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36º Encontro Anual da Anpocs

Outubro, 2012.
GT 20. Metamorfoses do rural contemporâneo.
Fronteiras de mudança : lazer, esporte e práticas femininas no
mundo equestre

Dra. Miriam Adelman, Universidade Federal do Paraná

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Gênero, esporte e lazer.

Cada vez mais estudadas, as experiências das pessoas no âmbito do esporte e lazer
deixaram de ser relegadas ao terreno de “questões menores” da Sociologia e passaram, nas últimas
décadas do século XX, a serem compreendidas na sua relação com todos os “grandes temas” do
mundo contemporâneo, desde o poder e a desigualdade políticos e econômicos até a construção de
identidades, subjetividades e corporalidades. Esta abertura para novas temáticas e olhares
incluiu também a incorporação da “perspectiva de gênero “ - a problematização da construção
social do masculino e do feminino e da forma em que a sociedade moderna constrói espaços,
atividades e valorizações diferentes, hierárquicas e desiguais, para homens e mulheres - ao
pensamento e à pesquisa social. Trata-se de modificações que participam de um movimento
teórico amplo, o qual dá nova importância a questões de cultura e vida cotidiana, problematiza as
epistemologias que balizam as teorias “clássicas” e incentiva a incorporar novas categorias – como
as de gênero , raça/etnicidade, gênero, sexualidade, e geração- ao elenco dos conceitos básicos do
pensamento sociológico.1

Desta forma, novos cruzamentos emergem e estimulam estudo e reflexão. Ao esporte,


por exemplo, ressalta-se seu caráter profundamente “generificado”, partindo do insight fundamental
que identifica o surgimento do campo esportivo moderno como um dos loci fundamentais da
construção social da masculinidade em novas condições de vida crescentemente pacificadas onde
os homens deixam de guiar-se por um “ethos guerreiro” (Elias, 1994; Oliveira, 2004) mas precisam
ainda preservar hierarquias socio-culturais de superioridade e dominação masculinas. ( Kimmel,
1996). Assim, o esporte nasce atrelado à configurações de poder, mas também à busca do prazer e
da excitação , aos espaços do lúdico e ao espírito de aventura e realização que adquirem certa
expansão ou tendências “democratizantes” nas sociedades modernas (Dunning e Elias, 1992).
Portanto, não deve surpreender que, apesar das tentativas históricas de exclusão das mulheres deste
espaço – sua construção, discursiva e prática, como seres frágeis, dóceis e domesticadas “por
natureza” (Kehl, 1998) - emergem outras práticas como formas de resistência, de mulheres que
também são sujeitos do desejo e que anseiam maior autonomia e liberdade em relação ao corpo, o
movimento e o livre trânsito pelos diversos espaços da vida social. . Desde o início do século XX,
destacam-se vigorosos esforços contra diversos tipos de barreiras à participação esportiva das
mulheres (Goellner, 2004; Hargreaves, 1994), coincidindo em tempo e impulso – e de certa forma,
com os objetivos mais amplos – das lutas sufragistas.
1 Existe uma amplíssima literatura ao respeito, cuja trajetória não podemos aprofundar aqui, mas que discuti largamente
noutro lugar (cf. Adelman, 2009)

2
A historiadora Silvana Goellner (op.cit.) explica as atitudes hostis com que se recebia a
participação feminina nos Jogos Olímpicos na virada do século XX:

O suor excessivo, o esforço físico, as emoções fortes, as competições, a rivalidade


consentida, os músculos delineados, os gestos espetacularizados do corpo, a liberdade
de movimentos, a leveza das roupas e a semi-nudez, práticas comuns ao universo da
cultura física, quando relacionados à mulher, despertavam suspeitas porque pareciam
abrandar certos limites que contornavam uma imagem ideal de ser feminino. Parecia,
ainda, desestabilizar um terreno criado e mantido sob domínio masculino, cuja
justificativa, assentada na biologia do corpo e do sexo, deveria atestar a superioridade
deles em relação a elas (p.363)

Mas esta desestabilização era exatamente o objetivo - ou por vezes, o resultado - da ação de
mulheres atletas amadoras e profissionais que, motivadas pelo desejo de autonomia, liberdade e
prazer, enfrentaram o preconceito e as barreiras institucionais para apropriar-se ou cavar seu
próprio nicho dentro de diversos campos esportivos. Hoje em dia, após esforços individuais e
campanhas coletivas, as mulheres atletas estão em todas partes e não existe nenhum esporte que
barre totalmente ou não incorpore alguma forma de participação feminina. Contudo, a ausência de
medidas institucionais formais restritivas está longe de significar paridade ou “igualdade de
oportunidades” entre homens e mulheres no esporte. Se a crescente participação feminina em
atividades de esporte e lazer pode talvez, ser compreendida como evidência da conquista de uma
certa “liberdade pós-moderna”, como sugerem os autores Mc Ginnis, Chun e McQuillan (2003),
por outro lado, muitos esportes ainda exigem das atletas “posturas apologéticas” para compensar o
estigma que paira sobre a habilidade atlética feminina (Cahn, 1994; Festle, 1996) isto é, de uma
suposta “masculinização”.

Desta maneira, podemos perceber como o campo das práticas corporais e


esportivas continua sendo um terreno tão conflituoso quanto contestado, no qual práticas “materiais
e simbólicas” que constroem e definem corpos masculinos e femininas se disputam, tornando-se,
por vezes, um dos terrenos mais sensíveis nas batalhas atuais para preservar ou derrubar as
dicotomias e desigualdades de gênero. A atual“cultura fitness”, produto das últimas décadas do
século vinte, apoia-se na representação midiática de corpos esbeltos, firmes e “saudáveis”, corpos
que se tornam quase um projeto de vida para muitos homens e mulheres pós-modernos. Nesta
cultura, privilegia-se o espaço da academia e promovem-se alguns outros tipos de lazer e recreação
física urbana que podem ser realizados em espaços cotidianos (caminhadas e/ou exercícios
praticados, por exemplo, em parques, ciclovias ou praias), percebidos como atividades de baixo
risco e orientadas para a saúde e boa aparência, em fim, formas “domesticadas” de cuidar de si.
Estas atividades são, hoje em dia, altamente comercializadas, com participação masculina e
feminina; contudo, parece que enquanto a cultura torna-se cada vez mais “pós-moderna” (ou seja,

3
incluindo entre suas principais características, formas de consumo individualizado e uma grande
tensão entre “liberdade” e “disciplinamento”), as mulheres se tornam, de fato, as maiores
“consumidoras” de este tipo de lazer (Hartman-Tews e Petry, 2006)

Quanto ao esportes de alto rendimento, a maior parte deles continuam organizados segundo
critérios de sexo/gênero (prática e competição separadas), assim como sustentando diversos
mecanismos de “normalização” de corpos e sujeitos, para que, por exemplo, uma mulher “possa”
ser jogadora de futebol sem correr o risco de ser estigmatizada (isto é, desde que mantenha um
performance corporal adequado) ou para que a “superioridade física” dos homens não se coloque
em questão (e.g. através da manutenção de estruturas esportivas segregadas por gênero, baseadas
nas premissas que o performance e rendimento femininos serão sempre piores ou menores do que
os dos homens). Conflitos como aquele que surgiu entorno do “verdadeiro sexo” da atleta sul-
africana Caster Semenya2 são evidência da persistência de um regime de verdade binário e
classificatório, que não admite ambigüidades e se apoia na “desculpa” de ter que garantir o desafio
do jogo.

No que diz respeito a atividades de lazer, a literatura internacional evidencia uma assimetria
persistente no acesso de mulheres e homens ao tempo necessário e às possibilidades culturais para
se engajar nelas. Os maiores constrangimentos tem “caráter cultural” (isto é, vinculam-se aos
sentidos que as pessoas constroem sobre o uso do tempo, sobre o lazer e sobre quem ou como se
tem direito a ele). Já desde a adolescência, nota-se a tendência de meninas se engajarem menos em
atividades atléticas e esportivas, e se orientarem mais – além de atividades “culturais” e sociais
diversas - para práticas de cuidado com a aparência (Pfeifer, Martins e Santos, 2010), o que pode
alimentar desvantagens quanto ao desenvolvimento de capacidades físicas e confiança nas
habilidades corporais na vida adulta. Para mulheres adultas, a questão do estado civil figura como
fator que condiciona o acesso ao e uso do tempo livre:

Mulheres solteiras desfrutam não só responsabilidades domésticas menores senão se


beneficiam também da confiança de afirmar seu direito ao lazer. Ao fazer isto, as
solteiras desenvolvem habilidades na negociação de espaço, tempo e local para o lazer,
tendo ganho o senso de liberdade da normas tradicionais restritivas e portanto
conseguindo participar mais em esportes e lazer ativos. Escolaridade e emprego
consolidam o senso de autonomia destas mulheres, favorecendo suas vantagens sociais e
econômicas. (Tomlinson, 2006,. p.11, tradução minha)

Como a citação anterior sugere, situação socioeconômica e “capital cultural” (no sentido sugerido
pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1985) que remete a processos de construção do gosto) são também

2 A ambigüidade de gênero de Caster Semenya, sul -africana e campeã mundial de atletismo, a envolveu numa
polêmica com ampla cobertura midiática e na qual acabou sendo submetida a sex testing para a partir disso poder
legislar sobre seu “verdadeiro lugar” na competição esportiva.

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fatores que precisam ser considerados, criando preferências para (e acesso ao) atividades físicas ou
esportivas particulares. Tratam-se, contudo, de processos dinâmicos, isto é, não são atributos ou
características estáticos senão que evoluem com a sociedade, a cultura e com certeza com a
participação social e a trajetória de cada mulher como sujeito singular, como nosso próprio trabalho
de pesquisa revela.

Sabemos, contudo, que padrões sociais estabelecidos não se mudam sem resistência. Mesmo
havendo criado o hábito de ou gosto pelo esporte, mulheres casadas - particularmente uma vez
constituída a família reprodutiva - costumam experimentar uma queda muito grande no acesso ao
tempo livre e dificuldades para negociar um espaço o lazer e atividade esportiva. Isto parece
independer de situação laboral, ou seja, pode ser constatado tanto para mulheres que trabalham fora
de casa e as que se dedicam ao lar. No caso das primeiras, o problemática da “dupla jornada” já é
bem conhecida, encolhendo o tempo livre delas enquanto seus maridos preservem o direito
consagrado a um espaço não consumido nem pela família nem pelo trabalho. Mas para as donas de
casa, para as quais a jornada de trabalho carece de fronteiras claras, a dificuldade de arranjar um
tempo para si pode não ser muito diferente. Desta maneira, algumas questões mais “objetivas”
como o tempo efetivamente disponível para o lazer durante o dia ou a semana, o peso exercido
pelas normas e atitudes culturais opera para que as pessoas naturalizem a “maior responsabilidade”
das mulheres para com os filhos e o bem estar familiar, naturalizando portanto o sacrifício de um
tempo para se mesmas, ou fazendo com que vivam seu lazer através de atividades compatíveis com
os gostos e necessidades de seus filhos (Tomlinson, op.cit ; Mc Ginnis et al, op.cit)3

No Brasil, constata-se um crescente interesse por questões de gênero, esporte e lazer e o


reconhecimento da sua importância, como elemento das complexas configurações de mudanças
sociais e culturais em curso. Não obstante, é ainda escassa a literatura brasileira que cruze
especificamente gênero e lazer, especialmente em relação a pessoas adultas. Por tanto, para além
das generalizações sobre dificuldades e padrões estabelecidos, sabemos muito pouco sobre a
evolução de costumes e práticas específicas de mulheres, urbanas e rurais, e/ou de classes sociais
diferentes. Em relação ao lazer de mulheres moradoras de áreas menos urbanizadas, na literatura
existente vemos prevalecer a suposição de que as mulheres, esgotadas pela sobrecarga de trabalho
na família ou submissas a um modo de pensar que circunscreve seu desejo a seu papel nessa última,
pouco reivindicam relativa a aquela outra esfera, a do “tempo livre” como fonte de prazer,
descanso e realização. Segundo um dos trabalhos sobre o tema,

3 Como veremos mais adiante, as atividades equestres amadores (de lazer) constituem-se, nas últimas décadas e ao redor
do mundo, num caso muito diferente, concentrando grande número de meninas e mulheres. Ver por exemplo –
Midkiff sobre mulheres adultas, outras sobre grande participação de meninas

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O lazer se configura, assim, enquanto elemento estruturado em correspondência com a
afirmação dos papéis da mulher e homem no meio rural, no qual a mulher é educada e
se auto-educa para atividades que não coloquem em risco sua constituição física ou
emocional, como, por exemplo, sair com filhos e visitar parentes. No caso dos homens,
a situação é diferente. Eles procuram no lazer possibilidades de exercitar essa excitação
das emoções até níveis elevados, procurando através dele afirmar sua identidade
masculina, encenando formas de manifestação da violência, do desejo pela aventura e
pelo risco, dentro de uma performance que reforça a visibilidade de seus atributos de
macheza. Podemos afirmar, assim, que o lazer se constitui em um veículo de reprodução
de modelos de feminilidade e masculinidade.” (cf. Andrade, et. al., 2009, p.48)

Com certeza, o que estes autores descrevem reflete uma parte – talvez até uma parte realmente
grande – da realidade atual em muitas regiões do Brasil rural. Contudo, trata-se de uma afirmação
muito geral que pode encobrir práticas diversas e mudanças com fortes elementos regionais e
geracionais. Nosso próprio trabalho de pesquisa sobre o meio dos rodeios CTG no sul do Brasil,
que apresentaremos abaixo, indica que há mudanças significativas em curso, atingindo o meio
rural e o semi-rural das regiões peri-urbanas de tal maneira que a inexistência de um lazer feminino
não é mais algo que se possa simplesmente pressupor sem maior empreendimento de estudos
empíricos (cf. Adelman & Becker, no prelo).

Podemos então afirmar que, muito longe de ser uma consideração menor, a
igualdade e da equidade de gênero – assim como a possível e revolucionária “desconstrução” do
gênero - nas esferas de esporte e lazer é importante em si mesma e também na medida em que se
articule aos processos de mudança em todas as outras esferas da vida social. Sabe-se, por exemplo,
que “o lazer de uns é o trabalho de outros” (Jarvie e McGuire, 1994). Inclusive, as discussões sobre
o mundo do trabalho que tomam lugar de destaque na sociologia contemporânea revelam que a
relação entre trabalho e lazer precisa ser pensado e repensado: o espaço de lazer vem sendo cada
vez mais reconhecido como espaço fundamental para a construção das subjetividades/identidades,
o que a sua vez implica na (re) produção de valores (sejam “hegemônicos” ou
“contrahegemônicos”, democráticos ou igualitários, desenvolvimentistas ou ecologistas, machistas
ou feministas, etc.) É possível argumentar que, para a maior parte da população trabalhadora-
dificilmente englobadora de pessoas que se realizam plenamente na vida profissional ou
vocacional - a esfera do lazer é muito mais valorizada do que a do trabalho. É na esfera do lazer, e
não a do trabalho, que ofereceria maiores possibilidade de ser vivenciada como esfera de
liberdade, autonomia, escolha (embora também de tensão e conflito). Trata-se de um deslocamento
que vem sendo reconhecido através de longas discussões da sociologia contemporânea, desde os
trabalhos já mais antigos de Claus Offe (1989), Eli Zaretsky (1976) e André Gorz (1982) até
discussões recentes que se deram em torno da tese da “modernidade reflexiva” de Anthony
Giddens (1991a, 1991b). Mas tanto para as pessoas cujo trabalho “alienante” lhes sirva apenas de

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meio de sobrevivência e instrumento para a construção de um projeto pessoal noutras esferas quanto
para as que se realizam, em maior ou menor grau, através de atividades profissionais, o lazer se
constitui como tempo/espaço privilegiado. Emerge como cobiçado bem ou recurso, e sua
distribuição desigual por gênero significa, por tanto, uma desigualdade fundamental em termos de
acesso a recursos socialmente valorizados, a espaços de construção do eu e de relação com o
mundo, a espaços e tempos de prazer e sociabilidade.

As mulheres nas atividades equestres no Brasil.

Ao longo de mais de quinze anos de pesquisa, venho examinando como os esportes e atividades
equestres caracterizam-se por algumas especificidades que os tornam terreno particularmente fértil
para pesquisa sobre relações de gênero e construção de corpos, identidades e culturas esportivas.
Nos Estados Unidos, existe certa quantidade de literatura, em gêneros distintos (trabalhos
acadêmicos e populares, e até literatura infanto-juvenil), que documenta a história e as formas do
envolvimento histórico das mulheres com os cavalos e os esportes equestres, desde a história das
"pioneiras do rodeio", passando pelas primeiras amazonas a competir em nível internacional no
salto, as primeiras jockeys, até uma literatura contemporânea de não pouca visibilidade sobre
meninas e mulheres na cultura e na indústria equestres (desde romance até livros no estilo
autoajuda!).Possuímos o registro, desde pelo menos o final do século XIX, da participação das
mulheres no circo e no rodeio como parte dos momentos iniciais de uma "cultura do
espetáculo"/indústria de entretenimento. Esses espetáculos atraíam um público ansioso de ver as
mulheres demonstrarem suas habilidades em atividades cujos riscos e desafios não se associavam
convencionalmente ao "feminino". Temos o feliz acesso às histórias de mulheres legendárias -
muito extraordinárias para seu tempo - como a artista do circo alemã Katie Sandwina, integrante do
famoso Barnum & Bailey, e a estrela de rodeio Lucille Mulhall, nomeada pela imprensa "America's
first cowgirl", quem nos primeiros anos do século XX, ainda adolescente, participava de
espetáculos que pretendiam recrear um pouco do "espírito da fronteira" para os moradores de
cidades grandes. Mais ainda, uma associação significativa e recorrente aparece nos discursos do
ocidente moderno entre montar a cavalo e a liberdade feminina, tanto na cultura popular quanto na
literatura contemporânea (cf. Adelman, 2011).
Contudo, no Brasil - um país que também tem uma considerável cultura equestre - tanto a
história quanto a realidade atual do envolvimento das mulheres nessa cultura continuam pouco
recuperadas e discutidas. Com certeza, não há um campo de produção discursiva específica a
respeito (encontrei, até agora, só um livro que trate especificamente de mulheres brasileiras que
cavalgam: cf. Sant'Ana, 1993), embora haja uma presença feminina crescente nas revistas equestres

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que apresentam resultados de concursos e notícias sobre o mundo dos esportes equestres no país. De
fato, meu interesse inicial pelo tema surgiu de um artigo de jornal sobre as mulheres no mundo
equestre do hipismo clássico (salto) defendendo as características igualitárias desse esporte (sejam
identificadas como inerentes ao esporte ou como conquistas nada fáceis (cf. Adelman, 2004) Mas,
como parte de um meio de elite num país caracterizado pela desigualdade social extrema, me
parecia necessário ponderar sobre a relevância de descobertas feitas nesses ambientes de privilégio
para a população (majoritária) sujeita à dificuldade econômica e muitas vezes à extrema pobreza,
exclusão e marginalização.
Por outro lado, eu percebia que os cavalos continuavam sendo importantes recursos materiais e
simbólicos dentro das comunidades e das tradições rurais no Brasil. Como cavaleira "amadora",
tinha passado muitos domingos pela manhã - sozinha ou na companhia de amigos - montando pelas
estradas de bairros periféricos e municípios contíguos a Curitiba, onde via, uma e outra vez, homens
e meninos curtindo seu lazer no campo de futebol ou montando a cavalo com os amigos.
Geralmente a ausência feminina era marcante. Mas nas ocasiões - costumavam ser várias vezes por
ano - em que uma comunidade local organizava uma cavalgada festiva (quase sempre vinculada às
padroeiras das igrejas) acontecia algo diferente: homens e mulheres, meninos e meninas se
juntavam num raríssimo momento de lazer esportivo compartilhado.
Embora em certo sentido as atividades às quais me referi acima pertenciam a dois mundos com
profundas diferenças - um, o meio elitista da hípica e outro, o recinto de tradições comunitárias
populares -, havia algo que percebia como sendo comum a ambos que sugeria uma forma particular
de empoderamento feminino. Foi isso que me instigou a continuar na empreitada e pesquisar vários
campos diferentes de atividades equestres, cada um deles com fortes traços distintivos, indagando
sobre as vicissitudes da participação feminina em e entre eles, guiada pelo interesse em descobrir
como, em cada um desses meios, as mulheres que montam constroem um sentido particular do eu,
do corpo e do ser mulher.

As mulheres no mundo do salto

Como disse acima, o mundo elitizado do hipismo clássico vem se tornando cada vez mais
"misto" - ou mesmo feminilizado. É isso também uma característica que o distingue dos outros
meios equestres que vou considerar aqui, para os quais o conceito teórico de "homossociabilidade4
masculina" é altamente pertinente. No entanto, o mundo da equitação clássica também, noutra
época, privilegiava o masculino, e possui uma longa história de gênero - exemplificado, por
exemplo, em histórias como as memórias da cavaleira britânica Pat Smythe (1992) a primeira
4 Conforme Sedgwick, 1985, que introduz uma discussão sobre homossociabilidade como o formato corrente
tomado pelas relações da esfera pública da modernidade.

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mulher a participar das Olimpíadas nessa modalidade. No Brasil, o esporte inicia-se em
proximidade com o exército e, portanto, por definição, com um vínculo muito forte a um espaço
quinta-essencialmente "homossocial". Hoje, contudo, o cenário encontra-se muito transformado, o
que se observa facilmente em qualquer competição hípica; o cenário se apresenta de outra forma: há
uma minoria de pessoas enfardadas (e entre elas algumas costumam ser jovens mulheres) e, no
geral, a presença feminina é majoritária.
Uma hipótese que se pode sugerir é de que o caráter elitista do esporte, assim como a posição de
elite ou "classe média alta" das pessoas que nele participam, facilita a participação feminina, já que
abrange segmentos de mulheres com maior capital econômico e social (o que, por sua vez, favorece
a independência, a autonomia e a liberdade de ação). No final dos anos 1990, realizei entrevistas e
longas horas de observação (e, por vezes, participação) num meio que tomava como seu centro a
Sociedade Hípica Paranaense, em Curitiba. Lá gravei entrevistas com seis mulheres que se
consideravam profissionais ou semiprofissionais. As amazonas eram todas de origem étnica
"europeia", tinham cursado estudos universitários e provinham de famílias com altos níveis de
capital cultural e financeiro. Quando depunham sobre sua rota de ingresso ao mundo esportivo,
todas essas amazonas falavam que "sua paixão pelo esporte" ou pelos cavalos geralmente começava
na infância. Uma descreveu um encontrou casual que se tornou paixão desta maneira: "Eu fui a
primeira amazona na família. Foi por vontade mesmo, por gostar de bicho e gostar do esporte.
Numa viagem para Fortaleza, assisti um campeonato numa praça; aí eu fiquei pedindo, pedindo, até
a minha mãe me colocar" (Marcela). Outra descreveu um passatempo juvenil que virou projeto de
vida noutra época da vida: "Meu pai tinha uma chácara e todo mundo montava ali [...]. Desde que
eu era pequena eu queria praticar o esporte, não apenas cavalgar, mas saltar. Eu sempre li muitos
livros e revistas, mas não era o bastante, você precisa de alguém para te ensinar [...]" (Tânia). É
significativo, também, que algumas amazonas tenham se envolvido no salto contra a vontade de
membros da família e de parentes, os quais viam o deporte como "perigoso demais para uma
mulher", como no caso de Adriana:
Eu sempre amei os cavalos, e adorava montar na fazenda da minha família [...]. Mas eu não
sabia, de fato, montar [...]. Então, quando eu vi isso aqui [prova de salto na Sociedade Hípica
Paranaense] eu fiquei maluca. Meu Deus do céu, que maravilha! Eu falei para meus pais que eu
estava a fim de entrar na hípica para aprender a montar e eles disseram que não, que 'é muito
perigoso, para menina não!'. Então eu procurei a minha avó, pedi dinheiro a ela e subornei o
nosso chofer; ao invés de me levar para a aula de inglês, ele me trazia aqui.

Tempos depois, surpreendeu seus pais ao convidá-los para assistir a uma competição na hípica na
qual ela era uma das concorrentes!
Uma confluência particular de fatores (mulheres muito privilegiadas, um campo esportivo misto
em que as portas já se abriram e que consegue cativá-las tão plenamente, certo distanciamento do

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tipo de cultura de celebridade esportiva que tantas vezes inclui a exposição mediática do corpo da
atleta etc.) parece favorecer a construção desse lugar como espaço para cultivar uma identidade que
desafia algumas normas sociais de feminilidade, mesmo que persistam nele noções de "estilos
femininos de montar". Por outro lado, e em pleno contraste com outro grupo de atletas que
entrevistei na época, as amazonas não falaram sobre preocupações com as formas corporais nem se
demonstraram susceptíveis a formas de policiamento de corpos e atitudes de vigiar as mulheres em
termos de se manterem dentro dos padrões de "imagem da mulher desejável". Ao contrário, elas
pareciam tomar grande prazer noutras formas de auto-representação: corajosas, aventureiras,
mulheres que se orgulham de sua competência física pouco comum.
Contudo, das entrevistas não emergia um cenário livre de "problemas de gênero". Embora
nenhuma das informantes tenha reclamado especificamente de ter vivenciado discriminação de
gênero dentro do esporte em si, falaram sobre os efeitos de mecanismos informais relacionados à
família, cultura e sociedade. Mencionaram, por exemplo, o grau de preocupação presente nas
famílias em relação ao envolvimento das filhas no esporte, argumentando que se demonstravam
uma confiança menor nas habilidades das meninas e um maior receio em relação a cicatrizes e
sequelas de possíveis acidentes. Nesse sentido, foi assinalado que muitos pais tentam frear o
engajamento esportivo das meninas, a partir do momento em que passariam a competir em provas
mais puxadas ou, como minha informante Adriana informou, "acima de 1 metro e 10". Outro
constrangimento refere-se às dificuldades que mulheres adultas podem sentir em conseguir apoio
familiar para suas atividades competitivas. Duas informantes falaram em termos muito parecidos
sobre a diferença entre o apoio entusiasmado com o que os cavaleiros que competem podem contar
- desde a garantia da presença da mulher e dos filhos na torcida nas arquibancadas até o respeito de
cônjuges que não montam pelas necessidades de viagens de final de semana para competir em
cidades ou mesmo em países distantes - e a falta de apoio de maridos quando são (só) as esposas
que montam e competem.
E, finalmente, todas as minhas informantes, de alguma maneira, falaram não só de sua paixão
pelos cavalos e do mundo equestre, mas exprimiram também a convicção de que suas atividades
equestres colocaram-nas numa "outra categoria" afastada de construções convencionais de
feminilidade. Elas se enxergavam como mais valentes e ousadas, ou ainda, mais afastadas do
cotidiano banalizado de interesses "tipicamente femininos", como percebemos nas palavras de
Tânia, instrutora de equitação:
Talvez esta seja a melhor parte do que fazemos aqui. As crianças se acostumam com a natureza,
com sujar suas mãos e roupas, com cuidar de seus cavalos. E você realmente vê que elas são
diferentes, essas meninas que vêm aqui para montar. A parte mais importante do seu dia elas
passam aqui, então as idas

Sobre o rodeio e o lazer “rural”

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Eu adoro, amo animal...amo cavalo sabe, adoro mesmo....eu acho que existe um certo preconceito,
isso existe...porque no mundo que a gente vive existe o machismo...tanto é que na primeira região
nossa aqui as prendas estão tomando a sua vez...tanto que tem mais de cem prendas laçando hoje
em dia né...aqui na nossa região de Curitiba, a região em volta...mas sempre vai existir o
preconceito, isso sempre vai existir...sempre vai ter algum homem machista que vai dizer “ah, você
não tem competência, você não é capaz”, isso é norma.l [...] Os próprios homens, os mais antigos
que deveriam incentivar no tradicionalismo, tem uns que não concordam, acham que “lugar de
mulher é na cozinha”, tem uns que falam assim mesmo. (Valéria, 26 anos).

A primeira vez que eu, muito por acaso, assisti prova de laço, deve fazer já quase quinze anos, o
que o situa no final da década de 90. Embora não tenha gravado na memória muitos detalhes
específicos sobre o lugar e a ocasião, lembro sim da minha alegria ao ver entrar na cancha uma ou
duas meninas, de chapéu e trança loira comprida, perseguindo bezerro com o mesmo empenho e
garra que seus companheiros de sexo masculino. Mas nesse dia eram minoria absoluta. Uma ou
duas no meio do monte!
Mais recentemente, fazendo pesquisa de campo com minha orientanda e talentosa pesquisadora,
Gabriela Becker (cf. Becker, 2011) , ouvimos muitas pessoas se referindo ao início do novo milênio
como momento que coincide, a grosso modo, com a entrada das mulheres nas provas de laço. Que
isto seja um fato novo e realmente indicativo de um novo momento na cultura rural do Brasil seria
sugerido, por exemplo, pelos relatos de pesquisadores que estudaram gênero e lazer no meio rural
da última década, como o trabalho de Brandão, 1999 no qual “o autor observou que é comum entre
os homens, o truco, o rodeio e a caçada, além do futebol, que representam uma espécie de
experiência individual e coletiva de um ‘ethos’ de afetos e identidades que se imagina qualificar o
‘homem macho’ do passado e sua preservação no presente” (apud Andrade et al p.41) () e ainda o
estudo de Stropasolas, (publicado em 2004) no qual uma informante fala sobre o futebol: “ele vai
jogar futebol, que é o gosto dele mas não é o gosto da mulher. A mulher tem outros planos, ela gosta
de outras coisas. Eu até tava falando estes dias, às vezes, a gente, no caso, se sacrifica para ir lá num
jogo de futebol. Tudo bem, vamos juntos, tal.” (apud Andrade p.42).
Mais evidências sobre a suposta ausência de interesse ou possibilidades das mulheres
participarem nas esferas de lazer convencionalmente masculinas vem diretamente de um estudo
sobre o mundo do rodeio e as competições de laço publicado em 1999. O autor, Pimentel, ressalta a
grande importância simbólica destas festas de laço, que “evoca(m) a vida rural”, gerando uma
“metalinguagem” da vida rural enquanto “espaço da vivência da imprevisibilidade, da
periculosidade e das emoções no ambiente externo”, (apud Andrade et al), criando então valores
significados a sua vez como masculinos . De fato, no seu estudo realizado nos ano 90, Pimentel
encontrou que as mulheres se inseriam “na lógica do rodeio como expectadoras acompanhadas ou,
principalmente, na busca por um companheiro. A participação feminina na prática do Jogo do Laço
é restrita a pouquíssimas mulheres que na maioria das vezes apresentam uma história social
11
diferente das demais mulheres do campo” P.47) Explica ter encontrado apenas uma, que ao casar
abandonar esta prática. Neste contexto, restaria perguntar sobre os efeitos profundos desta
exclusão exclusão das mulheres deste campo de práticas tão significativas, e da construção de
linguagens que conferem sentido à existência e tornam-se forte eixo de identidade coletiva.
Felizmente, nosso estudo – iniciado no final da primeira década do novo milênio – nos permite
constatar um cenário muito diferente. Mesmo sem querer afirmar a exclusão, de facto, das
mulheres do mundo destas práticas equestres populares – suspeitamos que a comentada ausência
pode conter também uma porção de invisibilização , tanto de práticas cotidianas femininas quanto
de atitudes de aberto desafio e transgressão – nossos informantes, homens e mulheres, apontavam o
tempo todo para um mundo em plena mudança. Apontavam para o ano 2000 como marcador
(aproximado) do ingresso maciço de meninas e mulheres aos rodeios, neste caso, os dos CTGs, o
métier específico desta região do sul do Brasil que estudamos. Becker (op.cit) detalha como o
próprio termo “prenda” - uma das muitas (re)significações das tradições do sul do Brasil - muda de
sentido uma vez que a participação feminina desloca-se da concentração na área “artística” (dança,
canto, declamação de poesia, artesanato) para as provas campeiras. Sem dados estatísticos oficiais
mas após muitas horas e muitas jornadas de pesquisa de campo em rodeios e treinos assim como de
observação participativa em “cabanhas”, podemos afirmar que trata-se de um meio que reúne
mulheres do meio rural, semi rural e urbano, e de classes sociais diferentes – classe popular, média
baixa e média sendo muito visivelmente presentes – onde o denominador comum parece ser um
interesse e identificação forte com o cavalo e as atividades campeiras5. De fato, a palavra que as
ouvimos uma e outra vez neste contexto era “paixão”.
Entre as mulheres jovens do meio rural e semi rural, o amor pelo cavalo nos foi narrado, uma e
outra vez, como algo que surgia quase que espontaneamente, do convívio cotidiano com estes
animais:

Desde que eu me conheço por gente sempre morei em chácara e lá sempre teve cavalo sabe?
Então a gente sempre andava, daquele jeitão né? Não conhecia nada de rodeio, então a gente
sempre andava no pelo sabe? Pegava ele lá no cabresto, no pelo, eu e a minha irmã. Nossa,
passava o dia inteiro andando a cavalo. Então, paixão por cavalo sempre tive, desde criança
sempre gostei de cavalo (Flávia, 28 anos).

Contudo, o relato de uma mulher de classe média urbana mostra – como foi o caso de outras
jovens urbanas que se envolveram no mundo das hípicas – pode a paixão pelo cavalo pode surgir
de um outro lugar, geralmente narrado como um desejo ou vínculo inexplicável. Nossa informante

5 No texto que citamos acima, desde Andrade et al, que é um dos pouquíssimos trabalhos brasileiros que
aborda o lazer no meio rural desde uma perspectiva de gênero, os autores reconhecem que se trata de um “novo rural”
que passa por uma serie de transformações marcadas por uma crescente imbricação com os meios urbanos que antes se
colocavam como antípoda. E nisto, o novo rural pode muito facilmente tornar-se “local de produção de atividades de
lazer para as pessoas da cidade” (p.42)

12
Silvia o conta desta maneira:

De onde veio essa paixão por cavalos eu não sei. Eu sei que veio muito forte desde o começo.
Eu lembro que eu era muito criancinha e eu tinha muita vontade de ver cavalos. Eu lembro que
cada vez que me perguntavam, minha mãe e meu pai me perguntavam “o que você quer ganhar
de aniversário? O que você quer ganhar de natal?” eu dizia “Bom, o que eu quero é um cavalo”.
E assim foi, até que minha mãe viu que não tinha como tirar da minha cabeça a história do
cavalo.

Em decorrência de inserções sociais diferentes, o caminho que conduz ao envolvimento no


meio do rodeio também costuma ser diferente para mulheres de classe média urbana e as do meio
rural. Para as dos meios rurais e semi-rurais, frequentemente inseridas em comunidades onde há
uma tradição de prática (masculina) de rodeio, o ingresso às práticas campeiras decorre com uma
aparente naturalidade, mesmo que elas não deixem de relatar momentos de resistência masculina
ou familiar. Como nossa informante Alessandra conta, o gosto pelo laço emergiu espontaneamente
através do meio onde ela foi criada, como de fato acontece com muitos meninos:
[...] meu avô tinha as vacas e eu corria, corria, corria atrás daquelas vacas, as vacas estouravam
as cercas, saíam na rua na frente dos carros [...] e ele ficava brabo comigo, pegava uma corda e
laçava as vacas, e deixava as vacas com corda e tudo sabe [...] pegava uma cordinha e jogava
nas vacas, se enroscasse ficava enroscada e não tinha quem pegasse a vaca, ela ficava muito
arisca né, não deixava chegar perto [...] e ficava, e isso ele não gostava que eu fizesse [...] e
minha mãe morria de medo que eu andasse nos cavalos, que eu saísse laçando [...] que
enroscasse a corda no pescoço, que eu morresse, ela era muito medrosa, mas depois ela foi se
acostumando [...] e o laço assim, comecei a laçar quando eu comecei a andar a cavalo, e tinha
cavalgada perto, e aqui perto tem uma cancha de laço [...] no seu Tião ali [...] tem a cancha [...]
e eu vinha sabe, com o povo, laçando, e achava bonito, e tudo [...] e comecei a querer fazer
igual, daí depois desse tempo eu fui pegando a prática, fui pegando o jeito, mas aprendi meio
que sozinha assim [...] a laçar [...].

Vale destacar que o primeiro “estranhamento” das suas atividades veio aparentemente da mãe medrosa –
pois o avô que ela diz não gostar de suas estripulias aparece ao longo de sua narrativa como alguém que
também, de uma u outra forma apoiou. Isto é ainda consoante com uma boa parte dos relatos que ouvimos
de joquetas onde observamos uma tendência de transmissão do saber ou tradição equestre de pai para filha
(cf. Adelman & Moraes, 2008).
As jovens de classe média algumas vezes passaram por alguma experiência prévia de hípica, isto
é, de equitação clássica, esporte muito mais elitizado. Nesses casos, foram fatores posteriores -
financeiros, de preferência pessoal ou de oportunidades surgidas aleatoriamente – que acabaram
dando lugar a uma opção pelo rodeio. Isto foi o caso da informante Silvia (acima citada) que
inclusive se tornou uma pessoa chave na abertura dos CTGs paranaenses para com a participação
das mulheres, onde teve que se valer de hábeis estratégias de negociação para convencer os homens
a aceitarem o ingresso das mulheres às provas campeiras – como convencer eles um por um em
lugar de abordar o tema perante todo o grupo – e para convencer algumas mulheres (as vinculadas

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as expressões artísticas) para que às laçadoras fosse liberado o uso da calça tradicional
“bombacha”:
Eu tive que inclusive trabalhar em cima de Anita Garibaldi, para mostrar que não era bem
assim, perguntando um milhão de vezes se a Anita Garibaldi saiu galopando, de estado a estado,
atrás do Giuseppe Garibaldi dela, se ela foi de vestido né? Eu realmente fico imaginando, até
onde eu sei, ela vestiu até roupas de guardas. E agora a gente não pode usar bombacha? Que
absurdo né?

De fato, à entrada das mulheres acompanharam mudanças – e disputas – na própria organização


esportiva. Tudo parece ter começado com a atitude de algumas pioneiras, que disputavam em
cancha onde e quando se suponha só participação masculina. Silvia conta que, logo nos primeiros
rodeios que participou (ela era a primeira mulher a participar como competidora dos rodeios na
região, e inicialmente disputava as provas junto com os homens), ela foi recebida de maneira
suspeita:
Claro que tinha muita gente que olhava feio, claro que tinha muita gente que olhava
torto, claro que passavam do lado e perguntavam se eu era sapatão, seu eu era gay, o quê
que eu era. Mas eu pensava o seguinte: “eu devo prestar contas para quem me crio, o
meu pai e a minha mãe estão sabendo o que eu estou fazendo, então não devo mais nada
pra ninguém. Eu vou fazer o que eu quero, e pronto, acabou”. E comecei. Ficava lá no
meu cantinho, sossegada, chegava a minha vez, eu ia laçar .

Outra informante observa atitudes ambivalentes que persistem até hoje, “Tem um povo mais
velho que diz que prenda só atrapalha...que laço de prenda só atrapalha, que tinha que ter só vaca-
gorda (somente para os homens)...só os adultos que tinham que participar” e nota que por causa
disso, pode ser mais difícil todo o processo de aprendizagem para uma novata, “..e pra ensinar
também, tem muita gente que não ensina, sabe? Te soltam na cancha e que se vire...então acho que
falta mais incentivo (...) Tem juiz que acha que só atrapalha, sabe? Tem pessoas que acham que só
adulto e só vaca-gorda deveria ter no rodeio “(Tatiane, 20 anos).
No entanto, a diferença de um primeiro momento de pouca participação feminina em
competições que, por esse mesmo fato, tornavam-se mistas, a estrutura é outra hoje, com categorias
separadas por sexo e muito maior diversificação nas categorias de participação masculinas (cf.
Becker, op.cit., p.41). A premiação menor para as mulheres também sugere menor incentivo a elas
nas competições. As laçadoras reclamam nas entrevistas que até hoje receberam prêmios muito
baixos em dinheiro, em comparação às premiações masculinas, impedindo qualquer possibilidade
de “profissionalização” delas como atletas. Só nos treinos menos formais (que também fazem parte
da atividade nas cabanhas) que homens e mulheres podem encontrar-se ainda cara a cara em
disputas pelos mesmos prêmios (e do reconhecimento dos pares!). Ainda nesses casos, o
ressentimento pode se fazer ouvir, como na fala que escutei recentemente de um homem - pai de
um jovem laçador de talento já muito premiado - que questionava o primeiro lugar de uma moça da

14
região, conhecida por suas habilidades, alegando com ironia a vantagem desta, pois “é, como se
fosse difícil laçar com esse laço curto!”6
Homens podem se opor à participação feminina de diversas formas, mas na nossa pesquisa
tendiam a se colocar como “favoráveis”. Os três homens que entrevistamos formalmente
assinalaram as mudanças nas relações de gênero (não somente no espaço dos rodeios como na
sociedade em geral) como positivas. Eles disseram incentivar as mulheres mais próximas a eles -
esposas, filhas e irmãs a laçarem - a participarem dos rodeios. No decorrer das entrevistas, nenhum
deles sustentava uma superioridade masculina necessária; consideravam que, tanto neste esporte
como noutras atividades e esferas da vida, as mulheres podem sair “vencedoras da competição”.
mulheres e homens competem a partir de uma igualdade. Sem descartar a possibilidade deles
estarem também respondendo à situação de entrevista que os incentivasse a uma auto-representação
como “novos homens” (pois se sabiam entrevistados por duas pesquisadoras com simpatias
feministas!), suas repostas indicam que eles estão percebendo e aceitando o novo valor positivo que
no Brasil como um todo se atribui à superação do machismo e do preconceito e que no mínimo,
estejam criando uma disposição a re-pensar o sentido da masculinidade, talvez menos construída em
oposição aberta e radical às mulheres e suas feminilidades do que noutro momento.

Assim, Guilherme, um jovem (26 anos) nascido e criado numa cidade pequena e hoje formado
em zootecnia e co-proprietário de uma “cabanha”) que laça e ganha muitos prêmios desde a
adolescência afirma que “Aumentou muito a quantidade de mulher e a qualidade que as meninas
estão laçando...[...] Hoje em dia tem mais gente apoiando as mulheres a laçar do que reprimindo.”
Olavo, um homem de 44 anos, oriundo do meio rural, foi muito eloquente ao comparar a entrada
das mulheres como laçadoras nos rodeios com a inserção geral das mulheres na esfera pública:

A filha sempre acompanha, então elas vêm no domingo que é pra almoçar...e geralmente fala
“pai, eu também queria montar a cavalo e andar”. No começo você acha chato, “não, não, não..”
mas por ver do lado, a menina chegando “pai, acertei minha armada”, “você fez filha?”, “fiz”.
Então chega todo mundo junto ali e elas querem também, e a emoção de ver a família ali e a
filha laçando...então rapidinho o pai já coloca pra laçar...[...] Se igualou...está quase se
igualando...e é o que eu queria...porque só eu que trabalhava lá em casa, agora a mulher tá me
ajudando (risos)...[...] tanto que da parte do homem, nós temos medo disso... porque, pra você
ter uma idéia, nossa presidente já...(risos). A mulherada está quase tomando conta mesmo, elas
estão entrando firme e estão fazendo certo né, porque não tem nada de errado. (Olavo, 44 anos).

Como confirmação destas auto-representações masculinas, mulheres também apontam que


muitos homens, hoje em dia, incentivam muito a participação feminina neste esporte. Flavia, com
28 anos, entrevistada que vive no meio há mais de dez anos (assim como Silvia, começou na época
de implantação da categoria feminina nos rodeios), afirma que, atualmente, muitos homens

6 Às mulheres é permitido laçar com um laço mais curto e de menor peso que o dos
homens.
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encorajam as meninas e mulheres a laçar

Bastante, mesmo, marido incentivando a esposa. Você vê a mulher casada, assim com filho
também, que está laçando...os homens, tem as suas exceções, tem bastante machista no meio.
Mas eu acredito que a maioria apoia as mulheres a laçar. É, porque antes a mulher ia no rodeio
só pra fazer comida para os maridos e para os filhos e ficar alí no acampamento. Então os
maridos participavam, os filhos participavam da vaquinha parada e ela ficava alí, né? Daí assim,
porque isso né? Daí começou a laçar, deu certo.

Como se vê acima, um elemento que como importante fator facilitador, hoje em dia, da
participação feminina, é o discurso familista que pretende que os rodeios sejam “espaços de lazer
familiar”. Uma informante nossa, Valéria, de origem semi-rural e atual co-propietária de haras
(junto com o marido) também percebe claramente esta conexão, ao dizer, “Até um pouco do
machismo acabou. Existe ainda, mas diminuiu... porque todo mundo acha normal agora levar a
família. Então você não vai se negar a levar a tua mulher, porque vai dizer 'eu não vou te levar
porque lá é lugar de homem. Não, lá é lugar de família. Hoje em dia todo mundo prega a família,
todo mundo leva os filhos, então acho que melhorou bastante, e cada vez vem crescendo mais.”
Outra laçadora teve observações interessantes para fazer sobre o processo de incorporação das
mulheres aos rodeios:
A gente nunca sofreu de alguém vir falar para a gente alguma coisa. Mas no começo, bem no
começo era mais complicado sabe? Tanto que eles falavam, “É, esse ‘laço prenda’ aí é só para
estorvar o rodeio”. Porque uns dois anos antes de eu começar a laçar não tinha a categoria de
prenda, a prenda laçava no piá, guri ou no adulto, conforme a idade. E não tinha troféu separado
pra ela. Depois começou a ter laço prenda, daí que eles começaram a falar isso sabe? (...)
Mudou muito, hoje o incentivo é muito maior. Antigamente era difícil o pai, o marido, alguém
incentivar. Por essa falta de meninas eles ficavam até meio com medo, insegurança, de falar
“nossa, como é que eu vou submeter a minha mulher a fazer uma coisa dessas”. Mas hoje, é o
pai que incentiva, o marido, o avô, tudo mundo faz questão. (Natália, 23 anos).

Mesmo assim, o predomínio dos homens no cotidiano das cabanhas e nos lugares
privilegiados do rodeio parece não ter sofrido tanta desestabilização. As competições são sempre
narradas em voz masculina (refiro-me aqui ao narrador oficial cuja voz ressoa pelos alto-falantes
interpretando os momentos de ação e adrenalina da competição para o público espectador. )
A proporção de homens e mulheres competindo revela ainda grande vantagem de homens (algo em
torno de 4:1, estimado pelo que observamos em diversas ocasiões), o que também tende a criar
uma certa tensão entre um meio ainda “homossocial” e a participação feminina, que vem - de
forma que consideramos problemática – ainda muito atrelada à presença familiar. Repetindo mais
do que interrompendo a tradição histórica ou a “reinvenção” da tradição gaúcha empreendida pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho), as linguagens simbólicas que constroem o discurso público
sobre o meio continuam sendo bastante masculinas, o que se vê tanto nas falas cotidianas e
esportivas que ressaltam a macheza do homem, a beleza das laçadoras e as ocasionais (ou talvez
frequentes) brincadeiras e piadas sobre “viados” - servindo estas, como a literatura queer tão bem

16
discute, como expressão de ansiedades e como formas simbólicas que demarcam os limites entre o
permitido e o abjeto, o que ameaça, o que excede os limites...

Finalmente - e talvez o mais importante desde o ponto de vista de questões de gênero e lazer - é
o próprio elemento de identificação e prazer que o mundo do cavalo campeiro oferece para as
cavaleiras que entrevistamos e observamos. Assim como as mulheres que encontramos no mundo
elitizado do hipismo clássico, as do rodeio enfatizaram isto uma e outra vez. Algumas falam da
excitação do desafio físico, como Flavia quando relata “Eu não tive dificuldade de laçar, eu não
ligava também, eu estava fazendo o que eu gostava...então quando chegava alí no brete, chamavam
meu nome, a adrenalina ia a mil, era aquilo que eu gostava, eu nem me interessava se eu estava
jogando fora do boi ou laçando o boi...eu queria só correr atrás dele e tentar fazer a armada
né...então assim, era a minha paixão, é a minha paixão até hoje. (…) mostrando apego a uma
prática lúdica que envolve uma construção muito pouco convencional do feminino.

O fato das provas de laço serem organizadas de tal forma que precisam formar-se equipes
femininas pode também ser um estimulo para aquilo que a literatura sobre mulheres no esporte tem
reafirmado importante forma de sociabilidade “contrahegemônica”: a criação de “subculturas
esportivas femininas”. Noutro lugar (Adelman & Moraes) discutimos o grau de desconforto que as
mulheres podem sentir ao transitarem por espaços esportivos povoados quase exclusivamente por
homens, como neste caso, os treinos nas cabanhas, que na nossa observação são e em certo
contraste com os rodeios, são mais frequentados por homens do que por “famílias”. Nos rodeios,
por outro lado, a visibilidade de equipes femininas -geralmente amigas e parentes – ganha destaque.
Isto é importante em vista de que, após muitas horas de convivência em cabanha e rodeio,
constatamos que a sociabilidade que se tece a partir destas práticas é muito forte, e parece virar um
grande eixo – se não o espaço mais importante na vida – de muitas pessoas, homens e mulheres.
Como uma informante nossa de 20 anos demonstra, aquilo que começa atrelada ao lazer familiar
facilmente cresce e o extrapola:

Nossa, vou laçar até eu ficar velinha, não pretendo parar. E agora, quando o meu pai não quiser
ir para rodeio eu vou dar um jeito de ir, é difícil você parar assim, do nada, né? Sente muita falta
do laço, do teu cavalo, dos teus amigos, do clima. Sente muita falta, tanto que em janeiro,
dezembro, a gente fica meio louca sem rodeio. (Tatiane, 20 anos).

Há, poderíamos argumentar, mudanças que tem um forte caráter geracional. Nossas
informantes – geralmente na casa dos 20- 30 anos – se diferenciavam das suas mães, que elas
retratavam como mulheres acompanhavam filhos e maridos mas “não gostavam” de frequentar
rodeio – “porque elas vêm e têm que ficar cozinhando né?”, nas palavras de uma. Mas as nossas
informantes, membros de uma nova geração de mulheres com investimento próprio na participação,
17
projetavam também nos seus filhas e filhos (as que já eram ou pretendiam ser mães) um futuro
como participantes ativos do mundo do rodeio, como herança que hoje em dia possa ser pensada
como um bem simbólico ou recurso que se passa de mãe para filho/a.
Por outro lado, não só as fronteiras do comportamento masculino senão também a postura das
mulheres do rodeio continua sujeito ao escrutínio constante. Como assinalado por Green et al (apud
Tomlinson, 2003, p.4), pelo menos em algumas de suas formas mais comuns (e mais legitimadas!)
“male control over women´s behavior, rather than being control by coercion, relies on norms of
respectability and appropriateness, and can be regarded as control by consent.” Isto resulta
evidente no meio do rodeio, onde as constantes referências à beleza das laçadoras com certeza
funciona como lembrança para todas, como devem apresentar-se publicamente. Há, pois um risco
na participação feminina se esta não for adequadamente alinhada com as normas vigentes de corpo
e aparência femininos, mesmo com limites menos estreitos do que nos tempos que o uso da calça
bombacha era (informalmente) interdita às mulheres. O consentimento das mulheres é accionada
tambem, de forma que se o policiamento das maneiras de construir a feminilidade é preocupação
dos homens, recebe por vezes o apoio das próprias mulheres que o introjetam e o reproduzem:

[...] A gente não tanto, mas tem muita menina que vai toda maquiada laçar, com batom...então
acho que cada dia que passa as mulheres buscam mais a vaidade mesmo né...e a gente acha
legal essa parte...até um tempo atrás tiveram umas reuniões nos rodeios pra incentivar as
meninas a serem mais femininas sabe...porque a mulher começou a laçar e querer se submeter
muito igual a um peão sabe? Algumas meninas foram indo mais pro caminho assim de “ai, eu
sou um peãozão, eu sou um gauchão”...e daí a gente começou a fazer uma campanha pra
incentivar a ser feminina...porque afinal de contas não tem nada a ver você ser mulher e estar
laçando né?” (Natália e Fabiane, 23 e 20 anos).

Não poucas vezes, ouvimos referências ao perigo das mulheres “masculinizadas” e por vezes, o
uso da palavra “lésbica” para se referir a uma condição abjeta. Neste sentido, percebemos que as
transformações atuais esbarram na persistência das próprias dicotomias naturalizadas de
“diferenças” de gênero, afincadas como estão na arraigada cultura da “matriz heteronormativa”
discutido por Butler (1990); sua “desconstrução” no senso comum e nas práticas cotidianas
dependerá, à sua vez, da extensão e profundidade de mudanças culturais nas diversas regiões do
pais, processos lentos e não pouco atrapalhados por ideologias conservadoras de longa história.
Assim, se cabe pouca dúvida sobre a possibilidade transformadora que o mundo do laço e do
cavalo campeiro possa oferecer para as meninas de hoje e de amanhã, e a sua contribuição para
práticas de lazer mais igualitárias, precisamente onde o rural, o semi-rural e o urbano se imbricam,
os obstáculos no caminho não devem ser menosprezados.

Conclusões.

18
Embora uma cultura de homossociabilidade persista e imponha uma estrutura de gênero sobre
muitos aspectos da vida cotidiana no Brasil, o monopólio masculino sobre espaços públicos - sejam
de trabalho ou de lazer - está sendo constantemente questionado, contestado e renegociado.
Argumentei aqui que a participação das mulheres nas atividades equestres é um fascinante exemplo
da quebra desse monopólio, muito mais consequência do próprio desejo das mulheres de usufruir
livremente de canais de prazer, sociabilidade e realização do que por qualquer compromisso a
priori com uma ideologia de equidade ou igualdade de gênero. Mesmo assim, o contexto destes
fenômenos não deixa de ser um momento histórico particular, que incentiva algumas mulheres - e
algumas vezes homens também – a assumir os desafios de romper barreiras e cruzar fronteiras.
A literatura internacional sobre mulheres, lazer e esporte tem se preocupado em identificar os
fatores que agem de forma constrangedora sobre a participação das mulheres nestes campos,
citando estado civil, emprego, idade e classe social como variáveis principais, favorecendo por
exemplo às solteiras (por questões não só de tempo senão do próprio “sense of entitlement”: sentir-
se com direitos e ter a confiança de agir de acordo), às com maior escolaridade e emprego
(consolidando seu “sentido de autonomia” e fornecendo vantagens socio-econômicas) (Tomlinson,
op.cit., p.11). Nossa pesquisa, embora produtora de resultados que em grande parte vem ao encontro
desta literatura, não deixa de mostra algumas particularidades: assunto algo comentado pelas
amazonas do hipismo clássico, que assinalaram maiores dificuldades mais no caso de uma mulher
casada com ou namorando um homem “de fora” querer se profissionalizar no meio, o meio dos
CTGs já vem sendo representado como espaço que “acolhe família” e que estimula a participação
de “todos”. De fato, entre as jovens que entrevistamos, havia solteiras e casadas, casadas com e
sem filhos, e na maior parte dos casos das que tinham companheiro, pareciam viver o rodeio como
paixão compartilhada. Porém, como é que as dinâmicas dos casais afeta a participação de ambos
nas atividades esportivas é um elemento que ainda exige maior indagação.
Por outro lado, os resultados de nossa pesquisa podem nos conduzir de volta a uma questão de
valores: os valores que se produzem e se re-produzem nesta esfera de esporte e lazer. Gostaríamos
de ressaltar algo que mencionei ao início deste texto em referência à tensão teórica entre trabalho e
lazer e a importância de reconhecer que hoje em dia, a esfera do lazer deve ser pensada não como
periférica senão como um grande campo onde as pessoas forjam sentidos e significados (conforme
o próprio conceito de cultura oferecido pelos Estudos Culturais). As mídias atuais tentam passar
uma visão atraente e ingênua neste sentido, como as várias reportagens que encontramos que
explicita ou implicitamente retratam os esportes equestres como inerentemente democratizantes,
inclusivas e até “ecológicas” (inspirando boas atitudes para com a natureza)7 enquanto os discursos

7 Exemplo disto é um artigo publicado na Revista Horse, que – enfatizando o fato das cavalgadas serem
inclusivas em termos de gênero e geração, não deixa de apontar para um certo “papel feminino” domesticador: “As
mulheres tem presença predominante, uma característica cada vez mais comum nas cavalgadas. Talvez por essa razão

19
tradicionalistas se remetem, ainda menos reflexivamente, a um passado mistificado que (re)
significam como antídoto para os males da vida (pós) moderna (Becker, op.cit), ignorando as
profundas tensões de classe, raça e gênero que fazem parte desta história. Quanto às práticas mais
elitizadas nas hípicas, não cabe muita dúvida sobre sua capacidade de promover valores
“capitalistas” que elevam a competitividade esportiva e a preservação do status social a lugares
privilegiados nas hierarquias avaliativas. E parece que todas as praticas esportivas que fazem uso
do cavalo correm o risco de privilegiar o rendimento e competitividade por cima do bem estar dos
animais (os não humanos e os humanos!), permitindo por vezes crueldade e maus tratos aos
animais.
Contudo, o envolvimento das mulheres nas atividades equestres é representado frequentemente -
pelas mulheres praticantes, principalmente, de forma explicita ou não - como um desafio a noções
normativas de feminilidade. Embora informantes individuais difiram no seu grau de ligação com ou
sensibilidade em relação aos julgamentos dos outros, no seu conjunto parecem exprimir desgosto
com ou até desprezo por atitudes que incorporam "gender policing". Ressaltam, quando se auto-
narram, a noção de um “eu diferente”, posicionado diferentemente num mundo onde a força, a
valentia e a competência física que elas desenvolveram geralmente pertencem ao “outro gênero”.
Isto nos parece enormemente significativo, ainda mais se consideramos as particularidades da
cultura de gênero no Brasil e as persistentes dificuldades que existem para as mulheres de articular
uma identidade mais livre das pressões normativas extremas (e a intensa "produção discursiva") que
policiam os corpos, seu uso e sua imagem. Neste contexto, então, as mulheres envolvidas nos
esportes e no mundo equestres podem ser vistas como exemplares de novas formas de construção
identitária/subjetiva, desbravando caminhos num terreno onde ainda prevalecem o preconceito e
noções objetificadas e domesticadas de "ser mulher". Fazem parte de um novo legado no qual as
mulheres - usando mente e corpo e uma boa dose de determinação e persistência - quebram
paradigmas e permitem que se vislumbre um futuro realmente diferente.

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o consumo de bebidas alcoólicas, sempre frequente, siga de forma moderada. Também não se ve aqueles mais
exaltados fazendo estripulias com os cavalos, abusando de esporadas, chicoteadas e outras violências gratuitas.
Durante todos os dias tudo segue dentro de uma certa normalidade”. (Mastrobuono, 2011, p.32)

20
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Link Currículo Lattes:

http://lattes.cnpq.br/1512074830811621

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Minicurrículo:

Miriam Adelman possui o M.Phil em Sociologia de New York University (1991) e Doutorado em Ciências Humanas da
UFSC (2004). É professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná desde 1992, onde
foi co-fundadora do Núcleo de Estudos de Gênero. Tem publicações em revistas científicas brasileiras e estrangeiras
sobre questões relacionadas à teoria social contemporânea, gênero, cultura, mídia, corpo e esporte. Publicou em 2009 o
livro A Voz e a Escuta: Encontros e Desencontros entre a Teoria Feminista e a Sociologia Contemporânea (Editora
Blucher) e em 2011, a coletânea sobre representações de gênero no cinema, Mulheres, Homens, Olhares e Cenas (co-
organizado com Amélia Correa, Lennita Ruggi e Ana Carolina Rubini Trovão, Editora UFPR.) Tem bolsa produtividade
CNPq desde 2008, para o projeto de pesquisa sobre relações de gênero no meio eqüestre, do qual o presente texto é fruto.

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