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Antes de*adentrarmos no drama mito poético wagneriano é preciso que nos apercebamos
do que queremos dizer quando falamos em mito. O dicionário Aurélio traz-nos, entre outras, a
definição de mito como uma “ideia falsa, que distorce a realidade ou não corresponde a ela”
[AURÉLIO, 2004]. Esta tornou-se a mais usual definição da palavra. Tornamo-la nome de
achincalhamento ou admiração. Chamamos mito* ideias que nos parecem falsas e políticos
que nos parecem honestos. Mas perdemos de vista o significado histórico da palavra.
Há uma outra definição que melhor nos supre o interesse. É a consideração de um mito
como um “relato de seres e acontecimentos imaginários, acerca dos primeiros tempos ou de
épocas heróicas” [AURÉLIO, 2004]. Tal definição nos é de interesse apenas no que tange a
alcunha de acontecimentos “acerca dos primeiros tempos ou de épocas heróicas”. Há certo
aspecto, porém, que ainda não podemos aceitar. É o pressuposto de que tais seres e
acontecimentos são imaginários. Tal pressuposto adquire status de dogma para os modernos,
que tão encolerizados se encontram contra tudo que se propõe transfísico, não adequado a
qualquer forma de materialidade, temporariedade ou finitude. Mas a verdade é que isso é um
dogma. Dogma esse cunhado pela cosmovisão copernicana nascente no alvorecer da
modernidade. É muito provável que Homero não via os seres e acontecimentos de épocas
heróicas narrados por ele como meros frutos da imaginação. O mesmo pode ser dito de
Virgílio, Hesíodo e outros. Quando Virgílio narra o nascimento da língua latina no final da
Eneida, ele não descreve um acontecimento meramente imaginário. Também não é provável
que Hesíodo narre Os trabalhos e os dias apenas para contar uma mentira. Os mitos tinham
para os antigos um significado profundo. Não quer isso dizer que os mitos eram vistos por eles
necessariamente como descrições históricas de acontecimento que se passaram na realidade
temporal, podendo ser visto e apreciado por qualquer passante que presenciasse os eventos.
O significado dos mitos para os antigos é mais profundo que isso. Analisaremos esse
significado no seu devido tempo.
Devemos ficar, portanto, com a terceira definição que nos é dada no dicionário Aurélio, a de
que o mito é uma “narrativa de significação simbólica, transmitida de geração em geração
dentro de determinado grupo, e considerada verdadeira por ele” [AURÉLIO, 2004]. Tal
definição é por nós aceita não por atingir tal grau de precisão que buscamos, mas por melhor
adequar-se a ele. Podemos questionar, como o fizemos anteriormente, o que significa dizer
que a narrativa simbólica é “considerada verdadeira” para os povos. Mas tal definição nos
agrada por seu respeito à intencionalidade da experiência com o mito. Esse elemento
intencional é o que falta àqueles que querem tratar do mito partindo de uma cosmovisão
cientificista. Como diz o professor Wolfgang Smith:
Algo que também deve estar claro para nós é o que chamamos por símbolo, tal como usado
por Voegelin na citação. Para isso usaremos nas definições conferidas pelo filósofo brasileiro
Mário Ferreira dos Santos:
O filósofo brasileiro nos trás um conceito importante sobre a gênese do símbolo. Conta-nos
que o símbolo nasce de uma dialética entre fatores emergentes e fatores predisponentes. Os
fatores emergentes são aqueles que se constituem na interioridade dos indivíduos, tais como
os fatores binômicos (biológicos) e psicológicos. Os fatores predisponentes são aqueles que
surgem no mundo extra mentis, tais como os fatores ambientais, históricos e sociais. Esses
fatores relacionam-se entre eles de forma como que de espiral. Os fatores emergentes buscam
adaptar-se ao mundo externo, ao ambiente, à cultura e à sociedade. Os fatores
predisponentes, por seu turno, são assimilados pelos fatores emergentes no processo de
cognição da realidade. Os fatores assimilados assomar-se-ão à estrutura da nossa consciência,
alterando-a, acrescentando-lhe novas informações, enriquecendo-lhe. Essas estruturas
enriquecidas pelos novos fatos assimilados tentarão novamente adaptar-se ao mundo extra
mentis. O processo continua a se repetir.
Donde surge o símbolo nesse processo? Surge o símbolo, dirá Mário Ferreira, quando a
assimilação dar-se mais que a adaptação. Quando o número de possibilidades latentes em um
determinado objeto escapa à nossa condição de adaptar-se a ele no processo de cognição, ou
quando não podem ser bem expressas analiticamente por nossas capacidades linguísticas, é ao
mito que recorremos. Para clarear o que estamos dizendo, Mário Ferreira dá-nos o seguinte
exemplo:
Retornando à citação do Voegelin, agora enriquecida pela contribuição de Mário Ferreira dos
Santos, perguntemos agora: o que é o símbolo mítico? O mito é o símbolo que criamos quando
as experiências de transcendências que assimilamos não condiz com nossa adaptação, o que
nos obriga a criar uma linguagem que nos permita referir-se a essas experiências apontando
para algo analogamente intrínseco a elas. A linguagem escolhida para simbolizar as
experiências infinitas é sempre uma linguagem “finitizante”. Expressamos através de
experiências materiais as experiências imateriais, pois essa é a única linguagem adequada que
possuímos para falar de nossas experiências. Não podem expressar definitivamente esses
sentimentos, mas podem expressar o mais análogo possível que temos deles.
Assim chegamos em um ponto fulcral de nossa tese: entendendo que o mito sempre
surge de uma tentativa de adaptar-se ao ambiente que nos encontramos, ambiente que
também é histórico, social, cultural, político, podemos inferir que nos mitos há sempre uma
forma de enxergar o mundo à nossa volta. Conhecer mitos é saber como os indivíduos
concretos que construíram aqueles mitos enxergavam a sociedade e o mundo à sua volta. Os
mitos nos permitem conhecer a Weltanschauung, a cosmovisão, dos indivíduos criadores dos
mitos e da sociedade que os rodeiam. Observamos exemplos disso nos mitos homéricos, onde
a cosmovisão aristocrática nos é exposta, ou nos mitos de Hesiodo, onde é a cultura
campesina a exposta. (JAEGER, em algum lugar que não lembro).
Tendo em mente essas definições quanto à filosofia do mito, podemos partir para a nossa
análise, sabendo que o mito de Tristão e Isolda, ou, mais específicamente, o tratamento que
Richard Wagner confere ao mito nos revelará algo de sua cosmovisão, como também da
sociedade que o cercava.