Vous êtes sur la page 1sur 121
REPUNLICA PORTUGUESA 719 MINISTERIO DAS COLONIAS LIVRO Em que da relacdo do que viu e ouviu no Oriente DUARTE BARBOSA Introducéo ¢ notas de AUGUSTO REIS MACHADO A 169530 DIVISAO DE PUBLICACOES E BIBLIOTECA AGENCIA GERAL DAS COLONIAS LISBOA | MCMXLVI LIVRO Em que da relagdo do que viu e ouviu no Oriente DUARTE BARBOSA Esta publicagao foi autorisada por despacho de 8. x." 0 Ministro das » “Colénias, de 26 de Dexembro de 1944 | | | i | ADVERTENCIA texto da presente obra foi organizado por O Sebastido Francisco de Mendo Trigoso (1778. ~182 1), ent conformidade com um manuscrito por ele encontrado e com a tradugao italiana do historiador Jodo Baptista. Ramuzio (1485-1557), inserla nas suas Na igationi et Vi ggi. O trabalho de Mendo Trigoso foi, pela primeira vez publicado, em 1812, na Coleccéo de Not Ss para a Historia e Geografia das NagSes ultramarinas que vivem nes domi- nios portugueses, da Academia Real das Ciéncias, Declarou Mendo Trigoso ter o documento encon- trado sido escrito « por duas diferentes maos, 0 que faz bastante diversidade na sua orlografia e mesmo na exactiddo da cépia, sendo esta sem divida até go meio mais fiel e correcta do que dai por diante. Independentemente desta consideragao, bastava sé nao ser o manuscrito aulégrafo, para Procurarmos outro para o cotejar, e, sendo baldadas todas os nossas diligéncias a esse respeito, vimo-nos na necessidade de langar mao da tradugao de Ramuzio ¢ achémos nesta confrontagao hastantes diferencas». Assim por exemplo: «O tinico escrito que temos de Duarte Barbosa --declarou ainda Mendo Trigoso —é este seu Livro que agora publicamos, e que foi acabado, segundo se diz ra Prefagdo, que vem em Ramuzio, em o ano de 1516. EF cerio que em o nosso original ha algumas passagens posteriores a este ano; mas como por uma parte ele nao é autégrafo, e por outra parte eslas passagens nao vém na tra~ dugdo italiana, pode-se entrar em diwida se outra mdo posterior inseriu ali aquelas noticias, 0 que nao deixa de ter alguma probabilidade». Segundo informagao de Ramuzio 0 manuscrito de que ele se serviu para a sua tradugdo era solto em muitos lugares. A grafia e a pontuagao, nesta presente edigdo, foram actualizadas, assim como alguns termos mais proximos dos actuais como: fermoso— formoso, téli —até ali, caso —causa, hi—ai, regno—reino, can- tidade — quantidade, leixar— deiwar, estroir—des- iruir, pera—para, alifante — elefante, aligumes— legumes, parecer ~ aparecer, despois — depois, pro- ves — pobres, dragoaria — drogaria. i Foram uniformizadas palavras como laca, cén- fora, moscada, que umas vezes sao assim expressas ¢ outras vezes por lacar, canfor, noscada. 7 INTRODUCAO ISDE que, hé cerca de vinte séculos, os romanos toma- tam contacto com o Oriente, nunca mais a Europa deixou de se preocupar com especiarias, perfumes ¢ pedras preciosas. A queda do vasto império romano e as invasées dos barba- ros, no século V, reduziram imensamente as relag6es com 0 Oriente. Apenas Constantinopla, presidindo a0 pouco que fi- cara do velho império, comunicava e com enormes dificuldades, com as riquissimas regiées da opulenta Asia. Por intermédio dela e da africana Alexandria, Venesa e Génova, haviam res- pectivamente,'de alimentar 0 seu comércio, do século XI a0 século XVI. A Europa quase regressou 4 vida rude, modesta, dos tempos anteriores a0 dominio de Roma. Mal chegavam até ela, e por altos pregos, a pimenta, a canela, a noz mos- cada, 0 agiicar (também considerado entao especiaria), a quina, © almfscar, 0 gengibre, os ruibis, as esmeraldas, os topésios... Era to rara a pimenta que Estados houve que calculavam com pimenta e com pimenta se compravam terras e pagavam tributos como se fosse metal nobre. ~ ‘Assim distanciado 0 Oriente, vagas, imprecisas, cram as noticas que dele havia; revestiam-se frequentemente de ima- gens fantasistas. Nos principios do século XIII, apareceu 0 chamado Mapa-mundo de Pedro que dava conhecimento da «india a Grande, pais muito quente, banhado pelo Oceano, com a ilha de Taprobana (Ceilao), onde nao ha menos de dez cidades, as pessoas so gigantescas ¢ vivem muito tempo ‘As montanhas so de ouro... E 0 pais da pimentay; no sc- gundo quartel do mesmo século a Imagem do mundo diz que India «tem dois estros e dois Invernos por ano, mas {ao temperados que ha sempre verdura, flores ¢ frutos. Eo pais do ouro e das pedras preciosas, cujos jazigos na montanha sdo defendidos por dragées ¢ grifos, monstros capazes de levarem um homem armado a cavalo». Nos fins ainda do mesmo sé- culo © florentino Bruneto Latino escrevia no seu Livro. do Tesouro: «Na India 0 ar € tao bom que hé duas colheitas por ano, @, no inverno, um vento doce e agradivel. Como os indianos nunca foram expulsos das suas terras tém cinco mil cidades bem povoadas... Ao Oriente fica a regio da pimenta, atravessada por um grande rio; dum lado, elefantes ¢ outros animais selvagens, do outro, homens ¢ grande quantidade de pedras preciosas». E 0 venesiano Marco Paulo, depois de uma estada de vinte anos no Oriente, referia a existéncia, nos tiltimos anos do mesmo século, no seu muito célebre Livro, chamado das Maravilhas, de cidades cujas alfandegas rendiam anualmente milhdes de sacos de ouro, onde en- travam todos os dias centenas de carros cheios de Seda; de portos onde se reuniam milhares de navios; de provincias ‘onde havia enorme quantidade de especiarias, perfumes, pérolas, dianiantes, turquesas, esmeraldas, safiras, topésios, ametistas, rubis... Um: rei de Ceilao era possuidor: ‘«do mais formoso rubi que jamais fora visto no mundo», tinha de comprimento um palmo e a grossura do «brago de” um homem gordo»; sem a menor mancha resplandecia como «fogo ardente». Tendo um soberano tartaro mandado mensa- geiros a pedir-lhe a pedra em troca do valor duma cidade, respondeu 0 rei que a herdara dos seus antepassados ¢ nunca a daria fosse a quem fosse. Com 0 decorrer dos tempos as noticias foram-se tornando cada vez mais prccisas e menos fantasiosas. O franciscano Odorico de Pordenone, no primeiro quartel do século XIV, dita a um confrade a Descriptio Orientalium, em que vém relatadas as suas viagens através do golfo Pérsico, do Malabar, de Ceilio, do golfo de Bengala, de algumas ithas do arquipélago malaio, e da China, por onde regressa Europa. O dominicano francés Jordéo de Severac (Jordanus Cataloni), por essa mesma época, na sta Mirabilia Descripta, faz uma interescante ¢ completa descrigio geogréfica da India, refere-se 2 regio, ao clima, as produgées, a flora, 4 fauna ¢ aos costumes dos habitantes. Nos meados desse século o flo- entino frei Joao de Marignolli viaja, por terra, do mar Negro a Pequim e da China, por mar, 3 India e ao gélfo Pétsico, ¢ di a conhecer tudo quanto observou. Especialmente interes- sante é a relagdo da viagem que, na primeira metade do séeulo XV, Nicolau de Conti, venesiano, fez a India, so nela des- critas, com notével exactidio, plantas, animais ¢ costumes indigenas. E. outros mais, mercadores € missiondrios, vao dei- xando ilucidativos informes em que se vai desvendando o mis- tério oriental. Foram 0s, portugueses que por mais larga e intensa forma deram a conhecer 4 Europa o Oriente. Em 1488, preparando © descobrimento do caminho maritimo para a India, 0 por- tugués Pero da Covilha, por mandado do rei D. Joao I, chega, pelo Mediterraneo e mar Roxo, a Cananor, visita Ca- lecut, Goa, Ormuz e outras cidades, passa a Sofala,. envia, no Cairo, ao rei as informagdes obtidas ¢ vem a morrer na Abissinia, 2 chamada terra do Preste Jodo, — a lendéria fi- gura medieva. Em 1498 Vasco da Gama alcanga Calecut atra- 9 vés do Atlintico ¢ do Indico, e, assim, os portugueses iniciam em ampla escala, as comunicagées directas com o Oriente. A primeira obra moderna que apresenta com maior vera- cidade € mais pormenores os costumes e riquezas dessas lon- ginquas regides 6 0 Livro do navegador Duarte Barbosa. Nas- ceu Duarte Barbosa em Lisboa na segunda metade do sé culo XV. Foi seu pai Diogo Barbosa, cavaleiro da ordem de Santiago ¢ grande privado de D. Alvaro, irmio do duque de Braganga. Quando da descoberta da conspirago que levaria 0 duque a0 cadafalso de Evora, D. Alvaro fugiu para Cas- tela; acompanhou-o Diogo Barbosa. Depois do regresso; ¢ num navio de D. Alvaro, fez parte da expediggo de Jodo da Nova 4 India, em 1501. Falecido D, Alvaro fixou-se com a fami lia em Sevilha, entdo corte dos reis Fernando e Isabel.’ En- tretanto Duarte Barbosa entrava na carreira da India, e, em 1516, terminava 0 seu Livro. No ano seguinte Ferndo de Magalhaes, descontente com a atitude do rei D, Manuel para com ele, retirava-se para Espanha. Titiha bem servido em Africa e na India: walegando a eltei seus servigos, e pedindo em satistag3o que The acres- centasse cem réis em sua moradia por més, 0 que lhe el-rei denegou, por Ihe nao cair em graca ou porque assim estava permitido que havia de ser; Ferndo de Magalhaes disto agra- vado, porque 0 muito pediu a clei e ele 0 nao quis fazer, Ihe pediu licenga para ir viver com quem Ihe fizesse mercé, em que alcangasse mais dita que com ele. El-rei The disse que fizesse 0 que quisesse, pelo que Ihe quis beijar a mio, ‘que The elxei néo quis dar» (*), Em Espanha, hospedou-se, Fernio de Magalhaes, em casa de Diogo Barbosa, em Sevilha, e casava com uma sua filha. Era entio rei de Espanha Carlos I, que, em 1519, havia de pas- ©) Gaspar Correia, Lendas da India, Livro Il, tomo I, pari, I. 1 eee sat também a ser imperador da Alemanha com 0 nome de Carlos V. Magalhaes «com muita vontade que tinha de ano- jar cl-rei de Portugal» comunicou-lhe que «Malaca e Maluco, ilhas em que nascia 0 cravon cram dele pelas demarcagées que haviam sido feitas entre Portugal ¢ Castela (tratado de Tordesilhas) e que D. Manuel individamente explorava essas terras. Foilhe respondido que o rei de Espanha bem o sabia mas que «ndo tinha navegagao para l4 porque nao podia na vegar pelo mar da demarcago del-rei de Portugal». Respon deu Fernao de Magalhaes: «Se me derdes navios e gente ev mostrarei navegagéo para ld sem tocar em nenhum mar, nem terra del-rei de Portugal» (*). Era a demanda das Molucas pelo Ocidente. Estudadas ¢ aceites as propostas do navegador portugués, ficou, no ano seguinte, assente a expedigao. Nesse ano Duarte Barbosa, encontrava-se em Sevilha, em casa dos pais, também descontente, segundo parece, com o governo de Portugal. Comegaram em 1539 08 preparativos para a grande via- gem, ¢, nesse mesmo ano, do porto de S. Lucar de Barrameda, na foz do Guadalquivir, era ela iniciada com cinco naus, tri- puladas por duzentos ¢ sessenta e cinco homens. Quer. nos preparativos da viagem quer na sua execugéo Magalhies teve a auxilié-lo muitos portugueses, entre os quais figurou Duarte Barbosa. Descoberto o estreito que veio a ter 0 nome do navega’ dor portugués, atravessado 0 grande Oceano (chamado Pact- fico pela Bonanga que os expediciondtios nele encontraram depois de terrivel tempestade), foi Magalhaes morto, em com- bate, pelos indigenas, na ilha de Cebu, uma das Filipinas. Ti- nham sido bem recebidos os mareantes, surgiram, porém, seguidamente, conflitos que tiveram, segundo parece, a sua origem, no abusivo procedimento de alguns homens para com ©) Gaspar Correia, ob. ¢ lug. eit. uy as mulheres indigenas, procedimento que se agravou depois da morte do almirante. Magalhaes tentara refrear tais abusos, chegando a castigar Duarte Barbosa, por ter ficado em terra durante trés noites. Morto Magalhaes as tripulagdes escolheram’ para 0 coman- do da armada, reduzida a trés navios, Duarte Barbosa e Joao Serrio, habil escolha pois ambos tinham um eéxacto conheci- mento da costa oriental da India, 0 que era importante para 0 regresso, porém foram também mortos pelos insulanos. Cortia 0 ano de 1521 Prossegue a viagem com dois navios sob 0 comando de Joao Carvalho, que acaba por ser destituido. O novo coman- dante Sebastiao del Cano atinge as Molucas, 0 supremo objec- tivo da expedigéio de Magalhaes. Espcciarias, muitas especia- rias e as lindas aves do paraiso. E agora o regresso, apenas com uma nau: a Vitéria, Regres- so dificil pois Sebastiio del Cano nio podia utilizar as bases portuguesas, pelo contrério viu-se obrigado a desviar-se delas. D. Manuel havia dado ordem para serem apresados os navios de Fernao de Magalhies ¢ serem feitos prisioneiros os seus tripulantes. O comandante espanol teve de percorrer todo 0 oceano Indico, dobrar o cabo da Boa Esperanga ¢ costear a Africa Ocidental, sem ancorar em ponto algum e isto com um navio cm més condigées ¢ muito carregado. Levava setecentos quintais de especiarias. Vieram a sede ¢ a fome. A pimenta; a canela, a noz imoscada nao Thes podia valer. Todos os dias morria gente. Por fim, apenas com 18 homens, j4 a nau Vitéria metia gua, aleangou Sebastiao del Cano S. Lucar de Barrameda,'0 ponto de partida. Aproximava-se do fim 0 ano de 1522. stava realizada a primeira viagem de circunnavegago di Terra, a que ligou 0 seu nome Duarte Barbosa, autor do Livro. AUGUSTO REIS MACHADO PREFAGAO FPXENDO cu, Duarte Barbosa, natural’ da muito. nobre | cidade de Lisboa, navegado grande parte da minha mo- cidade pelas Indias descobertas cm nome de el-Rei nosso senhor; e, tendo viajado por muitos e varios paises vi- zinhos 4 costa, e visto e ouvido varias cousas que julguei ma- ravilhosas © estupendas, por nunca terem sido vistas, nem ouvidas por nossos maiorcs, resolvi-me a escrevé-las para bene- ficio de todos, tais como as vi e ouvi de dia em dia, traba- Ihando por declarar em este meu Livro os lugares ¢ limites de todos aqueles reinos, aonde cstive pessoalmente ou de que tive informagées dignas de fé, c, bem assim, quais scjam os teinos € paises de mouros, quais os de gentios ¢ os seus costuines. Nem deixarei em silencio 0 seu trafico e as merca- dorias que neles se acham, os lugares aonde nascem e para onde se conduzem; e, além do que pessoalmente vi, sempre me delcitci em procurar aos mouros, cristios e gentios pelos usos ¢ costumes de que cram priticos, cujas informagdes tomci © trabalho de combinar umas com outras, para ter uma no- ticia mais exacta delas, que foi sempre o men principal intento, como deve ser o de todos os que escrevem sobre semelhantes matérias, e persuado-me se conheceri que nao poupei dili- géncia alguma para conseguir este fim, quanto o permitem as débeis forcas do meu engenho. E foi no presente ano de 1516 que acabei de escrever este meu Livro. PRED PRIN IN IRIN INR PRIMEIRAMENTE O CABO DE S. SEBASTIAO NDO ao longo da costa, passando o cabo da Boa Esperanga, caminho da India até o cabo de S. Sebastiao, sao umas terras ass4s formosas de muitas montanhas ¢ campos, em que hé muita criagio de miuitas vacas, carneiros e outras ali- marias monteses. i a dita terra habitada de umas gentes pretas, andam nus, somente trazem de peles, com seu pélo de cervo ou doutras alimérias, umas capas francesas. Da qual gente os nossos nunca poderao haver noticia de lingua, nem serem informados do que vai pela terra dentro; nem eles tém navegacao, nem se servem do mar, nem os mouros da Arabia e Pérsia nunca até ali navegaram, nem a descobriram por causa do cabo das Correntes ser muito tormentoso. AS ILHAS QUE CHAMAM HUCICAS GRANDES Indo mais ao longo da costa passando este cabo de S. Se- bastiao caminho da India, estéo junto com a terra firme umas ilhas que chamam Hicicas Grandes, em que as quais pela terra firme delas, estio algumas povoacdes de mouros que tratam com os gentios da terra firme e prestam com eles. Nestas Hiicicas se acha muito Ambar que estes mouros apanham, 0 1 qual & muito bom, que cles vendeim para outras partes; tam- bém se acham muitas pérolas e aljéfar (*) miudo, que se acha dentro no mar, em ostras; porém eles nio 0 sabem apanhar nem pescar; algum que tiram € com assarem as ostras ¢ 0 alj6far que fica € muito ruim e queimado, nao seria muita diivida havé-lo ai bom, se o souberem apanhar ¢ pescat, como fazem em outras partes de que ao diante falarei. HUCICAS PEQUENAS NOS RIOS Passadas as Hiicicas Grandes para a banda de Sofala, que é uma fortaleza que aqui tem el-rei de Portugal, perto da’ qual se acha muito ouro, a dezassete ou dezéito Iéguas Ionge dela, ha alguns rios que formam ilhas pelo meio, a que chamam Hiicicas Pequenas, aonde ha alguns lugares habitados por mouros, ‘que comerceiam com os gentios da terra firme. O seu sustento ¢ arroz, milho ¢ carnes, que conduzem a Sofala em pequenas barcas. SOFALA Indo mais adiante passando estas Hiicicas caminho da India, a vinte ou trinta Iéguas dela, esté um rio que nao é muito grande, pelo qual dentro est4 uma povoagio de mouros que chamam Sofala, junto com a qual tem el-rei nosso ’senhor uma fortaleza, Estes mouros h4 muito tempo que povoaram aqui, por causa do grande trato de ouro que tinham’ com 0s gentios da terra firme. Os mouros desta povoagéo’ falam (©) Alj@fre, perola pouo fina, pequena’ e dedigudl. 16 aravia (?), ¢ tém um rei sobre si (*) que estd a obediéncia de el- * -rei nosso senhor. A maneira de seu trato cra que a cles vinham em pequenos navios, que chamam zambucos, do reino de Quiléa, Mombaga ¢ Melinde, muitos panos pintados de algo- dio, outros brancos e azuis, deles(*) de seda, ¢ muitas conti- nhas pardas, roxas ¢ amarelas que aos ditos reinos vém em outros navios maiores do gram reino de Cambaia, as quais mercadorias os ditos mouros que vinham de Melinde e Mom- baga compram a outros que aqui as trazem, ¢ Ihas pagam em ouro pelo prego de que eles iam muito contentes, 0 qual ouro the dio a peso. Os mouros de Sofala guardavam estas merca- dorias e as vendiam depois aos gentios do reino de Bename- tapa (*) que ali vinham carregados de ouro, 0 qual ouro lhe davam a troco dos ditos panos sem peso, em tanta quantidade que bem ganham cento por um. Estes mouros recolhem tam- ‘bém muito soma de marfim que acham derredor de Sofala, que também yendem para o rcino de Cambaia a cinco ea seis cruzados 0 quintal; também vendem algum ambdr que lhe trazem das Hiicicas, que é muito bom. Sao estes mouros homens pretos e deles bagos, falam: al- guns deles aravia, ¢ os mais se servem da lingua da tera que €a dos gentios. Eles se cobrem da cinta para baixo com uns panos de algodao e seda; trazcm, outros, panos sobracados como capas ¢ fotas (*) nas cabegas, alguns deles carapucinhas de gra((*) de, quartos ¢ de outros panos de li de muitas cores ¢ chamalotes (*) ¢ doutras sedas, seus mantimentos sfio milho, ©) Arabe, (2) Independente. (@) Algu (4) Monomotapa. (5) Toucas mouriseas. ()'Tecido tinto com gri (substincia de cor vermelha obtida de insectos chamados gris ou quermes). (7) Tecidos de li de camelo. 17 arroz, carne pescado. Em este rio ao mar dele, saiem em terra muitos cavalos marinhos a pascer, os quais cavalos andam sempre no mar como peixes, tém dentes da feigao dos elefan- tes pequenos em sua quantidade segundo sio; este é melhor marfim que do elefante, mais alvo ¢ rijo, sem munca perder cor. Na prépria terra, derredor de Sofala, hé muitos elefantes bravos ¢ mui grandes, os quais a gente da terra nao sabe nem costuma domesticar, ongas ¢ ledes € veagio ¢ outras muitas alimérias. A terra € de campos e montanhas, de muitas ribeiras de mui boas dguas. Na mesma Sofala fazem agora novamente grande soma de algodio ¢ tecem-no, de que se fazem muitos Panos brancos, ¢, porque nao sabem tingir ou por nio terem tinta, tomam panos azttis ou de outras cores de Cambaia, ¢ desfiam-nos € tornam-nos a juntar, de maneira que fazem wm novelo e com este fiado e com outro branco do seu, fazem muitos panos pintados, ¢ deles hiio muita soma de ouro, 0 qual temédio fizeram depois que viram que nossas gentes The to- Thiam a navegagio dos zambucos; as mercadorias nao podem ir a eles senao por mao dos feitores que cl-tei nosso senhor, tem ali em suas feitorias e fortalezas. O GRANDE REINO DE BENAMETAPA Indo assim desta terra contra (*) 0 serto, jaz um muito grande reino de Benametapa que ¢ de gentios, a que os mouros chamam cafres, Sio homens pretos, andam nus, sdmente cobrem suas vergonhas com panos pintados de algodio da cinta para baixo. Deles andam cobertos com peles de alimdrias monteses, alguns que sio mais honrados trazem ‘dag mesmas peles umas capas com uns rabos que Ihe arrastam pelo chio; trazem isto por estado’ e galantaria, andam dando saltos e fa ©) Na direcgio de, 18 zendo gestos do corpo com que fazem saltar aquela pele de um cabo para o outro, Trazem estes homens umas espadas meti- das em umas bainhas de pau, liadas com muito ouro € outros metais, e a parte da mo esquerda, como nés, com cintas de pano que para isso fazem com quatro ou cinco nés, com suas borlas dependuradas, como galantes homens; trazem também nas mios azagaias ¢ outros arcos ¢ frechas medos que no si tio compridos como de ingreses (+), nem tio curtos como de turcos; os ferros das frechas sio mui grandes e subtis. Eles so homens de guerra e outros grandes mercadores. Suas mulheres andam nuas, smente cobrem suas vergorhas com panos de algodio, entrementes so solteiras, € como siio casadas e tém filhos lancam outros panos por cima dos peitos. ZIMBAOCHE Indo mais adiante para o sertio, quinze ou vinte joradas, est{ uma mui grande povoagio que chamam Zimbaoche em que h muitas casas de madeira ¢ de palha, que € de gentios, em a qual muitas vezes esté o rei de Benametapa, e dai a Benametapa sao seis jornadas, 0 qual caminho vai de Sofala pelo sertio dentro contra o cabo da Boa Esperanga.’ Nesta mesma povoagiio ‘de Benametapa é 0 assento mais acostumado do rei em um lugar muito grande, donde trazem os mercado- res ouro dentro a’ Solafa, 0 qual dio aos mouros’ sem’ peso por panos pintados e por contas, que entre cles sfo'rnuito estimadas, a5 quais contas vem de Cambaia. Dizem estes mou- ros de Benametapa que ainda este ouro vem de muito mais Jonge, de contra o cabo da Boa Esperanga, doutro reino que é sujeito a este de Benametapa, que é mui grande senhor de muitos reis que tem debaixo de seu porte. Ele é senhor de (©) Ingleses. = muito grande terra que corre pelo sertéo dentro, assim para 0 cabo da: Boa Esperanga, como para Mogambique; ele & cada dia servido de mui grandes presentes, que Ihe os outros reis senhores mandam, cada um em sua quantidade e trazem- -lhos pelo meio da cidade, e descobertos sobre a cabega até que cheguem a uma casa muito alta aonde o rei sempre ext aposentado, ¢ cle 0 vé por uma janela ¢ no o veem a ele, somente ouvem-lhe sua palavra; depois. ele mesmo rei manda chamar a pessoa que Ihe 0 tal presente trouve (*) ¢ 0 manda Jogo mui bem despachado. Este rei traz continuamente no campo um capitdo que chamam sono, com muita soma de gente € cinco a ses mil mulheres que também tomam as armas-€ pelejam, com.a qual gente anda sossegando alguns reis que se levantam ou querem alevantar contra seu senhor. Este rei de Benametapa manda cada ano homens honrados, despachados por seu reino a todos ‘os senhorios € Jugares que nele tem, a dar fogo novo, para saber se esto em sta obediéncia, silicet (*), cada homem des- tes chegado a cada lugar, faz apagar quantos fogos nele esto, de maneira que em todo o lugar ndo fica nem um fogo, ¢ como sio todos apagados, todos o tornam a vir tomar de sua indo, em sinal de muita amizade ¢ obediéncia, de maneira que 0 lugar ou vila que assim o ndo quere fazer, ¢ logo acusado por sevel (2), 0 qual manda logo o dito seu capitio sobre ele, que o va destruir ou meter debaixo do set mando e senhorio, 6 qual capitao com toda a sua gente de’ armas, por onde quet quie for, hé-de comer & sua custa dos Jugares. Seu mantimento & milho, aroz e carne; servein-se muito de azcite de gerge- lim (4). @) Trouxe. (2) Seja. (8) Rebelde. () Planta herbicea ¢ semente dela, de que se faz doce ¢ de que os orientais extraem éleo, com que temperam a comida, 20 CUAMA Indo de Sofala caminho de Mogambique, a quarenta 1é- guas de Sofala, pouco mais ou menos, estd um mui grande Tio que chamam Cuama, dizem que entra contra 0 reino de Benametapa mais de cento e setenta léguas; na boca do qual rio estd um lugar a cujé rei chamam Mangalé, por este rio vern dentro a este Iugar de mouros muito ouro de Benametapa; do qual rio se faz outro brago que vem dentro a um lugas que chamam Amgoia, que é por onde se os mouros server com muitas almadias de trazer os panos ¢ outras mercadorias muitas de Amgoia; 0s outros Ihe trazem muito ouro ¢ marfins. AMGOIA Indo a0 diante deixandose este Cama a cento quarcnta de mouros que chamam Amgoia que tem rei sobre si. Vi- vern nela muitos mercadores que tratam em ouro € em mar- fim, em panos de seda ¢ algodao ¢ contas de Cambaia; assim como soiam (*) de fazer os de Sofala, as qutais mercadorias Ihe trazem os mouiros de Sofala, de Mombaca, de Melinde ¢ Qui Ida em uns navios/ muito pequenos, escondidamente dos nos- 50 navios, de maneira quic dali Jevam mui gram soma de mar- fim e muito ouro. Neste mesmo lugar de Amgoia ha muito mantimento, mi- lho, arroz e muitas cames. A gente dele sio homens pretos, bacos; andam nus da cinta para cima, dela para baixo sc co- ©) Costumam. 21 brem com panos de algodio e seda, ¢ trazem outros panos sobragados & maneita de capas; deles fotas em as cabegas; outros trazem umas carapugas de quartos de pano de seda; falam a Iingua natural da terra que ¢ dos gentios, alguns deles falam aravia. Estes mouros as vezes esto a obediéncia de el-rci nosso senhor, outras vezes esto alevantados: por estarem afastados das nossas fortalezas. MOCAMBIQUE Indo mais ao diante deixando Amgoia caminho da {ndia. estio muito perto da terra firme trés ilhas, entre as quais esti uma povoada de mouros, que chamam Mogambique, que tem muito bom porto, em 0 qual todos os navios dos mouros na- vegantes que pata Sofala e Cuama navegam, faziam sua escala para cortegimento (') de suas naus, onde tomavam muita égua, Jenha e mantimento, Entre os moutos desta ¢ de Mogambique, havia um xerife que os governava ¢ tinha a direito; estes mou- ros so da mesma lingua e costume dos de Amgoia. ‘Aqui tem cl-rei nosso senhor uma fortaleza, com que € os ditos mouros debaixo de seu mandado © governanca, ¢ agora tomam neste porto’as nossas naus 4gua ¢ lenha e man- timentos que hd na terra, e nele se corregem as que:o hao mister, assim quando vio, como quando vém, ¢ daqui-man- dam também mantimentos dentro a Sofala aos portugueses que 1é estio, assim de muitas cousas que vém de Portugal, como da india por Ihe ficar em caminho. Na terra firme destas ilhas hd muitos elefantes ¢ muito grandes, e outros animais selvagens. A terra é habitada de gentios, que sfo uns homens bestiais, que andam nus € bar- (2) Coneerto. 22 rados todos com um barro vermelho; trazem as suas naturas emburilhadas (*) em umas tiras de pano azul de algodio, sem nenhuma outra cobertura; trazem os beigos furados com trés furos; em cada beigo trés biizios, e neles metidos uns ossos com umas pedrinhas ¢ outros brinquinhos (*). QUILOA Indo deste lugar de Mogambique ao longo da costa, est uma ilha junto com a terra firme que chamam Quiléa, em que esté um vila de mouros de mui formosas casas de pedra € cal, com muitas janclas 4 nossa maneira, muito bem orna- das, com muitos terrados, as portas de madeira mui bem la- yradas de mui formosa marcenaria, Derredor muitas -dguas € pomares ¢ hortas com muitas aguas doces. Tém rei mouro sobre si. Daqui tratam com os de Sofala donde The traziam muito ouro. Daqui se entendiam por toda Aribia Feliz, que também, daqui por diante, poderemos chamat assim, ainda que seja sobre a Etiépia, porque toda a ribeira do mar vai muito povoada de muitas vilas ¢ lugares de mouros. Antes que el-tci nosso senhor mandasse descobrit a India, ‘os mouros de Sofala, Cuama, Amgoia e Mogambique estavam todos & obediéncia de elrei de Quilda, era mui poderoso ‘rei entre eles, em a qual vila havia grande soma de ouro, porque nenhuns navios nfo passavam para Sofala que primeiro -néio viessem dar nessa ilha. E os mouros dela sio, deles brancos, deles pretos. Andam assaz bem ataviados de muitos - panos ticos de ouro € seda ¢ de algodao ¢ as mulheres também, e (2) Embr (2) Adornos. com muito ouro ¢ prata em cadeias ¢ manilhas que trazem nos pés ¢ nos bragos € muitas joias em as orelhas. Estes mou tos falam aravia e tém a seita do Alcorio, créem muito em Mafamede e a0 rei dela Ihe foi tomado 0 lugar forgosamente pelos portugueses, no querendo por sua soberba obedecer a elrei nosso senthor, onde The cativaram muita gente, € 0 rei fugiw da ilha e sta alteza mandow fazer nela uma fortaleza € os meteu debaixo do seu mando e governanga, depois a tor- now a mandar derribar por néo ser seu servigo nem proveito sustentéla, a qual desfez Anténio de Saldanha. MOMBAGA Indo mais 20 diante ao longo da costay caminho da India, esté muito junto com a terra firme, uma ilha, em que est uma cidade de que chamam Mombaga, a qual € muito for- mosa, de mui altas casas de pedra e cal e muito bem armadas a maneira de Quiléa, a madcira é lavrada de mui formosa marcenaria. Tem rei sobre si que € mesmo mouro. Os homens sio de cér baga, brancos e negros ¢ assim suas mulheres, an- dam mui bem ataviadas, de muitos bons panos de seda, com muito ouro. O lugar é de mui grande trato de mercadorias, tem bom porto, onde estiio sempre surtos muitos navios ¢ grandes naus; assim das que vém de Sofala, como das que vao € outras ‘que vém do grande reino de Cambaia e de Melinde; outras que navegam para as ilhas de Zimzibar (*) € outras de que 20 diante farei mengao. Esta Mombaga & mui farta terra de man+ timentos, onde hé muitos e mui formosos carneiros de uns (©) Zamaibar. 24 rabos redondos e vacas ¢ outro muito gado ¢ galinhas, e é tudo mui gordo, Hi muito milho, arroz, muitas laranjas doces. ¢ agres ¢ muitos limées, romés, figos da India, ¢ toda hortaliga e muito boas éguas. Sio homens que muitas vezes tém guerra com a gente da terra firme, outras vezes paz e tratam com cles, onde reco- Ihem muito mel ¢ cera e marfim. Eo rei desta cidade néo querendo obedecer ao mando de el-rei nosso senhor, por esta soberba a perden e The foi tomada forgosamente pelos nossos portugueses, donde fugiu, ¢ mataram-lhe muita gente, ¢ além disso cativaram-lhe muitos homens ¢ mulheres, de maneira que ficou destruida ¢ roubada e queimada, Tomou-se aqui uma grossa presa de muito ouro € prata e manilhas, braceletes, ore- Iheiras e contas de ouro e muito cobre € outras muitas mer- cadorias ricas. O lugar ficou destruido. MELINDE Indo mais ao diante, deixando Mombaga, caminho da India, nao muito longe dela ao longo da costa, esté uma mui formosa vila assentada em a terra firme, a0 longo de uma praia que chamam Meclinde, que é de mouros. Tem rei mouro sobre si. © qual lugar é de mui formosas casas de pedra e cal; de muitos sobrados com muitas janclas e terrados, a nossa maneira; o lugar esté mui bem arruado. A gente dele séo bran- cos e pretos; andam nus, sdmente cobrem suas vergonhas com panos de algodio e seda, ¢ outros trazem uns panos sobracados & manera de capas; também trazem muitas cinciletes (*) ¢ fotas nas cabecas de muitos ricos panos, € sio grossos mercadores (@) Toucas 35 ¢ tratam cm panos, ouro, marfim e outras muitas sortes de mercadorias com os mouros ¢ gentios do grande reino de Cam- aia, Ao seu proprio porto vem cada ano muitas naus carre- gadas de muitas mercadorias, donde levam muito ouro, marfim ¢ cera, ém que os mercadores de Cambaia acham muito pro- veito, e, assim, uns como outros ganham, muito dinheiro. Ha nesta cidade muitos mantimentos de arroz, milho ¢ algum trigo que o Ievam de Cambaia, ¢ frutas de muitas ma- neitas, porque hé muita abastanga de hortas ¢ pomares. Tam- bém hé aqui muitos carneiros de rabos redondos, vacas ¢ todo © outro gado, muitas laranjas ¢ galinhas. O rei e gente deste lugar foram sempre e sto amigos de cl-rei de Portugal, e sempre neles acham os portugueses muita prestanga e amizade ¢ pacifica paz ¢ ali tomam as naus, se acertam de passar por ele, muito refresco. A ILHA DE S. LOURENCO (’) ‘Ao través de todos estes lugares ao mar deles setenta ee guas distante do cabo das Correntes, est4 uma mui grande itha que chamam de S. Lourengo, que ¢ povoada no sertao de gentios e nos portos'de mar de mouros, aonde tem muitos Iugares,-a qual ilha tem muitos reis, assim mouros como gen- tios. ‘y H4 nela muitas carnes, muito arroz, milho, laranjas e-Ti- imées; hé na terra muito gengibre (*), de que se ‘nao ‘server. mais que comé-lo, assim verde. Andam os homens"dela nus, somente cobrem suas vergonhas com panos de algodao.’ Eles (©) Hoje Madagascar, (2) Planta de sabor picante ¢ aromético. 26 nao navegam para nenhuma parte, nem ninguém para as suas; tém muitas almadias de que se servem com pescar ao longo da sua costa, Sao homens bagos, de lingua subre si. Tém mui- tas vezes guerra uns com outros; sas armas sio azagaias, mui subtis de arremesso, com ferros mui bem obrados; traz cada um muitas delas na mio, com que ferem de atremesso. S30 homens mui ligeiros ¢ manhosos em o arrancar. Tém entre si prata baixa; seu principal mantimento é inhames (). I. a terra mui formosa, aprazivel ¢ vigosa de ribeiras, de assaz grandes rios. ‘Terd esta ila de longo da costa para Me linde obra de trezentas Iéguas ¢ dela A terra firme haverd se- tenta léguas. PEMBA, MAMFIA E ZINZIBAR Entre esta ilha de S. Lourengo e a terra firme nao muito Jonge dela esto trés ilhas, uma se chama Mamfia, outra Pemba, outta Zinzibar povoadas de mouros. Sao mui vigosas de mantimentos, ha nelas arroz, milho, canes em muita abas- tanga e laranjas,-c limdes e cidras, sio os matos todos cheios delas e de todas as outras frutas; t¢m muitas canas de agécar © qual eles no sabem fazer. ‘Téim estas ilhas reis mouros, deles tratam em a terfa firme com scus mantimentos de carnes ¢ frutas em uns navios muito pequenos ¢ fracos ¢ mal feitos, sem nenhuma coberta, e de* um s6 mastro; a madeira deles € liada ¢ cosida com tamisa que chamam cairo; as velas sio de esteiras de palma, “gente muito fraca e de mui poucas armas. Vivem os reis nestas ilhas mui, vigosamente, vestem-se de muitos bons panos de séda e algodao que, em Mombaga, compram aos mercadores de Cam- ©) Raiz farinicea. 27 baia, Andam as mulheres destes mouros mui bem ataviadas, tém muitas joias de suas pessoas, de muito bom ouro de So- fala, ¢ muita prata ¢ orelhciras (') ¢ cadeias de pescogo ¢ mani- Ihas € braceletes; andam vestidas de muitos bons panos de seda, Tém muitos mesquitas; honram muito 0 Alcorio de Mafamede. E LEMON E tanto que passam Melinde indo caminho da india come- gam a atravessar o golfio (*), porque vai a costa dobrando con- tra o mar Roxo. Indo pela costa adiante esté um lugar de monros que chamam Paté, ¢, logo mais adiante, est outro que chamam Lemon, estes tratam com os gentios do sertao. Sto estes lugares mui bem amurados de pedra c cal, porque muitas vezes tém guerra com os gentios da terra firme. DA CIDADE DE BRAVA Indo mais ao diante ao longo da costa, passando estes lu- garcs, esté uma mui grande vila de mouros de muito boas casas de pedra e cal, que chamam Brava; nao tem rei, & gover- nada pelos mais velhos ¢ antigos'da tetra, que sio pessoas mui honradas e de grandissimo trato de muitas mercadorias. Foi este lugar destruido pelos portugueses € mataram-lhe muita gente, levando muitos cativos, com muita riqueza de ouro € ) Brincos. (2) Golfo. 28 prata ¢ mercadorias; entio fugiram muitos deles caminho do sertio, deixando a vila, ¢ depois dela destruida e os portugue- ses idos a tomaram outra vez a povoar, a qual est4 agora prospera como dantes era MAGADAXO. Indo ao diante ao longo da costa, contra o mar Roxo, est4 uma mui grande vila de mouros que chamam Magadaxo; tem um rei mouro sobre si. O lugar é de g:ande trato de muitas mercadorias; pela qual causa vem a éle muitas naus do grande reino de Cambaia, com assaz panos de muitas sortes e com outras diversas mercadorias e especiarias, ¢ assim vém de Adem, donde levam muito ouro, marfim, cera ¢ outras muitas cousas de que se cles muito aproveitam para seus tratos. Ha nesta terra muitas carnes, trigo, cevada, cavalos e mui- tas frutas, de maneita que é wm lugar muito rico. Falam aravia; sio homens bagos ¢ pretos, alguns brancos, sio de poucas armas, porém servem-se de erva (") em as frechas, para se de- fenderem de seus inimigos. AFUM Passando este lugar ¢ vila de Magadaxo, indo pela costa, esté um lugar pequeno de mouros que chamam Afum, em 0 qual h4 muitas carnes ¢ mantimentos. 1 lugar, como digo, pequeno e de pouco trato ¢ nao tem porto. (@) Erva venenosa, 29 O CABO DE GUARDAFUL Indo mais adiante ao longo da costa, passando este lugar de Afum, est o cabo de Guardafui, aonde a costa torna a dobrar caminho do mar Roxo, esté na boca do estreito de Meca, de maneira que quantas naus vém da India e do reino de Cambaia e de Chaul, Dabul, Baticalé, do Malabar e de toda a costa de Bengala e da de Cecilio, Malaca, Samatra ¢ Pogar, ‘Tanagari € China, 0 vém demandar, ¢ deste cabo n- tram para dentro com muitas mercadorias, que umas vio ca- minho da cidade de Adem, Zcila, Barbord, as quais naus os capitais del-rei nosso senhor, vém aqui esperar nesta paragem, cas tomam com muita riqueza, ¢ com toda a mercadoria que levam por quanto vio contra a defesa de Sua Alteza. METE Em tanto que dobram este cabo de Guardafui para dentro, contra o mar Roxo, esté logo muito perto um lugar de mouros que chamam Meté pequeno. Hé nele muitas cares. Nao é de muito trato. BARBORA Indo mais adiante passando este Jugar de Meté para den- tro, esté uma vila de mouros que chamam Barbord, onde vao muitas naus de Adem ¢ de Cambaia com muitas mercadorias. Daqui levam muito ouro, anfiio('), marfim ¢ outras muitas 30 cousas. Os de Adem levam muitos mantimentos e carnes, mel e cera, porque é uma mui abastada terra. Esta vila forgosa- mente foi tomada pelos portugueses com uma frota de que cra capitéo-mor Antonio de Saldanha e destruiu todo o lugar na era de 1518; ¢, dali, partiu com ela para Ormuz, onde hou- veram corregimento das suas naus aquelas que o houveram mister. ZEILA Daqui passando mais adiante, indo para dentro a0 longo da costa, esté outra vila de mouros que chamam Zeila, que um lugar de muito trato, para onde navegam muitas naus a vender suas mercadorias. E o lugar mui bem arreado ¢ tem mui boas casas ¢ muitas delas de pedra ¢ cal e cobertas de terrados. Os moradores dela pela maior parte, assim homens como mu- Theres, so pretos e tém muitos cavalos e criam muito gado de todas as manciras, donde héo muita manteiga, leite e carnes ¢ nesta terra hé muito trigo, milho c cevada ¢ muitas frutas, que tudo daqui levam caminho de Adem. Este lugar foi to- mado ¢ destrufdo pelos portugueses de que foi capitéo-mor Lopo Soares, que entio era Governador da India, ¢ tomowo vindo do porto de Judé (?) na era de 1517 anos. DALACA Indo mais ao diante passando este lugar a0 longo da costa, esté outro de mouros que chamam Dalaca, que também & ©) Gids. 3 porto de mar ¢ donde se mais servem os abexins da terra do Preste Joo (1). Neste lugar derredor dele hi muita soma de mantimento ¢ muito ouro que vem do Preste. MAGUA Daqui passando este lugar Dalaca, indo para dentro do mar Roxo, vai-se longo da costa a um lugar que chamam Magui, ¢ outras muitas povoagdes de mouros, os quais chamam a esta costa Baraiio ¢ nés Ihe chamamos Aribia Feliz, por causa do monte Feliz, que esté nela, onde antigamente esteve uma mui grande cidade que chamavam Feliz, ¢ hé muito tempo, que esta despovoada ¢ nfo mora ninguém nela Em toda esta costa hd muito ouro que vem de dentro do serto do grande reino do Abexim, que é terra do Preste Jodo. De todos estes lugares de longo da costa tratam no sertéo com muitos panos ¢ outras muitas mercadorias, donde Ihes trazem muito ouro ¢ marfim ¢ muito mel, cera ¢ escravos. Os do sertio sio cristéos ¢ cativam muitos deles, os quais cativos si0 muito estimados entre os mouros, € valem entre eles muito mais que outros nenhuns escravos, porque os acham agudos ¢ ficis ¢ muito bons homens de suas pessoas, € tanto que estes abexins so cativos entre 0s monros, logo os tomam da sua Ici, ¢, depois, vém a set mais emperrados ncla que os préprios mouros, 0s quais todos os desta Arabia Feliz, assim homens como mulheres, sio pretos € mui bons homens de peleja. An- dam nus da cinta para cima, e, dela para baixo se cobrem com entio identificado pelos europeus ma figura lendéria da Idade Média a que davam 0 nome de Preste panos de algodio, ¢, 0s mais honrados deles, trazem uns panos grandes como almaizares mouriscos, ¢ as mulheres andam cobertas com outros grandes que chamam chandes. ‘Aqui nesta terra costumam de coser as naturas as filhas quando nascem, da qual mancira andam seinpre até que ca- sam, € as entregam a scus maridos, entao lhe tornam a cortar aquela came que esté soldada como se assim nascera. Isto vi eu por experiéncia, porque me achei na tomada de Zeila, de que jA atrds fiz mengdo, onde tomémos muitas criangas fémeas que achémos assim. DO GRANDE REINO DO PRESTE JOAO No mesmo sitio destes lugares de mouros, entrando pelo sertio est um mui grande reino do Preste Jodo, a que os mouros chamam o Abexim, que € mui grande e mui for- moso de terras. Hé nele muita gente ¢ tem muitos reinos a0 redor, sujeitos a si, que estio a seu mandado ¢ debaixo de sua governanga. & esta terra bem povoada de muitas cidades, vilas, Tugares e muitos deles vivem nas montanhas 4 maneira de alarves (2). Si0 homens pretos mui bem dispostos, tém muitos cavalos de que se servem ¢ so éles muito bons cavaleiros grandes monteiros © cagadores, e ses mantimentos so carnes de todas as qualidades, muitas manteigas e mel ¢ pao de trigo e milho; das quais cousas hé na terra muita abastanga, vestem- -se de couro porque é a terra muito cara de panos, principal- mente em a montanha. Hé também entre cles uma geragdo qué nao pode vestir por dignidade sendo pano, todos os (©) Beduinoe. ck outros no trajam sentio couro, o qual eles trazem mui bem adubado e concertado. H4é também aqui homens ¢ mulheres que nunca em sua vida beberam sendo leite, com que matam a sede, ¢ nao fazem isto por falta de dgua, que na terra hi muita, mas porque 0 Ieite os faz mais rijos ¢ sos. O que cles costumam muito a comer é mel e tém muito; porém os que mais costumam a comer isto, so os que vivem nas montanhas. Todos so, em geragio, cristtos de tempo da doutrina do bem aventurado S. Tomé, segundo dizem, e seu baptismo é ‘em trés maneiras: 0 primeiro é sangue, 0 segundo fogo, o ter- ceiro Agua como 0 nosso. Pelo do fogo sio ferrados nas testas nas fontes, pelo da Agua sio baptizados nela como nés, pelo de sangue sao circuncisados muitos deles, ¢ carecem da nossa verdadeira fé, porque a terra é muito grande, ¢ estes vivem nas montanhas, arredados das vilas lugares. A mais verda- deira cristandade que entre eles h4, € uma grande cidade que chamam Babelmaleque, onde sempre esté o rei, a que nds chamamos 0 Preste Jodo ¢ os mouros o grande Abexim. Nesta cidade se faz cada ano, por dia de Nossa Senhora de Agosto, uma mui grande festa, onde se ajunta assaz nimero de gente, ¢ a que vém muitos reis ¢ grandes senhores; em 0 qual dia cles tiram uma imagem de uma igreja, que nao sabe- mos se é de Nossa Senhora, se de S. Bartolomeu, ¢ € de ouro do tamanho de um homem, os olhos sao de dois rubis de ine- favel prego e 0 corpo dela arraiado de muita pedraria sem ‘conto. Vem esta imagem posta sobre um carro de ouro, onde The vér fazendo muito acatamento e ceriménia; diante dela sai o Preste Jodo cm outro carro, chapeado de ouro; mui rica- mente vestido de ricos panos de ouro, ¢ arraiado de rica pe- draria. Comecam a sait desta maneira: pela manha andam pela dita cidade com muito solene procissio, ¢ com diversos tan- geres ¢ com grande festa, até tarde que na mesma ordem se tornam a recolher. I tanta a gente nisto que muitos por che- garem ao carro da imagem, morrem de abafados, a qual morte 34 hao entre si por santa ¢ de mirtires, ¢ vio por esta razio re- cebé-la voluntiriamente muitos velhos ¢ velhas ¢ outras pes- soas. 5 este rei do Preste Joi muito tico ¢ abastado de ouro, ¢ tanto que até 0 nosso tempo se nao sabe nenhum outro ret The ser nisso igual. E, como j& disse, traz mui formosa € gran- Je corte ¢ paga muita soma de gente que continuamente traz consigo, com que sogiga(") outros reis comarcios, como jf disse SUEZ Deixando esta terra do Preste Jodo e também a costa da Arabia Feliz, tornando a outra banda do mar Roxo, que também chamam Arabia e os mouros Ihe chamam Baraido, esta um lugar, porto de mar, que chamam Suez, onde os mouros traziam de Juds, porto de Meca, toda a especiaria ¢ drogarias e outras muitas mercadorias, muito ricas, que al vinham da {ndia ¢ traziam-nas de Judd em navios muito pe- guenos; ¢, dali, as tomavam em camelos, ¢ as levavam. por terra a caminho do Cairo, donde as levavam outros merca- dores, caminho de Alexandria; e af as compravam os venc- zianos, 0 qual trato é desfeito por el-ei nosso senhor, porque as suas armadas tolhem as naus dos mouros que das Indias nao passem ao iar Roxo. Pelo que, 0 gram soldio (*) do Cairo gue nisto mais perde, mandou fazer neste porto de Suez, uma grossa armada pata que se trouxe para terra a madeira € artilharia, ¢ todas outras municdcs, em que se fizeram mui grandes despesas, a qual foi com muita pressa feita de naus de ©) Subjuga. (2) Sulio. givea e de galés de remos; ¢, sendo feita, passou a primeira India, que é no reino de Cambaia, indo por capitéo-mor dela Mirocem, com determinagio de tolherem a navegagio aos portugueses, ¢ ajuntou-se. com a armada del-ei nosso senhor, defronte de Diu, onde pelejaram tio rijo que, de ambas as partes, houve gente ferida ¢ morta, de maneira que os mouros foram vencidos ¢ as naus lhe foram tomadas ¢ queimadas ¢ metidas no fundo. Pelo qual feito, e, por outros muitos, que depois se fizeram, se foi perdendo a navegagao pelo mar Roxo, € 0 porto de Suez ficou sem nenhum trato de especiaria € est agora muito danificado ¢ qudsi despovoado. DO MONTE SINAI ‘Ali logo nao Jonge de Suez, nesta mesma terra da Ardbia, sobre 0 mar Roxo, esté 0 monte Sinai, onde jaz 0 corpo da bem aventurada Santa Catarina, em uma igreja’ onde esto alguns frades cristéos em poder de moutos, debaixo do pode- rio ¢ mando do gram soldio, 4 qual casa vio em romaria muitos cristios da terra do Preste Joao e de Babildnia, Armé- nia e Constantinopla e Jerusalém, de Roma, Alemanha e Népoles ¢ doutras muitas partes. ELIOBOM E MEDINA Passando o dito monte de Sinai, a que os mouros ‘cha- mam Turla, para diante pela costa do mar Roxo, saindo para fora, esti uma terra de mouros, porto de mar, que se chama Eliobom, aonde, dizem, desembarcam para ir a Medina, que 36 & outta cidade de mouros, pela terra dentro trés jornadas Tonge deste porto, na qual est sepultado o corpo de Mafa- mede. JUDA PORTO DE MAR Saindo do dito porto de Eliobom para fora ao longo da costa do mar Roxo, esté uma terra de mouros chamada Juda, gue é porto de mar, onde, todos os anos, costumavam ir as naus da India com as especiarias ¢ drogarias, ¢ dai voltavam a Calecut com muito cobre, azougue (*) azinhavre (*), agafrao, fguas-rosadas (*), panos de escarlata, sedas, chamalotes, tafetés ¢ outras mercadorias diversas que se despacham na India, € igualmente com muito ouro ¢ prata, ¢ era este tréfego muito grande e proveitoso. Em este porto de Juda se carregavam as ditas especiarias ¢ drogatias em navios pequenos para Suez, como fica dito. MECA Distante deste porto de Judd uma jornada pelo seitio, esté a grande cidade de Meca, e nela uma grande mesquita, aonde vao ‘em romaria os mouros de todas as partes, ¢ tém por certo serem salvos, lavando-se com a agua de um pogo que esté dentro dela; ¢, dali, a levam em gartafas as’ suas terras como grande rcliquia + () Mereiiro. (2) Alogs, Jenho aromético; resina amarga ¢ purgativa produzida pela planta do mesmo nome. (8) Aguas distiladas de rosas. 37 Em o porto de Judd mandou, hi pouco, fazer uma for- taleza Mirocem, capitio mouro das naus do soldao, que os portugueses desbarataram na India, 0 qual depois que se viu desbaratado, nao teve mais Animo de voltar ao seu pais, sem fazer algum servigo ao seu rei, ¢, assim, determinou pedir a cltci de Catmbaia, que se chama soldio Maomé, e igual- mente aos principes ¢ mercadores do seu reino, e aos outros reis mouros, grande quantidade de dinheiro.para fazer a dita fortaleza, dizendo que pois os portugueses, aos quais chamam. frangues ('), eram téo poderosos, nao seria maravilha que entrassem por este porto e fdssem destruir a Casa de Mafoma. Uistes reis ¢ gente moura ouvindo o sen peditério, e vendo o podet del-tei de Portugal, pareceu-lhes que poderia acontecer facilmente; e, assim The deram grandes dons, com os quai catregou trés naus de especiarias e doutras mercadorias; e com clas navegou para 0 mar Roxo; e chegando a Jud4 as vendeu e com este dinheiro fez a fortaleza. No tempo em que éle a fabricava, os portugueses construiam outra dentro da cidade de Calecut, cujo rei pediu ao capitio-mor del-rei de Portugal licenga para mandar entéo a Meca uma nau carregada de espe- ciarias. Foi-lhe a licenga concedida e mandou a nau, indo nela por capito um mouro honrado por nome Califa, 0 qual che- gando a Judd, saltou em terra em muito boa ordem com a sua gente, e Mirocem, que entio fazia a fortaleza, logo the pediu novas dos portugueses, a0 qual cle respondeu estavam em Calecut muito pacificos, e faziam uma fortaleza muito grande, a0 que Mirocem Ihe tomou: — Como tens tu atre- vimento para vir a Meca sendo amigo dos portugueses? ¢ Ca- lifa Ihe respondeu: — Eu sou mercador € nao posso al (*) fazer, (@) «Todos 03 ocidentais eo chamados frangues,. dos francos ou franceses que vieram conguistar a Terra Santa» (Patriarca D. Afonso Mendes, cit, in. Histéria Geral de Etidépta a Alia de Baltasar Teles, 1, cap, XXX1) (2) Qutra coisa. 38 mas tu que eras capitio do gram soldio ¢ que tinhas a teu cargo deité-los fora da India, como os deixaste, ¢ estds aqui fazendo uma fortaleza? Das quais palavras Mirocem teve muito desprazer ¢ fez. logo que Califa, assim mesmo bem ves- tidg como estava, € igualmente toda a sua gente carregassem pedra e.cal, ¢ ajudassem a obra, no que o fez afadigar 0 espago de uma hora; 0 que tudo 0 dito Califa contou depois que voltou a Calecut. JASAO, ALI E ALHOR Passando o porto de Judé vindo pelo mar Roxo ao longo da costa, saindo para fora, esto muitos lugares de mouros que tém rei sobre si, dos quais a um chamam Jasfio, outro Ali, outro Alhor, ¢ derredor destes hd muitos lugares pequenos onde h4 muitos cavalos ¢ mantimentos. Este rei nfo obedece a0 soltio nem a outro nenhum, tem muitas terras € lugares que sio portos de mar donde os mouros so:am levar alguns cavalos para a India por mercadoria, que valem muito di- nheiro, OBEDA, BABELMANDEL (') Deixando estes lugares € reinos, esto outras muitas vilas a0 longo da costa que sio do reino de Adem, dos quais ha um chamado Obeda, outro Babelmandel que € na boca do estreito onde as naus entram ao mar Roxo ¢ saiem; no qual lugar se tomam os pilotos para entrarem ¢ levarem as naus @ Jud, os quais vivem aqui para isso sdmente. (2) Bab-el-Mandeb. CAMARAO Saindo destes lugares atrds, esté uma ilha que nao é muito grande que chamam Camario, povoada de mouros onde as naus tomam algum refresco quando por’ ali passam de Judd para fora ¢ de fora para dentro. Este lugar foi tomado por Afonso de Albuquerque, capi- tao-mor del-rei nosso senhor, onde esteve muitos dias corre- gindo repartindo sua frota para sair do mar Roxo, por 0 tempo The néo dar lugar para ir dentro a Judé, onde ele determinava ir, ¢, também, Lopo Soares quando veio do porto de Judé, sendo capitio-mor do mar, onde junto com a agua achou uma fortaleza que 0s rumes(*) fizeram quando ai esti- veram, a qual ele querendo-se partir a mandow derribar. Ha nesta ilha muita dgua de pogos de que as naus se provém. A CIDADE DE ADEM Saindo assim deste mar Roxo, contra Babelmandel, que 0 mais estreito lugar que nele h4, que é por onde todas as naus forgosamente hao-de passat, entram logo em 0 mar Targo de Adem de longo da costa, por onde vio alguns lugares de mouros, que so do mesmo reino de Adem; pasando os (2) ws rumes sio todos aqucles naturais da provincia ‘de Tra daquela parte de Constantinopla que se chamou Romani ficou chamando ... seus naturais romanis, ¢ os turcos, depois, corrompendo-the nome, Ihe chamaram xumeli ends depois rumes. E nfo s6 depois os que passaram a lei de Mafamede, depois que aquele império se perdeu, mas ainda os de toda a Grécia que ficaram na sua antiga». Diogo do Couto, De Asia, Década IV, liv, VIII, cap. IX). 40 quais chegam a populosa ¢ sumptuosa cidade de Adem, que é de mouros ¢ tem rei sobre si. Tem esta cidade mui bom porto de mar de mui grosso trato de grandes mercadorias, € muito formosa, de mui altas casas de pedra e cal ¢ terrados, de mui altas € muitas janelas, mui bem arruada ¢ cercada ide mutos, torres € cubelos, com suas ameias & nossa mancira. Tsté a dita cidade em uma ponta entre @ serra € 0 mar a serra € talhada da banda da terra firme e de maneira que nao tem por onde sait para fora para a terra firme, senao por uma porta, pela qual se servem, € por outra parte ndo podem entrar nem sait. Por cima desta serra onde a cidade jaz, ha ai muitos castelinhos, mui formosos que do mat parecem. Nio tem a cidade dentro em si nenhuma Agua, somente fora da porta que faz a serventia; contra 0 sertao ‘est uma grande casa onde por canos fazem vir a dgua doutra serra, Gque dali esté um bom pedago; c tal que, entre ma ea outra, se faz um campo grande. : Hé nesta cidade grossos mercadorcs, assim mouros como judens, so homens brancos, alguns deles pretos, vestem-se de panos de algodio, deles de seda, chamalotes ¢ gra; seus vvestidos sfo umas roupas compridas, com toucas nas cabegas, trazem calgados uns sapatos baixos. Seus mantimentos fo mui boas cames € pao de trigo ¢ muito arroz que The vem da India; aqui hé todas as frutas que hd em nossas partes, € assim, muitos cavalos ¢ camelos. TE o rei esté sempre dentro no sertio € aqui tem posto um governador de sua méo, ‘Ao porto desta cidade vém muitas nans de todas as partes, prin- cipalmente do porto de Judé ,donde The trazem muito cobre, azougue, vermelhio, coral ¢ muitos panos de Ta ¢ seda, do que Tevam em retorno muita especiaria ¢ drogarias, panos de algo- dao ¢ outras mercadorias do grande reino de Cambaia; de Zeila e Barbora vém aqui ter muitas naus com muitos man- timentos e€ levam em retorno panos de Cainbaia e contas 41 pequentas e grandes. Todos os mercadores que negoceiam para a Arabia Feliz e pata a terra do Preste foie, igualmente vém aqui ter, assim como as naus das cidade de Ormuz ¢ de Cambaia, vem carregaday de muitos patios, ¢ ¢ tanta a soma delas que parece cousa espantosa; trazem, como digo, algo- dio, muita drogaria, pedraria, muito aljéfar, laquecas ('), donde levam, em retorio, pata 0 dito reino de Cambaia, muita thvia, épio, passas, cobre, azougue, vermelho (*) € imuita soma de Aguas-rosddas, que se aqui fazem ¢ também fevam muitos panos de 14, veludos pintados de Meca, ouro em pedagos, amocdado ¢ por amoedar, ¢ outro enfiado, ¢ chamalotes; e, parece cotusa impossivel, poderem-se gastar tantos panos de algodao, como estas naus trazem de Cam- baia. Vert a esta cidade, de Ormuz, de Chaul, Dabul, Bati- cala, Calecut, donde soia de vit'a mais especiatia, com mui grande sonia de atroz e agticar ¢ cocos, ¢ também vém’ mui+ tas haus de Bengala, Samatra e Malaca, que outro sim tras zem muita especiaria drogatias ¢ sedas, beijoim (°), laca (‘), sindalo, fenho aloés, muito ruibarbo (*), almiscar (°), muitos patios delgados de Bengala, muito agiicar. De maneira que ¢ este Ingar do maior e mais grosso trito que se acha no mundo, ¢, assim, das mais rieas mereadotias. ‘A esta cidade chegou uma armada teal del-tei nosso senhor, de que era capitio-mot Afonso de Albuquerque, que entfo eta governador da India, ¢, no mesmo porto Ihe tomou € queimou muita soma de naus, carregadas de muita merca- dotia, € ottttas destarregadas, € cometeu entrar na cidade, 2 ) Pedra Iustrosa e vermethi (#) Samgue de drago, resi (8) Rosina arométien, @) Resina avermelhada. (©) Plante medicinal. (8) Substaneia mi baixo do ventre do al do dragoeiro, odotttera que se encontra numa bolsa por iscaretro. Y 42 qual cartrou, & escala vista (), pelos mouros, com imuitas esca- das, ¢, scndo bem quarcnta portugueses dentro, € tendo to mado um cubelo, as escadas com 0 peso da muita gente que por clas subia foram todas quebradas, sem ficar por onde se pudesse subir. Os portugueses que estavam dentro no cubelo, estiveram esperando que Ihe acudissem por espago de uma hora, ¢, vendo que ninguém subia, ¢ que os mouros s¢ vinham chegando, e comegaram de os entrar, s¢ Tangaram do cubelo abaixo por cordas. Nesta entrada se defendiam mui bem os mouros € morreram muitos com alguns cristdos, entre os quais morreram dois capitais, um deles dentro da cidade € 0 outro no cubelo. © REINO DE FARTAQUE Daqui pasando este reino e cidade de Adem, saindo para fora do mesmo estreito, esté outro reino de mouros, a0 Tongo da costa, que tem trés ou quatro vilas junto com 0 mar. Uma chamam Xaer, outra Dofar, outra Fartaque, em que os ditos homens de peleja tém muitos cavalos de que se servem na guerra, com muitas ¢ boas armas, Agora de pouco tempo a esta parte est4 a obediéncia del-rei de Adem, concertado em seu servigo. O CABO DE FARTAQUE, SACOTORA Deixando este reino acima, se faz um cabo, que também chamam dc Fartaque onde a costa torna a fazer volta para () De assalto, com escadas encostadss ans muros. o mar largo. Entre este mesmo cabo e o de Guardafui é a Boca’ do cstreito de Meca, que ¢ por onde as naus entram para o mar Roxo, entre os quais cabos estio trés ilhas, uma grande ¢ duas pequenas; a grande chamam Sacotord, que tem mui altas serras ¢ montanhas e povoada de uns homens bacos, due dizem que sao cristios, porém careccem da ensi- nanga € baptismo, que néo tém sendo nome de cristdos ¢ tém todavia em seus oratérios cruzes. Foi em outro tempo esta ilha de amazonas, segundo dizem os mouros, que depois por tempo se foram ajuntando com os homens; ainda agora parece alguma cousa disso, porque as mulheres ministram ¢ governam suas fazendas sem os maridos nisso entenderem. ‘Tem esta gente Iingua sobre si, andam nus, sdmente cobrem suas vergonhas com panos de algodao, deles com peles, tém muitas vacas, muitos carneitos ¢ palmares de tAmaras, seu mantimento é leite, carne ¢ tAmaras; nesta iJha hd muito sangue de drago € muito aloés sacotorim. Aqui fizeram os mouros de Fartaque wma fortaleza, em que estavam para sogigarem fazerem mouros a gente da terra; de maneira que quantos viviam derredor da fortaleza c1am j4 mouros e serviam os mouros fartaques como se foram seus escravos, assim com as pessoas como com as fazendas, ¢ viviam muito atribuladamente entre eles com muita: sujei- gio, porém ainda guardavam alguns, como melhor podiain, seus ritos, os quais The ficaram de mui antigamente, que di- zem que a ilha foi povoada de verdadeiros cristdos que, pouco € pouco, se foram corrompendo por carecerem de navegagio, por onde tiveram doutrina. FE. estando assim os mouros far- taques, em posse desta fortaleza, chegou aqui uma armada del-rei nosso senhor, ¢; saindo os portugueses em terra, Ihe tomaram a fortaleza, mas nao tanto a seu salvo como quisé- ramos, porque éles se defenderam mais ousadamente que até agora nestas partes nenhuns homens vimos, e nuncd se qui- seram dar, até que morreram todos pelejando sem um s6 44 ficar vivo, assim que sio mui bons homens de guerra € em extremo ousados nela. O capitéo desta armada deixou na for- taleza muita gente para a defenderem ¢ manterem. Logo, junto com esta ilha, cstio outras duas que tam- bém sio povoadas de homens negros ¢ bagos & maneira de canarins; é gente que nao tem lei, nem nenhuma cousa a que adorem, somente vivem como bestiais, sem trato, nem conversagao. Em as quais ilhas se acha muito € bom Ambar ¢ conchas das que valém na Mina, e muito sangue de drago ¢ alo¢s sacotorim, ¢ também muitos carneiros e vacas. Na ilha de Sacotar4, que atrés disse, fazem uns panos de 14 como ordens, que chamam carabolins, que valem muito, ¢ € muito certa mercadoria para a costa de Melinde ¢ Mombaca onde se servem muito deles. XAER Indo assim ao mar ao longo da costa, esté uma vila de mouros que chamam Xaer, a qual também é do mesmo reino de Fartaque, a qual é um lugar muito grande, em que hé grande quantidade de muitas mercadorias, a qué os mouros de Cambaia! de’ Chaul ¢ Dabul, Baticals ¢ Malabar, vém com as suas aus carregadas com muitos panos de algodio grossos € delgados, de que se eles muito servem ¢ muitas granadas enfiadas, e outra muita pedraria baixa, muito arroz, acéicar, muita especiaria de toda a sorte, ¢ outras muitas mer- cadorias, as quais eles aqui vendem aos mercadores da terra que as compram muito bem, e as Jevam caminho de Adem, e para toda essa Ardbia. Depois que os ditos mercadores.ven- dem as ditas suas mefcadorias, empregam 0 dinheiro em ‘mui tos bons cavalos que na terra hé, os quais cavalés sto ‘muito maiores e melhores que os que vém de Ormuz, @ valem na 45 India quinhentos, seiscentos cruzados. ‘Também levam muito incenso que nasce na propria terra, € ha nesta terra de.Xaer muito trigo, carnes, tamaras € vas. Rele-vettio dela é tudo ‘habitado Ge dlarves. Quantas naus vém da India para entrar no mar Roxo, se & tarde e no podem entrar no estreito, arribam em Berber ¢ neste porto; , assim também, as que de dentro saiem, achan- do os ventos contrérios, entram aqui doade passam caminho de fndia, cosendo-se com a costa de Cambaia. Desta ma- neita é éste porto de mui grande escala de muitas naus, ¢ nasce aqui tanto incenso que se leva para todo o mundo, € Jevam as naus com ele, ¢ vale o quintal a cento ¢ cinquenta réis, € este rei de Xaer com todo o seu reino estd a obedién- cia de Adem, porque Ihe tem um irmao preso. DOFAR E passando 0 cabo de Fartaque vai a costa do mar jé virando contra Ormuz. Indo ao longo da costa esti um lugar de mouros que chamam Dofar, que também é do reino de Fartaque, em o qual tratam os mouros de Cambaia com mui- tos panos de algodio, arroz.¢ outras muitas mercadorias. CHAR, Daqui pasando 0 lugar de Xaer, indo de longo da costa vio outros muitos lugares de mouros, pequenos, pelo sert4o de muitos alarves, a qual costa vai assim até o cabo de Rosal- 6 gate, que & onde sc comega o reino ¢ scnhorio de Ormuz, onde esté uma fortaleza que o dito rei de Ormuz, tem ali, a que chamam Char, daqui comega a costa a dobrar para dentro contra onde jaz Ormuz. REINO DE ORMUZ EM ARABIA Indo ao diante passando o cabo de Rosalgate ao longo da costa, estio muitos lugares ¢ fortalezas del-rei de Or- muz, até entrar pelo mar da Pérsia, e, outro sim, por den- tro do mar persiano, o dito rei tem muitos castelos € lugares, ¢ pela banda da Ardbia, muitas ilhas que est4o dentro no dito mar, habitados de mui honrados mouros, onde ele tem seus capites e arrecadadores das suas rendas, os quais lugares sio 0s seguintes, scilicet, primeiramente Clarate, que é um lugar grande de mouros de mui formosas ¢ bem assentadas casas onde vivem muitos mercadores e grossos tratantes (*) ¢ outros cavaleiros. Logo passado este lugar esta outro que chamam Teme, & pequeno, ¢ tem muito boa aguada, onde a vém fazer todas as naus que por estas partes navegavam. Esté além deste lugar outro que chamam Dagino, que € também muito bom porto de mar, Passando este est logo na costa outro que chamam Curiate que ¢ povoado de gente muito honrada e de muito bom trato de mercadorias, no qual Tu- gar ¢ em outros, que derredor dele est4o, h4 mantimentos em muita abastanca e muitos cavalos que na propria terra nas- (©) Comerciantes 47 cem, muitos bons, que os mouros de Ormuz vém comprar para levarem ou mandarem caminho da India, Passando este lugar de Curiate, esté outro que chamam Etem, onde 0 rei de Ormuz tem uma fortaleza. Deixada esta fortaleza esté um ugar que chamam Mascate, que é uma grande vila onde vive muita gente honrada; esta vila é de muito trato de mer- cadorias ¢ de grandissima pescaria, onde se pesca muito pes- cado ¢ grande, 0 qual salgam ¢ secam ¢ tratam com ele para muitas partes. Passando este lugar indo caminho de Ormuz, a0 Tongo da costa esté outro que chamam Coquiar. Além do qual esta outro que chamam Bogaque, que tem wna mui boa fortaleza delrei de Ormuz, as quais fortalezas ele tem para fazer guerra a estes outros lugares quando se alevantarem. Passando esta fortaleza de Bocaque, mais para dentro, esté outro que chamam Mael, além do qual esté wm lugar pe- queno que’ chammam Profao. Derredor destes lugares estio muitas quintans ¢ herdades qne os mouros honrados de Ormuz tém nesta terra firme, onde vém pelo verdo folgar e recolher suas novidades ¢ fru- tas. Passando este lugar de Profiio acima, esté outro que cha- mam Julfar, onde vive muito honrada gente ¢ muitos nave- gantes e gtossos mercadores; aqui se pesca muito alidfar ¢ pérolas grandes, que os mercadores de Ormuz vém comprar para levarem caminho da India, e para outras muitas partes. Rende o trato deste Ingar mui grande soma de dinheiro a elrei de Ormuz, ¢ também o rendem os outros todos. Pas- sando estes lugares de Profi, esto de longo da costa outros Tugares, dos quais um se chama Recoima, que é um mui gran- de Iugar, ¢ além deste outro que tem uma fortaleza que cha- mam Caludo, que el-rei de Ormuz ali tem em defensio das suas terras, porque ao sertdo de todos estes lugares vivem muitos mouros 4 maneira de alarves, que sio governados por xeequies, qute as vezes vém sobre estes Ingares ¢ The fazem guerra; a qual gente muitas vezes se alevanta contra seu rei. 48 REINO DE ORMUZ EM PERSIA © mesmo rei de Ormuz tem ao longo da costa da Pér- sia muitos lugares ¢ ilhas habitadas, que aqui nomearei cacla uma por si, ¢ depois contaret da ilha de Ormuz ¢ da sua ci- dade e do dito rei e scus costumes Em a costa da Pérsia caminho da India, tem eltei de Pérsia um mui bom lugar que chamam Baio, povoado de gente mui honrada, onde tem seus governadores, qual The rende muito bom dinheiro. Passando este estd logo outro também de longo da costa que chamam Devixar. Passado 0 qual esta outro que chamam Sacujon. Passado este esto 20 Jongo da costa muitos lugares pequenos, ¢ est um que cha- mam Nabando, do qual vai muita 4gue doce a Ormuz em tans barcos peqnenos que chamam terradas, a qual levam para beber a gente da cidade, por dentro, na ilha, nao haver ne- nhuma agua; de mancira que, deste e dos outros lugares, levam a cidade de Ormuz todos os mantimentos, carnes © frutas, de que é em muita abastanga provida. Passando: este Jugar de Nabando esta logo outro que chamam Ganda, e daf por diante vo muitos Tugares do mesmo rci, a saber, Queijas, Ditabala, Beroaquem, Lima, Orvazax, Befar, Armio, Bardens, Corgio, Gostaquem, Congo, Bachorovai, Ominfo, que é uma miuito boa fortaleza, Coar. Entre estes ainda hd outros Jugares, que, posto que sio pequenos, sio de muito trato, os quais aqui nao nomeio por nao ter deles tao verdadeira infor- magio; basta que so todos povoados de gente honrada e de grossos mercadores. "Assim tem clrci de Ormuz por dentro do sertio para defensio de sua terra muitas fortalezas ¢ todas na dita costa do mar da Pérsia, que so lugares muito abastados, de muitas carnes, trigo, cevada e muitas frutas, wvas € tamaras de di- versas mdnciras, como as que temos nestas partes. E, nestes 49 lugares, assim homens como mulheres, sio brancos ¢ gentis homens; vestem-se de roupas compridas, de panos de algo- dio ¢ de seda e gra ¢ chamalotes, c toda esta terra € mui- to rica. ILHAS DO REINO DE ORMUZ A prépria ilha em que esté a cidade de Ormuz esta entre a costa da Arabia e Pérsia na boca do mar persiano. Indo para dentro esto muitas ilhas estendidas por este mar, que sio do mesmo rei de Ormuz, e estdo a sua obediéncia, as quais sfo as seguintes: primeiramente Queixime, que € uma itha grande muito vigosa, donde vem a Ormuz muita fruta verde e soma de hortaliga, a qual tem dentro em si grandes povoagdes, Deixando esta, esté outra que chamam Andra, € outra Bascarde, ¢ outra Laracoar, Fomon, Firol. Passando este Firol est outra ilha grande chamada Barem, onde vivem muitos mercadores e outra gente honrada; esta filha esté muito metida pelo mar persiano, por onde navegam para cla muitas naus com muitas mercadorias; ao redor dela nasce muito aljfar e mui boas pérolas grandes, que os mercadores da propria ilha pescam, e hio disso mui grosso proveito, de que elzei de Ormuz tem mui grande tenda e direitos ¢ esta ‘tha com as outras Ihe rendem muita soma de dinheiro. Aqui yém os mercadores de Ormuz comprar este aljéfar e -pérolas, para levarem ou mandarem vender a India, onde ganham nelas muito dinheiro. Também 0 vao af comprar para o reino de Narsinga ¢ para toda Ardbia e Péisia, ¢ esté aljOfar ¢ pérolas se acham em todo este mar persiano, de Barem até dentro de Ormuz, porém em Barem hé af mais quanti- dade dele. i 50 TERRAS DO > EQUE ISMAEL Indo mais ao diante deixando estas ilhas de Barem pelo iar dentro, vo muitos lugares e povoagdes de mouros hon- rados que sto umas terras mui fartas e ricas. Da qual ilha por diante, no é mais do senhorio de Ormuz, poraue ali se acaba, mas sio doutros senhorios de que nao temos tanta informagio ¢ noticia; somente que dali a0 diante tudo manda ¢ sogiga o xeque Ismael, que € um mouro mancebo que de poucos tempos a este cabo tem tomado e sogigado grande parte da Ardbia € Pérsia e muitos reinos ¢ senhorios de mou- ros, nao sendo rei nem filho de rei, ssmente filho de um xeque de gerago Dali(*), 0 qual vindo a morrer, ele me- nino, ¢ indose por ai, foi ter com um frade arménio que 0 criou, e, sendo de idade de doze anos, fugiu do seu poder com medo de nao matarem por ser mouro, ¢ foi ter em uma grande cidade, onde se assentou com um grande senhor, com © qual veio a privar tanto, que 0 trouxe a cavalo, ¢ em muito boa posse, ¢, dali, comecando-se a juntar com outros mouros. mancebos, achegou muita gente para si, e comegou pouco ¢ pouco a ir tomando lugares e fazer meres de haveres € ri- quezas, que neles achava, as pessoas que consigo levava, as tais tomadas, no tomando para si nenhuma cousa. Vendo pois tio bom principio para suas cousas, deter- minou de tomar divisa, e mandou fazer umas carapugas ver- melhas de pano de gra, ¢ de as mandar trazer a todas as pes: soas que com elas quisessem ser em sua opiniio. E foi de maneira que se achegow para ele mui grande soma de gente, comegando logo a tomar grandes lugares ¢ fazer muita guerra, (@) Nota de Mendo Trigoso: «Na tadugio italiana vem esta in- fancia de Xeque Ismacl contada por diferente modo, que por ser de pouco intersse nos parece dever omitire. 5I ¢, com tudo isso, niio se quere chamar rei, nem repousar em nenhum rcino, ¢, tudo © que na gucrra toma, reparte por quem Tho ajuda a ganhar. E, achando algumas pessoas que de suas riquezas se ndo sirvam, nem aproveitem a ninguém, tomahas ¢ reparte-as, igualmente, por alguns homens honra- dos de seu exército que vé serem pobres, € a0 préprio dono da fazenda dé outro tanto como cada um deles, pelo que, alguns mouros Ihe chatnam igualador, mas 0 seu proprio nome € xeque Ismael. Este tem por costume mandar a todos os reis mouros seus embaixadores, cometendo-lhes que tra- gam aquelas carapugas vermelhas da sua divisa, ¢ no as querendo trazer, que 0s desafiem, fazendo-Thes saber que ele bs ird buscar ¢ Thes tomar suas terras ¢ os fard crer nele. E, desta maneira, mandou ao gram soldio ¢ ao gram turco, uma embaixada, os quais havida sobre ela seu consclho, por tas embaixadas The sesponderam mui mal, determinando de se defender cele, ¢ de ambos se ajudarem um ao outro. Vendo pois 0 xeque Ismael suas respostas, concertou logo de vir contra o turco com muita gente de pé € de cavalo, desi 0 veio a buscar, 0 qual 0 saiu a receber no mal apercebido. E, assim, houveram ambos uma grande batalha de que 0 turco foi vencedor por causa de muita artilharia que consigo trazia, de que o xeque de todo carecia, pordue nao peleja com sua gente sendo s6 forca de bragos. Aqui the mataram muita gente, ¢ cle se pos em fugida. © turco Ihe seguiu o alcance. indo-lhe sempre matando muita gente, até o meter na terra da Pérsia, donde se tornou a Turquia. Esta foi a primeira vez que 0 xoque Ismael foi desba- tatado, do qual magoado, determinou de vir outra vez em busca do turco, mais avisado de artilharia ¢ corm muito maior poder do que antes vicra. Senhoreia este xeque Ismael em Babilénia, Arménia, tuda Pérsia, mui gram parte da Ardbia, parte da India “contra 52 Cambaia. A sna determinagio é haver as méos a Casa de Meca, 0 qual mandou a India uma embaixada 20 capitdo- -mor delrei nosso senhor, com muitos presentes, oferecendo- Ihe concerto € paz, o qual a recebeu muito bem, ¢ logo, The mandou outra embaixada ¢ presente. A FORTALEZA DE BAGORA Aqui mesmo no fim deste mar persiano ¢st4 uma mui grande fortaleza que chamam Bogor, povoada de mouros que esto 4 obedigncia do xeque Ismacl, na qual sai da terra firme ao mar em muito grande e formoso rio de Agua doce, a que os monros chamam Enfrates; ¢, dizem, que & um dos quatro que saiem da fonte do Paraiso terreal, 0 qual os mou- 10s préprios da terra dizem que tem infinitos bragos, ¢ dos outros déles o principal que eles chamam Indio, sai no, reino de Vercinde, na primeira India donde ela tomou 0 nome; outro que chamam Ganges, sai na segunda India, ¢ 0 qual que é 0 Nilo sai pelo meio do Preste Joao, € rega 0 Cairo. E ainda que se conhega que isto sio fébulas, sempre as quis escrever. E tomando a0 nosso propésito, para esta fortaleza de Bagoré navegam muitas naus, com muitas mercadorias ¢ ¢s- peciaria ¢ panos de algodio, ¢, nela, carregam muito trigo, muitas mantcigas, gergelim, cevada. chamalotes ¢ outras muitas mercadorias. Em um rio que passa junto desta forta- Jeza hé uns peixes que quanto mais os cozem ou assam, tanto mais sangue langam. ‘A FORMOSA CIDADE DE ORMUZ Saindo deste mar c estreito, esté logo na boca dele uma itha que nfo ¢ muito grande, em que esté a cidade de Or uz, que nfo é tamanha como formosa, de mui altas casas de pedra ¢ cal, cobertas de terrados com muitas janelas. Por a terra ser muito quentc, tém as casas todas uns cataventos, feitos por tal maneira, que do mais alto delas fazem vir 0 vento as mais baixas légeas, quando 0 hao mister. Esta a ci- Yade mui bem assentada ¢ armada com muito boas pracas Fora dela na propria illha est uma serra pequena de sal em pedra (2) ¢ algum enxofre, ainda que muito pouco; © sal esti fm tamanhas pedras como grandes rochedos, de montanhas fragosas, chama-se sal indio e a prépria natureza 0 cria ali, ¢, depois de moido é muito alvo c bom, Quantas naus vém a esta cidade todas levam seu lastro dele, porque em muitas partes vale dinheiro. Os mercadotes desta ilha € cidade sio pérsicos ¢ ard- ios, os pérsicos falam ardbio ¢ outra Iingua que chamam psa; sio mui altos ¢ formosos, gente mui ‘bem apessoada (*), Fesim homens como mulheres. Sfo homens grossos ¢ vigo- sos ¢ comem bem, honram muito a scita de Mafamede; s30 mui luxuriosos, ¢, tanto, que entre ‘si mesmo tém mancebia de abomindvel pecado; so também misicos e tém muitas maneiras de instrumentos. Os homens ardbios sio mais pre- tose bacos. Ha nesta cidade muitos € grossos mercadores, muitas ¢ grandes naus. Tem muito bom porto onde se tra- tam muitas sortes de mercadorias, que de muitas partes aqui vam, onde as trocam para muitas partes da India, ‘Trazem (0) Sal-gema. (2) De boa aparéncia. 54 aqui todas as sortes de especiarias de muitas maneiras, a sa- ber: pimenta, cravo, gengibre, cardamomo ("), aguila (), sin- dalo, brasil, miramulanos (*), tamarinhos(‘), agafrao, Indio, cera, ferro, agiicar, muito arroz € cocos, afora muita soma de pedraria, porcelanas ¢ beijoim; em as quais todas se ganha muito dinheiro. Também tem muita soma de panos de Cam- baia, de Chaul ¢ Dabul, ¢ de Bengala The trazem muitos sinabasos, que sio sortes de panos muitc delgados de algo~ dio, que entre eles valem muito, ¢ sio mui estimados para toucas © camisas, para que Ihe servem. Também da cidade de Adem trazem a Ormuz muito cobre, azougue, vermelhac, ¢ muita Agua-rosada, muitos panos de brocados, tafetés ¢ chamalotes comuns. Assim mesmo vem aqui das terras do xeque Ismael, muita quantidade de seda € almiscar muito fing, © muito ruibarbo de Babilénia; e, de Barem e¢ Julfar, very muito aljéfar, pérolas grandes, e da cidade da Ardbia vey muita soma de cavalos; e, daqui, os levam para a India, onde Jevaram cada ano mil, e, as vezes, dois mil cavalos, € vale cada um na India, mau comObom, trezentos € quatrocentos cruzados, mais ou menos segundo a falta que hé, € as naus; em que estes cavalos vao, levam também muitas tamaras, pas? sas, sal ¢ enxofre ¢ alj6far grosso, com que os mouros d¢ Narsinga folgam muito. ‘Andam estes mouros de Ormuz mui bem vestidos de umas camisas mui alvas de algodio, delgadas e compridas; seus sirées de pano de algodao, trazem também muitas roupas ‘de sedas mui ricas, outras de chamalotes ¢ grd, cingidos com (2) Ou cardamo, planta que produz wm leo volati piireos mordicantes, mas agradiveis ao paladar, (2) 0 alburno do Tenho chamado aloés. (8) Mirabolanos, fruto medicinal. (4) Tamarindos, arvore de vagem com carogos fe gros pur que se comem e usam na medicina. qnuito bons almejares ('), em que trazem suas adagas mul bem guarnecidas de ouro ¢ prata, segundo as qualidades de suas pessoas. Trazem também uns broquels grandes, redondos, a. ... turques ses, pintados de mui boas tintas, ¢ cordas de seda, que fazem mui gram passada; s4o 0s arcos de pau envernizados e de cor no de bifaro (*). E eles sio mui bons frechiiros ¢ suas frechas mai bem obradas ¢ subtis; outros trazem nas méos macha? Yinhas e magas de ferro de mvitas feig6es, muito bem lavra: das ¢ de mui formosa tauxia. Sio homens mui ricos ¢ luzidos ¢ galantes. Tratam-se muito bem, assim no vestido como no comer, que comem mui bem adubado, ¢ em abastanga de, tudo, silicet, canes, pio de trigo, muito bom arroz ¢ muitas conservas € frutas verdes, magis, roms, péssegos, muitos ak pacorques (*), Figos, améndoas, was, meldes € rabios © mui- tas saladas, ¢ todas outras cousas que bi em Espanha; tama: ras de muitas mancitas ¢ outras diversas frutas que mio hé a 4.4 Tho defende sua lei; as Aguas que bebem sao um pouco alme+ cegadas (*) postas em Frio, para o qual fazem ¢ ‘buscam muitas gmanciras para as esfriarem ¢ terem sempre em frio. Estes fidalgos ¢ mercadores honrados trazem sempre pot ‘onde quer que andam, por caminhos, pragas, ras, um pager que The traz por estado um barril de gua ow algarafa guamnécida de prata, 0 qual eles hao por estado ¢ honra ¢ para servigo da ua vigosa vida. Bstes si0 malquistos das mulheres, pordue 08 mais deles trazem sempre consigo escravos mogos capados, com que dormem. Estes mouros honrades tém todos na terra ©) Almei (2) Batalo. () Ou albercoque, damasco. (4) Da cor da almécega, amarcladas ves: cintos. 56 firme quintans, onde se vao muitas vezes desenfadar, princi- palmente no verio. Esta cidade de Ormuz, posto que € mui rica ¢ abastada de todos mantimentos & mui cara porque tudo The vem de fora, scilicet, de Pérsia e Ardbia, € doutras partes donde tudo The vem mui prestes, sem haver na ilha cousa de que se eles possam sair, sOmente sal; ¢, até agua Ihe vem de fora da terra firme, ¢ doutras ilhas derredor, para eles beberem, em uns barcos pequenos que chamam terradas, como atrés disse; ¢ de todo o mantimento ¢ lenha que Ihe trazem, assim de fora; stio de continuo as pracas cheias cm muita abundancia, onde tudo se vende a peso com mui grande regimento ¢ taxa, fe qualquer pessoa que falsa peso ou sai da taxa ¢ ordem que Ihe dio, € mui asperamente castigado. Vendem as cares cozidas ¢ assadas a peso, ¢, assim, todos os outros comercs feitos, ¢ tudo isto tio bem concertado ¢ limpo, que muitas pessoas no mandam fazer de comer em suas casas ¢ das pracas comem. ' im esta cidade de Ormuz esta sempre o tei dela em uns mui grandes pagos, que nela tem junto com o mar em tum cabo da cidade, em os quais sempre esta aposentado € tem todo sew tcsouro; 0 qual rei em todos seus lugares de Pérsia ¢ Ardbia ¢ ilhas que atrés apontei, que sio de seu se- nhorio, tem governadores ¢ arrecadadores das suas rendas; ¢. na propria cidade, tem outro govemnador que toda a tem € iantém a dircito, que é superior de todos os outros:do reino cde todo ele. O qual governador tem o rei preso de sua mio nos ditos pagos, cm wma fortaleza deles, sem governar, nem entender em nenhuma cousa do reino, somente em ser muito bem servido e guardado; e é de maneira que se 0 rei quere entender em governanga ou no tesouro, ou quere ser isento, tomam-no ¢ quebram-lhe os ollos, ¢ metem-no dentro om uma casa com a mulher ¢ filhos, se os tem, e, ali, Ihe dio de comer eo mantém mui atribuladamente, ¢ tomam outro sv mogo mais pequeno da linhagem dos reis, silicet, filho ow inmao ou sobrinho mais chegado, metem-no dentro na for- taleza e pagos, ¢, ali o tém por scu rei, sbmente para em scu nome mandarem e governarem o reino mui pacificamente; € 65 outros herdeiros do reino que ficam, assim como crescem ¢ sio em idade para governarem, ¢ ao governador The parece que quere algum entender o reino, tomam-no e quebramlhe os olhos © metem-no na dita casa, de mancira que sempre tem uma casa com dez ou doze reis cegos; ¢ 0 que reina nao vive nunca livre do medo de vir a este estado, ¢, enquanto reina, tem sempre gente de armas ¢ cavaleiros que o guardam ¢ servem, aos quais ele paga muito bom soldo, ¢ andam sem- pre na corte com suas armas, ¢, alguns, manda estar fron+ tciros dos lugares da terra firme, quando tem necessidade disso. : Nesta cidade se faz moda de ouro e prata, scilicet, uma moeda de muito bom ouro, redonda como as nossas, com Tetras mouriscas de ambas as bandas, que chamam xerafins; vale trezentos réis, pouco mais ou menos; a mais dela ¢ feita tm meios que vale cada uma cento € cinquenta réis; a de prata é uma moeda comprida 4 mancira de fava, também Pim letras mouriscas de ambas as bandas, que vale trés vine tens, pouco mais ou menos, a que eles chamam tangas, prata da qual é muito fina, ¢ de toda esta mocda, assim prata, como ouro, hé tanta em abastanga em Ormuz, que Guantas naus vém a cidade com mercadorias, depois de ven’ ‘lerem e comprarem 05 cavalos e sinais que hao-de levar, todo 9 mais que Ihe fica, levam nesta moeda, porque na India corre muito ¢ tem muito ‘boa valia. "A este reino de Ormuz veio ter uma armada del-rei nosso senhor, de que era capitéo-mor Afonso de Albuquerque 0 aqal se quiscra por com eles em paz, 0 que cles ndo quiseram, 0 que vendo Afonso de Albuquerque Ibe comegou @ fazer guerra pelo reino, principalmente pelos portos do mar, onde 58 The fez muito dano. Andando assim veio ter a propria cidade de Ormuz com toda a armada, onde no porto dela houve brava peleja com uma frota de mui grandes naus, cheias de mui formosa gente mui bem armada, a qual o dito Afonso de Albuquerque desbaratou ¢ cativou muita, metendo muitas naus no fundo e tomando ¢ gueimando outras muitas que tatavam ancoradas junto com os muros da mesma cidade. Vendo 0 rei ¢ governador dela tamanha destruiggo em suas gontes ¢ naus, sem Ihe poderem valer, cometeram paz, 2 qual 6 capitao.mor aceitou com condigo que Ihe deixassem fazer uma fortaleza em um cabo da cidade, 0 que a eles Ihe aprou- ye. A qual comegando-se a fazer, tornaram-sc 0S mouros a arrepender, nfo querendo que se fizesse mais, 0 que visto pelo capitio-mor, Ihe tornou a fazer tanto dano, matandothe tanta gente que os fez tributirios a cl-rei nosso senhor em quinze mil xerafins de owro cada ano, 0s quais The pagam sempre Dali a certos anos este rei e governadores de Ormuz, mandaram um embaixador a el-tei nosso senhor com um mui grande servigo, ¢, com a resposta que sua alteza Thes man- dou, veio Afonso de Albuquerque em uma ‘boa armada outta vez a Ormuz, onde o receberam em muita paz ¢ The outor garam que acabasse a fortaleza que dantes tinha comegado; 9 qual a mandow logo comegar, ¢ que se fizesse mui grande ¢ forte, como se logo comegou. E, estando, el-rei que ¢ um mogo de pouca idade, vendo-se em poder do governador tio acanhado, qué nao usava fazer de si nada, teve maneira, com gue secretamente 0 fez, a saber ao capitfo-mor sua pouca Iiberdade, ¢ da maneira que aquele governador o tinha quase preso, tornando a governanga do reino forgosamente, tor hando-o 20 outro que a tinha, e que the parecia que se car’ teava com 0 xeque Ismael, para Ihe entregar 0 reino. Sabendo 0 capitio-mor isto teve-o em grande segredo, determinou de se ver com el-tci, concertando logo com ele que as vistas 59 fossem em umas casas grandes que estao junto com o mar. ‘Achegado o dia assinado, entrou o capitio-mor nas ditas ca- sas com dez ou doze capitics, deixando de fora sua gente em ordenanga, ¢ tudo como devia. Eltei ¢ 0 governador vieram com grande soma de gente, ¢, dentro nas casas onde el-rei entrou, nao entrou mais nin- guém, e logo as portas foram fechadas, c, como foram den- tro, o capitéo-mor mandou matar a punhaladas ao governador, ‘0 que vendo 0 mogo rei se comegou de agastar, ¢ Afonso de Albuquerque Ihe disse que no houvesse medo, que aquilo que se fazia, se fazia por cle ser rei isento como sio os outros, Os que estavam fora ouvindo 0 rumor comegaram-se a alvo- racar, € alguns irmaos do governador ¢ outros muitos criados ¢ parentes que faziam um grande corpo de gente, estavam todos armados. Foi entio necessirio 20 capitio-mor tomar el-tei pela mao, e subirem-se em um terrado, ambos armados, para el-rei dali Ihes falar, e ver se os podia pacificar, 0 que ele nao pode acabar () com eles, seno que Thes dessem seu irmao ¢ senhor; ¢ dizendo isto se foram meter dentro nos pacos ¢ fortaleza delrei, dizendo também que fariam outro rei, O que vendo o capitao-mor quisera-lhe pér as mos ¢ estiveram, assim, um grande pedago do dia, ¢ el-rei os quisera langar fora por langas, ¢ eles no quiseram sair da dita for- taleza, ¢, depois, vendo que todavia 0 capitéo-mor determi- nava de dar santiago (*) neles, cometeram de The dar a for- taleza, com condigio que se fossem logo fora da cidade ¢ itha com mulher e filhos ¢ fazendas, desterrados todos aque- les que fossem parentes ou irmaos do governador morto, 0 que logo foi feito. E 0 capitéo-mor levou logo dali caminho dos pacos ¢ fortaleza com grande triunfo e pompa, acompa- (0) Decidir, chneluir, (2) Sinal para comegar 0 ataque; do nome do apéstolo que er invocado na Peninsula Thérica. na Tula contra os mouros. 60 ica de muita gente nessa ¢ sua, ¢ 0 entregou a outro governador que dantes cra, com scus pagos ¢ fortaleza € cidade mui Tivremente, dizendo ao governador que o servisse com muita honra, ¢ 0 deixasse governar scu reino a seu pra- zer, somente Ihe desse consclho como fazem aos outros reis mouros. Assim que, desta mancira 0 tornow 0 capitio-mor sua liberdade, ¢ fez capitio da nossa fortaleza a um Pero de Albuquerque, com muitos portugueses © navios para favore- cerem elrci, 0 qual nfo fazia nada sem conselho do dito capitio da fortalcza, estando a obediéncia del-rei nosso se- nhor, com todo o sen reino ¢ senhorio. Vendo 0 capitio- -mor tudo isto, assim em tanto sossgo e debaixo de scu mando, logo publicamente com pregées mandou degradar os somiticos (*) fora da cidade ¢ ilha, com uma frecha metida pelas ventas a cada um, ¢ foram degradados com tal condi- G40 que se ali mais tornassem, fossem queimados, de que el- -rei_ se mostrou contente. E assim mandou tomar os reis cegos que na dita cidade estavam, que scriam treze ou catorze, ¢ os mandou meter dentro em uma grande nau, e os fez levar caminho da India c por na cidade de Goa, onde a custa de suas rendas Ihe manda dar de comer, para ali acabarem seus dias, e nfo fazerem alguma torvago no reino € 0 dei- xarem nele viver em paz ¢ assossego REINO DE DIUL- Indo mais ao diante deixando Ormuz e suas terras, en- tram logo no reino de Diul, que est4 entre a terra de Arabia ¢ Pérsia, que é um reino separado, e reina nela um rei mouro, ea mais gente sio mouros ¢ alguns gentios, que séo deles (2) Sodomitas; 0s que tinham os costumes anteriormente referidos, blica Sodoma, costumes existentes na 61 muito sujeitos, 0 qual rei € muito gram senhor de muitas terras ¢ gente pelo sertio dentro, de muitos cavalos, porém tem mui poucos portos de mar. Confina esta terra de uma banda com o gram reino de Cambaia ¢ da outra com a terra de Pérsia, ¢ o rei dela obedece ao xeque Ismael, sio mouros agos e brancos; tém lingua sobre si, também falam_ pérsio ¢ ardbio. Hd nesta terra trigo ¢ cevada, carnes em muita abastanga ; & tera cha, de campos ¢ de mui pouca madcira. Navegam imui pouco, porém tém mui grandes praias, em que fazem mui formosas pescarias, ¢ tomam mui grandes pescados, os quais secam para se gastarem na terra do sertio, ¢ tam! se levam para outros muitos reinos. Aqui dao de comer aos avalos peixe seco. Algumas naus que da {India aqui vém ter, trazem muito arroz, agicar ¢ alguma especiaria ¢ madeira tabuada e umas canas que hd na India, que sio tio grossas como uma perna de um homem. Em tudo isto se ganha snuito dinheiro. Levam em retorno muito algodao, cavalos © panos. Por este reino sai ao mar um grande rio que vem pelo meio da Pérsia, que dizem os mouros, ainda que 0 nao saibam de certo, que vem do rio Eufrates, de longo do qual vio muitos lugares de mouros mui ricos. f terra mui vigosa ¢ frutuosa, de muitos mantimentos. REINO DE GUZARATE Indo assim adiante, pasando este reino de Diul, en- trando logo na primeira India, esté o reino do Guzarate, do qual reino e senhorio parece que cl-rei Dario foi rei, por que ainda agora os indios tém dele ¢ de Alexandre Magno muitas histérias. E: este reino do Guzarate muito grande, tem muitas vi- Jas ¢ cidades assim pelo sertio como ao longe do mar; tem 62 muitos portos de mui grande navegagio, povoados de mou- ros € gentios, que sio grossos mercadores ¢ tratam aqui cm muita soma de mercadorias. Dantes cra 0 reino de gentios ¢ 0s mouros Iho tomaram por guerra, assim que o rei dele agora é mouro, mas ainda ai hé muitos gentios grossos merca- dores € tratam entre cles. Antes que cste rcino do Guzarate fosse de mouros, havia nele uns gentios a que os mouros cha- mavam resbutos, que naquele tempo cram os cavalciros ¢ de- fensores da terra e faziam a guerra onde cra necessirio. Estes matam ¢ comem carnes ¢ pescados e todas as outras viandas e ainda agora h4 muitos que vivern nas montanhas, onde tém mui grandes lugares, ¢ ndo obedecem ao rei de Cambaia, antes cada dia The fazem muita guerta, 0 qual com quanto poder tem nao é poderoso de os destruir, nem pode, porque so mui bons cavaleiros ¢ sio grandes frecheiros ¢ tém outras muitas maneiras de armas com que sc mui bem defendem dos mouros, com que continuadamente tém guerra, sem te- rem rei nem senhor que os governe, HA neste reino outra sorte de gentios que chamam brd- manes € sio mui grandes mercadores c tratantes, vivem entre os mouros, com que fazem todo seu trato, estes nao comem caine, nem pescado, nem nenhuma cousa que morra, nem matam, nem menos querem ver matar, por assim Tho defen- der sua idolatria, ¢ guardam isto em tamanho extremo que & cousa espantosa, porque muitas vezes, acontece levarem-The os mouros bichos ¢ passarinhos vivos, ¢ fazerem que os que- rem matar perante cles ¢ estes brimanes Thos compram e res- gatam, dando-Ihe por cles muito mais do que valem, por The salvarem as vidas ¢ solté-los. Se também el-rci ou 0 governa- dor da terra, tem algum homem, por culpas que cometesse, julgado 3 morte, ajuntam-se eles ¢ compram-no a justica, se Tho quere vender, para que nao morta. E também alguns mouros pedintes, quando querem haver esmola destes, to- mam mui grandes pedras e dio com clas em cima dos hom- 63 bros ¢ barrigas, como se querem matar perante eles, € porque © nio fagam, The dio muitas esmolas, e que se vao em paz Outros trazem facas ¢ dio-se com elas cutiladas pelos bragos © pernas; ¢, para s¢ no matarem Thes dio muitas esmolas§ outros Ihe vém as portas a quererthe degolar ratos e cobras, tos quis eles do muito dinheito por 0 nao fazerem ; ¢, deste maneira sio dos mouros mui apreciados. Listes brimanes, se vcham wo caminho algum golpe (*) de formigas, arredam-se buscando por onde passem sem as pisarem. E, em suas casas de dia ceiam; de dia nem de noite acendem candeia, por causa de alguns mosquitos nfo irem morrer no lume da candeia tse, todavia, tem grande necessidade de acenderem de noite, tam ama alanterna de papel ou de pano agomado, para coise nenhuma viva poder ir morrer dentro no fogo. Se estes criam Tnuitos piolhos, nfo os matam, ¢, quando os muito aqueixam jnandam chamar uns homens, que entre eles vivem, que tam- bém sio gentios, ¢ eles os hao por de santa vida, ¢ sho como ermitacs, vivendo em muito abstinéncia por reveréncia dos see deuses, estes os catam, € quantos piolhos The tiram poci-nos em suas eabegas, ¢ os criam com suas cares, em {ue dizem fazerem mui grande servigo a seu idole; € assim guardam, uns e outros, com muita temperanga a lei de nao matarem, e, por outra parte, sio grandissimos onzeneiros ¢ falsificadores de pesos ¢ medidas ¢ doutras muitas merca- dorias ¢ mocdas, ¢ mui grandes mentirosos. Estes gentios séo homens bagos, mui ‘bem apessoados, gentis homens ¢ galantes em sus trajos, mui delicados ¢ tem: perados em set comer; seus manjares sio Teites, manteiBay dgicar e arroz ¢ muitas conservas de diversas manciras; se _. i... ._ ise Campo para seus manjares, onde quer que vivem tem muitas hhortas ¢ pomares, € muitos tangues de gua, em que sel ©) Quantidade 64 vam cada dia duas vezcs, assim homens como mulheres. ¢ dizem que como se acabam de lavar, se hao por salvos de quantos pecados tém feito até aquela hora. Criam estes bramanes muito comprido cabelo, de ma- neira que 0 criam as mulheres em nossas partes, ¢ trazcm-no apanbado sobre a cabeca, feita dele uma trunfa, ¢, em cima uma touca, para o trazerem sempre apanhado, ¢, por entre co cabelo, metidas flores € outras coisas cheirosas. Costumam muito untarem-se com sindalo branco, misturado com aga- frao € outros cheitos. S40 homens mui namorados, andam yestidos de camisas compridas de algodéo ¢ de seda, calgam sapatos de pontilha de cordovao mui bem lavrados; deles tra- zem umas roupetas curtas de pano de seca ou brocadilho, ¢ nao trazem nenhumas armas, somente umas facas mui pe- quenas guamecidas de ouro ¢ prata, isto por duas raz0es, a primeira porque eles sio homens gue se servem pouco de armas, ¢ a segunda porque os mouros thas defendem; eles tisam orelheiras (?) de ouro com muita ped:aria ¢ anéis nos de- dos € cinta de ouro sobre os panos. As muthercs destes gentios so mui formosas, delicadas ¢ de mui bons corpos; sio bagas quase brancas; seus trajos sio de seda, assim compridos como os maridos, trazem uns sainhos de pano de seda de mangas estreitas, abertos pelas espiduas, € outros panos grandes que chamam chandes, que elas Iangam por cima de si como man- tos, quando vio fora; na cabega ndo poem nada, sendo seu cabelo muito bein apanhado sobre cla; andam sempre des- calgas, trazem nas pernas manilhas de onto ¢ de prata mui grossas, ¢ nos dedos, dos pés € maos, muitos anéis, € as ore: Thas furadas com grandes buracos por onde caberé um Ovo, em que trazem mui grossas argolas de ouro ou prata; slo mulheres muito retraidas ¢ encerradas, saiem mui poucas 0) Brineoe, veges fora de stias casas, ¢, quando saicm & muito cobertas com aqueles panos grandes sobre a cabega, assim como as mulheres em nossas partes se cobrem com seus mantos. ‘Aqui ba outra lei de gentios que chamam bramenes, que, entre cles, so sacerdotes ¢ pessoas que administram ¢ gover nam suas casas de oragdes idolatrias, que eles tém mui grandes € com muitas rendas, ¢, também hé muitas que s¢ mantém de esmolas, ein as quais tém muita soma de idolos de pau, outras de pedra e cobre; nas quais casas ou mosteiros The fazem muita ceriménia, festejando-os com muitos tan- geres ¢ cantares, com muitas candeias € alampadas de azcite © com capanas(!) 2 nossa maneira. Estes brimanes € gentios tém muito por scmelbas a Santa Trindade, honram muito 0 conto de trés em trino, ¢ fazem sempre sua orago a Deus, 0 qual confessam ¢ adoram ser Deus verdadciro, criador ¢ fa- gedor de todas as coisas, que é trés e um s6 Deus, e que ha muitos deuses outros, governadores por cles, em que eles também créem, Estes bramenes ¢ gentios onde quer que se acham, entram em as nossas igrejas ¢ fazem oragdo ¢ adoragio as nossas imagens, perguntando sempre por Santa Maria, ‘como homens que disso tém algum conhecimento ou noticia, ¢, como A nossa maneira, honram a Igreja, dizendo que entre les e nds hd muito pouca diferenga. Estes bramenes andam descobertos da cinta para cima, para baixo se cobrem com alguns panos de algodio; trazem a tiracolo um fio de trés Iinhas, que € 0 sinal por onde se conhecem serem bramenes. Sdo homens que também nao comem cousa que sinta morte, vem matam cousa nenhuma; tém por grande ceriménia 0 lavar e dizem que com isso se salvam. Estes bramencs, ¢ assim, os bancanes, casam 3 nossa maneira com uma sé mu- Ther, porém uma vez, nfo mais; em suas bodas fazem grandes 66 festas que duram muitos dias, onde se ajunta muita gente, mui bem vestida c asscada, festejando-os mui altamente. Ca- sam, pela maior parte, assim homens como mulheres, muito mogos, ¢ 20 dia que os hio-de reccber, esto os noivos ambos fassentados em um estrado, muito cobertos de ouro ¢ pedra- rias ¢ j6ias, diante de si tém uma mesquita com um idolo cobeito de flores, com muitas candeias de azeite accsas de roda dele; ali hio-de estar ambos com os olhos naquele ‘dolo, de pela manha até a tarde sem comer, nem beber, nem falar ambos, nem a ninguém; neste meio tempo sto mui festejados das gentes com seus tangeres ¢ cantares, tirando muitas bom- pardas, fazendo muitos foguetes para folgarem. E como estes nao casam sendo uma vez, sc 0 marido morre a mulher nunca mais casa por moga que seja, isso mesmo o marido; seus filhos ‘io seus proprios herdciros ¢ na dignidade também, porque ‘0s bramenes hao-de ser filhos de bramenes. Entre estes ha outros somenos que servem de mensagei- ros e vio seguros por todas as partes sem ninguém Ihe fazer nojo, ainda que haja guetta ov ladrdes, a que chamam pateles. REINO DE CAMBAIA DEL-REI DE GUZARATE © préprio'rei de Guzarate € mui grande senhor, assim de gente, como de muitas rendas ¢ terra muito rica, E mouro ¢ assim sua gente de armas. Traz grande corte com grossa cavalaria; & senhor de muitos cavalos e clefantes, os quais vém de Cecilio ¢ do Malabar a vender ao seu reino, que dos avalos ha grande abastanga em sua terra, De maneira que com os clefantes © cavalos faz grande guerra aos gentios do reino do Guzarate, que chamam resbutos, que ainda The nfo obedecem, ¢ aos outros reis com que as vezes tém guerra; ¢ em cima dos elefantes fazem um castelo de madeira, em que 67 cabem trés ou quatro homens, que leva arcos, frechas, ¢s- pingacdas ¢ outras armas, donde pelejam com seus inimigos, ¢ so os ditos clefantes to bem ensinados a isto que, como entram na peleja, com os dentes, ferem os cavalos ¢ gente, tao tijo que muito asinha (*) desbaratam qualquer batalha (*), e, como os fercm, logo fogem ¢ desbaratam uns aos outros ¢ aos da sua banda. Destes tem el-rei de Cambaia, continuada- mente, quatrocentos, quinhentos clefantes mui grandes ¢ for- mosos, que compra a mil e quinhentos cruzados cada um, pouco mais ou menos, em seus portos de mar, onde Thos trazem a vender; de maneira que nestes elefantes e cavalos pelejam mui bem, € so eles mui ligeiros cavalgadores; caval- gam a bastarda ¢ trazem uns escudos redondos muito fortes, guamecidos de seda, cada um traz duas espadas, wma adarga um arco turquesco com mui boas frechas ¢ outros trazem umas magas de aceiro(*), € muitos deles cotas de malha, outros laudéis (*) embastados de algodio, seus cavalos acober- tados com suas testeiras de ago, c, assim, pelejam bem. Sio tio ligeiros € manhosos na sela que, a cavalo jogam a choca, 6 quial jogo eles tem entre sina conta em que nds Femos 0 das canas. Sao os mouros deste rein brancos ¢ a mor parte deles estrangeiros de muitas partes, scilicet, turcos, mamalucos (°), ardbios, pérsios ¢ coracones, targindes, outros do grande reino de Deli, ¢ outros da mesma terra, ¢ juntam-se aqui tantas aus deles, porque a terra é mui rica ¢ abastada ¢ tém bom Joldo delrci, ¢ muilo bem pago. Andam mui bem vestidos, de ricos panos de ouro, seda ¢ algodio ¢ de chamalotes; tra ©) Depressa. (2) Trogo de tropas. aras de couro: (©) Mamélucos. 68 zem todos suas toucas nas cabegas; suas toucas sio compri- das, como camisas mouriscas, ceroulas com borzeguins até a0 joelho, de mui grosso cordovio, lavrados de mui subtis lagos, de dentro ¢ de fora da pontilha, seus tragados muito bem guarnecidos de ouro ¢ prata, segundo as pessoas que os tra- zem, 0s quais The trazem nas maos pagens seus. ‘Tém mui formosas ¢ alves mulheres, mui bem ataviadas; podem casar com qnantas poderem manter por honrarem a seita de Mafa- inede; de mancira que muitos tém quatro ¢ cinco, todas rece- bidas ¢ mantedidas (*). Estes mouros de Cambaia falam muitas Iinguas, ardbia, turco, guzarate. Comem muito bom pio de trigo, arroz € mui boas camies de todas as sortes; a fora, porque 0 defende a lei. Sho homens mui vigosos ¢ dados 4 boa vida, grandes gasta- dores; andam sempre com as cabegas rapadas, ¢ as mulheres tém mui bom cabclo; quando as tiram fora de suas casas, do metidas cm umas carrctas de cavalos, todas cobertas, que ninguém pode ver quem vai dentro, porque sio muito ciosos. Podem-se descasar cada vez que quiserem, pagando & mulher certos dinheiros que Ihe prometem quando com clas casam, arrependendo-se em algum tempo; © a prépria liberdade tem a mulher. ‘A este rei de Cambaia chamam sokdio Mordafé, hé mui- to tempo que é rei, a seu pai chamavam soldio Maamude, 0 qual de menino foi ctiado em pegonha ¢ nutrido nela. Seu pai o quis assim’criar por o no poderem matar com pegonha, porque costumam os reis mouros mandarem-se matar com ela uns aos outros; ¢ comecou-a a comer em tio pequena quan- tidade, que The nao podia fazer mal; c, com isto, ficou tao apegonhentado que onde quer que uma mosca Ihe tocava, como the chegasse a carne logo morria ¢ inchava; quantas (©) Mantidas. 6 mulheres com cle dormiammorriam, ¢ para isto tinha um anel de tal virtude que, aquela que 0 metia na boca, antes que se Tangasse com cla, nao The podia a pegonha empecer. A qual ele nao podia jf deixar de comer, porque se o fizesse tera logo morto, como vemos por experiéncia no anfido que a mor parte dos mouros e indios comem, que se 0 deixassemn de comet morreriam, ¢ se 0 comessem 0 que nunca o come- ram, morreriam também, de maneira que 0 comegam a comer em tao pequena quantidade, que The no pode fazer mal: por serem criados nele, ¢, em sta natureza, vio crescendo. O qual anfito & frie no quarto grau, ¢, por parte fria, mata; ‘os mouros o comem a fim de luxtiria ¢ as mulheres na India © tomam para se com ele matarem quando caiem em algum eto ou caso de desonta ou desesperacio, ¢ bebendo-o dclido fem titi pouco de éleo, moirem dormindo sem sentirem a morte. A CIDADE DE CHAMPANEL ‘Tem este proprio rei do Guzarate por seu reino grandes e boas cidades de que daqui por diante comegarei a tratar, principalmente a cidade de Champanel, onde ele sempre est com toda a sua corte, a qual esté metida pelo sertio:em uma terra de mui bons campos, que dao mui grossos mantimentos, scilicet, muito trigo, cevada, milho, arroz, gros; chfcharos, Ientilhas € outros muitos legumes. Criam-se neles muitas va- cas, carnciros ¢ cabras, donde os da tetra hao boa criagao. Aqui ha também muitas frutas, ¢ de tudo & a cidade muito farta € abastada. Hi a terra de grandes montanhas ao redor, onde se criam muitos cervos € outras alimérias; aqui hd também muita caga de aves ¢ tém eles para isso muitos faledes, gavides, galgos, 70 sabujos ¢ libréos; também para o monte tém umas ongas mansas que cagam toda a caga. Elxci é mui curioso de alimé- rias, tem muitas de desvairadas (") feigdes, que ele para scu desenfadamento manda buscar ¢ criar por todo 0 mundo, Ele mandou uma ganda (?) a el-tei nosso senhor, porque Ihe di seram que folgaria com clay A CIDADE DE ANDANA . Desta cidade de Champanel contra o sertio, estd outra muito maior que ela, chamada Andana, na qual antigamente soiam sempre os reis deste reino ter sua corte, porque é mui rica. So ambas cercadas de mui bons miuros, com mui boas casas de pedra e cal, telhados 4 nossa maneira, tem grandes patios, onde hé tanques e pogos de mui boas fuss, Suas azémolas s4o camelos. : _ Tem iui formosas ribeiras de égua doce, onde se criam muitos pescadores. Hé4 aqui também muitas hortas e pomares. Nesta cidade ¢ em outras muitas que v4o pelo sertio, tem el-tei de Cambaia sets governadores e atrecadadores de seus direitos, os quais se em scus oficios fazem o que nfo devent, sabendo-o cl-rei, manda-os chamar ¢ vindos perante ‘ele, nfo the dando boa razo, manda-Ihe dar uma beberagem apeconlicntada, que, em 4 bebendo, morrem logo, e, desta mancira, os castiga, e é mui temido de todos. ‘Afora estas cidades e outras muitas que, como digo, tem no sertio as que tem pela costa ao longo do mar, so as seguintes. (©) Diversae. (2) Rinoceronte ue PATENEXEL aindo do reino de Diul, caminho da India, esta uma grande cidade que chamam Patenexei de mui. bom porto de mar. E rica de mui grande trato; aqui se fazem muitos panos pintados de seda ¢ de muitos lavores, que se gastam por toda a india e Malaca e Bengala; ¢, assim, muitos outros panos de algodao. sA este porto ver muitos panos, algodao, que se ganha muito dinheiroy suas viage sio de quatro meses. mm muitas naus da Indiaycarregadas de cavalos ¢ trigo © outras coisasi em wns com suas demoras CURIATE, MANGALOR go da costa, estéo outros ‘outro Mangalor.1Sa0 de yao muitas naus do muitos panos de Passando este lugar, indo ao lony idois lugaress um chamado Curiate, mui bom porto ¢ de muito trato,| onde Malabar ¢ muitos cavalos, por trigo, atroz ¢ algodio, ¢ por outras mercadorias que na India valem. Os nalabares he trazem muitos cocos, esmeril, cera, cardomomo e outras sortes de muitas especiarias, no qual trato ¢ viagem, em mui pouco tempo, se faz muito proveito. DIU Saindo assim destes lugares de Mangalor ¢ Curiate, de ongo da costa, esté uma ponta que a terra Tanga ao mar, em que esta um grande lugar a que os malabares chamam De- 72 vixa ¢ os mouros da: mesma terra The chamam Diu, Esté em uma ilha pequena, muito junto com a terra firme, ¢ tem muito bom porto, de grande escala de muitas naus ¢ mui grande trato e navegagdo que vem do Malabar e Baticala ¢ de Goa ¢ Chaul e Dabul. Daqui navegam também para Meca, para Adem, para Zeila, Barbaré, Magadaxo, para Melinde, Brava, Mombaca, Ormuz ¢ para todo seu reino. ‘A mercadoria que os malabares aqui trazem so muitos cocos, areca (*), jagra(®), esmeril (*), cera, ferro, agticar de Maticala, pimenta, gengibre, cravo, cancla, massa, noz mos- cada, sindalo, brasil, pimenta longa, afora muitas sedas ¢ ‘outras mercadorias que de Malaca ¢ China The vém. De Chaul ¢ Dabul Ihe trazem muita soma de beirames ¢ beatilhas ¢ daqui tornam a evar caminho da Ardbia, Pérsia; daqui levam os mercadores que a trazem em retorno, muitos panos de seda ¢ algodiio da terra e muitos cavalos, trigo, get- gelim, dleo dele, algodio, anfido, assim do que vem de ‘Adem, como do que fazem em Cambsia, nio é tio fino como ele; levam também muitos chamalotes comuns de seda, que neste reino de Cambaia se fazem ¢ sio muito baratos; aqui trazem também da {ndia muitas alcatifas grossas, tafetas © panos de gr, outros de cores, muita especiaria ¢ outras coisas, as quais coisas os da terra tornam a levar a Meca, ‘Adem, Ormnz e outras partes da Aribia, Pérsia. De maneira que este lugar € 0 de mor trato que agora se acha em todas estas partes; rende tanta soma de dinheiro que € coisa espantosa, por causa das grossas ¢ ricas merca- dorias que nele se carregam © descarrcgam, porque sb de (2) Fruto da érvore do mesmo nome, mistura-se com o bétele € mascase, (2) Ou jégara, agicar feito de cocos. () Pedra dura que desfeita em p6 serve para pulir. 73 Meca e Adem Ihe trazem tanto coral, cobre, azougue, veT~ melhia, chumbo, pedra-ume, tuvia, Aguas-rosadas, agafréo, ouro, prata amoedada ¢ por amoedar, que € sem conto. ‘Aqui tem el-rei le Cambaia um governador que cha- imam Malinquans, que ¢ um homem velho mui bom cava- Jeiro, sisudo, industrioso, de gram saber, Vive muito con- certadamente, que em todas as coisas mostra ser de mui hé- bil engenho. ‘Tem mui grossa artilharia que cada dia faz nova. Tem muitos navios de remos mui concertados ¢ apontados (), soma dcles mui pequenos ligeiros em extremo, a que chamam atalaias, Tem feito um fortissimo baluarte atravessado no porto, povoado de mui grossa artilharia ¢ muitos bombar- Geitos que, continuadamente, nele esto com muitos homens de armas bem concertados ¢ armados, a que paga mui bom soldo, Vive sempre avisado, receia muito 0 poder del-ret nosso senhor; faz grande gasalho(*) aos nossos navios © gentes que ao seu porto vio ter. 1 a gente da terra mui bem castigada (*), governada com muita justiga, muito dircito as partes, a quem em sua terra favorece muito, dando-lhe gran- des didivas ¢ mercés. ‘A este porto de Diu veio ter uma armada do gram soldio com muita e formosa gente, mui bem armada € con- certada © muitas naus de givea € galés de remo, de que era capitéo-mor wm mouro chamado Mirocem, para neste porto e reino se haverem de reformar com ajuda del-rei de Cam- baia ¢ do proprio governador, e entiio daqui irem a India, A cidade de Calecut, onde também The hayiam de dar ajuda para pelejarem com as nossas gentes ¢ as langarem fora do India. (@) Aparelhados. (2) Bom acolhimento. 4 Estando aqui muito tempo fazendo-se prestes, sabendo D. Francisco de Almeida, que entdo cra vice-rei, sua estada ai, fez prestes sua armada, e, vindo por capitio-mor dela, os mouros o saitam a receber ao mar ¢ na boca da barra pele- jaram ambas as armadas, tao rijo quc, assim de wma banda como da outta, houve gente ferida ¢ morta, ¢ alfim (*) 0s per- ros foram vencidos, sendo muitos mortos ¢ ficando boa soma deles cativos, € 0 dito capitéo Mirocem sc salvou, deixando perecer toda sua frota. © governador de Diu, que com suas atalaias os ajudava, vendo tio formoso desbarate, mandou a pressa_mensagem ao vice-rei, que queria toda a paz ¢ amizade com el-rei nosso senhor, mandando-the cm sinal disso muitos presentes € reftesco. GOGARIM Passando este lugar de Din comega logo a costa fazet contra volta para dentro, caminhando de Cambaia, ¢ nesta enseada estio muitos lugares, portos de mar, do reino de Gurarate. Sao lugares de muito trato, principalmente Gogarim que é uma vila grande de muito bom porto de mar, onde sempre carreg;m muitas naus do Malabar ¢ doutras partes para a india, também vem a ele muitas naus de Mcea e Adem, potquie aqui se tratam todas mercadorias em tanta abastahga como em Diu. (©) Finalmente. 75 BARBASI Indo, assim, ao longo da costa, por dentro desta en- seada, esté outro lugar que chamam Barbasi, que também é muito bom porto de mar de mui grande navegagdo, cm que se tratam muitas sortes de mercadorias que daqui levam para muitas partes. Por estes lugares teni el-rei seus governadores ¢ arreca- dadores de suas rendas ¢ aifandegas que The rendem muita fazonda ¢ grande soma de dinhciro de direitos das mercado- rias (*) das quais sio todos os lugares muitos fartos ¢ abastados de mantimentos e de muitas sortes de mercadorias que na terra se recolheu, afora outras que vém de fora GUINDARIM Indo mais adiante deixando Barbasi, csté para dentro um lugar que chamam Guindarim, na boca de um rio, ¢ wm lugar de rini bom porto, em que se tratam muitas sortes de mercadorias, porque pelo mesmo rio dentro esti a grande cidade de Cambaia. Aqui vém sempre muitas naus do Malabar, que trazem muita areca, cocos, especiaria, agiicar, cardamomo, ¢ com outras muitas mercadorias que aqui vendem, donde levam muito algodio, panos, trigo, grdos, cavalos, alaquecas ¢ outras muitas mercadorias em que na India se ganha muito dinheiro. (2) Nota de Mendo Trigoso. «Falta aqui uma palavra no manuscrito € mente na tradug! gui 76 A navegagio destes lugares € muito perigosa para nau de quitha, porque estando sobre amarra, desce aqui nesta enseada a agua tanto que, em muito pouco espago, descobre 0 mar quatro ou cinco Iéguas, em uns lugares mais ¢ em outros menos, e, enquanto a maré, enche to rijo que dizem que um homem a todo o correr nao The pode fugir. De ma- neira que as naus que aqui houverem de entrar, hao-de tomar pilotos da prépria terra, porque quando a maré descer, sai- bam ficar em pousos ¢ lugares que ha ai sabidos ¢ muitas 0 ficam em pedras onde se perdem. A FORMOSA CIDADE DE CAMBAIA Entrando por Guindarim, que ¢ pelo tio dentro, esté uma grande ¢ formosa cidadd que chamam Cambaia que € povoada de mouros c gentios. Tem mui boas casas, mui altas, com janelas, ¢ cobertas de tclha 4 nossa maneira, mui bem arruadas, com formosas pragas ¢ grandes edificios, tudo de pedra ¢ cal. Esté assentada em uma graciosa ¢ tica terra de mantimentos. Ha na cidade grossos mercadores ¢ grandes homens de fazendas, assim mouros como gentios. H4 muitos oficiais de oficios mecanicos, de subtis obras de muitas maneiras assim como em Flandres, e tudo muito barato. Aqui se fazem muitos panos de algodao brancos Tauito delgados e grossos © outros pintados em forma, e muitos pa- nos de seda, muitos veludos baixos, pintados, muitos sctins aveludados ¢ tafetés e muitas alcatifas grossas. Os naturais da terra so. quési branccs, assim homens como mulheres; moram nela muitos estrangeiros, ¢ so homens mui alvos. & gente muito pol'da ¢ acostumada a Inuitos bons trajos, de mui vigosa vida, dados a muitos pra- 7 geres € vigios; comem muito bem, costumam sempre lava- rem-sé € untarem-se com coisas muito cheirosas, trazem sempre entre os cabelos, assim homens como mulheres, flo- res de jasmim ¢ doutras ervas que entre cles hi. Sio grandes misicos de muitas nianeiras de tanger € cantar. ‘Andain continuamente pela dita cidade carretas com bois e com cavalos, de que se servem para carreto de todas as coisas, € outras com uns leitos de madeira muito bons, cerrados ¢ cobertos 4 maneira de uma camara, lavrados de formosa marcenaria, ¢ com janclas armadas € paramentadas com muitos panos de seda, ¢ alguns com os couros doura- dos; tém neles colchdes, cobertas € almofadas de seda muito ricas ("). ‘Trazem carreteiros, homens conhecidos ¢ de con- fianga, onde Jevam mulheres a ver jogos € prazeres, Ov ami- gos, sem ninguém ver, nem saber quem vai dentro. Ali vo dentro tangendo ¢ cantando ¢ fazendo tudo a seu prazer. Os moradores desta cidade tem muitos vergeis, hortas € pomares, que the servem de bom desenfadamento, onde Glam muitas frutas € hortaligas, que ¢ principal mantimento dos genttios qite nfo comem cousas que receha morte. Nesta cidade sc gasta grande soma de marfim, em obras que se nela fazem muito subtis ¢ marchetadas, ¢ outras obras de tomo, como sfio manilhas, cabos de adagas, € em terga- dos, jogos de xadrer.¢ tébulas, porque ha af mui delicados tomneiros que fazem tudo, € muitos leitos de marfim, de torno, de mui subtis obras € contas de miitas manciras, pretas, amarelas, azuis ¢ vermelhas, ¢ dc muitas cores, que daqui levam para -tnuitas partes. Hé aqui também grands lap'dirios ¢ falsificadores de pedraria e pérolas falsas de muitat maneiras, que parécem na+ turais; também ha mui bons outiveses, de mui subtis obras. () Nola dé Mendo rigoso: «stan palavras faltam no manuscrito © foram supiridas da traducios. 78 Aqui se fazem também mui formosas colchas ¢ céus de camas de subtis lavores ¢ pinturas ¢ muitas roupas de vestir ¢ acolchoadas; hi também muitas lavradeiras mouras que fa- zem mui delicados lavores ¢ subtis obras. Aqui se lavra tam- bém muito coral ¢ alaquecas © toda outra pedraria, de ma- neira que hd nesta cidade mui primos(') oficiais de todas as obras. LIMADURA Indo mais adi nte desta cidade de Cambaia ao scrtio dela, esté um lugar que chamam Limadura, onde esté uma pedra de alaqueca, que € uma pedra branca leitenta e ver- melha, e, dentro, no fogo a fazem muito mais vermelha; arrancam-na cm mui grandes pedagos,c aqui h4 grandes mes- tres que a lavram e furam ¢ fazem de muitas posig6es, sct- licet, compridas. oitavas, redondas, folhas de oliveta“e em muitos ancis, cabos de tergados ¢ adargas ¢ doutras manciras. Qs mercadores de Cambaia as vém aqui comprar para as ven- derem para 0 mar Roxo, donde iam para as nossas partes pela ‘a do Cairo e Alexandria. Também as levam caminho da Ardbia © Pérsia ¢ para a India, onde as nossas gentes as come pram para Jevarem a Portugal. Aqui acham também muita soma de babagoure, que nés chamamos caleed6nia, que sio umas pedras de umas veias pardas c brancas, que cles fazem muito redondas ¢ furadas, trazem-nas mouros nos bragos, em lugar que The toquem na carne, dizendo que so boas para guardarem castidade; sio pedras de pouca valia porque hi af muitas. (@) Escelentes. 79 REINEL Saindo assim deste Inger de Limadura, tomando 20s de porto de mar, pasando Guindarim a0 diante, a0 longo da costa esti um rio, que desta propria banda tem um ‘lugar de mouros que chamam Reinel que é de mui formosas casas € pragas, ¢ um [lugar muito aprazivel ¢ rico} porque os mouros dele tratam com suas naus em Malaca, Bengala, Camarasim e Pegti, em Martabio ¢ Samatra, em muitas sortes de espe- ciarias ¢ drogarias, ¢ em muitas sedas, almiscar, beijoim, por celanas, ¢ cm outras muitas mercadorias. Tem os moradores dele grandes e formosas naus, que neste trato andam, ¢, quem quiser haver & sia mAo coulas de Malaca e China va-se a este jugar, onde as achar4 mais pet- feitamente que em outra parte, ¢ de bom prego. ‘Os mouros daqui sio ricos ¢ honrados, brancos € gentis homens, andam mui bem ataviados e tém mui formosas mu- Theres e boas casas bem concertadas ¢ alfaiadas. Nas casas dianteiras costumam ter muitos pratcleiros, a0 redor, ¢ todas cercadas deles a0 modo de botica, todos cheios de formosas € ricas porcclanas de novas feicSes. As mulheres nao sd0 encertadas, como as dos outros mou" os, mas andam muito por fora de dia, negociando o que The tom o rosto descoberto, como as de nossas partes. cumpre, SURATE Indo a0 diante pasando o rio de Reinel, da outra banda, esth ima |cidade) que chamam Surate, {povoada de mouros € pegada no rio, Tratam-se nla muitas mercadorias ¢ ¢ de grande trato./ 80 Pasa cla navegam muitas naus do Malabar, ¢ doutras partes, onde vendem 0 que trazem, ¢ tornam a carregar do que querem, porque ¢ este porto de muito trato, ¢ ha nele iui grossos mercadores, assim mouros como gentios, que também aqui vivem. Rende a deniva, que é a alfandega, cada ano, grande soma de dinheiro a el-rei de Cambaia. Até agora mandava e governava ncla um gentio por nome Milocoxim, que cLrci de Cambaia mandou matar por mé informagio que dele teve, o qual era muito amigo dos por- tugueses.. DINUI Passando esta cidade de Surate, ao longo da costa est tum mui bom lugar que chamam Dinui, povoado de mouros ¢ gentios, que é também de grande trato de muitas merca- dorias, onde sempre navegam muitas naus do Malabar € doutras partes. BAXAI (') Indo ao diante ao longo da costa, passando Dinui, osté outro lugar que chamam Baxai, de mouros ¢ gentios, de mui bom porto, que também € do reino de Guzarate. de gran- de, navegagio, tratam-se aqui muitas sortes de mercadorias, de muitas naus de fora que a cle vém do Malabar carregadas de muita arcea, cocos, especiarias ¢ outras mercadorias, donde levam outras que no Malabar se gastam. (8) Bagaim. ar BENAMAJAMBU ‘Ao diante de Baxai, ao longo da’ costa esta uina \forta- leza del-rei de Guzarate, a que chamam_ Benamajambu. Der- redor dela esté um lugar de mouros mui gracioso, de muitas ostras, onde esto muitas mesquitas de miouros ¢ casas de oragi de gentios, 0 qual esté quési no cabo do reino de Cambaia, quie muito bom porto de mar, ¢ de assaz tralo, onde 14 muitos corsirios de uns navios pequenos como atalaias, de que vém ao mar, e achando navio pequeno com iquc eles possam, tomam-no € roubam-no, ¢, as vezes, The matam a gente. FIM DO REINO DE GUZARATE E BREVE RELACAG. DAS MERCADORIAS QUE NELE HA Aqui faz fim o grande ¢ rico reine do Guzarate. ¢ Cam- baia, em que hd muitos cavalos que dele levam por mercado- rias aos reis da India, Ardbia, Pérsia, ¢ muitas cotonias de algodto para velas ¢ outros panos dele, brancos © grossos, de que vém muitas naus cartegadas para Ardbia, Pérsia, India, Malaca, Samatra, Melinde, Magadaxo ¢ Mombaga, ¢, assim, hha outros panos pintados, muitos ¢ de muitas sortes, cotonias de seda, alaquecas, dleo de gergelim, erva lombrigueira ('), espiquenarde, tutia, tincal (), anfiso, anil fino de tabuleta. ¢ outro midis baixo, ¢ assim, olitras mutitas drogarias que nés ‘iio conhecemos, ¢ em Malaca ¢ China sio muito estimadas (2) Planta aromatica vermffuga, também chamada abrétano. (2) Borato de sédio natural, 82 ¢ tem grande valia, silicet, cachopucho € muito incenso que vem de Xacr, muito trigo ¢ milho grosso, e artoz cm grande abastanga, gergclim, eros, chicharos, feij6es ¢ outros muitos legumes, que cm nossas partes niio hd, ¢ tudo isto muito barato, ¢ para todas as partes o levam. Ha também muita prata e ouro amoedado; hé uma moeda de ouro redonda, com letras mouriscas ¢ vale duzentos réis, pouco mais ou menos, ¢ outra de prata que vale sessenta réis. Hé af outro conto por onde fazem todas suas mercadorias gue chamam redes, € no é mais que o nome, que vale dezoito réis © catorze c doze, segundo os lugares, porque em uns vale mais ¢ em outros menos, ¢, também, correm neste rcino améndoas por mocda baixa, assim como em outras partes ‘08 biizios pequenos. Também core aqui a mocda del-rei de Narsinga que sio os pardaus ¢ valem trezentos réis, pouco mais ou menos; ¢ j4 atrds disse sua feigio. Seus pesos de ouro ¢ prata ¢ pedraria, sfo meticais que dois ¢ meio pesam uma onga, tém outtros pesos maiores que chamam candil, que pesam quatro quintais, pouco mais ou menos, segundo os Tugares, porque em uns sio0 maiores ¢ outros mais pequenos gue chamam mfos que so vinte no candil, 0 qual, como digo, pesa um bahar, que é quatro quintais REINO DAQUEM (’) Saindo deste reino de Guzarate indo caminho da {ndia, de longo da costa, esté o reino Daquem, a que os Indios chamam Daquanil. : O tei dele é mouro, mas muita parte dos moradores sio gentios, é gram senhor de muita ¢ mui grossa terra que se (@) Decan. 83 estende pelo sertéo, assim mesmo {tem muitos portos de mar dle grosso trato, de muitas miercadorias, que se gastam pa terra firme, ¢ as cidades ¢ melhores lugares dele sio as se- guintes.\ CHAUL E entrando assim neste reino Daquem, de longo da costa exti um grande e formoso rio, dentro do qual esté um Tugar que chamam Chaul, de casas cobertas de palha, que é de grande trato, onde sempre nos meses de Dezembro, Janeiro, Fevereiro ¢ Margo, se acham grande soma de naus, princi- palmente da terra de Malabar c de outras muitas partes. "As do Malabar trazem aqui muita especiaria, areca, COC0S, muita drogaria, agticar de palma, cera, esmeril, 0 que tudo faqui vendem muito bem, e se gasta no sertdo ¢ no gram reino de Cambaia, onde aqui o vem buscar os navios dele, trazendo tim yetorno muitos algodses, panos ¢ outtas mercadorias que valem muito no Malabar. Os zambucos que dele vém 2s Tevam também ein retorno do que assim trazem, ¢ assim leva muito trigo, grios, arroz, milho ¢ gergelim, de que aqui hi muito, e muitas pegas de beatilhas e beirames gue neste tcino de Daquem se fazem. ‘Trazom aqui também mercadorias do Malabar, muito azougue, vermilhfo ¢ cobre que compram nas feitorias del- ce posco senhor, € © quintal de cobre vendem aqui de vinte ceaados para cima, 0 qual se gasta no sertdo, ¢ no reino de Guzarate, do qual Javiam em moeda ¢ fazem caldeiras para cozerem 0 arroz, € também o trazem aqui os portugueses, afora outro muito que vem de Meca. ; Deste porto de Ditt Tevam os mouros de Chaul, cada ano, a4 grande soma de pecas de beatilhas para toucas, com que tra- tam para Aribia c Pérsia, onde tém grande valia, e, assim, tam muitos beirames finos ¢ toucas de Roma, as quais trés pecas de pano se fazem neste reino. Dos beirames se sorvem muito os naturais da terra c se vestem deles, trazendo-os assim crus; depois que os trazem os curam, fazendo-os muito alvos © gomando-os, ¢, assim os vendem para muitas partes, ¢, por isso, se acham ais vezes muitos rotos. ‘Também fazem deles, depois de trazidos, capas, ajuntando-os, de dois em dois, ¢ pintando-os cm forma de mui boas cores, ¢, assim, os tra- zem sobragados por capas, porque este ¢ 0 seu trajo, com ‘uma pea de beatilha na cabega. Estas sortes de panos pen- dem eles por corjas que, entre eles, é um conto de vinte, como que dizemos ditzia, ¢ a corja dos beirames ou beatilhas vale a dez pardaus, mais ou menos, segundo a bondade deles. Neste tempo que digo da navegacao, se acha aqui muita gente junta, ¢ ¢ como feira, ¢, acabado, cada um vai fazer seus tratos e aviar-se para a tornada do ano que vem. Neste lugar esté um mouro governador de um senhor, que é vassalo del-tei Daquem ¢ que The di conta de suas rendas ¢ Thas arrecada; chama-se xeque, é grande servidor del- rei nosso senhor, muito amigo dos portugueses, ¢ quantos 20 porto vem so dele mui bem agasalhados. ‘Aqui esté sempre um feitor, posto pelo capitio ¢ feitor de Goa para The 14 mandar mantimentos, ¢ outras cousas ecessirias para as nossas armadas. Os mercadores que aqui yém tratar no tempo que acima digo, os que sio do sertéo yém da terra, ¢ assentam arraial com tudo o que trazem, fem um lugar que esté de Chaul contra o sertio uma pequena légua. Trazem estes stas mercadorias em mui grandes récuas de bois mansos, com suas albardas, como castelhanas, e, em cima; umas sacas compridas atravessadas, sobre que carre- gam suas mercadorias, ¢ traz. logo um condutor que leva vinte, trinta bois diante de si. 6 DANDA Passando este lugar de Chaul, de longo da costa, indo caminho da India, esté outro lugar também porto de mar e do senhorio Daquem, chamado Danda, onde entram ¢ saiem muitas naus de mouros, guzarates, malabares, como em Chaul. MANDABA. Deixando este lugar de Danda, ao diante esta um rio que chamam Mandaba, onde esta outro lugar de mouros ¢ gentios do proprio reino Daquem, também muito bom porto, onde entram muitas naus de muitas partes, que ali vém comprar ano, principalmente do Malabar, donde se tratam para aqui muitos cocos € arecas que se gastam bem no sertio, ¢, assim, trazem alguma especiaria, cobre ¢ azougue, que se vende muito bem aqui, aos mercadores do sertio. DABUL Indo mais ao diante passando Mandaba para a fndia, a0 loiigo da costa, esté um mui formoso tio que, ma entrada, tem um grande lugar de moutos ¢ gentios.do reino Daquem que chamam Dabul, ¢, na boca do rio, tem um baluarte com muita artilharia para sua defensio. ‘Tem bom porto de mar onde navecam muitas naus de mouros de muitas partes, scilicet, de Meca, Adem ¢ Ormuz, que trazem aqui muitos cavalos; ¢ de Cambaia, Din ¢ Mala- bar, que continuamente aqui tratam toda a sorte de merca- dorias, com muitos ¢ honrados mercadores, que.na terra ha 86 mui ricos, mouros e gentios. Aqui se despede grande soma de cobre para o sertio © muito azougue, vermelhio. Do sertio vem pelo rio abaixo soma de panos que as naus carregam, ¢, assim, muito trigo, gros ¢ chicharos e outros muitos legu- mes. ‘A alfindega daqui rende muito dinheito, que se atrecada para el-re: por pessoas que cle nela para isso tem. Eo lugar formoso ¢ bem assentado; tem umas casas co- bertas de palha c mui formosas mesquitas pelo rio dentro, assim de uma banda como da outra, onde hé muitos Iugares graciosos. A terra é muito aproveitada, rica; ¢ grossa de muita la- vranga, ¢ criagdo de gados. ‘Aqui veio ter uma armada del-rei, nosso senhor, d2 que era capitio-mor D. Francisco de Almeida, que entéo era vice-rei na India, c desembarcando a gente em terra, os mou- ros dela se puseram em defensio, e pelejaram mui rijamente com cela, onde morrerai muitos mouros e gentios, e toma- ram o lugar por forga, fazendo neles grande estrago, destruin- do © queimando tudo, e, assim, muitas naus que no rio estavam sartas. A gente que deste destrogo escapou, tornou a reformar a cidade que agora esté povoada e tio préspera como dantes, ¢ rica. Faz quanto mal pode aos nossos, SINGUIGAR fon Passando este rio de Dabul, indo ao longo da costa cami- nho de Goa, lesté um rio que chamam Cinguigar, que tem dentro um lugar, onde se tratam muitas meréadorias,\ ¢ en- tram muitas naus ¢ sambucos pequenos do Malabar a vender © que trazem, ¢ comprar outras da terra. I 0 lugar povoado de mouros e gentios do mesmo reino Daquem. 87 © RIO DE BETELE E LUGARES Indo ao diante ao longo da costa para Goa, est outrotrio, que chamam de Bétele, dentro do qual vao uns lugares pequenos de muitas € mui graciosas horias, onde se colhe muita quantidade de bétele, que carregam em pequenos na- vios € o levam a vender a muitas partes, a0 qual bétele nés chamamos félio indio, que tem a folha tamanha como tan- chagem, é quase de sta feigio ¢ nasce em urna Arvore como hera e também sobe pelas outras Arvores, outros h4 deles enlatados; nado dio nenhum fruto, somente.uma folha muito hhemitica (*), que em todas as Indias costumam muito comer, assim homens com mulheres, assim de dia como de noite, pelas pragas ¢ caminhos, de dia, ¢ até de noite na cama, de maneira que nunca deixam de comer, a qual folha misturada com wina poma pequena, que chamam areca, ¢, quando a hao-de comer, primeiro a untam com uma cal molhada que é fcita de marisco, de casca de mexilhdes € ameijoas; € ajun- tadas, assim, estas duas coisas com o bétele, 0 comem, do qual nfo levam para baixo mais que © sumo; faz a boca ver- melha e os dentes negros. Dizem que é esta folha boa para enxugar ¢ conservar 0 estémago ¢ mio'o; faz deitar muita ventosidade, mata muito a sede, ¢ faz que nado bebem com le. Deste lugar para diante caminho da India ha muita soma dele, ¢ é uma das principais rendas que os reis indios tém. Os mouros, ardbicos ¢ pérsios chamam a este bétele, tambul. Passando este rio de Bétele, indo pela costa adiante, esto outros Iwgares pequenos que também so porto de mar ~ do reino Daquem, onde entram zambucos pequenos do (©) Nota de Mendo Trigsso: «Talvez quereré dizer arom: 88 Malabar a carvegar de muito arroz ruim que nele hd, ¢ outros legumes aos quais a um chamam Arapatao © a0 outro Mu- uari. BAMDA Indo destes lugares ao longo da costa para Goa, \est4 um muito bom lugar que chamam Bamda, povoado de mouros ¢ gentios, em 0 qual ha muitos mercadotes que tratam na terra firme com os malabares. A este porto trazem (e assim outras naus de muitas partes por 0 porto ser muito forte ¢ ter grande saca), da terra firme muitos mantimentos e mercadorias.\ Carregam aqui as naus do Malabar muito arroz, milho grosso e outros legumes, do que hao muito proveito. Os malabares Ihe trazem aqui cocos, pimenta e outra muita especiaria ¢ drogarias, que aqui vendem mui bem. Também vem aqui muitas naus de Adem e Ormuz. (Passando este lugar entre cle ¢ Goa, estd outro tio que chamam Bardes, em que estio muitos lugares que nao tém nenhum trato/! GOA Adiante ao longo da costa; est4 um mui formoso rio, que tanga dois bragos a0 mar, entre os quais se faz uma ilha, em que esté a cidade de Goa, que foi de Daquem,. era um senhorio sobre si, com outras terras derredor dela pelo sertio, onde hé um gram senhor, vassalo do dito rei, que chamam sabaio que, por set muito bom cavaleiro, manso e esforcado ta guerra, The foi dado este senhorio de Goa, para dali fazer 89 guerra a el-rei de Narsinga, como sempre fez até morte, pela qual ficou esta cidade ao cabaim hidalcio, seu filho. 1 habitada de muitos mouros honrados, muitos deles es- trangeiros de muitas partidas. Eram homens brancos, entre os quiais, além de muito ricos mercadores que af havia, eram ontros lavradores. A tetra por ser muito bom porto, cra de grande trato, onde vinham muitas naus de Meca ¢ da cidade de Adem, Ormuz, de Cambaia ¢ do Malabar. (© hidaledo tinha cla um capitio com muita gente de armas que a guardavam, c ninguém nfo estava na ilha senior por grande regimento ¢ recado. ‘Tinham tambéin alcaides, escrivies € guardas € regis~ tavam todo 0 homem que entrava, escrevendolhe quem € donde era, € quantos sinais tinha, e, assim, deixavam entrar e sair. ‘ % a cidade mui grande, de boas casas, bem. cercada de fories muros, torres ¢ cxbzlos; a0 redor dela muitas hortas € pomares, com muitas formosas drvores ¢ tanques de boa 4gua com mesquitas € casas de oragio de gentios. A terra & toda arredor muito aproveitada. “‘Tinha o hidalcdo aqui grande renda assim de terra como de mar, 0 qual, sabendo o desbarate que o vice-ret D. Fran- cisco de Almeida fizera defronte de Diu nos rumes, como atrds em seu lugar tenho dito, mandou chamar todos os que deles escaparam, os quais deixando Mirocem, seu capitio, no reino de Guzarate, se vieram a Goa, O hidaledo os rece: hea muito bem, determinando de the dat toda ajuda ¢ so- corro que houvessem mister € de os tornar a reformar com ajuda de outros reis mouros ¢ mercadores, para fazerem guer- ra as nossas gentes. : De maneira,que, tendo junto muito dinheiro, comegaram a fazer em a ribcira de Coa formosas galés e bergantins, tudo a nossa maneira € feigao, assim muita artilharia de ferro e cobre, ¢ toda a outra munigdo de guerra necesséria para @ 90 mar, dando a tudo tamanha pressa, que, em mui pouco tempo. tinham grande parte da frota feita ¢ mui grandes armazens cheios de todo 0 necessério em grande perfeigio, ¢, com isto. estavam ja tao confiados que saiam ao mar em atalaias e fustas aos zambucos que por af passavam, que levavam seguros de capitacs del-rci nosso senhor e de Afonso de Albuqueraue, que entao era capitio-mor do mar na India, € os tomavam. Indo isto em muito crescimento, foi disso avisado o dito ‘Afonso de Albuquerque ¢ determinou de os ver ¢ tirar de sua determinagao, ¢, ajuntando mui bem suas naus, caravelas € galides, entrou dentro no rio, ¢, combatendo a dita cidade, a tomou por forca de armas, no que se passaram muitas € notiveis cousas, que aqui ndo digo por abreviar, porque nao & minha tengo de fazer crénica, mas um breve sumario do que mais na verdade pude alcancar dos notdveis lugares da india. Mas tornando ao propésito: neste recontro morreu muita gente dos da cidade e sua valia, ¢ as naus que se faziam pres- tes foram delas tomadas, outras muito aueimadas. Logo meteu ‘a cidade debaixo do mando e senhorio del-rei nosso senhor, como agora esté, fortalecendo-a de mui boas fortalezas ¢ esta povoada agora de muitos portugueses, mouros ¢ gentios. ‘As frutas da terra e mantimentos, rendem cada ano de direitos a el-rei nosso senhor, afora o porto de mar, vinte mil cruzados. Neste porto de Goa ha grande trato de muitas mer- cadorias de todo o Malabar, Chaul ¢ Dabul, do grande reino de Cambaia, que se gastam para a terra firme. Do reino de Ormuz vern aqui cada ano muitas naus carregadas de cavalos, 6 quais vem aqui comprar muitos mercadores do grande reino de Narsinga e Daquem, e compram cada uma duzentos € trezentos cruzados e segundo ¢, c véo-nos a vender aos reis e senhores das suas terras, e, todos, uns € outros, ganham nisso muito e assim cl-rei nosso senhor, que de cada cavalo a'quarenta cruzados de dircitos. 91 Neste reino de Decio hi muitas cidades grandes e muitos Ingares ¢ aldeias pela terra dentro, habitadas de mouros ¢ gentios. FE pois muito frutifero € abundante de viveres ¢ de grande trfico, Os mercadores de Ormuz cartegam aqni suas naus de muito artoz, acticar, ferro, pimenta, gengibre ¢ outras muitas especiarias, drogarias que para 14 levam. Em todos estes tratos elrei nosso senhor 0s inanda tratar mais brandamente do que os reis mouros 0 faziam. O rei desta terra e de todo o reino Daquem se chama soldio Maamude; é mouro, esté sempre em uma cidade que se chama Bider, onde est4 muito vigoso, levando muito boa vida; nio manda no rcino, nem faz cousa algwina acerca de seu governo, entregando-o todo para 0 governarem a certos senhores mouros, a cada um dos quais reparte certas vilas ¢ cidades, ¢ cada um governa as que The sio por el-rei encarregadas; s¢ algum destes sc alevanta contra dle, os outros todos se ajtmtam contra este rebelde, ¢ 0 tor- nam obediéncia del-rei ou 0 destroem. Estes governadores muitas vezes tém guerra uns com 0s outros, trazem muita gente de cavalo, sio muito bons archei- ros de. arcos turqueses, sio homens brancos mui bem apes- soados, vestem panos delgados de algodfio com suas toucas has cabegas. so homens de diversas partidas ¢ paga-lhe mui bom soldo; falam ardbio, pérsio ¢ daquanim que € a lingua natural da propria terra. Os senhores mouros costumam muito trazerem tendas com quie assentam arraial nos campos, quando andam caminho ou quando vio combater algum lugar; cavalgam a bastarda, servem-se de zojares, pelejam atados na sela; com uns piques compridos ¢ muito eves, de ferros de uma braga, quadra~ dos € mui fortes; trazem laudeis embastados de algodio; e, muitos deles, saias de malhas; os cavalos mui bem acober- tados, com suas testeiras de ago; trazem magas ¢ machadi- mihas, ¢, cada um duas espadas ¢ sua’adarga, dois‘ ou trés 92 arcos turquescos pendurados da sela, com grandes frechas. de mancira que cada um traz armas para dois homens. Quando vio peleiar trazcm consigo suas mulheres, ser- vem-se de bois de carga em que levam seu fato(*) andando caminho, Muitas vezes tém guerra com el-rei de Nar- singa, a qacm tém tomados muitos lugares, ¢ ele os vai tor- nando a cobrar ¢ muito pouicas vezes tém paz c muito menos a tinham em vida do sobaio Os gentios deste reino Daquem sio homens pretos e bons de suas pessoas, 0s mais deles pelejam a pé, alguns deles a cavalo, mas so poucos, os pedes trazcm espadas ¢ adargas, arcos e frechas; so mui bons archeiros, scus arcos sio com- pridos & maneira dos de Inglaterra; andam nus da cinta para cima, e. para baixo, cobrem-se: mas cab:ga; trazemn_umas touquinhas; comem toda a vianda, tirando came d2 vaca, que tho defende sua idolatria, a qual eles guardam muito, mandam, quando mortem, queimar seus corpos, ¢ suas mu- Theres se queimam vivas, como ao diante falarei tratando do reino de Narsinga « CINTACORA Saindo desta cidade ao longo da costa, caminho do Ma- labar, esté um rio que chamam Ligua, que € a divisio do reino Daquem com o de Narsinga, ¢ na boca do rio, em cima de um monte, est4 uma fortaleza a que chamam Cintacora, que af tem o sabaio para defensio de sua terra, em que tem conti- ©) Os bens méve de uso pessoal. 93 nuamente muita gente de pé ¢ de cavalo, ¢ aqui se acaba 0 reino Daquem da banda do norte, que € a0 longo da costa até Chaul, ¢ terra desta fortaleza pela costa noventa léguas. REINO DE NARSINGA NA PROVINCIA DE TOLINATE Passando esta Cintacora, logo a terra de além é do grande reino de Narsinga que é tamanho que tem cinco provincias mui grandes, ¢, cada uma, lingua sobre si. A primeira é 20 longo da costa até o Malabar, que .chamam Tolinate; outra dentro no sertio que chamam Dansedo Raicn; outra que parte com 0 proprio reino de Narsinga, que chamam Telingu, € @ prépria cidade de Bismaga que chamam ‘Tanarim, ¢ 0 reino de Charamandel (*), cuja lingua é tamul. este reino mui grande, rico ¢ abastado de mantimentos, e mui grossa terra, de muitas criagées, ¢ de grandes: vilas € Tugares ¢ cidades. Nesta provinca de Tolinate estio alguns rios ¢ Ingares de porto de mar, em que hd grande navegagao ¢ se tratam muitas mercadorias, dos quais comegarei aqui a tratar ¢ dalguns deles que se seguem. MERGEU Primeiramente esti no principio desta provincia de Toli- nate, um rio mui grande que chamam Mergeu, onde se colhe muita soma de arroz preto muito ruim, que malabares vém (©) Coromandel. Jo%o Ribeiro (sée. XVII) escreve Xoromandel. 94 = + comprar para gente mitida, € o levam em pequenos zambucos, trazendo em retorno cocos, azeite deles ¢ muita jégara. que tudo se gasta muito bem na terra. HONOR Adiante passando Mergeu, ao longo da costa, esté outro rio em que est4 um bom lugar que chamam Honor. Os mora- dores dela sao da propria lingua da terra, os malabares Ihe cha- mam Poncuardo. Aqui tratam muito os malabares ¢ levam dele muito arroz preto, como do que ha em Mergeu, trazem em retorno cocos € azcite deles, jégara e vinho de palma, de tudo em mui grande soma, ¢ cada ano vem a este trato infinitos zambucos, assim grandes como pequenos, porque no Malabar se gasta muito arroz, por set seu principal mantimento. Neste lugar de Honor havia dois corsarios gentios, favo- recidos do senhor da terra, um chamam Timoja, outro Raogi. cada um tinha cinco ¢ seis naus muito grandes, com muita € bem armada gente, ¢ saindo ao mar tomavam quantas naus achavam por cle, nao sendo de Malabar, ¢ as roubavam de quanto levavam, deixando a gente viva, Do roubo partiam (°) com o senhor da terra por lho consentir, ¢ disto viviam, estando mui ricos e arrcigados na terra. Eram naturais do reino Daquem, donde se vieram a este lugar, por nfo estarem sujeitos entre os mouros, os quais se desfizeram, ¢ nao ousaram mais andar daquela maneira depois que as armadas del-zei nosso senhor navegaram pelas partes da India ©) Repartiam 95 BATICALA Indo mais ao diante ao longo da costa, passando o rio de Honor, esta outro rio nao muito grande, que tem um bom ugar que chamam Baticala, de mui grande trato de muitas ‘mercadorias. T: povoado de mouros ¢ gentios, que todos sio mui gran- des mercadores. ‘A este porto vem cada ano muitas naus de Ormuz, car- regar de muito arroz branco, agticar em pé, que a terra di em muita abastanga, € néio 0 sabem fazer em pies, antes assim em p6 0 enfardelam em uns fardos pequenos, a arroba do qual vale a duzentos e quarenta réis, pouco mais ou menos; €, assim, carregam muito ferro, de maneira que estas trés sortes de mercadorias sio a principal carregagéo que aqui tomam, € depois alguma pimenta, especiaria que os malabares aqui tra- zem da India. Ha neste Iugar muitos ¢ bons miramulanos, € fazem alguns deles em conserva, para venderem aos mouros da Atdbia ¢ Pérsia, que 0s compram muito bem. Estas naus de Ormuz que, como digo, vém aqui cada ano, trazem muitos cavalos ¢ muitas pfrolas, que aqui vendem para o reino de Narsinga; agora por causa da nossa gente, 05 Jevam a Goa com outras mercadorias. ‘Aqui vém também a este porto carregar de especiarias algumas naus de mouros de Meca, aventurando-se, sem embargo de ser defeso pelas ordenagées € regimento de nos- sas gentes. ‘Os zambucos do Malabar vém carregar aqui cada ano de ferro e agticar, trazendo muito agiicar, cocos, azeite deles © vinho de palmeiras, muita pimenta ¢ alguma outra drogaria, que levam escondida mui secretamente ¢ outra com licenga dos capties das fortalezas nossas I este lugar mui rico, rende grande soma de dinheiro a clrei ¢ a0 governador que nele tem posto que chamam Da- 96 machate. que é um mouro mui rico de grande dinheito ¢ grande pedraria ¢ mui formosa. El-rci de Narsinga 0 tem dado 2 um seu sobrinho, com outros muitos ao redor dele, que ¢ gram senhor ¢ traz mui grande casa, chama-se Reimas, obe- dece em tudo ao de Narsinga seu tio, c, na terra, obedecem tanto ao governador como a cle. Usam-se aqui muitos desafios ¢ por qualquer cousa os aceitam, ¢ el-rei Ihes da para isso licenga, ¢ nomeiam os desa- fiados 0 dia cm que ha-de ser, ¢ as armas que hdo-de levar hao-de ser por medida, tao comprida de um como do outro. El-ei Ihes di padrinhos ¢ campo, ¢ dado cles vao nus, sd- mente cobertos da cinta para baixo com uns panos, muito encachados (*), com mui alegre rosto; ¢, fazendo primeiro sua oragio, se comegam a ferir, ¢, como vio nus em poucos gol- pes se acabam em presenga delrei ¢ de toda a corte, ¢ nin~ guém Ihes pode falar ao tempo de ferir, sendo os padrinhos que cada um estd a par do seu, € é isto tio acostumado entre cles que cada dia se matam. ‘Aqui se soiam pagar parcas a cl-rei nosso senhor ; de pouco tempo para cé nao pagam, antes nos fazem 0 dano que podem. Esté este lugar assentado em uma tera cha, bem povoado ¢ arruado, mas nio é cercado; tem derredor muito boas hortas € graciosos pomares e boas 4guas. Correm nele os pardaus, que é a moeda de ouro do reino, cc valem aqui,a trezetitos e vinte réis. Scus pesos grandes sio bahares que pesa cada um quatro quintais, como jé disse. ‘Além das mercadorias que acima digo que se aqui tratam, se gasta também muito cobre, que daqui levam para o sertio, para mocdas ¢ caldciras, € outros vasos de que a gente da terra se serve; vende-se aqui também muito azougue, verme- Thao, coral, pedra-ume, marfim, que aqui hé muito. Oy A maneira de encachos, tangas. 97 MAJANDUR Mais ao diante ao longo da costa, caminho do Malabar, esté outro rio pequeno em que esté um bom lugar chamado Majandur, ¢ é do senhorio de Baticala, onde se colhe grande quantidade de muito bom atroz, daqui vai quési tudo 0 que se carrega em Baticala. De redor deste ugar 0 semeiam em vales ¢ varzeas ala- gadigas, porque em Sgua se semeia, ¢ nela se colhe. ‘Lavram a terra com bois ¢, btifaros & nossa mancira, de dois em dois, ¢ o ferro do arado tem um vao em que leva 0 arroz, quando a terra est4 alagada, e, indo o ferro lavrando, vai o artoz ficando debaixo da Agua ¢ terra; na que est4 enxuta © semeiam a mao, e cada ano da esta terra duas novidades, © primeito é giracal, ¢ melhor, 0 segundo € chamado acal, ‘20 otitro chamam cavagas, 0 outro pachari ¢ cada um tem muito diferente prego. BACANOR E BRACALOR Indo mais ao diante, pasando Majandur, ao longo da costa, esto dois rios pequenos, em que estio dois lugares, @ ‘um chamam Bacanor € a outro Bracalor, que sio do reino de Narsinga, nesta provincia de Tolinate. HB neles muito bom arroz, que sc ctia derredor deles, ¢ se carregam dele muitas naus de fora ¢ muitas do Malabar, ¢ levam-no depois de debulhado ¢ limpo, metido em fardos da propria palha dele. Todos sfo de wma medida, leva cada uum quatro alqueires e meio € vale cada um cento ¢ cinguenta, e duzentos réis, segundo a qualidade do arroz. Muita soma dele se leva também daqui para Ormuz, Adem, Xaer, Ca- nanor, Calecut a troco de cobre € cocos, azeite deles ¢ jégara, 98 mas no Malabar se gasta mais dele que em nenhuma parte, por os malabares nao terem outro mantimento, ¢ posto que a terra & pequena, é tio povoada e cheia de gente, que bem podiamos dizer tudo uma cidade, do monte Deli até Coulio. MANGALOR Passados os dois lugares sobreditos, acha-se um rio grande ¢ muito formoso que desagua no mar, €, junto A costa para © Mcio-dia esti um lugar muito grande, povoado de mouros ¢ gentios do dito reino de Narsinga, 0 qual tem por nome Mangalor, ¢ nele se cartegam muitos navios de arroz preto que é melhor ¢ mais sadio que nfo 0 branco, para vender no pais do Malabar a gente baixa, que o tem por prego mais comodo. Carrega-se igualmente 0 dito atroz em muitos navios de mouros para Adem, e, em as terras, daqui por diante, principia a produzir-se alguma pimenta, porém pouca, mas melhor do que a outra, isto é, do que aquela que aqui tra- zem os malabares em pequenas barcas. Este rio é muito ameno ¢ belo, cheio de bosques de pal- meiras, de cocos ¢ muito habitado por gentios € mouros, com edificios sumptuosos e muitas casas de oragdo de gentios muito grandes ¢ ricas. Tem também muitas mesquitas em honra do seu Mafoma. CUMBOLA Ao longo da costa, caminho do Malabar, esta outro lugar deste proprio reino ¢ provincia, que chamam Cumbola Colhe-se ncle muita quantidade de arroz preto muito aim, que os malabares vém comprar e carregar em zambucos, para vender a gente mitida que 0 compram bem, ¢ eles ga- 99 nham nele muito por ser muito barato, ¢ se ganha nele mais que no bom. Também levam soma dele pata as ihas de Mak diva, que estio através do Malabar, por 0s moradores delas serem mouros pobres, ¢ folgarem mais com ele preto por ser de mais baixa valia, que com © branco; dio-Iho a troca de cairo, que € um fio para fazer calabres ¢ cordoalha, que se faz de cascas de cocos € aqui se faz muito, ¢ é mui certa mer cadoria para todas as partes. Este Ingar de Cumbola tem um senhor que 0 manda ¢ governa, posto por el-rei de Narsinga, ¢ esté fronteiro com 0 reino de Canamor, € aqui se acaba. o reino de Narsinga pela costa da provincia de Tolinate. DO PROPRIO REINO DE NARSINGA E SUA GRANDEZA Indo mais ao longo da costa, entrando para o sertéo, a quinze ou vinte léguas do mar, esté uma terra mui alta € fra gosa de subir, que vai ‘dés 0 comeco do reino de Narsinga até o cabo de Comorim, que é além da terra do Malabar, € aqui pela terra de Tolinate ficam muitas terras baixas entre a serra € 0 mar, € dizem os mouros daqui que, antigamente, > mar chegava a esta serra, ¢ este baixo era todo coberto dele, © que depois foi por tempo correndo, ¢ descobrin esta terra em que cles vive, ¢, ainda agora, ao longo da serra apare: cem muitos sinais de marisco ¢ doutras coisas de mar, como se ele em algum tempo ali chegasse. Desta serra por diante, para trds, é a terra muito cha ¢ ignal, ¢ desta outra banda é to dspera a subida, que parece jr-se ao céu, ¢, to fragosa, que nao podem as gentes passar sendo por alguns lugares € portos, e, por esta razdo, esti ts reis do Malabar tio isentos que, se no fora 0! empedi- 100 mento desta serra, el-rci de Narsinga os tivera j4 tomados, porque a terra do Malabar fica desta serra para 0 mar, & por isso nao podem pasar a ele, Cria-se nels muita madeira © muitas alimérias montescs, silicet, porcos, veados, ongas, Tcopardos, tigres ¢ urs0s; hé também umas alimérias cinzentas que parecem camelos, to ligeiras-que ningném as pode ma- tar. HA outro-sim umas cobras que voam ¢ tio peconhentas que o bafo ¢ vista delas mata a quem quer que a clas chega, ¢ estas andam pousando por Arvores € por onde querem; € hé também muitos elefantes bravos. ‘Acha-se também aqui muita pedraria, jagongas, amatistas ¢ umas safiras moles que sc acham entre ribeiras ¢ rios que por esta serra correm, que ¢ muito povoada de rics. ‘Tem este reino de Narsinga mui grandes cidades, vilas ¢ lugares e fortalezas. Tia terra de mui grandes lavouras, de arroz, graos, feijdes © outros legumes. Ha também grande criagao de cabras, vaca: c ovelhas, ¢ hd também mnitas facas (*), pequenas, que anda muito, ¢ asnos ¢ bois, dos quais todos se s:rvem de carrego) ¢ para fazerem stias lavouras. Todos estes lugares © povoagies sio de gentios cntre quem vivem alguns mouros. ‘Aqui ha muitos lugares de senhores que os tém por el-rei de Narsinga, 0 qual nos seus tem postos governadores ¢ arre- cadadores seus ¢ de scus direitos. A GRANDE, CIDADE DE BISNAGA A quarenta léguas desta terra para dentro, contra o sertéo, esté uma mui grande cidade que chamam Bisnaga povoada de muita infinda gente, cercada de mui bons muros e de um rio, da outra banda de uma grande scira ©) Cavalos pequenos ¢ membrudos, 101 Esté assentada em uma terra mui chi ¢ nela esté sempre o rei de Narsinga, que é gentio ¢ chama-se Raien; aqui tem tuns grandes ¢ formosos pagos em que sempre se aposenta, de muitos patios e grandes casas mui bem lavradas, dentro gran- des terreiros, muitos tanques de égua, em que se criam muitos peixes. Tem jardins de muitas Atvores ¢ cheirosas Galle : Pela cidade hé também alguns pagos assim & maneira destes, em que vivern grandes senhores ¢ governadores da cidade, As outras casas da povoagio sio cobertas de palha, mas, nem por isso, deixam de ser muito bem concertadas ¢ armuadas de mui compridas ruas ¢ de grandes pragas, ¢ con- tinuadamente aqui a gente tanta que nfo cabe pelas ruas ¢ pragas. Tis grande trato de muitos infinitos mercadores ¢ gr0ssos, assim dos estantes (*) ¢ que vivem na cidade ¢ sio dela natu- rais, como dos que a isso vém de fora, e da-Ihes el-rei tanta liberdade, que todos podem entrar ¢ sair ¢ viver em sua Tei sem Ihe ser feito nenhum nojo, sem The tomarem conta s¢ & cristo, se judeu, se mouro ¢ gentio. Aqui Ihes é a todos guardada muita verdade e justiga, assim uns aos outros, como overnadores: ner aqui uma mina de diamantes, como a do reino Daquem, de que se tiram muitos € pons. De Pegi e Ceiléo The trazem aqui a vender toda outra pedraria, e de Ormiuz The trazem muito aljdfar ¢ pérolas, ¢ corre esta pedraria mals aqui que em outra nenhuma parte, porque entre cles € mui estimada : ‘Também se gasta nesta cidade soma de brocados baixos que Vi vio vender da China, com metal lavrado e por lavrar. muito cobre, azougue, vermelhao, acafrdo, Aguas-rosadas. soma de anfido, sindalo, lenho aloés, cinfora, almfscar (de (2) Que tém residéncia fixe. 102 que se aqui gasta cada ano muita quantidade, porque se cos- tumam eles untarem-se com cle) ¢ outros matcriais cheirosos. ‘Também se gasta nesta cidade ¢ por todas as outras par- tes do reino, muita pimenta, que vem aqui ter do Malabar em bois e asnos; tudo isto se compra ¢ vende por pardaus (?), que neste reino se fazem em alguns lugares dele, principal- mente em uma cidade que chamam Hora, donde eles Ihe chamam horios, cuja valia e feigdes em muitos lugares atrds fica declarada; so 0s daqui muito verdadeiros ¢ nunca nenhum se achou falso, nem se acha, € dos outros muitos. Mui poucas vezes sai cl-rei fora desta cidade, vive nela mui vigosamente sem nenhum trabalho, porque descarrega toda a governanga do reino sobre uns governadores. Os pré- prios naturais da terra sao gentios como ele, sio homens bagos quase brancos, de cabelos compridos, corredios € pretos; so homens de boas estaturas quase das nossas fisionomias, suas mulheres andam mui bem ataviadas. Os homens andam vestidos de uns panos da cinta para daixo, com muitas voltas, mui bem apertados; trazem umas camisas curtas de pano branco de algodao ou seda ou broca- diJho que The dio pelo meio das coxas, ¢ abertas por diante com umas touquinhas na cabega e deles com uns barretes de seda ou brocado, com suas abarcas nos pés; trazem outros panos grandes sobragados & maneira de capas; trazem pagens detris com suas espadas nas maos. Os materiais com que sem- pre andam untados sio sindalo branco, aloés, cénfora, almis- car € agafrdo, tudo muido c diluido em agua rosada, € untam- -se com eles depois de banhados, ¢, assim, andam sempre muito (2) Nota de Mendo Trigoso: «Estes pardaus, diz a tradugio, valem trezentos maravedis, ¢ 0 ouro € baixo, ¢ a forma da moeda redonda, al- gumas tém de um lado letras indianas, e do outro duas figuras, uma de homem, outra de mulher, outras finalmente nao tém senfo letras de sum lado», 103 cheirosos; trazem muitos aneis de rica pedraria ¢ muitas joias has orelhas de finas pérolas. Além do pagem que digo que trazom com uma espada, trazem outro com um sombreiro dc pé, que The faz sombra, ¢ Ihe tolhe a chuva, ¢ destes sto alguns de panos de seda mui bem lavrados, de muitos penden- draria ¢ aljOfar, sio feitos de tal tes de ouro, com muita pe ; muitos deles fazem de custo mancira que se abrem ¢ cerram trezentos e quatrocentos cruzados, ‘Ae mulheres trazem uns panos brancos de algodio muito delgado ou de seda de boas cores, ¢ de cinco varas em com prido, parte dele cinge da cinta pata baixo, ¢ a outra volta, fangamn-na por cima de win hombro, ¢ pelos peitos, de maneira que tim brago ¢ hombro The fica de fora, & mancira de regacho; alga abarcas de couro lavradas muito bem de sedas, {raion fs cabegas descobertas, 05 cabelos apertados, ¢ feitos deles fama formosa trunfa que Thes fica em cima da cabeca, ¢ Por elas metidas muitas ¢ cheitosas flores. ‘Trazem em uma das ventas dos narizes wm pequeno Du- taco, ¢, por cle, metido uni fio de ouro, com uma pendente também trazem as orelhas fura- a_i ggeeE-E- ss pescogo uns colarinhos de ouro ¢ pedraria, justos nos bragos pottos braceletes de otro e pedraria, ¢ mui boas contas de coral, assim que pela maior par Ensinam as mulheres de meninas a cm ¢ voltear, ¢ fazer muitas ligeirezas. S40 mui for ¢ de grande presungio. 6 rei e gentes da terra casam quasz 3 nossa mancira, ¢ |. eee is andes que as podem manter; tem el-reh tas mulheres recebidas ('), filhas de de uma pérola, safira ow rubi; te é gente mui rica. mntar, tanger, bailar mmosas mulheres principalmente 0s g& nos pagos aqui consigo mui (2) Adoptadas, 104 grandes senhores do reino, ¢, além destas tem outras como mancebas ¢ outras como servidoras, para 0 que sio escolhidas pelo reino as mais formosas ¢ sis, que limpamente 0 possam servir, porque todo seu servigo & de mulheres, ¢ elas o servem ‘cm tudo das portas para dentro, ¢ elas tém todos os offcios de sua casa, ¢ todas se recolhem dentro nos pagos, onde sio abastadas de quantas cousas hao mister, ¢ tém muito bons aposentos; estas tangem ¢ cantam ¢ fazem mil prazeres com jsso a clei; banham-se todas cada dia em muitos tanques gue cle, como atris disse, tem; el-rei as vai ver ao banbar, ¢ a que The melhor parece, manda levar para sua cmara; 0 pri- meiro filho que ha, quer seja de uma quer de outra, herda ‘0 teino, Ha tamanha inveja ¢ competimento entre estas mu- Iheres, sobre a privanga del-rci, que se matam umas s outras, ¢ outras a si mesmas com pegonha "Tem o dito rei uma casa como rclaggo, em que certos dias esté com seus governadores ¢ oficiais, entendendo nos despachos e governanga do reino; castiga mui asperamente quem o merece, ¢ aos bons faz muitas honras ¢ merces. ‘Achando algum grande senior ou seu patente culpado. em aleum dclito. manda-o chamar, ¢, como eles, todos trazem mui grandes estados, vém em ricos andores que Jhe trazem seus vassalos, com muitos cavalos a destro (*), ¢ com muita gente de cavalo, ¢ descido a porta do pago, vio dizer dele a elrei, que o manda, e, nfo The dando de seu erro justa desculpa, castiga-o de palavra mui bem segundo merece, ¢ além disso Ihe tira a metade da renda que tem, ¢ nem por isso 0 deixa de mandar tio honradamente como veio para sua pousada. E assim esto sempre & porta do pago muitos andores e gente de cavalo. Este rei de Narsinga tem continuamente mais de nove- (@) Desmontados, a utilizar em caso de necessidade, 105 centos elefantes, que compra a mil ¢ quinhentos cruzados, ea dois mil cada um, que sio mui grandes € formosos, os quais ele continuadamente traz consigo assim por estado como: para guerra, ¢, assim, de vinte mil cavalos para cima, que cada um Ihe custa de quatrocentos até seiscentos cruzados, € alguns que so escolhidos para a sua pessoa compra a nove- centos e a mil cruzados. Estes cavalos se repartem por grandes senhores, a quem os del-rei di para os terem de sua mio, e a todo o tempo the darem conta deles, ¢ assim os dé a outros fidalgos. Aos cava- Ieiros manda dar a cada um um cavalo, para sua pessoa, € um mogo e escrava para o servirem, ¢ quatro e cinco pardaus cada més segundo €, ¢ mais mantimento cada dia para 0 cavalo ¢ mogo, 0 qual vo buscar a umas cozinhas grandes, onde el-rei manda dar de comer aos elefantes ¢ cavalos, OS quais sio em muitas ¢ mui grandes casas, onde h4 muitas somas de grandes caldeiras de cobre e hé nelas muitos oficiais que mandam fazer de comer © muitos mais que 0 fazem, que € arroz cozido com muitos graos ¢ outros legumes, ¢, cada um, como digo, manda ali pela ragdo ao seu cavalo ou clefante. Se algum cavalo ow clefante destes vé que medram bem, na mao daquele a que foi entregue, tomam-Ihe aquele ¢ dao- The outro pior, ¢, assim, cada um por ter bom cavalo ou dlefante, pensa-os (*) muito bem, e outro tanto como isto fazem os grandes senhores a seus vassalos. Os cavalos no se dio nesta terra bem, antes vivem nela muito pouco tempo, © estes que aqui hi vém do reino de Ormuz ¢ Cambaia, ¢ pela muita necessidade que deles tém valem aqui muito. ‘Tem entre cavaleiros ¢ pedes este rei de Narsinga mais de cem mil homens de guerra a que continuamente paga soldo, aia da sen sustento, Timpeza ¢ sande, e cinco ou seis mil mulheres a que também o paga pata an- darem em sua corte, e onde quer que ha guerras reparte-as segundo a gente que 1 manda, ¢ diz que se nao pode fazet guerra onde nao houver mulheres, as quais todas sto solteiras ¢ mui grandes miisicas, bailadoras e volteadoras, 0 que fazem mui desenvoltamente. Os oficiais da guerra quando para ela assentam algum ho- mem, despem-no nu, ¢ olham-Ihe qutdo comprido (*) é, e como o nome ¢ a terra onde nasceu, ¢ 0 nome de seu pai e mai, ¢, desta maneira, fica assentado, sem nunca mais Ihe quererem dar licenga para se ir a sua terra, e se acontece ir-se sem licenga, e depois 0 tomam é muito maltratado; ¢, entre estes homens de armas h4 muitos cavaleiros que vém assoldadados de dife- tentes reinos, os quais nem por isso deixam de viver na sua lei, Neste reino de Narsinga hé trés leis de gentios, que cada uma delas tem muita diferenga de lei s6bre si, € outro: im os costumes deles sio mui desviados uns dos outros, principal- mente os dos reis, grandes senhores ¢ cavaleiros € homens de armas, que podem casar, como jé disse, com quantas mulheres quiserem e poderer manter. Seus filhos dam suas fazendas. ‘As mulheres sio obrigadas por mui anttigo costume, quando os maridos morrem queimarem-se vivas com os seus corpos deles, que também se queimam, € isto por She fazerem honta, e s¢ a'tal mulher € baixa e pobre, quando 0 marido morre, vai coni ele a0 campo onde o quicimam, que:é cm uma cova que fazem muito grande, cm que arde soma de lenha, e depois do corpo morto do marido ser deitado dentro, € comecando de se queimar, por sua propria vontade, se langa no meio da dita fogueira, onde ambos os corpos se fazem emt cinza. ©) Completo. 107 Porém, se ela é mulher hontada, rica, e aparentada, quer seja moga, quer yelha, quando 0 marido morte, vai com o dito corpo do marido ao dito campo onde se hi-de queimar, pran- teando-o, onde fazem uma mui grande cova redonda ¢ mui larga, que enchem de lenha com muito sindalo, ¢, depois de a acenderem, metem o corpo morto do homem dentro no fogo, ¢, ali, se queima, ¢ cla 0 chora muito; cntdo querendo fazer honra a seu marido, tem chamados todos seus parentes dele e dcla, para que em tal acto a venham festejar ¢ honrar. (05 quais se ajuntam todos no dito campo para este prazo, onde ela despende, com eles ¢ com seus parentes € amigos, tudo © que tem, em muitas festas de tanger e cantar e bailar ¢ em muitos banquetes. Entéo se veste ela mui ricamente com quantas joias tem, ¢, a mais fazenda que The fica, reparte com seus filhos, parentes ¢ amigos, ¢, assim, arraiada sobe para cima de um cavalo, que serd rugo pombo, se for possivel, para que melhor seja vista de todo 0 povo. E, em cima dele, a levam por toda a cidade com muita festa, até tornarem 20 proprio lugar onde © marido se queimou, ¢ na propria cova The langam muita quantidade de lenha, ¢ fazem grande fo- gueira na borda da «a; arredado um pouco fazem um cada- falso de madeira de quatro ou cinco degraus, onde a sobem assim da maneita que estd, ¢, tanto que é em cima, dé por cle trés’voltas, adorando contra o nascimento do sol. E, aca- bado isto, chama os filhos, parenttes e amigos ¢ a cada um di sua joia, que consigo tem muitas, e assim todas as outras pegas e vestido, até Ihe nao ficar mais que um pequeno pano com gue se cobre da cinta para baixo, ¢ tudo isto faz ¢ diz tao segura e com téo bom rosto, como se nao houvesse de morrer. Entfio diz aos homens assim de cima do cadafalso que olhem quanto devem a sas mulheres que, estando em suas liberda~ des, se queimam vivas por amor deles, ¢ as mulheres diz que vejam quanto devem a seus maridos, que daquela maneira os hao-de acompanhar até morte; €. como isto acaba de dizer, 108 metcm-the na mio um cdntaro cheio de azeite, ¢ ela 0 poe na cabeca. ¢ dando com ele outras trés voltas no cadafalso, torna a adorar contra o nascimento do sol, Jancando logo 0 cantaro de azcite na fogueira, apés o qual se langa de téo boa vontade, como se se lancasse em um pouco de algodio, onde nao houvesse de receber dano. Os parentes Ihe acodem logo ¢ deitam no fogo muitos cAntaros de azcite ¢ manteiga. que para isso tém prestes, e apés eles muita Ienha, € com isso se alevanta tamanha lavareda que nao véem mais. ‘A cinza que destas ccrimébnias fica, se langa em ios correntes, 0 que eles sam geralmente sem nenhum pejo, por cousa mui acostumada, ¢ as que 0 nio fazem tém-no por mui grande desonra, ¢ scus parentes Ihe rapam as cabecas € as deitam fora por mui envergonhadas ¢ corridas de sua linhagem, a algumas que por nao fazerem, querem dar algum favor, metem-nas sendo mogas ainda em wma casa de orago para nela por seu corpo ganharem para a dita casa. Destes templos h4 muitos que tém logo destas mulheres cento ¢’mais fidal- gas, ¢ algumas soltciras se metem aqui também por suas, von tades, as quais sio obrigadas a tanger c cantar diante dos {dolos certas horas do dia, ¢ 0 mais do tempo que Ihes fica ganham para cles. este abomindvel uso, do queimar, tdo acostumado ¢ honroso entre cles que quando el-rei more se queimam com dle quatrocentas ¢ quinhentas mulheres da propria maneira para 0 que fazem a cova ¢ a fogueira tamanha, que possam nela caber quantas nela se quiscrem dcitar, e para isso tém, assim, prestes em muita abastanga lenha de sindalo, Aguila, brasil, alogs c muita soma de dleo de gergelim, e manteiga para fazer melhor arder 0 fogo. Destas mulheres umas se lancam subitamente, estando el-tei ardendo, outras com as ceriménias que ja disse, e é tanta a pressa a quem se com ele queimard que é cousa espantosa, ¢ também se queimam com ele muitos homens seus privados. Estes comem carnes ¢ pes- 109 cados ¢ outras viandas (!), somente (?) vaca, que Iho defende sua idolatria preversa. Hi entre eles outra lei de gentes que chamam bramenes que sao sacerdotes © governadores de suas casas de oragio. Estes nao comem coisa que sinta morte, casam com uma s6 mulher, se esta Ihe morre nunca mais casam. Trazem a tiracolo trés fios de linhas em sinal da sua di- gnidade, tém entre todos grande liberdade e isengao, nio podem morrer por coisa nenhuma que fagam. Os reis © gran- des senhores ¢ gente honrada The fazem grossas esmolas de que se mantém, e, muitos deles, tém fazendas, outros vivem nestas casas de oragio 4 maneira de mosteiros, que tem mui boas rendas. Alguns sto mui grandes corredores, € por al nfo trabalham senfo para comier bem, ¢ logo andam scis jornadas, s6 por levarem uma boa fartadega; seus comeres sio mel-€ manteiga, artoz, agticar ¢ manjares de legumes ¢ leites. Ha neste proprio reino outra lei de gente quase como bramenes. Trazem ao pescogo uns cordécs de retrés branco, em que trazem dependurado um pano com uma pedra tama- nha como um ovo, que cles dizem ser o seu deus. Também estes sio entre eles mui acatados c honrados, nem The fazem nenhum mal por coisa que fagam por reveréncia daquela pe- dra a que eles chamam tambarane. Estes também ndo comem carnes, nem pescados, andam mui seguros por todas as partes, passando, de uns teinos a outros, mercadorias, ¢ por Ihe nao serem roubados quando ‘as conduzem, devem levar os seus tambaranes presos 20 pes- cogo, ¢, muitos deles, sio mercadores. ‘Tratam também € casam com uma s6 mulher, a qual, morrendo eles, se enterra viva, e fazendo uma grande cova, tio comprida que Ihe dé pelo pescogo, metem-na dentro viva ©) Alimentos. (2) Excento. 410 a oo e-em pé, © comegam a juntar terra deedor dela, calcando-a aos pés, até a tugirem (?) de terra bem calcada até 0 pescogo, ¢ entio Ihe poem uma grande pedra‘em cima, e ali fica viva morrendo taipada, fazendo-lhe outras grandes ceriménias, que seriam longas de escrever, coisa miserivel ¢ lastimosa, e que faz ver quanta forga tem neste mundo a ambicao e a opiniao: que conduz voluntariamente estas mulheres a um tao horrivel fim, somente para serem reputadas como mulheres honestas, julgando que faltassem a esta obrigagio seriam reputadas como mortas (*). As mulheres deste reino sfo téo atrevidas em idolatria, que fazem tantas maravilhas por amor dos seus deuses, que & cousa espantosa. Se alguma moga solteira se deseja casar com algum mancebo que Ihe cai em vontade, fazem voto a seu deus, que, dando-lhe maneira para se com ele casar, que antes que se entregue ao esposo Ihe far4 um grande servi- 0, ¢ se esse desejo vem a cfeito, cla alcanga-o por marido, diz-Ihe que antes que se entregue hé-de fazer um sacrificio a tal deus, que Ihe tem prometido que hi-de ser, oferecer-The seu sangue. Entio limitando dia para fazer tal festa, tomam uma carreta grande com bois, ¢ arrimam nela uma picota alta, a maneira de umas com que em Castela tiram dgua dos po- g0s, na ponta da qual picota vao dois ganchos de ferro bem agudos. Ela sai aquele dia de casa honradamente acompanhada de seus parentes, amigos, homens ¢ mulheres, com muita (2) Taparem. (2) 0 costume das mulheres acompaniarem os homens na morte recebett 0 nome de sati; foi abolido por Afonso de Albuquerque em Gon, ¢ pelos inglescs, nos territérios sob a sua cependéncia, no sécule XIX. Ligase esta determinacio, comesada a efectuar em 1829, ‘a0 governador geral lord Bentinck; encontrou resisténcia nas préprias mulheres que, durante muito tempo, iludiram a vigilinci . A’ aboligio estendeu-te seguidamente aos Estados independentes © feudatérios. Wr iisica de tanger ¢ cantar e bailados, chocarreiros diante, da cinta para cima nua, ¢ para baixo apertada com seus panos de algodio, ¢, chegando a sua porta, onde esté a carreta prestes, abaixam a picota e metcm-lhe aqueles ganchos pelos lombos por entre 0 couro e carne, e, metendo-lhe na mio esquerda ama adarga pequena, fazem da outra alevantar a picota, com muitos clamores ¢ brados da gente, ficando ela dependurada na picota. Vai-lhe o sangue correndo pelas pernas abaixo, de que cla no mostra nenhuma dor, antes vai mui leda esgrimindo com a adarga, tirando com limées ao esposo, ¢, desta mancira a levam ao templo onde esté 0 idolo a quem ela votou tal sactificio, e, chegando a porta dele, descem-na ¢ curando-a a entregam a seu esposo, dando ela, segundo sua pessoa, gran- des dadivas ¢ esmolas aos bramenes ¢ idolos, mui bem de comer a quantos 2 acompanharam, Usa-se também neste reino outra idolatria que, muitas mulheres por devogao, oferecem as virgindades das suas fi- Ihas a um {dolo, ¢ como elas sio de idade de doze anos, le- vam-nas a0 mosteiro ou casa de oragio, onde 0 tal {dolo esté, mui honradamente acompanhadas de todos seus parentes, festejando a filha como se casasse. Fora do mosteiro ou igreja, 4 porta, esté um poio (?) de uma pedta preta inuito rija, quadrada, ¢ seré de altura de um homem, derredor hd umas grades de pau que o fecham, meti- dos por clas muitos candeciros de azeite que ardem de noite, as quais grades clas armam para esta ceriménia com muitos panos de seda, por ficarem fechados, a gente de fora as nao poderem ver; sobre 0 dito poio esté outra pedra de altura de um homem curvado que tem no meio um buraco onde esté metido um pau muito agudo, ¢ a me da moga se mete dentro das grades com a filha ¢ com algumas mulheres suas pa- Tentes. Depois de feitas grandes ccriménias, de que nao tenho muita informagio, por se fazerem ali fechadas, a moga com aqucle pau perde a sua virgindade, derramando-a sobre aque- las pedras, ¢, com isto. acabam sua idolatria. Este rei de Narsinga tem muitas vezes guerra com el-rei Daquem, ¢ com el-rei de Otisa, que ¢ outro rei de gentios, € cle & também metido dentro pelo sertio, os quais se fazem uns aos outros o mal que podem. O de Narsinga poucas vezes anda na guerra em pessoa, sendio manda seus capitdes ¢ gente, ¢, quando ela vem a tal estado que ele Ihe parece necessério ir lé em pessoa, ¢ depois de em seu conselho sc determinar que v4, em um dia para isso assinado. sai el-rei a um campo, como se fosse a folgar vai cm clefante ou em um andor, cada um mui bem guarne- cdo de owo ¢ pedraria, acompanhado de muita gente de cavalo e pé, ¢ muitos clefantes adestra diante de si; mui bem soncertados ¢ cobertos de panos de gri ¢ seda. Andando ele neste campo The dao um cavalo em que cavalga com ttm arco € uma frecha na mao, a qual frecha cle tira contra o reino onde ha-de ir pelejar, nomeando logo dali a quantos dias hi-de partir. Disto ‘corre logo a nova por toda a cidade c reino, da qual se cle légo sai, assentando seu arraial no campo, onde est esperantlo 0 prazo que para sua partida limitou; 0 qual cumprido, manda langar um pregio, que se fagam prestes com suas mulheres ¢ filhos ¢ fazenda, e todos manda assim 16 ir, porque diz que com a obrigagio de mulher ¢ filhos ¢ fa- zenda pelejarao melhor, ¢ a todos paga mui bom soldo, prin- cipalmente 4s muthcres solteiras de que levam grande quan- tidade, que sio dels mulheres mui honradas 'e principa’s, ticas e formosas, por cuja causa os que com elas andam de amores pelejam por seu servigo melhor, ¢ dizem que de mui- a1 tos reinos concorre ali grande multidio de homens por causa destas mesmas_ mulheres Hi entre estas muitas mui privadas del-tei, e que trazem mui grande casa por terem muito dinheiro; cada uma destas principais traz em sua casa cinco ou seis mulheres mogas for- mosas, que The suas mies dio para as criarem, ¢ trazem sem- pre consigo na corte, assentadas em mui bom soldo, que cles hao entre si por mui grande honra. Hi destas tio ricas, que muito pouco tempo ha que morrem uma sem ter filho nem filha, e, por sua morte, deixou a el-rei por herdeiro de toda sua fazenda Ela morta mandou el-rei arrecadar tudo 0 que Ihe ficasse € achou que lhe ficavam setenta mil pardaus, além de doze mil que cla em sua vida apartou e deixou a uma sua criada que ela criara de pequena; e isto nfo é muita maravilha, que € mui grande e mais rico de mercadoria que se acha no mundo, © tem mui grandes cidades, onde vivem muitos mercadores mouros ¢ gentios de muito dinheiro ¢ grosso trato, principal- mente de pedraria, que neste reino é mui estimada, e de que nele se honram muito. Elrei tem mui rico tesouro dela, Preza-se muito disso, por onde quer que sabe que esté al- guma pedra, manda buscé-la, porque diz que o que deu por cla, isso Ihe fica em preco por ser sua. Quando a pessoa do rei abala, nao vio menos com ela de cem mil homens de guerra, ¢ 0 seu modo de caminhar é, que nio andam cada dia senio tés léguas, as quais andadas, assentam seu arraial mui grande, e logo ali nele é armada uma grande vila de pilha, mui bzm arruadas as casas, € com muitas pracas; ¢ ali hao-de estar trés dias, de maneira que em cada trés léguas gastam trés dias, e, quando hao-de partir, tocam uma bacia, ¢ logo é posto fogo.A vila e todos partem. Assim, desta maneira e ordem, vao até chegarem ao lugar onde hio ir. 4 REINO DE OTISA Indo mais adiante contra o sertio, est outro reino que confina com 0 de Narsinga, ¢ doutra parte com Bengala, ¢ doutra com 0 gram reino de Deli, 0 qual reino é de gentios. O tei dele é mouro ¢ senhor de muita gente de pé, como ji disse. Tem muitas vezes guerra com 0 de Narsinga, e tomam um ao outro as terras que podem, ¢ poucas vezes esto em paz. Os costumes destas gentes ¢ stias povoagdes nao escrevo por nao termos dele tanta informagio, por estar tio metido no sertio, sdmente que nesta terra hi mui poucos mouros, ¢ sio mui bons homens de guerra. REINO DE DELI Entrando mais ao diante contra o sertio, esté um. mui grande reino que chamam Deli, de muitas terras e cidades grandes ¢ ricas, onde vivem grossos mercadores. E povoado de mouros cl-rei, outro-sim, € mouro ¢ mui gram senhor. Foi o reino em outro tempo de gentios, e, ainda entre eles agora, ha alguns que vivem mui atribuladamente, ¢, muitos deles que sio homens fidalgos ¢ honrados, por nao viverem debaixo da sujeigio dos mouros, os mais deles se saiem da terra, ¢ tomando habitos pobres determinam de andarem por todo 0 mundo, ¢ nfo assentarem em nenhum lugar, ¢, assim, 0 fazem até que nesta peregrinagio morrem. Estes no tém nada de seu, porque a fazenda que tinham perderam-na; andam nus ¢ descalgos, nem trazem nenhuma coisa na cabega, sdmente cobrem suas vergonhas com uns tangueiros de atéo mourisco, de que trazem uns cintos de WS muita pegas ¢ jogam de ambas as bandas, de largura de qua- tro dedos, envasados em forma, com muitas figuras neles esculpidas, ¢ trazem-nos tio apertados que lhe fazem subir as tripas mui acima, ¢, nestes cantos andam os braguciros pe- gados, onde vém fechar com seus fechos, tudo tio apertado que The dé grande pena, ¢, além disto, trazem mui grossas cadeias de ferro pelo pescogo ¢ cinta. Os corpos © rostos trazem untados de cna, trazem mais um comete pequeno ou buzina, com os quais. onde quer que chegam, chamam ¢ pedem de comer, principal- mente nas casas de oragio € de reis ou grandes senhores. An- dam cstes pela maior parte juntos como os egiptanos (*) em nossas pattes, nem costumam estarem muito em qualquer parte, antes mui poucos dias. Estes chamam jones (?) ou coamerques, quer dizer tanto como servidor de Deus. Sio estes gentios homens bagos, mui bem dispostos ¢ apessoados, e gentis homens dos rostos; nunca penteiam os cabelos, trazem-nos feitos em trangas. Eu Thes nerguntei muitas vezes porque andavam assim, cles ‘me respondiam que traziam aquelas cadeias de ferro sem- pre sobre si, em peniténcia do grande pecado que fizeram cm nfo quererem softer as armas de sua honra, ¢ deixaram-se tomar a tio ruim gente como sio os mouros, ¢ que anda- vam nus em sinal de muita desonra, porque deixaram per- der suas terras ¢ casas om que os Deus criou, ¢ que nao que- tam nenhuma fazenda, pois perderam as suas sobre que de- veram de morrer, e que se untavam de cinza por The lem- brar, que de terra e cinza cram feitos, ¢ nelas se haviam de tornar, e que todo o al era mentira, ¢ desta cinza traz cada tum am saquinho consigo. (2) Nome pelo qual eram ‘entio conhecidos 0s ciganos. ©) Jogues (do persa jug 116 Os gentios da terra Ihe fazem muita honra ¢ acatamento, ¢ eles the dio daquela cinza, com que cles assinam, pondo uns riscos dela pelos peitos, testas c hombros, € costuma-sc muito isto entre eles. Estes homens comem toda a vianda, no guardam outra nenhuma idolatria, tocam-se com todo o género de gente, nem se lavam por ordem como os outros gentios, sendo quando Ihes vem a vontade. Ha neste reino de Deli mui bons cavalos que nele nascem ¢ sc criam. Os naturais dele assim mouros como gentios, so bons homens de peleja e bons cavaleiros; armam-se de muitas maneiras de armas, s4o0 mui rijos ¢ também bons archeiros. Tém mui boas langas, espadas, macas de aceiro ¢ machadi- nhas com que pelejam, ¢ costumam trazerem umas rodas de ago, que chamam chacario, de largura de dois dedos, tao agu- das por fora como navalhas e por dentro rombas; sio do famanto de um prztel pequeno ¢ sio furadas. Traz cada um destas até dez, metidas no brago esquerdo, € tomam uma na guerra e metem-na no dedo da mio direita, andando com ela um pouco derredor para tomar forga, entio a despedem rijo contra 0 inimigo, ¢ se acertam em brago. perna, pescogo, cortam tudo sércio, ¢ assim fazem mui grande dana. © aqui hd homens mui certo delas. clrei de Deli mui gram senhor de muita ¢ belicosa gente e de grandissima terra. Confina da banda do norte com ‘Tartaria ¢ tem muitos reinos; os de Cambaia e Daquem eram seus, ¢ imandando a eles uns capities aos acabarem de tomar, se lhe levantaram com cles, ¢ assim ficatam reinos isentos. Hé nesta tera umas senhor que seja, porque logo os mouros se alevantam contra ele, salvante sendo casa de oracio on paco de rei; depois por tempo el-rei de Cochim e 0 de Cananor fizeram moeda forgosamente. Nesta terra do Malabar todos se servem de uma lingua que chamam maliama. Os tcis todos so de uma lei ¢ costume pouco mais ou menos, mas a da gente é mui diferente, porque haveis de saber que, em todo o Malabar, ha dezoito leis de gentios naturais, cada uma apartada das outras, ¢ tanto que, nifo se tocam uns com os outros, sob pena de morte ou per- dimento de suas fazendas, assim que todos tém leis, costumes ¢ idolatrias sobre si, como irei declarando. Os reis do Malabar sio gentios honradores de {dolos, so homem bagos, quase brancos, alguns hé af mais pretos; an- dam nus, da cinta para baixo se cobrem com panos brancos de algodio ou seda; as vezes vestem umas roupetas abertas por diante, que Ihe do por mela coxa, de panos de algodao ow seda ou gra muito fina on brocadilho. Trazem os cabelos atados em cima; trazem as vezes nas cabegas umas carapugas compridas como cascos galegos; fazer as barbas & navalha, deixam uns bigodes compridos 4 maneira dc turcos, trazem as orelhas furadas, em que p6em mui ricas jéias de pedraria, ¢ sartas de pérolas mui grossas; sobre os panos cingem tumas cintas de pedraria, de trés dedos em largo, 120 mui bem obradas ¢ ricas. Pelos pcitos, hombros ¢ testas, uns riscos de cinza, de trés em trés, que pdem por costume de sua Hei, por lembranga que se hio-de tomar cinza, a qual péem misturada com sindalo, agafio ¢ égua-rosada ¢ lenho aloés. Vivem em casas térreas, assentam-se cm uns poios muito plainos, embostados cada dia, uma vez com bosta de vacas, onde poem uma tébua muito alva de quatro dedos de altura, ¢ um pano de alméfega, de la de carneiro preto por tingir, tamanho como uma manta de Alentejo, dobrado trés vezes, € sobre ele se assentam, com umas almofadas de algodao, redondas © compridas. ¢ outtos panos ricos em que sc en- costam, ¢ alcatifas mui ricas, em que também se assen- tam; porém sempre tém junto de si ou debaixo aqucle pano de alméfega, or estado, Ici e costume. Muitas vezes se en- costam em camilhas (*) de colchetcs (#) de seda, ¢ de panos brancos muito delgados, ¢ sc alguém os vem ver trazem-lhe aquele pano de 14 ¢ pdem-no junto consigo, c, quando vao fora, leva-lho um pajem diante deles dobrado por estado; também tém sempre junto consigo uma cspada, e, quando. se mndam de um cabo para 0 outro, a leva cla sempre na mio. stes reis nfo casam, nem tém lei de casamento, sd- mente tém manceba, que é mulher fidalga, de linhagem de naires, formosa a seu contentamento; estas tém cles aposen- tadas junto de seus pacos, em uma pousada sobre si, mui bem servida; dé-Ihe certa coisa por més ou por ano para sua des- pesa, a qual cles deixam cada vez que se delas descontentam, € tomam outra, Porém, muitos deles, pelo que toca a honesti- dade real, as nao trocam, nem bolem com elas, ¢ entre eles € grande honra ser manceba uma mulher de el-rei Os filhos que cles nelas hao, nio os t¢m por fillios, nem @) Cama ligeira (2) Obra de tecido acolchoado. 121 herdam o reino, nem outra nenhuma coisa de el-rci, smente ‘0 que da parte das mics ho; enquanto sio meninos, sio mui favorecidos dele, como criangas alheias que ele criasse, mas nGo como seus filhos, porque como séo homens nao tém mais honra que a que the vem da linhagem da mac, porém, fazem- -Ihes as vezes os rcis mercés de dinheiro com que se possam manter melhor que os outros naires. Sao lierdeitos dos reis: irmos seus, ou sobrinhos, fillhos de irmas, porque estes hio eles por verdadeiros scus filhos, pot- que j4 sabem quem é sua mic, ¢, isto, por as mulheres nestes reinos serem mui livres de seu corpo, €, por isso, a verda- deira cepa da linhagem dos rcis desta terra jaz nas mulheres, co primeiro filho que a mais velha irmi do rei pare, esse herda o reino, e, assim, todos os irmaos herdam uns aos ou- tros, € quando os nfo ha, herdam os sobrinhos filhos da irma mais velha, e se estas irmas nao acertam de parirem, nem ha herdeiro para o reino, ¢ se el-rei falece sem ele, clas se ajun- tam cm conselho, ¢ clegem por rei um parente seu, € se 0 nfio 4 af, outro qualquer homem que seja para isso, ¢, Por isso, so estes reis do Malabar sempre velhios. ‘As sobrinhas ou irmas que eles tém, de que hi-de sair o herdeiro para o reino, sio mui honradas, bem guardadas © servidas, e tém renda sobre si de que se mantém. e, como a'guma é de idade de doze até catcrze anos, para poder che- gar homem a ela, mandam chamar fora do reino algum man- cebo de linhagem de fidalgos, que 14 hi assinados para isto, mandando-lhe dinheito e d4divas para que venha haver de virgindade aqucla moga. Ele vindo, fazem-The muita honra, festa ¢ ceriménias. como se houvesse de casir; entio cle Ihe ata ao pescogo uma jdia de onro pequena, que cla traz toda sua vida em sinal de the haverem feito aquela ccriménia, para dali por diante po- der fazer 0 que quiser de si, 0 que antes daquilo néo far. Este esté mui bem servido com eld alguns dias, ‘e entio sc 432 torna para sua terra, cntio cla dai por diante toma qualquer bramene que quer, e toma quantos quer, c destes 4 0s filhos. Quando qualquer destes rcis do Malabar morte, queimam- -hos em um rossio com muita Ienha sindalo c aloés, ce, a0 queimar-se, ajuntam todos os sobrinhos ¢ parcntes seus mais chegados, e, assim, os grandes do reino, ¢ privados do rei mor- to; c ha-de estar 0 corpo trés dias esperando por cles, e ali ti- ram a limpo se morrett de stia morte ow se 0 mataram, para acudirem por isso, como so obrigados. E. entio, depois destes trés dias, 0 qucimam c pranteiam, © todos se rapam, da coroa até aos pés depois dele queimado, que Ihe nio fi- cam sendo as pestanas e sobrancelhas, isto do principe até o menor herdeiro do reino gentio, ¢ entéo alimpam os dentes daquela pretidio do bétele, 0 qual nado come ninguém por espaco de treze dias, ¢ se, neste tempo, acham que alguma pessoa o coma, cortam-Ihe os beigos por justiga. E nestes treze dias o principe nem manda, nem governa, nem € alevantado por rei, sendo depois deles passados, espe- rando sz haverd alguém que o contradiga. E, passados, os grandes juntamente 0 fazem jurar de manter todas as leis do outro rei pasado, ¢ de pagar as dividas que ele devia e de trabalhar por ganhar 0 que os outros perderam, e este juramento Ihe tomam desta maneira: metem-lhe na mao es- queda uma espada nua, e a outra direita tém-na posta sobre uma candeia de azeite acesa, de muitas matulas (*), e dentro um anel de ouro, em que toca com os dedos, de maneira que naquela candeia e owro faz seu juramento d2 manter tudo com aquela espada, e, feito, lancam-Ihe sobre a cabega uth pouco de arroz, fazendo grandes ceriménias ¢ adorando contra © sol; logo certos condes, a que eles chamam caimdl, com o ©) Toreidas, 123

Vous aimerez peut-être aussi