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dileto com quem compartilhamos fórmulas eficazes de convívio social, O QUE É NEURO-PSICANÁLISE
como este singelo lembrete de que “não há coisa que saia mais barata do que
os bons comedimentos”.
Yusaku Soussumi
II, pg. 393: Tendo abandonado a governança da “ilha” e tomando seu cami-
nho de volta à sua vida regular, encontra-se Sancho com um antigo vizinho,
um tal de Ricote, mouro foragido que voltara disfarçado à Espanha para res-
O
gatar um tesouro que escondera. Esse inesperado personagem oferece a San- objetivo deste trabalho é tratar da neuro-psicanálise,
cho uma parte de seu tesouro, caso ele se disponha a ajudá-lo na empreitada um novo método científico que consiste em combinar
mas, escaldado por sua frustrada ambição de alçar-se a uma condição que dois métodos já existentes, ou seja, um método que
não era a sua, ele recusa, dizendo: [...] Ricote, segue o teu caminho em boa hora busca integrar, sobre uma base empírica, a psicanálise e
e deixa-me seguir o meu, que bem sei que o que bem se ganhou, perde-se facil- a neurociência.
mente; mas o que mal se ganhou, perde-se ele e perde-se a gente. O início de movimentos, ainda tímidos, por parte de psicanalistas que ousa-
II, pg. 400: Sancho, ao ser salvo da cova por Dom Quixote e reencontrando vam contrariar a orientação das instituições psicanalíticas de buscar estudar
os duques: Saí, como digo, da ilha, sem mais acompanhamento que o do meu as possíveis correlações entre os conceitos, os achados da psicanálise com as
ruço; caí numa cova, vim por ela adiante até que esta manhã, com a luz do sol descobertas da neurociência, ocorreu na Década do Cérebro. Data de 1994
vi a saída mas tão difícil que, a não me deparar o céu o senhor Dom Quixote, a fundação do grupo de estudos de neurociência e psicanálise no Instituto
ali ficaria até ao fim do mundo. Assim, portanto, duque e duquesa meus senho- de Psicanálise de Nova York, quando os psicanalistas, encabeçados por
res, aqui está o vosso governador Sancho Pança que nestes dez dias de governo, só Arnold Pfefer, buscaram em neurocientistas da Universidade de Columbia
lucrou o ficar sabendo que não serve de nada ser governador de uma ilha, nem como James Schwartz, os conhecimentos neurocientíficos que pudessem
governador do mundo inteiro. E com isto os não enfado mais e, beijando os pés correlacionar com seus conhecimentos psicanalíticos. Iniciava-se um inter-
a Vossas Mercês, dou um pulo do governo abaixo, e passo para o serviço do meu câmbio de informações e conhecimentos entre psicanalistas e neurocientis-
amo Dom Quixote que, enfim com ele, ainda que coma o pão com sobressalto, tas. À essa época, em diversos pontos do mundo como em Frankfurt, Viena,
ao menos sempre me farto; e eu cá, em me fartando, pouco me importo que seja Londres, Bruxelas e São Paulo, existiam psicanalistas que sozinhos ou em
com feijões com que seja com perdizes. grupos buscavam estudar as possíveis correlações entre as duas ciências. Ini-
A frustrada experiência de “ser Rei por dez dias” funcionou para Sancho ciei na década de 1980 investigações neste campo tendo tido, somente em
como um choque de realidade, convencendo-o, facilmente, que os seus 1994, a possibilidade de apresentar um trabalho sobre o assunto num
recursos pessoais eram insuficientes para sustentar a ambição de ser rico e evento psicanalítico, a Bienal da Psicanálise de 1994. Em 1996, Mark
poderoso. Esta lição foi incorporada por ele com tal solidez que, tendo o des- Solms, psicanalista inglês com formação em neurociência, que vinha traba-
tino promovido o seu reencontro com este Ricote que novamente lhe ofere- lhando em Londres e publicando trabalhos sobre o assunto desde a década
ceu um ganho fácil, ele recusa de modo peremptório, oferecendo como de 1980, foi convidado pelo Instituto de Psicanálise de Nova York para coor-
argumentação que “o que mal se ganhou”, ou seja, o ganho corrompido, é denar o grupo de estudos de neuro-psicanálise. Com o aumento de psicana-
fonte de envenenamento para o próprio eu. listas e de neurocientistas interessados nos estudos das correlações das duas
Esta sábia ponderação, fruto do aprendizado emocional recém-adquirido, disciplinas que beneficiavam as duas entre si, resolveu-se, sob a coordenação
prepara no fundo o retorno do filho pródigo o qual, estando mergulhado na de Arnold Pfeffer e Mark Solms, fundar uma sociedade que congregasse
escuridão do arrependimento, “vê a luz do sol”, ou seja, a presença salvadora esses psicanalistas, neurocientistas, solitários ou organizados em grupos, e
do pai-patrão Dom Quixote que veio ao seu encontro para recebê-lo de que pudesse ser um pólo de orientação, atualização e de trocas. Assim, em
volta. Ao retornar, no entanto, Sancho traz consigo a fórmula redentora de julho de 2000, em Londres, durante a realização do I Congresso Internacio-
como o ser humano pode aprender a modificar suas frustrações, garantindo nal de Neuro-Psicanálise, um comitê fundador que foi constituído com as
assim a sua permanência no reino da realidade. Talvez esse tenha sido o fator lideranças de diversos pontos do planeta, fundou a Sociedade Internacional
crucial na recuperação da lucidez por parte de Dom Quixote, o qual, de Neuro-Psicanálise. Fui o representante brasileiro no comitê fundador,
estando no leito de morte ditando seu testamento, readquiriu a identidade criando o Centro de Estudos e Investigação em Neuro-Psicanálise de São
prosaica de Alonso Quijano, o Bom, a distribuir com bondade os seus bens Paulo que integrou o conjunto de grupos pelo mundo que compunha as
entre aqueles que o amaram com lealdade, a começar, naturalmente com seu bases da nova Sociedade.
querido Sancho Pança. Para compreender a proposta metodológica da neuro-psicanálise é interes-
sante esclarecer as razões pelas quais Freud, sendo neurologista, criou a psi-
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de canálise que, em essência, é um método psicológico para dar significados aos
São Paulo, filiada à International Psychoanalytical Association. processos mentais sem, no entanto, perder o vínculo com a neurologia, e
sem perder a esperança de que um dia a psicanálise voltaria a se unir à neu-
rologia, quando esta tivesse alcançado um grau de desenvolvimento e ofere-
cesse conhecimentos que faltavam naquela época.
No tempo de Freud, a neurologia ainda era uma disciplina relativamente
nova, e tinha incorporado da medicina interna o método anátomo-clínico,
que consistia nos levantamentos dos sinais e sintomas clínicos das doenças
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para buscar a confirmação anátomo-patológica nas autópsias. Isto queria por aceitar que as funções da fisiologia cerebral ocorrem na interação dinâ-
dizer que o clínico fazia as hipóteses diagnósticas das doenças através dos mica de diversas áreas espalhadas pelo cérebro, e não resultante de uma loca-
sinais e sintomas, e só tinha a comprovação quando o paciente era subme- lização num centro. Nestes termos, podemos afirmar que a psicanálise se
tido à autópsia. Com o decorrer do tempo, em face das experiências aná- comporta como uma neuropsicologia.
tomo-clínicas, os clínicos através dos sinais e sintomas inferiam as lesões Luria quando escreveu seu último livro em 1976, parece que tinha esgotado
anatômicas das doenças. A escola germânica privilegiava, acima de tudo, os os principais assuntos cognitivos, e se propunha a entrar num campo não
achados anátomo-patológicos, e assim os sinais e sintomas não explicados abrangido pelo cognitivismo: motivação, emoções profundas e personali-
pelas lesões anatômicas eram desconsiderados. Por esta época, os neurolo- dade. Ele faleceu antes de iniciar seu projeto.
gistas estavam às voltas com algumas doenças como histeria, neurastenias Freud descobriu que os conteúdos subjetivos da vida mental não são facilmente
que, apesar da exuberância dos sintomas – por exemplo, paralisias de mem- acessíveis à investigação científica. Forças poderosas trabalham para se oporem
bros – os patologistas nada encontravam nas autópsias para justificá-las. Tra- às tentativas de investigação de conteúdos privados da mente individual. Freud
balhando neste método, Freud se deu conta de suas limitações. A escola classificou estas forças – que se expressam clinicamente como vergonha, culpa,
francesa, tendo Charcot como figura central, atraiu a atenção de Freud, que ansiedade e outros – sob o nome de “resistências”. Essas dificuldades ocorrem
foi fazer um estágio com ele, em1885-86, para tomar contato com o que pelo fato de que as determinantes causais inferidas dos dados observacionais
também era método anátomo-clínico, mas que privilegiava os sinais e sin- primários (acontecimentos mentais inconscientes que subjazem os processos
tomas, obtidos na observação meticulosa. Ou seja, estes não eram rejeita- de pensamento conscientes) não são conscientes por definição. Ele experimen-
dos, mesmo que não se encontrassem os substratos anatômicos na autópsia. tou várias técnicas para vencer tais resistências (por exemplo: hipnotismo e téc-
Esta postura de Charcot teve uma influência marcante em Freud, que pas- nica da pressão) e, com base nessas experiências, gradualmente desenvolveu a
sou a praticar essa modalidade de método clínico quando retornou a Viena. técnica psicanalítica definitiva da associação livre.
Charcot tinha uma hipótese de que as lesões não surgiam nas autópsias por- Tanto Freud como Luria sempre insistiram que para descobrir a organiza-
que eram de natureza fisiológica, e de origem hereditária, e que eram micro- ção neurológica do aparelho mental humano como compreendemos na psi-
patologias que o desenvolvimento da técnica no futuro iria evidenciar. canálise é necessário, em primeiro lugar, dissecar a estrutura interna psico-
Com a experiência prática, e sob a influência do neurologista inglês Hugh- lógica das várias mudanças na personalidade, na motivação e na emoção
lings Jackson, Freud começou a se dar conta de que essas manifestações não complexa. Assim, os múltiplos fatores subjacentes produzindo esses sinto-
apareciam nas autópsias por serem fenômenos de natureza psicológica e, por mas e síndromes podem ser identificados, e cada um correlacionado com
outro lado, não se encerravam em localizações restritas em centros no cére- sua “cena de ação” neuro-anatômica.
bro. A época marcava o auge do localizacionismo em face dos achados de Entretanto, devido às forças de resistência descritas, esses fatores não podem
Broca e Wernicke. Diferentemente do aceito, para Freud as funções ocor- ser revelados pelas técnicas neuropsicológicas convencionais. Os testes psi-
riam não em áreas localizadas, mas na interação dinâmica de diversas áreas cométricos e técnicas de comportamento básicos, que os neuropsicólogos
que correspondiam a funções complexas. Freud deu-se conta desses aspec- usam para acessar o estado mental dos pacientes neurológicos, foram desti-
tos ao estudar a afasia e as perturbações de movimentos voluntários e não nados para a investigação das desordens das funções cognitivas de superfí-
funções psicológicas. cie. Para que possamos revelar a estrutura psicológica subjacente, profunda,
Na medida que avançava nas observações da histeria e outros quadros men- das desordens da personalidade, motivação e emoção complexa que aflige o
tais, mais fortalecia a convicção de que, na realidade, se tratavam de questões paciente neurológico, portanto, a técnica da associação livre deve ser intro-
de funções de natureza psicológicas, que ocorriam na dinâmica de interações duzida dentro do método neuropsicológico de Luria.
de diversas áreas cerebrais, que nunca seriam detectadas pela anatomia pato- Este tem sido o método neuro-psicanalítico por excelência, que evita as cor-
lógica. Em 1895, Freud fez com o Projeto para uma psicologia científica, sua relações isomórficas da psicanálise com a neurociência, e evita o reducio-
última tentativa de construir um esquema dinâmico de funcionamento neu- nismo que leva à anulação do que é fundamental no método psicanalítico e
rológico, com elementos que eram produtos de suas conjecturas, imagina- do significado mais profundo de seus conceitos.
ções, pois as concepções neurológicas vigentes não tinham alcançado um O que tem sido recomendado, e que se acredita proverá um pilar para uma
desenvolvimento necessário para ancorar suas hipóteses funcionais. Por essa consistente integração da psicanálise e neurociência, é uma plena investiga-
época, Freud se dava conta de que podia estudar as funções psíquicas pela ção psicanalítica de pacientes com lesões neurológicas focais. Em outras
observação clínica acurada, sem conjecturas e imaginações, buscando na palavras, o que se recomenda é o mapeamento da organização neurológica
dinâmica psíquica em si a explicação que a dinâmica neurológica não podia do processo mental humano que a psicanálise revelou, usando a versão
oferecer, mas deveria existir e seria conhecida com o desenvolvimento da modificada do método de Luria da análise da síndrome, pelo estudo da
neurobiologia. Aí surgiu a psicanálise com a sua metapsicologia. estrutura profunda das mudanças mentais nos pacientes neurológicos que
Hoje, a tendência natural tanto dos neurocientistas como dos psicanalistas, podem ser discernidos dentro do setting psicanalítico.
no primeiro momento, é buscar uma correlação isomórfica entre os concei- Desde que as investigações psicanalíticas válidas só podem ser conduzidas
tos psicanalíticos e neurocientíficos, o que causa uma simplificação errônea, no contexto do tratamento psicanalítico, o método investigatório que se
que não leva em conta as características das duas ciências. recomenda tem um potencial de benefício secundário. Ele permite que se
A partir de 1939, principalmente com o trabalho de Alexander R. Luria, veja se e em que extensão o tratamento psicanalítico pode contribuir para a
desenvolveu-se dentro do campo da neurociência do comportamento, a reabilitação de várias desordens de personalidade, motivação e emoção, que
neuropsicologia dinâmica, cujos princípios se aproximam aos da psicanálise estão associados com o dano focal neurológico.
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Os trabalhos dentro dessa metodologia neuro-psicanalítica vêm sendo rea- BIOÉTICA DA VIDA COTIDIANA
lizados no campo das memórias, das emoções, dos sistemas motivacionais,
do inconsciente trazendo contribuições valiosas para as duas ciências. Um
exemplo onde as contribuições psicanalíticas têm sido muito ricas é no
campo dos estudos da regulação afetiva, orientando as pesquisas da neuro- Claudio Cohen e Gisele Gobbetti
ciência do desenvolvimento e psicologia do desenvolvimento, campo em
E
que as chamadas relações de objetos, tão estudados por psicanalistas como ntendemos que nós seres humanos não nascemos nem éti-
Melanie Klein, Fairban e Mahler têm contribuído de forma inegável. cos e nem competentes para as nossas funções sociais, pois
É no campo dos lesionados cerebrais onde mais se pode perceber a correla- tanto uma como outra serão incorporadas no processo de
ção e a complementação das duas disciplinas. Assim, por exemplo, os estu- humanização por meio da elaboração do pacto edípico.
dos dos estados conhecidos como de confabulação nos pacientes com lesão Entendemos, também, que exercer a eticidade seja a possibi-
bilateral da região ventro medial no prefrontal ou na síndrome de Korsakof, lidade de pensar a ética e a moral. Esse pensamento não deve conter apenas
têm permitido a investigação psicanalítica que se realiza além das investiga- os conflitos entre a emoção e a razão mas, também, permitir que o indiví-
ções neuropsicológicas. Pelo método psicanalítico, têm-se podido eviden- duo se relacione com os mundos interno e externo. Lidar com tais conflitos
ciar nessas manifestações confabulatórias as características especiais do sis- causa-nos um mal estar, que é inerente à inserção na cultura e ao desenvol-
tema inconsciente em plena expressão, como trazidos por Freud, quais vimento humano.
sejam: 1. a tolerância da contradição mútua; 2. ausência do tempo; 3. a subs- O ser bioético deve lidar com o outro, devendo integrar sua biologia com
tituição da realidade externa pela realidade psíquica; 4. o processo primário sua biografia, que o tornará competente para exercer sua cidadania.
(mobilidade da catexia). A bioética da vida cotidiana visa pensar as questões mais simples do nosso
Nas chamadas síndromes do hemisfério cerebral direito, que ocorrem nas dia a dia, ou seja, uma reflexão ética das relações, para não ter que pensar ape-
lesões da região peri-silviana, geralmente por problemas de irrigação da arté- nas nas grandes questões da bioética que implicam em mudança de valores,
ria cerebral medial que provoca paralisia no lado esquerdo do corpo, ocor- como por exemplo a eutanásia, fertilização in vitro, os transgênicos, aloca-
rem alguns sintomas exuberantes como: 1. anosognosia (inconsciência do ção de recursos em saúde etc.
déficit); 2. anosodiaforia (aceitação intelectual com negação emocional); 3.
negligência (ignorância do lado esquerdo do espaço); 4. misoplegia (obses- DESENVOLVIMENTO HUMANO A humanidade tende a repetir suas expe-
sividade e ódio pela lesão) e apraxia espacial (dificuldade de atuar o espaço) riências, porém delas o ser humano aprende muito pouco. Para exemplifi-
etc. Esse quadro, cujos sintomas são explicados coerentemente por teorias car, retomaremos o movimento artístico e científico conhecido como
neuropsicológicas relacionadas com as perdas das funções do hemisfério Renascimento dos séculos XV e XVI que pode ser caracterizado pelo renas-
direito e permanência das funções do hemisfério esquerdo, oferecem nas cer da cultura grega clássica. Essa cultura caracterizou-se pela sua visão
situações de investigações psicanalíticas a possibilidade de se descobrir antropocêntrica do mundo, ou seja, ela entendia que o ser humano era o
motivações inconscientes, não acessíveis aos métodos neuropsicológicos fator central ou, pelo menos, o mais significativo do universo.
comuns, que levam os indivíduos às manifestações de tais sintomas de nega- Com o renascer dessa compreensão humanista, existe a retomada de uma
ção da realidade dolorosa, sugerido que o hemisfério direito ausente tem a ética orientada para o ser humano, para o desenvolvimento das suas facul-
função psíquica de realizar o luto pelas perdas, superar a melancolia, e desen- dades criadoras e para o máximo proveito dos recursos naturais.
volver a capacidade relacional do indivíduo dos estados narcísicos para rela- Devido ao salto qualitativo proveniente do atual conhecimento em espaço,
ções de objeto, propiciando, conseqüentemente, a ampliação de suas rela- tempo e cultura, entendo que estamos experimentando um período revolu-
ções espaciais. cionário, que posso compará-lo ao período renascentista. Porém, como no
passado, os conflitos éticos que esse tipo de conhecimento nos traz são inú-
Yusaku Soussumi é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; mem- meros, e é por este motivo que entendo que devamos retomar uma ética que
bro fundador da Sociedade Internacional de Neuro-Psicanálise; e presidente do Centro de Estu- esteja vinculada a valores humanistas, pois foi ela quem ajudou a lidar com
dos de Neuro-Psicanálise de São Paulo. estes conflitos, durante o período do Renascimento.
O novo conhecimento científico coloca uma questão ética central: o que é
a “vida”?. A questão pode ser subdividida em o que deva a ser considerado
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA “estar vivo”, como, por exemplo, os embriões congelados ou o genoma
mínimo, e o que venha a ser considerado “ser vivo”, por exemplo, o que fazer
Kaplan-Solms, K.& Solms, M. Clinical studies in neuro-psychoanalysis – com os seres e plantas transgênicas.
Introduction to a depth neuropsychology, London, Karnac Books.2000. O ressurgimento desse pensamento renascentista pode ser observado através
Luria, A.R. Human brain and psychological process, New York: Harper & de certas equivalências históricas, como o que ocorreu na divulgação do conhe-
Row. 1966. cimento. Gutemberg, inventor do tipógrafo, em 1440 imprimiu o primeiro
Luria, A.R The working brain: an introduction to neuropsychology. New livro, a Bíblia, permitindo que as pessoas comuns pudessem ter acesso a esse
York: Basic Books. 1973. conhecimento humano. Mantidas as proporções, é fácil de se observar a seme-
lhança existente no que o Bill Gates nos oferece com seus softwares ou na velo-
cidade da divulgação do conhecimento que a internet nos proporciona.
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Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud
Roberto Calazans
Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade
Federal de São João del Rei (UFSJ). Doutor em Teoria Psicanalítica pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Endereço para correspondência: Rua João da Mata, 200/104, Bonfim –
São João del Rei, MG. CEP: 36307-444. E-mail: roberto.calazans@gmail.com
Resumo
O presente artigo pretendeu apontar para as questões que estavam em jogo
para Freud quando da redação do Projeto de 1895. Objetivamos com isso
demonstrar que Freud não visava necessariamente a construção de uma
teoria neuropsicanalítica, como pretendem alguns, mas a busca da etiolo-
gia psíquica das neuroses. Por isso, em um primeiro momento analisamos
porque Freud escolhe o nome psicanálise para denominar sua teoria. Depois
estabelecemos quais são os dois postulados elaborados por Freud na parte
I do texto do Projeto para, em segui da, apontar como a parte II, articula-
da com outros textos contemporâneos de Freud, apontam para a busca de
Freud de uma causalidade não nos neurônios, mas em representações.
Palavras-chave:
Psicanálise; neuropsicanálise; psíquico; análise; etiologia.
1 INTRODUÇÃO
dado um mau passo na vida; outro fica cego sem nenhuma afecção
patológica: mais uma vez, estamos lidando com algo que coloca em
questão qualquer ideia de unidade, como o sintoma). Essas paralisias
são produzidas a partir da relação entre representações que ressignifi-
cam experiências infantis. É aqui que entra em jogo a questão da causa-
lidade a posteriori que não pode ser prevista: é da ordem do que vem
depois, por meio das representações, que algo passa a ser tido como
originário. Esse procedimento só faz sentido se remetermos inteiramen-
te a um registro psíquico, sem a necessidade de apelar para nenhum
evento biológico ou físico. E é por isso que Freud se vê sistematicamen-
te levado a abandonar conceitos que seriam do campo da neurologia e
cada vez mais se referir a conceitos psíquicos: por buscar, incansavel-
mente, uma causalidade psíquica.
Nos próprios termos de Freud: a ferramenta essencial para o trata-
mento anímico é a palavra. E isso por duas razões: a primeira é porque dando
a oportunidade da fala podemos responsabilizar o sujeito; e a segunda é
porque é a partir das palavras que podemos afetar um sujeito. Se voltarmos
ao exemplo do corpo, encontramos relatos da época da ditadura de sujeitos
que mesmo torturados não se submeteram ou não entregaram seus compa-
nheiros. A tortura do corpo não indicava necessariamente uma mudança da
alma. Podemos também pegar um exemplo de Lacan que ilustra muito bem
isso do que estamos falando: certa vez perguntaram a ele como fazer para
tirar alguém de sua consciência. Ele respondeu: esfolando! Quando estamos
lidando com o anímico, não se trata de consciência no sentido de estado vigil
em oposição ao estado de sono; trata-se de consciência no sentido de uma
lógica e de uma organização. E se Freud, a partir do tratamento das histé-
ricas, recusa essa lógica, foi porque recusava essa lógica consciencial que
definia o conceito de normalidade e de loucura.
Nesse mesmo texto, Freud lembra ainda o quanto será insuficiente
buscar no cérebro a etiologia das neuroses e da cisão do aparelho psíquico.
3 O PROJETO DE 1895
etiologia das neuroses, caminho que uma vez assumido o levou à sexua-
lidade, ou seja, a existência de um liame entre elas, não recorrendo aos
neurônios para construir essa articulação. O enfoque neste texto está nas
representações e não em neurônios. Freud afirma que as patologias psíqui-
cas advêm da impossibilidade do sujeito “resolver a contradição da repre-
sentação incompatível e seu eu por meio da atividade do pensamento”
(FREUD, 1894, p. 55). A questão que se apresenta é a de um conflito psíqui-
co. Freud conclui o raciocínio afirmando que essas representações incom-
patíveis estão no campo da experiência e das sensações sexuais. Estava
inaugurada a via de investigação que atravessa toda sua obra; que jamais
foi negada, ao contrário foi afirmada e reafirmada a cada nova etapa.
Neste texto, Freud lança mão do conceito de defesa, que podemos
definir como um trabalho sobre as representações investidas sexualmente,
visando impedi-la de fazer associações e retirando o afeto. Em Observações
Adicionais sobre Neuropsicoses de Defesa (1896), a expressão “defesa” toma
uma conotação generalizada, passando “recalque” a ser o mecanismo
específico das neuroses contra a representação agora incompatível.
Em todo caso, há o problema do destino do excesso de excita-
ção. Freud apresenta como possibilidade a esse excesso, aquilo que ele
denomina , nesses textos, de afeto, tomar o caminho da “transforma-
ção de sua excitação em alguma coisa somática”(FREUD, 1894, p. 56).
Denominando esse processo de conversão histérica, essa somatização
do afeto representa a constatação de Freud da atuação do psíquico no
somático e não o contrário. De forma que tanto a teoria do funcionamen-
to energético quantitativo como a teoria neurônica se apresentam como
explicações supérfluas quando estamos tratando de representações.
Freud observa que as ideias histéricas surgem a partir de um deslo-
camento psíquico entre duas ideias; uma provinda de algum acontecimen-
to anterior, geralmente na infância e ligado à sexualidade do sujeito, que
na época não sofria recalque deste, pois seu aparelho psíquico não estava
maduro o suficiente para sentir a sua sexualidade como após a sua entrada
puberdade. Essa primeira ideia não é inteligível ao sujeito, num primeiro
momento, porque foi recalcada. A segunda ideia é a que causa sofrimento
ao sujeito, ela é conhecida deste, sendo que muitas vezes pode ser trata-
da ou evitada, mas não desaparece, porque não é a origem do problema.
4 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
______. (1915) Pulsões e seus destinos. In: Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1996 Vol. XIV.
Abstract
The present article intended to appear for the subjects that were in
game for Freud when of the composition of the Project of 1895. We
sought with that to demonstrate that Freud didn’t necessarily seek the
construction of a theory neuropsychoanalytical, as they intend some,
but the search of the psychic etiology of the neuroses. Therefore, in a
first moment we analyzed the reason Freud he/she chooses the name
psychoanalysis to denominate your theory. Then we established which
are the two postulates elaborated by Freud in the part I of the text of
the Project for, soon after, pointed as the part II, articulate with other
contemporary texts of Freud, they not appear for the search of Freud of
a causality in the neurons, but in representations.
Keywords:
Psychoanalysis; neuropsychoanalysis; psychic; analysis; etiology.
Artigo Científico
Do
divã
à
neuropsicanálise:
alguns
casos
clínicos
à
luz
da
teoria
freudiana
From
the
divan
to
neuropsychoanalysis:
some
clinical
cases
in
the
light
of
the
Freudian
theory
Josiane
C.
Bocchia
e
Daniel
Manzoni-‐de-‐Almeidab
a
Departamento
de
Psicologia,
Universidade
Federal
de
São
Carlos
(UFSCAR),
São
Carlos,
São
Paulo,
Brasil;
bSociedade
Paulista
de
Psicanálise,
São
Paulo,
São
Paulo,
Brasil
Resumo
Dentre
as
principais
questões
endereçadas
à
psicanálise
contemporânea,
uma
boa
parte
dos
temas
diz
respeito
ao
papel
da
psicanálise
frente
às
neurociências,
e
à
presença
cada
vez
mais
frequente
de
conceitos
psicodinâmicos
em
modelos
neurobiológicos
sobre
a
mente
e
o
cérebro.
Há
diversos
artigos
científicos
recentes
que
se
apoiam
em
recursos
de
neuroimagem
para
propor
aproximações
entre
alguns
conceitos
freudianos
clássicos
e
determinados
resultados
empíricos.
Alguns
estudos
até
propõem
uma
junção
entre
as
duas
áreas,
o
que
tem
gerado
polêmicas.
Este
artigo
discute
o
surgimento
da
Neuropsicanálisee
o
que
ela
representa
nesse
debate.
Para
traçar
uma
reflexão
inicial
sobre
a
proposta
neuropsicanalítica,
relatamos
alguns
de
seus
procedimentos
clínicos
em
associação
com
o
método
psicanalítico
de
investigação
do
inconsciente
e
as
concepções
freudianas
de
melancolia
e
narcisismo.
©
Cien.
Cogn.
2013;
Vol.
18
(1):
057-‐069.
Palavras-‐chave:
Freud;
neuropsicanálise;
neurociências;
estudo
de
caso,
narcisismo.
Abstract
Among
the
main
issues
addressed
to
the
contemporary
psychoanalysis,
a
great
part
of
the
themes
concerns
the
role
of
psychoanalysis
face
to
neurosciences
and
also
to
the
increasing
presence
of
psychodynamic
concepts
trenched
on
neurobiological
models
about
the
mind
and
the
brain.
There
is
a
profusion
of
scientific
articles
that
rely
on
neuroimaging
in
order
to
propose
approaches
among
classical
freudian
concepts
with
some
empirical
outcomes.
An
amount
of
researches
even
indicate
the
junction
of
these
two
fields
and
as
a
consequence,
that
has
raised
some
polemics.
This
article
discusses
the
apparence
of
neuropsychoanalysis
and
also
reverberates
what
it
represents
in
this
current
debate.
To
draft
an
initial
reflexion
about
the
aim
of
this
approach,
it
is
reported
some
of
the
clinical
procedures
associated
with
the
psychanalytical
method
of
the
investigation
of
the
unconscious.
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Cien.
Cogn.
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Vol.
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057-‐069.
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paciente
aparecem
nas
breves
conscientizações,
sugerindo
que
não
houve
uma
perda
da
capacidade
de
sentir
afetos
negativos,
mas
sim
que
as
emoções
se
encontram
ativamente
suprimidas
pelas
defesas
psíquicas.
A
mesma
observação
se
aplica
ao
Sr.
D,
34
anos,
que
tinha
a
mão
levemente
paralisada
e
após
uma
fase
inicial
de
negligência,
passou
a
apresentar
ódio
pela
mão
hemiplégica
e
acessos
de
raiva
contra
a
equipe
médica.
Apresentava
atitudes
de
desconfiança
e
controle
quanto
à
equipe
e
agia
como
se
a
mão
não
fosse
uma
parte
do
seu
corpo.
Como
a
Sra.
B,
ele
também
era
capaz
de
exprimir
sentimentos
negativos,
suas
verbalizações
agressivas
indicam
um
colorido
emocional
intenso.
O
Sr.
D.
é
um
caso
atípico
da
SHD,
pois
não
tem
a
negação
ou
repressão
com
mecanismo
subjacente,
mas
sim
a
projeção
que
faz
com
que
os
sentimentos
relacionados
ao
dano
corporal
sejam
externalizados:
“Eu
vou
fazer
essa
mão
em
milhões
de
pedacinhos
e
mandá-‐los
pelo
correio
para
o
neurocirurgião,
em
envelopes,
um
a
um”,
“Eu
não
posso
viver
assim;
eu
vou
mandar
amputá-‐la”
(Kaplan-‐Solms
&
Solms,
2004,
pp.
92-‐93
).
Sr.
C,
59
anos,
com
hemiplegia
na
mão
esquerda,
ignorava
o
examinador
quando
este
se
sentava
do
seu
lado
esquerdo,
tinha
episódios
de
choro
e
no
restante
do
tempo
era
alheio
e
arrogante
com
a
equipe
médica.
Na
sessão
psicanalítica,
esforçava-‐se
por
manter
uma
suposta
invulnerabilidade
e
culpava
os
profissionais
pela
sua
atual
condição
física.
O
Sr.
C.
minimizava
o
fato,
repetindo
que
o
braço
“parecia
um
pedaço
de
carne
morta,
mas
agora
está
um
pouquinho
bobo
e
preguiçoso”
(Kaplan-‐Solms
&
Solms,
2004,
p.
62).
Assim
como
o
Sr.
D,
este
paciente
tratava
o
lado
esquerdo
do
corpo
como
se
não
fosse
seu,
e
sim
como
um
objeto
qualquer
que
o
incomodava
por
não
responder
com
a
mesma
eficiência
de
outrora.
Abaixo,
segue
as
intervenções
psicanalíticas
que
auxiliam
o
paciente
na
tomada
de
consciência
de
sua
condição
física
real
durante
a
sessão,
quando
participava
de
um
programa
de
reabilitação
neurológica:
[...]
ele
subitamente
se
ausentou
da
conversa
com
ela
[a
terapeuta]
e
começou
a
exercitar
seu
braço
e
sua
mão
esquerda
com
a
mão
direita.
Karen
comentou
que
parecia
que
ele
não
conseguia
esperar
e
queria
que
o
braço
se
recuperasse
imediata
e
totalmente.
“Não”,
respondeu
ele,
retornando
momentaneamente
as
suas
racionalizações.
“Eu
só
não
quero
que
meu
braço
esquerdo
fique
fraco
pela
falta
de
uso”.
Karen
replicou
que
talvez
fosse
doloroso
demais
tomar
contato
com
o
que
ele
estava
prestes
a
reconhecer
no
momento
anterior
–
ou
seja,
que
seu
braço
estava,
de
fato,
totalmente
paralisado
–
e
que
saber
se
o
braço
se
recuperaria
ou
não
estava
totalmente
fora
do
controle
dele.
Esse
comentário
provocou
um
desabamento
instantâneo
de
sua
expressão
facial,
com
irrupção
de
uma
emoção
dolorosa
próxima
às
lágrimas.
Virando-‐se
para
Karen,
disse
em
desespero:
“Mas
olhe
meu
braço
[apontando
para
o
braço
esquerdo],
o
que
é
que
vou
fazer
se
ele
não
recuperar?
(Esse
foi
seu
comentário
mais
reflexivo
até
o
momento,
envolvendo
um
reconhecimento
pleno
de
sua
problemática
–
um
momento
de
fato
sem
defesas).
Então,
o
Sr.
C
fez
um
longo
silêncio,
após
o
que
reverteu
para
seu
estado
usual
de
aparente
indiferença”.
(Kaplan-‐Solms
&
Solms,
2004,
p.
66-‐67)
As
intervenções
terapêuticas
abrem
uma
perspectiva
para
que
o
paciente
dissociado
reconheça
seu
estado
físico,
dando
vazão
a
sentimentos
suprimidos.
Esta
62
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mas
não
sabe
precisamente
o
que
foi
perdido
junto
com
o
objeto,
ou
seja,
ela
ignora
que
a
sua
deficiência
seja
responsável
pela
perda
da
autonomia.
Freud
(1917/1989)
aponta
que
na
base
da
melancolia
está
uma
relação
narcísica
com
os
objetos
amorosos:
uma
relação
marcada
pela
fixação
ao
objeto
(que
é
intensamente
investido),
porém
sustentada
por
um
vínculo
frágil
que
pode
sucumbir
mais
facilmente
às
situações
de
crises
e
adversidades.
Diante
de
uma
perda,
o
melancólico
não
consegue
desinvestir
o
objeto
e
começar
de
novo,
como
ocorreria
no
luto
normal:
“de
tal
sorte
que
o
investimento
do
objeto
possa
regressar
ao
narcisismo
se
encontrar
dificuldade.
A
identificação
narcisista
com
o
objeto
se
converte
então
no
substituto
do
investimento
de
amor”
(Freud,
1917/1989,
p.
247).
Freud
está
dizendo
que
o
melancólico
inconscientemente
substitui
o
investimento
amoroso
no
objeto
por
uma
identificação
com
este.
A
ambivalência
de
amor
e
ódio
é
inerente
à
esta
identificação
introjetiva
(ambivalência,
que
em
algum
grau,
está
presente
em
todos
os
vínculos
amorosos),
e
faz
com
que
o
objeto
perdido
seja
reconstruído
no
mundo
interno
do
sujeito,
criando
uma
cisão
no
próprio
ego6.
O
ego
e
o
objeto
encontram-‐se
divididos
na
fantasia
inconsciente,
entre
partes
boas
e
más,
por
isso
o
ego
torna-‐se
alvo
de
ataques
agressivos
e
de
uma
hostilidade
que
seria
direcionado
ao
objeto,
explicando
os
impulsos
suicidas.
No
caso
da
Sra.
A,
o
corpo
saudável
é
o
objeto
perdido
do
qual
ela
não
pode
se
desvencilhar,
talvez
pela
percepção
idealizada
(narcísica)
do
seu
esquema
corporal.
Ela
teria
ficado
identificada
a
essa
autoimagem
e
a
representação
do
braço
permaneceu
intacta
dentro
do
ego
da
paciente,
por
isso
a
recusa
em
perceber
a
deficiência
motora.
No
caso
do
Sr.
D,
também
houve
introjeção
e
regressão
a
uma
relação
narcísica
com
o
seu
corpo,
mas
ao
invés
de
guardar
o
objeto
danificado
consigo
ele
o
expulsa
e
externaliza
a
raiva
ao
invés
de
ficar
intoxicado
por
ela.
Este
paciente
usava
mecanismos
projetivos,
por
isso
ficava
persecutório
quanto
à
realidade.
A
ameaça
era
vivenciada
como
vindo
de
fora:
neurocirurgiões
incompetentes,
um
hospital
negligente,
e
assim
por
diante.
Suas
fantasias
eram
de
natureza
paranoica
(a
mão
era
tratada
como
uma
parte
da
realidade
externa
odiada),
e
isso
mantinha
os
impulsos
autodestrutivos
fora
do
seu
ego,
por
isso
ele
não
tentara
se
matar,
como
a
Sra.
A.
(Kaplan-‐Solms
&
Solms,
2001,
pp.
193-‐194).
4
Ferida
narcísica
na
síndrome
do
hemisfério
direito
A
psicanálise
revela
que
em
todos
estes
casos
o
luto
normal
não
foi
realizado,
em
função
de
uma
evitação
dos
afetos
depressivos,
isto
é,
uma
defesa
contra
“a
conscientização
plena
de
sua
perda
por
meio
de
uma
organização
narcísica”
(Kaplan-‐
Solms
&
Solms,
2001,
p.
98).
Na
Sra.
B
e
no
Sr.
C,
houve
uma
supressão
dos
sentimentos
(repressão)
que
cedeu
momentaneamente
nas
sessões
e
nestes
dois
últimos
casos
houve
uso
maciço
da
introjeção
e
da
projeção,
respectivamente.
Quando
estas
defesas
entraram
em
colapso,
derivaram
em
um
quadro
depressivo
severo
na
Sra.
A
e
em
uma
paranoia
agressiva
no
Sr.
D.
Mas
afinal
o
que
tornaria
a
apresentação
clínica
dos
casos
da
SHD
tão
peculiar
quando
comparada
a
outros
casos
de
lesões
neurológicas
e
aos
casos
de
danos
na
mesma
região
do
hemisfério
esquerdo?
Segundo
os
autores,
a
revisão
da
literatura
neuropsicológica
sobre
o
hemisfério
direito
aponta
que
este
como
exerce
um
papel
central
na
representação
dos
objetos
externos
reais,
como
algo
separado
de
nós,
logo,
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&
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Que
sais-‐je?).
Notas:
(1)
A
argumentação
destes
artigos,
por
exemplo,
busca
integrar
substratos
neurobiológicos
e
acepções
psicodinâmicas:
“sugerimos
que
as
camadas
da
consciência
descritas
por
Freud
proporcionam
um
quadro
conceitual
mais
adequado
para
a
compreensão
da
atividade
cerebral
e
da
sua
relação
com
o
mentalismo”
(Shulman
&
Reiser,
2004,
p.
133),
bem
como
“a
amnésia
clínica
fornece
um
modelo
experimental
para
estudar
fenômenos
de
interesse
dos
psicanalistas”
(Clyman,
1991,
p.
377).
(2)
Para
uma
discussão
sobre
os
sistemas
de
memória
implícita
e
sua
associação
com
um
modo
de
organização
das
emoções,
ver
Clyman
(1991).
(3)
O
método
anatomoclínico
que
sustentava
a
doutrina
da
localização
de
funções
cerebrais
no
século
19
(conhecida
como
localizacionismo)
é
diferente
da
correlação
proposta
nestes
casos
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69
Carta aos editores
passado, nos quais apresenta um novo método lacuna observada por Kandel 1 no que diz
de pesquisa em neurociência 2. Este método, respeito à necessidade de uma base empírica
que tem sido a principal referência dentro do para a psicanálise. No entanto, resta saber
movimento neuropsicanalítico, consiste numa como o método neuropsicanalítico pode
adaptação do método neuropsicológico contribuir para um avanço no conhecimento
tradicional, elaborado por Luria, para o estudo conceitual dos processos inconscientes. Neste
da atividade cerebral ligada aos fenômenos sentido, o método apresentado por Solms
emocionais, que têm sido investigados pela certamente não é o único capaz de fornecer as
psicanálise por mais de 1 século. Esta bases conceituais para a psicanálise, embora
modificação no eixo de investigação das seja o primeiro a estabelecer a possibilidade de
neurociências – dos processos cognitivos para investigação científica experimental para tais
os fenômenos emocionais – vem ocorrendo com conceitos. A psicanálise, através do método da
maior freqüência nos últimos anos, associação livre e de suas técnicas próprias,
impulsionada pelo desenvolvimento de vem desenvolvendo um arcabouço teórico vasto
aparelhos altamente especializados no durante mais de 1 século. É evidente que nem
mapeamento preciso da atividade cerebral, todos os conceitos psicanalíticos poderiam ser
como é o caso do PET-Scan e da tomografia validados pela neurociência3 através do método
funcional por ressonância magnética (fMRI). O neuropsicanalítico; contudo, não podemos
método neuropsicanalítico, introduzido por censurar o esforço que vem sendo feito pelos
Solms, pretende unir as observações realizadas adeptos da neuropsicanálise para incrementar
durante sessões de psicanálise com pacientes as pesquisas psicanalíticas.
portadores de lesões cerebrais aos Apesar de não podermos negar a iniciativa
diagnósticos realizados com o uso das mais pioneira do método neuropsicanalítico,
recentes tecnologias de mapeamento cerebral, devemos questionar até que ponto a
a fim de descobrir quais áreas do cérebro neuropsicanálise, enquanto método, pode
correspondem aos fenômenos psíquicos contribuir para a teoria psicanalítica e para a
descritos por Freud no decorrer de sua trajetória psicoterapia. O grande mérito do método
como psicanalista. neuropsicanalítico, até o momento, foi chamar
Como exemplo das descobertas feitas a atenção para a necessidade de um diálogo
através do método neuropsicanalítico, podemos com a neurociência, uma vez que dispomos,
citar as primeiras experiências de V.S. nos dias atuais, de meios para investigar a
Ramachandran com pacientes que mente humana com muito mais eficácia. Neste
apresentavam lesões no hemisfério direito do sentido, a neuropsicanálise, enquanto
cérebro, portadores de um distúrbio conhecido movimento, veio sacudir o meio psicanalítico,
como “anasognosia”. Estes pacientes são oferecendo um novo paradigma para a
incapazes de reconhecer a paralisia de um psicanálise no século XXI. Não obstante, o
membro, sintoma denominado de “negligência”. método neuropsicanalítico precisa de um
Após a aplicação de um pequeno volume de arcabouço teórico que ofereça conceitos bem
água gelada no ouvido esquerdo de alguns de delineados e bem definidos, numa linguagem
seus pacientes, Ramachandran constatou que conceitual, científica. Freud nos ofereceu tais
a negligência desaparecia completamente e só conceitos quando desenvolveu, paralelamente
reaparecia depois de alguns minutos. Esta à prática psicanalítica, a sua metapsicologia.
estimulação calórica pode ser interpretada Esta representa a teoria psicanalítica pura, uma
“como sendo uma correção temporária e teoria sobre a mente humana. A metapsicologia
artificial do desequilíbrio de atenção entre os freudiana foi construída para ser uma ciência4,5.
hemisférios” 2 (p.57). O resultado deste Tendo um método experimental e uma
experimento levou à descoberta de que o metapsicologia científica, resta acrescentar ao
fenômeno da repressão, bem como o de outros corpo da neuropsicanálise – enquanto
mecanismos de defesa descritos na literatura movimento – uma psicoterapia de base
psicanalítica, é mediado pelo hemisfério neuropsicanalítica, a fim de oferecer condições
esquerdo do cérebro. completas para se pensar num novo paradigma.
A princípio, constatamos que o método Neste sentido, a princípio, a psicoterapia de
neuropsicanalítico parece ser eficaz na base neuropsicanalítica não funcionaria de
localização das áreas cerebrais maneira muito diferente da psicanálise
correspondentes aos fenômenos inconscientes tradicional. Ao afirmar isto, estamos
que influenciam a vida psíquica dos indivíduos. considerando que a psicanálise clássica ainda
Além disso, este método vem preencher a tem muito a nos oferecer enquanto prática 329
330
Sumário
Neste trabalho, o autor retorna a um tema por ele já diversas vezes abordado, buscando
agora fazer a sistematização que Freud e seus seguidores não empreenderam, incorporando
os avanços na investigação dos afetos, emoções e sentimentos alcançados pela
Neurociência das emoções e Neurociência do desenvolvimento, principalmente sob os
pontos de vista da sobrevivência e da evolução. A partir desses pontos, desenvolve o trajeto
evolutivo do processo de auto-regulação e do desenvolvimento da cognição moduladas
pelos sentimentos como a maior conquista desse processo.
etc., impede que a eficácia da prática psicanalítica muitas vezes alcance as raízes do
somático, como requerem as verdadeiras transformações mutativas.
As geniais apreensões de Freud, suas hipóteses relativamente a afetos e emoções e sua
compreensão do ser humano numa perspectiva evolucionista estão dispersas por sua obra e
tornam difícil uma compreensão integrada desses aspectos na economia somatopsíquica do
indivíduo, bem como suas profundas conexões básicas com os fenômenos inconscientes e
com a própria repressão. A visão de sua íntima relação com os instintos se perde no
emaranhado de concepções com as quais esse tema se mescla na obra freudiana.
Até cerca de dez anos atrás, pela influência da Psicologia Cognitivo-comportamentalista, os
neurocientistas adeptos da Neurociência Cognitiva consideravam a emoção algo
desprezível, que não merecia o investimento de uma investigação científica, uma vez que o
enfoque preferencial recaía sempre sobre o cognitivo, o intelectual, essa função superior,
distintiva do ser humano e do humano na sua expressão mais pura. A emoção era vista
como algo da ordem do patológico, que servia apenas para perturbar o cognitivo. A
Neurociência desconsiderava que eminentes cientistas como Darwin, Freud e James
pudessem ter-se ocupado das emoções. No momento, porém, que alguns neurocientistas
como Damásio, LeDoux, Davidson, Panksepp, Ekman, Watts, etc. começaram a investigá-
las, os conhecimentos começaram a fluir a passos largos.
Por força das contribuições de diversas áreas da Biologia Evolutiva, da Antropologia, da
Neurociência do Desenvolvimento e da Psicologia Social, esses estudiosos puderam fazer a
sistematização que faltava sobre o tema dos afetos e emoções. Embora nada de muito novo
para a Psicanálise, porque grande parte daqueles conhecimentos já havia sido abordada por
Freud, o que importava era a visão integrada de afetos e emoções, por meio da qual era
possível entender de forma mais eficaz suas expressões. Na minha opinião, a
sistematização, se não usada para aprisionar, permite enxergar com clareza a função
primordial que afetos e emoções, usados neste trabalho como sinônimos, desempenham na
vida do ser humano.
É por meio dessa abordagem que temos a possibilidade de compreender Freud em toda a
profundidade, quando ele sinaliza que as mudanças nos estados internos do ser são
percebidas como afetos pelo próprio ser vivo, que responde a elas com ação e movimento.
Aprendemos que os afetos são apreensões dos estados somáticos do organismo e que esses
3
cognição se instale no ser humano, sob a forma de racionalidade, com o uso da linguagem,
com o uso da palavra como coisa, desprovida de colorido e conteúdo emocional.
No momento em que ocorre esse salto qualitativo, a emoção, emergindo dos estados
corporais, descola-se em parte do corpo e essa parte descolada torna-se autônoma,
vinculando-se com o cognitivo. A consciência corporal se torna inconsciente, no meu ponto
de vista, dentro do princípio de que a natureza é econômica. Essa inconsciência dos estados
corporais abre espaço para uma nova função, a cognição, que é necessário conquistar,
inclusive para expandir as possibilidades de vida. Essa condição trouxe como conseqüência
a negação do corpo, o privilegiamento da cognição pela cognição e a negação da unidade
mente-corpo no mundo ocidental; para o psicanalista, trouxe um viés na compreensão da
própria teoria psicanalítica de Freud.
É indiscutível e por isso queremos ressaltar a importância dos primeiros momentos da vida
do homem na constituição de seus recursos para a auto-regulação, a sobrevivência e a
expansão da vida para além dos valores atrelados à sobrevivência, conforme Freud
enunciou no seu monumental Além do princípio do prazer.
Por essa razão, quanto mais profundamente penetramos na Neuropsicanálise, mais e mais
voltamo-nos para o estudo e a investigação da relação da mãe, ou dos cuidadores, com o
bebê, que é decisiva na formação e desenvolvimento posterior dos recursos de
sobrevivência e do sistema nervoso do bebê, da criança e do futuro adolescente e adulto. É
fundamental para os psicanalistas conhecer as investigações que se processam nas funções
do hemisfério direito do cérebro do bebê e da mãe, que vão permitir as comunicações que
acontecem entre eles de forma inconsciente, num outro nível de realidade e compreensão,
que o dogmatismo acadêmico e científico classificaria de irracional. Por esse enfoque, cabe
salientar a importância da região ventromedial do lobo frontal como o componente cortical
do sistema límbico que funcionaria como o centro processador das emoções e das conexões
destas com a cognição, quando as emoções se tornam sentimentos, ou seja, quando a
consciência das emoções e suas origens nos estados do corpo se mobilizam juntamente com
os pensamentos. É nesse momento que os sentimentos como que adquirem autonomia,
expandem-se nas respostas ao mundo externo, em particular nas relações com o outro, com
o surgimento de atitudes e desejos de consideração solidária, respeito, identificação e afeto
para com o outro. É o princípio do surgimento da função de cognição, com a qual surgem
7
“A mente e o intelecto estão enrolados nos sentidos. Por meio destes, a visão do homem
fica cega, encobrindo a sabedoria.”
8
SUMMARY
In this paper the author returns to a theme that he had considered many times, nowadays
searching to make the systematization that Freud and followers hadn’t made, using the
advances in the investigation of the affects, emotions and feelings in Neuroscience of
Emotions and Neuroscience of Development, mainly in the survival and evolutionary
views. From these points he develops the evolutive pathway of the process of self-
regulation and the development of the cognition modulated by feelings as the higher
conquest in this process.
Unitermos
Psicanálise°Neuropsicanálise°Afetos°Emoções°Sentimentos°Cognição°
Key Words
Psychoanalysis°Neuro-Psychoanalysis°Affects°Emotions°Feelings°Cognition°
Resumen
En este trabajo el autor retoma un tema por el muchas veces planteado, buscando ahora
hacer la sistematización que Freud y sus seguidores no emprendieran, incorporando los
avances en la investigación de los afectos, emociones y sentimientos alcanzados por la
Neurociencia de las emociones y por la Neurociencia del desarrollo, principalmente en lo
que concierne a los puntos de vista de la supervivencia y de la evolución. Partiendo de estos
puntos, desenvuelve el trayecto evolutivo del proceso de auto-regulación y del desarrollo de
la cognición modulada por sentimientos como la mayor conquista de este proceso.
Palabras Claves
Psicoanálisis-Neuropsicoanálisis-Afectos-Emociones-Sentimientos-Cognición.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
9
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