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Valter Bracht
Recife/ Fevereiro/2004
Introdução
Como o tema está formulado na forma de pergunta, vou respondê-la, em tom um
pouco provocativo, da seguinte forma: cultura corporal, cultura de movimento ou cultura
corporal de movimento? Em princípio, qualquer um, desde que cultura, ou seja, desde que
se coloque o peso maior neste conceito. Com isso quero na verdade dizer, que o conceito
que, no meu entendimento, indica uma construção nova de nosso “objeto” é o de cultura. É
ele que melhor expressa a ressignificação mais importante e a necessária desnaturalização
do nosso objeto, que melhor reflete a sua contextualização sócio-histórica.
Com isso não quero dizer que é absolutamente indiferente a utilização da expressão
corpo ou movimento ou as duas. Mas, hoje, as palavras ou expressões corpo, movimento,
motricidade (atividade física – como é mais utilizada no âmbito das ciências naturais na
nossa área) embora possam ser vinculadas à epistemologias diversas, isoladamente não
permitem definir com a clareza necessária a vinculação com a cultura. Tanto a expressão
corpo como movimento exigem tratamento conceitual, no bojo do qual podem assumir um
significado que transcenda ou não sua conotação biológico-naturalista, e também, um
tratamento demarcatório (definições).
Assim sendo, além do trato conceitual sempre cabe uma questão demarcatória, seja
quando utilizamos a expressão corpo(ral) ou a expressão movimento. Se a EF trata da
cultura corporal, quais são as práticas humanas aí abarcadas? Se a EF trata da cultura de
movimento, quais são as práticas humanas aí abarcadas?
Kunz (1994, p.68) por sua vez e com base em Dietrich e Landau, afirma que a
Cultura de Movimento compreende “todas as atividades do movimento humano, tanto no
esporte como em atividades extra-esporte (ou no sentido amplo do esporte) e que
pertencem ao mundo do ‘se – movimentar’ humano, o que o homem por este meio produz
ou cria, de acordo com sua conduta, seu comportamento, e mesmo as resistências que se
oferecem a essas condutas e ações”.
1
Tenho clareza da precariedade dessa e de qualquer demarcação (definição).
Me parece que, embora possamos colocar novas necessidades de demarcação 2,
definições como a esboçada por Kunz (1994) cumprem bem a função de indicar de qual ou
quais fenômenos tratamos na EF.
Excurso sobre as razões para utilizar o termo cultura para designar o objeto da EF
Uma das razões para utilizar o termo cultura é a de que ela força uma redefinição da
relação da Educação Física com a Natureza e com seu conhecimento fundamentador. É
preciso superar um certo “naturalismo” presente historicamente na nossa área. Tudo na
nossa área era (em parte ainda é) considerado natural: o corpo é algo da natureza, as
ciências que nos fundamentam são as da natureza, a própria existência e/ou necessidade da
Educação Física é natural. Entender nosso saber como uma dimensão da cultura não
elimina sua dimensão natural mas a redimensiona e abre nossa área para outros saberes,
outras ciências (outras interpretações) e amplia nossa visão dos saberes a serem tratados.
Uma das consequências é ver as atividades físicas ou as práticas corporais (que
perfazem nossa cultura corporal, de movimento ou corporal de movimento) como
construções históricas, portanto não mera consequência da ordem natural, com sentidos e
significados advindos dos diferentes contextos onde são/foram construídos pelo homem.
Assim, por exemplo, a corrida como realizada no esporte atletismo, não é uma
manifestação apenas biológica do corpo, mas uma construção histórica com um
determinado significado social. Mas qual seu significado? Este significado é imutável?
Podemos alterá-lo, atribuir novos? Estas questões passam então a ser objeto também de
nossas aulas, pois temos a atribuição de propiciar aos nossos alunos que se apropriem dessa
manifestação cultural ( no seu sentido amplo), mas não apenas de forma a repeti-la e, sim,
de forma a permitir que participem dessa construção, para o que é fundamental que a
compreendam, que aprendam também a construir cultura (corporal, de movimento ou
corporal de movimento).
Outro ponto importante é que, sendo a transmissão da cultura aquilo que justifica o
empreendimento educativo (Forquin, 1993), se a Educação Física pretender se aliar ao
2
As definições nos levam a um eterno regresso, pois, nas definições aparecem novos termos que reclamam,
por sua vez, novas definições. Na verdade, as definições são instrumentos úteis apenas para uma delimitação
provisória dos fenômenos que queremos compreender e/ou explicar.
esforço educativo e se afirmar enquanto componente curricular (pelo menos na forma
dominante atual de disciplina), ela precisa identificar a parcela da cultura, portanto o saber
ou os saberes que será sua tarefa tratar. A corporeidade (o corporal) e a movimentalidade (o
movimento), embora elementos antropológicos fundamentais, por si só não justificam a
Educação Física enquanto disciplina. Indicam para a educação temas fundamentais, que
necessariamente precisam ser considerados pela teoria pedagógica. Quando trabalhamos
com o conceito de cultura corporal de movimento (minha preferência), a movimentalidade
e a corporeidade estão ali presentes de uma determinada forma, diferente da Matemática,
do Português3, da Educação Artística. As manifestações da cultura corporal de movimento
significam (no sentido de conferir significado) historicamente a corporeidade e a
movimentalidade – são expressões concretas, históricas, modos de viver, de experenciar, de
entender o corpo e o movimento e as nossas relações com o contexto – nós construímos,
conformamos, confirmamos e reformamos sentidos e significados nas práticas corporais.
Quando reivindicamos uma especificidade para a Educação Física enquanto disciplina do
currículo escolar a partir do conceito de cultural corporal de movimento, não buscamos o
seu isolamento, mas sim dizer qual sua contribuição específica para a tarefa geral da escola.
É absolutamente necessário que a Educação Física esteja aberta a dar sua contribuição para
a tarefa geral da escola, e isso também, a partir de outras formas de organização curricular
que não a da forma de disciplinas (currículo por atividades, por projetos, etc.).
Volto-me assim, para a questão para mim mais importante que é a conceitual. Uma
das críticas que se faz à expressão cultura corporal (o problema estaria no corporal) é a de
que ela não contempla a especificidade da EF que seria o movimento. Outra, endereçada
por Kunz (1994) ao Coletivo de Autores (1992), é a de que a expressão corporal seria
redundante, pois toda cultura é, em última instância corporal, além de indicar uma
vinculação maior a uma visão mecanicista (das ciências naturais) de nosso objeto. É nesta
objeção ao termo corporal que gostaria de me concentrar.
3
Nogueira (2003) lembra que toda educação é corporal e que a leitura também é incorporada.
Para discutir esta questão queria iniciar pela tese da importância da história dos
conceitos. Vou valer-me inicialmente das idéias de Gumbrecht (1998) em A modernização
dos sentidos. Segundo o autor, as histórias de determinados conceitos podem ser escritas
tanto com uma motivação predominantemente sócio-histórica (como contribuições ao
projeto da história das mentalidades) quanto com o interesse mais filosófico de esclarecer
as implicações veladas e recuperar o potencial semântico esquecido de noções no uso
sistemático e corrente. A tentativa de enfatizar a segunda dessas duas funções pode ser
rotulada de função genealógica da história conceitual.
Mas mesmo na Grécia, como observa o autor, “já cedo, ou tarde, a antiga separação
viria cobrar o troco”. Com a doutrina de Platão, “nosso filósofo estabelece um verdadeiro
abismo entre os homens e as coisas divinas”.
Qual o preço que teríamos que pagar para superar a separação originária, que a
partir dos Gregos vai constituir a cultura ocidental em cuja base estão a diferenciação entre
Homem (cultura) e Natureza, e seus correspondentes sujeito-objeto e corpo-mente
(espírito)? O que seria uma superação da separação/distinção originária? Seria
reconciliação, ou retorno a uma unidade primeva?
O entendimento moderno de corpo e os consequentes entendimentos de movimento
ou atividade física vão sofrer inflexões ou ser rivalizados a partir de perspectivas teóricas
que afetam não diretamente a visão de corpo, mas as bases desse entendimento ou
conhecimento, vale dizer dos seus princípios epistemológicos. É interessante observar pelo
menos dois desses movimentos: o da fenomenologia com M.-Ponty por exemplo, e mais
recentemente a biologia do conhecimento de Humberto Maturana.
E agora, para ilustrar, também uma pequena citação de Maturana (1998, p.18):
Quais as novas metáforas que permitem visualizar um novo tipo de relação entre
corpo e mente (natureza e cultura)? Eagleton (1998, p.75) observa que o corpo é criativo, e
se dispuséssemos de uma linguagem que captasse de modo adequado essa criatividade
corporal talvez nunca tivéssemos precisado do discurso da alma” (mudar a linguagem é
parte do processo de mudar o mundo, dizia Paulo Freire).
E mais: como reagir a uma provocação como a de Tomaz T. da Silva (2000, p.11):
Segundo este autor, a pergunta não é mais, quem é o sujeito mas, queremos, ainda, ser
sujeitos? Quem precisa de sujeito? Quem tem nostalgia do sujeito, e, mais radicalmente,
talvez, quem vem depois do sujeito?
Fiz esse pequeno percurso para, voltando à pergunta da mesa, dizer que,
conceitualmente o problema está longe de estar resolvido se usarmos ou deixarmos de usar
4
É preciso ter cuidado para não se deixar seduzir por uma perspectiva internalista do desenvolvimento da
racionalidade, ou das racionalidades.
5
Ghiraldelli Jr (2001) referindo-se à posição de Richard Rorty acerca da dicotomia “realidade versus ficção”,
lembra que o mesmo “abandona” a dicotomia, e não faz a opção por um dos lados desta, pois, se assim fosse,
a dicotomia seria mantida.
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Doel (2001, p. 97) expressando a posição fundamentada no desconstrucionismo e na esquizoanálise, refere-
se a esta questão da seguinte forma: “A desestabilização em movimento que atravessa o (lugar do) sujeito não
a expressão corpo ou a expressão movimento7 ou mesmo ambos. O problema é mais
fundamental. Está ancorado nas bases da cultura ocidental, ele afeta as bases de todo o
nosso conhecimento – atualiza os limites da nossa paisagem cognitiva atual. Não me parece
colocada, no momento, outra solução do que entender corpo e os movimentos que realiza
como contendo, como expressando a ambiguidade (até o momento incontornável) sujeito-
objeto (natureza-cultura) – ambiguidade presente na formulação de Bourdieu de que o
sujeito de quem falamos é esse objeto para quem existem objetos. O corpo é um
personagem histórico com dupla “personalidade”.
Referências
BORNHEIM, G. Crise da idéia de crise. In: NOVAES, A. (Org.). A crise da razão. Rio de
Janeiro: MINC-Funarte/Companhia das Letras, 1999, p. 47-66.
DOEL, M. Corpos sem órgãos: esquizoanálise e descontrução. In: SILVA, T.T. da (Org.).
Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 77-
110.
nos faz retornar a uma visão amorfa, indiferenciada ou homegênea (um estado de confusão empírica). Em vez
disso, ela nos leva para além do molar e do molecular, em direção à alteridade e à singularidade”.
7
Kunz (1994) também compartilha dessa visão e por isso mesmo, faz um grande esforço para desenvolver
uma concepção de movimento coerente com sua visão de educação.
GUMBRECHT, H. U. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
OLIVEIRA, M. A. T. de. Existe espaço para o ensino da Educação Física na escola básica?
Pensar a prática. Goiânia, 2: 1-23, jun./jul.,1998.
Valter Bracht
Recife/Fevereiro/2004