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OS MORTOS VIVEM
Autor
CLARK DARLTON
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
VITÓRIO
O regente de Árcon descobre a verdade —
...Gucky ganha um novo amigo.
— A solução mais simples seria matá-los todos, talvez com veneno de rato.
Reginald Bell, amigo e representante de Rhodan, fechou o punho e bateu na pesada
mesa de carvalho que ficava junto à janela. Do lugar em que se encontrava tinha uma
visão ampla sobre Terrânia, sede do governo mundial.
— Isso mesmo! Veneno de ratos — piou Gucky, que estava agachado em cima da
mesa.
Perry Rhodan sacudiu devagar a cabeça e contemplou o oceano de pedra das
construções erguidas em meio a uma área fértil, que já fora tudo menos isso. Essa área
ficava na região que antigamente era conhecida como o deserto de Gobi.
— Nosso problema não será resolvido pela violência, amigos. Isso só nos traria
novos inimigos. Se essa gente não puder concordar com nossos planos e nossa atuação,
teremos de sugerir-lhes que procurem outro lugar para morar. Na Terra não há lugar para
eles, pois este planeta pertence à humanidade unida, e a ela não pertencem os indivíduos
que não queiram integrar-se.
— Será que terão de fixar-se na Lua? — perguntou Bell em tom admirado, lançando
um olhar encorajador para Gucky, seu amigo do peito. Naturalmente não estava falando
sério quando aludiu à possibilidade do envenenamento, mas de qualquer maneira sua
atitude parecia mais radical que a de Rhodan. — Acho que até Vênus ainda ficaria muito
perto.
— Vamos despachá-los para uma via láctea mais próxima — sugeriu Gucky. — Ali
não poderão fazer mal a ninguém.
Mais uma vez Rhodan sacudiu a cabeça.
— Vocês caem de um extremo no outro. Procurem uma solução mais cabível para o
caso. Tentem refletir. Os chamados colonos livres não querem submeter-se às nossas
determinações. Não reconhecem o governo mundial. Vocês acham que devemos matar
algumas dezenas de milhares de pessoas, somente porque alguns fanáticos não sabem
raciocinar logicamente? Nada disso; devemos fazer exatamente o contrário. Vamos ajudá-
los.
— Bem, bem — disse Gucky e lançou um olhar de tédio para o teto, como se por lá
ainda pudesse fazer alguma descoberta interessante. — Devemos prestar auxílio aos
coitados dos nossos inimigos...
— O que pretende fazer? — perguntou Bell inclinando-se para a frente, em direção
a Rhodan, que estava sentado bem à sua frente. Gucky estava agachado um pouco ao
lado, pois como telepata já conhecia a disposição que Bell tinha de engajar-se a favor de
Rhodan.
— Serão expatriados — disse Rhodan. — Colocarei à sua disposição uma das
grandes naves esféricas, dou-lhes uma tripulação de duzentos homens e mando que sigam
viagem. Poderão deixar a Terra e procurar outro planeta, onde farão e deixarão de fazer o
que melhor lhes aprouver Não nos preocuparemos mais com eles. Não acha que é a
melhor solução e a mais simples?
Bell acenou lentamente com a cabeça, mas Gucky disse em tom estridente:
— Continuo a achar que seria melhor envenená-los, mas afinal não sou nenhum
monstro. Concordo com qualquer coisa, desde que consigamos livrar-nos dos rebeldes.
Só faço votos de que não se encontrem com nenhum saltador ao qual possam revelar a
posição da Terra.
— Quando isso acontecer, não se recordarão da mesma — prometeu Rhodan ao
perceber que seus amigos concordavam com a decisão que acabara de tomar. Fora mais
fácil convencer o maciço Bell com os cabelos cortados à escovinha que ao teimoso
Gucky, um rato-castor extremamente inteligente e um dos mutantes mais capazes. —
Mandarei que nossa proposta seja apresentada aos porta-vozes dos colonos livres.
— Por que você vive falando em colonos livres? Será que os outros colonos da
Terra não são livres pelo simples fato de se submeterem ao governo mundial? — Bell
apoiou o queixo nas mãos. — Será que nisso não existe algum paradoxo?
— São eles mesmos que se designam assim — explicou Rhodan. — Em nossos
registros oficiais estão consignados sob a designação de Colonos Livres Associados. Ou,
abreviadamente, CLA.
— Que sensato! — disse Bell com um sorriso, olhando para Gucky. — Que acha
disso, seu roedor de cenouras?
O rato-castor exibiu seu único dente, revelando estar disposto para uma
brincadeirinha, pois não levara a mal a alusão às suas tendências vegetarianas.
— Nada mau, Bell, nada mau. A abreviatura poderia dar a entender que se trata de
um novo apelido para você...
Bell procurou atingir Gucky, mas este foi mais rápido. Teleportou-se para a
extremidade oposta da mesa, onde estaria em segurança. Em seus olhos brilhantes lia-se a
intenção de utilizar a terceira faculdade parapsicológica de que dispunha, a telecinese, se
Bell não ficasse bem comportadinho.
Acontece que Bell não estava com nenhuma vontade de ser atirado para o teto. Fez
um gesto ligeiro com a mão.
— Continuemos amigos, Gucky. Não vamos brigar por uma tolice destas. O que
pretende fazer mesmo, Perry?
Gucky voltou ao lugar anterior, completamente tranqüilizado.
Rhodan disse:
— A tripulação já está sendo selecionada. Daqui a algumas semanas, a nave poderá
decolar, e com isso nos livraremos das preocupações com os rebeldes; é ao menos o que
espero. Quem não estiver satisfeito com as condições reinantes na Terra poderá seguir
nessa nave.
— Tomara que não sejam muitos — resmungou Bell, piscando os olhos. — Senão
enviaremos uma frota.
— Dificilmente. O que houve, Gucky?
O rato-castor manteve a cabeça inclinada, numa posição esquisita: perscrutava seu
interior. Evidentemente estava recebendo uma mensagem telepática. Também era
possível que por pura coincidência tivesse captado alguma coisa em que estava muito
interessado. Nesse meio tempo, Rhodan também se transformara num telepata, mas via-
se obrigado a confessar que neste ponto o rato-castor tinha uma superioridade tremenda
sobre ele. Rhodan geralmente só conseguia captar pensamentos enfeixados e direcionais,
e mesmo estes apenas em condições extremamente favoráveis. Quanto a Gucky, este
sabia localizar e compreender qualquer impulso cerebral. Mesmo que esse impulso não se
destinasse a ele.
— Um instante! — piou Gucky e esperou. Subitamente levantou os olhos. — Daqui
a pouco a central de comunicações vai chamá-lo, Rhodan. Trata-se de uma mensagem
importante vinda do espaço. Não tenho a menor idéia do que se trata.
Rhodan contemplou a tela vazia que cobria a parede lateral da sala. Essa tela ligava-
o diretamente ao centro de rádio de Terrânia. Se quisessem alguma coisa dele, usariam...
Já estava chegando!
De repente a tela iluminou-se e formou uma imagem muito real. Um homem
sentado atrás da mesa de controle olhava para o interior da sala como se a parede tivesse
desaparecido e, com ela, todos os muros divisórios. As câmaras e os microfones ocultos
ligaram-se automaticamente. A comunicação entre o gabinete de Rhodan e a central de
rádio acabara de ser estabelecida.
— Há uma mensagem importante vinda da Lotus, chefe. O comandante, Capitão
Markus, expediu o sinal de emergência. A Lotus está regressando à Terra. Poderá chegar
ainda hoje. A comunicação foi interrompida antes que eu pudesse confirmar.
O rosto de Rhodan tornou-se muito sério.
— Não tem qualquer outra indicação, Miller?
— Nenhuma, chefe. A mensagem veio sob a forma de um impulso concentrado cuja
duração não foi superior a um décimo de segundo. Não tive oportunidade de realizar a
determinação goniométrica.
— Obrigado — disse Rhodan. — Continue em recepção e avise-me imediatamente
caso a Lotus volte a chamar.
— Então? — perguntou Bell, que também parecia muito preocupado. — O que
significa isso?
— Isso significa que a quatro mil e trezentos anos-luz daqui ou, mais precisamente,
no Sistema de Heperés, alguma coisa não anda bem. Não demoraremos em saber o que é.
Talvez saibamos ainda hoje.
— E os CLA? — chiou Gucky.
— Isso tem tempo, Gucky. Não devemos dar-lhes tanta importância. No momento,
só o comandante Markus é importante para mim.
Bell levantou-se.
— Vou ao espaçoporto. Afinal, Markus não poderá levar tanto tempo para percorrer
estes miseráveis quatro mil e trezentos anos-luz. É apenas um pulo de gato pelo
hiperespaço.
Gucky sacudiu-se e efetuou uma teleportação que o levou ao chão.
— Não sei por que Bell sempre tem de revelar tamanha insensibilidade, falando de
gatos na minha presença. Será que ninguém lhe ensina que isso não se faz?
Rhodan seguiu os dois com os olhos, mas em seu rosto não havia o sorriso
costumeiro para o qual nunca deixava de ter tempo quando os dois amigos se pegavam.
E foi o que aconteceu, no corredor, e não no gabinete de Rhodan.
***
***
***
O platô erguia-se da planície coberta pela mata que se estendia até as cercanias da
cidade de Kuklon. Não havia nenhuma estrada que conduzisse para lá, apenas caminhos
solitários e trilhas secretas. Estas ultimas, conforme as circunstâncias, podiam ser
utilizadas por certos veículos, mas bastava que chovesse por mais de dois dias para que
até mesmo as esteiras mais largas atolassem na lama.
Não havia nenhum arcônida ou saltador que conhecesse a situação do platô. Era ali
que residia a misteriosa governante dos volatenses, deusa e rainha ao mesmo tempo. O
local servia de palco para certos ritos estranhos.
As residências dos nativos encontravam-se sob a proteção das copas das árvores, e
eram feitas de um material semelhante ao usado pelas abelhas. Às vezes usavam a
madeira, às vezes uma espécie de fibra, outras vezes o barro endurecido misturado com
palha. As entradas pareciam tocas iguais aos buracos das colméias das abelhas; apenas
eram maiores.
Esse platô de rocha, oculto e praticamente inacessível a quem não o conhecesse, era
a verdadeira capital do mundo de Volat.
Numa das cabanas de aparência primitiva, Fellmer Lloyd achava-se estendido num
leito baixo, segurando a mão de Kuri, que estava sentada sobre a cama, contemplando-o.
Não podia ser considerada bonita na verdadeira acepção da palavra, pois sua formação
óssea chamava demais a atenção; mas seus grandes olhos escuros com um ligeiro traço
mongólico compensavam esse efeito. Tinha a pele avermelhada, e o cabelo cor de cobre.
Era filha de um mercador galáctico.
Fellmer Lloyd lia seus pensamentos como quem lê num livro aberto. Era um
localizador capaz de captar e analisar os modelos das ondas cerebrais. Além disso, era
telepata, o que lhe permitia reconhecer perfeitamente as emoções de outros seres. Sabia
que Kuri gostava dele.
— Estamos em segurança, Fellmer — disse Kuri, dando um tom firme à voz. —
Aqui ninguém nos encontrará.
Fellmer confirmou com um gesto. Embaixo da coberta leve de fibra, seu corpo largo
e musculoso quase chegava a parecer pequeno e débil.
— Ainda bem. Apenas gostaria de saber se o comandante Markus recebeu meu
pedido de socorro e o retransmitiu.
— Antes de mais nada você tem de curar-se — ponderou a moça.
Fellmer sacudiu a cabeça.
— Não estou doente, meu bem. Apenas fui atingido pelo raio de uma arma de
choque. Daqui a um ou dois dias, estarei em condições de andar. Precisamos fazer
alguma coisa.
Kuri levantou os olhos. Alguma coisa se moveu na entrada da cabana. Alguém
entrou.
Era um volatense. Kuri recebeu a estranha criatura com um sorriso amável, pois
sabia que a mesma nunca lhe faria mal. As antenas que encimavam os olhos rígidos
moviam-se, mas Kuri não ouviu nada. Lançou um olhar indagador para Fellmer que, de
repente, aguçou o ouvido e ergueu o corpo.
— O inimigo perdeu a pista e voltou à cidade — disse o volatense.
Só Fellmer pôde ouvir e compreender a voz. Um sorriso surgiu em seu rosto.
— Obrigado, amigo. Vocês nos prestaram um grande serviço.
— A grande mãe, a onisciente, ordenou que vocês fiquem conosco tanto tempo
quanto quiserem.
— Ainda hoje poderei sair da cama. Por mais que gostasse de aceitar o convite,
vejo-me obrigado a recusar. Espero meus amigos, e estes nunca me encontrariam aqui.
O volatense aproximou-se.
— Seus amigos são como você? — perguntou para certificar-se. — São homens
iguais aos que entendem a nossa voz?
— São iguais por fora — disse Fellmer, esquivando-se a uma resposta direta.
— Também vêm do grande vazio?
Fellmer sabia que o grande vazio era o espaço cósmico. Os volatenses não
praticavam a navegação espacial.
— Sim, se quiserem ajudar-me terão que vir de lá.
O volatense acenou lentamente com a cabeça.
— Então são eles — disse.
Fellmer sobressaltou-se.
— Quem?
— Ontem de noite surgiu uma pequena nave redonda vinda do grande vazio.
Acontece que foi atacada e derrubada. Acabamos de receber a notícia.
— Uma nave redonda?
— Isso mesmo; uma nave redonda e achatada.
Fellmer assustou-se. Só poderia ser uma Gazela, uma nave do tipo da que ele
possuía.
Rhodan...
— O que aconteceu com os ocupantes da nave? — perguntou.
— Não sabemos; talvez estejam mortos.
Fellmer ergueu-se abruptamente e colocou os pés no chão. Quando se viu de pé
quase caiu, pois ainda se sentia muito fraco. As conseqüências do choque ainda não
haviam sido superadas. Num gesto resignado sentou-se à beira da cama. Kuri o ajudou.
— Ainda estou muito fraco — confessou. — Mas preciso saber o que aconteceu
com as pessoas que se encontravam na nave derrubada.
O volatense fez um gesto afirmativo.
— Não demoraremos em saber. A mãe onisciente mandou que alguns dos nossos
penetrassem na grande floresta para procurar sua pista. Se estiverem vivos, nós os
encontraremos.
Fellmer Lloyd deixou-se cair na cama.
— Vocês têm de encontrá-los! — disse com um gemido e fechou os olhos.
O volatense afastou-se sem dizer mais nada. Kuri permaneceu em sua companhia.
Lançou um olhar carinhoso para o rosto pálido do terrano.
Na Terra, a vida havia evoluído através de milhões de formas, a partir de uma única
célula-mater. A conclusão final era a de que a evolução paralela da vida em todo o
Universo só podia ser expressa através da respectiva potência.
E justamente essa conclusão revelara-se falha.
Nos diversos planetas, os terranos encontraram seres estranhos e formas
inteiramente novas de evolução, mas o princípio da reprodução, da alimentação e da
morte sempre se assemelhavam.
E os purrenses não constituíam exceção.
Viviam num planeta quente coberto de matas situado praticamente no centro da Via
Láctea. Dispunham de uma inteligência limitada e, com os prós e contras, poderiam ser
considerados uma raça feliz. Pelo menos o foram até que acabaram sendo descobertos
pelas verdadeiras inteligências. Dali em diante, a felicidade chegou ao fim.
Foram principalmente os mercadores galácticos que perceberam o valor dos
purrenses, que eram gatos grandes e robustos, fáceis de serem influenciados por via
sugestiva. Se recebessem uma ordem hipnótica, eles a executavam, houvesse o que
houvesse; nada conseguia desviá-los do objetivo. Os dentes robustos e as garras afiadas
faziam com que se prestassem principalmente à vigilância de prisioneiros e à captura de
fugitivos.
Cinco purrenses foram destacados para capturar os astronautas da nave derrubada,
se os mesmos ainda estivessem vivos. E caso fosse necessário, matá-los. Deslocando-se
num silêncio total através da selva noturna, seguiam seu instinto infalível, que nunca
permitia que perdessem uma pista. Seus corpos ágeis, que mediam mais de dois metros
de comprimento, desviavam-se de todos os obstáculos. Seus olhos de felino rompiam a
escuridão. A ordem hipnótica transformara essas criaturas, originariamente tão pacatas,
em feras perigosíssimas.
No momento em que os fugitivos resolveram fazer uma pausa para descansar,
Gucky voltou a notar os impulsos cada vez mais intensos dos seres desconhecidos que os
perseguiam.
— Não estou gostando — cochichou para André Noir, que estava sentado a seu
lado. — Nos pensamentos das criaturas que estão atrás de nós, há alguma coisa que me
assusta. Minha mente se rebela diante da perspectiva de um confronto com os
perseguidores. Não é propriamente medo. Nunca me aconteceu uma coisa dessas.
Rhodan ouvira atentamente. Sacudiu a cabeça.
— Você nunca teve medo em toda sua vida, Gucky — disse em tom pensativo.
Dirigiu-se a Noir. — O que é que o senhor está sentindo? Também está com medo?
— Não; talvez poderia dizer que é uma certa aversão. Os perseguidores são
criaturas medonhas. O pensamento de capturar-nos é tão intenso como se vivessem
exclusivamente para cumprir essa tarefa. Seus cérebros trabalham apenas para esta
finalidade; todas as outras funções foram “desligadas”.
Gucky mexeu-se, bastante inquieto, e se levantou.
— Vamos dar o fora. Não quero...
Rhodan continuou sentado.
— O que é que você não quer? — perguntou em tom amável, mas em sua voz havia
um ligeiro tom de censura. — Gucky, você não é mais o mesmo.
O rato-castor olhou para a copa da árvore mais próxima.
— Lá em cima estaríamos em segurança. Posso levar todos para lá. A corrida pelo
mato deve ser inútil.
— Talvez você tenha razão — admitiu Rhodan. — Acontece que, como sabe, por
enquanto vejo-me obrigado a não recorrer aos seus dons sobrenaturais. Por enquanto
devem pensar que somos gente normal, não que somos feiticeiros. Mais tarde...
Calou-se. Bem perto ouviu-se um farfalhar quase imperceptível.
Gucky encostou-se ao tronco de uma árvore. Os pêlos da nuca arrepiaram-se. Face
ao elevado grau de concentração em que se mantinha, concluía-se que estava preparado
para a qualquer momento teleportar-se a um lugar seguro. A seu lado, Noir perscrutou
atentamente a escuridão. Rhodan mantinha-se imóvel.
— Já chegaram muito perto. Seria preferível continuarmos, pois não quero
encontrar-me com eles no escuro. De dia as coisas são diferentes. Se conseguirmos fazer
com que só nos alcancem ao amanhecer, será mais fácil lidarmos com eles.
— É verdade! — apressou-se Gucky em dizer e imediatamente se pôs a caminhar.
Noir seguiu-o cauteloso. Rhodan ficou na retaguarda, seguindo os amigos e olhando
sempre para trás. Os ruídos haviam cessado. Era evidente que os perseguidores, fossem
eles quem fossem, não dispunham do dom da telepatia ou de outras faculdades
parapsicológicas.
As horas restantes da noite passaram-se numa tensão quase insuportável. Rhodan
nunca vira o rato-castor tão nervoso e com tamanha disposição para fugir a qualquer
momento. Seu instinto realmente o avisava da existência de um perigo inconcebível, de
cuja natureza Perry e Noir não tinham a menor idéia. Por isso, esses dois não sentiam a
ameaça tanto quanto Gucky.
O céu começou a clarear ao leste e as sombras da noite dissolveram-se rapidamente.
O calor aumentou.
Atravessaram uma grande clareira e pararam embaixo das primeiras árvores.
— Já que queremos esperar os misteriosos perseguidores, o melhor lugar será este
— disse Rhodan e olhou em torno. — A vegetação é bastante densa para dar-nos
cobertura. Por outro lado, o capim que cobre a clareira é tão baixo que não poderá
esconder os perseguidores. Por isso seremos capazes de vê-los. O que acha, Gucky?
O rato-castor agachou-se e fungou cansado.
— Você é um irresponsável porque me faz correr desse jeito quando seria capaz de
transportar-me à face oposta do planeta com um único salto. Minhas perninhas...
— Já sei — disse Rhodan com um sorriso bonachão. — Exigimos demais de suas
perninhas, mas não posso fazer nada para evitar isso. Ainda estão muito longe?
Estava aludindo aos perseguidores. Gucky apontou na direção de onde tinham
vindo.
— Não estão longe. Felizmente não têm muita pressa. Mas não perdem a pista.
Devem ter um faro excelente.
Rhodan parecia surpreso.
— Um faro excelente? Quer dizer que seguem nossa pista que nem um cachorro?
— Isso mesmo; que nem um cachorro ou que nem um felino.
— Ah! — fez Noir e lançou um olhar pensativo para o rato-castor. — Que nem um
gato?
O sorriso de Rhodan tornou-se mais intenso.
— Já começo a desconfiar por que você tem tanto medo dos perseguidores, Gucky.
Talvez sejam mesmo gatos; e todo mundo sabe que você não aprecia essa espécie.
— Ao menos não gosto dos gatos grandes — disse Gucky. — Os gatos têm alguma
coisa contra mim.
Noir olhou para a clareira.
— Será que realmente mandaram animais atrás de nós? Por que eles mesmos não
saem em nossa perseguição? Não seria muito mais fácil?
— Não — disse Rhodan, seguindo o olhar de Noir. Por enquanto nada se movia em
meio ao capim alto. — Não conhecem a mata e não sabem com quem estão lidando. O
senhor não disse que os cérebros dos perseguidores só se ocupam dessa tarefa e parecem
estar sujeitos a alguma forma de condicionamento? Pois é isso. Os gatos, se é que
realmente são gatos, foram treinados para executar essa tarefa. Bem; veremos...
Subitamente Gucky ergueu o corpo. Sem aguardar permissão teleportou-se com um
ligeiro salto para um galho grosso da árvore que ficava atrás dele. Encontrava-se a uma
altura de quatro metros e olhava para a clareira. Seu pêlo continuava arrepiado. Soltou
um grito estridente:
— Estão chegando! Realmente são gatos; que bichos enormes... Têm dois metros de
comprimento e um metro e meio de altura.
Rhodan e Noir só perceberam o movimento do capim. Estavam num lugar muito
baixo para poderem ver mais que isso. Não perderam tempo: subiram na árvore e logo se
viram ao lado de Gucky. O galho era bastante forte para suportar o peso dos três.
Na verdade, cinco gatos gigantescos atravessavam a clareira a menos de duzentos
metros do lugar em que se encontravam. Tinham o nariz grudado ao chão e deixavam-se
levar pelo instinto infalível. Rhodan assustou-se ao lembrar-se de que estavam
desarmados. Por outro lado, não lhe parecia recomendável fugir com o auxílio de Gucky.
Os gatos teriam bastante inteligência para informar seus chefes sobre o fenômeno
inexplicável, e era o que Rhodan queria evitar.
— Daqui a três minutos, estarão embaixo da árvore — chiou Gucky em tom
exaltado. — Precisamos fazer alguma coisa.
— Talvez não saibam subir em árvores — disse Noir.
— Sabem, sim! — retrucou Gucky em tom indignado. — Só lhes garanto uma
coisa: se fizerem isso, dou o fora. Vocês que façam o que quiserem com essas feras. Não
quero ser estraçalhado por elas.
Nunca ouviram Gucky falar dessa forma.
O rato-castor era um “sujeito” valente, que não recuava diante de nada. O que teria
acontecido com ele? Seria o pavor instintivo que sua raça sentia pelos gatos?
— Quem foi que lhe disse que não pretendemos defender-nos, Gucky? — falou
Rhodan sem tirar os olhos dos gatos. — Se quiser, pode começar agora. Mas faça-me o
favor de agir de forma a não provocar suspeitas.
Os pêlos da nuca de Gucky grudaram-se à pele, como se estivessem obedecendo a
um comando. O dente roedor fez uma débil tentativa para aparecer à luz do dia, mas a
tentativa não foi bem sucedida. Subitamente Rhodan e Noir viram uma rocha solta que se
encontrava a menos de vinte metros subir ao ar. Subiu tanto que mal se podia vê-la,
sofreu um ligeiro desvio lateral e precipitou-se em direção ao solo.
Ninguém notou a rápida correção de rota realizada por Gucky.
A pedra caiu do céu como se fosse um meteorito. A pontaria fora correta. Antes de
os felinos perceberem o que estava acontecendo, dois deles foram comprimidos para
dentro do solo e tiveram morte instantânea.
Os três gatos restantes espalharam-se apavorados, mas recuperaram o autocontrole
com uma rapidez espantosa. O fenômeno era totalmente inexplicável para seus cérebros,
e por isso nem procuraram descobrir-lhe a causa. Ao que parecia, eram de opinião que a
queda da pedra não tinha qualquer relação com as pessoas perseguidas. Dois dos
companheiros haviam sido mortos, mas três purrenses seriam suficientes para localizar os
desconhecidos e colocá-los fora de ação.
Voltaram a seguir a pista.
— Isso não teria sido necessário — cochichou Rhodan para o rato-castor. — Por
que teve que matá-los?
— Se a pedra tivesse caído devagar, eles teriam suspeitado de alguma coisa — disse
Gucky, que não demorou em encontrar uma desculpa. — Talvez pensem se tratar de uma
estrela cadente.
— Essa não é a pior piada que você já soltou — retrucou Rhodan e observou os três
gatos que se aproximavam metodicamente da beira da mata. — Mas não posso deixar de
confessar que também teria medo deles se fosse um rato.
— Não sou um rato como qualquer outro — disse Gucky em sua defesa e dispôs-se
a uma fala mais longa, mas viu-se interrompido por Noir.
— Acabam de farejar-nos. Já sabem que estamos em cima da árvore.
Os três purrenses chegaram ao destino. Os olhos verdes e reluzentes olhavam para
os fugitivos. Os três perseguidos encontravam-se bem perto, no galho mais baixo, e
aparentemente os fixavam com um medo terrível.
Acontece que um purrense hipnotizado não sabe o que é compaixão.
No instante exato, Gucky levantou a barreira telecinética. Um dos gatos esbarrou na
mesma em meio ao salto e caiu ao solo com um chiado furioso. Batera no obstáculo
invisível enquanto se encontrava no ar.
Antes que o gato pudesse preparar o segundo salto, aconteceu uma coisa estranha,
para a qual no primeiro instante não houve qualquer explicação.
No meio da mata, ouviu-se um “bum” abafado; o gato, que se dispunha a saltar,
estremeceu e caiu lentamente. Executou alguns movimentos convulsivos com as pernas e
imobilizou-se.
Ao que tudo indicava estava morto.
Rhodan esqueceu-se dos dois gatos que ainda restavam e procurou enxergar através
da vegetação que se estendia ao leste. Não ouviu qualquer som, mas os órgãos telepáticos
captaram alguns fracos impulsos mentais.
Eram volatenses!
O penúltimo dos gatos deu alguns saltos gigantescos em direção aos arbustos mais
próximos. Porém foi atingido pelos atiradores invisíveis, caindo ao chão com um chiado
agudo. Também estava morto.
O último gato fugiu em carreira desabalada.
Rhodan esqueceu-se dos volatenses e gritou para Gucky:
— Não o deixe escapar, mas não o mate. Precisamos descobrir quem são as pessoas
que lhe dão ordens. Será que consegue segurá-lo? Enquanto isso eu me ocupo com os
nossos aliados inesperados.
— Farei o que você pede, por mais difícil que seja — chiou Gucky e seus olhos
seguiram o gato que se afastava em saltos gigantescos. — Vou prender o bicho.
Rhodan e Noir desceram da árvore e levantaram as mãos em direção à mata espessa.
Sabiam que os seres que lhes haviam prestado auxílio os viam e não deixariam de
compreender o gesto.
Ouviram um farfalhar; três volatenses saíram para a clareira. Suas mãos seguravam
zarabatanas, que não estavam apontadas para Rhodan e Noir.
— Somos amigos — disseram em sua linguagem inaudível. — A mãe onisciente
lhes envia seus cumprimentos.
— Ficamo-lhes muito gratos — disse Noir. — Os gatos nos estavam deixando num
aperto.
— Costumam ser chamados de purrenses — informou um dos volatenses. — São
servos dos senhores de nosso mundo e já estraçalharam muitos dos nossos. São
verdadeiras feras.
— O último deles não escapará ao castigo; ainda não o matamos porque precisamos
de algumas informações. Será que vocês conhecem um amigo nosso? Deve estar neste
mundo. Seu nome é Fellmer Lloyd.
Era uma pergunta repentina, mas Noir não estava disposto a perder muito tempo. A
resposta não foi menos abrupta.
— Está conosco e espera por vocês.
Rhodan suspirou aliviado. Adiantou-se e estendeu a mão para os três seres
estranhos. A mão foi apertada, e com isso a aliança entre as inteligências desiguais ficou
definitivamente selada.
Neste meio tempo, Gucky saltara da árvore e caminhava gravemente com seus
passos balouçantes pela clareira coberta de capim, onde o último dos purrenses achava-se
imóvel, aguardando o destino que lhe estava reservado. Os fluxos telecinéticos expedidos
pelo rato-castor o mantinham preso ao chão. Um brilho malévolo enchia os olhos
esverdeados, mas nas camadas mais profundas notava-se o medo que aquela criatura
sentia pelo poderoso adversário que o subestimara de forma tão imperdoável.
Quanto a Gucky, este já havia vencido o medo. Sentiu certa satisfação em colocar-se
diante do inimigo preso e deliciar-se com a visão do mesmo. Ele, apenas um grande rato,
tinha em seu poder um perigoso felino. Era uma pena que seus companheiros de raça do
planeta Vagabundo não pudessem vê-lo, embora fosse provável que nem soubessem o
que vinha a ser um gato.
Rhodan, Noir e os três volatenses aproximaram-se. Estes últimos mantinham suas
zarabatanas em posição, mas Rhodan tranqüilizou-os. Explicou que a essa altura a fera
era totalmente inofensiva, incapaz de fazer qualquer coisa a quem quer que fosse. Após
isso, o rato-castor foi alvo de uma respeitosa admiração, e isto evidentemente lhe fazia
muito bem.
— Noir — disse Rhodan — procure tirar alguma coisa desse purrense. Pergunte
quem lhe dá ordens, de onde veio e tudo que possa ser de interesse para nós.
Provavelmente terá de remover o bloqueio hipnótico colocado em torno do cérebro do
animal.
Foi mais fácil do que pensavam.
Uma vez libertado do comando hipnótico, o purrense transformou-se na criatura
mais pacata que se poderia imaginar. Não soube informar muita coisa, mas o grupo de
amigos ficou sabendo que em Kuklon havia um bando de saltadores e arcônidas dirigidos
por dois personagens misteriosos, que dispunham de poderes mágicos. Um deles lia
pensamentos, enquanto o outro sabia impor sua vontade a qualquer ser vivo.
Rhodan fez um gesto afirmativo.
Essas informações correspondiam ao relatório do comandante Markus. Yatuhin e
Tropnow, os dois traidores, eram antigos membros do Exército de Mutantes.
— Pergunte ao purrense se sabe alguma coisa a respeito de Thora.
O hipno não teve a menor dificuldade em projetar as indagações mentais para
dentro do cérebro do gato. A comunicação era extremamente simples.
Noir sacudiu a cabeça.
— Não tem a menor idéia da existência de uma prisioneira, mas supõe que a mesma
se encontre no quartel-general do bando, se é que está no planeta.
— Onde fica isso?
Mais uma vez houve o jogo mental silencioso.
— Fica num grande edifício, perto do espaçoporto. Está disposto a mostrar o lugar,
desde que não o matemos.
Rhodan parecia espantado.
— Não temos a menor intenção de matar uma criatura que sabe cooperar conosco.
Transmita-lhe isto.
O que se seguiu após isso realmente foi espantoso.
Libertado do campo telecinético gerado por Gucky, o gigantesco gato rastejou em
direção a Rhodan e lambeu-lhe os pés. Depois ronronou fortemente e espreguiçou o
corpo.
Gucky contemplou o quadro com um espanto enorme e recuou instintivamente
quando o inimigo hereditário se aproximou dele para lamber seu corpo. A língua áspera
provocou tamanha cócega no rato-castor que o fez rir baixinho e exibir o dente roedor.
Finalmente deitou de costas, numa atitude convidativa. O purrense fez-lhe o favor de
lamber também a barriga.
Rhodan acompanhou o espetáculo por algum tempo e disse:
— Que gracinha!
Gucky levantou-se de um salto e fez com que o purrense recuasse apavorado.
— É isso mesmo. Seu nome será Gracinha. Vamos ficar com ele, não é, Rhodan?
— Ficar com ele?
— Sim. Vamos ficar com ele para sempre. É meu amigo e...
— Que coisa estranha — disse Rhodan, sacudindo a cabeça. — Às vezes não
consigo compreender como é que se pode mudar de opinião tão depressa — olhou o
gigantesco gato com uma expressão pensativa. O animal parecia inofensivo e encostava-
se carinhosamente a Gucky, como se quisesse agradecer pela confiança que este lhe
concedera. — De outro lado, porém, é compreensível para quem vê o que está havendo.
Pois bem; por enquanto Gracinha poderá ficar conosco. Se as coisas continuarem assim,
ainda acabarei sendo dono de um zoológico.
Gucky inclinou-se sobre o purrense, que estava deitado. Subitamente o processo de
comunicação entre as duas criaturas funcionava tão bem como se nunca tivesse havido o
menor problema entre as mesmas.
Será que o rato-castor também era um hipno?
— Você ficará conosco e seu nome é Gracinha — telepatou Gucky, e Gracinha
compreendeu.
Os três volatenses haviam acompanhado os acontecimentos sem compreender nada,
mas a essa hora já pareciam estar convencidos de que o gato não representava qualquer
perigo para eles. Afinal, os homens eram criaturas estranhas, conforme tantas vezes já
tiveram oportunidade de constatar. Por que quebrar a cabeça?
— E agora — pediu Noir de repente — levem-nos ao seu esconderijo. Precisamos
falar com nosso amigo Fellmer Lloyd.
Sem dizer uma palavra, os volatenses se puseram em marcha, seguidos por Rhodan
e Noir.
Gracinha ia na retaguarda. O rato-castor estava sentado nas suas costas, deixando
que seu novo amigo o carregasse.
Atrás deles, jaziam na mata quatro purrenses mortos. Ao morrerem, ainda eram
feras sedentas de sangue; não tiveram tempo para voltarem a ser as criaturas inofensivas
de sempre.
3
***
***
A cidade de Kuklon, capital do planeta de Volat, era o único lugar desse mundo que
apresentava características interestelares. Ali se concentrava a vida civilizatória. E era a
partir dessa cidade que se administrava o mundo colonial. Os nativos, os volatenses,
pouco se interessavam por essa administração e viviam sua própria vida. Porém sabiam
que, naquele amontoado de lindas construções, moravam os seres que se arrogavam à
qualidade de senhores do planeta.
Volat era antes uma base, e não um mundo colonial propriamente dito. Em algumas
cadeias montanhosas, minérios valiosos eram extraídos. Mas a função principal de Volat
era a de entreposto para os bens vindos de outros sistemas. No centro da cidade, ficava o
edifício da administração de Árcon com sua gigantesca antena de hiper-rádio. A qualquer
momento, o administrador podia entrar em contato com o gigantesco computador
positrônico que governava o império estelar dos arcônidas.
Bem próximo ao amplo espaçoporto ficava outro edifício. Erguia-se bem alto e todo
mundo acreditava que servia de sede a empresas comerciais dos saltadores. Boa parte das
salas dos pavimentes superiores eram alugadas para servirem de escritórios. Centenas de
firmas tinham sede ali.
Nos primeiros minutos Gucky quase não despertou a atenção de ninguém, pois a
Galáxia estava cheia de seres estranhos.
O rato-castor materializou-se numa grande sala do vigésimo pavimento. Felizmente
não havia ninguém por ali, motivo por que sua aparição do nada não foi percebida. Com
um movimento contrariado, arrumou a capa colorida, soltou um profundo suspiro e saiu
caminhando em direção à porta mais próxima.
Essa porta dava para um corredor largo. Havia janelas que permitiam a visão para o
espaçoporto. As naves enfileiravam-se uma ao lado da outra e, entre elas, trafegavam
veículos de passageiros e de carga. Transportadores rápidos deslizavam rapidamente
sobre trilhos reluzentes e, a cada dois ou três minutos, decolava ou pousava uma nave.
— Que movimento! — disse Gucky em tom de admiração, esforçando-se para não
pisar em sua vestimenta.
Caminhava com dificuldade; acontece que não conseguia ver os pés embaixo da
capa, e isso se transformou numa circunstância bastante desagradável. Se alguém o visse
cambaleando, ficaria admirado com o estranho anão que, segundo tudo indicava, bebera
demais.
À sua direita, ficavam as portas com inscrições de nomes de empresas.
No edifício devia haver duas mil salas, talvez mais. Como poderia fazer para
encontrar a sala procurada? Teria de confiar no acaso. Gracinha lhe havia contado que os
estranhos feiticeiros só seriam achados nos pavimentes inferiores.
A porta de um elevador abriu-se bem à frente de Gucky. Alguns saltadores desceram
e apressaram-se em seguir seus caminhos. Apenas um deles lançou um olhar de espanto
para o anão colorido, mas nem se preocupou. Os negócios eram mais importantes.
Gucky suspirou aliviado e entrou no elevador. Dali a vinte segundos, viu-se no
corredor que atravessava o terceiro pavimento. Pelo aspecto exterior o mesmo não se
distinguia da galeria do vigésimo pavimento; apenas, não se viam as inscrições das
empresas. Em compensação, havia sobre as portas algarismos arcônidas, que Gucky
conhecia muito bem.
O rato-castor passou lentamente pelas portas e procurou captar os impulsos mentais
vindos do outro lado das mesmas. Constatou que muitas delas estavam vazias. Em
algumas delas, havia indivíduos inofensivos que não pensavam em nada que pudesse ser
considerado suspeito. Apenas cumpriam as tarefas de cada dia. Não sabiam de nada que
ultrapassasse suas áreas de competência. Só cuidavam de seus pequeninos trabalhos e
nem desconfiavam dos grandes acontecimentos.
Talvez tivesse mais sorte no segundo pavimento, ou no primeiro.
Antes que pudesse voltar, uma porta abriu-se bem à sua frente e um homem saiu
para o corredor. Estacou ao ver Gucky, e este logo reconheceu o perigo. Sabia que não se
tratava de um funcionário como qualquer outro.
— O que está procurando por aqui? Quem é o senhor? — gritou o outro.
O fato aborreceu Gucky, que estava acostumado a ser tratado de maneira diferente.
Porém não se deixou arrastar a qualquer ato irrefletido. Fez uma mesura formal e
declinou seu nome, sacudindo a capa colorida de tal maneira que quase se chegava a ter a
impressão de que se tratava de uma saudação da corte.
— Sou Brabul, rei de Voodoo, nobre saltador. Estou à procura de Mansrin, o
administrador.
O saltador parecia bastante contrariado.
— O administrador mora no palácio. Quem foi que o mandou para cá?
— No espaçoporto alguém me disse que...
— Onde fica Voodoo? Quais são as coordenadas?
Gucky perdeu a paciência.
— Quero falar com o administrador, mas não tenho o menor interesse em contar-lhe
quais são as coordenadas de Voodoo. Isso não lhe interessa.
O saltador também não parecia estar acostumado a que falassem com ele nesse tom.
Levantou o braço e segurou a capa de Gucky.
— Escute seu anãozinho de jardim — disse em arcônida.
Evidentemente a expressão “anãozinho de jardim” tinha uma conotação diferente,
mas Gucky compreendeu. — Você é um sujeitinho bem atrevido. Terei de vigiá-lo.
Vamos, vá andando. E faça o favor de não pensar em bobagens. Vamos ver o que o chefe
acha de você.
Gucky reprimiu a vontade totalmente compreensível de fazer seu interlocutor voar
para o teto ou para fora da janela. Abaixou-se e não esboçou qualquer reação. Saiu
cambaleando com uma expressão de espanto no rosto; fazia uma figura bastante triste.
“Mais tarde farei o saltador pagar por isso”, pensou e conseguiu conservar o
necessário autocontrole.
O saltador parou diante de uma porta do primeiro andar. Uma das mãos segurava a
capa de Gucky, enquanto a outra era encostada ao controle térmico da fechadura. A porta
marcada com o número 18 abriu-se sem o menor ruído.
Gucky foi empurrado violentamente para dentro da sala. Por pouco não tropeça
sobre o pano que o envolvia, e que se enlaçou em suas pernas. Conseguiu manter-se de pé
graças às forças telecinéticas que emitia; felizmente ninguém notou.
Por alguns segundos esqueceu-se do saltador, pois atrás da enorme escrivaninha
estava sentado um homem que conhecia.
Era Gregor Tropnow, o traidor.
Esse homem, que já tinha 88 anos, parecia muito mais jovem graças ao processo
biológico de conservação celular. Quando levantou a cabeça e contemplou a criatura que
acabara de entrar, seu rosto dava mostra de extrema concentração. Não reconheceu
Gucky. O rato-castor não se admirou, pois nunca tivera um contato mais estreito com
Tropnow.
— O que houve?
O saltador perdeu o ar de superioridade. Num tom que quase chegava a ser humilde
informou:
— Este sujeito andou espiando no setor administrativo. Achei que talvez fosse
conveniente o senhor ocupar-se com ele. Alega que quer falar com Mansrin.
Tropnow fez um gesto afirmativo.
— Muito bem. Aguarde lá fora até que eu o chame — não se moveu até que o
saltador acabasse de sair da sala. Depois inclinou-se para a frente e fitou Gucky. — Quem
é o senhor?
— Sou Brabul de Voodoo — disse Gucky com uma mesura solene. — Quero
entregar ao administrador alguns presentes de meu povo. Infelizmente pareço ter errado
de casa.
— É verdade — disse Tropnow, esticando as sílabas, e passou a utilizar sua
capacidade hipnótica.
A ordem silenciosa dirigida a Gucky mandava-o dizer a verdade. É claro que essa
ordem não conseguiu atravessar o campo defensivo do rato-castor, motivo por que não
produziu o menor efeito. Mesmo assim, Gucky teve o cuidado de não deixar que seu
interlocutor percebesse qualquer coisa.
— Trata-se de babuínos adestrados — disse em tom compenetrado.
Tropnow estremeceu.
— O quê? — gemeu fora de si. — Babuínos?
— Isso mesmo — respondeu Gucky com um gesto sério. — Conseguimos adestrar
esses animais raros. Queremos presenteá-los a Árcon. Uma vez que Árcon é o ponto do
Império que fica mais próximo ao nosso mundo, julguei conveniente...
Gucky registrou o alívio no cérebro de Tropnow. O resquício de suspeita
desapareceu da mente do hipno. Certamente estava convencido de que o anão de vestes
coloridas estava dizendo a verdade. Não havia resistência contra a força sugestiva de um
cérebro hipnótico. Por um segundo uma idéia atravessou o cérebro do traidor, e essa idéia
literalmente eletrizou Gucky: Não é nenhum truque de Rhodan para descobrir o paradeiro
de Thora. Ela está em lugar seguro.
— Não temos nada a ver com a administração — disse Tropnow com um sorriso
condescendente. — Lá fora o senhor encontrará táxis que poderão levá-lo ao lugar em
que está Mansrin. Tenha uma longa vida... hum, como é mesmo o nome?
— Brabul, senhor — informou Gucky prontamente e procurou descobrir mais
alguma coisa sobre o paradeiro de Thora.
Mas Tropnow não fez mais nenhuma referência mental concernente a Thora. —
Brabul de Voodoo.
O mutante comprimiu um botão. O saltador entrou.
— Mostre a saída a Brabul, que tem permissão para retirar-se.
Gucky cambaleou para fora da sala e saiu caminhando pelo corredor, em direção ao
elevador. Ficou contrariado ao notar que o saltador o acompanhava. Isso não era nada
agradável, pois não tinha a menor intenção de abandonar tão depressa a toca do leão.
Parou subitamente, mediu o saltador perplexo com um olhar de desprezo e chiou em tom
amargurado:
— Dê o fora, filho de um verme! Não ouviu o homem dizer que estou livre e posso
ir para onde quiser? Dispenso sua companhia.
O saltador era musculoso e tinha quase dois metros de altura. Uma barba ruiva
emoldurava o queixo, e em seus olhos a audácia emparelhava-se com o espírito
empreendedor. Só se sentiu dominado pelo espanto por uma fração de segundo, mas seu
verdadeiro caráter logo levou a melhor.
“Esse anão ridículo. Que atrevimento! Teve a audácia de insultar-me”, pensou.
“Não posso suportar uma coisa dessas.”
Adiantou-se de chofre e segurou Gucky com ambas as mãos.
— Eu o mato, seu monstrinho — disse em tom furioso e puxou-o para junto de si. O
rato-castor ficou satisfeito. Concentrou-se e realizou a teleportação.
No mesmo instante, voltou a materializar-se no platô em meio à mata virgem. O
saltador continuava a segurá-lo. O contato físico fizera com que o rato-castor também o
teleportasse. Evidentemente não teve consciência do fato. Ficou ainda mais espantado ao
notar que, de um instante para outro, encontrava-se num ambiente bastante diverso.
— O que é que eu sou? — chiou Gucky em tom furioso e empurrou o saltador
perplexo para longe. — Um monstrinho? E logo você é quem vem me dizer uma coisa
dessas, seu colosso de carne com cérebro de pulga? Você ainda terá oportunidade de me
conhecer melhor.
— Onde estou? — gaguejou o saltador, que já não compreendia mais nada.
Gucky soltou um assobio estridente. Rhodan saiu de uma das colméias. Noir
seguiu-o de perto. Uma sombra cinzenta atravessou a praça e foi assumindo contornos:
era Gracinha. Cumprimentou Gucky com um choro alegre e rosnou bastante zangado
para o saltador.
— Vamos, seu monte de estupidez — disse Gucky, empurrando o prisioneiro à sua
frente. — Meu chefe quer falar com o senhor, e quero dar-lhe um bom conselho: diga a
verdade.
O saltador lançou um olhar apavorado para o purrense, que continuava furioso, e
pôs-se a andar. Gucky ficou para trás e acariciou Gracinha.
Rhodan lançou um olhar curioso para o visitante forçado, que se aproximou aos
tropeções e parou à sua frente. Não conseguiu ler nada em sua mente além da confusão.
O saltador ainda não compreendia como fora parar ali. Havia algo de errado em tudo isso.
Antes que pudesse abrir a boca para formular uma indagação a esse respeito, o
homem alto de rosto tão franco e severo adiantou-se. A pergunta dirigida a ele foi tão
surpreendente e clara que teve de responder antes que pudesse pensar numa mentira:
— Onde está Thora, a mulher que foi seqüestrada por Tropnow?
— No subsolo...
Rhodan segurou a mão de Noir. Entre eles estava Gucky, que enlaçou os dois com
os bracinhos. O contato seria suficiente para possibilitar a desmaterialização.
— É agora! — disse Rhodan.
Gucky concentrou-se sobre o palácio do administrador e saltou.
Tiveram sorte. Viram-se na cobertura do gigantesco edifício, bem acima da cidade e
junto à antena do hiper-emissor. O local estava ermo. Havia uma escada que levava para
baixo.
Separaram-se.
— Cuidem para que ninguém me perturbe — disse Rhodan. — Fiquem nas
imediações das salas de rádio e intervenham sempre que seja necessário. Manteremos
contato telepático.
O saltador preso lhes havia fornecido todas as informações desejadas. Estavam
perfeitamente cientificados sobre a divisão das peças do palácio de Mansrin.
Ao chegar à porta da sala de rádio, Rhodan hesitou um pouco. Não estava armado.
O que faria se houvesse resistência? A idéia de usar violência causava-lhe repugnância.
Dessa forma, teria de influenciar os outros com o olhar sugestivo e com palavras
enérgicas.
Com um gesto de cabeça, cumprimentou Noir e Gucky. Depois abriu abruptamente
a porta.
Graças ao seu aprendizado hipnótico conhecia as instalações, de um
hipertransmissor. Quase todos os controles eram automáticos. A dificuldade consistia
apenas em regular o aparelho para as coordenadas corretas de transmissão e em conhecer
o sinal de chamada do destinatário da mensagem.
Havia só um homem na sala. Estava sentado numa poltrona e lia. Quando Rhodan
entrou, levantou a cabeça e cerrou os olhos. Por fora, Rhodan pouco se diferençava de um
arcônida ou de um saltador, com exceção de alguns detalhes insignificantes.
— O que deseja? — perguntou o homem em tom indeciso e levantou-se. Não sabia
o que fazer com o desconhecido. — Quem foi que o mandou para cá?
Rhodan olhou para o operador de rádio.
— Trago ordens do administrador. Faça uma ligação urgente para o regente
robotizado de Árcon.
Talvez o homem aceitasse a ordem e executasse o trabalho. Porém o operador de
rádio estava desconfiado...
— Trouxe uma ordem escrita?
Rhodan sacudiu a cabeça e reforçou a potência sugestiva de seu olhar.
A ação produziu o efeito desejado. O operador de rádio foi ao quadro de controle e
dirigiu a energia para as instalações. Com alguns movimentos, ligou o transmissor e o
receptor. Telas acenderam-se. Rhodan foi para o lado, a fim de não ser captado por uma
câmara oculta. Não convinha que o robô o reconhecesse. Sua intenção era fazer com que
o computador quebrasse “a cabeça” para descobrir por que seu interlocutor não aparecia.
— Aqui fala a estação Volat, sistema Heperés. Administração Mansrin. Responda,
regente.
Rhodan chamou Gucky por via telepática. O rato-castor entrou. Perry acenou com a
cabeça, o rato-castor compreendera. Por trás, aproximou-se do operador de rádio, que não
desconfiava de nada, colocou o braço em torno de seu corpo e desapareceu com o
homem. Dali a dez segundos, voltou a materializar-se, sem o operador de rádio.
— Eu o tranquei no porão — chiou muito alegre. — Levarão ao menos duas horas
para encontrá-lo. E quando isso acontecer não poderá fornecer qualquer explicação
sensata sobre a maneira pela qual chegou lá. Ninguém acreditará que algum espírito o
retirou do seu posto.
Rhodan interrompeu-o com um gesto.
— Vá para fora. Cuide juntamente com Noir para que no próximo minuto ninguém
entre nesta sala. O computador regente não deve desconfiar de nada.
Gucky retirou-se.
A resposta da primeira mensagem chegou.
A tela iluminou-se e Rhodan voltou a ver o “rosto” conhecido do regente. Era uma
gigantesca semi-esfera de aço puro que descansava sobre a seção do corte. Tratava-se do
maior computador positrônico do Universo. Ficava a quase 30 mil anos-luz de distância e
estava abrigado num enorme pavilhão, de onde governava o império estelar. As ondas de
rádio percorreram o hiperespaço e transmitiram sua imagem em menos de um milésimo
de segundo.
Ouviu-se a voz mecânica do computador...
— Aqui fala o regente de Árcon. O que houve, Volat?
Rhodan mantinha-se longe da instalação. Disse:
— Alarma, regente! Um grupo de rebeldes revoltou-se contra o Império. O
administrador Mansrin pede o envio de uma pequena frota de apoio.
Houve uma ligeira pausa. Depois ouviu-se a pergunta:
— Não estou recebendo a imagem. Quem está falando?
— O radioperador de plantão, regente. As instalações estão com defeito. O
transmissor de imagens está com defeito. O auxílio é urgente.
Seguiu-se mais uma ligeira pausa. Depois veio a resposta:
— Frota será enviada. Chegará a Volat dentro de vinte e quatro horas planetárias.
Aliás, a imagem da sala de rádio está sendo captada com toda nitidez. Não constatei
qualquer defeito.
Rhodan assustou-se. Não se lembrara da lógica inflexível do computador. Sua
desculpa não fora bem pensada. Decidiu jogar todas as chances numa única carta. Com
uma das mãos, pegou a chave principal que desligava a energia e disse:
— Estou falando por uma linha auxiliar. Os rebeldes... Socorro...
De repente moveu a chave. A instalação foi desligada.
O alto-falante emudeceu.
O computador teria tempo de sobra para refletir.
Um sorriso frio surgiu no rosto de Rhodan enquanto caminhava até a porta. Abriu-a
e saiu para o corredor. Noir e Gucky estavam parados, sem fazer nada. Não aparecera
ninguém que pudesse perturbar Rhodan.
— Pronto! — disse este e continuava a sorrir. — Dispomos de exatamente vinte e
quatro horas para dar uma batida no quartel-general. O regente de Árcon não tolera
qualquer revolta contra o Império. Quando tudo tiver passado, todo mundo acreditará que
Árcon impôs a ordem. Ninguém desconfiará que nós estivemos atrás disso — segurou a
mão de Gucky e de Noir a fim de estabelecer o contato que permitiria o salto de
teleportação. — Deixaremos que Árcon trabalhe por nós. Afinal, já fizemos muita coisa
em favor do regente.
Gucky assobiou para manifestar sua concordância e exibiu o dente roedor.
Foi a última coisa que Rhodan viu antes que se encontrasse novamente no platô da
rocha situado em plena mata virgem. Quando rematerializaram-se, Perry quase pisou o
rabo de Gracinha.
4
***
Mais um dia raiou sobre a cidade de Kuklon. Como de costume, era um dia
ensolarado e quente. Neste ponto esse dia não se distinguia dos outros de verão. Mas hoje
aconteceria uma coisa que faria dele um dia todo especial.
Ao menos para aqueles que conseguissem sobreviver ao mesmo.
O administrador Mansrin ainda não tinha a menor idéia dos próximos
acontecimentos. Tal qual fazia todos os dias, levantara não muito cedo, tomara um banho
morno e saboreou o lanche.
Ouviu os pedintes costumeiros pertencentes à raça dos nativos e, ainda tal qual fazia
todos os dias, recusara seus pedidos. O que tinha que ver com essas semi-inteligências
primitivas? Poderiam ficar contentes porque pouco se interessava por elas, preferindo
deixá-las em paz.
Depois leu as notícias que acabaram de chegar do setor de rádio. Era bem mais
interessante. Havia cada coisa...
No sistema de Berila, acabara de ser sufocada uma revolta engendrada por uma raça
de seres semelhantes a cobras. Uns vinte mil anos-luz mais adiante, próximo ao centro da
Via Láctea, houve uma tempestade cósmica elétrica, que vitimara uma frota robotizada.
Uma única nave conseguiu escapar à catástrofe e ofereceu um relato vivo. Mansrin
ouviu-o com um ligeiro calafrio. Gostava mais desse tipo de entretenimento que dos
modelos coloridos abstratos que eram projetados nas telas de recreação. Além disso,
escutou que houve uma guerra entre os planetas de um sistema gigante. Nessa guerra
estiveram envolvidos mais de cinqüenta mundos, mas o regente interviera de pronto.
Subitamente Mansrin descobriu o que havia de errado nesse noticiário.
Refletira sobre isso todo o tempo, mas não se deu conta do que lhe chamara a
atenção. Agora sabia. No cronograma das confirmações de recepção, havia uma lacuna.
Uma lacuna considerável!
Durante três horas a estação de rádio esteve desguarnecida, ou então o operador de
plantão dormira.
Procurou o nome e encontrou-o. Também descobriu quem era o operador substituto.
Mansrin, um arcônida não pertencente à classe das criaturas degeneradas e
indolentes, não confiava integral e exclusivamente na tecnologia por eles criada. Ainda
sabia pensar e agir.
E foi o que fez.
— Diga ao operador de rádio Bredag que deve comparecer aqui — ordenou assim
que a ligação com o chefe do pessoal foi estabelecida. — Quero que venha
imediatamente e que traga o cartão de controle eletrônico.
O administrador recostou-se na poltrona e ficou esperando. Não tolerava o desleixo,
ainda mais entre seus colaboradores mais chegados. Se o operador de rádio não pudesse
provar que naquelas três horas do dia anterior não havia chegado nenhuma mensagem,
era porque havia dormido. Ou então porque não se encontrava na sala de rádio.
A porta abriu-se. Mas quem entrou por ela não foi Bredag, mas um jovem arcônida.
Em seu rosto havia uma expressão de perplexidade, misturada com a consciência da
culpa.
— Perdão, administrador. Entrei em serviço na sala de rádio depois do turno de
Bredag. Não estava presente quando entrei na sala. Supus que tivesse saído mais cedo.
Porém, quando o oficial de serviço perguntou por ele, vi que o cartão de controle se
encontrava no quadro. Dessa forma, Bredag ainda não podia ter saído da sala de rádio!
Mansrin estreitou os olhos.
— Não estou com vontade de resolver charadas logo de manhã. Explique melhor o
fenômeno.
— Não existe explicação para o fenômeno, senhor. O cartão de controle foi inserido
no espia eletrônico que controla a única porta de acesso à sala de rádio. Esse cartão
registrou a entrada de Bredag, mas não contém qualquer indicação de que tenha saído.
Logo, Bredag ainda deve encontrar-se no interior da sala de rádio. Acontece que não está
lá!
— Isso é impossível! — exclamou Mansrin e ergueu-se. — Não me venha com
contos de fadas. O que houve com Bredag? Preciso saber.
— Revistamos a sala de rádio, mas não encontramos o menor vestígio de Bredag.
Não queríamos preocupá-lo e por isso preferimos informá-lo só depois que o
incidente fosse esclarecido. Infelizmente isso ainda não aconteceu.
— Ninguém pode enganar o controle eletrônico. Bredag tem de estar na central.
— Acontece que não está — insistiu o operador de rádio. — Só existe uma
explicação lógica: Bredag dissolveu-se no ar e desapareceu.
— O senhor acha que essa explicação é lógica? — esbravejou Mansrin. — Nunca
ouvi uma tolice igual. Hum, talvez haja algum defeito no equipamento de controle. Mas
mesmo se isto tivesse acontecido, tornava-se possível encontrar Bredag.
— Pois é justamente isso, senhor. Não conseguimos encontrá-lo. Nem mesmo nos
seus aposentos.
Mansrin refletiu.
— As três horas que faltam no cronograma deixam-me bastante preocupado. No
momento em que foi ocupar seu posto e não encontrou Bredag, o senhor deveria ter
avisado imediatamente.
— Vez por outra acontece que alguém sai da sala de rádio alguns minutos antes do
revezamento. Qualquer mensagem que chegue é recebida e registrada automaticamente.
Mas no caso isso não aconteceu. A aparelhagem estava desligada.
— Desligada?
— Sim senhor. Ficou desligada durante três horas.
O administrador voltou a recostar-se na poltrona. Lançou um olhar pensativo sobre
o jovem arcônida. Seu instinto lhe dizia que o mesmo estava falando a verdade. Mas nem
por isso o mistério estava resolvido. Pelo contrário...
Uma inquietação começou a espalhar-se pela mente de Mansrin. Em seu
pensamento lógico, orientado segundo os ditames da técnica, não havia lugar para
fenômenos inexplicáveis. Tudo tinha uma explicação, até mesmo um milagre!
— Continue a procurar Bredag. Assim que for encontrado, quero falar com ele.
Mantenha-me informado. Pode retirar-se.
Quando se viu só de novo, fechou os olhos e meditou.
Teve a impressão segura de que esse incidente não seria a única surpresa
desagradável do dia.
E esta impressão seria confirmada.
***
***
***
***
***
Na escada que conduzia ao subsolo, Fellmer Lloyd e seu grupo defrontaram-se com
os rebeldes que lutavam obstinadamente por um objetivo desconhecido. Os chefes
estavam mortos ou presos, mas os adversários do mutante não o sabiam. Agiam de acordo
com as ordens recebidas ao abrirem fogo contra os volatenses que os seguiam.
Como localizador e telepata que era, Fellmer Lloyd descobriu as intenções deles,
antes que as mesmas se concretizassem em atos. Gritava suas ordens. Os volatenses
haviam sido submetidos a um treinamento intenso. Abrigados, iam pegando as mini-
granadas do arsenal da Gazela e as atiravam para o corredor de baixo.
Depois Fellmer Lloyd ordenou tranqüilamente a retirada.
Mal os primeiros disparos energéticos começaram a chiar e a derreter algumas
amuradas de aço, ouviram-se as detonações. Seguiram-se gritos e vozes de comando e os
rebeldes precipitaram-se escada acima. O fedor das bombas de gases era mais apavorante
que a perspectiva de serem recebidos com uma série de disparos dos volatenses.
Era exatamente o que Lloyd queria.
Devido à fumaça, os rebeldes estavam quase cegos. Esfregavam os olhos irritados.
Já não reconheciam Lloyd ou os volatenses; apenas viam sombras que se destacavam na
luz que penetrava pela janela.
Abriram fogo contra essas sombras.
Para azar deles, essas sombras não pertenciam aos volatenses, mas à força policial
que acabara de penetrar no edifício. Por isso não era de admirar que os policiais
acreditassem que realmente se defrontavam com um grupo de rebeldes.
Responderam ao fogo. Dali a pouco, outra batalha rugia furiosamente no corredor.
Fellmer atingira seu objetivo. Quando o engano fosse esclarecido — se é que isso viria a
acontecer — a Gazela já teria mergulhado nas profundezas do espaço.
Sempre correndo, Fellmer Lloyd e seus volatenses chegaram ao corredor que dava
para a sala número 18. O localizador chegou no momento exato de assistir à
rematerialização de Gucky. Noir encontrava-se junto à porta, enquanto Rhodan e Thora
permaneciam junto à janela.
— Então? — perguntou Rhodan. Não disse mais nada.
Lloyd fez um sinal para os volatenses. Os nativos fizeram um gesto, atiraram as
armas para o chão e saíram andando como se não tivessem nada a ver com aquilo — e de
fato não deixava de ser assim. Alguns deles voltaram à sala de leitura e acomodaram-se.
Outros dirigiram-se a vários andares e indagaram junto às empresas ali estabelecidas se
havia um emprego. Faziam aquilo que fariam normalmente, em qualquer dia. Uma vez
que a notícia dos acontecimentos que se desenrolavam nos pavimentos inferiores ainda
não havia chegado a todos os recantos do edifício, o súbito interesse pelos empregos ou
pelas mercadorias eventualmente oferecidas não provocou suspeitas.
— Está saindo tudo de acordo com o plano — informou Lloyd e fechou a porta, já
amolecida pelo calor das armas dos rebeldes. O trinco da fechadura entrou ruidosamente
no engate, o que fez Gucky soltar uma opinião de perito:
— Aqui ao menos sabem fabricar fechaduras muito resistentes!
— Quer dizer que os rebeldes se envolveram numa luta contra as autoridades? —
perguntou Rhodan para certificar-se.
— Foram bastante idiotas para isso — disse Lloyd com um sorriso. — A esta hora
não haverá mais a menor dúvida de que um grupo revolucionário procurou articular um
golpe contra Árcon. É bem verdade que procurarão em vão pelos homens que tramaram
tudo, mas isso não importa.
Rhodan lembrou-se do outro traidor.
— Para onde levou o japonês? — perguntou, dirigindo-se a Gucky.
— Levei-o a um lugar do qual nunca poderá escapar com vida. Está na ponta de um
rochedo. Poderei buscá-lo a qualquer momento.
— Muito bem. Acho que já está na hora de darmos o fora. Thora irá em primeiro
lugar. Leve-a ao platô, Gucky.
Dali a dez segundos, o rato-castor estava de volta.
— Kuri está cuidando dela, chefe. E agora?
Foi a vez de Noir empreender a viagem. Durante o grande salto Gucky pegava uma
pessoa de cada vez, para não se cansar demais. Isso não influía muito no tempo da
operação, pois cada teleportação durava apenas alguns segundos. Dessa forma, também
Fellmer Lloyd voltou ao ponto de partida da aventura, ou seja, ao platô em que residia a
mãe onisciente dos volatenses.
Rhodan aguardou pacientemente o último retorno de Gucky.
Embora apenas alguns segundos se houvessem passado desde o último salto, o
regresso do rato-castor parecia demorar uma eternidade. No corredor estava acontecendo
alguma coisa. Ouviram-se vozes de comando e o chiado dos disparos de radiações.
Alguém soltou um grito de pavor e atirou-se contra a porta. Talvez tivessem reconhecido
a superfície atacada pelo calor e estivessem suspeitando de alguma coisa.
Gucky materializou-se com um sorriso.
— Gracinha não me quis deixar sair — disse para explicar a demora. — Que
gatinho querido! Queria brincar...
Rhodan continuou com o rosto sério.
— Daqui a dez segundos, estarão nesta sala. Quem será? A polícia?
— Quer que eu dê uma olhada?
— Não se atreva a fazer uma coisa dessas! Vamos é dar o fora. Nossa tarefa está
concluída...
Gucky segurou a mão de Rhodan.
— Ainda não. Quer que vá buscar Yatuhin agora, ou devo esperar mais um pouco?
— Vamos primeiro ao platô. Ande depressa!
Enquanto o rato-castor se concentrava para dar o salto e criar o respectivo campo
energético, a porta sofreu um forte abalo e abriu-se. Um homem entrou abruptamente,
tropeçou por cima das armas espalhadas pelo chão e cambaleou de encontro à parede.
Ficou parado e contemplou os dois vultos que se dissolviam no ar.
Rhodan ainda viu a porta abrir-se, mas depois os contornos dos objetos se
desmancharam diante de seus olhos. Ainda chegou a ver o enorme vulto que penetrou
como uma bala de canhão. Se o “colosso” não fosse cego, ainda devia ter assistido ao
milagre.
Antes que Rhodan passasse à quinta dimensão, um grito atingiu seu ouvido. Já
ouvira aquela voz. Era uma voz retumbante e máscula, que despertou uma lembrança em
sua mente.
E essa voz exclamou:
— RHODAN!
Depois viu-se envolvido pela escuridão.
Logo a claridade voltou-lhe a surgir no platô de rocha. Desprendeu-se de Gucky,
mas aquela voz continuava a ressoar em seus ouvidos.
— Viu o homem, Gucky? Quem foi? Ele me reconheceu.
O rato-castor estreitou os olhos.
— Não tive tempo para cuidar disso, pois nesse caso não poderia ter saltado. Quer
que volte para dar uma olhada?
— Ele me reconheceu.
Gucky arregalou os olhos.
— Reconheceu você? Não é possível. Em Volat não há ninguém que o conheça.
— Acontece que chamou meu nome, Gucky.
Rhodan estava perplexo. Ficou refletindo sobre o lugar em que já ouvira aquela voz
retumbante. Foi penetrando no passado, recuou vinte anos, trinta. Cinqüenta anos...
O vulto enorme, cuja largura era igual à altura.
...Um sujeito que pesava de quinhentos a setecentos quilos. A barba...
Seria um superpesado? Naturalmente. Só podia ser um superpesado do povo dos
saltadores. A solução era esta mesma. Tratava-se dos combatentes dos mercadores
galácticos. Só mesmo um superpesado seria capaz de arrombar a porta de aço.
E aquele havia reconhecido Rhodan e chamara seu nome.
Os superpesados, que Rhodan chegara a conhecer, estavam quase todos mortos, pois
foram vitimados durante a última batalha em torno do falso planeta Terra. Só um deles
não participara da luta decisiva. Fora bastante inteligente para manter-se afastado.
Talamon!
Subitamente Rhodan lembrou-se. Fora Talamon que entrara precipitadamente no
gabinete de Tropnow. Talvez fosse uma simples coincidência. Era pouco provável que o
superpesado estivesse ligado à conspiração. Por certo encontrava-se em Volat para acertar
algum negócio, tivera sua atenção despertada para os disparos e foi ver do que se tratava.
E vira Rhodan desaparecer no nada.
Portanto, sabia que Perry Rhodan, o homem mais perigoso do Universo, não
morrera, mas continuava bem vivo.
Não guardaria o segredo exclusivamente para si.
— Quer que eu volte e dê um jeito naquele gorducho? — perguntou Gucky, que
acompanhara os pensamentos de Rhodan. — Se resolver falar...
Mas Rhodan já havia recuperado o sangue-frio. Sacudiu a cabeça, num gesto de
tranqüila superioridade.
— Não, Gucky. Fique aqui. Não somos nós que vamos decidir quando o
computador regente saberá da minha existência. Estamos preparados. A descoberta da
verdade não representará nenhum perigo. Portanto, deixemos que Talamon decida.
— Mas se...
Gucky calou-se. Será que a época de paz havia chegado ao fim? Será que Rhodan
teria que submeter-se à vontade do gigantesco computador? A Terra voltaria a constituir-
se no alvo de ataques para as criaturas gananciosas?
Rhodan tornou a sacudir a cabeça.
— Nada disso, Gucky. Já estamos em condições de enfrentar Árcon e seus aliados.
Mas não acredito que haja guerra. Aguardemos. Seja como for, nossa missão em Volat
chegou ao fim.
— Isso mesmo; depois que tivermos liquidado Nomo.
Só agora Rhodan lembrou-se do prisioneiro.
— Vá buscá-lo, Gucky.
Rhodan não esperou que Gucky se desmaterializasse. Dirigiu-se às cabanas, onde os
companheiros já o aguardavam. Kuri estava ao lado de Thora, cujo sorriso parecia
exprimir alívio. A arcônida altiva continuava a ser bela; era um ser humano vindo de
outra estrela, mas resolvera contrair matrimônio com ele, um filho da Terra.
Noir e Lloyd enxugaram o suor da testa.
— Vou pedir a Gucky que me leve até a Gazela — sugeriu Lloyd. — Se for a pé,
levarei alguns dias, se é que consigo encontrá-la.
Rhodan estava prestes a responder, quando uma voz aguda soou atrás deles. Era
Gucky. Estava de volta. Só.
— O japonês está morto — disse; parecia bastante assustado. — Atirou-se da rocha
que tem mais de cem metros de altura.
Noir e Lloyd falavam ao mesmo tempo, mas Rhodan conservou a calma.
— Era o que eu imaginava — disse. — Afinal, o Nomo era japonês e como tal
conservou os velhos costumes de seu povo. Preferiu a morte voluntária. Se dispusesse de
um instrumento para isso, teria cometido sepuko segundo todas as regras da arte.
Ninguém disse uma única palavra.
Rhodan olhou para o céu. As primeiras nuvens se aproximavam, vindas do norte. A
temperatura estava amena.
6
Talamon ainda se sentia paralisado pelo susto.
Apavorado, olhou para o lugar vazio no qual há menos de um segundo vira o
homem que toda a Galáxia considerava morto.
Qualquer engano era impossível!
Vira Perry Rhodan e aquele animalzinho esquisito que costumava acompanhá-lo a
todos os lugares e que dispunha de certas faculdades estranhas. O súbito desaparecimento
de ambos constituía a melhor prova. Talamon ainda se lembrava perfeitamente daquelas
histórias misteriosas que se contavam há meio século sobre Rhodan e seu exército de
feiticeiros. O auxílio deste quase permitiu ao terrano abalar os alicerces do Império
Arcônida.
A Terra e Perry Rhodan haviam sido destruídos num ataque de grandes proporções
lançado pelos saltadores.
Era ao menos o que se acreditava até então.
Talamon estremeceu. Por que continuava parado, sem fazer nada? Devia prevenir o
Universo. O computador de Árcon devia ser informado imediatamente de que a paz era
aparente, já que Rhodan continuava vivo.
E os acontecimentos de Volat...
Talamon descobriu certas ligações entre os fatos.
“É claro que Rhodan está atrás dos acontecimentos que causaram a intervenção da
guarda pessoal do administrador”, pensou. Ainda não sabia o que Perry pretendia
alcançar com isso.
Apesar do aspecto desajeitado, o superpesado movia-se com uma rapidez e uma
agilidade extraordinárias. Saiu rapidamente da sala número 18, sem que visse o cadáver
atrás da escrivaninha. Antes de chegar à porta teve de abrigar-se. Um grupo de homens,
que procurava alcançar o elevador, atirava furiosamente em todas as direções. A polícia
seguiu o grupo, mas não notou a presença de Talamon.
Suspirou aliviado ao atingir a saída do prédio. Estava prestes a correr em direção ao
carro que o esperava, quando estacou.
Arregalou os olhos na direção do espaçoporto. Um regimento de robôs de combate
aproximava-se marchando retumbante, com as armas de prontidão. Três homens
caminhavam à frente da formação. Talamon conhecia um deles: o administrador Mansrin.
Os outros eram desconhecidos.
Hesitou por um instante, mas logo dirigiu-se aos três arcônidas. No curso dos
últimos decênios, o velho preconceito contra o regime de Árcon e do computador se
desvanecera. O computador regente provara que sabia governar melhor e com mais
lógica que qualquer ser humano. A unidade foi restabelecida, e qualquer revolta, por mais
insignificante que fosse, era reprimida por meio da atuação implacável das forças
disponíveis. Por isso tinha o dever de informar os representantes oficiais de Árcon sobre
a descoberta que acabara de fazer.
Mansrin diminuiu o passo quando percebeu a intenção do superpesado. Dirigiu
algumas palavras a Arona, que imediatamente deu ordem para que os robôs parassem. Os
três fitaram com olhos curiosos o enorme saltador que corria em sua direção, agitando os
braços.
— Sou Talamon! — exclamou, respirando tão fortemente que por enquanto não
conseguiu proferir outra palavra.
Aos poucos, foi se tranqüilizando. Mas Arona começou a impacientar-se.
— O que houve? O senhor está nos retendo.
A essa hora Talamon já devia reconhecer que devia uma explicação imediata aos
arcônidas.
— Não é necessário que os senhores intervenham nos acontecimentos que se
desenrolaram no edifício comercial — disse. — Acho que foi Árcon que o mandou para
cá, não foi?
— Sou o comandante Arona — disse o oficial em tom orgulhoso. — O computador
regente mandou que viesse para cá a fim de restabelecer a ordem.
Talamon não pôde deixar de sorrir.
— A notícia de um tumulto costuma espalhar-se muito depressa — observou em
tom irônico. — O administrador Mansrin agiu depressa, mas aposto que não sabia do que
se tratava.
— Não sei o que quer dizer — interveio Mansrin.
— Um sorriso de superioridade surgiu no rosto de Talamon.
— Não tenho a menor dúvida de que realmente não saiba. Contarei ponto por ponto,
para que...
— Não temos tempo — disse Arona em tom áspero. — Árcon espera que eu lhe
mande quanto antes um relatório em que anuncie que a rebelião foi sufocada.
Talamon espantou-se.
— Que rebelião? Está falando na briguinha que houve nesse edifício? Não seja
ridículo, comandante. Eu seria capaz de dar conta sozinho da meia dúzia de desordeiros
que andou por ali. Não se trata disso. Prestem atenção. Fechei um negócio com um amigo
e pretendia sair do edifício. Foi quando ouvi os disparos. Resolvi dar uma olhada e por
pura coincidência entrei numa sala onde vi uma coisa que me arrepiou os cabelos.
Mansrin passou a mão pela cabeleira branca e exclamou em tom impaciente:
— Fale logo, Talamon. O que foi que viu?
Talamon fez uma pausa de efeito e disse, falando lentamente e em tom enfático:
— Vi Perry Rhodan, o terrano.
Ao que parecia, Arona nunca ouvira falar no tal de Rhodan. Continuou com o rosto
impassível. O tenente Ro também não demonstrou a menor surpresa.
Com o administrador Mansrin a coisa foi diferente.
O funcionário mais graduado de Volat estremeceu como se alguém lhe tivesse dado
uma pancada.
— Rhodan? — gaguejou. — Será que o senhor ficou doido, Talamon?
— Então acha que fiquei louco, Mansrin? É claro que não posso provar o que acabo
de dizer. Rhodan desapareceu assim que entrei na sala onde ele se encontrava. Mas
reconheci-o perfeitamente. Em sua companhia estava um estranho animal, que há
cinqüenta anos desempenhava um papel importante. Quanto a Rhodan... bem,
cavalheiros, travei conhecimento pessoal com ele. Não existe a menor possibilidade de
engano.
— Mas Rhodan está morto! — Mansrin parecia desesperado.
— Sim — confirmou Talamon sem abalar-se. — Foi o que todos acreditamos, e o
terrano nos deixou nessa crença. E, neste meio tempo, certamente não dormiu. O fato de
ter aparecido de repente serve-nos de advertência. O regente deve ser informado sem
demora.
Arona contemplou seus robôs.
— Antes de mais nada vou cuidar da revolta — gritou uma ordem para dentro do
aparelho de comando, e o exército voltou a colocar-se em movimento. — Mais tarde
conversaremos, Mansrin.
Saiu marchando juntamente com os robôs e com o tenente Ro.
Mansrin ficou parado em atitude indecisa ao lado de Talamon.
— Acha mesmo que deveríamos informar o computador? E se o senhor se enganou?
— Acontece que não me enganei, administrador. Pode confiar nos meus olhos,
embora não seja dos mais jovens. Venha; vamos no meu carro.
Dali a dez minutos aqueles dois homens tão desiguais fisicamente entraram na sala
de hiper-rádio do palácio de Mansrin.
A comunicação com Árcon foi logo estabelecida.
— Quero falar pessoalmente com o regente — pediu Talamon. — Nesse caso, a
responsabilidade será minha, não sua. Combinado?
— É claro que estou de acordo — respondeu Mansrin em tom de alívio.
A conhecida semi-esfera surgiu na tela. A voz dura e metálica disse:
— Aqui fala Árcon. Responda, Volat.
Talamon colocou-se à frente da câmera.
— Aqui fala Talamon do clã dos superpesados, pertencente ao povo dos saltadores.
Estou agindo de acordo com o administrador. A revolta já foi abafada em Volat. Supomos
que tenha sido uma simples manobra de camuflagem. A finalidade é desconhecida. Acabo
de fazer uma descoberta muito importante, regente. Perry Rhodan está vivo. Há meia
hora vi o terrano com meus próprios olhos aqui em Volat.
Seguiu-se uma ligeira pausa e a voz metálica começou a falar:
— Ontem uma pessoa falou comigo do lugar em que o senhor se encontra. Porém
não pude vê-la, porque se colocou em posição lateral. Sua voz despertou-me certas
“lembranças”. Aguarde um momento, Talamon. Vou verificar os dados armazenados em
fita.
A imagem continuou, mas o som silenciou.
Mansrin cochichou:
— O que está fazendo?
— É simples, administrador. A voz lhe parecia conhecida. Se já a ouviu alguma vez,
a mesma está registrada em fita. Uma comparação...
— Aqui fala o regente de Árcon. Talamon, o que o senhor viu corresponde à
realidade. O homem que falou comigo ontem foi Rhodan, o terrano. Cometi um erro
imperdoável ao não investigar imediatamente.
“Quer dizer que mesmo um computador hiper-programado comete erros!” pensou
admirando-se.
Talamon sentiu-se ligeiramente preocupado, embora o fato devesse tranqüilizá-lo.
— E a Terra também existe, regente?
— Não tenho certeza, Talamon. É possível que a Terra tenha sido destruída
enquanto Rhodan escapou. Estou “lembrado” de que, depois da batalha, fingiu ter
sucumbido com a nave Titan e, dali em diante, continuou desaparecido.
— Seja como for, Rhodan está vivo, regente. Cumpri meu dever, avisando Árcon. O
que acontecerá agora?
— Decidirei oportunamente. Peça a Arona que regresse a Árcon com sua frota. Em
Volat não há mais necessidade dela, pelo que suponho.
— Providenciarei para que o comandante Arona decole — interveio Mansrin,
achando que esse assunto lhe dizia respeito.
O computador confirmou e desligou. Talamon fitou a tela apagada.
— Esse montão de metais ao menos poderia ter agradecido — murmurou com a voz
zangada. — Afinal, é a existência dele que está em jogo.
— Se Rhodan estiver vivo, nossa existência estará em perigo?
Talamon fez que sim e complementou:
— Está vivo; não tenha a menor dúvida, Mansrin.
Saiu da sala de rádio pisando firme. Mansrin seguiu-o.
— Quanto tempo pretende ficar em Volat, Talamon? O senhor ainda deve ter
negócios por aqui.
— Negócios para cá, negócios para lá — resmungou o superpesado. — De qualquer
maneira, dirigir-me-ei à minha nave o mais rápido possível e executarei um salto
gigantesco pelo hiperespaço, a fim de afastar-me o mais possível de Volat. E de Rhodan.
— Acha que ainda está aqui?
— Isso não me interessa. O que sei é que vou dar o fora. Receio de que todos nós
tenhamos notícias de Perry Rhodan em tempo relativamente curto. A idéia de que teve
tanto tempo a fim de preparar-se para o encontro conosco me dá uma sensação bastante
desagradável. Temo até que ele não tenha dormido.
O administrador não respondeu.
De repente parecia muito triste.
O posto em Volat sempre foi agradável e tranqüilo...
Os dois homens separaram-se. Talamon saiu apressadamente em direção ao
espaçoporto, enquanto Mansrin voltou ao seu gabinete. O comandante de sua guarda
pessoal já o esperava para comunicar a sufocação da revolta e a prisão de todos os
implicados. Perguntou o que deveria fazer com eles.
— Arona, o comandante da frota de Árcon, é quem decidirá — disse Mansrin, que
desejava livrar-se da responsabilidade. — Enquanto isso não acontecer, mantenha-os em
lugar seguro.
E foi assim que um grupo de indivíduos, que haviam sido escolhidos para descobrir
e destruir a Terra, subitamente foram parar em Árcon, onde passaram a ser considerados
aliados secretos de Rhodan.
E esses homens fizeram com que o computador se defrontasse com mais algumas
charadas.
***
Alguns dos homens aliciados por Yatuhin e Tropnow viram-se privados do prazer
duvidoso de participar da viagem forçada para Árcon. No momento da revolta, estes não
se encontravam em Kuklon, mas numa pequena clareira situada entre a cidade e o platô.
Ficava afastada das trilhas mais utilizadas e dificilmente se poderia alcançá-la a pé.
Aqueles homens foram incumbidos de vigiar o veículo espacial prateado junto à
clareira, sob as copas das árvores. Tinha o aspecto de um enorme disco.
Dedicaram-se ao serviço sem muito entusiasmo. Além deles, havia mais uma fileira
de guardas a dois quilômetros, prontos para avisar, assim que qualquer criatura inteligente
se aproximasse. Se os donos do disco voador resolvessem aparecer, teriam uma surpresa
bastante desagradável.
Ninguém sabia quem havia descoberto aquele artefato misterioso. Seja como for, na
época os chefes ficaram bastante nervosos e até chegaram a demonstrar medo. Em vez de
destruir o disco, mandaram que o mesmo fosse vigiado ininterruptamente. Qualquer
pessoa que tentasse aproximar-se da pequena nave seria detida.
No fim da tarde Lobthal, um lurano, voltava de uma ronda de inspeção e chegou à
conclusão de que também na clareira tudo estava em ordem. Lobthal pertencia ao clã
bastante ramificado dos saltadores e sentia-se satisfeito em ter encontrado um bom
trabalho em Volat. Como ex-oficial de nave mercante estava acostumado a um estilo de
vida semimilitarizado, motivo por que tratava seu pessoal com bastante rigor.
Ninguém havia tocado no disco. E isto o tranqüilizou visivelmente.
Dirigiu-se à cabana que ficava na beira da mata e sentou no banco de madeira. Por
algum tempo ficou contemplando o cozinheiro, que preparava o jantar. Depois resolveu
inspecionar os guardas postados na mata. Encontravam-se em torno do veículo espacial e
serviriam de garantia adicional, caso alguém conseguisse romper a primeira barreira de
sentinelas.
Enquanto percorria o local, teve a impressão de que um véu transparente se
interpunha entre seus olhos e a nave. A menos de dez metros do lugar em que se
encontrava, algo começou a tremeluzir. E subitamente dois vultos, que estavam de costas
para ele, surgiram do nada.
Um dos vultos era humano, talvez um saltador. Usava uniforme verde, de um tipo
que Lobthal jamais havia visto. No cinto balançava um radiador portátil de fabricação
arcônida.
O outro vulto não era de homem. O animal, que teria pouco mais de um metro de
altura, “trajava” apenas o pêlo marrom e liso. Ficava ereto sobre as pernas traseiras,
como se estivesse acostumado a proceder assim e segurava a mão do companheiro. Não
trazia nenhuma arma.
Lobthal procurou compreender o fenômeno incompreensível.
Os dois indivíduos haviam surgido diante de seus olhos, vindos do nada. Portanto,
antes disso estavam invisíveis. Não havia outra explicação. Lobthal cometeu o engano de
não procurar outra explicação, mas essa atitude correspondia ao seu caráter. O óbvio
sempre lhe parecia o mais provável.
Com um movimento súbito, tirou o radiador que trazia no cinto e dirigiu-se para as
costas do homem que, segundo acreditava, era a criatura mais perigosa.
— Pare! Não se movam!
Ao que parecia o desconhecido estremeceu, mas virou-se devagar. As mãos
pendiam frouxamente junto ao corpo, longe do radiador. O animal também se virou e
contemplou-o com uma expressão de espanto e de recriminação, o que Lobthal não
conseguia compreender.
— Quem são os senhores e de onde vieram?
Fellmer Lloyd leu os pensamentos e os sentimentos de Lobthal e reconheceu o
perigo que emanava desse homem. Seria inútil desaparecer de novo, embora com o
auxílio de Gucky isso não fosse difícil. Então o disco fora encontrado e estava sendo
vigiado. Era uma atitude inteligente, mas que infelizmente a essa hora já não servia para
nada.
— Tire isso daí! — disse Lloyd apontando com a cabeça em direção à arma de
Lobthal. — Com esse brinquedo o senhor não me obrigará a falar.
— Os senhores conseguem tornar-se invisíveis? — disse o lurano, ignorando o
pedido.
Havia em sua voz um misto de curiosidade e ambição. Seus pensamentos revelaram
o resto. Lloyd pensou em tirar proveito da disposição do inimigo.
— Para quem conhece o processo isso não é difícil. Como sabe, os velhos arcônidas
já se ocuparam com isso e construíram certos aparelhos, que naturalmente não estão ao
alcance de qualquer um.
— O senhor tem um aparelho desse tipo?
Lobthal se esquecera de suas obrigações e só se interessava pela invisibilidade. Ao
que parecia, sentiu-se incomodado porque um dos guardas, que se encontrava na borda da
mata, teve sua atenção atraída pelo incidente e caminhava para o lugar onde se
encontrava.
— Temos o aparelho no bolso — piou Gucky. — Quer ver?
Era claro que na Galáxia havia seres inteligentes de todos os tipos, mas Lobthal
assustou-se quando o animal se dirigiu a ele no mais puro arcônida. Não esperava uma
coisa dessas.
— Hein? — fez cheio de perplexidade e fitou o rato-castor.
Gucky divertiu-se a valer, mas não tirou os olhos do guarda que se aproximava.
— Se quiser, eu o torno invisível — prosseguiu. — Mas você terá que mandar
embora esses homens. Eles não precisam ver isso.
Lobthal não chegava a ser tolo, mas não se poderia dizer que fosse uma fina flor da
inteligência. Nem de leve pensou na possibilidade de que aquelas criaturas misteriosas
haviam aparecido por causa do veículo espacial.
— Ei, Kortu. Pegue os outros e vá até o lugar onde estão os postos avançados.
Tomem cuidado para que ninguém rompa a linha. E levem o cozinheiro.
— Mas...
— Será que você não compreendeu? Depressa, senão lhe ensino como se corre.
Lobthal mantinha sua gente sob controle. O soldado, um saltador, obedeceu
imediatamente, embora murmurasse algumas palavras incompreensíveis.
Com os olhos, Lloyd acompanhou o homem que se afastava. A Gazela estava na
beira da mata, intata. Encontrava-se no mesmo lugar em que ele a deixara.
Lobthal quase chegava a estar febril quando se dirigiu a Lloyd.
— O que... Será que agora vocês podem mostrar como a gente se torna invisível?
Estou disposto a pagar qualquer coisa pelo aparelho, se quiserem vendê-lo.
— Você não tem nem cinco tostões no bolso — disse Gucky em tom seco.
— Tenho dinheiro, mas não aqui — voltou a erguer o radiador. — Além disso, sou o
mais forte. Posso obrigá-los.
— É preferível não experimentar — advertiu Gucky. — Aliás, terá que colocar esse
brinquedo perigoso no chão, senão não poderá tornar-se invisível.
— O quê? Largar a arma? Nunca!
Gucky deu de ombros e pôs-se a caminhar em direção à Gazela.
— Está certo; deixe para lá.
Lobthal percebeu que não estava sendo levado a sério. Isso fez aumentar a raiva que
sentia pelo animal que se encarregava da maior parte da conversa. Todavia...
— Espere! O que pretende fazer por aí?
Gucky parou e lançou um olhar perscrutador para Lobthal. Depois de algum tempo,
acenou com a cabeça, num gesto condescendente. Nesse meio tempo os soldados já
haviam desaparecido; a clareira jazia deserta sob o crepúsculo vespertino. O sol já se
pusera há muito tampo.
— Está bem; eu lhe mostrarei — decidiu e voltou.
Lloyd mantinha-se ligeiramente afastado, contemplando o disco reluzente em
atitude pensativa. Parecia não ter o menor interesse pelas “experiências” do companheiro.
— Quero ficar com a arma — disse Lobthal, insistindo na sua segurança.
— Está certo. Já que está com medo, pode ficar — concordou Gucky. — Vou
segurar a mão. Será a mão vazia, para que você não perca seu brinquedo. Isso! Agora
preste muita atenção, amigo barbudo...
Lobthal realmente se tornou invisível, mas só quem assistiu foi Lloyd. Gucky
desapareceu juntamente com o lurano curioso. Depois o mutante caminhou
tranqüilamente em direção à Gazela. O aparelho de controle baseado nas vibrações
cerebrais funcionava perfeitamente, pois a escotilha abriu-se quando Lloyd se colocou
abaixo da mesma e proferiu a palavra-código. Sem preocupar-se com o regresso de
Gucky, subiu pela escada estreita logo que a mesma desceu.
Sentiu os impulsos mentais de vários homens, mas a escotilha já voltara a fechar-se
e Lloyd se encontrava na sala de comando. Agora não lhe poderiam fazer muita coisa,
quer estivessem desconfiados, quer não.
Com alguns movimentos da mão, colocou a Gazela em condições de decolar.
Na sala dos propulsores houve um zumbido, o soalho metálico vibrou e a clareira
transformou-se numa manchinha clara em meio à mata. Lloyd não viu os homens que
gritavam e corriam de arma em punho para o lugar em que pouco antes se encontrava o
disco voador que deviam vigiar.
Orientou-se e tomou a direção de um ponto não muito distante. Dali a poucos
minutos, avistou o platô, as cabanas em forma de colméias e o grupo de volatenses que
corria ao encontro da nave prestes a pousar.
Lloyd desceu e, com um ligeiro cumprimento, passou pelos nativos que lhe
acenavam amavelmente. Thora, Rhodan e Noir já o aguardavam. Haviam reconhecido a
Gazela e acompanhado seu pouso.
— Gucky já voltou?
Leu a resposta no rosto dos dois homens. Sentiu-se dominado pela sensação de ter
cometido um erro.
— Como? — perguntou Rhodan. — Será que esse moleque resolveu mais uma vez
agir por conta própria?
— Alguém nos perturbou e ele se encarregou de levá-lo. Combinamos que voltaria
imediatamente ao platô, para não perdermos tempo.
Rhodan olhou para o relógio.
— Está tudo preparado. A despedida dos volatenses foi simples, mas cordial. Seria
conveniente que o senhor fosse apresentar suas despedidas à mãe onisciente antes de
decolarmos, Lloyd.
— E Gucky?
— Este deve aparecer no último momento; não se preocupe. Apresse-se.
Já estavam esperando há quinze minutos na comporta aberta da Gazela, quando
Gucky se materializou e se colocou a seu lado com um salto. Antes que alguém tivesse
tempo de dizer qualquer coisa, o rato-castor pôs-se a chilrear:
— Já podemos ir embora, cavalheiros.
Rhodan fez um rosto zangado, segurou o desobediente pelas orelhas e arrastou-o em
direção à sala de comando. Com um empurrão, fê-lo sentar no sofá.
Lloyd decolou.
O planeta Volat foi diminuindo na tela, até transformar-se numa estrela brilhante.
Com os campos antigravitacionais ativados, a Gazela acelerava para atingir a velocidade
da luz. Noir, que se encontrava na sala de rádio, procurou entrar em contato com o
comandante da Lotus, Jim Markus.
— E agora, meu pequenino, você vai contar direitinho por onde andou todo esse
tempo. Um teleportador não precisa de meia hora para levar alguém de um lugar a outro.
Gucky oferecia um aspecto triste. Arrependido, estava agachado no sofá com os
olhos marrons e ingênuos semicerrados. Deixou pender tristemente as orelhas, e o dente
roedor, que costumava aparecer constantemente, não surgiu.
— Eu o levei a Kuklon, chefe. Foi por isso?
— Foi? E não tem mais nada a dizer?
Gucky fez um gesto afirmativo.
— Posso ser punido quando faço alguma coisa sem ordem expressa, mas meu ato se
revela útil à causa?
Rhodan esforçou-se em vão para ler nos pensamentos do amigo, mas o bloqueio
erigido por Gucky impediu-o de realizar seu intento. Olhou para a tela e respondeu:
— Depende das circunstâncias. Desde que você não cause nenhum prejuízo que
possa ser provado, a arbitrariedade pode ser perdoada. Mas fale logo. O que andou
fazendo em Kuklon?
Gucky entesou o corpo e exibiu um sorriso tímido. A parte inferior do dente roedor
tornou-se visível.
— Levei Lobthal a cidade e...
— Ora essa! Quem é esse Lobthal?
— É claro que só pode ser o sujeito que estava vigiando a Gazela. Ah, desculpe! É o
bloqueio mental. Esqueci.
Liberou o acesso ao seu cérebro, para que Rhodan tivesse mais facilidade em
orientar-se, e prosseguiu:
— Larguei-o em pleno centro, onde ficou um tanto deslocado, com a arma de
radiações na mão. Não quis nem poderia impedir a intervenção da polícia. O segundo
salto transportou-me ao palácio de Mansrin. Estava interessado em saber o que havia
acontecido. Bem, fiquei satisfeito com o que consegui descobrir. Foi mesmo Talamon que
reconheceu você. O administrador anda escondido depois que Árcon foi avisado. Quer
dizer que já temos certeza, chefe. O “monstro”, que se encontra 30 mil anos-luz daqui,
sabe que Rhodan ainda vive. Também já sabe que você esteve em Volat. Receio que já
tenha chegado a hora de desistirmos do jogo de esconder.
Rhodan ouvira-o sem interromper. Aquilo que Gucky lhe contou não era nenhuma
novidade e não o surpreendeu. Teria de esperar por isso. Mas havia uma coisa que
Rhodan não compreendia: por que Talamon resolvera traí-lo? Afinal, já foram bons
amigos. Será que agira assim sob o efeito do susto e já estava arrependido? Era bem
possível que o choque sofrido, ao verse diante de uma pessoa que há tanto tempo
acreditava estar morta, lhe turvasse o raciocínio por algum tempo.
Fosse como fosse, a essa hora o regente de Árcon já sabia que seu maior rival estava
vivo e em atividade. O computador gigante se prepararia para iniciar a luta que colocaria
em jogo a existência de um Império no qual brilhavam mais de mil sóis.
Noir anunciou em tom orgulhoso:
— Estabeleci contato com a Lotus. Tenho o raio vetor.
— Corrija a rota — ordenou Rhodan, acrescentando: — Procure colocar Markus na
tela, Noir. Quero fazer-lhe algumas perguntas.
Noir não era especialista em matéria de rádio, pois do contrário teria conseguido
mais depressa. Rhodan podia dar-se por satisfeito porque, dez minutos depois, o hipno
pôde anunciar:
— O contato com o comandante Markus já foi estabelecido, chefe. Quer falar com o
senhor; ao que parece está bastante nervoso.
Rhodan dirigiu-se à sala de rádio e ocupou o lugar de Noir. Acionou alguns
controles e os contornos do rosto de Markus tornaram-se mais nítidos. Os detalhes da sala
de comando da Lotus também. Noir era um bom hipno, mas não entendia quase nada de
rádio. Aliás, não tinha necessidade disso, pois era telepata.
— Alô, Markus. Aqui fala Rhodan. Como está a ligação?
— Entendo-o perfeitamente, Sir. Qual é sua posição?
— Estou a cinqüenta e três minutos-luz de Volat. Por quê?
— Irei ao seu encontro. Ninguém sabe o que poderá acontecer nos próximos trinta
minutos. Como foi que o descobriram?
Rhodan teve a impressão de ter levado uma pancada. Como foi que Markus soube?
— Descobriram? Por que diz isso?
— Alguém deve ter dito ao computador de Árcon que o senhor se encontra em
Volat. Então não sabia?
— Sabia, Markus, mas estou procurando descobrir como foi que o senhor soube.
Será que captou a mensagem de Mansrin?
— Não; captei a mensagem do regente.
Rhodan já estava acostumado às surpresas. Mas, diante de uma surpresa como esta,
levou alguns segundos para formular a pergunta seguinte.
— O computador enviou uma mensagem? É para Mansrin?
— Não senhor — respondeu Markus. — É para o senhor.
Rhodan perdeu a paciência.
— Fale logo, homem! O que houve?
— Há meia hora estou recebendo um pedido transmitido pelo hiper-rádio. O pedido
foi redigido em linguagem comum e é repetido automaticamente a cada dois minutos.
Está interessado no texto?
Ouvia-se que Rhodan respirava com dificuldade.
— Quando o senhor estiver na minha frente, Markus...
— Está bem. Darei o texto da mensagem. Vou começar:
Chamamos Perry Rhodan, do planeta Terra. Sei que você está vivo. Entre em
contato comigo pela freqüência anterior. Garanto sua vida e sua liberdade. O regente de
Árcon.
7
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