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A Produção do Pensamento Ocidental em Nós

Quarto Encontro

Texto extraído de gravação de palestra proferida por Luis


Fuganti, em 22/04//99, na Role Playing Pesquisa e Aplicação
São Paulo. Texto não revisado e reprodução não autorizada
pelo palestrante.

Vamos falar de algumas questões em relação ao pensamento e a ligação que uma certa forma de
pensar tem com o modo de vida ou até uma política no plano social, no plano individual, no plano
econômico ou no plano lógico.
A questão de você ligar o pensamento a uma certa orientação, a uma certa distribuição e a uma
certa hierarquia acaba fazendo com que a gente apreenda uma certa imagem do pensamento que
o ocidente criou para si, uma maneira de viver sedentária e, por outro lado, num outro plano, uma
outra visão, uma outra forma de viver e pensar que seria o modo nômade de ser. Ao designar os
dois planos, o plano de organização transcendente, ao qual a sociedade se rebate e se liga a
poderes que a determinam fora, ou determinam os indivíduos fora, ou criam subjetivações,
produzindo almas e corpos; e ao diferenciar esse plano do plano de imanência dizendo que este
tem uma relação com a vida sem mediação, uma relação direta com a natureza no nível do
pensamento como no nível da vida e essa relação direta faz com que a vida se auto-gere, se auto-
determine, libere uma forma autônoma de gerenciar na medida em que apreende uma ordem
imanente da natureza sem nenhuma ordem transcendente, essa maneira caracteriza um outro
modo de viver e de pensar que acaba se expressando mais adequadamente nessa visão nômade
de ser. O que é o nômade? O nômade é aquele que não se fixa e não tem território, que não se
deixa fixar ou determinar de fora, o que não entra em relações fechadas ou circulares numa
sociedade ou num modo afetivo de pensamento justamente porque a visão dele da vida e do
pensamento é uma visão que torna tola a idéia de se fixar ou se apegar em alguma coisa. Digo tola
porque evidentemente, aos olhos de um ser que se relaciona de uma maneira livre, fluida em devir
com a própria natureza, seria uma bobagem imensa, uma queda, um enfraquecimento
simplesmente se vincular a algum signo exterior à sua própria vida para que fosse determinado por
algum plano externo de organização.
Então essa forma nômade de ser é um estilo de vida que sente que a natureza tem uma
positividade implacável, uma positividade e uma afirmação irredutível, então não há como esse ser
nômade introjetar medos e paranóias em função do que o destino possa lhe aprontar. É um ser
que é essencialmente corajoso no sentido de afirmar o acaso, afirmar suficientemente para saber
que todo lance com afirmação plena é necessariamente positivo. Então essa forma de ver o acaso,
os encontros , de ver a natureza, ela dá a esse ser, a esse estilo de vida, a esse modo de pensar,
uma firmeza, uma consistência, que liberam esse ser ou essa forma de viver de toda fixação ou
limite vindo de fora como guia ou como referência. E mais, dão a esse ser a certeza de que a
salvação se dá na afirmação plena desse acaso.
Isso vai gerar uma visão do mundo, uma distribuição, uma hierarquia e uma orientação
absolutamente distintas do outro modo de viver e de pensar que chamamos aqui de sedentária, na
medida em que essa maneira de viver e de pensar implica uma incerteza e uma desconfiança e
uma acusação ao que nos envolve, a esse ambiente e à natureza que nos envolve, acusação essa
que se revela na medida em que o medo toma conta de nós e que exige, em algum ponto do
nosso inconsciente, uma atitude de recorte e separação, uma atitude de diferenciação do bem e do
mal, uma atitude de recusa de uma parte da natureza e da vida. Essa atitude está ancorada numa
impotência mesmo inconsciente, numa fraqueza em não sentir nem acreditar na realidade da
própria natureza, na realidade plena, na potência do acaso que a natureza nos impõe no plano
existencial.
Então é uma atitude diante da vida que a gente acaba por apreender do ponto de vista da potência
e não do ponto de vista da verdade, porque a verdade, tal como nos foi ensinada, é uma entidade
que estaria isenta de defeitos, faltas ou excessos e cuja função seria nos dar o oriente e a
referência. Além de dar a cada um o que lhe é devido, daria a ele a posição em relação aos outros,
logo uma orientação, uma distribuição e uma hierarquia dos seres absolutamente distintas
daquelas que formam essa imagem nômade com uma distribuição e uma hierarquia de outra
natureza.
A gente descreveu até aqui de uma maneira breve e sumária a filosofia socrática e platônica,
tentando trazer as idéias para o plano político, de poder, uma vez que foram Sócrates e Platão que
inventaram a separação entre o saber e o poder. Então vamos onde a máquina foi montada e
iniciar uma desmontagem em função do mito da neutralidade, da isenção e da separação ou da
transcendência da verdade.
Foram Sócrates e Platão que nos deram um oriente absolutamente novo para o pensamento e a
filosofia. A filosofia nasceu no século VI ac, com a percepção inédita na história do homem de que
algo na natureza ou na sobre-natureza era absolutamente comum. Esse algo escondia a idéia de
ser e essa idéia de ser veio orientar um modo de viver e de pensar segundo a capacidade de
apreender as profundezas da natureza.
Essa atitude grega dos pré-socráticos é um ato inédito na história do homem. Não há precedente
nem no oriente, nem no ocidente próximo que englobou a Grécia. Há vários pensadores, como
Pitágoras, Anaximandor, Parmênides, Heráclito, Zenão, Demócrito, que tinham algo em comum:
acreditar que a natureza tem uma profundidade única, unitária que é a causa de tudo. Ou seja, a
causa não estaria mais nos deuses, não estaria mais fora da própria natureza ou em alguma
entidade que se travestisse de homem ou animal. A causa estaria no fundo da própria natureza e
esse fundo é que vai ser interpretado de formas distintas.
Tales vai acreditar que a água é a causa, é o ser ou a unidade de todas as coisas. Heráclito vai
dizer que é o fogo. Empédocles vai dizer que são os quatro elementos: a terra, o fogo, a água e o
ar, unidos ou separados pelo amor ou pelo ódio. Demócrito vai dizer que são elementos
imperceptíveis e indivisíveis que são os átomos. Átomo em grego significa indivisível. E por aí vai.
Todos eles tem uma orientação para uma profundidade da natureza, abaixo da superfície, abaixo
da terra ou atrás das coisas, que você pode até associar a imagens de cavernas, dos oceanos. O
que está escondido debaixo da natureza é que remete a essa unidade primordial da natureza que
seria o ser, seja ele água ou fogo ou que determinação se queira dar.
Foi Parmênides o primeiro a dizer que isso tudo era o ser. Ele usou a palavra ser pela primeira vez
e fundou a ontologia, que é a busca do ser, a lógica do ser. Agora essa orientação pré-socrática
dizia que, se a causa de tudo está na profundidade, a salvação também está. Ou seja, de onde
tudo vem é a profundidade, para onde tudo vai, é a profundidade. É ela que mantém a superfície
organizada. Ela é a causa da nossa organização.
A partir daí surgiram várias formas de pensamento que interagiram com as formas sociais e
políticas gregas. Seria o estudo do Helenismo, que não vamos fazer aqui.
O que é importante saber é que os pré-socráticos tinham um objeto de pensamento que era o
mesmo objeto da vida e eles, como filósofos que inauguraram o pensamento, diziam que o objeto
do pensamento e o objeto da vida eram um só. Eles nunca separaram vida e pensamento, não
separaram o desejo da verdade, não separaram o corpo e a alma. A alma é um corpo para os pré-
socráticos, é um corpo sutil que coexiste com o corpo orgânico. Na medida mesma em que existe
uma comunidade de causa entre o corpo e o pensamento, o objeto mesmo do pensamento nunca
separa o pensamento da vida. É impossível Ter um pensamento que acuse o corpo ou que julgue
a vida. Você tem uma aliança, núpcias entre pensamento e corpo. Existe uma cumplicidade, não é
uma confusão, mas um jogo lúdico.
O Heráclito dizia que o tempo é uma criança que brinca e joga as peças do jogo para lá e para cá e
ao brincar é que a realidade é tecida. O tempo cria a realidade ,tece o real e se ele tece o real,
envolve tanto o corpo como o pensamento. Não há separação, há uma cumplicidade. Só que essa
aliança não é no modo de conjugalidade, mas no modo de bodas.
O tempo do corpo e do pensamento são diferenciais, no entanto um envolve o outro, um afirma o
outro e o outro ativa o um. O pensamento afirma a vida e a vida ativa o pensamento. O
pensamento tem valores e sentidos porque interpreta, apreende o que é mais real, o que tem mais
valor, o que é mais importante, qual o sentido que a vida deve seguir e a vida busca com
autonomia meandros e limites que ultrapassam essas limitações aparentes que o pensamento cria.
Então a vida ativa e arranca o pensamento de lugares comuns e o pensamento faz a mesma coisa
em relação à vida, tira a vida da situação orgânica, da situação prazerosa da boca, dos olhos, do
sexo, de uma sociedade acomodada. O que é o pensamento? É uma potência virtual que atrai ou
repele, que chama, que seduz, que orienta, que desorienta, que desvia, que cria vias novas para
que a vida crie outros caminhos. Então é o laço mais intenso e afirmativo da autêntica
experimentação. Porque experimentar é ousar, é crescer a partir dos limites, ir tangenciando o
inédito e não fazer experiências em estados controlados como se faz em laboratório. A vida
nômade exige esse tipo de atitude, mas não exige como um dever moral, é uma exigência de
sedução, o desejo quer porque ele se sente muito mais forte, mais alegre, se desenvolve.
Então você tem uma orientação ligada aos elementos, à profundidade e aos corpos. O objeto do
pensamento e da vida é um só. Há uma unidade entre pensamento e vida na noção pré-socrática
do mundo. Sócrates, já atravessado de uma visão religiosa, de uma visão pitagórica da
transmigração das almas ou dos movimentos xamanistas, que acreditam que a salvação não está
na apreensão de um ser profundo na natureza, alí Sócrates só vê demônios, os desvios de uma
vida moral dirigida ao bem e à ascese que seria a única condição para uma salvação. Sócrates
acredita que essa natureza profunda é desordem, é o caos, ela não tem a capacidade, não tem a
potência, não tem a auto-determinação de sí própria para se ordenar em direção a uma forma
harmônica de viver e de pensar. Sócrates acredita e sente uma sociedade em decadência, em
decomposição e sente um certo horror a esse acaso livre e tenta fazer uma divisão e uma
diferença.
O que detectamos nas exposições anteriores é que a filosofia de Platão queria fazer a diferença, a
distinção entre o puro e o impuro, separar o joio do trigo, fazer com que no mundo triunfasse a
parte boa e fosse rechaçada e recalcada a parte má. Não era uma dualidade entre essência e
aparência, entre idéia e imagem, entre o original e a cópia, mas mais uma distinção no plano das
imagens, no plano dos corpos, no plano das cópias, no plano dos sentidos, da matéria ou do devir.
Platão queria dividir a matéria, dividir o acaso, dividir o sensível, dividir os fluxos em fluxos que se
deixavam organizar e fluxos que se subtraiam o tempo inteiro à ação de uma forma superior a essa
natureza corpórea. Sócrates acreditava nisso e tentou delinear uma nova orientação. Ele disse: o
profundo é o que deve ser dominado e orientado, mas a referência e o oriente exemplar disso tudo
está no alto, não está nem numa profundidade corpórea, nem numa superfície das relações e dos
devires, está sim nas alturas, porque é nas alturas, no plano fora dessa natureza do tempo e do
movimento, que as coisas fixas existem e só essas coisas fixas têm o espaço, a dignidade, o poder
e a força de determinar o que deve ser a ordem, a lei e a forma que do mundo aqui de baixo.
Só que Sócrates dispunha de uma dialética muito frágil e de elementos liguísticos genéricos. O
máximo que atingiu foram generalizações universais. Então a maneira como ele se opunha aos
sofistas na cidade grega, que ensinavam a sabedoria política, ou seja, um saber ligado a uma
função de poder, era uma forma de destituir esse mundo do devir das relações de superfície,
dizendo que a verdade não estava nesse ou naquele indivíduo, nessa ou naquela particularidade,
uma vez que toda particularidade era fonte de discórdia, de desequilíbrio, de injustiças, de
fraqueza e de tristeza. O que ele queria era um elemento imparcial que se sobrepujasse às
particularidades, às paixões e às atitudes interesseiras dos indivíduos envolvidos na polis.
O Platão elaborou uma teoria das idéias a partir de uma invenção metódica que envolvia dois
aspectos, o método de divisão platônico tinha o lado dialético e o lado místico. O lado dialético
tinha a primeira ironia platônica, ironia no seguinte sentido: você inventa uma ascese dialética,
porque, ao produzir um diálogo, você vai se liberando das particularidades aqui da terra e
caminhando para objetos genéricos, objetos que não existem no plano real. O que eu sei que
existe é esta ou aquela cadeira, a cadeira em sí não existe, mas Sócrates acreditava que lá estava
a verdade, uma vez que a cadeira é o modelo para todas essas cadeiras existentes aqui e agora. E
assim com todas as idéias. Lá num plano abstrato, num outro mundo supra-celeste, além do céu.
Sócrates acreditava que isso era intelectual e associado à transmigração das almas. Cada alma
tinha uma forma, mas na medida em que existe uma parte que é pecadora, encarnaram e essa é a
expiação, viver nesse mundo, nessa vida é a expiação para o pecado que foi cometido antes da
encarnação. É uma crença religiosa, um mito que leva a isso, mas esse mito está travestido de
uma filosofia já científica: o pensamento que se conduz a sí próprio.
A dialética vai ascendendo de nível em nível até atingir uma ascese essencial. Só que o Sócrates
não chega a elaborar essa teoria. Platão usa o método de Sócrates mas acrescenta algo muito
mais interessante para que o método de divisão dele seja realmente eficaz. Esse algo interessante
é a dimensão mítica do método de divisão, porque esse método de divisão simplesmente pela
dialética leva a uma generalidade que não autentica quem pode ou não receber a atribuição que
ela qualifica. Eu chego a uma definição de político: "o político é o pastor dos homens". Só que é
uma idéia ainda genérica, mesmo que já especificada, é uma idéia que faz com que uma série de
indivíduos interesseiros ou querendo fazer triufar seus interesses particulares venham a dizer que
têm aquela qualidade que aquela idéia gera. Aí Platão narra em seguida um mito, mas é mais uma
ironia dele, porque é o mito que vai dar a forma do modelo para que você fundamente os
verdadeiros pretendentes e destitua os falsos, para que você separe os verdadeiros dos falsos
pretendentes àquele cargo ou àquela função. Então a dialética platônica é uma parte do seu
método. A outra parte é a narrativa mítica, que é uma narrativa circular que faz com que o modelo
imanente ao discurso mítico se exponha enquanto critério para se medir uma pretensão, um valor,
um sentido, uma função social.
Então Platão acredita ainda mais. Ele diz que nas alturas, onde estão as essências, as formas, os
universais, elas se compõe com as causas da ordem no real. Então as idéias são dotadas de uma
escala causal, mas elas não conseguem abarcar todo o real, uma parte da matéria não se submete
nunca à ação da causa formal explícita no modelo e isso Platão vai chamar de simulacros, as
imagens fantasmas. As imagens que se amoldam e se submetem à ação das formas e se deixam
configurar por essas formas, são imagens ícones que se amoldam ao modelo, que ao se rebater
nele recebem, através da semelhança, uma impressão ou um traço tal que determinam o exato
sentido e valor na distribuição de um ser. A distribuição e a hierarquia é dada no ato mesmo do
rebatimento de uma imagem que se orienta para o alto.
Então você tem uma orientação para as alturas, um rebatimento do desejo nesse plano
transcendente de organização, esse plano redistribui o real, diz o lugar que você vai ocupar e a
função que você vai ter, é o sentido e o valor, a verdade de cada ser de acordo com a sua
submissão ou não a esse plano transcendente.
É um plano que distribui, hierarquiza e orienta o desejo e o pensamento para que ele esteja de
acordo com a realidade que o Platão diz ser a mais sublime, a mais bela, a mais harmônica, a mais
organizada. Ou seja, isso tudo exprime algo chamado "o bem", que é o ser em que Platão acredita.
Platão diz que o ser se chama "o bem", que é aquilo que leva a vida, o desejo e o pensamento
para uma ordem de equilíbrio, de harmonia, de justa posição, de justo meio, de justiça. No fundo
ele está criando um sistema de justiça porque ele sente na vida e no seu pensamento a injustiça
que o envolve através da sociedade em que ele vive. A sociedade é injusta, é uma sociedade da
falta, da injúria, da morte, da decadência. Ele acredita que só se recupera a ordem na medida em
que se dá a justa medida, que se dá os repousos, as pausas, os seres e as qualidades e as
quantidades a todas as entidades que aqui vivem.

Até que ponto isso produziu só morte? Até que ponto essa não foi a forma que o homem
conseguiu para produzir não só um mecanismo de sobrevivência, mas até uma evolução?
O Nietzche dizia sempre que o Estado não tem energia própria, ele parasita suas energias de
vontades afirmativas. Eu atribuo os avanços da vida, da ciência e da humanidade a forças ativas e
vontades afirmativas. Não tem nada a ver com o Estado ou a técnica no sentido que o Estado
forneceu. A visão de que um sujeito, ou que esse saber socrático, platônico, aristotélico,
cartesiano, kantiano, levaram ao desenvolvimento da ciência eu acho que é uma visão mítica,
porque tudo o que eles dizem ser a causa ou a essência da natureza, dos devires, das
composições e decomposições e dos agenciamentos, são ficções, não são realmente as causas.
Agora, você pode dizer que talvez eles tenham gerado um meio para o desenvolvimento da
ciência, mas não a causa e o princípio científico. Eu acho que eles contribuíram para dar uma
visão enfraquecedora da vida e do acaso, na medida em que todos eles dividem o acaso em duas
partes, um acaso controlável e um incontrolável, um bom e um mal, um que tem ordem, outro que
não tem ordem, enquanto que a vida e a natureza não operam uma seleção do bom e do ruim. O
bem e o mal são meros efeitos de relação entre partes de uma superfície, não têm substância
ontológica e esses pensadores acreditaram na substância ontológica do mal, ou da desordem, ou
do caos. E mais, com essa visão acovardada em relação ao acaso, eles não incentivaram a vida à
sua identificação máxima, ao máximo que ela pode chegar e esse máximo nunca é um limite,
porque você chega nesse limite e cresce a partir dele, tem uma energia nova. Há um moto
contínuo em relação ao qual eles fizeram sempre um movimento de aprisionamento ou retenção
desses elementos autônomos singulares. Essas singularidades deveriam se atrelar a um plano
maior para que fossem produtivas. Então eu não acredito que esse pensamento, de uma maneira
rigorosa, tenha levado a sociedade a se desenvolver.
...
O que os sociólogos denominam o nascimento da história, a 10000 anos atrás com o nascimento
do Estado. O Nietzche diz, "início da história, fim da cultura." Depende do ponto de vista o que é
história, o que é cultura, o que é processo civilizatório. Por exemplo, a visão mais comum de
processo civilizatório: o homem submetido a um conjunto de leis que rege todos os homens, todos
os homens como iguais. Isso foi inventado nas cidades-estado gregas. Antes disso têm-se estados
despóticos.
...
O que você entende por elemento civil?
Existem palavras que são vazias, que não interessam, o que interessa é o sentido da coisa. Eu
posso dizer que Deus, como dizia Artaud, é um cú de rato morto, uma buzina de bicicleta. O que
interessa é o que está acontecendo com a vida, com os desejos.
...
Então Sócrates e Platão criaram essa orientação para as alturas, essa distribuição de hierarquia de
seres. Esse modo de fixar as funções, os sujeitos e os objetos numa sociedade. A prova
fundamento é o modelo do mito circular. A partir daíi ele selecionou a matéria, a matéria capaz de
submeter à ação da forma é que era a matéria dócil, a imagem ícone, capaz de ser ordenada em
uma sociedade, seja sob o aspecto social, político, econômico, social ou até religioso.
Aristóteles institui ou desenvolve uma relação aparentemente diferente. Ele acredita que Platão
não tinha elaborado o verdadeiro método da divisão, que ao método platônico faltava um termo
médio, só que ele acreditou que o método platônico se resumia à dialética, e se isso fosse
verdade, faltaria o termo médio, do qual Aristóteles foi o grande inventor. O termo médio é o
elemento que vai submeter a diferença, só que ele vai submeter uma diferença que já está
domesticada. As diferenças loucas, demoníacas, os simulacros, não entram nessa divisão, são
considerados apenas acidentais.
Sócrates não vê o mundo como imagens ícones e simulacros, vê o mundo como um conjunto de
estados. O mundo é físico feito por uma entidade substância e uma substância feita de matéria e
forma. Só que a única coisa que Aristóteles apreende como essencial é a forma, porque a forma é
o único elemento capaz de subversão. Ele exclui os acidentes como algo irrelevante. A matéria
está ali simplesmente para receber a forma, é simples potência de atualização de uma forma e a
forma é que diz a essência do indivíduo. Só que a forma só dá elemento universal, então nunca
atinge o indivíduo enquanto indivíduo. O saber em Aristóteles nunca é individual, sempre é
universal. O saber individual vai nascer com a distância (?), a investigação das almas, as práticas
de confessionário e com o próprio capitalismo.
Agora, o saber universal que ele inventa como desenvolvimento do sistema de representação, ele
abarca no máximo, no plano mais específico, uma espécie, no plano mais universal (?). Por
exemplo, o homem é um animal racional e esse é o único saber universal que importa do homem,
o resto é acidental, irrelevante. Aristóteles tem a mesma visão moral de que as diferenças tem que
ser selecionadas através de uma semelhança na percepção e esta vai conjugar uma postura de
uma entidade chamada juízo e vai fazer com que o múltiplo, a multiplicidade diferencial se submeta
a uma unidade essencial. Esta unidade essencial é novamente o bem, ou seja, pode-se associá-la
ao Estado, ao patriarca, ao ego.
O Aristóteles é um grande classificador, ele quer classificar, distribuir realidades, estabelecer
hierarquias e orientar o pensamento e a vida segundo o modelo de representação que ele monta,
acreditanto que Platão não tinha entendido direito como isso se fazia, porque Platão não tinha o
método da divisão com o chamado termo médio. Agora, a gente viu também que, no plano físico, o
indivíduo é uma substância feita de matéria, forma e acidentes e no plano lógico se expressa uma
das três faces da alma. O plano físico é apreendido pela alma através da alma sensitiva e da alma
meditativa. Elas colhem o fantasma sensível de marcas impressas na nossa alma através da
relação com o mundo. Dessa colheita é feita uma seleção, uma abstração através da percepção de
semelhanças e através da semelhança eu obtenho o que é comum, através de uma faculdade que
tem a minha alma que se chama juízo.
O juízo tem dois olhos ou duas faculdades: a do senso comum e a do bom senso. O senso comum
é exatamente essa capacidade de ver o que há de comum através das semelhanças e da
eliminação das diferenças. O bom senso é a orientação para a finalidade que esse senso comum
tem.
Então a finalidade do homem como animal racional é a racionalização da matéria(?). A finalidade
do olho é a visão, a do ouvido é a audição e por aí vai. A visão aristotélica de mundo é uma visão
orgânica, porque ela é cerebral e o cérebro é um órgão, ela não é de pensamento. É por isso que o
Spinosa diz que a filosofia aristotélica não passa de imaginação, porque a imaginação é tudo o que
a nossa sensibilidade percebe, isso compõe a imaginação, a audição, a visão e todas as nossas
sensações.
O Aristóteles desenvolve isso, o senso comum. O senso comum vai ajudar a organizar o ser
através da abstração das semelhanças e da segregação das diferenças e das alteridades. Então
esse seria o plano lógico aristotélico. O plano metafísico é o plano em que ele diz ser, em primeiro
sentido, uma substância fora do mundo, uma substância metafísica. Só que essa substância tem
outros elementos diferenciais.
...

O ser não é um gênero. Você tem a diferença que ultrapassa os gêneros através da diferenciação
das próprias categorias. A categoria ela é num sentido último e intuitivo do ser, só que Aristóteles
vê dez sentidos, um que é a substância e outro que é a qualidade, outro que é a quantidade, outro
que é o movimento, etc. Essas categorias na realidade são uma distribuição do ser, mas essa
distribuição só virtualmente dá um mesmo sentido ao ser, porque uma vez que ela é atualizada em
substânica, em qualidades, quantidades, vai haver uma hierarquia, uma valoração e se há uma
valoração ela não possui o ser no mesmo sentido. É analógico. O ser da qualidade não é o mesmo
ser da quantidade, não é o mesmo ser do movimento, não é o mesmo ser da substância, então é a
substância que tem o ser em primeiro lugar, depois se forma uma hierarquia. Então Aristóteles
forma uma distribuição do ser e uma hierarquia assim como mantém a orientação do desejo e do
pensamento para as alturas, porque esse ser ainda permanece no plano das alturas, da
representação, mesmo que essa representação tenha a altura da psiqué humana, mas é uma
altura, uma altura que se descola do real enquanto superficial e enquanto profundo.
As dimensões do pensamento aristotélico são as mesmas de Sócrates e Platão. Ele se descola de
uma profundidade, de uma superfície em direção a uma altura porque ele permanece um ser
moralista recortando o acaso em bem e mal, ele quer classificar essa parte harmônica e
equilibrada da vida levando a essa grande unidade e eliminar no plano dos acidentes a parte que
seria a diferença pura, a singularidade pura, o desejo, os fluxos da própria natureza.
Então esse plano transcendente de organização orienta a vida e o desejo, distribui o ser e
hierarquiza funções, cargos, punições, qualidades para todos os seres. Esse plano adquire sua
eficácia num modelo chamado juízo e o juízo é uma visão míope que se tem da realidade porque
acredita-se que o ser não se atribui no mesmo sentido a todas as coisas, que há um ser que é
diferente de outro e que um ser, ao se dizer de um jeito, faz com que aquilo que recebe a
atribuição tenha um status diferente daquela outra entidade que recebeu outra atribuição, com
outro sentido do ser. Isso atravessa uma ordem política, uma distribuição de poder, de funções e
de verdades encima de uma sociedade, de uma filosofia ou de uma classificação de seres.
Essa classificação, na medida em que é feita por uma entidade chamada juízo, ela se baseia numa
sensação de comunidade já herdada do olhar grego da semelhança, que já foi introjetado como
natural, ou seja, introjetou-se a visão da semelhança como um mecanismo cultural e social, ele já
está imbuído desse mito, desse estado de corpo e de alma que se projeta nas coisas e vê a
comunidade dos seres ou das substâncias ligada a uma forma universal que emana de uma forma
absoluta que seria o próprio ser. Então você tem de um lado um ser que simplesmente tem um
sentido único e de outro uma realidade formal específica, a forma da espécie, que também tem um
sentido único para todos os indivíduos que pertencem àquela espécie. Então há uma derivação,
uma unificação até uma forma específica e esses indivíduos devem se rebater sobre ela. Daí o
rebatimento nesse plano de transcendência.
Na medida em que eu tenho a definição da forma específica, eu também tenho a causa final da
espécie, o sentido último, a orientação última daquela espécie. Eu tenho uma finalidade, que é o
bom sentido, o bom senso, a outra faculdade do juízo. Então é através do bom sentido, de uma
orientação para a unidade e do senso comum, uma indiferenciação comum a todos os seres
diferenciais, que eu organizo, classifico e alojo esses seres de transcendência com esses seres de
distribuição, numa orientação, numa hierarquização, que vai servir aos Estados sedentários e à
ciência sedentária, ou seja, é uma captura de desejo através de uma máquina representativa.
Aristóteles está desenvolvendo o que o Platão já tinha fundado, o domínio da representação. O
que é que o Platão fez? Ele disse: essa realidade não basta a si mesma, ela precisa de uma
entidade absolutamente verdadeira e real para ordená-la. Então essa outra entidade vai
representar o real, vai re-apresentar e re-ordenar o real. Platão fundou e deu os limítes das
imagens-ícones, da identidade e da semelhança. Aristóteles vem e diz: sim, identidade no conceito
indeterminado, semelhança no objeto percebido, oposição entre os predicados, que é o termo
médio que ele inventou para desenvolver o silogismo, e a analogia nos sentidos do ser, nos dez
sentidos últimos do ser, a analogia entre os gêneros supremos.
A analogia permite a separação entre os ser e o devir. O devir é análogo, nunca é o ser. Aristóteles
mantém a divisão entre o ser e o devir, mantém e desenvolve a representação, que é exatamente
a máquina que separa o ser do devir e congela as funções, os objetos e os sujeitos. Num pré-
socrático, o ser está sempre em devir. É famoso o enunciado de Heráclito: "o mesmo homem
nunca entra no mesmo rio". Então essa visão de Aristóteles dizendo que o bem está na razão e a
razão é sempre universalizante e opera através do juízo que tem as faculdades do bom senso e do
senso comum, reafirmam um poder imperceptível e escondido atrás desse plano de
transcendência que Aristóteles está desenvolvendo. O poder da separação do singular, do
diferente em relação àquilo que ele pode. Ele diz: a verdade de uma singularidade, de uma
diferença, é universal, é a sua forma universal. Você é um animal racional. Ele diz a sua essência,
como você deve se comportar e agir e a tua finalidade. Ou seja, por trás da neutralidade do saber
existe um poder, existe uma causa agindo.
...
O Spinosa descobriu algo chamado noções comuns, que não são universais, que não são
generalidades, são noções comuns. O que é? É uma maneira de ser que é comum a uma
pluralidade de relações. É diferente uma generalidade de uma noção comum. Vou falar disso
através dos estóicos, Spinosa é para depois.
...
Toda luta de Nietzche é para dizer que há uma inversão da realidade. O que é secundário,
acredita-se ser primário e original, só que isso pode ser muito nocivo na medida em que embota a
realidade originária. Você é contra o que? Contra essa posição de usurpação, mas ela como
elemento secundário é uma organização prática. Lucrécio(?) dizia: o cérebro não foi feito para
pensar, foi feito para organizar, quando se põe a especular está usurpando uma função que não
lhe compete. Ele é incapaz de especular de uma maneira autêntica e livre. O cérebro é função
orgânica, ele gerencia os nossos órgãos, comanda e os nossos órgãos estão acoplados a uma
organização social, então há uma relação entre órgão sociais e órgãos individuais biológicos em
funções e trocas de funções. É uma ecologia.
Essa organização só é representação na medida em que eu acredito que ela é a base da
realidade, aí eu passo a reapresentar a realidade através desse modelo orgânico, é uma re-
apresentação. O que é a representação ? É uma substituição do real, você re-apresenta.
O que vale para Aristóteles no mundo não são os indivíduos todos que ele vê, mas o que há de
comum entre eles, o que é universal. Então ele substitui todos os indivíduos pelo universal. O
universal é que vale.
O que eu quero chegar é o seguinte: o pensamento e a singularidade não são nem pessoais, nem
individuais, nem universais, nem particulares, são pré-individuais, são individuantes. É galgar
aquilo que produz o indivíduo, ir na causa de fato e não numa imagem de causa, na individuação e
na singularidade. A singularidade é um elemento que atravessa tanto o universal, como o geral,
como o particular, como seja o que for. Ao se repetir, o singular produz um efeito de generalidade,
mas a generalidade não é nada mais do que um simulacro de repetição do singular. Há uma
inversão de realidade.
Isso trouxe todo um desenvolvimento, é verdade, mas o que estou dizendo é que por detrás disso
há uma realidade essencial que é muito mais bela e poderosa do que você ficar se ligando a esses
efeitos simulados, secundários.
O Nietzche dizia: "Real?? O real não existe, o real é um produto do negativo, o real tem que ser
inventado, tem que ser produzido", então não acredite no que está aí, acredite... Aí vem o Delleuze
e diz para o Apolinaire: "é preciso acreditar no mundo novamente". O que ele quer dizer com isso?
Acredite no devir, no acaso, abrace o acaso com tudo o que ele tem de bom ou de mal. Não
recuse uma parte dele de uma maneira covarde dizendo, "não, esta parte é perigosa, ela pode me
aniquilar". Entenda a natureza, pense, veja qual a essência da natureza e não se refugie numa
imaginação delirante.
...
O Spinosa dizia: é um estado natural, nós estamos diante de um acaso, a nossa alma flutua,
enquanto ela flutua a gente não entende o que acontece e basta não entender para julgar, basta
não entender para moralizar.
Os judeus criaram uma tábua de valores para conduzir o povo a formar uma sociedade. Foi uma
forma de sobreviver. Eles criaram ícones que tinham várias noções comuns envolvidas (não
matarás...) para que? Para que não houvesse discórdias. Você está no plano da obediência, da
moral. Aquilo foi revelado a Moisés por Deus. Esse Deus vai levar o povo a um poder, à
constituição de um Estado judaico. Isso poderia ter sido só um mecanismo de transição, no entanto
não foi. Os homens acreditaram que aquilo era mesmo a palavra de Deus e que Deus tinha
alguma coisa para falar, acreditaram em um Deus delirante.
O Spinosa explica isso muito bem. O Estado funciona através de esperança e medo. É o ratinho do
Skinner.
...
Então o que ocorre?
Os Estóicos inauguram uma nova orientação para a vida, para o desejo e para o pensamento.
Havia uma orientação dos pensadores pré-socráticos em direção à profundidade. No objeto
mesmo do pensamento e da vida se dava a união entre o desejo e o pensamento. Sócrates, Platão
e Aristóteles introduziram um corte entre ser e devir não para dizer que o essencial era o ser e o
aparente era o devir, mas para separar dois tipos de devires, o devir mediano, que funciona dentro
das normas e da lei e o devir que não se submete. No fundo era esse o objetivo platônico: fazer a
diferença entre dois tipos de vir a ser, ou devir, ou de fluxos.
Os estóicos vão dizer outra coisa. Vão dizer: sim, a causa é o ser, mas o ser são os corpos.
(Retornaram aparentemente aos pré-socráticos). O ser é fogo, o fogo primordial. Esse é o ser dos
estóicos. Cada tensão desse fogo é uma parcialização, é um corpo. Esse fogo se divide em
matéria ativa e matéria passiva, aquele que recebe a ação de uma matéria ativa e uma matéria
ativa que age sobre uma matéria passiva, mas no fundo é uma grande unidade.
Tudo o que existe e todo o real é corpo. Tudo o que é causa é corpo. A causa está no corpo. Mas
o corpo causa o que? A causa é causa de que? A causa é causa de efeitos, mas efeitos do corpo?
Não. Aí está a novidade dos estóicos.
Os estóicos vão introduzir um corte entre essa profundidade e um plano que não é comum, não é
ser, mas é superficial, um plano que não é corpo, que não é corpo, mas incorporal, um plano que
não tem qualidade sensível, não é substância, mas é atributo da qualidade, da quantidade, da
substância.
O ser é corpo. Tudo o que existe é o ser. O que seriam os efeitos então? Os efeitos são insistência
ou subsistência, mas nunca existência, eles não são seres, eles são extra-seres. Eles são efeitos
de superfície dos corpos que estão sempre em causa. No fundo do ser ou dos corpos só existem
misturas, os corpos estão em relação. O corpo se quer isolado como substância, não há
substância, a idéia aristotélica. Substância é algo em sí, para os estóicos nada existe em sí, tudo
existe em relação. O ser é corpo, o incorporal não existe, no entanto ele é real e aí está a questão
diferencial dos estóicos, a superfície de relações que eles estão inaugurando. A superfície vinha
sendo delineada pelos sofistas, cínicos e megálicos.
...
Ao dizer que os corpos estão em relação, vão dizer que os corpos estão em mistura, tudo o que
existe, existe em mistura, as partes do ser se interagem, se atravessam, se penetram. O ferro é
penetrado pelo fogo e recebe uma qualidade de quente, de vermelho, mas na medida em que o
fogo atravessa ou penetra o ferro, algo como efeito de superfície surge entre os dois que é o
avermelhar, o esquentar. É o puro atributo verbal infinitivo que envolve esse corpo num devir
explícito.
Esse atributo incorpóreo é agora toda a idealidade. Nenhuma idéia mais nas alturas. As idéias
platônicas, aristotélicas, socráticas caem no plano da idealidade superficial. Tudo é acontecimento
de superfície. Acontecimento não é fato, não é uma qualidade que eu atribuo, uma quantidade,
algum atributo de cor, acontecimento é uma maneira de ser e não o próprio ser. É uma maneira de
ser para o ser e um sentido no pensamento ou na linguagem. O acontecimento vai ter duas faces,
uma voltada para os corpos, outra voltada para o pensamento ou para a linguagem.
Esses extra-seres agora abarcam toda idealidade, idéias que, por sua vez, não existem, mas
insistem e subsistem, essa dimensão é uma dimensão estéril, impassível. O corpo age e padece, o
acontecimento nem age nem padece, ele é impassível. O corpo causa movimentos, composições e
decomposições, o acontecimento é apenas efeito dessas composições e decomposições, logo se
a idéia está no acontecimento, ela não é mais causa de nada. Eu destituo o platônico e aristotélico
das idéias como plano de causalidade e de poder e digo que ele é estéril, impassível, é mero efeito
de superfície.

Ele é mero efeito de superfície e, no entanto, ele é muito mais porque ele é o campo de imanência
e de virtualidade que abre o corpo para o vazio, que abre o corpo para o tempo. Os estóicos
dizem: os primeiros, os incorporais(?) iniciais são o vazio, que não existe, mas que é real, e o
tempo, que não existe, mas que é real, e tudo o que existe é o corpo. A realidade não se reduz à
existência. Isso é fundamental pois vamos estar agindo muito no plano da potência e da
virtualidade. O virtual é real e não é atual, o atual é o que existe, o virtual é real, mas não existe.
Para os estóicos, tudo o que existe é o corpo e as sensações do corpo.
Dois incorporais que existem, mas não são reais, e o corpo ou o ser presente, envolvido pelo
tempo e pelo vazio. Eu disse o ser presente porque presente é sinônimo de existente. Tudo que
existe é presente, mas um presente limitado. Em geral nós identificamos o atual e o anterior, o
imediatamente anterior, é o elemento passado e o posterior é o elemento futuro. Espacializamos o
tempo. O que o próprio Einstein fez? A relatividade é a espacialização do tempo, mais do que isso,
porque o tempo tem realidade ontológica própria, ele não é intervalos espaciais, não é feito de
intervalos.
Então os estóicos dizem que uma parcialização de um corpo que é presente não significa que está
em relação a outro corpo em passado ou em futuro, mas que os outros corpos simplesmente
abarcam um presente maior até o limite do envolvimento absoluto da extensão dos corpos, onde o
ser está envolto, que forma o presente absoluto. Inclusive aí se desenvolve a arte da adivinhação,
que é a dilatação de um tempo que é sempre presente. É uma hermenêutica praticada pelos
adivinhos.
O corpo, na medida em que é envolvido pelo vazio, gera um outro efeito incorporal que se chama
lugar e, na medida em que é envolvido pelo tempo, que não é presente, é um tempo aiônico que é
passado e futuro ao mesmo tempo, esse tempo aiôn, ao se relacionar com o corpo gera um
atributo, um elemento incorporal chamado acontecimento.
Então você tem corpos que se parcializam no vazio e ocupam um lugar, que são envolvidos pelo
tempo e geram acontecimentos. Nenhum corpo sequer está fora de acontecimentos e de lugares,
de tempo e de espaço, todos eles estão envolvidos e é este envoltório, esta casaca, este extra-ser
que é a condição do próprio viver, é a abertura do ser no devir. Então ser e devir estão colados, ser
de profundidade e um devir de superfície, causa em profundidade que se expressa numa
superfície(?). Uma potência de profundidade que se efetua na superfície. Este é o mundo estóico.
Absolutamente distinto do mundo platônico.
...
Isto é século 4, 3 e 2 antes de Cristo, mais século quarto.
...
Aion é um termo grego que designa tempo. Há um outro termo grego que designa tempo que é
cronos, é uma entidade mitológica, um Deus. Os estóicos dizem que cronos é corpo, é o tempo
presente, para diferenciar do aion.
...
Os principais estóicos são Zenão, Cleanto e Crizipo(?). Depois há os estóicos romanos, depois de
Cristo, Sêneca, Cícero, Marco Antônio.
...

Eles não vêem limite e lei nos corpos. Na natureza tudo é legítimo e possível porque, no fundo, só
existem misturas de corpos e essas misturas se dão de acordo até com uma ordem, uma ordem de
causa, mas os sábios não atingem o encadeamento pleno de todas as causas, no máximo eles
sabem que existe uma necessidade de encadeamento de causas que se chama destino.
A lógica estóica vai ser fundada nessa superfície. O que é a lógica estóica? Eles fazem distinções
entre representação sensível, representação racional e expressão, ou dialética (que não tem nada
a ver com aquela que falamos em Sócrates e Platão). A representação sensível é uma impressão
que o meu corpo sofre ao se encontrar com outro corpo e essa impressão, ela envolve a causa
externa, ela envolve a presença do outro corpo, ela é um signo em mim, uma re-apresentação
sensível, um signo ou um traço sensível do objeto que me afetou ou que me alterou ou que causou
alguma modificação em mim. Depois eu tenho a representação racional que se assemelha ao que
Spinosa chama de noção comum. A representação racional é uma apreensão de comunidade de
relações que faz com que eu selecione relações que interessam e exclua relações que não
interessam, que vem a destruir ou ser nocivas àquela comunidade ou àquela conjugação.
Essa representação racional é operada por um assentimento. Eu tenho um assentimento que seria
uma espécie de visão de que aquilo é comum ou não a certa relação, a certa composição, a certa
comunidade. E a dialética, que tem o sentido de desenvolvimento linguístico de relações
incorporais, na realidade são atribuições que dizem as maneiras de ser dos corpos. Para um
estóico, o enunciado "a árvore é verde" é um enunciado morto, vazio, é um enunciado que diz: a
qualidade da árvore, verde, é um corpo, a árvore é um corpo, verde pertence a um corpo chamado
árvore, uma qualidade física da árvore. "O fogo é vermelho" - é uma qualidade física do fogo. O
estóico não vai dizer "a árvore é verde", vai dizer "a árvore verdeja".
"O homem é um animal capaz de andar", diria Aristóteles. Os estóicos dizem "o homem anda, o
homem corre". Dão um nome próprio, nome de uma singularidade e não de uma generalidade, não
de uma espécie, e um atributo incorporal que abre aquela qualidade, aquele corpo físico a um devir
. "A árvore verdeja", "a criança brinca", "o homem corre". Correr, brincar, verdejar, são atributos, ou
extra-seres, maneiras de ser do ser.
Eles não diriam "penso logo existe", diriam "estou pensando, penso, a coisa pensa". Algo pensa. É
sempre algo em relação, algo em devir, um corpo em devir, algo em fluxo, algo em ação. O verbo,
o que é? É o modo da ação.
...
É um infinitivo, ele abre a ação para um devir. O infinitivo não é presente, ele vai para o passado e
o futuro ao mesmo tempo. Lewis Carrol: "Alice cresce". Significa que Alice é maior do que era
antes e menor do que será, mas ela não é menor ou maior no mesmo tempo, é ao mesmo tempo
que ela se torna maior ou menor. Ela não é, ela se torna. Então o tornar-se, o vir a ser, é que está
na linha do aion.
...
O Zen é afinadíssimo com o elemento estóico. É a mesma maneira de ver o mundo. Ao invés de
você se ligar ao bom senso e ao senso comum você se liga ao paradoxo do tempo. Você se abre,
vive em vários sentidos ao mesmo tempo e não no bom sentido do bem.
...
Os estóicos criam uma superfície, os pré-socráticos não têm essa superfície de relação com uma
instância autônoma e os pré-socráticos fazem um corte entre a causa e o efeito. Os efeitos se
ligam a efeitos e as causas se ligam a causas. Os efeitos remetem a acontecimentos, ainda que
envolvam corpos, mas os acontecimentos são quase causas porque as causas só são os corpos.
Para os pré-socráticos as causas são corpo e os efeitos também são corpo. Eles não detectam o
elemento incorporal.

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