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Prudência e Jurisprudência – uma reflexão epistemológica sobre a jurisprudentia romana a

partir de Aristóteles
Luis Fernando Barzotto

O conhecimento do direito que caracteriza o jurista segue chamando-se com boas razões
jurisprudência, literalmente, prudência jurídica. Esta palavra recorda ainda o legado da filosofia
prática, que via na prudentia a virtude suprema de uma racionalidade prática. O fato de que a
expressão ciência do direito tenha prevalecido a partir do final do século XIX indica a perda da
idéia de uma peculiaridade metodológica deste saber jurídico e de sua definição prática.
Hans-Georg Gadamer

O direito romano parece surgir na história como a aplicação da doutrina aristotélica. O


renascimento do direito romano na Europa a partir do século XIII estará ligado ao renascimento
de Aristóteles.
Michel Villey

1 INTRODUÇÃO

Não foi o acaso que fez os romanos, os inventores da ciência do direito, a chamar a sua
disciplina de jurisprudentia (a prudência do direito) e o jurista de prudens (prudente).
A influência grega se faz sentir aqui. Como os romanos não eram dados a abstrações, nunca
criaram uma teoria da ciência jurídica, que explicitasse a sua natureza e função. Em parte, é
verdade, isso não se fazia necessário, uma vez que o que pretendiam expressar como termo
prudentia não era senão uma tradução do termo grego phronesis. Esse, em toda cultura grega, de
Homero a Aristóteles, pretende designar um tipo de saber que orienta a ação (práxis), sendo,
portanto, o prudente (phronimos) aquele que sabe agir, que sabe tomar as decisões corretas nas
diversas situações da vida humana.
O conceito grego de phronesis (prudência) origina-se na cultura popular grega, e podemos
encontrar vestígios dele em Homero, na religião délfica e nas tragédias. Ele encontra o seu
sistematizador em Aristóteles. Para examinar o pensamento deste último, é necessário proceder a
uma análise do termo phronesis na cultura grega, segundo a advertência de Jaeger: “Nenhuma
filosofia vive da pura razão. Ela é apenas a forma conceitual e sublimada da cultura e da civilização,
tais como se desenrolam na história.”

2 OS PRECURSORES DE ARISTÓTELES

2.1 O conceito de phronesis na cultura grega

2.1.1 Homero

Homero teve um papel ímpar como poeta. Não era sem motivo que ele era denominado o
“educador da Hélade”. Homero era invocado como autoridade em todas as questões, especialmente
naquelas que diziam respeito à moral e à religião. Em Atenas, a Ilíada e a Odisséia eram
memorizadas pelos jovens, determinando todo o vocabulário moral, político, estético e religioso.
Nesse contexto, os conceitos filosóficos não escaparam à influência homérica. É em Homero,
portanto, que deve iniciar a tentativa de determinação do conceito de prudência.
Embora Homero não utilize o termo phronesis na Ilíada, nela estão presentes termos da
mesma raiz, como sophrosyne (moderação) e euphronein (pensar corretamente). Na Odisséia já se
encontra o termo phronis, a forma primitiva do termo phronesis.
Em todos os casos de uso dos termos desta família, o que está em jogo é a atitude da pessoa
diante do papel social que lhe cabe desempenhar. Isso é relevante se atentarmos que, para Homero,
a ordem social faz parte da ordem cósmica, e essa ordem é conservada quando cada um cumpre de
um modo adequado a sua função. Aquele que não se atém ao seu papel, comete a hybris (o excesso,
a desmedida), comprometendo a ordem e acarretando o castigo. O homem prudente é aquele que
conhece os deveres relativos à posição que ocupa na ordem social, sabendo, portanto, como agir em
conformidade com as exigências do seu papel social nas diversas situações concretas.
O modelo de homem prudente para Homero é Nestor, rei de Pilos. Nestor é o mais velho dos
gregos, um ancião que “sobre a terceira geração reinava” (Ilíada I, 245). Pela sua experiência, é
considerado o melhor dos gregos no conselho, assim como Aquiles é o melhor na guerra.
No conflito entre Agamemnon e Aquiles, que abre a Ilíada, Nestor é aquele que aponta a
causa do conflito: a deserção em relação aos deveres da sua função. Agamemnon, apropriando-se da
escrava de Aquiles, transgride a função de um rei, a saber, governar com justiça; Aquiles, mostrando
insubordinação e abandonando a batalha, transgride a função do soldado, obedecer ao chefe. Nestor
aconselha a Agamemnon que não tome a escrava de Aquiles e a esse que não desobedeça ao
comandante-em-chefe dos gregos. Homero afirma de Nestor que esse “pensa bem”, euphronein
(Ilíada, I, 253), na medida em que conhece o papel que cabe a cada um. Também na Odisséia (III,
244), Telêmaco afirma que deve buscar o conselho de Nestor, pois ele “mais do que os outros,
possui justiça e prudência (phronis)”.
Homero inaugura, portanto, a idéia de um saber prático, nascido da experiência, que permite
ao homem conhecer seu lugar na ordem do mundo, orientando-o nas suas decisões concretas.

2.1.2 A religião délfica

Como em qualquer análise da filosofia grega, também aqui se faz sentir a solidez da opinião
de Jaeger: “Devemos encarar a história da filosofia grega como o processo de racionalização
progressiva da concepção religiosa do mundo implícita nos mitos”.
De fato, o exame do conceito de prudência não deve descuidar a doutrina ligada ao culto de
Apolo, o “deus do sol, da luz e da clareza racional”, no santuário de Delfos, desde o século VIII
a.C. A síntese desta doutrina encontra-se nas máximas gravadas no pórtico do templo de Apolo:
“Conhece-te a ti mesmo” e “Nada em excesso.”
A máxima “Conhece-te a ti mesmo” convida o homem a proceder a um exame de si, não de
um modo introspectivo, mas tomando consciência do seu lugar na ordem cósmica, como em
Homero. Deste modo, o seu sentido pode ser enunciado assim: “Lembra-te que és um mortal” ou
“Não ultrapasses a medida do humano”, ou ainda “Lembra-te dos teus limites, tu, um mortal”. Ao
homem é lembrado o fato de que encontra-se inserido em uma ordem que não é obra sua, da qual
ele é apenas uma parte que deve adequar-se ao todo.
O homem que conhece a si mesmo e, portanto, está consciente dos limites impostos pela sua
condição humana, pensa as questões práticas de um modo correto, consegue apreender o que deve
fazer. Segundo Aubenque, ele pensa de um modo correto, pensa sensatamente porque pensa
humanamente, afastando “a tentação do sobre-humano”, adaptando seu comportamento a uma
ordem anterior e superior a ele.
A máxima “Nada em excesso” recorda o caráter objetivo da ordem e a necessidade de
conformar-se a ela, ao mesmo tempo em que convida o homem a buscar conhecer a justa medida da
ação, e nunca transgredi-la, guardando-se da hybris. Esse ideal é expresso pelo termo sophrosyne, a
moderação, o respeito aos limites, evitando o desejo de se ter mais que a sua parte (pleonexia),
curvando-se à ordem do mundo.
A religião de Delfos contribui para a formação do conceito de prudência com duas noções
expressas por termos da mesma raiz lingüística de phronesis: phronein, o respeito aos limites, e
sophrosyne, a busca do equilíbrio entre os extremos. O termo phronesis vai incorporar estas duas
noções.

2.1.3 A contribuição dos trágicos

À época em que escreve Ésquilo (525-456 a.C.), o termo phronesis já é corrente. Ésquilo
tem uma fé cega na ordem do mundo. Para ele, como para Homero e a tradição popular, a phronesis
consiste em respeitar os limites impostos pela ordem divina e não ultrapassar a medida do humano.
Na tragédia Os Persas, o fantasma de Dario reprova nestes termos a atitude do exército do seu filho
Xerxes, que pilhou os templos ao invadir a Grécia: “Montes de cadáveres, até a terceira geração,
indicarão sem palavras aos olhos dos mortais que quando se é mortal não se deve abrigar
pensamentos que ultrapassem a própria condição (...). Acima está Zeus, juiz rigoroso, que castiga os
pensamentos soberbos. Em conseqüência, porque Xerxes não tem prudência, levai-o à razão por
prudentes conselhos, a fim de que deixe de ofender os deuses com uma audácia cheia de
insolência.”
Mas é Sófocles (496-406 a. C.), entre os trágicos gregos, aquele que insiste de modo mais
veemente na prudência como obediência aos mandatos que cristalizam a ordem do mundo. A sua
tragédia mais célebre, Antígona, pode ser lida como uma advertência à catástrofe provocada pela
ausência de prudência no agir. De fato, a tragédia está mais centrada no tirano Creonte do que
propriamente na heroína Antígona. Ao condenar esta última à morte, por ter enterrado o irmão
traidor da pátria, Creonte rompe com a ordem do mundo, porque Antígona agia em conformidade
com “as leis divinas, não escritas, inevitáveis.” Agir com prudência é saber o que a ordem do
mundo exige em cada situação. A imprudência de Creonte não está, como pensam alguns
intérpretes, em ter transposto as fronteiras da vida ao condenar um morto. A ordem de Creonte, no
horizonte grego, é perfeitamente aceitável: o direito penal ateniense conhecia a pena de privação de
sepultura. O erro de Creonte foi punir alguém que tinha o dever religioso de enterrar seus
familiares. Ele não consegue discernir que nesse caso, a pena não deve ser aplicada. Aqui está o ato
de hybris de Creonte, que leva à catástrofe. No final da tragédia, seu filho, Hémon, noivo de
Antígona, e sua mulher Eurídice, suicidam-se. Na última estrofe da peça, o coro lembra o papel
central da prudência na vida humana: “A prudência é a primeira condição da felicidade. Não se
deve ofender os deuses em nada. A desmedida empáfia nas palavras reverte em desmedidos golpes
contra os orgulhosos e não é senão na velhice, que eles aprendem afinal a prudência.”
Os trágicos desenvolvem a noção de limite, limite que o prudente conhece e respeita. A
tragédia nada mais é do que a catástrofe ocasionada pela hybris, a transgressão dos limites
imanentes da ordem cósmica. A prudência é o conhecimento desses limites e das exigências da
ordem em cada situação.
2.2 O conceito de phronesis na filosofia grega

A filosofia grega nasce como transcrição para linguagem racional da experiência religiosa da
ordem do mundo. O mundo é um cosmos, não um caos. Essa ordem abarca o mundo divino e
humano. Em filosofia, a experiência da ordem será pensada como a experiência da ordem do ser.
Os filósofos da natureza (Tales, Anaximandro, etc) investigaram a ordem do Ser. Mas a sua
visão do Ser estava separada do mundo humano.
Segundo JAEGER, Heráclito (Séc VI a.C.) é o primeiro filósofo a utilizar o conceito de
phronesis e o seu verbo correlato phronein (pensar sensatamente, pensar corretamente).
Heráclito é o primeiro a deduzir as conseqüências da ordem do ser para a vida do homem. O
termo phronesis vai expressar no seu pensamento o conhecimento das exigências da ordem cósmica
para a práxis. A phronesis opera a medição entre a ordem do ser e a ordem que deve reinar no
mundo humano.
Para Heráclito, a ordem do ser é total, e os limites impostos por ela são intransponíveis: “O
sol não ultrapassará seus limites; se isso acontecer, as Erínias, auxiliares da Justiça, saberão
descobri-lo.” Nada, no mundo divino ou humano, escapa à ordem do ser. O homem, pelo
conhecimento dessa ordem e do seu lugar nela (autoconhecimento) terá o critério para a sua ação:
”Pensar sensatamente (phronein) é a mais alta virtude; e a sabedoria consiste em dizer a verdade e
em agir conforme a natureza, ouvindo a sua voz.”
Esse conhecimento não está reservado a uma elite de filósofos, mas está aberto a todos: “A
todos os homens é permitido o conhecimento de si mesmos e o pensar sensatamente (phronein).”
Após Heráclito, constata-se no ensinamento de Sócrates que o conhecimento que este último
identifica com a virtude seja precisamente a phronesis. Mas o seu conceito de prudência não será
examinado, pelas dificuldades inerentes à determinação do conteúdo do seu pensamento. Platão, por
sua vez, prega o predomínio da razão teorética, a contemplação das Idéias, em detrimento do
conhecimento prático. Daí ser nula a sua contribuição para o tema.
É Aristóteles o filósofo que retomará a investigação sobre o conceito de phronesis.

3 A TEORIA DA PRUDÊNCIA DE ARISTÓTELES

3.1 A ética aristotélica

Como a maioria dos seus contemporâneos, Aristóteles aceitava o truísmo de que há uma
ordem no universo. Sem transcender o horizonte de racionalidade imposto pela filosofia, Aristóteles
vai além do senso comum, recusando uma explicação religiosa do fenômeno da ordem. A ordem
presente no universo não é a ordem imposta por Zeus, é a ordem do ser.
A ordem do ser para Aristóteles é uma ordem teleológica, onde todos os entes tendem para o
bem/fim que lhes é próprio. Entre as causas que constituem todos os entes, a mais importante é “a
causa final ou o bem (pois o bem é o fim de toda geração e de todo o movimento)”.
É sobre essa concepção metafísica que Aristóteles edifica a sua teoria moral. A Ética a
Nicômaco inicia com a seguinte asserção: “O bem é aquilo para o qual todas as coisas tendem.” A
partir do postulado metafísico de que o bem de uma coisa é o seu fim (telos), Aristóteles pergunta-
se qual é o telos da vida humana.
O fim ou o bem supremo do homem é a felicidade, a vida plenamente realizada segundo a
razão (eudaimonia). Para alcançá-la, o homem deve submeter seus impulsos e instintos à orientação
da razão, um esforço que implica o cultivo das virtudes morais (justiça, coragem, temperatura, etc.).
A ética aristotélica é teleológica: aquilo que colabora para o homem alcançar o seu fim deve
ser evitado. Note-se que este fim é objetivo, não estando ao arbítrio do sujeito determiná-lo. O fim
da vida humana está inscrito na ordem do ser, não podendo criar a “sua” ordem. Essa idéia é a
antítese da idéia moderna de autonomia moral. Para Aristóteles, não é o sujeito que pode dispor a
seu arbítrio os critérios de correção moral. É o telos objetivo do homem que determina o bem
moral. Essa discrepância entre a ética clássica e a ética moderna é descrita por Lima Vaz nos
seguintes termos: “A ética moderna é, assim, uma ética constitutivamente autônoma ao fazer do
sujeito, em última instância, o legislador moral, em contraste com a Ética clássica, essencialmente
ontonômica, pois nela o ser objetivo, mediatizado pela ‘reta razão’ (orthòs lógos), é a fonte da
moralidade.” É necessário frisar esse fundamento metafísico da ética aristotélica, sob o risco de não
compreender o papel da prudência (a reta razão), que não é fundar o bem moral, mas descobri-lo na
realidade.
Mas o que é bem moral? O bem moral consiste na ação virtuosa. Para Aristóteles, nas ações
nós podemos ter o excesso, a falta e o justo meio. A temeridade é um excesso, a covardia é uma
falta e a coragem é o justo meio. A ação é virtuosa quando atinge o justo meio entre dois vícios. A
ação virtuosa quando atinge o justo meio entre dois vícios. A ação virtuosa é a ação nacional,
elemento constitutivo da eudaimonia, a vida feliz.
Obviamente, o justo meio não é determinado aritmeticamente. A sua determinação envolve
uma série de questões: “O justo meio consiste em fazer o que se deve, quando se deve, nas
circunstâncias em que se deve, às pessoas a quem se deve, pelo fim pelo qual se deve e como se
deve”.
De fato, para alcançar a medida da ação que é justo meio, é necessário um tipo de saber
prático, que determine, em cada caso concreto, qual é o justo meio que deve ser realizado. Um tipo
de saber que não esteja voltado à determinação da essência do bem (tarefa da filosofia), mas à
determinação do que é o bem aqui e agora, considerando todas as circunstâncias. Esse saber prático
é a phronesis, a prudência.

3.2 O conceito de phronesis


O conceito popular de prudência tem dois elementos constitutivos: as noções de limite e de
equilíbrio, que se fundem na exigência de moderação, de respeito à medida. Aristóteles recolhe essa
tradição no seu conceito de prudência, ao mesmo tempo em que determina qual é a medida da
ação: não o papel social como em Homero, nem a ordem instituída pelos deuses dos trágicos, nem a
Idéia do Bem de Platão. A medida da ação é o justo meio. Ora, para realizar o justo meio é preciso
conhecê-lo. É por isso que a prudência é necessária, sendo o seu papel determinar o justo meio no
caso concreto. “Sem a prudência, a virtude é cega e pode levar às piores catástrofes: sob o pretexto
de ser corajoso, eu seria temerário e me perderia por nada.”
A prudência se distingue assim do saber teórico, que trata das realidades necessárias. A
prudência, por versar sobre a ação humana, tem como objeto o singular e o contingente. As
conclusões da prudência não são universais e necessárias como as conclusões do saber teorético (as
conclusões da matemática são válidas em toda a parte e sempre), mas são tão contingentes como as
situações às quais ela se aplica (o que pode ser um ato de coragem em uma situação, será um ato de
covardia ou temeridade em outra situação).
Aristóteles tem o cuidado de distinguir a prudência que caracteriza o homem de ação, da
sabedoria (sophia), virtude do filósofo. Ao passo que seu modelo de prudente é Péricles, o modelo
que ele aponta de sábio são os filósofos Anaxágoras e Tales de Mileto. Deles diz Aristóteles que
“possuem a sabedoria, mas não a prudência, porque ignoram as coisas que lhes são convenientes, e
nós reconhecemos que eles possuem um saber ímpar, admirável, difícil e divino, mas sem proveito,
porque não são bens propriamente humanos que eles buscam.” Sem proveito para eles, porque não
os ensinava como agir nas circunstâncias concretas da vida. Note-se a distância que separa
Aristóteles de Platão: para este último, somente o filósofo, pelo saber teorético advindo da
contemplação das Idéias, é que sabe como dever agir.
O modelo de homem prudente de Aristóteles não é o filósofo, mas o político e o chefe de
família, tipos sociais envolvidos com problemas práticos: são prudentes “Péricles e outros homens
como ele (...) na medida em que são capazes de perceber aquilo que é bom para eles mesmos e
aquilo que é bom para o homem em geral. Ora, são os chefes de família e os políticos que são
capazes disso.”
A prudência se distingue também do saber técnico. O saber técnico está voltado ao “fazer”,
ao passo que o saber prático da prudência dirigi-se ao “agir”. A diferença está em que o fazer tem
por fim produzir uma perfeição exterior ao agente (ex., escultura), ao passo que a ação (práxis) tem
como fim a perfeição do próprio agente. Pratica-se um ato de coragem com a finalidade de portar-se
de um modo virtuoso. O fim da ação está na própria ação. Agindo-se deste modo, vive-se a vida boa
para o homem, alcança-se a eudaimonia. A prudência aplica-se, assim, às realidades ético-políticas:
“a prudência tem por objeto as coisas justas, belas e boas para o homem.”
O processo deliberativo no qual a prudência está engajada pode ser descrito como um
silogismo prático em que a premissa maior é constituída pelo fim moral a ser realizado (“o
universal”) e a premissa menor pela descrição adequada das circunstâncias do caso (“o singular”),
seguindo-se a ação devida como conclusão. Ora, a formação deste silogismo demanda dois tipos de
conhecimento: o conhecimento do universal e o conhecimento do singular: “A prudência não tem
por objeto somente o universal, mas ela deve também conhecer os singulares, pois ela dirige a ação
e a ação dirigi-se aos singulares.”
O universal é aprendido diretamente pelo ensino, e o particular pela experiência. O
raciocínio estará viciado se não se tem o conhecimento adequado do universal ou do singular: “O
erro pode dizer respeito seja ao universal, seja ao singular. Pois pode-se ignorar tanto que as águas
pesadas são prejudiciais à saúde, como o fato desta água aqui ser uma água pesada.”
A inclinação empirista que domina a reflexão aristotélica mostra-se aqui em toda sua
intensidade, quando afirma que o conhecimento do singular é mais importante que o conhecimento
do universal para a formação de um juízo prudencial correto: “Nós devemos ter os dois
conhecimentos, aquele do universal, e do particular, ou, se devemos escolher, de preferência este
último.” O exemplo que Aristóteles fornece para provar esta sua tese é bastante simples.
Imagine-se um doente com problemas de digestão e que, portanto, deve ingerir somente
carnes leves. O silogismo prático deverá ter a seguinte estrutura:
“Carnes leves são de fácil digestão” – premissa universal.
“A carne de frango é uma carne leve” – premissa singular.
“A carne de frango é de fácil digestão” – conclusão.
Aquele que conhece a premissa universal, mas não sabe que a carne de frango é uma carne
leve, está menos apto à ação do que aquele que sabe, por experiência, que a carne de frango é uma
carne leve. Ou seja: o conhecimento do singular que provém da experiência é suficiente para poder
bem agir, ao passo que o conhecimento do universal aprendido pelo ensino é insuficiente. Somente
o saber que tem sua origem na experiência pode satisfazer a exigência fundamental de todo saber
prático, dar conta dos detalhes da situação: “Se aquilo que é bom para o homem só parece na
concretude da situação prática na qual ele se encontra, então o saber moral deve compreender na
situação concreta o que é que esta exige dele (...).”
Daí a importância dada por Aristóteles à experiência como meio de aquisição da prudência.
É por isso, afirma ele, que um jovem não pode ser prudente, pois lhe falta a experiência. O jovem
pode ser um grande matemático, pois isso não requer experiência, pois a matemática trata do
universal, ao passo que a prudência exige o conhecimento do particular. Aristóteles vai ao ponto de
equiparar em importância o saber prático derivado da experiência ao conhecimento científico, pois
no âmbito moral, quem possui a última palavra é a experiência: “As palavras e as opiniões
indemonstráveis das pessoas de experiência, aos idosos e das pessoas dotadas de prudência são tão
dignas de atenção como aquelas que se apóiam sobre demonstrações, pois a experiência lhes
permite ver corretamente as coisas.”
Pela experiência alcança-se a verdade prática. De fato, a prudência, enquanto uma espécie
de conhecimento, busca a verdade, mas esta verdade está ligada à ação (práxis): “Essa verdade é de
ordem prática.” A expressão “verdade prática” soa mal aos ouvidos modernos, acostumados a
restringir o conceito de verdade ao âmbito teórico, deixando a práxis à deriva do não-cognitivismo
ético. Faz-se necessário, portanto, deter-se no esclarecimento desse conceito.
Como se sabe, Aristóteles sustenta a teoria da verdade-correspondência, isto é, a verdade
consiste na correspondência entre uma asserção e a realidade: “Dizer que o que é não é, ou o que
não é é, é falso; dizer ao contrário, que o que é é ou o que não é não é, é verdadeiro”. A verdade
prática é a conformidade entre o ditame da razão prática e as exigências da própria realidade: “O
justo meio é a conformidade do desejo e da ação à regra racional, que é a sua medida. Se esta regra
tem também a sua própria medida, esta medida não é uma outra regra – ir-se-ia assim até o infinito
– mas a própria realidade das coisas e a conformidade do espírito à realidade não é o justo meio,
mas a verdade.” Isto é, a regra racional emanada da prudência, indicando qual é o justo meio no
caso, deve ser adequada à realidade que ela pretende orientar. A prudência, como conhecimento,
tem por objeto a verdade, mas essa, à diferença da verdade necessária buscada pelo pensamento
filosófico-científico, é uma verdade prática, uma verdade contingente, mutável segundo as diversas
situações.
Espera-se que a análise da prudência limitada ao seu papel nas decisões morais individuais
não tenha feito perder de vista a sua relevância política. Com efeito, Aristóteles aponta espécies de
prudência, em conformidade com o âmbito em que a racionalidade prática deve ser exercida:
a) prudência individual – orienta as decisões do indivíduo;
b) economia doméstica – orienta as decisões do chefe de família;
c) prudência legislativa – orienta as decisões do constituinte, isto é, aquele que organiza
os fundamentos do convívio político;
d) prudência política – divide-se em deliberativa e judicial. A primeira é a prudência do
cidadão empenhado em tomar decisões sobre os assuntos públicos. A prudência judicial é aquela
que orienta as decisões dos juízes.
O interesse dessa concepção é que toda sociedade está engajada em um processo prudencial.
Todos estão comprometidos com o uso da razão prática. A prudência de outrem pode fornecer uma
norma à minha ação, mas é a minha prudência que irá torná-la eficaz no caso concreto. No âmbito
jurídico, tem-se a conseqüência de constatar que a prudência do legislador não supre a prudência do
juiz e a do cidadão. Cada situação exige do agente um juízo prático orientado pela prudência.
Outro ponto a notar é que a “moral prudencial” aristotélica diferencia-se da “moral
normativista” moderna. Toda filosofia moral da modernidade, de Kant a Rawls discute a questão:
“Que regra eu devo seguir?” A concepção aristotélica não está centrada na regra, mas no saber
prático que determina se uma regra é ou não aplicável ao caso. Assim, a questão central da teoria
moral é: que tipo de conhecimento torna o agente moral capaz de aplicar as regra ou agir na
ausência de regras? Afinal, a regra não determina seu caso de aplicação, isto é, não há uma regra
para a aplicação de regras.
A concepção normativista da moral que impera na modernidade está ligada à concepção
normativista do direito como um conjunto de regras. A concepção clássica da moral, fundada na
prudência, está ligada a uma concepção do direito onde a regra não ocupa o papel central. Essa
última concepção, que nega a identificação do direito com a norma, está na base da jurisprudentia
romana.

4 A JURISPRUDENTIA ROMANA

4.1 Preliminares

Uma determinada concepção dos saber jurídico está sempre ligada a uma determinada
concepção do direito, pois, afinal, é a partir da idéia do objeto que se dispõe dos procedimentos
aptos a conhecê-lo. Por exemplo, Kelsen parte da definição do direito como norma e coerentemente,
determina que a ciência do direito deve ser um saber que descreve normas.
É a partir de uma determinada concepção do que seja o jus, o direito, que a constituição de
um saber prudencial sobre ele, a jurisprudentia, foi possível. É o conceito romano do direito que
cabe, portanto, inicialmente descrever.

4.2 O pressuposto do direito: a experiência da ordem

Os romanos, como os gregos, eram um povo indo-europeu. Para eles, portanto, a experiência
da ordem também constituía o fundamento da sociedade. Segundo Benveniste, na noção de
“ordem” nós “temos uma das noções cardeais do universo jurídico, e também religioso e moral, dos
indo-europeus: é a ‘Ordem’ que governa tanto a disposição do universo, o movimento dos astros, a
periodicidade das estações e dos anos, quanto as relações dos homens entre os deuses, e dos homens
entre eles. Nada do que se refere ao homem, ao mundo, escapa ao império da ‘Ordem’. É, portanto,
o fundamento religioso e moral de toda a sociedade; sem esse princípio, tudo retornaria ao caos.”
Essa experiência da ordem, que entre os gregos passou rapidamente do domínio mítico-
religioso dos poetas para a dimensão secularizada da reflexão filosófica, permaneceu em Roma por
muito tempo sob a égide da religião. Isso foi devido em parte à forte religiosidade dos romanos, de
um lado, e, de outro, à existência de poderosas agremiações sacerdotais, os “colégios de
sacerdotes”.
Os atos políticos em Roma contam sempre coma intervenção de um magistrado e um
sacerdote. O magistrado escolhe um curso de ação e consulta o sacerdote sobre a conveniência do
seu ato. Os deuses simplesmente confirmam um determinado curso de ação, respondendo “sim” ou
“não”. A intervenção de um magistrado e de um sacerdote expressava a crença romana que os atos
políticos, “para serem perfeitos têm de usufruir do consenso dos homens e dos deuses (...) As lendas
acerca dos primeiros reis de Roma, Rômulo, o rei jovem, vigoroso, ativo e violento fundador da
cidade, e Numa, o velho pacífico, avesso à ação, piedoso criador da religião e do direito, confirmam
que essa bipartição de qualquer ato supremo estava profundamente enraizada na mentalidade
romana”.
Entre as atividades políticas dos sacerdotes, estava aquela de “dizer o jus.” O direito/jus
aparece em Roma, portanto, ligado à função sacerdotal, tendo um significado eminentemente
religioso. Os pontífices respondiam às questões colocadas pelos cidadãos que “desejavam saber
qual era o jus, isto é, qual era a conduta gestual e verbal conveniente (...) em relação aos outros
chefes de família e em relação aos deuses (...).”
Esta atividade de “dizer o jus” merece uma análise mais detida.
O termo jus vem constantemente unido ao verbo dicere. Esse, oriundo do indo-europeu deik,
do qual se originou o grego diké, sempre significou “mostrar de modo impositivo, pela palavra”.
Daí as expressões jus dicere, judex, jurisdictio. O “jus” é, portanto, algo que é dito. Dele irá derivar
o verbo jurare (jurar). Jurare é pronunciar o jus proferido em um juramento, é a fórmula que
expressa a ação a ser realizada.
Pronunciando o jus, o sacerdote revela assim, o que deve ser feito em uma situação concreta,
a partir das exigências da ordem divina do mundo. Cada resposta (responsum) vale somente para o
caso em que foi pronunciada. Assim, o pontífice dispunha sobre testamentos, a propriedade da terra,
as alienações, os vínculos patrimoniais e familiares, aquilo que nós conhecemos como “direito
privado”. As respostas tinham um caráter oracular e se impunham não pelo poder (competência do
magistrado), mas pela autoridade religiosa do pontífice.
O que nos interessa aqui é o tipo de saber que se forma a partir dessa atividade de dar
respostas sobre o que deve ser feito em casos particulares. Schiavone descreve como lentamente vai
se formando “uma sabedoria (...) intrinsecamente casuística, ‘local’ e como que pontual: um
responsum diferente para cada pergunta. A noção de jus não aflorava em mais nenhum lado, nem
tinha outro sentido, senão na solução de problemas imediatos e concretos (...)”
Com o crescimento e desenvolvimento de Roma, além da influência da filosofia grega, a
sociedade romana passa por um processo de secularização que não deixará incólume o direito. A
atividade do respondere, determinar o jus em cada caso concreto, passa a ser exercida por membros
da aristocracia republicana. O jurisconsulto sacerdote, o pontífice, cede o lugar ao jurisconsulto
leigo, o prudens. Mas a resposta deste último, ainda que desprovida do matiz religioso, é vinculante
para os magistrados e os particulares, ainda que o seu caráter obrigatório seja não-oficial.
Surge a jurisprudentia clássica, um saber laico voltado para a resolução de problemas
práticos. Corresponde a uma experiência tipicamente romana, cujos traços e características
principais passamos a descrever, para, a seguir, determinarmos suas afinidades com a teoria
aristotélica da prudência.

4.3 Características do saber jurídico romano

4.3.1 Um saber realista

O traço mais forte romano no apego à realidade concreta, com o concomitante repúdio à
atividade puramente especulativa e à abstração. Sua atitude espiritual é a do camponês-soldado,
apegado ao seu mundo e às verdades de senso comum.
A partir desse horizonte, não espanta que a única definição que os romanos deixaram da
jurisprudência seja marcada pelo realismo: “A jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e
humanas, a ciência do justo e do injusto.” O saber jurídico é assim, um conhecimento da realidade,
das coisas. Daí dizer Michel Villey que a “jurisprudência é primeiramente descrição do mundo
existente.” O direito está na realidade, e o faz o jurisconsulto “é precisamente desvelar, descobri a
solução justa que está nos próprios dados da res litigiosa.” O romano crê em uma ordem do mundo,
e o seu papel é determinar a solução em conformidade com as exigências dessa ordem.
Essa característica de um saber descritivo da realidade está presente no Digesto, quando se
define uma regra: “A regra descreve brevemente como é uma coisa. Não que o direito derive da
regra, mas esta é extraída do direto existente. Assim, pois, mediante a regra é transmitida uma breve
descrição das coisas, e como diz Sabino, a título de resumo, que se falha em algo, resulta inútil.” O
direito está presente na realidade, e esta realidade é descrita por meio das regras. Sendo assim, não é
o direto que deve ser extraído da regra, mas a regra do direito. Vê-se, por esse raciocínio, a recusa
de qualquer normatividade que venha sobrepor-se, de fora, à estrutura do real. Ao contrário, esta
última é elevada à fonte de toas as normas.

4.3.2 Um saber prático

Dado o seu pragmatismo de camponeses-soldados, os romanos ocuparam-se das construções


teóricas dos gregos na estrita medida das suas necessidades práticas. A matemática grega torna-se
engenharia, a geografia grega torna-se um item da estratégia militar.
Além disso, a elite oligárquica que monopoliza os cargos religiosos, militares e políticos não
tem interesse em especulações. É por isso que o saber grego que ela mais aprecia é a retórica, vital
para a atividade política. Mas a elite não pode abrir mão do fator de liderança que representa a
posse de um saber voltado à resolução dos conflitos jurídicos: “Entre os gregos, homens da mais
baixa condição, impelidos pelo incentivo de um magro salário, oferecem-se para assistir em justiça
aos oradores sobre as questões de direito: chamam-lhes ‘práticos’. Na nossa cidade, pelo contrário,
os mais ilustres personagens desempenham esse trabalho.”
É entre os membros da elite dominante que Roma encontra os seus juristas. Não poderia ser
diferente, porque em Roma a jurisprudentia é a principal fonte do direito. As responsa do
jurisconsultos são obrigatórias para as partes e os magistrados, ainda que informalmente. A
relevância política do jurisconsulto manifesta-se em toda a sua extensão, quando consideramos que
o papel subsidiário que a lei tinha como fonte do direito. A importância da jurisprudentia para a
formação do direito é tão manifesta que, por vezes, chega-se a identificar o jus civile, o direito
aplicável aos cidadãos, com a atividade do jurisconsulto, como nesta passagem de Pomponius: “O
jus civile propriamente dito é aquele que, sem estar escrito, consiste na interpretação dos
prudentes”.
A jurisprudência passa a integrar a formação dos jovens da elite romana, como um elemento
destinado ao exercício da atividade política. A formação jurídica está voltada, portanto, não à
formação de juristas, mas de políticos. Não há dedicação exclusiva à profissão jurídica: todos os
juriconsultos são políticos de carreira, e só passam a dar conselhos jurídicos depois que ganharam o
reconhecimento popular no exercício de magistraturas civis e militares. Essa intimidade com a
atividade política radicalizou no jurisconsulto a orientação pragmática própria da cultura romana:
“Estes homens (os jurisconsultos) não eram menos especialistas; eles estavam, por suas posições e
carreiras, em contato permanente com as realidades do governo para serem escravizados a
tecnicidades. Eles desenvolveram o direito romano pari passu com as necessidades do Estado
Romano.”
A jurisprudentia, refletindo os interesses práticos ligados ao papel de liderança social
exercido pelos seus cultivadores, estava completamente alheia às divagações descomprometidas
com as necessidades da comunidade.

4.3.3 Um saber ético

O Digesto inicia esboçando uma definição do termo jus: “Convém que aquele que vai
dedicar-se ao direito conheça primeiramente de onde deriva o termo jus. É chamado assim por
derivar de justitia (...).” É fácil verificar que etimologicamente esta observação está equivocada; jus
é obviamente, o termo primário e justitia (justiça) o termo derivado. Mas é importante notar que
quando o jurisconsulto romano é instado a definir o seu objeto, ele o conecta com a justiça,
mostrando a natureza moral da sua atividade. Essa compreensão do seu saber como estando a
serviço da realização da justiça leva Ulpiano a afirmar que “podemos (os juriconsultos) ser
chamados sacerdotes (da justiça); com efeito, prestamos culto à justiça e professamos o
conhecimento do bom e do eqüitativo (bonum et aequum), separando o justo do injusto, discernido
o lícito do ilícito (...)”.
Aprofundemos a análise conceitual das conexões entre justitia e jus.
Segundo a definição de Ulpiano, “A justitia é a vontade constante e perpétua de dar a cada
um o seu jus.” O jus é a parte que cabe a cada um em uma partilha. Mas essa “parte que cabe a cada
um” deve ser a materialização do “bom e do eqüitativo”, pois, segundo Celso: “Jus est ars boni et
aequi”.
O conteúdo do jus é determinado assim, pelos valores do bonum e da aequitas. O jurista, ao
investigar o jus no caso, não faz mais do que procurar determinar o que é bom e eqüitativo nas
circunstâncias dadas. É por isso, que, como foi visto acima, a jurisprudência, que tem como objeto o
jus, é definida como “o conhecimento do bom e do eqüitativo”, pois o “bom e o eqüitativo” são o
conteúdo do jus.
Aequitas é uma palavra de raiz latina, ausente em outras línguas indo-européias. É a
igualdade, o equilíbrio, a proporção. Bonum é aquilo que é conveniente (“bom para algo”), não só
para os envolvidos em uma lide, mas para toda a coletividade. É a atenção ao bem comum que deve
acompanhar a decisão do caso singular.
O jus é assim a materialização da aequitas no caso concreto, levando em consideração as
exigências do bem comum.
Concebendo a sua atividade como a atribuição a cada pessoa do seu jus, entendendo este
último como o bom e o eqüitativo, os jurisconsultos romanos configuraram a sua disciplina como
um saber do tipo ético: “Os jurisconsultos entendem o direito não como algo que se limitam a
aceitar, mas como algo que eles constroem de uma maneira responsável. Toda sua personalidade
está comprometida nisso, e, como dizia Ihering, ‘seu orgulho não é somente de tipo intelectual, mas
também de tipo moral.”’

4.3.4 Um saber casuístico

Ao contrário da moderna ciência do direito, que tem como objeto a lei, a jurisprudência
romana é antilegalista ao extremo. Isso porque em Roma o direito não é obra do legislador, mas dos
jurisconsultos (jus civile em sentido próprio) e da atividade jurisdicional – orientada pelos
jurisconsultos – do pretor (jus honorarium). A lei praticamente não é utilizada no âmbito do direito
privado, e a corporação dos juristas nutre forte oposição à sua utilização como fonte do direito: “Em
Roma a lei contrapõe-se ao direito dos juristas: ela e uma fonte de direito em virtude de uma
imposição, ao passo que o direito dos juristas não é senão a experiência derivada dos casos
particulares e progressivamente consolidada. É por isso que a lei pôde parecer aos juristas romanos
não tanto como cerne da sua ordem jurídica, mas antes como uma barreira limitando a liberdade de
descoberta do direito pelos juristas.”
A formação jurídica consistia em assistir a um jurisconsulto dando conselhos jurídicos a
particulares ou magistrados. Depois que o consulente se retirava, o jurisconsulto discutia o caso
com seus discípulos. A jurisprudência vai assim se consolidando como um saber derivado da
experiência de tratamento de casos.
Para solucionar um caso, o jurisconsulto não busca apoio em uma regra preexistente. Ele
utiliza um método casuístico cuja essência consiste em buscar a solução “nas circunstâncias
mesmas do problema ou nos casos mais próximos (...)”.
O método casuístico utiliza os seguintes procedimentos:
a) Busca-se a solução mais razoável do ponto de vista prático e que leva em consideração as
circunstâncias da causa.
b) Invocam-se casos semelhantes (analogia).
c) Invocam-se casos opostos (argumento a contrario).
d) Utiliza-se o argumento ab absurdo, mostrando que uma outra solução não seria razoável.
A atenção do jurista está centrada sobre o caso, e não sobre a regra. A sua investigação
consiste em um exame da realidade, e a sua proposta de solução está comprometida com o fato,
desconhecendo qualquer preocupação sistemática. Para o jurisconsulto romano, as regras não são
senão “expressões abreviadas contendo as experiências adquiridas pela casuística.”
Essa formação das regras por generalização empírica dá origem a proposições como as
seguintes: “Ninguém pode transferir a outro mais direito do que tem”; “Não se considera que
alguém perca o que não era seu”; “É nula a obrigação de objeto impossível.” Essas proposições
lembram o bom senso presente nos aforismos da sabedoria popular, como “Quem vê cara, não vê
coração” e “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.” Tanto uma como outra limitam-se a
expressar verdades consensuais, conhecidas pela experiência.
O pensamento jurídico permanece, assim, concreto e empírico, mesmo quando formula
regras. O recurso à regra nada mais é do que o recurso às soluções, comprovadas pela experiência,
de uma série de casos.

4.3.5 Um saber tradicionalista

O jurista moderno, acostumado com idéia de sistema, fica desnorteado diante de uma cultura
jurídica baseada em um método casuístico. Para ele, o casuísmo torna a experiência jurídica
anárquica. Os seus temores são fundados. Com efeito, deve haver um vínculo entre o tratamento
dado a casos semelhantes, sob pena de a insegurança jurídica se alastrar.
A jurisprudência romana, mesmo sem transcender o horizonte do caso concreto, encontrou
no respeito à tradição esse vínculo que dá coerência e organicidade às soluções particulares.
O romano é extremamente apegado ao passado. Para ele, a moral e o direito têm suas fontes
nos mores maiorum, os costumes dos antepassados. Esse é um dos motivos que leva a resistir a
utilização da lei como fonte do direito, pois essa sempre representa uma inovação.
A inserção do tratamento casuísta dos problemas no esteio da tradição é assim descrito por
Schiavone: “Os responsa constituíam cada vez mais o jus vivo da cidade, a ossatura descontínua
mas sólida das relações que aí se cristalizavam. Todavia, não estabeleciam – como podia fazer a lex
publica – regras gerais. Só eram válidos para a pergunta feita. A pronúncia, em certo sentido,
dissolvia-os e só duravam enquanto durava a sua atuação. Mas não eram esquecidas: a sua memória
era confiada em primeiro lugar à tradição oral do colégio dos pontífices e depois à das famílias
aristocráticas. Qualquer nova pergunta era imediatamente avaliada pela existência de precedentes,
pela massa sedimentada dos pareceres já dados.”
O caso insere-se em uma cadeia de precedentes, uma teia de soluções que se expande de
modo lento, porém seguro.

5 A PHRONESIS ARISTOTÉLICA E A JURISPRUDENTIA

Neste tópico, vamos explorar as afinidades eletivas entre a phronesis aristotélica e a


jurisprudentia romana. Como foi dito, não se trata de estabelecer um nexo histórico, mas de lançar
luz sobre a natureza do saber jurídico romano a partir de uma teoria da razão prática que descreva o
tipo de racionalidade efetivamente empregada pelos juristas romanos.
Explicitam-se de um modo sintético as aproximações já presentes no texto.

5.1 Realismo

Tornou-se um lugar-comum retratar a prudência aristotélica como o emprego de uma


“razoabilidade” desprovida de qualquer compromisso metafísico. Isso é típico daqueles intérpretes
que caem no erro denunciado por MacIntyre, de ler a Ética a Nicômaco desvinculada do conjunto
da obra aristotélica. Particularmente grave é ler a Ética a Nicômaco desvinculando-a da Metafísica.
Esta abordagem cria a ilusão de que a teoria da razão prática de Aristóteles não está solidamente
ancorada sobre fundamentos metafísicos. Mas como foi visto, toda ética aristotélica está baseada
em uma tese metafísica: “o fim de uma coisa é o seu bem”. E esse fim está dado, não podendo ser
posto por um agente que goza de “autonomia moral”. A prudência é o saber que permite determinar
em cada caso quais as exigências que a realidade impõe à práxis orientada a atingir o telos do
homem. Ou seja, ele dedica-se a conhecer uma verdade, a verdade prática, que, por ser contingente,
não é menos objetiva.
Para os romanos, a idéia de que o mundo possui uma ordem é o fundamento da sua
experiência jurídica. O tratamento casuístico dos problemas nada mais é senão a tateante e
incessante das exigências dessa ordem para o caso. Havendo um consenso em torno do conteúdo
dessa ordem, não é difícil imaginar que a coerência entre as soluções dos vários casos não faça
necessário um “sistema”. É dentro dessa concepção que a jurisprudência vem definida como “o
conhecimento das coisas divinas e humanas”, o que poderia ser traduzido como “conhecimento da
ordem do mundo.” E não é outro o motivo que leva Ulpiano a dizer que os juristas praticam uma
“verdadeira e não simulada filosofia.” As suas soluções não são baseadas em abstrações, mas no
exame paciente da realidade.

5.2 Pragmatismo

A phronesis distingue-se do saber teorético da filosofia, pois este, como dia Aristóteles,
embora seja um saber divino, é sem proveito para homem, pois não trata de bens humanos. A
prudência, pelo contrário, trata de conhecer o bem do homem concreto e da pólis concreta. O bem
que está presente no cotidiano e impõe-se como um objetivo para todos.
A jurisprudentia não trata de construir uma teoria da justiça ou uma utopia jurídico-política.
Ela está orientada para a solução de problemas práticos. Não se trata de saber o que é a justiça, mas
de realizá-la nas circunstâncias do caso presente.

5.4 Caráter ético

A phronesis não é techné, não é um saber técnico voltado à realização de uma finalidade
moralmente neutra. Ela busca o bem, seja do indivíduo, da família ou da pólis. O homem prudente
não é o astuto, aquele que dispõe dos meios para obter alguma vantagem material. O phronimos é o
homem que alcançou a excelência moral.
A jurisprudentia romana não poderia ter se tornado fonte do direito se não reproduzisse nas
suas soluções os padrões morais da comunidade. A sua autocompreensão, explicitada no Digesto
como um saber moral, não tem um caráter propagandístico. Basta um exame das soluções
fornecidas pelos juriconsultos. Toda a atividade dos juristas, como no caso da proteção dos menores
e da boa-fé, etc, revela uma constante preocupação em alcançar a solução mais adequada, do ponto
de vista moral, para os problemas práticos. No sentido do aprimoramento moral do direito, vemos
os juristas alterarem usos consagrados, negarem o cumprimento de leis, introduzirem mudanças
radicais na praxe jurídica dominante. Não se perde de vista que a tarefa da jurisprudência é alcançar
o “bom e o eqüitativo” no caso em exame.

5.4 Casuísmo

A phronesis advém da experiência. Como foi visto, Aristóteles nega a existência da


prudência nos jovens pela sua ausência de experiência. É o trato constante com os fatos da vida que
permite ao agente moral “ver de um modo correto” as coisas. Ao mesmo tempo, a phronesis é um
saber ad hoc, cujos ditames são contingentes quanto a situação que eles regulam.
Para o jurisconsulto romano, como afirma Käser, a regra não é uma fonte autônoma do
conhecimento do direito. Conhecer o direito não é conhecer regras. Conhecer o direito é conhecer a
realidade, pela experiência. Não há jurisconsultos jovens em Roma, apenas oradores (advogados)
jovens. Sem o contato demorado com as realidades da vida, não há como descobrir o direito
presente nos casos. E o saber que se adquire é consciente das suas limitações. Não aspira a ir além
do caso, criando um “sistema” dentro do qual os problemas seriam inseridos – desfigurados – e
resolvidos. A jurisprudentia não consiste em um conjunto de informações, mas em um modo de ver
e tratar os problemas.

5.5 Tradicionalismo

A phronesis demanda experiência, essa só se encontra nos mais velhos. Daí a atenção que a
opinião destes merece nos variados problemas da vida.
A mentalidade que informa a jurisprudentia está sintetizada nesta frase do Digesto: “Não se
pode dar razão de tudo o que estabeleceram os antepassados.” A jurisprudentia trabalha com
resultados da experiência de várias gerações de juristas. Essa experiência é a garantia da solidez das
suas soluções. Seria leviano questionar sem razões fundadas.

6 CONCLUSÃO

Se a adequada compreensão de um fenômeno supõe o conhecimento da sua história, a


integral compreensão da ciência do direito ocidental passa pelo estudo da jurisprudentia romana.
Nesse sentido, mostra-se oportuno que as discussões de Epistemologia Jurídica passem por uma
determinação do estatuto teórico do saber jurídico ao longo da sua evolução histórica. Ocorre que as
categorias e os pressupostos da investigação epistemológica moderna mostram-se incapazes de dar
conta de experiência jurídica romana.
Um exemplo clássico dessa incapacidade de compreender a natureza do saber jurídico
romano é a interpretação fornecida por Kelsen. Na sua Teoria geral do direito e do estado. Ele
afirma: “Uma jurisprudência normativa tendo como objeto uma análise estrutural do direito como
sistema de normas válidas também é possível, assim como indispensável. Durante dois mil anos,
esta tem sido, de fato, a única abordagem intelectual do fenômeno do Direito, além da abordagem
puramente histórica; e não há nenhum fundamento razoável pelo qual devamos negar o nome de
‘ciência’ a essa tradição contínua de tratamento intelectual do direito.”
Kelsen deixa claro que a jurisprudentia romana (“nos últimos dois mil anos”, “única
abordagem intelectual”, “tradição contínua”) é uma ciência do direito “normativa”, ou seja, ocupa-
se em descrever o direito como sistema de normas válidas. Espera-se que a falsidade dessa
interpretação tenha sido demonstrada no corpo do artigo. Mas, dada a autoridade de Kelsen,
deixemos a palavra a Max Käser, um dos maiores romanistas do século: “Paulo (D. 50, 17, 1)
ensina com efeito: ‘o direito não é tirado da regra, mas a regra do direito’. Desse texto resulta
claramente que os jurisconsultos não viam de modo algum as regras como uma fonte autônoma do
conhecimento do direito; para eles, elas não faziam senão refletir o direito tal como ele se
manifestava nas soluções dos casos particulares obtidos pelo método casuístico.” Nunca é demais
repetir: o saber jurídico romano não consiste em uma disciplina voltada ao conhecimento de
normas. Para a jurisprudentia romana, o direito não é um conjunto de normas, mas “o bom e o
eqüitativo” realizado em um caso concreto.
A incapacidade das categorias epistemológicas modernas para darem conta do saber jurídico
romano nos leva à conclusão de que, se desejamos fazer um exame epistemológico adequado desse
saber, devemos lançar mão de outros esquemas conceituais.
O presente trabalho pretendeu apenas demonstrar a fecundidade da reflexão aristotélica
sobre a prudência na determinação da natureza do sabe jurídico romano.
Fica o desafio de buscar uma teoria que se aproxime ainda mais da experiência jurídica
romana do que aquela fornecida por Aristóteles.

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