura de Charcot teve uma influência marcante em Freud, que pas- nica da pressão) e, com base nessas experiências, gradualmente desenvolveu a
sou a praticar essa modalidade de método clínico quando retornou a Viena. técnica psicanalítica definitiva da associação livre.
Charcot tinha uma hipótese de que as lesões não surgiam nas autópsias por- Tanto Freud como Luria sempre insistiram que para descobrir a organiza-
que eram de natureza fisiológica, e de origem hereditária, e que eram micro- ção neurológica do aparelho mental humano como compreendemos na psi-
patologias que o desenvolvimento da técnica no futuro iria evidenciar. canálise é necessário, em primeiro lugar, dissecar a estrutura interna psico-
Com a experiência prática, e sob a influência do neurologista inglês Hugh- lógica das várias mudanças na personalidade, na motivação e na emoção
lings Jackson, Freud começou a se dar conta de que essas manifestações não complexa. Assim, os múltiplos fatores subjacentes produzindo esses sinto-
apareciam nas autópsias por serem fenômenos de natureza psicológica e, por mas e síndromes podem ser identificados, e cada um correlacionado com
outro lado, não se encerravam em localizações restritas em centros no cére- sua “cena de ação” neuro-anatômica.
bro. A época marcava o auge do localizacionismo em face dos achados de Entretanto, devido às forças de resistência descritas, esses fatores não podem
Broca e Wernicke. Diferentemente do aceito, para Freud as funções ocor- ser revelados pelas técnicas neuropsicológicas convencionais. Os testes psi-
riam não em áreas localizadas, mas na interação dinâmica de diversas áreas cométricos e técnicas de comportamento básicos, que os neuropsicólogos
que correspondiam a funções complexas. Freud deu-se conta desses aspec- usam para acessar o estado mental dos pacientes neurológicos, foram desti-
tos ao estudar a afasia e as perturbações de movimentos voluntários e não nados para a investigação das desordens das funções cognitivas de superfí-
funções psicológicas. cie. Para que possamos revelar a estrutura psicológica subjacente, profunda,
Na medida que avançava nas observações da histeria e outros quadros men- das desordens da personalidade, motivação e emoção complexa que aflige o
tais, mais fortalecia a convicção de que, na realidade, se tratavam de questões paciente neurológico, portanto, a técnica da associação livre deve ser intro-
de funções de natureza psicológicas, que ocorriam na dinâmica de interações duzida dentro do método neuropsicológico de Luria.
de diversas áreas cerebrais, que nunca seriam detectadas pela anatomia pato- Este tem sido o método neuro-psicanalítico por excelência, que evita as cor-
lógica. Em 1895, Freud fez com o Projeto para uma psicologia científica, sua relações isomórficas da psicanálise com a neurociência, e evita o reducio-
última tentativa de construir um esquema dinâmico de funcionamento neu- nismo que leva à anulação do que é fundamental no método psicanalítico e
rológico, com elementos que eram produtos de suas conjecturas, imagina- do significado mais profundo de seus conceitos.
ções, pois as concepções neurológicas vigentes não tinham alcançado um O que tem sido recomendado, e que se acredita proverá um pilar para uma
desenvolvimento necessário para ancorar suas hipóteses funcionais. Por essa consistente integração da psicanálise e neurociência, é uma plena investiga-
época, Freud se dava conta de que podia estudar as funções psíquicas pela ção psicanalítica de pacientes com lesões neurológicas focais. Em outras
observação clínica acurada, sem conjecturas e imaginações, buscando na palavras, o que se recomenda é o mapeamento da organização neurológica
dinâmica psíquica em si a explicação que a dinâmica neurológica não podia do processo mental humano que a psicanálise revelou, usando a versão
oferecer, mas deveria existir e seria conhecida com o desenvolvimento da modificada do método de Luria da análise da síndrome, pelo estudo da
neurobiologia. Aí surgiu a psicanálise com a sua metapsicologia. estrutura profunda das mudanças mentais nos pacientes neurológicos que
Hoje, a tendência natural tanto dos neurocientistas como dos psicanalistas, podem ser discernidos dentro do setting psicanalítico.
no primeiro momento, é buscar uma correlação isomórfica entre os concei- Desde que as investigações psicanalíticas válidas só podem ser conduzidas
tos psicanalíticos e neurocientíficos, o que causa uma simplificação errônea, no contexto do tratamento psicanalítico, o método investigatório que se
que não leva em conta as características das duas ciências. recomenda tem um potencial de benefício secundário. Ele permite que se
A partir de 1939, principalmente com o trabalho de Alexander R. Luria, veja se e em que extensão o tratamento psicanalítico pode contribuir para a
desenvolveu-se dentro do campo da neurociência do comportamento, a reabilitação de várias desordens de personalidade, motivação e emoção, que
neuropsicologia dinâmica, cujos princípios se aproximam aos da psicanálise estão associados com o dano focal neurológico.

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Os trabalhos dentro dessa metodologia neuro-psicanalítica vêm sendo rea- BIOÉTICA DA VIDA COTIDIANA
lizados no campo das memórias, das emoções, dos sistemas motivacionais,
do inconsciente trazendo contribuições valiosas para as duas ciências. Um
exemplo onde as contribuições psicanalíticas têm sido muito ricas é no
campo dos estudos da regulação afetiva, orientando as pesquisas da neuro- Claudio Cohen e Gisele Gobbetti
ciência do desenvolvimento e psicologia do desenvolvimento, campo em

E
que as chamadas relações de objetos, tão estudados por psicanalistas como ntendemos que nós seres humanos não nascemos nem éti-
Melanie Klein, Fairban e Mahler têm contribuído de forma inegável. cos e nem competentes para as nossas funções sociais, pois
É no campo dos lesionados cerebrais onde mais se pode perceber a correla- tanto uma como outra serão incorporadas no processo de
ção e a complementação das duas disciplinas. Assim, por exemplo, os estu- humanização por meio da elaboração do pacto edípico.
dos dos estados conhecidos como de confabulação nos pacientes com lesão Entendemos, também, que exercer a eticidade seja a possibi-
bilateral da região ventro medial no prefrontal ou na síndrome de Korsakof, lidade de pensar a ética e a moral. Esse pensamento não deve conter apenas
têm permitido a investigação psicanalítica que se realiza além das investiga- os conflitos entre a emoção e a razão mas, também, permitir que o indiví-
ções neuropsicológicas. Pelo método psicanalítico, têm-se podido eviden- duo se relacione com os mundos interno e externo. Lidar com tais conflitos
ciar nessas manifestações confabulatórias as características especiais do sis- causa-nos um mal estar, que é inerente à inserção na cultura e ao desenvol-
tema inconsciente em plena expressão, como trazidos por Freud, quais vimento humano.
sejam: 1. a tolerância da contradição mútua; 2. ausência do tempo; 3. a subs- O ser bioético deve lidar com o outro, devendo integrar sua biologia com
tituição da realidade externa pela realidade psíquica; 4. o processo primário sua biografia, que o tornará competente para exercer sua cidadania.
(mobilidade da catexia). A bioética da vida cotidiana visa pensar as questões mais simples do nosso
Nas chamadas síndromes do hemisfério cerebral direito, que ocorrem nas dia a dia, ou seja, uma reflexão ética das relações, para não ter que pensar ape-
lesões da região peri-silviana, geralmente por problemas de irrigação da arté- nas nas grandes questões da bioética que implicam em mudança de valores,
ria cerebral medial que provoca paralisia no lado esquerdo do corpo, ocor- como por exemplo a eutanásia, fertilização in vitro, os transgênicos, aloca-
rem alguns sintomas exuberantes como: 1. anosognosia (inconsciência do ção de recursos em saúde etc.
déficit); 2. anosodiaforia (aceitação intelectual com negação emocional); 3.
negligência (ignorância do lado esquerdo do espaço); 4. misoplegia (obses- DESENVOLVIMENTO HUMANO A humanidade tende a repetir suas expe-
sividade e ódio pela lesão) e apraxia espacial (dificuldade de atuar o espaço) riências, porém delas o ser humano aprende muito pouco. Para exemplifi-
etc. Esse quadro, cujos sintomas são explicados coerentemente por teorias car, retomaremos o movimento artístico e científico conhecido como
neuropsicológicas relacionadas com as perdas das funções do hemisfério Renascimento dos séculos XV e XVI que pode ser caracterizado pelo renas-
direito e permanência das funções do hemisfério esquerdo, oferecem nas cer da cultura grega clássica. Essa cultura caracterizou-se pela sua visão
situações de investigações psicanalíticas a possibilidade de se descobrir antropocêntrica do mundo, ou seja, ela entendia que o ser humano era o
motivações inconscientes, não acessíveis aos métodos neuropsicológicos fator central ou, pelo menos, o mais significativo do universo.
comuns, que levam os indivíduos às manifestações de tais sintomas de nega- Com o renascer dessa compreensão humanista, existe a retomada de uma
ção da realidade dolorosa, sugerido que o hemisfério direito ausente tem a ética orientada para o ser humano, para o desenvolvimento das suas facul-
função psíquica de realizar o luto pelas perdas, superar a melancolia, e desen- dades criadoras e para o máximo proveito dos recursos naturais.
volver a capacidade relacional do indivíduo dos estados narcísicos para rela- Devido ao salto qualitativo proveniente do atual conhecimento em espaço,
ções de objeto, propiciando, conseqüentemente, a ampliação de suas rela- tempo e cultura, entendo que estamos experimentando um período revolu-
ções espaciais. cionário, que posso compará-lo ao período renascentista. Porém, como no
passado, os conflitos éticos que esse tipo de conhecimento nos traz são inú-
Yusaku Soussumi é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; mem- meros, e é por este motivo que entendo que devamos retomar uma ética que
bro fundador da Sociedade Internacional de Neuro-Psicanálise; e presidente do Centro de Estu- esteja vinculada a valores humanistas, pois foi ela quem ajudou a lidar com
dos de Neuro-Psicanálise de São Paulo. estes conflitos, durante o período do Renascimento.
O novo conhecimento científico coloca uma questão ética central: o que é
a “vida”?. A questão pode ser subdividida em o que deva a ser considerado
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA “estar vivo”, como, por exemplo, os embriões congelados ou o genoma
mínimo, e o que venha a ser considerado “ser vivo”, por exemplo, o que fazer
Kaplan-Solms, K.& Solms, M. Clinical studies in neuro-psychoanalysis – com os seres e plantas transgênicas.
Introduction to a depth neuropsychology, London, Karnac Books.2000. O ressurgimento desse pensamento renascentista pode ser observado através
Luria, A.R. Human brain and psychological process, New York: Harper & de certas equivalências históricas, como o que ocorreu na divulgação do conhe-
Row. 1966. cimento. Gutemberg, inventor do tipógrafo, em 1440 imprimiu o primeiro
Luria, A.R The working brain: an introduction to neuropsychology. New livro, a Bíblia, permitindo que as pessoas comuns pudessem ter acesso a esse
York: Basic Books. 1973. conhecimento humano. Mantidas as proporções, é fácil de se observar a seme-
lhança existente no que o Bill Gates nos oferece com seus softwares ou na velo-
cidade da divulgação do conhecimento que a internet nos proporciona.

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud
Roberto Calazans
Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade
Federal de São João del Rei (UFSJ). Doutor em Teoria Psicanalítica pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Endereço para correspondência: Rua João da Mata, 200/104, Bonfim –
São João del Rei, MG. CEP: 36307-444. E-mail: roberto.calazans@gmail.com

Dayane Costa de Souza Pena


Aluna do Curso de Psicologia da UFSJ. Ex-bolsista de Iniciação Científica
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)/Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
Endereço para correspondência: Praça Dom Helvécio, 74, Dom Bosco –
São João del Rei, MG. CEP: 36301-160. E-mail: dayannepena@hotmail.com

Marcioni Tomaz Brito


Aluno do Curso de Psicologia da UFSJ. Ex-bolsista de Iniciação Científica
PIBIC/FAPEMIG.
Endereço para correspondência: Praça Dom Helvécio, 74, Dom Bosco –
São João del Rei, MG. CEP: 36301-160. E-mail: mardalua@psicologia.ufsj.edu.br

Resumo
O presente artigo pretendeu apontar para as questões que estavam em jogo
para Freud quando da redação do Projeto de 1895. Objetivamos com isso
demonstrar que Freud não visava necessariamente a construção de uma
teoria neuropsicanalítica, como pretendem alguns, mas a busca da etiolo-
gia psíquica das neuroses. Por isso, em um primeiro momento analisamos
porque Freud escolhe o nome psicanálise para denominar sua teoria. Depois
estabelecemos quais são os dois postulados elaborados por Freud na parte
I do texto do Projeto para, em segui da, apontar como a parte II, articula-
da com outros textos contemporâneos de Freud, apontam para a busca de
Freud de uma causalidade não nos neurônios, mas em representações.

Palavras-chave:
Psicanálise; neuropsicanálise; psíquico; análise; etiologia.

Mental - ano X - nº 18 - Barbacena-MG - jan./jun. 2012 - p. 9-28


10 Roberto Calazans, Dayane Costa de Souza Pena, Marcioni Tomaz Brito

1 INTRODUÇÃO

Em 1990, o presidente dos Estados Unidos da América determi-


nou investimentos para pesquisas sobre o cérebro e declarou que os
anos 1990 seriam a década do cérebro (AGUIAR, 2004, p. 19). Em 2001,
o filósofo americano John Searle (2007, p. 31) pronuncia uma palestra
na qual pretende demonstrar como a liberdade do humano é um fato
de natureza cerebral. Ele parte da hoje já gasta crítica à divisão carte-
siana entre a mente e o corpo e define a consciência como uma carac-
terística do cérebro. Para além de uma abordagem equivocada do
dualismo  cartesiano, essa afirmação não é tão somente fruto de uma
especulação idiossincrática, mas é consequência da década do cérebro
que pretende reduzir diversos problemas, sejam psíquicos, sociais,
econômicos ou políticos a uma origem neuronal.
É a partir deste imperativo que permeia o discurso atual que
críticas são feitas à psicanálise de não ser uma ciência. A argumen-
tação básica é que Freud não teria, na época, a possibilidade de dar
substrato empírico às suas teses devido à ausência de instrumentos
adequados, mas agora estaríamos em condição de vencer esta barrei-
ra. Para fugir a essa suposta deficiência alguns autores da neurociên-
cia e da psicanálise fundaram, em 2000, a Sociedade Internacional de
Neuropsicanálise (SERPA, 2006). Segundo os mesmos autores era preci-
so retomar a proposta de Freud em seu texto Projeto de Psicologia para
Neurólogos, de 1895, e a neurospsicanálise seria o modo pelo qual a
psicanálise conseguiria responder às críticas de ser uma pseudociência
se amparando em dados supostamente objetivos. Mas a psicanálise e
o seu problema podem ser tratados por métodos estranhos a ela? Não
encontramos aqui a confusão entre campos de problemas distintos —
aqueles relativos ao sujeito que demanda um tratamento clínico pela
fala com aqueles relativos ao funcionamento do sistema nervoso e que
não depende de um sujeito para ser pensado, mas de procedimentos
experimentais? A psicanálise, nessa perspectiva, não corre o risco de ser
reduzida a um capítulo menor da neurociência? Vemos então um deslo-
camento do sentido dos conceitos psicanalíticos por não haver  uma
consideração sobre o sentido do problema da psicanálise.

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud 11

A nossa intenção nesse artigo é demonstrar quais são os pressu-


postos importantes no texto do Projeto de 1895 e como alguns desen-
volvimentos posteriores da obra de Freud nos impede de falar em
neuropsicanálise. Para isso iremos, em um primeiro momento nos
ater a um texto de Freud sobre o tratamento psíquico para delinear
o sentido do termo psicanálise para Freud; em seguida faremos uma
análise das duas primeiras partes do Projeto de 1895 articulando-as
com alguns textos contemporâneos a ele para demonstrar que Freud
tinha uma preocupação mais premente: buscar a etiologia das neuro-
ses na sexualidade.

2 O QUE SIGNIFICA PSICANÁLISE?

Ao analisarmos os textos dos autointitulados neuropsicanalistas,


percebemos dois pontos em comum entre eles: a utilização do Projeto
de 1895 como prova da afirmação da necessidade de seguir o que seria
o projeto originário freudiano: validar neurocientificamente o estudo
do psiquismo; e a citação da famosa passagem do texto Esboço de
Psicanálise (FREUD, 1938b) em que Freud deixa para o futuro a possi-
bilidade de encontrar bases neuroquímicas ou toxicológicas da neurose.
Pribram e Gill (1976, p. 7) estão entre os primeiros a tentar
fazer essa articulação entre psicanálise e neurociência. Afirmam na
introdução de seu livro sobre o Projeto que a obra de Freud deve ser
pensada como neuropsicologia, ou seja, a união entre o neurológico e
o psicológico.  Eles não consideram o Projeto como uma obra apenas
de cunho neurológico; eles afirmam que o Projeto é, além disso, uma
obra psicológica escrita em termos neurológicos mostrando a junção
dos dois campos de conhecimento. Segundo eles, é por essa razão
que Freud a denominou de uma “Psicologia para neurólogos”. Talvez
Freud realmente intencionasse esta união, visto que ele tinha formação
fisicalista, era neurologista, além do Zeitgeist em que estava envolvi-
do. Mas duas questões merecem ser colocadas: por qual razão Freud
abandona o Projeto? O texto do Projeto autoriza toda e qualquer tenta-
tiva de reduzir a um tratamento supostamente científico os problemas
aos quais Freud se defrontava na clínica?

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12 Roberto Calazans, Dayane Costa de Souza Pena, Marcioni Tomaz Brito

Freud inicia seu Projeto afirmando a sua intenção de

prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar


os processos psíquicos como estados quantitativamente determi-
nados de partículas materiais especificáveis tornando assim esses
processos claros e livres de contradição. (FREUD, 1895, p. 347).

Essa passagem é, muitas vezes, evocada como prova da intenção


de Freud. No entanto, a essas passagens de Freud poderíamos contrapor
uma série de outras que negam essas afirmações. Mas se fizéssemos isso
cairíamos em uma guerra de citações que não traria nenhuma fecundi-
dade para o debate. Poderíamos apelar para um argumento de ordem
factual e lembrar que Freud preferia que o texto do Projeto fosse destruído
e que este só veio à cena a partir de uma série de contingências. Mas se
fizéssemos isso, estaríamos utilizando fatos como argumentos e que não
apontam nem para o sentido do problema tratado por Freud nem para
a inteligibilidade de sua teoria. Não procederemos por nenhuma dessas
duas formas porque não cremos que sejam formas compatíveis ao espíri-
to científico tanto apelar para fatos como se eles fossem evidências por si
mesmo, quanto apelar para a letra de Freud como se ela conferisse uma
autorização para justificar práticas que não seguem a sua forma de tratar
dos problemas que encontrava na clínica: estabelecer a etiologia psíqui-
ca das neuroses e a direção do tratamento. Freud consegue estabelecer as
duas a partir do que ele chama de psicanálise.
François Regnault (2001), em Análise e Síntese em Freud, chama
a atenção para os dois termos que são conjugados na expressão psica-
nálise: nem sempre se pensa sobre os sentidos que ambos têm, nem
porque Freud escolheu os dois para nomear a práxis fundada por
ele. Começaremos aqui falando em primeiro lugar do termo análise e
depois do termo psikhé, lembrando que Regnault usa como referência
um texto anterior ao Projeto de 1895: Tratamento Psíquico (ou Anímico)
(FREUD  1890/1905), mas que durante muito tempo foi considerado
um texto de 1905, por sua afinidade com as teses de Freud pós Projeto.
O termo análise, conforme afirma Regnault, é escolhido em detri-
mento ao termo logia. Freud poderia muito bem situar sua prática tanto no

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud 13

terreno da psicologia — que já existia — ou da neurologia — que era seu


terreno inicial de atuação. Se não o faz, é por uma razão: a sua práxis não é
da ordem de um discurso sobre o psiquismo que caracteriza a Psicologia.
Foi por não respeitar o sentido do problema e a operação em jogo no termo
análise que muitos autores pós-Freud se perderam  em uma perspectiva
que é completamente anti-freudiana: a do reforço do eu, da busca de um
princípio de síntese que podemos chamar de eu ou de personalidade. Sua
práxis é da ordem do questionamento desse discurso sintético que produz
não somente o eu como um precipitado de identificações abandonadas
(FREUD, 1923), mas também o sintoma como uma formação de compro-
misso (FREUD, 1898).
Análise, portanto, é tomado de empréstimo do terreno da
matemática pela via da química e implica, longe de um discurso sobre a
natureza do sujeito, a realização de um trabalho. A ciência, diz Regnault
(2001, p. 39), “está do lado da análise, a vida do lado da síntese”. A síntese
é, em geral, espontânea, não necessita de um trabalho para produzi-la.
Afinal de contas, só se explica, só se torna logicamente inteligível, o que
se analisa. Cremos que é mais nessa perspectiva que devamos abordar
o interesse de Freud pelas ciências, a sua submissão ao que Jean-Claude
Milner (1996) chama de ideal de ciência do que na afirmação de um conte-
údo positivo sobre o que é o psiquismo. Isso somente levaria a afirmação
de um movimento de grupo em torno desse conteúdo, como no caso da
neuropsicanálise. Como aponta Cláudio Oliveira:

um dos motivos que impedem uma adesão ingênua da psicanálise


a uma Weltanschauung científica é o mesmo motivo que impede essa
adesão ocorra por parte da própria ciência. Na verdade, mesmo a
ciência, quando se compreende como uma Weltanschauung no senti-
do estrito do termo, tal como definido por Freud, corre o risco de
tornar-se um laço grupal religioso. (OLIVEIRA, 2004, p. 12).

Esse é um primeiro sentido a ser dado à explicação do porquê


Freud prefere o termo análise ao termo logos. O segundo sentido é
que a ordem analítica permite remontar à causa da síntese (forma-
ção do inconsciente) encontrada. Dessa forma, privilegiar a análise é

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14 Roberto Calazans, Dayane Costa de Souza Pena, Marcioni Tomaz Brito

privilegiar algo que é a preocupação maior de Freud no início de sua


obra pré-Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900): a etiologia das psico-
neuroses1. Dessa forma, descobrir a causa da doença psíquica não se
trata somente de uma orientação diagnóstica, mas também da condu-
ção do tratamento. Por exemplo: é devido a essa orientação que Freud
recomenda, mesmo com reservas, o não tratamento de psicóticos.
Se não há discurso sobre o eu ou sobre o psiquismo, há discurso
sobre a causa da cisão do psiquismo. Mas esse discurso só é possível
devido ao procedimento de análise que permite encontrá-la. Discurso que
vem a reboque da análise, a posteriori. Sobre a questão da causa, Regnault
é bem claro ao comentar uma passagem do texto de Freud sobre a jovem
homossexual: “a análise remonta às causas, pode chegar a conhecê-las,
mas a síntese, que consistiria em prevê-las, e isso desde a infância, são
impossíveis” (REGNAULT, 2001, p. 67). Esta questão da impossibilidade
da previsão acompanhará Freud até o final de sua obra. Basta lembrar-
mos de que Freud, em Análise Terminável e Interminável (FREUD, 1937),
coloca também a questão da impossibilidade de profilaxia das neuroses
e em Construções em Análise (FREUD, 1938a) aponta que a construção é
um trabalho de construção dessa origem durante o trabalho de análise.
Mas por que essa causa primeira não permite postular uma teoria do
desenvolvimento que vai da infância até o mundo adulto? Por que a causa
em psicanálise se coloca sempre a posteriori? A primeira resposta é porque só
há preocupação com a causa a partir do momento em que o sujeito se defron-
ta com o sintoma. Até então, o sujeito não se preocupa com o que causou seu
estado atual. Como diz Lacan (1964), só há falta para o que claudica, para
o que não funciona. Mas essa explicação só fica completa se retomarmos o
segundo termo da práxis fundada por Freud: psíquico.

Psyche é uma palavra grega e se concebe, na tradução alemã,


como alma. Tratamento psíquico significa, portanto, tratamento
anímico. Assim, poder-se-ia pensar que o significado subjacente
é: tratamento dos fenômenos patológicos da vida anímica. Mas
não é este o sentido dessas palavras. “Tratamento psíquico’’ quer
dizer, antes, tratamento que parte da alma, tratamento — seja
Utilizamos esse termo da mesma maneira que Freud utiliza em alguns textos iniciais: o conjunto dos problemas.
12

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud 15

de perturbações anímicas ou físicas — por meios que atuam, em


primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser
humano. (FREUD, 1890/1905, p. 231).

Freud começa apontando para uma definição que, à primeira


vista nos parece meramente etimológica, mas que tem um sentido mais
correto. Esta referência ao termo alma não é gratuita; ao contrário, indica
um campo de problemas e a afirmação de um princípio de tratamen-
to do problema completamente distinto da psicologia acadêmica ou
do que podemos chamar de projeto cientificista da psicologia. Indica,
antes, um campo de problemas clássico que foi levantado pela Filosofia
e que podemos dizer que se caracteriza pelo modo de ser afetado pela
fala e pela linguagem. A psykhé é relativa ao pensamento, à possibilida-
de de dizer aquilo que é e de dominar e estabelecer a harmonia entre as
partes inferiores, como lembra Phillipe Julien (1996). Assim, podemos
dizer que a psykhé é relativo ao domínio de si, relativo ao que Lacan
chamou de discurso do mestre, ou de discurso do manche. Aquele
que domina a si mesmo domina aos outros e pode educar e governar
os outros. Vemos que está em jogo uma definição de ser que leva em
consideração uma identidade a si mesmo, um modo de ser e de pensar
próprio ao pensamento do mundo antigo. Domínio de si e das paixões,
que levaria ao homem a se perder, a perder sua identidade e o seu ser.
Domínio que é conhecido como ético. Por essa razão Lacan (1964) fala
que o estatuto do inconsciente não é ôntico e sim ético.
Antecipemos uma crítica que geralmente é feita à psicanálise
quando traça a distinção entre campo de problemas relativo à alma
(ou modo de ser, ou, para dizer como Lacan, modo de falta-a-ser) e ao
corpo. Dizem que essa é uma concepção cartesiana que já foi ultrapas-
sada por uma abordagem holística, que integra essas diversas dimen-
sões de um ser integral que é o homem. Essa crítica é feita geralmente
por psicólogos que pretendem reduzir tudo ao nível de sua experiên-
cia quotidiana. Mas, se levarmos em consideração apenas o título de
um autor da filosofia que dedicou sua vida a estudar Descartes, vemos
que as coisas não se passam da maneira como essas pessoas preten-
dem atacar tanto a psicanálise quanto Descartes. Conforme Martial
Guéroult (1991), em Descartes selon l’ordre des raisons, se seguirmos a

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16 Roberto Calazans, Dayane Costa de Souza Pena, Marcioni Tomaz Brito

ordem das razões de estabelecer um campo de problema, não temos


porque tratar um problema da ordem do corpo — que em Descartes é
da ordem da física (res extensa) — como problemas da ordem do pensa-
mento (res cogitans).
Em segundo lugar, este tipo de crítica não se questiona o que seria
um corpo quando falamos de psicanálise, se ele pode ser subsumido a um
organismo. Pois se soubessem, não falariam em um ser integral, uma vez
que o corpo é a imagem do corpo formada a partir de uma identificação — e
onde temos identificação não podemos mais falar em unidade. Ora, o corpo é
algo para além das identificações, algo que a coloca em questão (é o exemplo
de Freud e do sonho da injeção de Irma, no qual Freud se defronta com o
real da carne que é traumático). Seja qual for o caso, podemos ver que não se
segue nem a ordem das razões, nem a ordem das coisas, pois nem em uma
ordem nem em outra encontramos essa tão propalada unidade.
Não se trata, então, de saber se a alma existe ou não, ou tratar desse
problema como se ele fosse da ordem de uma realidade; quando estamos
às voltas com problemas anímicos, estamos às voltas com problemas da
ordem dos valores, do pensamento e da orientação. Mas, como tratar de
problemas dessa ordem? Como afirma Freud nesse texto:

Um desses meios é, sobretudo, a palavra, e as palavras são também


a ferramenta essencial do tratamento anímico. O leigo por certo
achará difícil compreender que as perturbações patológicas
do corpo e da alma possam ser eliminadas através de “meras”
palavras. Achará que lhe estão pedindo para acreditar em bruxa-
rias. E não estará tão errado assim: as palavras de nossa fala cotidia-
na não passam de magia mais atenuada. Mas será preciso tomar-
mos um caminho indireto para tornar compreensível o modo como
a ciência é empregada para restituir às palavras pelo menos parte de
seu antigo poder mágico. (FREUD, 1890/1905, p. 283).

Freud, nesse texto, aponta para a dimensão em que o corpo é


um corpo tomado pela linguagem. Esse texto de Freud de 1890 aponta
para uma ordem de problemas que não pode reduzir ao corpo, e que
o transtorna: a alma. Freud demonstra isso em vários exemplos sobre
as paralisias histéricas (um sujeito passa a mancar quando pensa ter

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud 17

dado um mau passo na vida; outro fica cego sem nenhuma afecção
patológica: mais uma vez, estamos lidando com algo que coloca em
questão qualquer ideia de unidade, como o sintoma). Essas paralisias
são produzidas a partir da relação entre representações que ressignifi-
cam experiências infantis. É aqui que entra em jogo a questão da causa-
lidade a posteriori que não pode ser prevista: é da ordem do que vem
depois, por meio das representações, que algo passa a ser tido como
originário. Esse procedimento só faz sentido se remetermos inteiramen-
te a um registro psíquico, sem a necessidade de apelar para nenhum
evento biológico ou físico. E é por isso que Freud se vê sistematicamen-
te levado a abandonar conceitos que seriam do campo da neurologia e
cada vez mais se referir a conceitos psíquicos: por buscar, incansavel-
mente, uma causalidade psíquica.
Nos próprios termos de Freud: a ferramenta essencial para o trata-
mento anímico é a palavra. E isso por duas razões: a primeira é porque dando
a oportunidade da fala podemos responsabilizar o sujeito; e a segunda é
porque é a partir das palavras que podemos afetar um sujeito. Se voltarmos
ao exemplo do corpo, encontramos relatos da época da ditadura de sujeitos
que mesmo torturados não se submeteram ou não entregaram seus compa-
nheiros. A tortura do corpo não indicava necessariamente uma mudança da
alma. Podemos também pegar um exemplo de Lacan que ilustra muito bem
isso do que estamos falando: certa vez perguntaram a ele como fazer para
tirar alguém de sua consciência. Ele respondeu: esfolando! Quando estamos
lidando com o anímico, não se trata de consciência no sentido de estado vigil
em oposição ao estado de sono; trata-se de consciência no sentido de uma
lógica e de uma organização. E se Freud, a partir do tratamento das histé-
ricas, recusa essa lógica, foi porque recusava essa lógica consciencial que
definia o conceito de normalidade e de loucura.
Nesse mesmo texto, Freud lembra ainda o quanto será insuficiente
buscar no cérebro a etiologia das neuroses e da cisão do aparelho psíquico.

Até aqui, entretanto, a investigação do cérebro e dos nervos desses


doentes não permitiu encontrar nenhuma modificação palpável,
e alguns dos aspectos do quadro patológico chegam até a proibir
a expectativa de que um dia se possa apontar, com meios de

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18 Roberto Calazans, Dayane Costa de Souza Pena, Marcioni Tomaz Brito

investigação mais apurados, modificações de tal ordem que sejam


capazes de esclarecer a doença. (FREUD, 1890/1905, p. 273).

E mais adiante Freud conclui que tal investigação deveria, na


verdade, se voltar para outro ponto para ser bem sucedida.

Nesse processo, fez-se a descoberta de que, pelo menos numa


parcela desses enfermos, os sinais da doença não provinham
de outra coisa senão da influência modificada da vida anímica
sobre seu corpo, devendo-se, portanto buscar no anímico a causa
imediata da perturbação. (FREUD, 1890/1905, p. 274).

3 O PROJETO DE 1895

Freud estabeleceu dois postulados que, inter-relacionados, formam


as bases da primeira parte do Projeto. O primeiro postulado é a teoria do
funcionamento energético quantitativo que diz respeito à capacidade de
processamento da quantidade de energia pelo aparelho neuronal. A esta
quantidade de energia Freud chamará, em 1895, de Q. Ela será a base para
a posterior construção do conceito de pulsão como força constante e exigên-
cia de trabalho feita à vida anímica. O segundo postulado trata da teoria
neurônica na qual Freud descreve o neurônio como partícula material,
elemento constituinte do aparelho psíquico, além de identificar as barreiras
de contato entre eles, as quais facilitam ou dificultam a passagem de quanti-
dade de energia pelos neurônios. Os neuropsicanalistas acreditam que esses
dois postulados podem explicar respectivamente os conceitos de pulsão e
recalque, ou, pelo menos, indicar um caminho para pensá-los cerebralmen-
te. Entretanto, o Projeto de 1895 é um texto que podemos considerar como
fundante da teoria psicanalítica ou um texto que contém alguns elementos,
mas não seus princípios? Para responder a essas questões passaremos por
dois pontos que são fundamentais: em primeiro lugar as teorizações de
Freud contidas no Projeto; segundo, a necessidade de percorrer os impasses
que levaram Freud ao abandono das explicações neurológicas e que levou
ao desenvolvimento da noção freudiana da sexualidade.
A partir da relação dos dois postulados, Freud classifica os siste-
mas de neurônios em:

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud 19

permeáveis Ф (aqueles que não oferecem resistência e nada


retêm), destinados à percepção; impermeáveis ψ (aqueles que
são dotados de resistência, retentivos de Q), que são portadores
da memória e com isso provavelmente também dos processos
psíquicos em geral. (FREUD, 1895, p. 352).

Mais adiante, através dos estudos sobre a consciência, de como


as qualidades (sensações) se originam e se apresentam no aparelho
psíquico, Freud vê a necessidade de um novo sistema de neurônios, o
sistema ω. O sistema ω é consciente e, diferentemente dos outros dois,
ele é excitado através dos estímulos perceptuais receptados pelos órgãos
sensoriais produzindo diversas qualidades que ele chama de sensações
conscientes. Vemos aqui o início  do que Freud, na Interpretação dos
Sonhos (FREUD, 1900), chamará de divisão do aparelho psíquico, mas
sem a necessidade de apelar para substrato neuronal.
A partir da classificação dos neurônios, Freud vai questionar o
que torna um neurônio permeável ou não e quais são os fatores que
induzem a facilitação da passagem de Q e os quais a dificulta. Ele
relacionou essas características à localização do neurônio e à Q. Sendo
que os neurônios permeáveis são geralmente encontrados nas periferias
do sistema ω, pois este sistema recebe quantidades mínimas de energia.
O sistema ω é completamente permeável e não apresenta memória, ao
contrário do sistema ψ. Freud presume então que

toda a resistência das barreiras de contato se aplica somente à


transferência de Q, mas que o período do movimento neuronal
é transmitido a todas as direções sem inibição como se fosse um
processo de indução. (FREUD, 1895, p. 362).

Ele busca o conceito período nas ciências exatas, mais especificamen-


te na mecânica física, e tem característica temporal. Freud vai considerar ω
como incapaz de receber Q sendo apenas excitado pelo período que propor-
ciona um investimento mínimo de Q que vai estabelecer a consciência.
Freud afirmará que o sistema nervoso tem por característica
livrar-se do excesso de Q (GARCIA-ROZA, 1991, p. 88), e denominará

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20 Roberto Calazans, Dayane Costa de Souza Pena, Marcioni Tomaz Brito

isso de princípio de inércia neurônica. Este excesso provocaria desprazer ao


sistema nervoso. Ele relacionará esse princípio ao modelo de funcionamento
do arco reflexo, no qual as excitações de origem externas recebidas pelos
neurônios sensitivos, permeáveis, tendem a ser completamente descarrega-
das nas extremidades motoras. As excitações de Q, por serem de origem
endógena, não podem ser evitadas por meio da fuga como pode ocorrer
com um estímulo externo; assim ele não consegue se descarregar totalmente
do investimento que seria a tendência inicial do princípio da inércia que seria
reduzir Q a zero, o sistema nervoso então vai tentar manter esta quantidade
de energia o mais baixo possível, a fim de se evitar o desprazer causado pelo
aumento do investimento no aparelho. Quando há um excesso Q nas vias
endógenas que atravessaram pelas “telas” de Ф, que são dispositivos que
impedem que grandes quantidades de energia passem provocando algum
dano ao aparelho, isso provocará um aumento do investimento em ψ, “que é
sentido como desprazer pelo ω” (FREUD, 1895, p. 372). Podemos considerar
isso como uma exigência de trabalho feita ao aparelho psíquico, requerendo
uma descarga. Aqui temos Freud estabelecendo a existência de uma “estra-
nha” quantidade de energia que nunca cessa, quando sabemos que,  na
biologia, as estimulações internas são sempre cíclicas. E que será o que Freud
em 1915 denominará de pulsão (FREUD, 1915).
Na parte II do Projeto, Freud “procura inferir da análise dos proces-
sos patológicos alguns determinantes adicionais do sistema fundamenta-
do nas hipóteses básicas” (FREUD, 1895, p. 401), encontradas na parte I.
Procura nesse momento descrever a psicopatologia da histeria como uma
compulsão exercida por ideias excessivamente investidas de Q. Essas ideias
não provocariam nenhum mal-estar nas demais pessoas; pelo contrário, as
outras pessoas parecem ridículas, ininteligíveis. Essa compulsão torna-se
inteligível quando retornamos às suas origens. Freud observou que essas
ideias eram resultado de uma defesa que indicava alguma situação de
risco já vivida anteriormente pelo sujeito; essas ideias sofreram deforma-
ções para que fossem aceitáveis para a consciência. Freud acena aqui para
uma singularidade do sujeito e não para uma determinação neuronal, uma
vez que estas ideias investidas dependeram de um trabalho do mesmo.
Podemos ver isso retomando um texto contemporâneo ao Projeto:
As Neuropsicoses de Defesa de 1894. Nele Freud dedica-se em buscar a

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud 21

etiologia das neuroses, caminho que uma vez assumido o levou à sexua-
lidade, ou seja, a existência de um liame entre elas, não recorrendo aos
neurônios para construir essa articulação. O enfoque neste texto está nas
representações e não em neurônios. Freud afirma que as patologias psíqui-
cas advêm da impossibilidade do sujeito “resolver a contradição da repre-
sentação incompatível e seu eu por meio da atividade do pensamento”
(FREUD, 1894, p. 55). A questão que se apresenta é a de um conflito psíqui-
co. Freud conclui o raciocínio afirmando que essas representações incom-
patíveis estão no campo da experiência e das sensações sexuais. Estava
inaugurada a via de investigação que atravessa toda sua obra; que jamais
foi negada, ao contrário foi afirmada e reafirmada a cada nova etapa.
Neste texto, Freud lança mão do conceito de defesa, que podemos
definir como um trabalho sobre as representações investidas sexualmente,
visando impedi-la de fazer associações e retirando o afeto. Em Observações
Adicionais sobre Neuropsicoses de Defesa (1896), a expressão “defesa” toma
uma conotação generalizada, passando “recalque” a ser o mecanismo
específico das neuroses contra a representação agora incompatível.
Em todo caso, há o problema do destino do excesso de excita-
ção. Freud apresenta como possibilidade a esse excesso, aquilo que ele
denomina , nesses textos, de afeto, tomar o caminho da “transforma-
ção de sua excitação em alguma coisa somática”(FREUD, 1894, p. 56).
Denominando esse processo de conversão histérica, essa somatização
do afeto representa a constatação de Freud da atuação do psíquico no
somático e não o contrário. De forma que tanto a teoria do funcionamen-
to energético quantitativo como a teoria neurônica se apresentam como
explicações supérfluas quando estamos tratando de representações.
Freud observa que as ideias histéricas surgem a partir de um deslo-
camento psíquico entre duas ideias; uma provinda de algum acontecimen-
to anterior, geralmente na infância e ligado à sexualidade do sujeito, que
na época não sofria recalque deste, pois seu aparelho psíquico não estava
maduro o suficiente para sentir a sua sexualidade como após a sua entrada
puberdade. Essa primeira ideia não é inteligível ao sujeito, num primeiro
momento, porque foi recalcada. A segunda ideia é a que causa sofrimento
ao sujeito, ela é conhecida deste, sendo que muitas vezes pode ser trata-
da ou evitada, mas não desaparece, porque não é a origem do problema.

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22 Roberto Calazans, Dayane Costa de Souza Pena, Marcioni Tomaz Brito

Essa ideia é apenas um símbolo para o histérico da ideia original que


lhe causa sofrimento, algo que lhe retorna à situação traumática. Ambas
adquirem um aspecto ameaçador ao sujeito a partir do momento em que
há uma construção do eu com representações que contrariam as vividas.
Freud vai dizer, então, que é a partir da puberdade que ocorre a
liberação sexual, que as experiências vividas anteriormente que tinham
traços da sexualidade, mas que não eram assim sentidas são ressigni-
ficadas e retornam como lembranças de que a liberação sexual ocorreu
prematuramente, que pode desencadear “perturbações que ultrapas-
sam o normal” (FREUD, 1985, p. 411). Percebemos a elaboração daquilo
que ficou conhecido como teoria da sedução traumática.
Freud descreve que as perturbações do pensamento pelo afeto
provêm de um investimento de Q originado em alguma experiên-
cia dolorosa que gerou desprazer. Como sabemos pelo princípio da
inércia neuronal que o aparelho psíquico tende a se livrar deste acúmulo
de Q. Mas quanto maior a quantidade Q “mais difícil é para o ego a
atividade de pensamento, que, segundo tudo indica, consiste no deslo-
camento experimental de pequenas Q” (FREUD, 1985, p. 412). Assim, o
eu não estaria “maduro” para suportar a exigências dessa carga, o que
ofereceu uma causa para os sintomas neuróticos: “alguma coisa contem-
porânea toma lugar de algo do passado, e alguma coisa sexual é substitu-
ída por algo não sexual que lhe é análogo” (FREUD, 1896, p. 170).
A teoria da sedução traumática significava um ponto de apoio para
que Freud construísse a etiologia das neuroses. Contudo, ela é um momen-
to pontual na obra de Freud, não se sustentando mediante os resultados
da prática da clínica psicanalítica. Não havia como determinar um evento
traumático específico; ou ainda nem sempre ocorriam, aliás, na maioria dos
casos tratava-se de fantasias. Em Minhas Teses sobre o Papel da Sexualidade na
Etiologia das Neuroses (1906), o deslocamento da análise para as fantasias é
evidente. Freud dirá que aprendeu “a decifrar muitas fantasias de sedução
como tentativas de rechaçar lembranças da atividade sexual do próprio
individuo” (FREUD, 1906, p. 260). As construções das fantasias pelo sujei-
to revelam que a sexualidade freudiana não possui acento no orgânico, ao
contrário, trata-se de uma psicossexualidade, pois nesse mundo das ideias
as pulsões sexuais podem encontrar satisfação.

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud 23

Freud abandonou a teoria da sedução traumática, das explica-


ções neurológicas, mas continuou a pesquisa, pois, restava a certeza
de que a etiologia das neuroses estava relacionada com a questão
sexual. No final do artigo A sexualidade na etiologia das neuroses (1898),
Freud dá um passo que demarca sua diretriz afirmando que  “as
crianças são capazes de todas as atividades sexuais psíquicas, e
também de muitas somáticas” (FREUD, 1898, p. 266). Freud conclui
que há uma sexualidade infantil uma vez que uma neurose signifi-
cava que havia atividade sexual, e que “as neuroses em crianças são
muito comum, muito mais comum do que se supõe” (FREUD, 1917,
p.  366). Devemos ressaltar a audácia de Freud e frisar seu modo
de  encaminhar a questão: investigar a sexualidade infantil somen-
te encontra fundamento no campo psíquico, pois como sabemos seu
estado de desamparo físico e ausência de maturidade dos genitais
inviabiliza qualquer forma de atos que leve à reprodução! Podemos
perceber um isolamento do Projeto, significando  o  abandono da
capa neurológica como causa das neuroses, passando a enfatizar os
processos pulsionais.

4 CONCLUSÃO

Após essas colocações, como será possível pensar uma discipli-


na intitulada neuropsicanálise, uma vez que a práxis psicanalítica não
é da ordem nem de uma descoberta do que seria a natureza neuronal
do homem?
Não estamos nos referindo aqui à neurociência. Em relação a ela,
preferimos adotar a posição de Zizek: o que ela produz pode trazer
mudanças psíquicas a partir do momento em que um saber pode afetar
um sujeito, e não que seu saber seja sobre o que é da ordem do sujeito
(ZIZEK, 2007). Estamos nos referindo ao acréscimo do termo neural para
especificar ao que é próprio à psicanálise. Pois como vimos na exposição
dos termos análise e psíquico, nós não temos a possibilidade de acres-
centar a esse termo o neural. Não se trata de uma questão de dialogar
ou não, mas de saber se há algum problema comum em torno do qual
o diálogo seria possível.

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A ênfase dada pelos neuropsicanalistas ao Projeto é uma tenta-


tiva de condenar um autor pelo que disse ou escreveu num momento
pontual, não lhe oferecendo defesa ou mesmo desconsiderando conve-
nientemente as mais de quatro décadas que se seguiram em sua obra.
Como mostramos, o termo psicanálise, cunhado por Freud, remete às
questões anímicas e à busca pela causa; o que contrapõe as ideias de
objetivação e síntese.
Refeito o caminho trilhado por Freud, seus impasses e inovações,
podemos afirmar que o conceito de sexualidade surge devido à impos-
sibilidade de uma explicação neurológica para a etiologia das neuroses.
Diante de tal impasse Freud não recua, passando a enfocar um conflito
psíquico ao nível das representações. Assim rompe com o primado do
campo fisiológico explicando a somatização, conversão histérica, como
resultado desse conflito, isto é, a atuação do psíquico no somático.
Ao elaborar a teoria da sedução traumática como causa das
neuroses, Freud procurou sempre colocá-la em questão dentro da
experiência psicanalítica. Tal teoria acabou, como desenvolvido,
invalidada pela descoberta da possibilidade de satisfação pulsional
através das fantasias, que longe de ser um retrocesso para a psicanálise,
significou o afastamento do mundo aparente, isto é, de uma suposta
realidade, e por outro lado abriu novas possibilidades de avanços para
a pesquisa psicanalítica.
Nesse momento Freud tinha condições de articular o aparelho
psíquico construído na Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900) com
aquilo que perturba esse sistema, que estava intrinsecamente ligado às
neuroses e, por consequência, à sexualidade, à pulsão. Definida como
uma força constante que impele o sujeito a buscar satisfação através
de  um objeto, e que uma vez negada pelo recalque leva a formação
do sintoma. Entendemos como sintoma a atividade sexual do neuró-
tico, uma satisfação paradoxal, pois pode gerar desprazer. Foi possí-
vel demonstrar durante o texto que Freud retira a sexualidade de
qualquer  determinação biológica, social ou a possibilidade de traçar
uma linha de evolução. Assim, podemos dizer que o conceito de
pulsão somente possui validade articulado dentro da grade conceitual
psicanalítica.

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud 25

A questão da escolha de objeto mostra-se uma das mais relevantes


para a compreensão da sexualidade, uma vez que a pulsão mostra-se
independente e anterior ao objeto. Apesar da necessidade de um objeto,
Freud afasta qualquer fixidez na ligação entre pulsão e objeto. Portanto, o
objeto é contingente e não originário o que permite falar em uma escolha
na dimensão de um sujeito.
O problema tratado por Freud é de uma psicossexualidade que
é fundante e possibilita a coerência do discurso e prática psicanalítica.
A biologia se mostrará insuficiente para separar os sexos ou explicar a
escolha de objeto. A análise das fantasias construídas pelo sujeito, isto
é, de sua realidade psíquica é o que permite chegar à existência de um
único sexo para o inconsciente, sexo fálico. Por isso, o que possibilita
uma posição subjetiva diante da castração ou da falta é um significante
que se articula no psiquismo, o falo; e não uma questão neuronal.
A obra do neurologista Freud se curva diante do reconhecimen-
to do trabalho do psiquismo que encontra dividido e funcionando
através de representações, e tendo que atender as exigências pulsionais
constantes de satisfação.
É seguindo por esse caminho, e não o neurológico, que podemos
compreender a sexualidade em Freud. Uma sexualidade afetada pelo
significante a qual as consequências são a perda da referência para
escolha de um objeto e a abertura da possibilidade de uma produção
de infindáveis outros objetos. Tal situação retira a escolha de objeto da
ordem biológica, levando-a para o nível individual, do sujeito e não
da  espécie humana. Materializar o psiquismo é tentar transformar
as enfermidades psíquicas em tumores que bastam ser localizados e
removidos por via cirúrgica; dessa forma, a neuropsicanálise no intuito
de totalizar deixa de fora a sexualidade, aliás, deixa de fora a própria
psicanálise.
Respeitando o sentido do problema da psicanálise, concluímos
que conceitos como recalque e pulsão estão afastados de uma ordem
biológica ou social. Portanto, a busca de uma base orgânica para os
conflitos psíquicos será insuficiente para uma sexualidade que se desen-
rola no nível psíquico das representações. Desprezar a vinculação do
psiquismo com a sexualidade torna a prática psicanalítica inexplicável.

Mental - ano X - nº 18 - Barbacena-MG - jan./jun. 2012 - p. 9-28


26 Roberto Calazans, Dayane Costa de Souza Pena, Marcioni Tomaz Brito

REFERÊNCIAS

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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud 27

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28 Roberto Calazans, Dayane Costa de Souza Pena, Marcioni Tomaz Brito

Neuropsychoanalysis: an abandoned project for Freud

Abstract
The present article intended to appear for the subjects that were in
game for Freud when of the composition of the Project of 1895. We
sought with that to demonstrate that Freud didn’t necessarily seek the
construction of a theory neuropsychoanalytical, as they intend some,
but the search of the psychic etiology of the neuroses. Therefore, in a
first moment we analyzed the reason Freud he/she chooses the name
psychoanalysis to denominate your theory. Then we established which
are the two postulates elaborated by Freud in the part I of the text of
the Project for, soon after, pointed as the part II, articulate with other
contemporary texts of Freud, they not appear for the search of Freud of
a causality in the neurons, but in representations.

Keywords:
Psychoanalysis; neuropsychoanalysis; psychic; analysis; etiology.

Artigo recebido em: 10/09/2009


Aprovado para publicação em: 20/09/2012

Mental - ano X - nº 18 - Barbacena-MG - jan./jun. 2012 - p. 9-28


Ciências  &  Cognição  2013;  Vol  18  (1):  057-­069  <http://www.cienciasecognicao.org>                                                            ©  Ciências  &  Cognição  
Submetido  em  31/07/2012  |  Aceito  em  26/04/2013  |  ISSN  1806-­‐5821  –  Publicado  on  line  em  30/04/2013  

  Artigo Científico
 
 
 
Do  divã  à  neuropsicanálise:  alguns  casos  clínicos  à  luz  da  
teoria  freudiana  
 
From  the  divan  to  neuropsychoanalysis:  some  clinical  cases  in  the  light  of  the  Freudian  
theory  
 
Josiane  C.  Bocchia  e  Daniel  Manzoni-­‐de-­‐Almeidab  
 
a
Departamento  de  Psicologia,  Universidade  Federal  de  São  Carlos  (UFSCAR),  São  
Carlos,  São  Paulo,  Brasil;  bSociedade  Paulista  de  Psicanálise,  São  Paulo,  São  Paulo,  
Brasil  
 
Resumo  
 
Dentre   as   principais   questões   endereçadas   à   psicanálise   contemporânea,   uma   boa  
parte   dos   temas   diz   respeito   ao   papel   da   psicanálise   frente   às   neurociências,   e   à  
presença   cada   vez   mais   frequente   de   conceitos   psicodinâmicos   em   modelos  
neurobiológicos   sobre   a   mente   e   o   cérebro.   Há   diversos   artigos   científicos   recentes  
que  se  apoiam  em  recursos  de  neuroimagem  para  propor  aproximações  entre  alguns  
conceitos   freudianos   clássicos   e   determinados   resultados   empíricos.   Alguns   estudos  
até  propõem  uma  junção  entre  as  duas  áreas,  o  que  tem  gerado  polêmicas.  Este  artigo  
discute   o   surgimento   da   Neuropsicanálisee   o   que   ela   representa   nesse   debate.   Para  
traçar   uma   reflexão   inicial   sobre   a   proposta   neuropsicanalítica,   relatamos   alguns   de  
seus  procedimentos  clínicos  em  associação  com  o  método  psicanalítico  de  investigação  
do   inconsciente   e   as   concepções   freudianas   de   melancolia   e   narcisismo.   ©   Cien.   Cogn.  
2013;  Vol.  18  (1):  057-­‐069.  
 
Palavras-­‐chave:  Freud;  neuropsicanálise;  neurociências;  estudo  de  caso,  narcisismo.  
 
Abstract  
 
Among  the  main  issues  addressed  to  the  contemporary  psychoanalysis,  a  great  part  of  
the   themes   concerns   the   role   of   psychoanalysis   face   to   neurosciences   and   also   to   the  
increasing   presence   of   psychodynamic   concepts   trenched   on   neurobiological   models  
about   the   mind   and   the   brain.  There   is   a   profusion   of   scientific   articles   that   rely   on  
neuroimaging  in  order  to  propose  approaches  among  classical  freudian  concepts  with  
some   empirical   outcomes.   An   amount   of   researches   even   indicate   the   junction   of   these  
two  fields  and  as  a  consequence,  that  has  raised  some  polemics.  This  article  discusses  
the  apparence  of  neuropsychoanalysis  and  also  reverberates  what  it  represents  in  this  
current   debate.   To   draft   an   initial   reflexion   about   the   aim   of   this   approach,   it   is  
reported  some  of  the  clinical  procedures  associated  with  the  psychanalytical  method  of  
the  investigation  of  the  unconscious.  ©  Cien.  Cogn.  2013;  Vol.  18  (1):  057-­‐069.  
 

   J.   Bocchi   –   E-­‐mail     para   correspondência:   b.josiane@gmail.com;   E-­‐mail     para   correspondência:  


D.Manzoni  de  Almeida:  danielmanzoni@yahoo.com.br.  

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Submetido  em  31/07/2012  |  Aceito  em  26/04/2013  |  ISSN  1806-­‐5821  –  Publicado  on  line  em  30/04/2013  

Keywords:  Freud,  Neuropsychoanalysis,  Neurosciences;  study  case;  narcissism.  


 
1  Introdução  
 
“Vimos   como   a   negligência   derivou   da   negação   de   uma   perda   por   meio   da  
repressão  e  da  introjeção,  como  a  anosognosia  refletia  a  crença  inconsciente  de  
que  a  imagem  corporal  pré-­‐mórbida  ainda  estava  guardada  em  segurança  dentro  
dela   [...].   Aludimos   muito   brevemente   aos   outros   sintomas   principais   que  
caracterizam  esta  síndrome”  (Kaplan-­‐Solms  &  Solms,  2004,  p.  85).    
 
Neste   trecho,   chama   nossa   atenção   o   emprego   de   termos   psicanalíticos   já   bem  
conhecidos,   como   “repressão”,   “introjeção”   e   “negação”,   ao   lado   de   termos   como  
“anosognosia”   e   “negligência”,   usados   para   a   descrição   de   um   transtorno  
neuropsicológico,   a   Síndrome   do   Hemisfério   Direito   (SHD).   Um   mesmo   parágrafo  
comporta  essa  heterogeneidade  de  vocabulário,  algo  impensável  há  algumas  décadas  
atrás,   como   nos   anos   60   e   70,   em   que   a   ascensão   da   psicofarmacologia   e   o  
fortalecimento   da   psiquiatria   biológica   contribuíram   para   um   descrédito   da   visão  
psicanalítica  dos  distúrbios  mentais  no  meio  científico.  Numa  fase  anterior,  tínhamos  
um  movimento  contrário  no  qual  a  formação  psiquiátrica  norte-­‐americana  dos  anos  50  
priorizava   a   ênfase   psicodinâmica   da   psicanálise   em   oposição   às   concepções  
organicistas  ou  biológicas  da  mente  (Kandel,  1998/2005).  A  propósito,  as  discussões  no  
campo  da  psiquiatria  e  da  psicologia  são  frequentemente  marcadas  pela  tensão  entre  
concepções   biológicas   e   psicossociais   sobre   a   vida   mental.   Como   apontado   por  
Frederico   Graeff   (2006),   a   história   da   psiquiatria   oscila   entre   o   organicismo   e   o  
mentalismo  desde  Emil  Kraepelin  no  século  19.  Então,  o  que  mudou  em  menos  de  30  
anos   que   permite   acomodar   enunciados   neurobiológicos   e   conceitos   psicanalíticos,  
como  no  trecho  acima?  
Nas  três  últimas  décadas,  o  estudo  do  cérebro  passou  a  ser  pensado  de  modo  
essencialmente  multidisciplinar.  Desde  os  anos  90,  tem  havido  esforços  no  sentido  de  
incluir   a   abordagem   da   subjetividade   nos   estudos   sobre   a   cognição   humana,   como  
mostra   António   Damásio   (2000)   em   sua   teoria   neurobiológica   da   autoconsciência   e   do  
sentido   de   self   ou   na   abordagem   de   Gerald   Edelman   (1995)   sobre   a   consciência.  
Outros  neurocientistas  também  propuseram  diálogos  entre  a  neurociência  e  questões  
da  clínica  psiquiátrica  ou  temas  psicanalíticos,  como  Eric  Kandel  (1998;  1999;  2007)  em  
diferentes   oportunidades   e   Jean   Pierre   Changeux,   em   sua   polêmica   noção   de   “homem  
neuronal”.  Ainda  se  pode  encontrar  autores  que  têm  defendido  uma  aproximação  da  
psicanálise   com   uma   nova   visão   em   biologia,   como   Morton   Reiser   (1984),   Mattew  
Erdelyi  (1985)  e  Robert  Clyman  (1991)1.  
Damásio,   um   dos   responsáveis   pelo   reconhecimento   de   que   o   mental   não   se  
restringe   à   cognição,   lembra-­‐nos   de   que   “durante   a   maior   parte   do   século   XX,   a  
emoção   não   teve   espaço   nos   laboratórios.   Dizia-­‐se   que   era   subjetiva   demais”  
(Damásio,   2000,   p.   60).   Contrariando   um   tradicional   modus   operandi   de   priorizar  
temas  cognitivos,  alguns  estudos  neurocientíficos  empíricos  abrem  precedentes  para  a  
inclusão   de   processos   psicodinâmicos,   como   medo,   ansiedade   e   outras   emoções.   A  
percepção   e   a   memória   são   atualmente   estudadas   sem   perder   de   vista   o   papel   do  
aprendizado   emocional   no   processamento   da   informação2.   Portanto,   na   passagem  
para  o  século  21,  o  círculo  de  debates  em  torno  da  psicanálise  tem  sido  marcado  por  

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diferentes   propostas   de   interlocução   com   desenvolvimentos   neurocientíficos   do  


último  quarto  do  século  20  e  anos  2000.  
 
2  Neuropsicanálise  
 
A   neuropsicanálise   surge   filiada   intelectualmente   a   este   contexto,  
apresentando   afinidades   temáticas   com   a   busca   por   uma   visão   mais   integrada   entre  
abordagens   biológicas   e   psicodinâmicas.   Ela   apresenta   um   formato   de   interlocução  
entre   neurociências   e   psicanálise,   cujas   fontes   conceituais   estão   ligadas   à   escola   de  
neuropsicologia  dinâmica  e  aos  trabalhos  de  Aleksandr  Luria,   Kurt  Goldstein  e  Jason  
Brown.  Emprega-­‐se  a  noção  de  sistema  funcional  e  o  método  de  localização  dinâmica  
(ou   análise   da   síndrome),   para   entender   as   relações   entre   o   cérebro   e   as   funções  
psicológicas   normais   e   patológicas,   por   exemplo,   quando   lesões   cerebrais   (tumores,  
acidentes   vasculares,   etc)   modificam   o   funcionamento   mental   de   indivíduos  
anteriormente  saudáveis.   A  análise  da  síndrome  recorta  o  modo  como  estas  funções  
são  perdidas,  quais  aspectos  se  deterioraram  primeiro,  quais  são  preservados  e  como  
isso  afeta  as  demais  funções  da  personalidade.  Não  é  somente  identificar  o  sintoma,  
mas  obter  um  quadro  psicológico  individualizado  de  todas  as  estruturas  envolvidas  na  
perturbação.  
De  acordo  com  o  conceito  de  sistema  funcional  de  Luria,  a  função  mental  não  
está  localizada  em  alguma  parte  do  cérebro,  trata-­‐se  antes  de  diversos  elementos  em  
interação  funcional  dinâmica  que  compõem  sua  representação.  Embora  a  distribuição  
e  organização  neurológica  das  funções  estudadas  sejam  expostas,  a  complexidade  do  
mental  e  sua  natureza  dinâmica  não  são  reduzidas  à  anatomia  e  à  fisiologia.  Veremos  
que   o   método   de   análise   destes   casos   clínicos   permite   que   as   funções   superiores  
sejam   compreendidas   em   termos   psicológicos,   de   acordo   com   seu   modo   de  
organização   funcional,   para   o   qual   o   conhecimento   da   neuroanatomia   elucida   e  
complementa,  mas  não  é  uma  condição  necessária.  Consequentemente,  diferencia-­‐se  
da  versão  localizacionista  strictu  sensu  do  século  19,  com  a  qual  Freud  rompera  desde  
a  fase  neurológica  de  sua  obra,  buscando  dar  maior  autonomia  ao  psicológico3.  
Os   neuropsicanalistas   buscam   na   psicanálise   respaldo   teórico   e   um   método  
investigativo   para   chegar   às   motivações   e   fatores   inconscientes   da   personalidade,   os  
quais   dificultam   a   compreensão   de   alguns   transtornos   neuropsiquiátricos   e   interferem  
na  recuperação  dos  pacientes.  A  neuropsicanálise  se  apoia  na  produção  acadêmica  da  
neurociência   cognitiva,   reunindo   dados   objetivos,   como   testes   neuropsicológicos   e  
exames   de   neuroimagem   funcional   em   associação   com   procedimentos   psicanalíticos,  
tais   como   sessões   psicoterápicas   e,   como   veremos   adiante,   discussão   de   casos   clínicos  
com  base  em  conceitos  como  narcisismo,  ego,  melancolia,  entre  outros4.    
A   abordagem   em   questão   não   é   a   única   proposta   de   aproximação   entre   a  
neurociência   e   a   psicanálise;   encontramos   outros   estudos   que   propõem   uma   ponte  
entre   as   duas   áreas   (Slipp,   2000,   p.   192;   Lane   &   Garfield,   2005,   p.   25;   Shulman   &  
Reiser,   2004,   p.   133   e   140).   A   maioria   destes   estudos   realiza   análises   comparativas  
entre   seus   resultados   experimentais   e   determinados   conceitos   psicanalíticos,  
estabelecendo   relações   mais   pontuais   entre   o   psíquico   e   sistemas   cerebrais,   porém  
sem  recorrer  a  um  corpo  teórico  específico.  Ao  contrário  dos  estudos  comparativos,  a  
neuropsicanálise   busca   fundamentação   teórica   na   metapsicologia   freudiana   e   na  
neuropsicologia  e  conta  com  um  programa  de  estudos  organizado  institucionalmente,  

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o   qual   também   contempla   uma   prática   de   intervenção   clínica,   diferenciando-­‐se   dos  


demais   estudos   que   se   mantém   numa   acepção   mais   geral.   A   propósito,   Jean   Benjamin  
Stora   traça   um   panorama   histórico   do   surgimento   da   associação   internacional   de  
neuropsicanálise   (Stora,   2006).   Stora   esboça   uma   concepção   mais   geral   da  
neuropsicanálise,   caracterizada   pelo   encontro   entre   psicanalistas   e   pesquisadores  
abertos   à   interseção   entre   a   metapsicologia   freudiana   e   os   estudos   neurocientíficos.   A  
nosso   ver,   o   termo   neuropsicanálise   se   aplica   com   mais   propriedade   ao   referencial  
dinâmico  em  neuropsicologia,  como  o  segmento  da  neurociência  dedicado  ao  estudo  
do   efeito   comportamental   das   lesões   cerebrais,   e   sua   estreita   associação   com  
procedimentos  teórico-­‐clínicos  propostos  por  Freud.  
A  neuropsicanálise  foi  impulsionada  pelo  contexto  dos  esforços  que  batizaram  
os   anos   90   como   a   década   do   cérebro,   mas   sem   se   confundir   com   a   pluralidade   dos  
estudos   que   propõem   afinidades   temáticas   entre   neurociência   e   psicanálise,   que   em  
sua   maioria   não   esboçam   um   programa   de   pesquisas   ou   uma   fundamentação   mais  
sistemática.  
Enfim,  a  abordagem  neuropsicanalítica  caracteriza  uma  via  de  demonstração  da  
pesquisa   multidisciplinar   em   neurociência,   visando   unir   a   objetividade   da  
neurobiologia  ao  background  teórico  e  técnico  da  psicanálise  e,  sobretudo,  estreitar  as  
distâncias   entre   as   abordagens   biológicas   e   as   abordagens   psicodinâmicas,   cuja  
oposição  acarreta  prejuízos  à  prática  clínica.  
Como  a  neuropsicanálise  tem  um  núcleo  de  apoio  na  psicanálise,  ela  reproduz  a  
cultura  das  sociedades  psicanalíticas,  com  grupos  de  estudos,  revista  de  divulgação  e  
fóruns   de   discussão   dos   casos   clínicos.   Em   1994,   surgiu   o   primeiro   grupo   de   estudos  
em   Nova   York,   denominado   “Neurociência   e   Psicanálise”,   cujos   trabalhos   levaram   à  
criação  da  revista  Neuropsychoanalysis  em  1999,  publicada  semestralmente  até  os  dias  
de   hoje.   Em   2000,   aconteceu   o   primeiro   congresso   internacional   da   área,   durante   o  
qual   foi   criada   a   atual   International   Neuropsychoanalysis   Society.   Desde   então,   a  
Sociedade  de  Neuropsicanálise  conta  o  apoio  intelectual  ou  a  participação  efetiva  de  
neurocientistas,  como  António  Damásio,  Oliver  Sacks,  Joseph  LeDoux,  Jaak  Panksepp,  
Karl   Pribam   e   psicanalistas,   como   Charles   Brenner,   André   Green,   Mark   Solms,   Peter  
Fonagy,  Otto  Kernberg,  Karen  Kaplan-­‐Solms  e  Daniel  Stern.  
Os   casos   clínicos   a   seguir   foram   extraídos   dos   textos   de   Mark   Solms   e   Karen  
Kaplan-­‐Solms   (2001;   2004),   com   o   objetivo   de   ilustrar   o   procedimento   investigativo   da  
neuropsicanálise  através  do  uso  de  ferramentas  psicanalíticas.  Os  autores  estabelecem  
um   paralelo   entre   observações   anatômicas   e   perturbações   psicológicas   presentes   no  
quadro   neuropsicológico   conhecido   como   “síndrome   do   hemisfério   direito”   (SHD).   O  
objetivo   é   descrever   os   mecanismos   psicológicos   que   atuam   nesta   síndrome   e  
investigar  seu  papel  na  sintomatologia  para  lançar  algum  sentido  aos  comportamentos  
aparentemente   contraditórios   e   ininteligíveis   destes   pacientes.   O   estudo  
neuroanatômico  da  lesão  visa  levantar  a  contribuição  de  certos  sítios  cerebrais  para  o  
estabelecimento   da   síndrome   e   entender   os   processos   normais   vinculados   àquelas  
organizações   neurológicas,   não   se   tratando   de   identificar   a   sede   das   funções  
psicológicas  em  questão.  
 
 
 
 

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3  Perturbações  da  autoimagem  


 
 A   síndrome   do   hemisfério   direito   agrupa   uma   ampla   descrição   de   sinais   e  
sintomas,  designando  diversas  manifestações  decorrentes  de  lesões  neste  hemisfério  
cerebral,   como   alterações   cognitivas,   déficits   de   memória   visuo-­‐espacial,   déficits  
emocionais  e  de  comunicação  entre  os  dois  hemisférios,  entre  outros  (Fonseca  et  al.,  
2006).   Nem   todos   os   indivíduos   com   lesão   no   hemisfério   direito   apresentam   tais  
déficits,   o   que   depende   da   intensidade   do   distúrbio   e/ou   extensão   da   lesão.   Os  
correlatos  neurais  mais  mencionados  na  literatura  pertencem  ao  lobo  parietal  direito  
(Léger,  2005  apud  Fonseca  et  al.,  2006,  p.  248).  
Os  casos  abaixo  relacionados  apresentam  distúrbios  na  percepção  da  imagem  
corporal:   eles   não   reconhecem   a   perda   da   funcionalidade   do   membro   esquerdo  
(anosognososia),   mesmo   diante   de   evidências   contrárias   e   alguns   não   percebem  
estímulos   táteis,   auditivos   e/ou   visuais,   provenientes   do   hemicampo   contralateral   à  
lesão  (negligência  sensorial  ou  espacial).    Esses  indivíduos  também  têm  perturbações  
cognitivo-­‐espaciais,   como   no   julgamento   visuo-­‐espacial,   na   organização   de   objetos   à  
esquerda   ou   ao   orientar-­‐se   espacialmente   à   esquerda.   Quando   estes   pacientes   são  
forçados  a  tomar  conhecimento  de  sua  paralisia,  “insistem  que  o  braço  não  pertence  a  
eles.  Eles  estão  mais  propensos  a  aceitar  que  o  braço  pertença  ao  examinador,  mesmo  
que  isso  implique  em  aceitar  que  o  examinador  tenha  três  braços,  do  que  preparados  a  
aceitar  que  o  membro  deficiente  esteja  ligado  ao  seu  próprio  corpo”  (Kaplan-­‐Solms  &  
Solms,  2004,  p.  50).  
Há  controvérsias  na  literatura  neuropsiquiátrica,  alguns  autores  defendem  que  
a  anosognosia  e  a  heminegligência  seriam  de  distúrbios  de  atenção,  enquanto  outros  
acreditam  que  tais  quadros  envolvem  déficits  do  processamento  perceptivo  (Fonseca  
et   al.,   2006).   As   explicações   mais   frequentes   para   a   síndrome   orientam-­‐se   pela  
especialização   lateral   das   funções   hemisféricas,   como   a   teoria   da   dominância   do  
hemisfério   direito   para   as   emoções   negativas,   segundo   a   qual   os   pacientes   com   a   SHD  
teriam   adquirido   uma   inabilidade   de   perceber   os   aspectos   negativos   de   sua   nova  
condição   corporal.   Contudo,   teorias   como   esta   permanecem   atreladas   aos   sintomas  
diretamente  observáveis,  ao  passo  que  as  perturbações  psíquicas  são  geralmente  mais  
complexas  do  que  aparentam  à  primeira  vista.  
Kaplan-­‐Solms  &  Solms  (2001)  acreditam  que  estes  pacientes  evitam  reconhecer  
as   alterações   físicas   ou   funcionais:   “...   porque   esse   conhecimento   é   fonte   de  
insuportável  sofrimento  para  eles”  (p.  160),  uma  ideia  reforçada  por  um  experimento  
que  corrigiu  temporariamente  o  déficit  perceptivo  da  autoimagem  na  SHD.  Vilavanur  
Ramachandran   (1994)   conseguiu   suprimir   a   negação   emocional   de   uma   paciente   ao  
introduzir  água  gelada  em  seu  ouvido  esquerdo5.  O  experimento  levantou  a  hipótese  
de   que   um   mecanismo   semelhante   à   repressão   psíquica   estaria   em   ação   na   SDH,  
porque   o   conhecimento   do   déficit   foi   registrado   na   memória,   contudo   o   acesso  
àquelas  representações  estava  vetado  por  algum  motivo.  
A  questão  de  Solms  é  o  porquê  as  representações  da  autoimagem  passaram  a  
ser  intensamente  evitadas,  enquanto  que  o  mesmo  não  ocorre  com  os  pacientes  cujas  
lesões  se  dão  na  região  correspondente  do  hemisfério  esquerdo.  
A   Sra.   B,   55   anos,   há   18   anos   paralisada   por   um   Acidente   Vascular   Cerebral  
(AVC),   apresentava   crises   de   choro   e   as   relacionava   a   sentimentos   tristes,   mas  
recusava  que  fossem  por  causa  da  doença.  As  emoções  de  natureza  depressiva  desta  

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paciente  aparecem  nas  breves  conscientizações,  sugerindo  que  não  houve  uma  perda  
da   capacidade   de   sentir   afetos   negativos,   mas   sim   que   as   emoções   se   encontram  
ativamente  suprimidas  pelas  defesas  psíquicas.    
A   mesma   observação   se   aplica   ao   Sr.   D,   34   anos,   que   tinha   a   mão   levemente  
paralisada  e  após  uma  fase  inicial  de  negligência,  passou  a  apresentar  ódio  pela  mão  
hemiplégica   e   acessos   de   raiva   contra   a   equipe   médica.   Apresentava   atitudes   de  
desconfiança  e  controle  quanto  à  equipe  e  agia  como  se  a  mão  não  fosse  uma  parte  do  
seu   corpo.   Como   a   Sra.   B,   ele   também   era   capaz   de   exprimir   sentimentos   negativos,  
suas   verbalizações   agressivas   indicam   um   colorido   emocional   intenso.   O   Sr.   D.   é   um  
caso  atípico  da  SHD,  pois  não  tem  a  negação  ou  repressão  com  mecanismo  subjacente,  
mas   sim   a   projeção   que   faz   com   que   os   sentimentos   relacionados   ao   dano   corporal  
sejam  externalizados:  “Eu  vou  fazer  essa  mão  em  milhões  de  pedacinhos  e  mandá-­‐los  
pelo   correio   para   o   neurocirurgião,   em   envelopes,   um   a   um”,   “Eu   não   posso   viver  
assim;  eu  vou  mandar  amputá-­‐la”  (Kaplan-­‐Solms  &  Solms,  2004,  pp.  92-­‐93  ).  
 Sr.  C,  59  anos,  com  hemiplegia  na  mão  esquerda,     ignorava   o   examinador  
quando  este  se  sentava  do  seu  lado  esquerdo,  tinha  episódios  de  choro  e  no  restante  
do   tempo   era   alheio   e   arrogante   com   a   equipe   médica.   Na   sessão   psicanalítica,  
esforçava-­‐se   por   manter   uma   suposta   invulnerabilidade   e   culpava   os   profissionais   pela  
sua   atual   condição   física.   O   Sr.   C.   minimizava   o   fato,   repetindo   que   o   braço   “parecia  
um   pedaço   de   carne   morta,   mas   agora   está   um   pouquinho   bobo   e   preguiçoso”  
(Kaplan-­‐Solms  &  Solms,  2004,  p.  62).  Assim  como  o  Sr.  D,  este  paciente  tratava  o  lado  
esquerdo   do   corpo   como   se   não   fosse   seu,   e   sim   como   um   objeto   qualquer   que   o  
incomodava  por  não  responder  com  a  mesma  eficiência  de  outrora.  Abaixo,  segue  as  
intervenções  psicanalíticas  que  auxiliam  o  paciente  na  tomada  de  consciência  de  sua  
condição   física   real   durante   a   sessão,   quando   participava   de   um   programa   de  
reabilitação  neurológica:  
 
[...]   ele   subitamente   se   ausentou   da   conversa   com   ela   [a   terapeuta]   e   começou   a  
exercitar   seu   braço   e   sua   mão   esquerda   com   a   mão   direita.   Karen   comentou   que  
parecia   que   ele   não   conseguia   esperar   e   queria   que   o   braço   se   recuperasse  
imediata  e  totalmente.  “Não”,  respondeu  ele,  retornando  momentaneamente  as  
suas  racionalizações.  “Eu  só  não  quero  que  meu  braço  esquerdo  fique  fraco  pela  
falta  de  uso”.  Karen  replicou  que  talvez  fosse  doloroso  demais  tomar  contato  com  
o   que   ele   estava   prestes   a   reconhecer   no   momento   anterior   –   ou   seja,   que   seu  
braço   estava,   de   fato,   totalmente   paralisado   –   e   que   saber   se   o   braço   se  
recuperaria   ou   não   estava   totalmente   fora   do   controle   dele.   Esse   comentário  
provocou   um   desabamento   instantâneo   de   sua   expressão   facial,   com   irrupção   de  
uma   emoção   dolorosa   próxima   às   lágrimas.   Virando-­‐se   para   Karen,   disse   em  
desespero:  “Mas  olhe  meu  braço  [apontando  para  o  braço  esquerdo],  o  que  é  que  
vou   fazer   se   ele   não   recuperar?   (Esse   foi   seu   comentário   mais   reflexivo   até   o  
momento,   envolvendo   um   reconhecimento   pleno   de   sua   problemática   –   um  
momento  de  fato  sem  defesas).  Então,  o  Sr.  C  fez  um  longo  silêncio,    após  o  que  
reverteu  para  seu  estado  usual  de  aparente  indiferença”.  (Kaplan-­‐Solms  &  Solms,  
2004,  p.  66-­‐67)  
 
As   intervenções   terapêuticas   abrem   uma   perspectiva   para   que   o   paciente  
dissociado   reconheça   seu   estado   físico,   dando   vazão   a   sentimentos   suprimidos.   Esta  

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sessão   corrigiu   temporariamente   o   déficit   e   teve   o   mesmo   efeito   produzido   pela  


estimulação  calórica  do  experimento  de  V.  Ramachandran  (1994).  Ambos  os  resultados  
indicam  que  a  percepção  do  esquema  corporal  ocorreu,  reforçando  a  hipótese  de  que  
a   dinâmica   psíquica   da   síndrome   é   mais   complexa   do   que   um   simples   déficit  
perceptivo  para  sentimentos  negativos.    
Por   último,   a   Sra.   A,   61   anos,   com   sequelas   motoras   mais   extensas   e   uso  
cadeira  de  rodas,  estava  clinicamente  deprimida  e  já  tivera  duas  tentativas  de  suicídio,  
no   entanto   recusava   que   os   danos   corporais   tivessem   algo   a   ver   com   sua   tristeza.  
Assim   como   o   Sr.   C,   a   Sra.   A   só   reconhecia   a   paralisia   na   sessão   analítica,   quando   as  
contradições   eram   apresentadas   em   forma   de   interpretação.   No   entanto,   as   defesas  
do   Sr.   C   e   da   Sra.   B   funcionavam   a   maior   parte   do   tempo,   sustentando   uma   belle  
indifférence,  enquanto  que  as  defesas  da  Sra.  A  e  do  Sr.  D  fracassaram  por  completo.  
O  aporte  à  metapsicologia  freudiana  revela  que  além  da  recusa  da  doença,  eles  
têm   em   comum   as   vivências   depressivas   e   uma   indiferença   afetiva,   dinamicamente  
motivada.   Não   se   trata   exatamente   de   um   déficit   funcional,   porque   mecanismos  
psicológicos  foram  manipulados  na  sessão,  através  da  técnica  psicanalítica,  permitindo  
um  reconhecimento  transitório  sua  nova  condição  corporal.  A  observação  psicanalítica  
também  aponta  atitudes  narcisistas  desses  indivíduos  na  relação  com  a  equipe  médica,  
como   a   arrogância   e   o   controle   do   Sr.   C,   o   alheamento   da   Sr.   B   e   a   fúria   do   Sr.   D.   A  
percepção  da  realidade  que  se  segue  à  lesão  neurológica  é  deveras  intolerável  a  eles,  
que  têm  de  fato  motivos  para  estarem  tristes  ou  irritados,  porém  a  psicanálise  revela  
que  eles  não  vivenciam  conscientemente  estes  sentimentos  ou  seus  motivos.  Segundo  
Kaplan  &  Solms  (2001),  a  investigação  clínica  nos  moldes  psicanalíticos  identificou  um  
padrão   nos   sintomas:   um   fracasso   no   processo   do   luto   pela   perda   de   funções  
corporais.   Antes   do   adoecimento,   esses   indivíduos   provavelmente   mantinham   uma  
relação  narcísica  com  a  realidade  e  uma  idealização  de  controle  narcísico  do  corpo  (e  
não   puderam   aceitar   a   perda   da   vitalidade,   nem   que   ela   fosse   apenas   parcial).   A  
percepção   da   perda   é   particularmente   mais   intolerável   aos   indivíduos   com   a   SHD,  
como   uma   ferida   narcísica,   o   que   dificulta   ou   impede   o   processo   do   luto   pelas  
modificações  corporais,  que  ocorreria  normalmente  não  fosse  a  inclinação  melancólica  
destes  pacientes.  
A  Sra.  A,  por  exemplo,  sempre  referia  perdas  menores  (perda  dos  óculos,  dos  
cigarros),   que   eram   desproporcionais   em   relação   a   seus   sentimentos   depressivos   e  
continuava   inconsciente   do   fato   de   não   poder   mais   andar.   Segundo   os   autores,   as  
perdas   menores   são   representantes   deslocados   de   uma   perda   maior,   inconsciente,   e  
principalmente:  “que  o  fato  desta  perda  ser  reprimida  a  impossibilitava  de  fazer  o  luto  
da  perda  de  um  modo  sadio.  Se  você  não  puder  admitir  que  perdeu  algo,  como  pode  
passar   pelo   doloroso   processo   de,   gradualmente,   separar-­‐se   desse   algo?”   (Kaplan-­‐
Solms  &  Solms,  2004,  p.  79).  
Desse   modo,   apoiando-­‐se   nas   teorizações   de   Freud   sobre   a   melancolia   e   sua  
base   narcísica,   esses   autores   estabelecem   um   paralelo   entre   a   depressão   da   Sra.   A   e   a  
melancolia,  como  descrita  em  Luto  e  melancolia  (1917/1989).  A  depressão  reativa  ao  
AVC  se  deu  em  função  de  uma  perda  inconsciente:  a  condição  saudável,  a  integridade  
corporal   e   a   independência.   Freud   (1917/1989)   diz   que   o   melancólico   até   pode  
identificar  o  que  perdeu,  mas  não  sabe  exatamente  o  que  perdeu  no  objeto.  A  Sra.  A  
identifica   uma   perda,   ela   se   queixa   por   ser   obrigada   a   depender   de   cuidados   externos,  

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mas  não  sabe  precisamente  o  que  foi  perdido  junto  com  o  objeto,  ou  seja,  ela  ignora  
que  a  sua  deficiência  seja  responsável  pela  perda  da  autonomia.    
Freud   (1917/1989)   aponta   que   na   base   da   melancolia   está   uma   relação  
narcísica  com  os  objetos  amorosos:  uma  relação  marcada  pela  fixação  ao  objeto  (que  é  
intensamente   investido),   porém   sustentada   por   um   vínculo   frágil   que   pode   sucumbir  
mais   facilmente   às   situações   de   crises   e   adversidades.   Diante   de   uma   perda,   o  
melancólico   não   consegue   desinvestir   o   objeto   e   começar   de   novo,   como   ocorreria   no  
luto   normal:   “de   tal   sorte   que   o   investimento   do   objeto   possa   regressar   ao   narcisismo  
se  encontrar  dificuldade.  A  identificação  narcisista  com  o  objeto  se  converte  então  no  
substituto   do   investimento   de   amor”   (Freud,   1917/1989,   p.   247).   Freud   está   dizendo  
que   o   melancólico   inconscientemente   substitui   o   investimento   amoroso   no   objeto   por  
uma   identificação   com   este.   A   ambivalência   de   amor   e   ódio   é   inerente   à   esta  
identificação   introjetiva   (ambivalência,   que   em   algum   grau,   está   presente   em   todos   os  
vínculos   amorosos),   e   faz   com   que   o   objeto   perdido   seja   reconstruído   no   mundo  
interno  do  sujeito,  criando  uma  cisão  no  próprio  ego6.  O  ego  e  o  objeto  encontram-­‐se  
divididos   na   fantasia   inconsciente,   entre   partes   boas   e   más,   por   isso   o   ego   torna-­‐se  
alvo   de   ataques   agressivos   e   de   uma   hostilidade   que   seria   direcionado   ao   objeto,  
explicando  os  impulsos  suicidas.    
No  caso  da  Sra.  A,  o  corpo  saudável  é  o  objeto  perdido  do  qual  ela  não  pode  se  
desvencilhar,  talvez  pela  percepção  idealizada  (narcísica)  do  seu  esquema  corporal.  Ela  
teria  ficado  identificada  a  essa  autoimagem  e  a  representação  do  braço  permaneceu  
intacta  dentro  do  ego  da  paciente,  por  isso  a  recusa  em  perceber  a  deficiência  motora.  
No   caso   do   Sr.   D,   também   houve   introjeção   e   regressão   a   uma   relação   narcísica   com   o  
seu   corpo,   mas   ao   invés   de   guardar   o   objeto   danificado   consigo   ele   o   expulsa   e  
externaliza   a   raiva   ao   invés   de   ficar   intoxicado   por   ela.   Este   paciente   usava  
mecanismos  projetivos,  por  isso  ficava  persecutório  quanto  à  realidade.  A  ameaça  era  
vivenciada   como   vindo   de   fora:   neurocirurgiões   incompetentes,   um   hospital  
negligente,  e  assim  por  diante.  Suas  fantasias  eram  de  natureza  paranoica  (a  mão  era  
tratada   como   uma   parte   da   realidade   externa   odiada),   e   isso   mantinha   os   impulsos  
autodestrutivos   fora   do   seu   ego,   por   isso   ele   não   tentara   se   matar,   como   a   Sra.   A.  
(Kaplan-­‐Solms  &  Solms,  2001,  pp.  193-­‐194).    
 
4  Ferida  narcísica  na  síndrome  do  hemisfério  direito  
 
A  psicanálise  revela  que  em  todos  estes  casos  o  luto  normal  não  foi  realizado,  
em   função   de   uma   evitação   dos   afetos   depressivos,   isto   é,   uma   defesa   contra   “a  
conscientização  plena  de  sua  perda  por  meio  de  uma  organização  narcísica”  (Kaplan-­‐
Solms   &   Solms,   2001,   p.   98).   Na   Sra.   B   e   no   Sr.   C,   houve   uma   supressão   dos  
sentimentos   (repressão)   que   cedeu   momentaneamente   nas   sessões   e   nestes   dois  
últimos  casos  houve  uso  maciço  da  introjeção  e  da  projeção,  respectivamente.  Quando  
estas   defesas   entraram   em   colapso,   derivaram   em   um   quadro   depressivo   severo   na  
Sra.  A  e  em  uma  paranoia  agressiva  no  Sr.  D.  
Mas  afinal  o  que  tornaria  a  apresentação  clínica  dos  casos  da  SHD  tão  peculiar  
quando   comparada   a   outros   casos   de   lesões   neurológicas   e   aos   casos   de   danos   na  
mesma   região   do   hemisfério   esquerdo?   Segundo   os   autores,   a   revisão   da   literatura  
neuropsicológica   sobre   o   hemisfério   direito   aponta   que   este   como   exerce   um   papel  
central  na  representação  dos  objetos  externos  reais,  como  algo  separado  de  nós,  logo,  

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contribuindo   para   uma   percepção   destes   em   sentido   concreto   e   totalizado:   “sempre  


soubemos  –  e  hoje  isso  é  fora  de  dúvida  -­‐  que  a  convexidade  do  hemisfério  direito  é  
especializada  para  a  percepção  e  cognição  das  nossas  relações  com  o  espaço  externo  
concreto”  (Kaplan-­‐Solms  &  Solms,  2004,  p.  100).  Uma  estrutura  do  hemisfério  direito  
(lobo   parietal)   compõe   o   substrato   neural   da   apreensão   das   informações   externas   e  
internas  em  nível  concreto  (Kaplan-­‐Solms  &  Solms,  2001,  p.  47).    
Assim,  é  estabelecido  um  primeiro  fator  atuante  na  SHD:  lesões  no  hemisfério  
direito  desestabilizam  os  mecanismos  neuropsíquicos  envolvidos  na  representação  dos  
objetos  e  do  eixo  espacial  como  um  todo,  deixando  os  indivíduos  acometidos  à  mercê  
de  uma  concepção  espacial  e  objetal  menos  estruturada.  O  aporte  à  metapsicologia  do  
narcisismo  e  da  melancolia  elucida  um  segundo  fator  na  síndrome,  agora  do  ponto  de  
vista  psicodinâmico,  qual  seja,  uma  organização  narcisista  de  personalidade.  As  lesões  
nesta  estrutura  do  hemisfério  direito  provocam  uma  regressão  a  uma  modalidade  mais  
primitiva   de   funcionamento   neuropsíquico,   e   a   psicanálise   dirá   que   se   trata   de   uma  
organização  narcísica.    
A   integração   destes   dois   fatores   fornece   a   explicação   para   o   teor   bizarro   e  
delirante   dos   distúrbios   de   percepção   da   imagem   corporal   (a   anosognosia,   a  
negligência   sensorial).   Na   ausência   das   funções   plenas   do   hemisfério   direito,   estes  
indivíduos   perdem   a   capacidade   de   representar   os   objetos   como   coisas:   “a   perda  
dessas  coisas  concretas,  incluindo  parcialmente  a  representação  do  próprio  corpo  da  
pessoa  enquanto  coisa,  que  forma  a  base  de  todas  as  nossas  relações  amorosas  com  o  
mundo  objetal  real,  é  um  golpe  severo  que  resulta  na  regressão  do  amor  objetal  para  o  
narcisismo”  (Kaplan-­‐Solms  &  Solms,  2004,  p.  100).    
A   aceitação   de   diagnósticos   difíceis   é   comumente   um   processo   onde   atuam  
defesas   psicológicas7.   Entretanto,   nos   casos   relatados,   a   identificação   com   o   objeto  
perdido   (corpo)   fez   com   que   os   aspectos   ambivalentes   das   representações   corporais  
fossem   tratados   como   objetos   externos   separados   do   qual   não   se   tinha   mais   o  
controle.   Assim,   a   psicanálise   explica   o   aspecto   afetivo,   o   ódio   ou   indiferença   na  
dissociação   da   percepção   do   esquema   corporal.   Esse   é   o   fator   específico   dessa  
síndrome   (SHD),   que   a   “distingue   das   lesões   equivalentes   na   região   perisylviana   do  
hemisfério   esquerdo,   onde   os   objetos   são   representados   não   concretamente,   mas  
simbolicamente,  como  palavras,  e  não  como  coisas”  (Kaplan-­‐Solms  &  Solms,  2004,  p.  
100).  
É  provável  que  com  a  lesão  hemisférica,  houve  perda  parcial  da  representação  
do  esquema  corporal  da  pessoa  como  um  todo.  Devido  à  ausência  desta  organização  
neuropsicológica  que  auxilia  na  representação  do  corpo  concreto,  esses  indivíduos  se  
depararam   com   uma   autoimagem   patologicamente   distorcida,   a   disfunção   era   real,  
porém   ficaram   privados   de   recursos   para   representá-­‐la   simbolicamente   e   assimilar   a  
modificação  ao  novo  esquema  perceptivo.  Eles  se  sentiam  e  de  fato  mutilados:  
 
A  consequência  dessa  lesão  pode  comprovar  uma  grave  perturbação  da  imagem  
de  si  mesmo.  A  percepção  da  imagem  do  corpo  requer,  pois,  a  integridade  desta  
área   somato-­‐sensorial.   Não   se   diz   que   esse   território   seja   a   sede   única   da  
imagem   do   corpo.   Porém,   a   lesão   produz   uma   separação   que   os   neurologistas  
chamam   de   ‘dissociação’   no   senso   da   percepção   global   do   conjunto   do   corpo.  
(Changeux  &  Ricoeur,  2001,  p.  55)  
 

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Ciências  &  Cognição  2013;  Vol  18  (1):  057-­069  <http://www.cienciasecognicao.org>                                                            ©  Ciências  &  Cognição  
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Notem  que  o  conceito  de  narcisismo  ajudou  a  compreender  a  dinâmica  afetiva  


da   SHD,   para   a   qual   as   observações   anatômicas   não   tiveram   um   papel   efetivo,  
assegurando   assim   que   a   compreensão   do   psíquico   foi   independente   de   qualquer  
anatomia  que  lhe  servisse  de  substrato.    
Em   um   segundo   momento,   as   observações   neuroanatômicas   e   os  
conhecimentos   sobre   as   funções   do   hemisfério   direito   foram   aliados   à   teoria   do  
narcisismo,  na  tentativa  de  esboçar  uma  hipótese  sobre  a  integração  entre  as  funções  
emocionais   e   cognitivo-­‐espaciais   da   organização   funcional   hemilateral   na   síndrome  
estudada.  Em  nenhum  momento,  inferiu-­‐se  que  os  processos  normais  ou  patológicos  
da  SHD  fossem  localizados  ou  tivessem  sede  naqueles  sítios  cerebrais,  nem  que  fossem  
realizados  exclusivamente  por  aqueles  sistemas.  
A   contribuição   psicanalítica   nestes   exemplos   permite   que   a   compreensão   da  
SHD  dê  um  passo  além  das  explicações  já  conhecidas  na  literatura  neuropsiquiátrica  do  
problema,   mostrando   que   estas   pessoas   não   têm   déficit   perceptivo   para   os   afetos  
negativos.   Eles   evitam   ativamente   entrar   em   contato   com   estas   percepções,   porque  
lhes  são  fonte  de  sofrimento  psíquico.  A  hipótese  do  distúrbio  de  atenção  entre  os  dois  
hemisférios  também  é  confrontada  pelo  fato  de  que  a  comunicação  é  reestabelecida  
na  terapia  e  no  experimento  de  V.  Ramachandram.  
 
5  Considerações  finais  
 
Esperamos   que   estes   estudos   de   casos   neuropsicanalíticos   apontem   que   as  
diferenças   metodológicas   entre   a   neuropsicologia   e   a   psicanálise   não   impedem   uma  
aproximação   e   uma   abordagem   conceitual   comum.   Os   casos   questionam   o  
antagonismo   entre   os   enunciados   psicológicos   e   neurobiológicos,   como   ilustrado   no  
início  deste  trabalho.  A  neuropsicanálise  põe  em  discussão  a  aproximação  entre  áreas  
distintas,  mas  complementares,  que  ao  invés  de  se  oporem,  teriam  maiores  ganhos  em  
compartilhar   esforços   metodológicos,   como   entre   psiquiatria   biológica   e   psiquiatria  
psicodinâmica  e  as  pesquisas  em  neurociência  cognitiva  e  a  psicanálise,  no  sentido  de  
que   esta   última   talvez   possa   oferecer   um   modelo   explicativo   para   investigações  
empíricas.   As   disciplinas   que   compõem   as   neurociências   não   dispõem   de   um   corpo  
teórico  mais  sistemático,  o  que  historicamente  já  foi  buscado  em  outros  modelos,  por  
exemplo,   os   estudos   de   Wernicke   e   Broca   sobre   afasia   apoiaram-­‐se   na   frenologia   do  
século  18,  depois  a  psicologia  associacionista  de  Ivan  Pavlov  também  ofereceu  pautas  
de  pesquisa,  enquanto  que  a  atual  ciência  da  mente  recorre  à  psicologia  cognitiva.  
E   por   que  não  a   psicanálise?   Uma   abordagem   fronteiriça   entre   neuropsicologia  
dinâmica   e   a   psicanálise   pode   potencializar   avanços   teóricos   e   clínicos   em  
psicopatologia   pelo   fato   da   psicanálise   dispor   de   um   enquadre   teórico   e   técnico   já  
consolidado   para   a   investigação   do   inconsciente   e   de   outros   aspectos   dinâmicos   da  
vida  mental,  como  os  que  atuaram  na  sintomatologia  da  SHD,  trazendo  sentidos  e  uma  
interpretação   para   excentricidade   do   discurso   e   do   comportamento   antes  
ininteligíveis.  A  discussão  dos  casos  clínicos  oferece  uma  demonstração  operacional  de  
como   uma   pesquisa   interdisciplinar   em   neurociência   pode   buscar   pautas   conceituais  
na   psicanálise   e   lançar   luz   na   semiologia   clínica,   em   sua   complexidade   emocional   e  
cognitiva.   Estas   investigações   realçaram   um   conjunto   de   problemas   e   um   campo   de  
atuação   ainda   não   explorados   pelos   psicanalistas,   ou   pelo   menos   não  
tradicionalmente.    

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Os   neuropsicanalistas   reivindicam   que   os   psicanalistas   e   os   neurocientistas  


investigam  um  mesmo  objeto  de  estudos,  o  que  varia  é  a  perspectiva  fenomenológica:  
se  do  mundo  interno  do  sujeito  ou  da  abordagem  objetiva  do  cérebro.  No  entanto,  as  
neurociências  se  deparam  atualmente  com  grandes  dificuldades,  como  os  desafios  da  
padronização   e   interpretação   dos   estudos   de   neuroimagem,   já   que   indivíduos  
diferentes   realizando   uma   mesma   função   não   utilizam   as   mesmas   redes   neurais   ou  
ainda   como   projetar   o   estudo   de   entidades   mentais   (medo,   consciência,  
autopercepção)   nas   condições   exigidas   pela   experimentação,   para   ficar   nestes  
exemplos.   O   fato   é   que   a   proposta   de   diálogo   entre   os   recentes   estudos  
neurocientíficos   e   a   psicanálise   certamente   aponta   que   esta   interface   ainda   ensaia  
seus   primeiros   passos,   no   estágio   em   que   se   encontra   atualmente,   ao   colocar   em  
revista  seus  fundamentos  científicos.  Se  no  limite  estas  disciplinas  se  debatem  ou  não  
com  o  mesmo  objeto  de  estudo,  isto  deve  aguardar  novos  conceitos,  experimentações  
e  reflexões  críticas.  
Pensamos   que   o   surgimento   de   uma   abordagem   como   a   neuropsicanálise  
responde   a   um   interesse   dos   psicanalistas   pela   interlocução   com   as   neurociências,  
assim  como  a  reivindicação  destas  para  que  a  subjetividade  também  seja  abordada  por  
algumas   de   suas   disciplinas,   alinhando-­‐se,   em   última   instância,   ao   desenvolvimento  
técnico  e  conceitual  das  ciências  cerebrais  no  século  20.    
Do  lado  da  psicanálise,  reafirma-­‐se  sua  tradicional  intertextualidade  com  outras  
disciplinas;   um   expediente   usualmente   praticado   pelos   psicanalistas   e   pelo   próprio  
Freud,  em  suas  trocas  com  a  clínica  médica,  com  uma  teoria  da  cultura,  com  a  filosofia  
e  a  biologia.  
 
Agradecimentos  
 
Grata  ao  apoio  de  Thiago  G.  Livon  e  ao  suporte  do  próprio  colega  Daniel  Manzoni  de  
Almeida,  através  de  sua  participação  atenta.    
 
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Notas:  
 
(1)     A   argumentação   destes   artigos,   por   exemplo,   busca   integrar   substratos   neurobiológicos   e  
acepções   psicodinâmicas:   “sugerimos   que   as   camadas   da   consciência   descritas   por   Freud  
proporcionam   um   quadro   conceitual   mais   adequado   para   a   compreensão   da   atividade   cerebral  
e  da  sua  relação  com  o  mentalismo”  (Shulman  &  Reiser,  2004,  p.  133),  bem  como  “a  amnésia  
clínica   fornece   um   modelo   experimental   para   estudar   fenômenos   de   interesse   dos  
psicanalistas”  (Clyman,  1991,  p.  377).  
(2)       Para   uma   discussão   sobre   os   sistemas   de   memória   implícita   e   sua   associação   com   um   modo   de  
organização  das  emoções,  ver  Clyman  (1991).  
(3)       O   método   anatomoclínico   que   sustentava   a   doutrina   da   localização   de   funções   cerebrais   no  
século   19   (conhecida   como   localizacionismo)   é   diferente   da   correlação   proposta   nestes   casos  

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neuropsicanalíticos.  A  versão  anterior  culminava  numa  confusão  entre  o  fisiológico  e  o  mental,  


retirando   a   autonomia   deste   último.   O   localizacionismo   tinha   como   princípios   básicos   a  
especialização  do  córtex  em  funções  e  subfunções  específicas,  além  de  uma  visão  isomórfica  e  
simétrica   da   relação   mente-­‐cérebro,   como   se   cada   função   da   linguagem   tivesse   um   correlato  
físico   (um   engrama)   nas   células   do   córtex.   Para   mais   detalhes   sobre   o   localizacionismo,   ver  
Clarke  &  Jacyna  (1987,  p.  240-­‐243).  
(4)       Este  tópico  sobre  o  procedimento  clínico-­‐investigativo  já  foi  abordado  em  maiores  detalhes  em  
outra  oportunidade  (Bocchi,  2010,  p.  73-­‐75).  
(5)       Publicado  na  International  Review  of  Neurobiology,  p.  323.  Quando  a  paciente  foi  entrevistada  
sob  o  efeito  da  água  gelada,  relatou  a  perda  da  função  do  braço  e  sabia  desde  quando  o  fato  
ocorreu.  Contudo,  findo  o  efeito,  os  sintomas  da  negligência  retornaram.  A  paciente  lembrou-­‐
se  da  entrevista,  porém  rechaçou  especificamente  o  fato  de  ter  reconhecido  a  paralisia.  
(6)       Cf.  Luto  e  melancolia,  p.  243,  p.  245-­‐246.  
(7)       Elisabeth   Klüber-­‐Ross,   no   clássico   trabalho   “On   death   and   dying”,   apresenta   um   modelo  
descritivo   sobre   as   fases   do   processo   de   perda   e   luto   no   adoecimento,   onde   a   negação   da  
doença  é  um  padrão  normalmente  verificado  nas  primeiras  fases  diagnósticas.  
 

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Carta aos editores

Carta aos editores

Mefisto, lembrar a dívida histórica aos atuais


Neuropsicanálise: um novo discípulos de Sigmund Freud, o nosso Fausto.
paradigma para a psicanálise no A neuropsicanálise surge, então, como uma
século XXI das possibilidades de quitar essa dívida
histórica da psicanálise com a ciência.
Há pouco mais de 100 anos, Sigmund Muito se tem falado a respeito da
Freud, médico neurologista, criava um método neuropsicanálise nos últimos tempos, mas
clínico de tratamento psicológico denominado pouco ainda se sabe sobre esta nova proposta
psicanálise. Este método, a princípio, podia ser interdisciplinar. Nas próximas linhas,
aplicado apenas aos neuróticos. Foi somente abordaremos, brevemente, a origem da
na década de 20 do século passado que a neuropsicanálise enquanto método de pesquisa
psicanálise começou a estender seu campo de e movimento interdisciplinar. Tentaremos, em
aplicação, abrangendo as chamadas neuroses seguida, analisar os objetivos propostos por
de guerra, com Sandor Ferenczi; a demência essa nova área do conhecimento e, finalmente,
precoce, com Karl Abraham e Carl Gustav Jung; apresentar algumas críticas e sugestões, nas
e a psicanálise infantil, com Anna Freud e, quais a neuropsicanálise poderia se enquadrar
sobretudo, Melanie Klein. Estes psicanalistas como um novo paradigma para a psicanálise no
romperam, de certa forma, com a idéia, século XXI.
defendida por Freud, de que a psicanálise Em 1999, Eric Kandel, proeminente
estava restrita a adultos neuróticos. A partir da neurocientista, publica um artigo intitulado
década de 50, Winnicott ampliará a aplicação Biology and the future of psychoanalysis: a new
da psicanálise aos distúrbios anti-sociais e à intellectual framework for psychiatry (em
delinqüência juvenil; assim como Lacan português, “A biologia e o futuro da psicanálise:
desenvolverá uma teoria própria, que dará um novo referencial intelectual para a
suporte à clínica das psicoses, e mesmo das psiquiatria revisitado”)1, no qual aponta algumas
perversões. Cada psicanalista citado sugestões para a psicanálise no século XXI.
desenvolveu novas teorias e técnicas voltadas Entre outras coisas, Kandel propunha uma
para o seu campo de atuação. aproximação entre psicanálise e neurociência,
Após um século de psicanálise, esta com o objetivo de desenvolver novas pesquisas
continua a ampliar seu campo de trabalho. Com e teorias em psicanálise. Segundo Kandel, a
o mais recente advento do método neurociência poderia fornecer fundamentos
neuropsicanalítico, derivado do método empíricos e conceituais mais sólidos à
neuropsicológico de Luria, a psicanálise psicanálise1. Um ano após a publicação do
estende mais uma vez sua capacidade clínica referido texto, em 2000, Kandel recebe o prêmio
ao iniciar o tratamento de pacientes com lesões Nobel de medicina por suas contribuições à
neurológicas. Este método clínico de pesquisa neurobiologia, introduzindo o conceito de
tem sido desenvolvido por nomes como o do plasticidade neural. Ainda em 2000, é realizado
sul-africano Mark Solms e do indiano V. S. o 1º Congresso Internacional de
Ramachandran. Curiosamente, a Neuropsicanálise, em Londres, ocasião em que
neuropsicanálise tem sido desenvolvida por é criada a International Neuro-Psychoanalysis
cientistas de países historicamente Society. Dentre os participantes desta
marginalizados. A psicanálise, nos tempos sociedade, podemos citar, além do próprio
freudianos, também tinha um caráter marginal, Kandel, alguns dos nomes mais conhecidos no
estando quase restrita aos judeus europeus. meio neurocientífico, como Antônio Damásio,
Além disso, a neuropsicanálise representa um Oliver Sacks, Gerald Edelman, V.S.
retorno ao Freud neurologista, precursor da Ramachandran, entre outros; além de
neurociência atual. Assim como Fausto, a psicanalistas famosos, como Charles Brenner e
psicanálise tem uma dívida com o seu Mefisto; André Green.
e mesmo que tenha se distanciado da ciência Mark Solms, presidente da sociedade
nos últimos anos, esta mesma ciência – acima mencionada, vem publicando alguns
328 atualmente, como neurociência – vem, como trabalhos, desde o final dos anos 90 do século

Rev Psiquiatr RS set/dez 2005;27(3):328-330


Carta aos editores

passado, nos quais apresenta um novo método lacuna observada por Kandel 1 no que diz
de pesquisa em neurociência 2. Este método, respeito à necessidade de uma base empírica
que tem sido a principal referência dentro do para a psicanálise. No entanto, resta saber
movimento neuropsicanalítico, consiste numa como o método neuropsicanalítico pode
adaptação do método neuropsicológico contribuir para um avanço no conhecimento
tradicional, elaborado por Luria, para o estudo conceitual dos processos inconscientes. Neste
da atividade cerebral ligada aos fenômenos sentido, o método apresentado por Solms
emocionais, que têm sido investigados pela certamente não é o único capaz de fornecer as
psicanálise por mais de 1 século. Esta bases conceituais para a psicanálise, embora
modificação no eixo de investigação das seja o primeiro a estabelecer a possibilidade de
neurociências – dos processos cognitivos para investigação científica experimental para tais
os fenômenos emocionais – vem ocorrendo com conceitos. A psicanálise, através do método da
maior freqüência nos últimos anos, associação livre e de suas técnicas próprias,
impulsionada pelo desenvolvimento de vem desenvolvendo um arcabouço teórico vasto
aparelhos altamente especializados no durante mais de 1 século. É evidente que nem
mapeamento preciso da atividade cerebral, todos os conceitos psicanalíticos poderiam ser
como é o caso do PET-Scan e da tomografia validados pela neurociência3 através do método
funcional por ressonância magnética (fMRI). O neuropsicanalítico; contudo, não podemos
método neuropsicanalítico, introduzido por censurar o esforço que vem sendo feito pelos
Solms, pretende unir as observações realizadas adeptos da neuropsicanálise para incrementar
durante sessões de psicanálise com pacientes as pesquisas psicanalíticas.
portadores de lesões cerebrais aos Apesar de não podermos negar a iniciativa
diagnósticos realizados com o uso das mais pioneira do método neuropsicanalítico,
recentes tecnologias de mapeamento cerebral, devemos questionar até que ponto a
a fim de descobrir quais áreas do cérebro neuropsicanálise, enquanto método, pode
correspondem aos fenômenos psíquicos contribuir para a teoria psicanalítica e para a
descritos por Freud no decorrer de sua trajetória psicoterapia. O grande mérito do método
como psicanalista. neuropsicanalítico, até o momento, foi chamar
Como exemplo das descobertas feitas a atenção para a necessidade de um diálogo
através do método neuropsicanalítico, podemos com a neurociência, uma vez que dispomos,
citar as primeiras experiências de V.S. nos dias atuais, de meios para investigar a
Ramachandran com pacientes que mente humana com muito mais eficácia. Neste
apresentavam lesões no hemisfério direito do sentido, a neuropsicanálise, enquanto
cérebro, portadores de um distúrbio conhecido movimento, veio sacudir o meio psicanalítico,
como “anasognosia”. Estes pacientes são oferecendo um novo paradigma para a
incapazes de reconhecer a paralisia de um psicanálise no século XXI. Não obstante, o
membro, sintoma denominado de “negligência”. método neuropsicanalítico precisa de um
Após a aplicação de um pequeno volume de arcabouço teórico que ofereça conceitos bem
água gelada no ouvido esquerdo de alguns de delineados e bem definidos, numa linguagem
seus pacientes, Ramachandran constatou que conceitual, científica. Freud nos ofereceu tais
a negligência desaparecia completamente e só conceitos quando desenvolveu, paralelamente
reaparecia depois de alguns minutos. Esta à prática psicanalítica, a sua metapsicologia.
estimulação calórica pode ser interpretada Esta representa a teoria psicanalítica pura, uma
“como sendo uma correção temporária e teoria sobre a mente humana. A metapsicologia
artificial do desequilíbrio de atenção entre os freudiana foi construída para ser uma ciência4,5.
hemisférios” 2 (p.57). O resultado deste Tendo um método experimental e uma
experimento levou à descoberta de que o metapsicologia científica, resta acrescentar ao
fenômeno da repressão, bem como o de outros corpo da neuropsicanálise – enquanto
mecanismos de defesa descritos na literatura movimento – uma psicoterapia de base
psicanalítica, é mediado pelo hemisfério neuropsicanalítica, a fim de oferecer condições
esquerdo do cérebro. completas para se pensar num novo paradigma.
A princípio, constatamos que o método Neste sentido, a princípio, a psicoterapia de
neuropsicanalítico parece ser eficaz na base neuropsicanalítica não funcionaria de
localização das áreas cerebrais maneira muito diferente da psicanálise
correspondentes aos fenômenos inconscientes tradicional. Ao afirmar isto, estamos
que influenciam a vida psíquica dos indivíduos. considerando que a psicanálise clássica ainda
Além disso, este método vem preencher a tem muito a nos oferecer enquanto prática 329

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Carta aos editores

psicanalítica 3 . As técnicas psicoterápicas os psicanalistas estivessem mais abertos não


continuam se desenvolvendo na medida em só para as novas produções culturais, mas,
que os sintomas de uma determinada época sobretudo, para as novas descobertas
vão surgindo, em resposta às demandas e realizadas no meio científico. Este é o desafio
transformações da sociedade. No entanto, o lançado para os psicanalistas atuais: pensar a
modo de refletir teoricamente a respeito do psicanálise tendo como referência o paradigma
material encontrado na prática clínica deverá científico de sua época.
ser reavaliado, uma vez que as descobertas
neurocientíficas, especificamente as REFERÊNCIAS
neuropsicanalíticas, teriam uma certa influência
no desenvolvimento de uma metapsicologia 1. Kandel ER. Biology and the future of psychoanalysis: a
científica 4,5. Dentro de um certo tempo, as new intellectual framework for psychiatry. Am J
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modificações e os acréscimos feitos à teoria Psiquiatr. 2003;25(1):139-65.]
metapsicológica iriam produzir seus efeitos na 2. Kaplan-Solms K, Solms M. O que é a neuro-psicanálise:
prática clínica, na elaboração de novas técnicas a real e difícil articulação entre a neurociência e a
psicoterápicas. psicanálise. São Paulo: Terceira Margem; 2004.
Um dos grandes desafios da psicanálise na 3. Lyra CES. Neurociência e psicanálise: o início de um
diálogo. Rev Neurocienc Brasil. 2004;1(3):184-6.
atualidade é compreender a dinâmica dos
4. Andrade VM. Um diálogo entre a psicanálise e a
novos sintomas, como a depressão, a síndrome neurociência. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003.
do pânico, a toxicomania, entre outros. Esta 5. Lyra CES. Metapsicologia científica: revisando os
dificuldade não se dá apenas porque a dinâmica fundamentos da teoria psicanalítica do recalque. Rev
desses sintomas é nova, como muitos Neurocienc Brasil. 2005;2(2):84-9.

psicanalistas acreditam, mas vai além disso.


Title: Neuropsychoanalysis: a new paradigm for
Não adianta tentar adaptar os novos sintomas psychoanalysis in the 21st century
às velhas teorias explicativas, mas é necessário Título: Neuropsicoanálisis: un nuevo paradigma para
revisar a própria teoria, senão modificá-la el psicoanálisis en el siglo XXI
radicalmente. Este parece ser também o
problema enfrentado por algumas teorias Carlos Eduardo de Sousa Lyra
quando se trata de transmiti-las a outrem. O Graduando em Psicologia e Filosofia, Universidade
problema não está somente na complexidade Federal da Paraíba (UFPB).
da teoria ou na dificuldade do sujeito em Cidade Universitária - Campus I
compreendê-la; o maior problema está no fato CEP 58059-900
de que certas teorias já não estão de acordo João Pessoa – PB
com os paradigmas atuais, isto é, já não
Copyright © Revista de Psiquiatria
refletem o modo de pensar da atualidade. Boa do Rio Grande do Sul – SPRS
parte desta dificuldade poderia ser resolvida se

330

Rev Psiquiatr RS set/dez 2005;27(3):328-330


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AFETOS, SOBREVIVÊNCIA E DESENVOLVIMENTO NA NEURO-PSICANÁLISE


Yusaku Soussumi
Membro Efetivo da SBPSP

Sumário
Neste trabalho, o autor retorna a um tema por ele já diversas vezes abordado, buscando
agora fazer a sistematização que Freud e seus seguidores não empreenderam, incorporando
os avanços na investigação dos afetos, emoções e sentimentos alcançados pela
Neurociência das emoções e Neurociência do desenvolvimento, principalmente sob os
pontos de vista da sobrevivência e da evolução. A partir desses pontos, desenvolve o trajeto
evolutivo do processo de auto-regulação e do desenvolvimento da cognição moduladas
pelos sentimentos como a maior conquista desse processo.

Este trabalho inspirou-se no tema do XX Congresso Brasileiro de Psicanálise: “Poder,


Sofrimento Psíquico e Contemporaneidade”. Estou plenamente convencido de que o
presidente da ABP tinha razão, ao explicá-lo: “Este tema oferece um espaço que permite
transitar desde o inconsciente ou, antes ainda, em suas origens no somático, até a realidade
externa atual, com suas características muitas vezes surpreendentes, pelos impactos que
provoca tanto no sentido positivo, como o da construção e criação, quanto em seu sentido
oposto, o da destruição. Será, ao mesmo tempo, um espaço de encontro para o
aprofundamento no atemporal dos fenômenos inconscientes (nosso trabalho de todos os
dias), e para estender nosso olhar psicanalítico sobre o atual de nossos dias”.
No meu ponto de vista, o tema neuropsicanalitico, que permite esse trânsito e abrange, ao
mesmo tempo, a problemática psíquica da contemporaneidade são os afetos e emoções. O
homem contemporâneo padece da patologia ou da ausência do desenvolvimento dos afetos,
emoções e sentimentos determinada pelas condições traumáticas externas ou internas.
Tenho insistido nesse tema em minhas reflexões porque creio que, apesar de os afetos e as
emoções ocuparem uma posição central na mente do psicanalista na sua prática clínica, a
ausência de uma sistematização feita por Freud em sua metapsicologia, como fez, por
exemplo, com o inconsciente, a repressão, o narcisismo, e por seus seguidores reconhecidos
como autoridades pela comunidade dos psicanalistas, como Melanie Klein, Wilfred Bion,
2

etc., impede que a eficácia da prática psicanalítica muitas vezes alcance as raízes do
somático, como requerem as verdadeiras transformações mutativas.
As geniais apreensões de Freud, suas hipóteses relativamente a afetos e emoções e sua
compreensão do ser humano numa perspectiva evolucionista estão dispersas por sua obra e
tornam difícil uma compreensão integrada desses aspectos na economia somatopsíquica do
indivíduo, bem como suas profundas conexões básicas com os fenômenos inconscientes e
com a própria repressão. A visão de sua íntima relação com os instintos se perde no
emaranhado de concepções com as quais esse tema se mescla na obra freudiana.
Até cerca de dez anos atrás, pela influência da Psicologia Cognitivo-comportamentalista, os
neurocientistas adeptos da Neurociência Cognitiva consideravam a emoção algo
desprezível, que não merecia o investimento de uma investigação científica, uma vez que o
enfoque preferencial recaía sempre sobre o cognitivo, o intelectual, essa função superior,
distintiva do ser humano e do humano na sua expressão mais pura. A emoção era vista
como algo da ordem do patológico, que servia apenas para perturbar o cognitivo. A
Neurociência desconsiderava que eminentes cientistas como Darwin, Freud e James
pudessem ter-se ocupado das emoções. No momento, porém, que alguns neurocientistas
como Damásio, LeDoux, Davidson, Panksepp, Ekman, Watts, etc. começaram a investigá-
las, os conhecimentos começaram a fluir a passos largos.
Por força das contribuições de diversas áreas da Biologia Evolutiva, da Antropologia, da
Neurociência do Desenvolvimento e da Psicologia Social, esses estudiosos puderam fazer a
sistematização que faltava sobre o tema dos afetos e emoções. Embora nada de muito novo
para a Psicanálise, porque grande parte daqueles conhecimentos já havia sido abordada por
Freud, o que importava era a visão integrada de afetos e emoções, por meio da qual era
possível entender de forma mais eficaz suas expressões. Na minha opinião, a
sistematização, se não usada para aprisionar, permite enxergar com clareza a função
primordial que afetos e emoções, usados neste trabalho como sinônimos, desempenham na
vida do ser humano.
É por meio dessa abordagem que temos a possibilidade de compreender Freud em toda a
profundidade, quando ele sinaliza que as mudanças nos estados internos do ser são
percebidas como afetos pelo próprio ser vivo, que responde a elas com ação e movimento.
Aprendemos que os afetos são apreensões dos estados somáticos do organismo e que esses
3

estados resultam do trabalho das estruturas internas do ser na tentativa de manter a


condição interna inalterada para poder sobreviver. Compreendemos que não é somente a
captação dos estados internos que vai resultar em bem-estar ou mal-estar, ou seja, prazer ou
desprazer, que a natureza estabeleceu como parâmetro de valor ao que Freud denominou
princípio de prazer, mas, mais do que isso, vamos verificar que o afeto é a primeira
manifestação fenomenológica de uma entidade que emerge desse dinamismo das estruturas
internas, que vai se caracterizar como mente, como consciência, e que podemos chamar de
protomente. Aqui, vê-se a mente emergindo dessa realidade unitária, inseparável,
indissociável, que é corpo-mente.
O afeto, que está atrelado ao princípio do prazer, vai ser o elemento que mobiliza a ação do
ser em busca do equilíbrio e da harmonia. Esse movimento é decisivo para o processo de
homeostase, que é o mecanismo de regulação interna do ser vivo. Enfim, o que importa
compreender é que os afetos e as emoções são percepções dos estados internos do
organismo, que desencadeiam os processos de homeostase ou auto-regulação para garantir
a sobrevivência. Essa é a condição primordial, que nasce como impulso motivacional
básico intrínseco do ser, ou seja, instinto de sobrevivência, no momento mesmo em que
surge a vida. É sobre esse eixo que se constrói todo o processo de evolução, que se
caracteriza pelo aperfeiçoamento dos elementos que compõem os recursos de sobrevivência
do seres vivos, os quais vão se tornando estruturalmente mais complexos, em busca de
maior eficácia na adaptação ao meio e na manutenção da vida.
Eu costumo dizer que a natureza não quis perder essa experiência e tinha o objetivo de
perpetuá-la a qualquer custo sobre a terra. Assim, além de aperfeiçoar o ser vivo, tornando
mais complexas suas estruturas e sua organização dinâmica, mais eficazes e sofisticados os
recursos de auto-regulação e de sobrevivência para adaptação ao meio externo, a natureza
aperfeiçoou também os métodos de perpetuação da vida por meio da reprodução, para
garantir a sobrevivência das experiências que deram certo. No meu ponto de vista, essa
perspectiva evolucionista já estava presente em Freud, embora em nenhum momento de sua
vasta obra ele tenha sistematizado suas fundamentações. No entanto, apesar de dispersas,
podemos depreendê-las da leitura de seus textos. Suas incursões pela teoria dos instintos, a
valorização da sexualidade conectada com o instinto de sobrevivência (instinto do ego), a
visão do caminho ascendente do desenvolvimento ontogenético das funções psíquicas, das
4

fixações provocadas pelos traumas, do afetivo conectado ao simbólico para alcançar o


cognitivo, a capacidade de pensar (retomada por Bion sob a forma de função alfa)
aparecem em sua obra sem que tenha sido feita uma sistematização de suas concepções
sobre o homem e o processo de humanização.
Essas idéias que buscam sistematizar o conceito de afetos, eu as trouxe de minha formação
médica, antropológica e biológica anterior à minha formação psicanalítica. Minha incursão
pela Neurociência, especialmente pela Neuropsicologia, me deu o respaldo necessário para
organizar as teorias freudianas dos afetos e emoções, de modo que, entregando-me a uma
aventura transdisciplinar, pudesse de alguma forma ter elementos para pensar de forma
mais integrada a pessoa que na clínica, principalmente de hoje, estivesse me procurando em
busca de ajuda.
Meu ponto de partida, na prática clínica, orientava-se pelo pressuposto de que a pessoa à
minha frente me trazia questões ligadas às vicissitudes de sua sobrevivência, à sua forma de
adaptação ao meio no qual teve de viver desde seu nascimento, aos recursos de auto-
regulação decorrentes das experiências que lhe permitiram sobreviver, aos sofrimentos,
temores, medos, que os recursos de sobrevivência que incorporou não conseguiam aliviar,
aos desejos, que até os sonhos não conseguiam satisfazer e tornar reais, etc. Essas questões,
na quase totalidade das situações, eram comunicadas inconscientemente, porque, na esfera
do consciente, os pacientes buscavam ajuda por outros motivos, que ficavam mais ou
menos distantes da realidade psíquica de cada um.
Contrapondo-se à tendência que esteve presente de forma absoluta na Neurociência
Cognitiva, hoje se nota, principalmente nos ramos da Neurociência das Emoções,
Neurociência do Desenvolvimento e Neurociência das Relações Sociais, e na
Neuropsicologia, uma ênfase no estudo e nas investigações dos afetos, emoções e
sentimentos a partir de uma abordagem baseada na evolução e no desenvolvimento. Assim,
como já abordei em outros trabalhos, o processo de ontogênese, grosso modo seguindo a
evolução filogenética, mostra que nos momentos precoces da vida do homem, ainda nos
últimos meses da vida fetal, as estruturas situadas nas regiões bulbopontinas, já
funcionantes, são responsáveis pela auto-regulação orgânica, em que se destaca o PAG
(substância cinzenta periaquedutal). Após o nascimento, à medida que se desenvolvem os
núcleos nas regiões do mesencéfalo na área tegmental ventral e o hipotálamo, todas essas
5

estruturas passam a desempenhar papel importante nas funções homeostáticas. Com o


posterior desenvolvimento do organismo, a esses mecanismos homeostáticos, que na
realidade são mecanismos que envolvem os afetos, associam-se os já conhecidos sistemas
emocionais, que incluem o sistema límbico, o tálamo, o hipotálamo e o PAG, e,
posteriormente, outras estruturas como o giro do cíngulo, principalmente na sua área
anterior, envolvido na regulação das emoções e da cognição, a ínsula e a região
ventromedial do lobo frontal, principalmente no seu núcleo orbitofrontal, que é considerado
o senhor executivo do sistema límbico. Infelizmente, o espaço deste trabalho não nos
permite maior detalhamento, apenas uma visão panorâmica das regiões cerebrais
envolvidas na complexa e fundamental função emoção-cognição, essencial no sistema de
regulação do ser humano.
Ao afirmar que, no princípio, só existia o ego corporal, Freud dava-se conta de que o ser
humano, em princípio, tinha a consciência exclusivamente decorrente dos estados corporais
e de que a regulação do organismo se fazia tão-só por mecanismos corporais, uma vez que
a protomente era totalmente atrelada ao corpo. Se as situações que a criança enfrenta nos
momentos precoces de vida e de desenvolvimento são controladas pelos recursos
homeostáticos e seu organismo consegue uma auto-regulação adequada, ela vai suportar e
tolerar as situações de ausência ou falta do objeto de satisfação de suas necessidades e
desejos, abrindo-se nela um espaço mental determinado pela confiança e pela esperança,
que pode ser preenchido por imagens ou representações dos objetos e situações que,
embora ausentes, encontram-se emocionalmente presentes pela experiência prévia positiva.
Assim nasce a possibilidade natural de alucinar e sonhar, que posteriormente é preenchida
pela atividade da linguagem e do pensamento. Nesse momento, em termos evolutivos, a
natureza dos mecanismos de sobrevivência dá um salto qualitativo, com o surgimento de
um recurso mais eficiente de auto-regulação: a cognição. Entretanto, salientamos que a
cognição, em especial o que alguns neuropsicanalistas denominam mentalização, é
decorrente e atrelada ao emocional, no processo de desenvolvimento, uma vez que as
situações traumáticas vividas pelo indivíduo não permitem que os procedimentos de auto-
regulação se desenvolvam além das fases em que a emoção está totalmente vinculada aos
estados corporais, mantendo o sujeito fixado no estágio de vida e desenvolvimento em que
ocorreu o trauma. Essa condição, no entanto, não impede que uma outra modalidade de
6

cognição se instale no ser humano, sob a forma de racionalidade, com o uso da linguagem,
com o uso da palavra como coisa, desprovida de colorido e conteúdo emocional.
No momento em que ocorre esse salto qualitativo, a emoção, emergindo dos estados
corporais, descola-se em parte do corpo e essa parte descolada torna-se autônoma,
vinculando-se com o cognitivo. A consciência corporal se torna inconsciente, no meu ponto
de vista, dentro do princípio de que a natureza é econômica. Essa inconsciência dos estados
corporais abre espaço para uma nova função, a cognição, que é necessário conquistar,
inclusive para expandir as possibilidades de vida. Essa condição trouxe como conseqüência
a negação do corpo, o privilegiamento da cognição pela cognição e a negação da unidade
mente-corpo no mundo ocidental; para o psicanalista, trouxe um viés na compreensão da
própria teoria psicanalítica de Freud.
É indiscutível e por isso queremos ressaltar a importância dos primeiros momentos da vida
do homem na constituição de seus recursos para a auto-regulação, a sobrevivência e a
expansão da vida para além dos valores atrelados à sobrevivência, conforme Freud
enunciou no seu monumental Além do princípio do prazer.
Por essa razão, quanto mais profundamente penetramos na Neuropsicanálise, mais e mais
voltamo-nos para o estudo e a investigação da relação da mãe, ou dos cuidadores, com o
bebê, que é decisiva na formação e desenvolvimento posterior dos recursos de
sobrevivência e do sistema nervoso do bebê, da criança e do futuro adolescente e adulto. É
fundamental para os psicanalistas conhecer as investigações que se processam nas funções
do hemisfério direito do cérebro do bebê e da mãe, que vão permitir as comunicações que
acontecem entre eles de forma inconsciente, num outro nível de realidade e compreensão,
que o dogmatismo acadêmico e científico classificaria de irracional. Por esse enfoque, cabe
salientar a importância da região ventromedial do lobo frontal como o componente cortical
do sistema límbico que funcionaria como o centro processador das emoções e das conexões
destas com a cognição, quando as emoções se tornam sentimentos, ou seja, quando a
consciência das emoções e suas origens nos estados do corpo se mobilizam juntamente com
os pensamentos. É nesse momento que os sentimentos como que adquirem autonomia,
expandem-se nas respostas ao mundo externo, em particular nas relações com o outro, com
o surgimento de atitudes e desejos de consideração solidária, respeito, identificação e afeto
para com o outro. É o princípio do surgimento da função de cognição, com a qual surgem
7

também a capacidade de pensar e toda a gama de funções executivas moduladas pelas


emoções e pelos sentimentos.
A conquista evolutiva da cognição, a partir de uma parte das emoções que se descola do
corpo e se acopla com a linguagem e com a função de pensar, vai permitir que o sistema de
autocontrole e auto-regulação esteja subordinado à função executiva da consciência e do
pensar, o que significa que o ser humano ganha a possibilidade de controle sobre as
emoções, sobre as ações, sobre si e sobre o meio externo, incluindo a relação com o outro e
com o social.
Nesse momento, o homem se abre para as possibilidades que a conquista do lobo pré-
frontal, pela evolução biológica, lhe permitiu. Por meio das extraordinárias funções
executivas, o homem pode expressar o mundo do subjetivismo, para “além do princípio do
prazer”, livre do aprisionamento aos grilhões da sobrevivência, portanto, da estagnação e
da morte, e pode buscar a realização na sua mais alta e legítima condição, a real
humanização, a expansão, a vida, como Freud pensava e buscava realizar naqueles tão
sofridos dias de 1920.
Como diz o Bhagavad Gita:
E Krishna disse:

“É um avaro desejo, é cólera, Arjuna, nascido da natureza da paixão,


pecaminosa e que tudo consome”.

“Como a fumaça cobre o fogo, o pó cobre o espelho, como o útero envolve


o embrião, assim a sabedoria é envolvida pelo apego.”

“Insaciável é o fogo do desejo, o inimigo constante do saber que turva e envolve


a sabedoria.”

“A mente e o intelecto estão enrolados nos sentidos. Por meio destes, a visão do homem
fica cega, encobrindo a sabedoria.”
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SUMMARY
In this paper the author returns to a theme that he had considered many times, nowadays
searching to make the systematization that Freud and followers hadn’t made, using the
advances in the investigation of the affects, emotions and feelings in Neuroscience of
Emotions and Neuroscience of Development, mainly in the survival and evolutionary
views. From these points he develops the evolutive pathway of the process of self-
regulation and the development of the cognition modulated by feelings as the higher
conquest in this process.

Unitermos
Psicanálise°Neuropsicanálise°Afetos°Emoções°Sentimentos°Cognição°

Key Words
Psychoanalysis°Neuro-Psychoanalysis°Affects°Emotions°Feelings°Cognition°

Resumen

En este trabajo el autor retoma un tema por el muchas veces planteado, buscando ahora
hacer la sistematización que Freud y sus seguidores no emprendieran, incorporando los
avances en la investigación de los afectos, emociones y sentimientos alcanzados por la
Neurociencia de las emociones y por la Neurociencia del desarrollo, principalmente en lo
que concierne a los puntos de vista de la supervivencia y de la evolución. Partiendo de estos
puntos, desenvuelve el trayecto evolutivo del proceso de auto-regulación y del desarrollo de
la cognición modulada por sentimientos como la mayor conquista de este proceso.

Palabras Claves

Psicoanálisis-Neuropsicoanálisis-Afectos-Emociones-Sentimientos-Cognición.

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