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NAS ENTRELINHAS DA ESCRITURA

Uma leitura (des)construtora dos processos de criação das escrituras de Uma


aprendizagem ou o livro dos prazeres e Água viva
NAS ENTRELINHAS DA ESCRITURA Uma leitura (des)construtora dos
processos de criação das escrituras de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
e Água viva
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação — Estudos Literários da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos para a obtenção do grau
de Mestre em Letras — Teoria da Literatura, elaborada sob orientação da Profa. Dra. Vera Lúcia
Andrade.
BELO HORIZONTE Faculdade de Letras - UFMG 1997
Dissertação aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
_____________________________________________ Profa. Dra. Vera Lúcia Andrade - UFMG
Orientadora
_____________________________________________ Profa. Dra. Eneida Maria de Souza -
UFMG
_____________________________________________ Profa. Dra. Haydée Ribeiro Coelho -
UFMG
___________________________________________
Profa. Dra. Else Ribeiro Pires Vieira Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Letras
- Estudos Literários - FALE/UFMG
Belo Horizonte, de de 1997

AGRADECIMENTOS
Vera Lúcia Andrade, pela orientação amiga, segura e produtiva.
Paulo Sérgio Nolasco, pela colaboração.
Pais e irmãos, por tudo.
Professores e colegas do Curso de Pós-Graduação em Letras da UFMG.
Geraldo M. Martins e Cristina Ávila, meus amigos.
Ronaldo, Lyslei e Eliane, pela amizade.
CNPq, pela concessão da bolsa de estudos. Pois que dedico esta coisa aí ao Paulinho.

RESUMO
Este trabalho propõe uma investigação do processo operacionalizado por
Clarice Lispector na construção das escrituras dos livros Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres e Água viva. Através da apropriação de seus textos-fragmentos (crônicas),
por um exercício de jogo e montagem, a autora trabalha seu projeto literário até o limite
textual. Tal projeto é mais do que analisado, desmontado, com a finalidade de reconhecer, em sua
fundação, a assinatura daquele que o arquitetou na prática do papel.
SUMÁRIO
TODOS OS COMEÇOS, O COMEÇO .............................................................. 8
CAPÍTULO 1 - LITERATURA, ESCRITURA OU TEXTO –
O LUGAR DO AUTOR/LEITOR NA MODERNIDADE ................................ 14 Autor/leitor no
cenário escritural ............................................................................ 19 Clarice Lispector: um autor
que se inscreve ........................................................... 27
CAPÍTULO 2 - ESCRITURA E ESCRITURAÇÃO –
A PRÁTICA ESCRITURAL DE CLARICE LISPECTOR ............................. 45 A assinatura e a
grafia da escritura ......................................................................... 55 Clarice Lispector: quando
escrever é lembrar ou a escritura da não-memória ....... 68 Uma aprendizagem escritural ou o livro
dos prazeres da tradução ........................ 82 Cenas de uma marcha escritural
............................................................................. 91
CAPÍTULO 3 - CLARICE LISPECTOR – UMA PRÁTICA DE
DESCONSTRUÇÃO ESCRITURAL ................................................................. 101 Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres – uma aprendizagem escritural ou a escritura em palimpsesto
................................................................................. 109 Água viva – uma fragmentação escritural
............................................................... 177 Fragmentos achados e perdidos
.............................................................................. 188 Nunca lerás o que escrevo
...................................................................................... 233
TODOS OS FINS, O FIM .................................................................................... 239
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 245

TODOS OS COMEÇOS, O COMEÇO


Entender é a prova do erro.
Clarice Lispector Escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à
confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou
escrever é realizar um ato de citação. A citação representa a prática primera do texto, o fundamento
da leitura e da escrita: citar é repetir o gesto arcaico do recortar-colar, a experiência original do
papel, antes que ele seja a superfície de inscrição da letra, o suporte do texto manuscrito ou
impresso, uma forma de significação e da comunicação lingüística.
COMPAGNON. O trabalho da citação.
Passados vinte anos (1977-1997) da morte de Clarice Lispector, muita tinta
ainda corre no papel a despeito de sua produção, e, conseqüentemente, sobre a própria
escritora, uma vez que ela, ao escrever, também se escrevia nas entrelinhas da escritura,
deixando na grafia não só as pegadas de tal prática, como também daquele que a praticou.
Desse modo, ao estudarmos aqui o processo de criação operacionalizado por Clarice, um
corpo, paralelo ao corpo escritural, se levanta e se apresenta no cenário do texto: um
corpo, bem entendido, aquém e além do real, porque advindo completamente do ficcional,
mas que, por "uma lembrança circular", me faz lembrar da imagem-corpo do escritor ali
interposto que trago comigo enquanto sujeito-leitor de sua obra.
Paralelo, ou concomitantemente, ao corpo escritural, um corpo autoral se diz,
constituindo ambos a "prática de escrever" que conceitua o que vem a ser escritura, a qual
se resume em tal prática. Não é por acaso que Barthes, em sua Aula, diz:
Entendo por literatura não um corpo ou uma seqüência de obras, nem mesmo um setor de
comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever.1
Seguir as pegadas de tal prática é o que pretendemos fazer neste trabalho. Com
base na leitura da construção das obras Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e
Água Viva procuramos, com um certo cuidado e sem no entanto querer abarcar uma
totalidade, verificar como se dá sua organização material no papel. Tomando como base o
que disse Compagnon, de que o texto é a prática do papel,2 lemos essas obras que
constituem o corpus deste trabalho da seguinte forma: a primeira enquanto uma escritura
em palimpsesto e a segunda enquanto uma escritura em fragmento. Tanto numa quanto
noutra, teremos os textos-crônicas como suporte para a leitura empreendida. Semelhante
ao gesto da autora de recortar-colar (reescrever) os fragmentos para construir as escrituras
de tais obras, praticaremos — na leitura do texto — o trabalho de grifar os fragmentos re
encontrados no corpo das escrituras. Tal trabalho, além de repetir num tempo a posteriori
a prática da autora, é o próprio sentido da leitura buscada.
Perguntar como um texto literário se arquiteta e se diz é um trabalho
incansável, diríamos mesmo impossível, porque a toda investida ele nos remete a um
centro sem centro, isto é, a ele mesmo. O texto clariceano não desenha um caminho a ser
seguido pelo leitor. Antes, apresenta-se, para quem dele se aproxima, como um certo
desconforto, justificando que a escritura está o tempo todo voltada para si mesma, e é o 1 BARTHES.
Aula, p.16-17.
2 COMPAGNON. O trabalho da citação, p.13.
seu próprio fantasma. Sem ocultar um sentido, e esse pouco nos interessa no momento do
trabalho, as escrituras das obras em estudo se apresentam em sua materialidade, enquanto
grafia no papel. Será por aí que se desenvolverá a nossa trajetória leitural: procuraremos
ler, nas entrelinhas das escrituras, outros textos da autora ali justapostos e sobrepostos,
colados e reescritos, rasurados mas não apagados totalmente. Enfim, repetindo a prática
de escrever do escritor na prática de ler do leitor, praticaremos o mesmo trabalho com o
papel, lugar onde construímos um mundo-texto à nossa imagem, mundo esse ao qual
pertencemos e de que não podemos mais nos desfazer, sob pena de perder nossa
identidade de papel, mas identidade.
Como muito já se escreveu sobre a produção de Clarice, quer seja no Brasil ou
no exterior, nosso texto se faz montagem de fragmentos teórico-críticos e de fragmentos
da autora, como forma de manter a perspectiva leitural, ou recorte textual, que norteará
nosso objeto de estudo. Desse modo, encontram-se nas notas de pé de página do nosso
texto as reverências e os reconhecimentos que fazemos não só aos estudiosos da autora
que, de certa forma, por meio de seus ensaios, dão continuidade à sua produção, como
também marcaremos nossa perspectiva leitural, centrando nosso olhar crítico, sobretudo,
em Barthes, Compagnon, Derrida, Leyla Perrone-Moisés, Eneida Maria de Souza, e
muitos outros que vão compor a bibliografia deste trabalho.
Em nossa montagem textual predominam os fragmentos de autores que se
preocupam com a questão da escritura e sua produção, como também a relação entre autor
e leitor no cenário da criação do texto literário. Tendo essa preocupação, procuraremos, no Capítulo
1, discutir o lugar do autor/leitor frente ao texto literário na
contemporaneidade; e, por extensão, nos valeremos da figura de Clarice Lispector que,
enquanto escritor que se inscreve em sua obra, diz a sua época. Aqui entra a importância
do cotejo entre as crônicas publicadas no Jornal do Brasil e as obras analisadas.
Entretanto, nossa leitura se resume, menos propriamente no cotejo, do que em grifar nas
escrituras dos livros as crônicas encontradas, certificando-se, com isso, do trabalho de
apropriação e, conseqüentemente, do de reescrever levado ao extremo pela autora com
base nessa época. O que acaba denunciando, por conseqüência, uma certa economia
ficcional e a prática fragmentária que move a produção escritural da autora no momento.
No Capítulo 2, delinearemos a prática de escrever da autora, com a
preocupação de ressaltar como se dá sua prática com o papel que, por sua vez, caracteriza
o próprio texto literário. E, finalmente, no Capítulo 3, que se divide em duas partes,
procuraremos "analisar" a construção escritural dos livros que compõem o corpus do
trabalho. Na primeira parte, "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres — uma
aprendizagem escritural ou a escritura em palimpsesto" verificaremos que a escritura da
obra Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres se constrói enquanto uma escritura em
palimpsesto: textos menores são reescritos e colados de modo que fiquem sobrepostos à
escritura. Constatamos, com isso, o trabalho de montagem praticado pela autora, bem
como o seu esforço por esconder tal trabalho "citacional". Já na segunda parte, "Água viva
— uma fragmentação escritural" veremos que a escritura do livro Água Viva se constrói
enquanto uma escritura em fragmento: textos menores, de forma mais aleatoriamente possível, são
reaproveitados na escritura, ficando totalmente justapostos a essa. Nesse
trabalho de recortar e colar, a autora monta a escritura do livro enquanto tal, deixando, em
suas entrelinhas e nos espaços dos fragmentos colados aleatoriamente, um lugar possível
para o leitor desmontar tal jogo, dispersar os fragmentos e fazer explodir o texto
"organizado" na leitura empreendida.
Não nos iludimos, por nenhum momento, com a idéia de que nossa leitura
poderá abarcar uma totalidade; antes, procuraremos reforçar que ela nada mais é que
apenas um recorte dado ao texto literário feito por montagem de outros textos e de
infindáveis leituras do mundo canônico da Literatura. Desse modo, procuraremos colar
nosso discurso ao discurso crítico contemporâneo, sobretudo da crítica mais semiológica
do texto literário.
Como vasta é a produção da autora, e mais vasta ainda é a produção crítica a
respeito de sua obra, faremos um recorte privilegiando os ensaios críticos que, sem perder
em nada seu poder crítico, se aproximam mais do que disse a autora, dando continuidade
— num sentido bem específico, que pode ser o da própria crítica — à sua produção.
Valendo-nos de uma possível discussão com essas leituras críticas, buscaremos
mostrar que a contribuição de Clarice situa-se, sobretudo, menos num incessante trabalho
de pesquisa com a linguagem que vise ao sentido imediato, do que no poder da
linguagem, no trabalho com a palavra no papel, para se chegar ao texto pela força do
deslocamento da palavra gregária e do sentido instituído. É aí que o projeto de criação
literária de Clarice, a partir da época aqui em estudo, se arquiteta, lugar onde a autora pratica o
trabalho de recortar-colar as palavras e os fragmentos, reescrevendo a escritura que se diz no papel.

CAPÍTULO 1
LITERATURA, ESCRITURA OU TEXTO –
O LUGAR DO AUTOR/LEITOR NA MODERNIDADE
Antes de mais nada, pinto a pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura.
Clarice Lispector
Nestes tempos pós-modernos, quando se pergunta sobre o estatuto da criação
do texto literário, sobrepõe-se uma pergunta que diz respeito à encenação do sujeito
(autor-ator/escritor, leitor) no cenário da linguagem literária. Se, antes, decretou-se a
"morte do autor", agora, diferentemente, indaga-se sobre o "lugar" que esse autor/ator
representa na teatralização textual, dividindo com o leitor o mesmo espetáculo na/da
escritura. O lugar que esses atores-personagens ocupam no corpo da escritura, ou que
passam a ocupar na sua prática pela leitura não só desconstrói a identidade do sujeito do
saber, que se pensava dono de uma verdade totalizadora/tantalizadora, como traz para o
centro da reflexão-crítica o processo de produção do objeto literário: o texto.
Cada vez mais, nas obras da modernidade, essa questão do sujeito se coloca
como "sine qua non", quando o objetivo é lê-las criticamente. Em vista disso, justifica-se
estudar/ler a escritura de Clarice Lispector. Para abordar seu processo de criação escritural
é indispensável, desde o início, voltar-se para a figura do autor (escritor) que nele se
inscreve/escreve deixando suas "marcas" e constituindo-se enquanto tal. Seguir as marcas
que vão se inscrevendo pelo tecido escritural é querer, de certa forma, resgatar pela leitura o
trabalho operado pelo escritor (Clarice Lispector) e — o que parece fundamental ainda
— obter uma assinatura possível daquele que ali se erige na escritura pela leitura.
Mas como percorrer o caminho desse autor que se inscreve e se apaga durante
a escritura clariceana que se escreve, desprovido de uma identidade/totalidade e de uma
verdade que lhe garantam o seu papel representado na cena do discurso e no corpo da
escritura? Desprovido de um lugar em que se pensava eterno, e longe de qualquer origem
e assinatura, esse autor/ator (escritor: Clarice Lispector) se desfaz na linguagem literária
para dela renascer alhures (sempre em outro lugar). Numa obra como a de Clarice, em
que cada escritura (texto) é a tentativa apaixonada de chegar ao seu esvaziamento, ao seu
fracasso, ao eu sem "máscara",1 torna-se quase impossível situar esse autor que se
multiplica para dentro, ressurgindo a cada nova escritura como um "eu enviesado".2
Em se tratando de Clarice Lispector, não se pode esquecer do fato de que ela
fez de sua vida matéria para sua ficção. Em carta à própria autora sobre o livro Água Viva
(nessa época intitulado Objeto Gritante), José Américo Pessanha observou:
E, se como você mesma sabe, fazer literatura nunca significou para você o que geralmente
significa para o literário "profissional" — é seu modo de sobreviver adiando abismos, como
Xerazade que inventa estórias para adiar com palavras as ameaças — aquela inerência do escrito ao
vivido talvez crie impasses de que você terá que ter consciência para superar (quer do lado do
vivido, quer do lado da atividade literária).3
1 Cf. NUNES. O drama da linguagem, p.155.
2 Cf. LISPECTOR. Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector), p.7.
3 PESSANHA, citado por GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.406.
E continua Pessanha: "Tento me explicar melhor: você se transcendia e se 'resolvia' em
termos de criação literária: agora a 'literatura' desce a você e fica (ou aparece) como
imanente ao seu cotidiano; você é seu próprio tema."4 Isso tudo, por sua vez, só vem
confirmar que, em Clarice Lispector quer seja do mundo da ficção para o mundo da vida
real (do escritor), ou deste para o mundo da ficção, o que se dá nesse intervalo entre
escritura e vida/vida e escritura é nada mais que uma (des)aprendizagem do autor que se
inscreve no tempo da escritura e, ao mesmo tempo, do leitor no tempo da leitura.
O caminho que aqui nos parece interessante percorrer, para pontuar o lugar do
sujeito-escritor na produção escritural de Clarice Lispector, se limita ao tempo em que a
autora escreveu crônicas para o Jornal do Brasil: de 19 de agosto de 1967 a 29 de
dezembro de 1973.5 Essa escolha se dá por dois motivos básicos e fundamentais:
primeiro, porque nessa época Clarice escreve os livros Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres (1969) e Água Viva (1973) — livros esses objeto de estudo deste trabalho; e,
segundo, porque, ao escrever para o Jornal, aquela "máscara" de escritor (autor)
"anônima" e "discreta" começa a ser desfeita para dar lugar a um sujeito-escritor que
reaparece de forma mais exposta na cena do discurso e do texto (crônica), transformando
se em um personagem da escrita a ser lido/construído pelo sujeito/leitor. Nessa época, ao
escrever seus textos-crônicas para o Jornal do Brasil, indaga-se sobre sua identidade,
sobretudo. Desse modo, a partir de "conselhos" de seus leitores como "Seja você mesma", 4 Idem.
5 Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.373.
ela se pergunta: "quem sou eu? como sou? quem sou realmente? e eu sou?". Se esses
pequenos-textos serviram para que ela se indagasse sobre seu eu pessoal e enviesado,
sobre sua identidade e sobre seu processo de criação, serviram ainda para que ela
constatasse que, mesmo em seus livros, no qual se pensava "anônima" e "discreta", se
delatava.
De acordo com Nádia Gotlib, "A jornalista não só assina seu próprio nome,
Clarice Lispector, como nesses textos trata diretamente de si mesma". E, ainda, segundo
Gotlib, "embora afirme não ser esta a sua intenção, insere também um passado seu,
inclusive literário, através de textos diversos que já produziu e publicou anteriormente:
contos, crônicas, capítulos ou trechos de romances".6
A preocupação maior da autora nesses pequenos textos era com o que publicar,
o que escrever, ou melhor, o que contar. Diante de tal dificuldade, a autora acabava
publicando o que tinha à mão: "Eu estava escrevendo o livro, então eu detestava fazer
crônica. Então eu aproveitava e botava — não era crônica não, era um texto que eu
publicava."7 Assim, ao praticar esse contrabando de seus próprios textos, Clarice acaba
des/ficcionalizando o próprio eu: o eu do fragmento do livro, ao ser publicado como
crônica, passa por uma desficcionalização, tornando-se mais pessoal, ou melhor,
ficcionalizando-se em outro nível. Diferentemente, ao levar um fragmento-crônica para
dentro da fragmentação textual do livro (Água Viva, por exemplo) a autora ficcionaliza 6 GOTLIB.

Clarice: uma vida que se conta, p.375. 7 Idem.


aquele eu pessoal do pequeno texto. Diante dessa prática e desse eu enviesado, o que resta
no cenário escritural é um eu fragmentado, que ali ressurge a partir de marcas arcaicas de
um eu pessoal superposto. Nessa prática escritural, Clarice dissolve qualquer noção de
gênero, deixando-nos a possibilidade, inclusive, de esses textos virem a ser considerados
como um extenso diário da autora: um diário onde verdade e ficção se completam, Autor
e autor se confundem, perdendo o seu antigo papel para ressurgirem multiplicados como
atores no espetáculo da escritura. Portanto, tem-se aí um "diário"/escritura de um eu que
se perdeu para ressurgir em seguida em um eu enviesado (verdade x ficção) que se
multiplica para dentro da escritura. Nas palavras de Gotlib, nos textos que compõem esse
diário "estão os seus [do autor] afazeres domésticos e literários, como romancista,
contista, cronista".8
Encontramos, a partir desse período que compreende sete anos — de 19 de
agosto de 1967 a 29 de dezembro de 1973 — de produção intensa quer seja nos textos
crônicas, quer seja nos livros Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e Água Viva,
um autor (Clarice Lispector) que se multiplica em vários outros autores (Clarices) através
da releitura e da reescritura que esse espaço, tão jornalístico quanto ficcional, propiciou
para que a autora Clarice ficcionista/cronista acabasse revendo a si mesma.9
Autor/leitor no cenário escritural
8 Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.376. 9 Ibidem. p.377.
Cada vez mais, estudos pós-modernos têm nos alertado para o fato de que
deslocar a ênfase do autor (produtor) para o leitor (receptor) é se limitar em demasia. Pelo
contrário, é preciso, num crescendo, revê-los e recontextualizá-los valendo-se da própria
criação textual, não excluindo nem mesmo o contexto no qual esse texto se cria. Essa
prática é cada vez mais operadora porque, ao agir assim, descentraliza qualquer visão (ou
papel) totalizadora quer seja do sujeito ou do objeto-texto, e questiona a todos
indiferentemente sobre o papel e/ou lugar que ocupam no cenário escritural.
Talvez por isso, escrituras pós-modernas têm se apresentado como
contraditórias, plurais e autodefinitórias, além de trazerem, no âmago de sua criação, "o
desejo de questionar a natureza da linguagem, do fechamento narrativo, da representação,
bem como do contexto e das condições de sua própria produção e recepção".10
Os textos contemporâneos se constroem num lugar de crítica radical: ao
falarem de si, de sua construção, não o fazem para provar sua auto-suficiência ou
autonomia mas, ao contrário, para justificarem seu fracasso narrativo. O escritor de hoje
tem consciência desse fato. Ele sabe que seu papel é o de dar forma ao caos narrativo. E
não muito diferente o leitor precisa "saber" que essa narrativa contemporânea (escritura)
traz no seu construir-se uma autoconsciência e uma reflexão metadiscursiva de sua
catástrofe e também uma mudança contínua e fragmentada. Mas de todo esse mundo
escritural, ou arte da enunciação, que está sempre prestes a se concluir — não fosse sua
incompletude diante de um significado pronto, de um sentido definido, bem como de um 10 HUTCHEON.
Poética do pós-modernismo, p.80.
pai autoral e um leitor presunçoso — tem-se um começo de diálogo possível: o de que
toda escritura inclui, em sua construção, um produtor enunciativo e um receptor da
enunciação. Na esteira de Barthes, acrescentamos ainda, mesmo que seja um tanto quanto
paradoxal, que o ato discursivo é "vazio fora da própria enunciação que o define".11
Essa prática pós-moderna de ler o ato discursivo em sua realização concorre,
de forma contundente, para o apagamento radical da figura do Autor e/ou autoridade
autoral, isto é, qualquer noção de original, para fazer emergir daí aquele escrevente
textual (Barthes) ou produtor (Hutcheon), que só existe no tempo do texto e de sua
leitura: "O único tempo existente é o da enunciação, e todo texto é eternamente escrito
aqui e agora."12 Nesse contexto de produção escritural percebemos, cada vez mais, que
não devemos nos ater somente a questões sobre autor, leitor e texto, deixando à margem o
que se apresenta como fundamental: o processo de produção.
É pela investigação desse processo que questões tão problemáticas como autor,
leitor e texto vão sendo desvendadas, ou melhor, compreendidas e lidas pela leitura. Ao
desvendar o próprio processo de produção — talvez nunca em sua totalidade porque a
leitura nunca seria totalizante —, tem-se aí a possibilidade de se criar pela leitura o seu
autor e o texto enquanto tal. Afinal, de acordo com o próprio Barthes,
o discurso sobre o Texto não deveria ser senão texto, pesquisa, trabalho de texto, já que o texto
é esse espaço social que não deixa nenhuma linguagem ao abrigo, exterior, nem nenhum sujeito de
enunciação em situação de juiz, de mestre, de analista, de decifrador: a teoria do texto só pode
coincidir com uma prática da escritura.13
11 BARTHES. O rumor da língua, p.78.
12 Cf. HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, p.107.
E ainda é o mesmo Barthes quem não nos deixa esquecer que o texto se mantém na
linguagem e só existe tomado num discurso: "Só se prova o texto num trabalho, numa
produção."14
Através desse trabalho produtor, dessa leitura produtora de toda significação, é
que se torna possível, pela leitura, que o leitor (aqui produtor) — mais do que pela
escritura que nunca é preexistente — construa o (seu) autor desse texto que vem se dizer
ali no tempo da leitura. Valendo-se da prática leitural, o leitor percebe que não preexiste
uma escritura última (assim como é inconcebível pensar em última leitura) mas que, ao
contrário, o espaço textual se constitui de um tecido de citações que se cruzam pela sua
diferença, apagando, assim, qualquer idéia de escritura original.
É nesse cenário escritural fragmentado, prestes a se concluir na próxima
leitura, que as figuras do autor (escritor) e do leitor são revistas como atores e/ou
personagens que atuam e representam no espetáculo escritural no qual se
apresentam/escrevem. Sobre isso, Barthes já observara que o escritor nasce ao mesmo
tempo que seu texto, porque só há o tempo da enunciação: "Todo texto é escrito
eternamente aqui e agora";15 e, lembrando Benveniste, a enunciação — o ato
comunicativo — nada mais é que o momento no qual o sujeito se constitui na linguagem.
13 BARTHES. O rumor da língua, p.78.
14 Idem.
15 BARTHES. O rumor da língua, p.68.
Isso concorre ainda para uma observação de Foucault a respeito do sujeito, ao propor que
este fosse repensado como um "construto discursivo". Diante disso, constatamos nos
estudos críticos contemporânos a respeito dessa questão que, em se tratando das posições
do sujeito, seja como produtor e/ou receptor, a subjetividade e a textualidade se
sobrepõem. Indagar a respeito de noções problemáticas como essas nos dias de hoje, é
buscar uma definição (im)possível para o eu. Segundo Lyotard, "um eu não tem tanta
importância, mas nenhum eu é uma ilha; cada um existe numa estrutura de relações que
atualmente é mais complexa e mutável do que nunca".16
Por trás de tal definição do eu que seria sempre subjetiva, encontram-se hoje
tanto a teoria quanto a própria literatura, uma refletindo a preocupação da outra. O
questionamento que os romances contemporâneos trazem imbricado em sua construção,
desconstruindo sua escritura e dispersando sua linguagem é: "Quem está falando?" Quem
fala na escritura? O autor não é, por certo. A quem é dado o direito de usar a linguagem a
seu bel-prazer? Seja da parte do autor ou do leitor — sujeitos sempre dispersos —, qual a
origem do discurso que está sendo construído? De que lugar fala o autor: Como autor ou
como leitor? E de que lugar fala o leitor: Como leitor ou como autor?
Responder a tais questões, que exigem respostas tão complexas — diríamos
mesmo impossíveis —, é o que tem movido, na contemporaneidade, grande parte da
produção, quer ficcional ou crítica, embora o que esteja em jogo seja a própria enunciação
— ato comunicativo/enunciativo —, único momento possível para a construção do sujeito 16
LYOTARD, citado por HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, p.115.
na linguagem. Desse modo, a resposta a essas perguntas é mais do que tentar
compreender os processos de produção (autor) e de recepção (leitor), uma vez que elas
implicam no próprio processo de criação (enunciação).
Através dessa leitura que confirma que o texto tem um contexto — ou ainda e
melhor, que sua própria produção está inserida num determinado lugar/contexto —, o
papel do leitor se desloca de simples consumidor para o de colaborador da produção
(con)textual: ao participar do ato de produção sua percepção de leitor/autor (produtor) aí
se presentifica moldando a enunciação (escritura) e gerando sentidos. O próprio conceito
de texto muda sensivelmente porque, cada vez mais, falar de texto é buscar o processo, o
contexto e a situação enunciativa em que ele se constrói enquanto tal, o que nos permite
observar que o lugar, ou posição, do autor (e até mesmo do leitor) está sendo repensado.
Pelo que vimos rastreando até o momento, podemos dizer que as posições do
sujeito — autor e leitor — encontram-se a ser preenchidas dentro do texto, para que este
se construa enquanto texto. Ou ainda, agora nas palavras de Hutcheon, "são os processos
de significação que criam as posições do sujeito"17 no texto: é no sujeito que se formam
os significados, mesmo sendo os sentidos que o constituem como sujeito. Partir desses
sentidos é aceitar a existência de um sujeito pleno. Daí, então, a preocupação de se
estudar não os sentidos produzidos, mas, pelo contrário, como se dá a produção desses
sentidos. Essa busca, por sua vez, escapa tanto à teoria do discurso como à lingüística,
uma vez que traz imbricada uma realidade que é a da ordem do inconsciente. Ou melhor, 17
HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, p.213.
veicula-se aí um real que é o inconsciente. De acordo com Leyla Perrone-Moisés, "o texto
é o lugar onde o sujeito se produz com risco, onde o sujeito é posto em processo e, com
ele, toda a sociedade, sua lógica, sua moral, sua economia."18 Por sua vez, observou
Kristeva, o que impede que o sujeito se constitua enquanto sujeito é esse texto que se
escreve, essa "produtividade" infinita, para usar um adjetivo precioso a Barthes. Enfim,
segundo Leyla, "o texto é o lugar da escritura, um lugar onde o sujeito se arrisca numa
situação de crítica radical, e não o produto acabado de um sujeito pleno".19
Assim, voltar-se para o cenário escritural inacabado é procurar esquecer as
idéias de sujeito idealista e de discurso logocêntrico, para buscar, através do processo de
produção escritural, um texto que se escreve (Barthes teria dito: nós escrevendo) e um
sujeito que se constrói/volta como ficção nessa "mise-en-scène", que é o texto literário, a
que fazemos comparecer nosso plural: autor-leitor/leitor-autor. É com base nessa relação
ficcional e desejante que se estabelece qualquer possibilidade de interpretação do que
quer que seja: autor, leitor ou texto. Estabelecida a relação, a própria interpretação é quem
interpreta.20
Seguir esse caminho crítico em relação ao texto literário, que cada vez menos
deixa de ser visto apenas como um objeto a ser analisado e decifrado, para ser lido
partindo do ato e da natureza da enunciação, confirma que as figuras do autor, do leitor e
do próprio texto são construídas/faladas pela linguagem literária. Longe de qualquer idéia 18

PERRONE-MOISÉS. Texto, crítica, escritura, p.49. 19 PERRONE-MOISÉS. Texto, crítica, escritura, p.49.
de origem/originalidade, a preocupação do escritor centra-se no reescrever; a escritura —
perdido o original — nada mais é que uma escritura paralela, isto é, constrói-se por uma
apropriação, lembrando, por um processo intertextual, de outras escrituras e de si mesma.
Ao leitor, que tem a impressão de estar sempre chegando tarde demais para assinar a
escritura ou para o próprio ato enunciativo, só resta perguntar: "Quem está falando?". Por
certo, não é ele, como também não é o autor. Seu trabalho, bem como o do escritor
(reescrever), acontece sempre depois: reler.
Entre os processos — reescrever (autor), reler (leitor)/reler (autor), reescrever
(leitor) — extravia-se toda e qualquer noção de origem em proveito de uma escritura que
se escreve e que se relê à revelia de seus supostos autores(?).21 Esse mundo escritural
sobre ruínas e sem origem, do qual o registro original foi extraviado, e em que, por isso,
escritor e leitor sabem ocupar seus papéis com reservas na escritura que se escreve, só
vem confirmar uma suspeita: "A fragmentação e a reprodução também são condições de
subjetividade".22 Essa constatação vem nos dizer, entre outras coisas, que, em se tratando
da pergunta feita ao processo de produção escritural, tudo está para ser construído, ou,
para usar uma expressão barthesiana, deslindado23 pela leitura, inclusive as condições em
que se dá essa leitura. 20 BARTHES. O prazer do texto, p.80.
21A esse respeito, ver o texto "Uma aprendizagem escritural ou o livro dos prazeres da tradução", neste trabalho, p.83.
22 HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, p.116.
23 BARTHES. O rumor da língua, p.69.
Enfim, em meio a cópias, intertextos e paródias, mundo este que constitui a
produção escritural contemporânea, não devemos nos esquecer jamais que o que temos
para trabalhar — o texto — é um "sistema de signos". Seguindo as palavras de Hutcheon,
é a partir desses sistemas de significação que atribuímos sentido ao real. É, ainda, nesse
mundo que se apresenta o sujeito (autor, leitor e texto) e se percebe que suas linguagens
são arbitrárias. Parece só restar ao crítico estudar esse mundo que se re/presenta em
escritura para entender como veicula seu "saber" (conhecimento) e o saber do outro, além de
desconstruir/construir o processo de produção escritural que produz e determina sentidos.
Clarice Lispector: um autor que se inscreve
Perdida a imagem paterna do autor enquanto aquele sujeito que assinava sua
obra, mas que na contemporaneidade retorna através de um corpo que se inscreve na
escritura e é reconhecido/reconstruído pela leitura, a figura desse que escreve — o escritor
— entra em cena para atestar a problemática que permeia o processo de escrever na
modernidade. Para tanto, o escritor subscreve-se a si nesse processo, apresentando-se
como um tema da produção e ao mesmo tempo questionando a (im)possibilidade dessa
produção nos dias de hoje. Tal é o processo de criação de Clarice Lispector. Seus
pequenos textos — crônicas, anotações e fragmentos — são um exemplo dessa questão.
Por isso, procuraremos, a partir de agora, rastrear esses textos para ver como se inscreve
neles o escritor (Persona do autor) e sua pergunta sobre o próprio processo de produção
que traz em sua construção respostas sobre o autor, o leitor e o texto. No texto-crônica, ou texto-
fragmento, publicado em 2 de março de 1968
intitulado, precisamente, de "Persona",24 Clarice se propõe a falar da palavra "pessoa",
que é um dos sentidos do termo persona.25 Esse texto parece ser um bom começo porque,
ao discutir a respeito da persona e sua máscara, é uma reflexão sobre o próprio papel do
escritor (Clarice) e a "máscara" que ele usa no cenário textual, contribuindo para a
teatralização que, segundo Barthes, ilimita a linguagem.26 Soma-se a isso o fato de que, ao
refletir sobre questões como essa (persona) e muitas outras relacionadas ao papel do
escritor, do leitor e do texto, Clarice nos permite ler uma outra Clarice (escritor) mais
pessoal, menos intimista, dialogando em silêncio com seu leitor. Por esse viés de leitura,
tem-se um novo escritor (autor) e uma obra original a ser lida: ler Clarice Lispector
tomando-se como base seus pequenos textos, meio esquecidos da crítica em prol dos
grandes, é buscar a descoberta de como se constroem, na verdade, esses grandes textos,
sobretudo, e principalmente, as últimas obras da autora.27
Essa leitura às avessas nos permite compreender o processo de produção
escritural clariceano, uma vez que considera que esses pequenos textos, além de
fundadores do grande texto, historicizam o sujeito-autor no texto da autora, permitindo 24 LISPECTOR.
A descoberta do mundo, p.99.
25 Costa Lima, no ensaio "Persona e discurso ficcional", afirma: "A persona não nasce no útero senão que da sociedade. Ao tornar-
se persona, assumo a máscara que me protegerá de minha fragilidade biológica. (...) Não custa esforço entender-se que a persona só
se concretiza e atua pela assunção de papéis. É pelos papéis que a persona só se socializa e se vê a si mesma e aos outros como
dotados de certo perfil, com direito pois a um tratamento diferenciado." COSTA LIMA. Anais..., v.1, p.117.
26 BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p.9.
27Cita-se, como exemplo, os livros Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), Água viva (1973), Onde estivestes de noite
(1974) e A via crucis do corpo (1974).
que o leitor acompanhe o papel do escritor (sua reflexão crítica) em seu ofício. Através da
prática leitural, que não exclui a produção marginal do autor, o leitor acaba construindo
vida e obra desse autor, arrolando documentos mais originais, uma vez que voltou sua
leitura para a origem do corpo escritural.
Em seu texto-crônica "Persona", já aqui referido, Clarice nos lembra que, no
antigo teatro grego, os atores, antes de entrar em cena, pregavam no rosto uma máscara
que representava, pela expressão, o que o papel de cada um deles iria exprimir.28 Mesmo
sabendo que as "qualidades de um ator está nas mutações sensíveis de seu rosto, e que a
máscara as esconde", Clarice indaga-se por que essa idéia dos atores entrarem no palco
sem rosto próprio lhe agrada tanto. Talvez uma resposta esteja no papel desempenhado
pelo próprio escritor (Clarice) que, ao representar o seu papel na cena da escritura,
"mascara sua máscara" de escritor, tornando-se, assim, uma figura/ator ficcional que se
origina na cena especular da escritura. Ocorre aí também, nesse tempo, um
descentramento do eu de quem narra:29 o escritor aponta sua máscara com o dedo. Esse
descentramento, no entanto, não deve ser lido como negação do sujeito-escritor porque,
nas palavras de Hutcheon, "descentralizar não é negar"; antes, descentralizar o sujeito
escritor é apontar seu lugar provindo da escritura. Derrida afirmou que "o sujeito é 28 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.100. 29 NUNES. O drama da linguagem, p.151.
absolutamente indispensável. Eu não destruo o sujeito; eu o situo".30 Situar aqui deve ser
entendido como apontar o lugar ocupado pelo escritor na contemporaneidade.
De acordo com Barthes, o escritor pode ser lido como um efeito de linguagem,
nascendo simultaneamente a seu texto, porque "outro tempo não há senão o da
enunciação, e todo texto é escrito eternamente aqui e agora".31 Não havendo outro tempo
que não esse da enunciação, é nele que o leitor lê/constrói a escritura, constrói a si e o seu
autor e assina o papel de leitor-autor/produtor.
Lendo o texto-crônica "Persona", ainda podemos dizer, segundo a própria
autora, que o primeiro "gesto voluntário" do escritor é escolher sua própria máscara. Ao
escrever, ele está fabricando sua própria máscara, uma vez que ela "é um dar-se tão
importante quanto o dar-se pela dor do rosto". Mesmo que amedrontador, o escritor tem
consciência de que usar a máscara é "representar um papel" para o Outro e para o leitor.
Pode-se dizer, com alguma reserva, que ele só ocupa esse lugar de escritor enquanto faz
uso da máscara. Tirada essa máscara, ele deixa de ser. Ao contrário, ao usá-la, ele
representa a si e representa o mundo — escreve a escritura — e, enfim, pode ser: "uso
uma máscara"; logo, "sou uma persona".
Em outro texto-crônica intitulado "A bravata,32 publicado em 26 de outubro do
mesmo ano, como no primeiro texto (Persona), Clarice volta a discutir a questão da
persona, ao se referir à personagem Z. M.. Essa — como o escritor — humildemente 30 DERRIDA citado
por HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, p.204. 31 BARTHES. O rumor da língua, p.68.
"esquecia que ela mesma era fonte de vida e de criação". Por outro lado, Z. M. — agora
diferentemente do papel do escritor — ao se lembrar que havia uma "festa" para ir, e
porque não tinha coragem, "pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto
parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: (...). Esse alguém
era exatamente o que ela não era". Aqui, esse outro pode ser tomado como o papel
desempenhado pelo escritor. Esse, diferentemente da personagem da crônica, existe
somente por meio de sua máscara, ou melhor, quanto mais a usa na encenação escritural,
mais se dá a ler enquanto tal. A personagem Z. M. usa a máscara para obter uma coragem
que não era dela, mas de uma outra persona sua — "Ah persona, como não te usar e
enfim ser!". O escritor, ao contrário, é esse eu que se dá a ler com base na máscara que
não o incomoda nunca. Diferentemente de Z. M. que, na "festa", sabia que tinha um outro
eu (outro rosto) por trás daquele eu/ela que ali se representava falsamente, o escritor,
valendo-se de uma farsa, se lê a partir da própria "festa" da escritura. Enquanto a
personagem Z. M. "viu a persona afivelada no seu rosto", o escritor, no espetáculo da
escritura, é "a persona afivelada no seu rosto". Z. M. observou que "a persona tinha um
sorriso parado de palhaço": o escritor é essa encenação/representação parada, mas não
estática.33
Como a escritura clariceana, o escritor "ficcionista" volta-se sobre si mesmo,
em busca de um eu sem máscara, desconfia-se de seu papel e se encontra perdido na 32 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.212.
33 As crônicas Persona e A bravata aparecem reescritas às páginas 88 e 93 do livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Voltaremos a essa questão ao tratarmos da construção escritural desse livro.
construção da escritura. É sabedor — enquanto sujeito-escritor na contemporaneidade —
de que a narrativa chegou ao seu limite, isto é, que o narrar narra não só o seu fracasso e a
sua perda, como também a sua continuidade, e de que a escritura se constrói
desconstruindo-se. A respeito da crise e da impossibilidade de narrar/contar, Barthes
assim resumiu ao comentar sobre a narração da novela Sarrasine de Balzac:
A mensagem está parametricamente ligada à sua performance; não há, de um lado, enunciados e
de outro enunciação. (...) como sentido, o assunto da história encerra uma força recorrente que se
volta contra a palavra e desmitifica, destrói a inocência de sua emissão: o que é contado é o contar.
Finalmente, não existe objecto da narrativa: a narrativa não trata senão dela própria: a narrativa
conta-se.34
Em se tratando do processo escritural de Clarice Lispector, pode-se dizer que
sua escritura é uma escritura que se escreve, porque, ao se escrever/inscrever uma
escritura ou fragmento, retoma e reescreve um outro fragmento/escritura, deixando,
assim, um texto sempre a recomeçar. Essa prática escritural talvez tenha sua possível
completude na prática leitural, em que uma complementa a outra, tornando-se, por isso,
indissociáveis. Pelo processo de ler, o leitor lembra-se de um outro fragmento que, por
sua vez, reescreve outro, e, nesse recorte leitural — que é também escritural —, o leitor
deixa de inserir outros, distanciando-se, desse modo, de qualquer noção de texto-origem,
mas fundando aí, nessa "falta" esquecida e inconsciente, a leitura.35 Seguindo o
pensamento barthesiano, podemos dizer que, quanto mais o leitor esquece de somar os 34 BARTHES. S/Z,
p.158.
35 A esse respeito, ver o texto "Clarice Lispector: quando escrever é lembrar ou a escritura da não-memória", neste trabalho, p.69.
fragmentos escriturais, mais ele lê, uma vez que somar corresponderia a uma exatidão,
uma totalidade, enfim, uma leitura acabada. A escritura clariceana é, como já dissemos,
uma escritura que se escreve, isto é, ela é da ordem da continuidade: "Tudo acaba mas o
que te escrevo continua."36 Desse modo, podemos reiterar, ainda com Barthes, que essa
multiplicidade de fragmentos, que concorre para a escritura clariceana, é o que permite a
permanência do leitor na verdade do texto clariceano.
Nesse cenário escritural fragmentário e descontínuo que é o texto clariceano, o
escritor encontra-se para sempre perdido, isto é, "sabe" que ele não é mais ele, mas apenas
representa um papel em que o seu eu aparece incompleto e "enviesado". No texto-crônica
"Se Eu Fosse Eu",37 Clarice parece alertar o leitor para o fato de que o eu/ela está sempre
representando um outro papel (outra pessoa), porque, segundo ela mesma, "se eu fosse eu
parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no
desconhecido". Nesse mesmo texto comenta: "Já li biografias de pessoas que de repente
passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida." Talvez tudo isso somente
para explicar ao seu leitor "que se eu fosse realmente eu, os amigos não me
cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado". Somada à questão:
"como é que se escreve?", a pergunta ao eu é uma constante na produção escritural da
autora, que se encaminha para a pergunta maior, a sua própria escritura. 36 LISPECTOR. Água viva, p.96.
37Esse texto-crônica aparece também reescrito nas páginas 139 e 140 do livro Água viva. LISPECTOR. A descoberta do mundo,
p.228.
No texto-crônica "Perguntas Grandes",38 Clarice registra que seus leitores lhe
escreviam dizendo: "Seja você mesma." Segundo ela, a partir daí vieram perguntas
terríveis como: "quem sou eu? como sou? quem sou realmente? e eu sou?" Jamais soube
responder, e sua escritura é uma prova disso. Ela conclui esse texto da seguinte maneira:
"Mas eram perguntas maiores do que eu." Afirmativas como essa mais as perguntas que
estamos propositalmente pontuando neste texto vêm reforçar que o eu do escritor sempre
esteve disperso nos seus escritos (fragmentos) e disseminado em sua escritura, não
ocupando um lugar nem além nem aquém de sua produção, mas se eregindo ali, no tempo
de sua produção (enunciação). Vale lembrar aqui a nota do livro Uma Aprendizagem, em
que a autora confessa: "Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele
está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu."
E assina: "C. L.". Através dessa nota e do que vimos apontando, podemos arriscar a dizer
que a origem do escritor — se é possível falar em origem de escritor — é a sua escritura.
Dela, ele se origina e se assina enquanto autor. Com base nesse texto que se escreve
(porque eternamente inacabado; logo, texto da não-origem, mas que vem das diferentes
leituras/culturas e a elas retorna, diferente), cria-se um espaço para que o escritor
inscreva-se a si: "Eu sou mais forte do que eu."
De acordo com Barthes, esse eu que diz eu nada mais é que o sujeito
conhecido da linguagem — jamais uma pessoa —, que só existe no tempo da enunciação
definido enquanto tal, e que é sustentado pela linguagem e a mantém no sentido de 38 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.267.
exauri-la.39 Esse eu que lemos na escritura clariceana (que vem dela e a ela retorna),
jamais estaria preso ao eu de uma autobiografia tradicional, porque se enuncia da
escritura, a partir dela enquanto lugar de origem. O que não quer dizer que estivesse por
trás da escritura, porque não há possibilidade de que haja nenhum sujeito (autor e/ou
leitor) "antes" da escritura. Ele nada mais seria que mais uma citação dessa escritura. E o
sujeito-leitor, ainda segundo Barthes, "é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que
nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura". Esse leitor impessoal é
o destino mesmo para onde se dirige o todo da escritura (o texto); "ele é apenas esse
alguém que mantém reunidos em um único campo todos os traços de que é constituído o
escrito".40 Por isso, esse leitor pode ser lido como mais uma citação sem aspas da
escritura: uma citação que se inscreve pela leitura.
Barthes, ao comentar sobre o eu na obra proustiana, é quem mais uma vez nos
esclarece o fato de que o autor coloca, em narrativa, não a sua vida, mas "seu desejo de
escrever". Isso vale especialmente para Proust que não contou sua vida mas percebeu que
ela tinha a significação de uma obra de arte, podendo ser tomado como o desejo que move
qualquer escritor: escrever. Fundamentado nesse desejo, podemos dizer que a vida do
autor acaba se extravasando para a obra, mas é, por assim dizer, uma vida "desorientada".
O eu que melhor sintetizaria esse escritor-autor seria aquele eu enviesado clariceano, isto
é, aquele que resume vida e ficção numa só escritura, já citado neste texto. 39 Cf. BARTHES. O rumor da
língua, p.67. 40 Ibidem. p.70.
Se tomarmos o texto em que aparece escrito esse eu enviesado, intitulado
"Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector)", poderíamos nos perguntar: Que
Autor é esse? que Clarice é essa? Como lermos esse texto-dedicatória? Quem dedica o
quê e a quem? Como lemos esse Autor que se confunde com a autora "(Na verdade
Clarice Lispector)"? Na verdade, talvez possamos dizer que temos nesse texto um sujeito
escritor escrevendo a um sujeito-leitor ("vós") partindo de sua vida pessoal/ficcional: um
eu enviesado entre o real e a ficção. Mas isso seria reduzir demais uma questão complexa
como essa: falar do sujeito implica em falar, cada vez mais, de um lugar enviesado,
movediço, como falar do escritor implica em perder-se nos meandros de sua escritura, em
busca de traços arcaicos/biográficos (Biografemas) dispersos no cenário escritural à
espera que o leitor, por meio de seu trabalho rudimentar de leitura, os situe enquanto parte
de um corpo que se escreve/nasce da escritura. Correndo o risco de não darmos conta de
decifrar esse eu enviesado da "Dedicatória do Autor", só nos resta deixá-lo em silêncio,
porque nos falta resposta, e copiar o final desta dedicatória de um Autor des/conhecido:
"Trata-se de um livro inacabado porque lhe falta a resposta."41
Livro inacabado, escritura que se escreve, sujeito em processo porque discurso
descontínuo, por aí circula a filosofia pluralista do sujeito para Barthes, na qual o homem
assume a sua multiplicidade, criando uma nova ética do signo, contribuindo para um novo
posicionamento face ao mundo contemporâneo. Com base nessa escritura que se escreve,
tal qual seu sujeito que nela deixa suas marcas, o leitor deseja o autor do "seu" texto: "Eu 41
LISPECTOR. A hora da estrela, p.7-8.
desejo o autor: tenho necessidade de sua figura..."42 Ainda de acordo com Barthes, "a
perda do sujeito na escritura nunca é mais completa (tornando-se o sujeito totalmente
inidentificável) do que nesses enunciados cujo despegamento da enunciação se produz ao
infinito",43 como na escritura clariceana e nos seus textos-crônicas (fragmentos escriturais)
em que o escritor problematiza o "seu" eu e o seu processo de produção.
Pelo que vimos assinalando até aqui, a respeito da inscrição do sujeito na
escritura, dela (re)tornando sempre em outro lugar, constatamos, num crescendo, que o
escritor clariceano não traz consigo uma aprendizagem que preceda o seu ofício; antes,
ele investe a si na construção de sua escritura, que é, ao mesmo tempo, a sua construção.
O escritor vai se inscrevendo — dando-se a reconhecer enquanto tal — por toda a
escritura, uma vez que ela se escreve descontinuamente. Não é por acaso que, no texto
crônica "Fios de Seda",44 Clarice sugere um conselho ao leitor: "Avisem-me se eu
começar a me tornar eu mesma demais. É minha tendência." Esse "tornar eu mesma
demais" pode ser entendido como o começo de um certo esquecimento inconsciente do eu
do escritor ficcional, para um encontro com o eu pessoal sem máscara.
Muitas vezes, esse descarrilamento entre esses "eus" (ficcional/pessoal), essa
multiplicidade de sujeitos que vem da escritura e nela se dispersa, leva o escritor a
escrever à vontade: "Sem muito sentido, mas à vontade"; e, inclusive, a dizer: "Que
42 BARTHES. O prazer do texto, p.38.
43 BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p.90.
44 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.290-291.

importa o sentido? O sentido sou eu."45 Como podemos então perceber, essa busca — que
quase sempre resulta num desespero "sobre-humano de aprendizagem" — do escritor pela
palavra "intocada" através da linguagem, essa investida pela expressão perfeita da
escritura, acaba devolvendo o escritor ao encontro de si mesmo: "E, se houver o que se
chama de expressão, que se exale do que sou. Não vai mais ser: Eu me expresso, logo
sou. Será: Eu sou; logo sou."
Como já dissemos anteirormente, nessa época em que Clarice escreve seus
textos-crônicas para o Jornal do Brasil (período este de 19 de agosto de 19667 a 29 de
dezembro de 1973), um novo escritor se encena deixando seus traços nesses fragmentos
textuais/pessoais. Segundo Nádia Gotlib, "essa atividade trouxe ao público uma Clarice
que já existia — a Clarice-cronista —, mas numa nova postura narrativa".46 Essa nova
postura narrativa, por sua vez, vai se estender por toda a produção escritural da autora a
partir dessa época, sobretudo nos livros Uma Aprendizagem, publicado em 1969, e Água
Viva, de 1973. Mais adiante, neste trabalho, trataremos especificamente do processo de
construção escritural dessas obras.
Entretanto, nos interessa adiantar aqui que essas obras foram escritas e
publicadas nessa época, porque queremos chamar a atenção para o fato de que essas
escrituras se tecem e se escrituram enquanto tal, num subtexto mais pessoal do escritor
que se diz nas suas entrelinhas. Essa constatação nos permite avaliar, ainda, que não se 45 Ibidem. p.292-
293.
trata mais de escrituras "mestras" ou grandes escrituras, uma vez que elas só são
reconhecidas enquanto escrituras, quando desvendamos que suas construções se dão por
intermédio de uma infinidade de outras escrituras (fragmentos) que se escrevem ao
mesmo tempo.
A respeito da construção desses textos-crônicas, podemos dizer, então, que eles
se dão, sobretudo, pela problematização do eu que escreve (a pessoalidade), sua
identidade e, por último, sua assinatura nesses textos que tratam do próprio escrever.
Erige-se aí, nesses textos fora de qualquer gênero, a figura de um novo escritor clariceano
que se permite ler a si de forma mais aberta. Segundo Gotlib, "o espaço jornalístico
propicia-lhe essa revisão de si". Desse modo, somando-se esses pequenos fragmentos
textuais produzidos entre as décadas de 60 e 70, tem-se um escritor (Clarice Lispector)
revendo/relendo sua produção e a si ao mesmo tempo. De acordo com Gotlib, "aí está a
Clarice Lispector de agora (...) recolhendo as várias Clarices de todos os tempos e, em
certos momentos, revendo-a. Ou melhor: relendo-a."47 Assim, através dessa "procura
humilde", desse "modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento",48 Clarice
acaba fazendo sua própria autocrítica a respeito de seu novo processo de escrever: "Eu
quero escrever, algum dia talvez. Embora sentindo que se voltar a escrever, será de um
modo diferente do meu antigo: diferente em que? Não me interessa."49 Além de
47 GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.377.
48 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.361.
49 Ibidem. p.303. Essa citação faz parte do texto-crônica "Autocrítica no entanto benévola", publicada em 14 de julho de 1969, ano da
publicação do livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
autocríticas como essa e de perguntas a respeito de seu processo de escrever, fazendo
disso seu próprio tema de inúmeros textos-crônicas, é nesse ano (1969) que Clarice
publica o livro Uma Aprendizagem. Desse modo, baseando-se no contexto que
compreende essa época da autora, sobretudo pelo que ela está escrevendo no momento,
como também a intensidade de sua produção, constatamos que ela está lendo a si
enquanto sujeito-escritor e relendo-a por um processo de apropriação/aproveitamento de
seus textos já escritos. Numa carta que escreve ao filho Paulo, em maio de 1969, mês da
publicação do livro, Clarice escreve: "As crônicas do Jornal do Brasil não me preocupam
porque tenho um punhado delas, é só escolher e pronto. Além do mais eu pretendo me
plagiar: publicar coisas do livro A Legião Estrangeira, (...)."50 E assim esse escritor não
só escreve como se reescreve, e se inscreve, como acaba propiciando que suas
"personagens" participem dessa aprendizagem escritural que é a sua escritura. Muito
apropriadamente Nádia Gotlib observou como se dá a construção do livro Uma
Aprendizagem: "Por histórias que são contadas, mininarrativas enxertadas no romance,
pois aí também ambos são contadores: falam, lêem e escrevem."51
De acordo com o que vimos tratando, e segundo Gotlib, os textos publicados
no Jornal do Brasil podem ser considerados um extenso diário de Clarice Lispector.
Acrescentando-se a isso o discurso da personagem Lóri que se aproxima do "diário
íntimo" ou "autocomentário lírico", constata-se, num crescendo, que, nessa 50 Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida
que se conta, p.386. (Grifo nosso)
des/construção de linguagem, um eu se transforma em outro, e esse novo escritor, em
reverência, quase deixa sua máscara cair, um pouco sem medo que seu eu pessoal se
apresente por completo para o ouvinte.
Através do seu processo de escrever, o escritor vai se descobrindo, constrói
uma linguagem para ser imediatamente ultrapassada em função de sua busca para dizer a
última linguagem que desemboca no silêncio da escritura. Não é por acaso que, para
Clarice, "escrever é procurar entender", assim como qualquer compreensão possível se dá
"através do processo de escrever". É essa tentativa, por sua vez, que move a prática
escritural clariceana: "Escrevo porque não quero as palavras que encontro: por
subtração."52
Em vista disso, podemos dizer que seu processo de escrever se constitui,
basicamente, em uma desaprendizagem não só do sujeito-escritor, do "saber"
"organizado, mas, sobretudo, a partir de um não-entender, um não-saber: "Entender é
sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais
completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom."53 Não é
por acaso que o dom maior desse escritor foi trabalhar sua linguagem (a linguagem) até
uma não-linguagem: "O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha
linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu."54 Essa
"desistência" pela linguagem, alcançada pelo escritor clariceano, é o estado pleno de 52 BARTHES. O
prazer do texto, p.54.
53 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.253-254.
linguagem. O silêncio que emerge aí, dessa linguagem/escritura que não se comunica, é
produtor de sentido (ele é o sentido), uma vez que esse silêncio não significaria jamais o
vazio. Tratando aqui diretamente do uso da linguagem do texto clariceano, constatamos,
de acordo com Octávio Paz, que a autora usa uma linguagem que não seria linguagem: "O
duplo do mundo e não sua tradução nem seu símbolo." Ainda segundo Paz, "o caminho
da escritura poética resulta na abolição da escritura: no final, ele nos obriga a enfrentar
uma realidade indizível".55 Essa realidade indizível, no texto clariceano, equivaleria, por
assim dizer, ao silêncio que não corresponde ao fracasso da linguagem, mas à própria
significação escritural. E por ser um silêncio fundador de sentido e ser o indício de uma
totalidade significativa, segundo Eni Orlandi, esse silêncio, por sua vez, acaba atestando
que não há só uma incompletude da linguagem como também do próprio sujeito.56 O
silêncio significativo que se nomeia e se diz no tecido da escritura clariceana existe,
porque a autora não acreditava nem um pouco na capacidade da linguagem para dizer o
que quer que fosse. Nas palavras de Leyla Perrone-Moisés, "ela operava emergências de
real na linguagem, urgências de verdade." Por isso, continua Leyla, "resta ao leitor
receber suas mensagens em branco, e ouvir o que de essencial se diz em seus silêncios."57
Se a linguagem literária de Clarice se constrói nesse silêncio escritural, não
muito diferente, seu sujeito-escritor faz de seu "processo de escrever" uma reflexão
54 LISPECTOR. A paixão segundo G. H., p.172.
55 PAZ. O mono gramático, p.119.
56 Cf. ORLANDI. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p.70.
57 PERRONE-MOISÉS. Flores da escrivaninha, p.177.
incessante sobre o escrever no momento mesmo que o pratica. Não é por acaso que
Barthes, em Aula, vai afirmar que entende por literatura "o grafo complexo das pegadas
de uma prática: a prática de escrever";58 e define um escritor como o sujeito dessa prática.
A prática escritural de Clarice autentica que a escritora faz de sua busca pela linguagem
sua própria prática, de forma que o monumento escritural se eregisse ali, diante do olhar
desse leitor-escritor, e fora de qualquer tempo, a não ser o tempo dessa leitura-escritura. Com
isso o escritor-Clarice reforça que sua prática de escrever se encaminha para uma "escritura
que se escreve", porque sempre inacabada, descontínua como seu sujeito, fragmentária desde
sua não-origem, enfim, condenada eternamente a recomeçar. Afinal, como muito bem nos
advertiu Barthes, "só a escritura, enfim, pode desdobrar-se sem lugar de origem".59
Através desses textos-crônicas clariceanos, concluímos que nos é permitido
mapear sua teoria poética. Ao escrever sobre o papel e/ou lugar do escritor, sobre seu
"próprio método de trabalho" e sobre o escrever/ contar, Clarice acaba nos revelando o
seu processo de produção escritural. No texto-crônica "Lembrança da Feitura de um
Romance",60 chega mesmo a dizer que não sabe "redigir", não consegue "relatar" uma
idéia, enfim, que não sabe "vestir uma idéia com palavras". O que só vem reforçar, entre
outras coisas que, para a autora, escrever e viver sempre foram um processo único e
indissociável — como ela mesma assim o definiu: "viveria, não usaria palavras". Esse
escrever, ao se aproximar mais do viver do escritor, aqui pode ser entendido como uma 58 BARTHES.
Aula, p.17.
59 BARTHES. O rumor da língua, p.127.
prática de escrever que se afasta da concepção clássica ou tradicional de fazer romance
(de escrever), uma vez que não mais se ocupa da "descrição" e da "moldura".61 Através
dessa prática de "escrever por intermédio de desenhar na madeira", o escritor clariceano
desenha "linhas e linhas, uma cruzando a outra", como um texto reescreve outro texto,
formando, assim, o verdadeiro tecido escritural clariceano — o texto —, longe de
qualquer "moldura" que o delimite enquanto texto. Sobr*e isso, a autora se questiona:
"Escrever não é quase sempre pintar com palavras".62 Clarice tentou trabalhar essa prática
na construção da escritura do livro Água Viva. Nele, escrever e pintar são uma mesma e
constante aprendizagem. Ali Clarice inventa o seu próprio método de escrever/desenhar
com palavras. O que a autora disse não propriamente sobre o livro, mas sobre o Escrever63
é aqui sumamente oportuno: "Eu tinha que eu mesma me erguer de um nada, tinha eu
mesma que me entender, eu mesma inventar por assim dizer a minha verdade." Ainda
nesse texto, no qual a autora fala da época em que começou a escrever, encontramos uma
explicação para a compreensão de seu processo de escrever descontínuo e fragmentário:
"Comecei, e nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam um ao outro — o
sentido se contradizia, o desespero de não poder era um obstáculo a mais para realmente
poder." Não nos esquecendo que viemos mapeando esses "dizeres" fragmentados do
escritor com uma certa reserva, como se estivéssemos, o tempo todo, desconfiando dele,
60 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.438.
61 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.412.
62 Ibidem. p.296.
63 Ibidem. p.439.
constatamos que escrever, para o escritor clariceano, sempre foi "um esforço quase sobre
humano de aprendizagem, de autoconhecimento". Talvez, por esse motivo Clarice tenha
resumido sua vida desta forma: "minha vida tem que ser escrever, escrever, escrever?"64
Sim, responde-ríamos com base em sua escritura. Ao que ela completaria: "O personagem
leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e
com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é
o escritor."65
A mise-en-scène que o sujeito-escritor-clariceano encena no palco de sua
escritura concorre para a figura-pessoa Clarice que ela trouxe consigo por toda sua vida:
"Um estar ali e não estar ali, simultaneamente, num encontro desencontrado",66 como o eu
enviesado que escreve e é inscrito, ao mesmo tempo, entre o real e a ficção, a escritura e a vida —
lugares limítrofes — e, por isso, para sempre dissituado.
64 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.419.
65 Ibidem. p.97.
66 GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.382.

CAPÍTULO 2
ESCRITURA E ESCRITURAÇÃO –
A PRÁTICA ESCRITURAL DE CLARICE LISPECTOR
... não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E se você
me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
Clarice Lispector
Se é verdade que o autor, na contemporaneidade, retorna ao seu texto como
que justificando que nunca esteve ausente, e sua assinatura é, por assim dizer, o ato oficial
da escrituração de sua escritura, não é menos verdade ainda que o que sobra ao leitor, bem
como ao estudioso dessa escritura, é tão-somente um "fictício de identidade".1
Além dessa "retratação do autor", dessa volta ao seu lugar de origem, Antoine
Compagnon vai apontar outras características que especificam os textos da contempora
neidade, como a indeterminação do sentido, o questionamento da narração, a exibição dos
bastidores, a interpelação ao leitor e a integração da leitura.2
Entretanto, parece só restar ao leitor e/ou crítico, mais uma vez, perguntar ao
próprio texto o que deseja saber. Como sempre, é no seu próprio tecido textual que todas
as indagações e qualquer possível constituição do sujeito nele deixam suas marcas.
Comprova-se esse fato quando percebe-se que o escritor, ao praticar o ato de escrever
não, sai ileso dessa empreitada, uma vez que a pratica a partir de todas as circunstâncias
1 Esse termo deve ser entendido como a identidade mesma do autor enquanto ser de papel que nasce de sua própria escritura e nela
se inscreve. BARTHES. O prazer do texto, p.81. A esse respeito, ver ainda SOUZA. A pedra mágica do discurso, p.29.
2 Ver COMPAGNON. Os cinco paradoxos da modernidade, p.114.
que o constituem como sujeito. A assinatura, nesse caso, mais do que o ato oficial da
escrituração, seria já o suplemento do vivido do autor.
Em sua atividade de ler, o leitor, não diferente do escritor, percorreria o mesmo
caminho, uma vez que lê o que lê, nas circunstâncias que o constituem como sujeito
leitor. Em vista disso, constata-se que o texto não teria um sentido preexistente; antes, que
este se instauraria no tempo da leitura. Ou melhor, o sentido seria a leitura, assim como a
escritura (o texto) seria, por conseguinte, a instauração da leitura do autor. Constata-se
que ambos, escritor e leitor, buscam caminhos semelhantes: enquanto o primeiro investe
se a si na construção de sua escritura-leitura, o segundo também investe-se a si na
construção de sua leitura-escritura. A diferença é apenas uma questão de ordem.
Se os sujeitos, escritor e leitor, investem-se a si próprios na escritura,
esquecendo qualquer noção de origem, cabe à escritura, por sua vez, devolver-lhes uma
identidade tão verossímil quanto verdadeira. É com base nesse documento, que se quer
lido como verdadeiro e falso ao mesmo tempo, dessa assinatura, que oficializa o ato da
enunciação, que é possível mapear e autenticar os rastros da prática escritural de Clarice
Lispector, assim como de qualquer escritor.
Se o nosso objetivo aqui é o de inquirir a respeito do processo de criação de
Clarice Lispector, e se, ao nos voltarmos para ele perguntando como se dá sua
escrituração, estamos fazendo a partir da retratação do autor na escritura, de sua inscrição
— somada à sua assinatura que se quer lida como documento e ficção ao mesmo tempo
— é porque a própria escritura clariceana interpela ao leitor e demanda essa leitura. Desse modo, o
que vem se somar à retratação do autor como mais uma característica capaz de
encontrar respostas (ou mais perguntas?) a respeito da prática escritural da autora é a
participação do leitor crítico, integrando o processo de ler ao processo de escrever,
confundindo leitura e escritura, mas de forma crítica. Resta apenas se perguntar a respeito
da prática de escrever de um escritor — quer esse seja contemporâneo ou não — através
de uma prática leitural teórico-crítica. Tal prática de leitura é o "ponto crucial" da tarefa
operada pelo crítico ao indagar-se a respeito de uma prática escritural.
O escritor procura pôr em narrativa não sua vida mas sim "seu desejo de
escrever".3 Diríamos mesmo que, com uma aparente contradição, ele faz de sua prática
escritural um ato inconsciente de sua inscrição. O tempo mesmo do ato de escrever acaba
dizendo não só sobre o seu sujeito, como também as circunstâncias em que se encontra o
sujeito. De uma forma ou de outra, consciente ou inconsciente, o sujeito-escritor traz para
a sua prática seu tempo, sua ideologia, sua formação e sua psicologia, enfim, tudo o que o
constitui como sujeito.
Mesmo que o escritor pratique seu ato de escrever tomando por base seu
contexto histórico-sócio-cultural, não há nenhuma garantia de que ele tenha pleno
domínio de sua produção, porque ocorre, nesse tempo, algo que é da ordem do
inconsciente, que circula na linguagem. Por esse motivo, o leitor jamais poderia louvar os
"significados originais" de uma escritura porque, assim como é impossível falar em
sentido original, esses significados acontecem só-depois e, por conseguinte, à revelia do 3 Ver capítulo 1,
deste trabalho.
seu próprio autor. Tal qual o autor, é através das circunstâncias que o constituem como
sujeito que o leitor investe no processo de interpretação da escritura, ocupando aí o papel
de produtor, já que é nesse tempo que qualquer sentido possível se formula. De acordo
com Rosemary Arroyo, "o significado de um texto somente se delineia, e se cria, a partir
de um ato de interpretação, sempre provisória e temporariamente, com base na ideologia,
nos poderes estéticos, éticos e morais, nas circunstâncias históricas e na psicologia que
constituem a comunidade sociocultural (...) em que é lido".4 Arroyo ainda reitera que, de
uma forma ou de outra, o que o leitor acaba lendo num texto será sempre o que sua
"comunidade interpretativa" lhe permite ler naquilo que lê, e jamais outra coisa. Desse
modo, ao se perguntar a respeito da construção e/ou prática escritural de um escritor,
estaremos sempre acrescentando alguma palavra a mais, uma vez que qualquer resposta
possível se dá com base na leitura empreendida, sendo a própria leitura uma construção
de seu sujeito.
O sujeito-escritor, ao praticar o ato de escrituração, acaba deixando marcas,
rastros, por assim dizer, de sua pessoalidade, que serão buscados pela atividade do leitor
que nunca as desvendará em sua totalidade. Em sua investida, o leitor, apropriando-se do
objeto-texto, deixa alguma coisa escapar de sua relação com o texto, mas é justamente
esse excesso, isso que ficou de fora, que atesta o seu envolvimento com a textura do que
lê. Compreender a prática escritural de um escritor demanda uma entrega total do leitor,
no sentido de que este invista o seu desejo que será, por assim dizer, uma continuidade do 4 ARROYO.
Tradução, desconstrução e psicanálise, p.19.
desejo daquele, no momento do ato de escrever. O ato de ler seria, nesse sentido, uma
operação que se apresenta menos preocupada em desvendar a prática do escritor do que
em estender esse processo até o infinito. Assim como a escritura se quer sempre
inacabada, descontínua e fragmentária, qualquer leitura nada mais seria que um
inacabamento de princípio. É somente quando as práticas de escrever e de ler se
encontram mapeadas por um desejo comum, e identificáveis, é que ocorre qualquer
produção criativa e inventiva do que quer que seja.
Um escritor jamais poderia pensar que traz consigo a chave capaz de
desvendar o seu processo de produção porque, ao agir assim, estaria instituindo a leitura
ideal e original do seu texto. Sendo sua prática da ordem do desejo (e do inconsciente),
logo escapa-lhe ao controle de mero escrivinhador. Antes cabe ao leitor investir na
tentativa de dar um significado ao texto lido mas, não muito diferente, o que lhe garante
que esse sentido é seu, e não do texto ou, ainda, do outro? Pensando ser impossível
encontrar aqui respostas satisfatórias, vejamos o que diz Rosemary Arroyo:
Qualquer contato entre um autor, um tradutor ou um leitor e o texto com que estabelecem uma
relação é apropriadamente descrito por Derrida como um corps-à-corps, sempre inspirado por um
"certo amor" que anula a possibilidade de qualquer nível de neutralidade e de qualquer rigor
matemático que pudessem deixar intacto o que quer que chamemos de forma ou de conteúdo. Em
suma, não pode haver nenhuma leitura, sem a inscrição de imprevisibilidade inerente a qualquer
relacionamento, sempre motivado e determinado pelo desejo — esse atributo essencialmente humano
que marca todas as nossas produções com o desenho de nossa própria história.5
5 ARROYO. Tradução, descontrução e psicanálise, p.128-129. A citação nos permite ver ainda que é somente
nesse corpo-a-corpo entre
escritor e leitor, na soma da prática de ambos, que se instaura e se diz uma verdade
possível e comum às práticas. Nesse sentido, essa verdade seria a linguagem literária
trabalhada até seu limite, a compreensão e a extensão da prática de escrever do escritor
pela/na prática de ler do leitor, enfim, lugar onde o real se funda e se diz. Por outro lado,
compreender a prática escritural de um escritor implica, conseqüentemente, numa
apropriação desenfreada por parte do leitor no ato de ler, não no sentido de ocupar o
"lugar" do outro, mas, antes, no de arquitetar a própria prática de ler-escrevendo,
fundando, assim, o sentido que melhor lhe aprouver.
Através dessa leitura que encampa a prática escritural do Autor à sua própria
prática, lugar privilegiado onde o leitor se transforma em autor, constatamos, como quer
Bloom quando diz "que não há textos, mas apenas relações entre textos",6 que não há uma
prática acabada em si mesma; antes, uma demanda a presença da outra, como se fosse,
por assim dizer, para dar continuidade a esse projeto, quer escritural ou leitural, para
sempre inacabado.
Mais uma vez, apropriando-nos do que diz Bloom, acrescentamos que uma
prática — quer escritural ou leitural, ou vice-versa — solicita, de algum modo, a
"influência" da outra sobre si, no sentido de fundá-la do outro lado: onde a leitura é uma
des-escritura, e a escritura, uma desleitura. Essa prática leitural crítica (desleitura), de que
estamos tratando, capaz de produzir seu próprio texto e dar continuidade ao texto do outro 6 BLOOM,
citado por ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.107.
(autor), deve afirmar, ao afinal de sua extensão, sua verdade, que é também a verdade do
outro (Texto).
Indagar a respeito de como se forma a prática escritural de um escritor é, mais
do que saber que seu texto é uma construção de linguagem, descobrir a linguagem
naquele "ponto" em que ela torna-se o essencial. Esse ponto onde a linguagem ocupa toda
a sua importância é, segundo Blanchot, exatamente aquele em que só ela "fala" e
significa. Parece que as práticas escriturais contemporâneas se constroem em torno desse
ponto circular, lugar em que a linguagem aparece e desaparece, uma vez que tais práticas
buscam uma linguagem que será descontruída logo a seguir, deixando a impressão por
todo seu corpo escritural de que elas são o fracasso de sua linguagem.
Não muito diferente, Octávio Paz chamou esse "ponto", ou outro lado da
linguagem poética na qual ela se dá, antes, como uma não-linguagem: "O duplo do
mundo e não sua tradução nem seu símbolo".7 Na linha de Paz, diríamos que ver a
realidade, a verdade expressa por essa linguagem equivaleria não só em perder a "razão",
mas qualquer possibilidade de sentido. A realidade obtida por trás dessa não-linguagem
poética é, desde sua origem, insuportável e enlouquecedora. Toda prática escritural é
trabalhada em torno dessa linguagem voltada sobre si mesma, que se constrói
desconstruindo até que apareça o seu próprio reverso. É por essa prática operada
diretamente na linguagem que a escritura busca um sentido dissipador antes mesmo de ser
escrito/dito na linguagem. Por aqui, e ainda com Paz, revela-se a duplicidade da escritura, 7 PAZ. O
mono gramático, p.119.
de que ela é, ao mesmo tempo, uma escritura e uma leitura; e cada uma trabalha,
concomitantemente, para a construção da outra que equivale à destruição da outra e de si,
respectivamente. Afinal, ambas se constroem na busca de um sentido que "culmina na
aparição de uma realidade que está além do sentido e que o desagrega, o destrói",
conforma e afirma Paz.8
Um exemplo dessa linguagem, dessa realidade que vem da linguagem e a ela
retorna, no momento mesmo em que a linguagem se constitui enquanto tal, é-nos
oferecido pela própria Clarice Lispector, quando diz:
A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la — e como não acho.
Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A
linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos
vazias. Mas — volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de
minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.9
"Só quando falha a construção", nesse contexto, e principalmente com relação à prática
escritural do escritor, pode ser entendido como o "ponto central" da prática de escrever
que, segundo Blanchot,
somente começa quando escrever é abordar aquele ponto em que nada se revela, em que, no
seio da dissimulação, fala ainda não é mais do que a sombra da fala, linguagem que ainda não é mais
do que a sua imagem, linguagem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém fala,
murmúrio do incessante e do interminável a que é preciso impor silêncio, se quiser, enfim, que se
faça ouvir.10
8 PAZ. O mono gramático, p.121.
9 LISPECTOR. A paixão segundo G. H., p.172.
Se, para Blanchot, escrever é encontrar esse ponto, para Clarice, diferente
mente, escrever é buscar esse ponto que jamais será encontrado: sua linguagem busca essa
travessia, aqui chamada de escritura que se escreve, ou melhor, é essa travessia, uma vez
que se constitui enquanto tal nesse lugar para sempre deslizante. A prática escritural de
Clarice certifica que a escritura acontece justamente aí, nesse deslizar escritural e incessante,
lugar onde o sentido também se produz, acompanhando o movimento escritural: é nesse
movimento deslizante que o texto se dá a ler enquanto tal. Por assim dizer, a a prática
escritural de Clarice é o simulacro mesmo do modo como a autora busca uma linguagem que
jamais se diz, uma linguagem que lhe devolve o indizível: aquele silêncio que significa e
que, por isso mesmo, jamais seria um "fracasso".11 É nesse tempo, enquanto a autora
investe na linguagem e não encontra uma construção possível, que a prática escritural
clariceana se arquiteta e se diz. Para Clarice, encontrar esse "ponto infinito" de que fala
Blanchot seria obter o "fracasso" não significativo; enfim, seria não encontrar aquela
"desistência" reveladora de uma verdade escritural que move a escritura clariceana.
10 BLANCHOT. O espaço literário, p.42. Blanchot observa em nota: "Será que a própria linguagem não se torna, na literatura,
imagem inteira, não uma linguagem que conteria imagem ou colocaria a realidade em figura, mas que seria a sua própria imagem,
imagem da linguagem – ou ainda linguagem imaginária, linguagem que ninguém fala, ou seja, que se fala a partir de sua própria ausência,
tal como a imagem aparece sobre a ausência da coisa, linguagem que se dirige também à sombra dos acontecimentos, não à sua
realidade, e pelo fato de que as palavras que os exprimem não são signos mas imagens, imagens de palavras e palavras onde as coisas
se fazem imagens?" (BLANCHOT. O espaço literário, p.25.)
11 A esse respeito ver página 28 et seq. deste trabalho, onde abordamos a questão do "fracasso" da linguagem e do silêncio como
fundador da significação escritural na escritura de Clarice Lispector.
Em sua prática escritural, esse fracasso de linguagem que significa, bem como
a desistência, que é uma escolha do autor, podem atestar, entre outras coisas, que o
escritor, mais do que se manter à margem, permanece na escritura, porque esta, inacabada
como diz Blanchot, ou escritura que se escreve, "não o solta". Esse tipo de prática
escritural traz, por sua vez, em seu corpo, marcas do seu autor, isto é, daquele que quer
terminá-la de fora, ao assiná-la. Nesse sentido, poderíamos argumentar que talvez por
esse motivo a prática escritural de Clarice seja uma pura paixão pela linguagem, mas uma
paixão exacerbada, realizada pelo fracasso de sua busca, e que, de uma forma ou de outra,
parece estar o tempo inteiro afirmando que, custe o que custar, é preciso escrever. É
através da responsabilidade do escritor com o "ato de escrever" que seu compromisso se
revela, e a verdade se diz na linguagem literária. É aí nesse lugar enviesado do real às
palavras e das palavras ao real, onde o sujeito-escritor não menos enviesado se produz,
que o escritor acaba revelando seu compromisso com o mundo:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é
palavra. Quando essa não-palavra — a entrelinha — morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma
vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia:
a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.12
Resta-nos perguntar agora a respeito da responsabilidade do leitor frente a essa
prática que se constrói sob seu olhar: não que a literatura estivesse por ser feita, porque
afinal existe uma canônica tradição, mas que o leitor pode, e deve, pela sua atividade de 12
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.605.
leitor, dar continuidade, ou melhor, vivificar essa prática escritural com a sua experiência
de sujeito-leitor que é.
A assinatura e a grafia da escritura
Pela constatação de que o que sobra ao leitor e ao crítico é tão-somente um
"fictício de identidade" autoral, e o fato de que Clarice Lispector fez de sua vida matéria
para sua ficção, acrescentamos, agora, que a autora fez da busca pela/na linguagem a
inscrição e a procura de sua própria identidade de escritor.13
Para melhor abordarmos e exemplificarmos o que aqui queremos tratar, vamos
nos valer das obras A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida, por entendermos que mesmo
não sendo elas romances, mas o "puramente romanesco", tratam do factício e do fictício
de toda identidade, quer esta seja de uma obra ou de um sujeito. Nesse espaço romanesco,
onde o escritor escreve sem nunca escrever,14 ocorre a circulação incessante de seus
desejos e a inscrição de seu prazer que, como a escritura, é insustentável, impossível,
circulando infinitamente nessa maquinaria de linguagem desejante chamada escritura.
De acordo com Michel Schneider, diríamos que as escrituras, tanto a de A
Hora da Estrela quanto a de Um Sopro de Vida, trabalham, num certo ponto de sua
construção, o encontro de seu autor ficcional (?) com seu leitor, na medida em que um 13 SCHNEIDER.
Ladrões de palavras, p.9.
14 A respeito do texto que se escreve, Barthes afirma: "O escriptível é o romanesco sem o romance, a poesia sem o poema, o ensaio
sem a dissertação, a escritura sem o estilo, a produção sem o produto, a estruturação sem a estrutura." BARTHES. S/Z, p.11.
interroga sobre o outro, como se um sempre pudesse dizer a identidade do outro. Nesse
sentido, a prática escritural dessas obras encontra-se aberta, demandando uma
participação ativa do leitor para sua construção inacabada.
A assinatura (ou nome próprio) Clarice Lispector aparece como um dos 14
subtítulos que abrem o registro chamado de A Hora da Estrela.15 Diferentemente dos
demais subtítulos, esse não aparece escrito no corpo da escritura, mas, como essa, é
totalmente explícito desde sua origem, remetendo o leitor para um autor sem máscara:
traços de um corpo já-escrito e já-lido em outras escrituras clariceanas vêm se dizer ali,
nessa última, querendo dizer ao leitor que essas escrituras nada mais são que seus "papéis
de identidade". A cada nova escritura, a cada novo registro, ele se inscreve — deixa sua
assinatura no corpo escritural — tornando-se mais próximo de sua identidade. Atestar a
identidade de escritor não é mais se perguntar "quem sou eu?"16 mas, pelo contrário, saber
que se escreve com o próprio corpo e saber por que se escreve: "Antes de tudo porque
captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto
não por causa da nordestina mas por motivo geral de 'força maior', como se diz nos
requerimentos oficiais, por 'força de lei'."17
15 Benedito Nunes fala em "treze títulos diferentes"; ao que acrescentaríamos mais um, o próprio nome da autora – Clarice Lispector
– que ali aparece assinado e ninguém o poderá retirar; o que, por sua vez, tal qual o nome A hora da estrela, pode ser lido como um dos
sub/títulos concorrentes para o livro. Cf. NUNES. O drama da linguagem, p.164.
16 "Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar 'quem
sou eu', cairia estatelada e em cheio no chão. É que 'quem sou eu'? provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se
indaga é incompleto." LISPECTOR. A hora da estrela, p.21-22.
17 Ibidem. p.24.
É através dessa "força maior" que o escritor escreve o que escreve, mesmo
sabendo que não sabe o que vai escrever, e se inscreve, às vezes se transfigurando em
outrem e materializando-se enfim em objeto escritural, como é o caso do registro
inacabado de A Hora da Estrela. Aplicando o exemplo ao livro Um Sopro de Vida,
Ângela, a personagem-autora criada pelo Autor, é a materialidade ficcional do escritor.
Mas voltando ao "registro que em breve vai ter que começar,18 e nunca
começa, porque o escritor não quer escrever nada senão seu próprio desejo de escrever,
que cessa no intransitivo da escritura, diríamos que nada resta ao escritor (ou ao Autor do
registro de A Hora da Estrela) senão copiar a si mesmo, uma vez que o que vai escrever
já está de certa forma escrito em si, no seu corpo. Esse escritor, essencialmente moderno,
acaba escrevendo sobre a própria literatura,19 o que denuncia, por sua vez, que ele sofre
de uma certa ansiedade, não ansiedade da influência, mas, antes, de uma "falta" de
assunto (história) e de tema (ele tornou-se seu próprio tema), tendo a linguagem nela
mesma e o "ato de escrever" como sua busca. Como observa o Autor do registro, "a
palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu
primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem
que ser apenas ela."20 O que leva o escritor a escrever não é só por se achar "desesperado"
e estar "cansado", por não suportar mais a si mesmo e nem "a sempre novidade que é
escrever" mas, pelo contrário, o que parece mover essa prática inacabada — pegar o "ato 18

LISPECTOR. A hora da estrela, p.30. 19 Ver SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.75.


de escrever" nele mesmo se escrevendo — é, mais do que o desejo que move qualquer
escritor, uma certa solidão que advém de quem tem a palavra como isca, uma solidão
inerente e necessária a quem escreve. Tomando de empréstimo o que disse Lacan a
respeito da escritura de Duras, reafirmaríamos que um escritor não deve saber que
escreve, nem o que escreve, porque, caso ele viesse a saber, se perderia, o que seria uma
catástrofe, sobretudo para o leitor. É esse abandono, essa solidão, que devolve o escritor
ao seu lugar, produzindo a escritura. Nessa produção, estrutura-se um silêncio escritural,
aquilo que não é um "estilo", mas que diferencia a prática de escrever de um escritor,
deixando reconhecer-se enquanto tal na escritura, sendo esse reconhecimento como se
fosse sua verdade, sua assinatura definitiva.
Não é por acaso que o Autor do registro de A Hora da Estrela afirma que
escreve com o corpo.21 Duras, no seu Escrever, também afirma: "Não se pode escrever
sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita."22
Escrever com o corpo, sobretudo para Clarice, é não mais escrever, é não-falar, é se
recolher em sua própria solidão e no silêncio escritural porque, ao escrever, não é mais o
escritor que escreve, é a própria escritura "que avança para o seu destino e do seu autor",
escrevendo o seu escritor à sua revelia, grafando no seu corpo as grafias do corpo dele,
enfim, declarando que a escritura é sempre, no final, "uniforme" e "ajuizada". Por esse
motivo, talvez possamos dizer, ainda seguindo Duras, que escrita a escritura — qualquer 20

LISPECTOR. A hora da estrela, p.26. 21 LISPECTOR. A hora da estrela, p.22.


escritura —, jamais podemos afirmar quem a escreveu, nem o que escreveu, nem em que
estado "pessoal" a praticou, a não ser pela via do próprio ficcional, atestando com isso,
mais uma vez, que "o escritor se produz no texto".23
Esse autor que advém de sua escritura, essa "outra pessoa que aparece e
avança", sabe que o ato de escrever é o desconhecido e que, antes de praticá-lo, nunca se
sabe o que se vai escrever, o que independe de sua "total lucidez". Autor verdadeiro,
porque mesmo ao reconhecer-se enquanto tal na escritura, aceita e mantém o
"incontornável" na escritura para que essa permaneça uma escritura verdadeira. Tal
escritor, "que nunca assina senão por procuração",24 tem consciência de que
Escrever não é sequer uma reflexão, é um tipo de faculdade que se possui ao lado da
personalidade, paralela a ela, uma outra pessoa que aparece e avança, invisível, dotada de
pensamento, cólera, e que por vezes acaba colocando a si mesma em risco de perder a vida.25
Como nos alerta o Autor de a "Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice
Lispector)", o livro A Hora da Estrela "trata-se de livro inacabado porque lhe falta a
resposta".26 Essa citação concorre para o projeto que move qualquer escritor: escrever.
Afinal, qualquer escritor, mesmo não sabendo o que e sobre o que vai escrever, a
princípio tem um projeto. Nesse sentido, todo livro, falhado ou não, é a escrituração de
um projeto. A escritura é a pergunta mesma feita a sua arquitetura: "Escrever significa
22 DURAS. Escrever, p.23.
23 SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.63.
24 SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.135.
25 DURAS. Escrever, p.48. (Grifo nosso)
tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemos escrever — só se pode saber depois —
antes, é a pergunta mais perigosa que se pode fazer."27 É assim, desse modo, que Macabéa
vive sem saber que vive, que seu Autor escreve sua história falhada, mesmo sabendo que
a morte é sua "personagem principal", enfim, é com base nessa "não-sabença" que se
move e se constrói qualquer produção escritural.
Semelhante ao livro A Hora da Estrela, porém mais desconstruído, o livro Um
Sopro de Vida assinala o próprio projeto de criação literária. Nele, seu autor, que assume
o papel de escritor e inventa a personagem Ângela Pralini para com ele dialogar e se fazer
existir, é uma personagem do projeto escritural para o leitor. Entretanto, além de
desempenhar o papel de autor de sua personagem, bem como de sua escritura,
desempenha também o papel de leitor de si mesmo: lê seu projeto escritural no momento
de sua arquitetura e relê, o mesmo projeto, numa leitura posterior que acaba mudando
sensivelmente o projeto inicial. Esse descentramento temporal de leitura só vem reforçar
o aspecto fragmentário e descontínuo do livro, porque trabalha para uma não linearidade
no trabalho operado pelo leitor.
Talvez em nenhum outro livro de Clarice o tema da criação tenha aparecido de
forma tão contundente. Se tomarmos o livro A Hora da Estrela, só para exemplificar o
que aqui estamos querendo dizer, nele subscreve-se a história da criação, mas há a história
explícita de Macabéa, atestando, em certo sentido, a volta clariceana à narrativa. Em Um 26
LISPECTOR. A hora da estrela, p.8 27 DURAS. Escrever, p.48.
Sopro de Vida, ao contrário, sua história, se há alguma, se volta para o próprio escrever,28
porque é nesse "ato" que Clarice, enquanto escritora, atinge o aqui e agora mesmo da
escrita, isto é, o momento mesmo da enunciação onde a escritura se diz. Para Clarice, só
existe esse tempo único e indivisível, longe de qualquer sentido ou verdade instituídos,
confirmando que a autora trabalha com uma linguagem que ainda está por ser inventada,
mesmo quando as palavras têm um certo tom repetitivo como é o caso de Um Sopro de
Vida.
O "Livro de Ângela" é uma réplica perfeita do livro do Autor29 na medida em
que ambos tematizam e problematizam o próprio escrever, o desejo comum a todo
escritor, o que nos reporta imediatamente ao desejo de busca de criação da escritora
Clarice Lispector, que se presentifica em todos os seus livros, mas de modo especial neste
Um Sopro de Vida. Esse livro, mais do que uma "cilada escritural", e suposta origem
dessa mesma escritura, é o lugar onde autores e personagens se dispersam, um ocupando
o lugar do outro sem cerimônia, onde a linha tênue entre real e ficção deixa de existir,
demandando do leitor uma certa desconfiança, uma vez que a noção de autoria foi para
sempre abalada nesse campo minado chamado texto.
A escritura do Autor ficcional concorre com o quadro que a sua personagem
Ângela Pralini pinta chamado de "Sem sentido": enquanto o quadro se compõe de "coisas 28"O que
escreva agora não é para ninguém: é diretamente para o próprio escrever, esse escrever consome o escrever." LISPECTOR. Um sopro
de vida, p.77.
29 "Como começo?
Estou tão assustado que o jeito de entrar nesta escritura tem que ser de repente, sem aviso prévio." LISPECTOR. Um sopro de vida,
p.24. Ângela, à página 100, diz: "Nem sei como começar."
soltas — objetos e seres que não se dizem respeito, como borboleta e máquina de
costura", a escritura, muito semelhante, se constrói a partir de "destroços de livros", isto é,
por fragmentos: "Esses fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho em ruínas."30
Além dessas semelhanças escriturais, pode-se dizer ainda que ambos os livros, tanto o do
Autor quanto o de sua personagem Ângela, se constroem por anotações: ora o Autor anota
uma nota, ora sua personagem anota outra, o que autentica a fragmentação escritural do
livro, reforçando uma marca constante da prática de construção escritural de Clarice
Lispector.31 Na verdade, essas anotações que constituem o livro Um Sopro de Vida
representam muitas vozes, ora do Autor, ora da personagem-autora Ângela Pralini e, ora,
da autora-personagem Clarice, o que concorre para o fato de que o livro foi escrito, por
assim dizer, a quatro mãos, uma vez que coube a Olga Borelli a organização dos
manuscritos, conforme ela mesma diz na apresentação, o que repercute não só no estudo
de sua construção, como também, num sentido muito peculiar, desvia a leitura efetuada,
reforçando com isso o descentramento de qualquer noção de origem bem como de
qualquer suposta autoria.
Nesse livro de "não-memórias" a origem não existe pelo fato mesmo de que
seu Autor-leitor o lê no momento mesmo do "ato de escrever" e relê, a posteriori,
cortando de ambos os livros o "supérfluo" como ele mesmo diz. É essa leitura a 30 LISPECTOR. Um sopro
de vida, p.19.
31 "Tudo se passa exatamente na hora em que está sendo escrito ou lido. Este trecho aqui foi na verdade escrito em relação à sua
forma básica depois de ter relido o livro porque no decorrer dele eu não tinha bem clara a noção do caminho a tomar. No entanto, sem
dar maiores razões lógicas, eu me aferrava exatamente em manter o aspecto fragmentário tanto em Ângela quanto em mim."
LISPECTOR. Um sopro de vida.
posteriori, por parte de seu autor-leitor, do "já-escrito", em que o autor tem medo de
copiar a si e sua personagem, que contribui para a construção fragmentária e desconexa
da escritura do livro Um Sopro de Vida. Entretanto, segundo seu próprio Autor, mesmo
sendo tudo "fragmentário e dissonante e desconexo", há em tudo uma "ordem submersa",
uma verdade escritural. A preocupação do Autor-leitor com relação à imitação do outro, e
com o plágio, remete o leitor a uma problemática nodal encontrada no livro, conforme já
dissemos anteriormente, que é a questão da autoria. Sua escritora Clarice Lispector
aparece e desaparece por trás das máscaras de seus supostos autores, confundindo e
dispersando os papéis autorais e apagando, de uma vez por toda, a distância entre
realidade e ficção.
Aquele "eu enviesado" a que já nos referimos, quando falávamos da
"dedicatória do autor" de A Hora da Estrela, soma-se agora ao sujeito enviesado32
apresentado por Clarice em Um Sopro de Vida. Nesse livro, diferentemente daquele,
podemos elencar passagens escriturais que atestam a dispersão autoral, afirmando que o
escritor (Clarice Lispector) desenvolve seu projeto escritural através de "hieróglifos" seus,
e que, por isso mesmo, não lhe possibilitam "as verdadeiras palavras", deixando-o preso
no ato de escrever e no "vórtice que é se pôr em estado de criação". Assim, dessa falta de
estilo,33 o escritor enredado e perdido encontra-se consigo e com seu projeto escritural
inacabado. Esse escritor enviesado, que para escrever Um Sopro de Vida abdica de toda 32 "Eu sou um
abismo de mim. Mas sempre serei enviesado." LISPECTOR. Um sopro de vida, p.76. 33"Eu perdi o meu estilo: o que considero um
lucro: quanto menos estilo se tiver, mais pura sai a nua palavra."
sua obra e começa "humildemente", se expõe "a um novo tipo de ficção" que não sabe
ainda como manejar, só reconhecendo de seu trabalho sua caligrafia. Tal escritor, que é ao
mesmo tempo Clarice Lispector, ludibriando mais uma vez o leitor quanto à troca de
papéis autorais, se pergunta: "E eu? será que não serei meu próprio personagem? Será que
eu me invento? Só sei de mim que sou o produto de um pai e de uma mãe. É tudo que sei
sobre a criação e a vida."34
É com base nesse jogo intercambiável entre criação e vida, Autor e autor, que
passaremos a destacar algumas passagens escriturais — mesmo tendo a escritura de Um
Sopro de Vida como o exemplo maior — que certificam o jogo consciente operaciona
lizado pelo escritor na construção de sua escritura. Mesmo reafirmando que a escritura do
livro como um todo simboliza a preocupação da própria escritora Clarice, encontramos,
em meio às anotações e fragmentos que compõem a escritura inacabada, grafias que nos
remetem para a "pessoalidade" da escritora, delatando que traços de sua vida estravasaram
para sua ficção, à revelia da própria autora. Devemos ressaltar ainda que o livro Um
Sopro de Vida tem como "tema" a própria criação do monumento literário, além de ser o
lugar no qual Autor e personagem participam do desejo comum de "escrever um livro". A
personagem Ângela, falando de seu cachorro Ulisses, relata: "Fui fazer um carinho nele,
ele rosnou. E cometi o erro de insistir. Ele deu um pulo que veio das profundezas
selvagens de lobo e mordeu-me a boca. Assustei-me, tive que ir ao Pronto-socorro onde 34
LISPECTOR. Um sopro de vida, p.143.
deram-me dezesseis pontos."35 Essa citação, não menos ficcional que o resto do livro,
remete o leitor, imediatamente, para o fato ocorrido com a escritora Clarice Lispector que,
na verdade, tinha um cachorro que atendia pelo nome de Ulisses.36
Outra passagem que podemos destacar, não só como exemplo de trocas
autorais de papéis, mas como prova explícita de que o leitor não deve confiar no que o
autor diz, lendo-o com uma certa desconfiança, é nos dada mais uma vez pela personagem
Ângela: "Objeto — a coisa — sempre me fascinou e de algum modo me destruiu. No meu
livro A Cidade Sitiada eu falo indiretamente no mistério da coisa. (...) Há anos também
descrevi um guarda-roupa. Depois veio a descrição de um imemorável relógio chamado
Sveglia: relógio eletrônico que me assombrou e assombraria qualquer pessoa viva no
mundo. Depois veio a vez do telefone. No 'Ovo e a galinha' falo no guindaste."37 Tal
citação, além de fazer alusão direta a outro texto da autora, nos permite postular ainda a
respeito daquele cuidado excessivo do Autor da personagem Ângela quanto à imitação e
ao plágio do livro de ambos, o que nos remete agora para a preocupação da própria
escritora Clarice que se pegava, no decorrer de sua prática, imitando e plagiando a si
mesma, disfarçadamente.38 Não é por acaso que o processo de reescrever e a apropriação
são uma constante na construção escritural praticada por Clarice.
35 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.58.
36 A respeito desse fato verídico, ver BORELLI. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato, p. 97-98.
37 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.102.
38"Noto que os meus imitadores são melhores do que eu. A imitação é mais requintada que a autenticidade em estado bruto. Estou com
a impressão de que ando me imitando um pouco. O pior plágio é o que faz de si mesma."
A última passagem escritural por nós buscada para finalizar a questão da
"pessoalidade" da autora Clarice Lispector, dessa vez nos é apresentada não mais pela
personagem Ângela, mas, pelo contrário, por seu próprio Autor, quando diz: "Eu já falei
isso no meu livro chamando esse grito de it."39 A referência é clara porque remete o leitor
para o livro Água Viva, onde a escritora trabalha a questão do it; mas, diferentemente,
com relação à autoria não podemos ter a mesma certeza, podendo dizer que o Autor é e
não é mais Clarice Lispector, ou melhor, que ele apenas lembra por um processo circular
a figura da autora para sempre dispersa em sua ficção.
Entretanto, devemos reconhecer, ou pelo menos suspeitar, a presença
mascarada da autora Clarice interposta a esse Autor ficcional — e por isso chamado aqui
de sujeito enviesado — que afirma ser "um escritor enredado e perdido", relutando em
convencer o leitor de que esse "eu", que aparece em seu livro, não é ele e que seu livro
não é em nada autobiográfico.40 Poderíamos contra-argumentar, dizendo que toda
escritura, em certa medida, é também a escritura de uma autobiografia, uma vez que só há
escritura — qualquer forma de escritura — "a partir de uma relação em que o sujeito se
encontra desde sempre emaranhado ao objeto que supostamente deve descobrir ou
criar".41 Desse modo, o escritor, ao escrever, se inscreve e deixa suas marcas "pessoais"
na escritura, que nada mais é que a grafia de seu desejo. Por esse viés de leitura crítica, 39 Ibidem. p.153.
40 "Eu sei que este livro não é fácil, mas é fácil apenas para aqueles que acreditam no mistério. Ao escrevê-lo não me conheço, eu
me esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim." LISPECTOR. Um
sopro de vida, p.19.
41 ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.47.
que parte do pressuposto de que os significados são produzidos por um "sistema de
articulação", podemos dizer, que o leitor sempre acaba ocupando também uma "posição
autoral" na relação com o texto literário.
O Autor ficcional de Um Sopro de Vida, por saber demais o seu compromisso
com o papel a desempenhar em relação à sua personagem, a si mesmo e ao outro, observa
em "nota" que não pode se esquecer de dar "um rosto a Ângela" porque, dando um rosto a
sua personagem, está se reconhecendo no seu reflexo, uma vez que nessa relação a
personagem se apresenta "mais forte" do que seu Autor. Entretanto, nessa busca, o Autor
distancia-se de sua personagem, perde o Livro de Ângela,42 e extravia o seu próprio livro
não escrito, deixando a escritura para sempre inacabada como só seu sujeito consegue ser:
"Eu.... eu.... não. Não posso acabar."43 Como esse Autor-leitor mesmo nos alerta, no
início do livro, que seu fim não deve ser lido antes, porque "se emenda num círculo ao
começo, cobra que engole o próprio rabo",44 talvez possamos pensar que sua busca, assim
como a busca da autora Clarice Lispector, e sua própria escritura, se encontram resumidas
na página em branco deixada pelos autores, propositadamente, no centro do livro,
refletindo as "pulsações" de uma escritura que se constrói por notas de seus personagens
que são autores, que dialogam entre si e com sua autora, que dialoga consigo e com seu
leitor imaginário por toda sua prática escritural.
42 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.160.
43 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.162.
44 Ibidem. p.20.
Clarice Lispector: quando escrever é lembrar ou a escritura da não-memória
Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao
menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de Memória, como se eu nunca tivesse
nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva.
Clarice Lispector
Este é um livro de não memórias. Passa-se agora mesmo, não importa quando foi ou será esse agora
mesmo.
Clarice Lispector
Com o propósito específico de querer entender melhor o próprio texto literário,
procuraremos, aqui, indagar a respeito da relação entre escrita e memória, isto é, o
processo de escrever como um processo de lembrar. Para tanto, procuraremos ainda nos
ater à questão do leitor frente ao texto que está sendo lido e, direta ou indiretamente,
estaremos nos voltando para a prática de escrever de Clarice Lispector, por entender que
ela pratica, em algum sentido, uma escritura de não-memória.
Assistimos, com o advento da modernidade, que o romance não narra mais
uma "história" e, não tendo mais o que contar, acaba narrando-se a si próprio. Ou melhor,
o narrar narra-se: narra o seu próprio fracasso. Não há mais histórias, mas tão-somente
fragmentos de fragmentos, que erigem um mundo que se enuncia. James Joyce, Marcel
Proust, Virgínia Woolf e, entre nós, Clarice Lispector, rasuraram indefinidamente a
origem, aqui entendida como o princípio de contar(narrar). Esses escritores, por assim
dizer, desviaram, cada um a seu modo e tempo, o rumo da modernidade, deixando para sempre
perdido o fio da história romanesca. E assim o romance chegou ao seu limite
extremo; narra-se a si próprio. Ou melhor: narra a sua perda. Essa problemática do narrar,
na modernidade, veio corroborar para o fato de que o escritor, nessa época, começa por
desacreditar de sua "memória" que, até então, nunca fora posta sob suspeita. Diante disso,
podemos dizer que essa crise do/no romance revela, por sua vez, a própria crise de uma
"memória tutora". Podemos dizer ainda que, na modernidade, "não ter memória" é que
passou a ser o grande avanço porque, a partir daí, algo se cria e se dá a ler como
"verdade", como ficção – que é o texto literário. A literatura vai, desse modo, construindo
uma memória (história) que de fato não existiu, mas que poderia ter existido. A prova
dessa suspeita é o próprio texto que, enquanto texto ficcional — ficção mesmo —, registra,
no tempo e no espaço em que foi criado, o passado histórico que se faz presente na ficção.
A literatura trabalha essa questão, e o escritor sabe disso, e é por tudo isso que o texto
literário não passa impunemente pelo seu tempo histórico. Agora, cabe ao leitor, pela
prática rudimentar de leitura, que também é histórica, procurar resgatar — ou ler por
acréscimo — a memória que se inscreve no texto: antes no texto do suposto autor e agora
no texto de sua leitura.
O texto literário poderia ser, em certo sentido, uma memória-texto do não-dito:
uma memória apagada. Assim, através da leitura, o leitor empreenderia a busca de
resgatar e dar uma certa voz e "dono" a essa memória calada. A leitura, desse modo, seria
o ato instaurador e fundador da memória que subjaz ali tecida no texto. O leitor, enquanto
sujeito de carne e osso, acaba não só por fundar a memória do texto, mas também e ao mesmo tempo
traz sua "memória" de sujeito-leitor para se dizer com a memória do texto,
uma vez que a leitura possibilita o espaço fundador. Essas duas memórias seriam, por
isso, indissociáveis e fundadoras do próprio texto ficcional.
Através da memória (in)voluntária do sujeito-leitor, um fragmento que está
sendo lido relembra um outro fragmento (ou livro) do passado (outra leitura). O processo
de ler reclama por uma releitura e, assim, ao leitor é permitido construir uma leitura que
não é só do texto presente, mas também do texto passado. Teria-se, desse modo, uma
leitura construída com base na memória do leitor. Tal memória sendo construída não só a
partir do universo do "autor", mas, ao contrário, de todo o universo cultural.
Não podemos nos esquecer que "tempo" e "espaço" são construídos pela mente
humana, isto é, são construções. E, se o tempo passado é construído, também o é a
memória que temos dele no presente. O tempo da memória é um tempo sempre presente.
Por isso, rememorar é lembrar no presente e do presente. É também nesse espaço e lugar
que o processo de escrever se produz enquanto tal.
O escritor — leia-se Clarice Lispector —, como se tivesse "esquecido tudo",
ficando apenas um vazio, um oco, por um processo de escrever/lembrar/inventar, rasura
sua história escritural que se dá a ler como verdadeira. Esse processo de escrever como
lembrar traz imbricado em sua gênese um tempo atemporal em que se inscreve a
escritura: um tempo que não é mais um tempo lógico em relação ao passado, nem mesmo
ao futuro, mas a um presente que só se presentifica na duração do processo de ler. É preciso que o
autor "esqueça" a origem da escritura — e talvez até a sua
origem de sujeito-autor — para que uma reminiscência escritural se faça possível, porque,
se não perder/esquecer o texto tutor (original) — o objeto encontrado — não terá jamais o
encontro com sua escritura. Esquecendo o que leu no passado, começa a rememorar
(lembrar) no presente e, dessa forma, toma posse do objeto (re)encontrado. O que não
quer dizer, por sua vez, que o autor é o dono exclusivo do objeto reencontrado (a
escritura) porque, não devemos nos esquecer, a assinatura "oficial" acontece da parte do
destinatário.
O escritor, esse que faz do seu ofício de escrever um ato de lembrar, pela
ficção, o que poderia ter sido e que não foi, jamais estaria do lado de "Funes, o
memorioso". Antes, estaria do lado do autor/leitor Pierre Menard que funda a "origem"
pelo processo de "lembrar"/reescrever/escrever do próprio Quixote. Funes só existe
porque o narrador borgeano dá-lhe uma história (memória), uma vez que lembra
absolutamente de tudo, e que para reconstruir o que se passara num dia necessita de um
dia completo. Já o autor-leitor Pierre Menard acaba pondo em dúvida não só a origem de
quem escreve, mas do que escreve, através de uma memória ou processo de escrever que
se funda e se cria pela diferença: a memória do escritor toma o lugar do outro como
reflexão e constrói-se a si própria. O escritor contemporâneo, mesmo "citando" palavra
por palavra o que um outro disse antes, não estaria mais dizendo a mesma escritura, mas
sempre outra, além de ainda fazer (re)tornar o seu precursor que não estaria fora de seu tempo
porque a leitura é sempre histórica. Dentro desse contexto, o que a memória lembra
é insignificante diante do "como ela age" frente ao lembrado.45
Desse modo, o escritor é sempre aquele que repertoria memória, aquele que
lembra, aquele que escreve, porque a escrita é memória. O escritor vale-se de uma
memória que ele não tem — por que desmemoriado — e põe-se a imaginar imagens que
representam um mundo construído sob "efeitos de real". É aí, nesse lugar, que a narrativa
se erige. É sempre desse cenário vazio (de memória e de lembrança) que algo começa a se
inventar, a tomar forma. O narrador aí sempre será aquele que tem a memória porque,
ancestralmente, sua função é narrar. Por isso, então, ele jamais pode distrair-se do mundo,
diferentemente do leitor que, quanto mais distraído do mundo "memorialístico" da
narrativa, ou melhor, quanto mais ele "esquece", mais lê. Diferente do narrador que narra
(a lembrança) de forma linear e ininterrupta com medo de perder o fio narrativo, o leitor
lê justamente naquele momento em que levanta a cabeça: é nesse tempo de esquecimento
que a leitura significa. Podemos dizer que, se para Clarice Lispector "escrever é lembrar
se", conseqüentemente, ler seria esquecer para lembrar. A esse respeito, há uma passagem
de Barthes que nos parece oportuna:
Todos os livros que li formam em mim uma biblioteca. Não, porém, bem ordenada, os volumes
não estão em ordem alfabética, não existe catálogo. E todavia é exatamente assim, uma memória na
qual se acumulam as minhas leituras. (...) Esse armazém não se limita ao meu saber consciente; a
menos que tenha feito um diário de todas as minhas leituras, pode ser que aquela que mais significou
para mim seja a que me escapa à lembrança. (...) Além do que, é necessário corrigir o ponto de vista
dos antigos: o conjunto das minhas leituras não constitui a minha memória mas sim o meu sintoma,
não tanto os livros que sublinhei, que marquei com meu nome e de que apossei, quanto aqueles que
me marcaram e ainda me possuem. É através deles que leio, que recebo o livro novo.46
45 As reflexões desenvolvidas neste texto se devem ao curso "Literatura Comparada e Tradição Cultural: Memória e Nação", ministrado
pelo prof. Dr. Wander Melo Miranda, realizado no 2º semestre de 1995, na FALE/UFMG.
Retomando o que disso Clarice que "escrever é muitas vezes lembrar-se do que nunca
existiu", podemos dizer que ela, enquanto escritora, por meio de um processo de escrever
que independia dela, porque mais forte do que ela, involuntário mesmo, fazia emergir em
escritura toda uma experiência vivida/lida que se tecia no ficcional.
Assim também o leitor que se propõe a ler o texto clariceano. Depois de uma
longa investida, se apercebe tomado pela memória escritural que se tece no texto, e, a
partir daí, só lhe resta investir o seu desejo na tarefa de escavar a memória do texto do
autor, aliada à sua memória de sujeito-leitor, para que a leitura/escrita se construa.47 Essa
leitura seria já a memória do autor, mais a memória do leitor, somadas ambas pelo que
têm de invenção, além do ficcional, que resultaria na "última" leitura: a reescritura/
releitura infinita. Isso, por sua vez, só vem reforçar que a memória, assim como a ficção, é
uma construção do imaginário.
Ler a memória como algo que está sempre se construindo no presente é querer
traçar o caminho percorrido pelo sujeito do texto. Leia-se texto aqui não só como texto
memorialista, mas todo texto ficcional. Esse tipo de texto, quando não traz as marcas
vividas do seu autor, contém traços pessoais inscritos na escritura que permitem ao leitor 46 BARTHES,
COMPAGNON, citado por COLOMBO. Os arquivos imperfeitos, p.39.
47A respeito da relação entre escrita, memória e leitor, ver MIRANDA. Corpos escritos, principalmente os capítulos: O texto da
memória, p.119-132; O texto do leitor, p.133-144.
reconstruir a figura do autor. De uma forma ou de outra, o texto vai estar sempre pondo
em causa os espaços político, social e cultural, enfim, o lugar onde seu sujeito se localiza.
O lugar vazio do sujeito no texto seria a sua inscrição, a sua falta seria a sua definição.
Mas não devemos nos esquecer que o texto literário tem, a princípio, uma certa autoria, e
é essa assinatura (ou quase) que vai permitir que se estabeleça um pacto de leitura entre
autor (escritura) e leitor (leitura). Assim, tendo em vista os espaços deixados no texto, o
leitor passa a descobrir marcas que significam. E, quer seja da parte do autor, quer seja do
leitor, a memória antes inscrita no texto perde a sua origem, restando, apenas, um traço.
Desse modo, o leitor, pelo processo rudimentar de leitura, começa a construir esse traço
pela linguagem — essa "memória" que ficou. A memória volta pela leitura —
traduzida —, e a escritura-leitura se funda enquanto tal: um traço novo, um texto outro. O
que nos permite ver que o sentido não estava determinado, fechado no texto, porque foi
mobilizado pela leitura-memória fundadora do sujeito leitor. A memória no texto tem esta
função: reordenar os sentidos. O que nos autoriza a dizer que mais importante do que o
"texto da memória" do autor é a leitura que o leitor faz dele.
O leitor, ao ler o texto ficcional — quer esse trate da memória ou não —
jamais o lê linearmente. Mesmo que o leia página após página, não quer dizer que sua
leitura aconteça nessa ordem, nessa linearidade, porque ele lê, no texto do outro, sempre
aquilo que quer e precisa dizer. Afinal, como bem nos exemplifica o autor-leitor Pierre
Menard, "ler é sempre uma forma de se estar apaixonado".48 Seguindo esse itinerário 48 ARROYO.
Tradução, desconstrução e psicanálise, p.158.
leitural, podemos dizer que aquilo que o leitor lê, ao levantar a cabeça, na página 50 do
livro, por exemplo, acaba permitindo que ele leia o que veio escrito à página 10 (ele
esclarece sua leitura anterior). Esse leitor, envolvido com o texto que lê, não se apropria
só do texto do outro, mas também de sua memória tecida em texto, com a finalidade,
talvez, de reescrevê-la agora em sua própria memória (leitura) de leitor. A memória do
outro vai ser sempre lida fora do lugar, isto é, vai ser sempre lida no tempo da leitura do
leitor. Por isso, pode-se dizer aqui que ela só acontece — porque só pode acontecer — no
presente. Ou melhor: ela se funda no presente. Esse trabalho de rememorar a memória é
ficcionalizá-la: a memória está para a escrita assim como a escrita está para a memória. E
ambas passam a existir de fato, e definitivamente, na leitura: no tempo que durar a leitura.
Parece-me que a memória, assim como a leitura, é histórica, porque avança para a frente e
só existe deslocada/descolada de seu lugar de "origem", assinando-se enquanto memória
no tempo posterior da leitura. É aí, nesse tempo sem tempo da leitura, que a memória se
marca e nunca em outro lugar.
A memória, assim como estamos procurando tratá-la aqui, como um processo
de escrever e este como um processo de lembrar, revela que o escritor, no ato de escrever,
lembra, ficcionalmente, do que ainda vai acontecer, como nos adverte Clarice:
Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao
menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de Memória, como se eu nunca tivesse
nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva.49
49 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.605-606. O processo de escrever/lembrar de Clarice aí se inscreve e
se diz. A autora
lembra para a frente, isto é, lembra o que vai acontecer, fazendo da memória — o
"lembrar-se" — a mola propulsora da ficção. O trabalho de lembrar é um trabalho de
inventar, de criar. Podemos dizer que é esse processo de lembrar ficcional do escritor que,
por justapor lembrar/esquecer, verdade/mentira, real/ficção, acaba por movimentar a
própria invenção escritural, estruturando, assim, essa memória lembrada em escritura.
Esse processo de escrever como processo de lembrar, apontado por Clarice, encaminha
se, por sua própria natureza, para o processo de ler do leitor. Um exemplo: a narradora G.
H., rememorando seu passado amoroso, redescobre sua paixão, que volta, e, dialogando
com seu leitor imaginário, agora seu amado, declara a ele sua paixão.50 Essa paixão que
voltou pelo rememorar no ato de escrever é tão antiga quanto diferente (nova): pelo
processo de rememorar/ler da narradora G. H., a paixão foi "transferida" para o sujeito
leitor. Esse, agora, a cada ato de ler, que não é menos apaixonante, redescobre uma paixão
sempre nova.
O exemplo acima reforça que a leitura, assim como a memória, é sempre
desconstrutora. O leitor lê o que ele não sabe: o que acrescenta de si para si. Partindo do
texto ficcional, o leitor vai, paulatinamente, lembrando-construindo. Diante disso,
reiteramos que toda leitura é construção: o leitor constrói o texto e, ao instaurá-lo
enquanto texto, tem-se, com isso, um espaço possível para se pensar a memória do/no 50 Ver excelente
ensaio de GOTLIB. Às vezes a vida volta, em O Eixo e a Roda: memorialismo e autobiografia; v.1, 6.
texto. O processo de ler aí, operado pelo leitor, seria meio desterritorializador, uma vez
que movimenta o tempo da escritura para o tempo da leitura. E, ainda, ler seria retornar à
"origem" (texto) para desconstruí-la. Mas mesmo assim, de uma forma ou de outra, a
leitura é suplemento, porque o leitor lê a partir de um traço (risco de memória) que
subsiste no texto. O texto seria já o seu próprio traço, e a leitura seria como que uma
forma de, nesse traço, rasurar a memória origem do sujeito autor na memória nova do
sujeito leitor.
No livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, a escritora Clarice
Lispector, como Scherazade, linha após linha, parágrafo após parágrafo e, assim, capítulo
após capítulo, vai destecendo histórias menores suas (as crônicas) ao tecer a história
romanesca do livro. Nesse processo de escrever-lembrar (porque a autora volta à
"origem"/ original, lembrando-o), Clarice, ao "esquecer" um fragmento seu, o reescreve
novamente, e indefinidamente, na escritura que se tece no presente. Outras vezes, a autora
copia literalmente o fragmento através também da escritora Lóri, que escreve a Ulisses.
Lóri, como Penélope, espera por Ulisses, enquanto este se afasta, e como uma sereia, o
atrai e seduz. Poderíamos dizer que Lóri, enquanto aquela que se tece e se destece em
busca do seu próprio "eu", acaba por conquistar Ulisses. Na narrativa amorosa do livro,
Lóri escreve para o seu amado. Esse processo de escrever de Lóri é, em certo sentido, lido
pelo leitor como um processo de lembrar. Vejamos: no início da narrativa (p.13), Lóri, ao
lembrar-se de Ulisses, lembra que poderia escrever para ele contando o que lhe
acontecera, mas o que lhe acontecera não era "dizível em palavras escritas ou faladas"; então ela se
recorda do que lhe dissera Ulisses: "O que não soubesse ou não pudesse
dizer, escreveria e lhe daria o papel mudamente — mas dessa vez não havia sequer o que
contar." Desse modo, Lóri entregou a ele um papel em branco ("papel mudamente").
Depois, mais adiante na narrativa (p.8), a escritora Lóri, já no táxi que a levaria ao
encontro de Ulisses, escreve num papel ("folhas soltas") algumas palavras que dariam
prazer a Ulisses. Essas palavras são, na sua origem, uma crônica51 que Clarice retoma e,
reescrevendo-a, rememorando-a, põe na boca de sua personagem-escritora Lóri. O mais
importante, no entanto, nesse reescrever praticado por Clarice é que a autora, ao fazê-lo
(trazer à lembrança seu texto anterior), acaba "esquecendo" ou "acrescentando" o que não
existia na origem/original. No exemplo acima, a autora acrescenta (com relação à
crônica), e Lóri escreve/lembra mais do que a origem previa.
Ainda em outro momento da narrativa, Lóri, ao lembrar-se da Europa, de
quando passara lá meses com os pais e irmãos, rememora o silêncio da Suíça e o inverno
de Paris. Desse modo, ao escrever sobre isso, misturado e em conjunto, acaba sentindo-se
aliviada de tudo. Através desse processo de reescrever/lembrar a autora constrói a
escritura e a história romanesca de Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Ao ler a
"história de amor" entre Lóri e Ulisses, o leitor clariceano percebe que várias outras
histórias se encenam na trama da escritura. No início da narrativa, o leitor atento já
percebe que Clarice, como Scherazade, está tecendo sua história presente ao destecer de
histórias passadas suas (as crônicas como "origem"). O leitor desavisado, entretanto, se 51 LISPECTOR.
A descoberta do mundo, p.170.
veria enredado para sempre no tecer/destecer clariceano, enquanto o leitor mais cuidadoso
começaria por pontuar que os pequenos textos — as crônicas tecidas —, mesmo ao serem
reescritos na escritura do livro, ainda deixam marcas de seu autor (Clarice Lispector).
Devemos nos lembrar que as crônicas reescritas na escritura de Uma Aprendizagem
foram, na sua grande maioria, publicadas e "datadas" no Jornal do Brasil — o que as
afasta um pouco do ficcional. Por outro lado, em se tratando de Clarice Lispector, essa
movença espiralada de textos não causa nenhum estranhamento: o que era um conto passa
a compor um capítulo de romance, o que era uma crônica passa para o conto e/ou
romance etc. Isso nos permite observar que a produção escritural de Clarice se dá em
busca desse rearranjo infinito. Sua escritura seria, desse modo, uma escritura que se
escreve: cada livro seria a lembrança (reescrita) e o "esquecimento" do anterior e, talvez o
mais importante, a "rasura" do livro futuro. Esse ela jamais o escreveu, antes, o rasurou
indefinidamente. O processo de escrever de Clarice mostra, por sua vez, o quanto está
ligado a um processo de viver/rememorar: "Nunca nasci, nunca vivi; mas eu me lembro; e
a lembrança é em carne viva."
Sobre o processo de escrever de Clarice Lispector, que está intimamente
interligado ao processo de "lembrar", podemos afirmar que sua escritura seria uma
escritura da não-memória, uma vez que parte de um fundo sem fundo, um tempo sem
tempo, e vem se dizer no tempo presente da leitura, reforçando, por sua vez, sua não
origem. Talvez sua origem esteja no tempo do ficcional, no tempo indefinido e operado
pela leitura. Ou melhor: no lugar-tempo que dura a leitura realizada pelo leitor. Pelo que até aqui
esboçamos a respeito do processo de escrever da autora, arriscaríamos a dizer que
cada livro seu "posterior" estaria de alguma forma retornando ao anterior ("origem" sem
origem) através de uma leitura invisível (talvez lembrada pelo próprio processo de
escrever/ler do autor): o primeiro livro Perto do Coração Selvagem estaria retomando e
redizendo aqueles autores que Clarice leu e que, por "insegurança" ou "medo" da
influência, disse que não os leu. Desse modo, escrever a memória, escrever a leitura vai
ser sempre uma forma de satisfazer um desejo. Entretanto, sabemos que o objeto do
desejo vai estar sempre mais adiante, em outro lugar, porque ele nos escapa e é atemporal.
Assim, o processo de escrever como um processo de lembrar é a procura do desejo que
não cessa de desejar. O que move a imaginação do autor é o desejo; sua memória também
brota dessa parte da alma. Memória e imaginação se deixam contaminar pelo Desejo;
aliás, de acordo com Freud, a memória não é confiável, uma "lembrança" pode ser ficção.
A escritura de Clarice Lispector, além de ser uma busca pela linguagem, é,
ainda, uma tentativa desesperada de captar-se a si mesma se fazendo. O leitor, ao ler a
escritura do livro Uma Aprendizagem (para falar do livro que aqui nos interessa), desde o
"início", tem a impressão de que sua construção escritural se dá a partir de um território já
percorrido por ele. Ao efetuar sua leitura, lembra-se de que já leu aquele "traço" noutro
tempo de uma outra história (texto) e, ao avançar nesse trabalho de relembrar/construir
pela leitura, descobre que Clarice nada mais fez do que superpor escrituras nessa escritura
que ora se tece em sua leitura. A prática escritural empregada por Clarice na construção
do romance revela uma escritura em palimpsesto: o leitor, ao ler no presente de sua leitura a história
romanesca de Lóri e Ulisses, acaba lendo também uma "história do passado"
que só passa a existir no tempo dessa leitura, que é a história "pessoal" da escritora
cronista-Clarice que subsiste nas crônicas rasuradas na grande escritura de Uma
Aprendizagem.52
Nesse sentido, esse romance pode ser visto como um "romance de aprendi
zagem", uma vez que apresenta todos os "problemas" de seu desenvolvimento e de sua
construção, e avança para frente, para o presente da leitura do leitor, na tentativa de que
esse dê a palavra final. Contraditoriamente, o leitor vai estar, em cada nova empreitada
leitural, descobrindo novos "traços" de textos passados que vêm se rasurar ali, no tempo
da leitura. Por isso, então, a leitura seria apenas uma leitura; noutro momento, esse
mesmo leitor leria outra leitura superposta e construiria outra leitura-escritura não menos
válida para o livro.
Nessa perspectiva, a leitura seria sempre um "lembrar-se" daquilo que está por
vir no momento de sua realização, tornando real o "significado": um sentido que existia
no passado do texto desloca-se e vem fundar-se no tempo presente, instável e provisório,
da leitura. Diante disso, concluímos que a escritura de Clarice é atemporal: ela se realiza
no tempo da leitura do leitor, no tempo de suas impressões (que são também, em algum
sentido, as impressões do autor, que vêm se dizer ali). É por tudo isso, talvez, que a
escritura de Uma Aprendizagem — assim como qualquer escritura — jamais se fecha 52No próximo
capítulo, ao analisarmos o livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, desenvolveremos essa idéia de escritura em palimpsesto.
sobre si mesma, ficando inacabada: daí a possibilidade do leitor escavar, no tempo do
presente, resquícios ou traços do passado superpostos no texto e acenar com a
possibilidade impossível de uma outra leitura futura que estaria prestes a se erigir.53
Uma aprendizagem escritural ou o livro dos prazeres da tradução
Escrevo porque não quero as palavras que encontro: por subtração.
Barthes
O processo determinante da produção da escritura Uma Aprendizagem se dá
nos atos de reler e reescrever operados pelo seu próprio autor. Através do ato — reler
reescrever —, o autor apropria-se de outros textos-fragmentos seus, reescrevendo-os para
um outro lugar, um outro texto — um texto-outro —, e, com isso, acaba também
traduzindo os sentidos dos fragmentos dentro da mesma língua. Traduzir os sentidos aqui
deve ser entendido como multiplicar, disseminá-los indefinidamente através do processo
de reler-reescrever do autor. O leitor, pela leitura — melhor seria dizer releitura —, não
muito diferente do papel operado pelo escritor, reescreve a escritura que se escreve,
descobrindo, nessa escritura em palimpsesto, vários sentidos ali superpostos. Diante disso,
concluímos que quer seja o autor, no tempo de sua reescritura, quer seja o leitor, no tempo
de sua releitura, trabalham, cada um a seu modo e tempo para a construção da escritura
que se constrói sobre sua desconstrução. Daí chamá-la aqui de escritura que se escreve.
53 Ver excelente ensaio de ANDRADE. Uma nota de memória, em Anais..., v.I.
O livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres foi publicado em 1969,
mas daí a saber o tempo que sua autora gastou para escrevê-lo é impossível. Ela jamais o
disse, como se quisesse deixar para o leitor uma escritura prestes a se construir no tempo
da leitura. O que também é impossível, porque, assim como a escritura que se escreve é já
uma reescritura do autor, a leitura empreendida pelo leitor para essa (re)escritura é sempre
uma releitura. Para escrever a escritura Uma Aprendizagem, o autor se apropria,
consciente e/ou inconsciente, de outros textos seus, construindo, assim, uma escritura em
palimpsesto, uma escritura que rasura mas não apaga os textos nela superpostos. Da
mesma forma o leitor que, ao ler a escritura, relê, no corpo escritural fragmentário, outras
escrituras (textos) que avançam de um passado sem origem para se inscrever ali no tempo
da leitura.
Se o fato de Clarice não ter revelado o período em que escreveu o livro vem
nos ajudar, na leitura que aqui estamos buscando, a informação precisa de que a autora
gastou apenas "nove dias"54 trabalhando nele sela a suspeita que move este texto: a de que
ela já vinha escrevendo-o, mesmo que sem o saber, através de seus textos (anotações,
notas, fragmentos) que eram publicados no Jornal do Brasil.55 No tempo impensável de
nove dias, Clarice se isola num "teto só para si" para organizar as "folhas soltas" que,
mesmo sem perderem o sentido original, vão agora compor uma das tantas histórias que 54 GOTLIB.
Clarice: uma vida que se conta, p.387.
55Além de já ter escrito para a "conhecida revista Senhor", Clarice entra na década de 60 escrevendo, ao mesmo tempo, para a revista
Manchete e para o Jornal do Brasil. Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.369.
são contadas no livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres: a história de amor
entre Lóri e Ulisses.
Desse modo, podemos dizer que essa "história de amor" serve de suporte
escritural ao livro para que outras histórias ("mininarrativas enxertadas") sejam
"atravessadas"/contadas na grande escritura que o compõe. O que seria o mesmo que
dizer que Clarice inventa a história de amor, no tempo pensável de nove dias, para
mascarar a operação de apropriação tradutória de seus próprios textos/sentidos
superpostos. Mas essa rasura, esse processo de reescrever, antes de apagar por definitivo o
texto original (?), faz é denunciar pelo processo de reler uma escritura que se constrói,
como já dissemos, em palimpsesto: mais do que textos sob textos, tem-se sentidos sobre
sentidos na trama da escritura.
A prática de escrever organizando suas "folhas soltas" está na base mesmo do
método original usado por Clarice Lispector. Segundo Nádia Gotlib, este método é
praticado desde a elaboração do primeiro livro Perto do Coração Selvagem. A soma de
"folhas soltas", de fragmentos, constrói, por assim dizer, um texto maior/um sentido
maior mas sem perder o texto/sentido original. Nesse caso, o sentido fica superposto no
grande texto mas é relembrado/relido pelo leitor. A respeito dessa prática de escrever em
"folhas soltas" (fragmentos) usada por Clarice, Nádia Gotlib assim observou: "Talvez por
essa via do fragmento não só solto, mas autônomo, sem o compromisso da conexão num conjunto, a
narradora apareça aí na riqueza de seu talento de observadora voltada para
direções múltiplas, em superfícies discursivas geometricamente multifacetadas."56
Enfim, pode-se concluir que o livro Uma Aprendizagem foi escrito/organizado
no tempo impensável de "nove dias" pela então escritora-cronista-Clarice Lispector. Para
a execução dessa tarefa quase impossível, a escritora "abandona" sua casa — como se
nesse espaço-tempo deixasse aquele "eu" do escritor dos livros escritos até então (década
de 60) ou, mais precisamente, até a escritura de A Paixão Segundo G.H. — e refugia-se
em um lugar desconhecido "seu" e do outro, para nele organizar sua nova empreitada
escritural e sua nova persona de escritor que a partir dali se erigia. Para escrever o livro
que ali deveria ser escrito, e que já denunciava que seu processo de produção seria uma
constante aprendizagem e prazer, esse novo escritor trouxe consigo, em sua bagagem, um
amontoado de "folhas soltas" (pequenos textos) que tratavam diretamente de sua
pessoalidade, de seu processo de escrever, enfim, do "inferno" que estava passando
(Clarice Lispector) ao perceber que seu processo de escrever estava trilhando por lugares
desconhecidos dele, mas que ele tanto almejara e desejara em sua busca de escritor.
Do lugar desconhecido do outro (leitor), esse novo escritor retirou de sua
bagagem de cronista-escritor seus textos-fragmentos e se pôs a superpô-los, ou reescrevê
los, na organização escritural do livro. Nessa aprendizagem escritural, o escritor apropria
se de seus próprios textos, reescrevendo-os — para que o "eu" pessoal então inscrito se
disfarce na nova persona que ali se mascara — ou copiando-os simplesmente, mas, nesse 56 GOTLIB.
Clarice: uma vida que se conta, p.355.
caso, põe os textos-cópias na "fala" ou "escrita" de sua personagem Lóri que, na "história
de amor" do livro, escreve ao seu amado Ulisses. Dessa forma, o escritor, reescrevendo
ou copiando seus fragmentos textuais, organiza a escritura de Uma Aprendizagem. Em
vista disso, pode-se dizer que a escritura se constitui, basicamente, por "enxertos
textuais", deixando-se ler, por isso, como uma escritura em palimpsesto: mais do que as
histórias que ali se inscrevem e se contam, tem-se textos superpostos que, além de
contribuírem na organização da grande escritura, são verdadeiras miniescrituras que
mesmo rasuradas deixam cintilar sua origem e os traços arcaicos de um autor ali inscrito
de forma bem mais pessoal.
Através da prática de reescrever/copiar-organizar a escritura de Uma
Aprendizagem, o escritor opera uma verdadeira tarefa de tradução: de uma mesma obra
que se repete, utilizando-se de uma mesma língua, mas de uma linguagem que é sempre a
mesma porque sempre outra, o mesmo escritor reescreve sua escritura imperfeita, que se
escreve apagando o original e rasurando qualquer noção de origem. Essa escritura que se
inscreve sobre um texto-original que está por vir, tal qual sua possível origem que se
desloca do princípio do Verbo para uma escritura que se dirá no tempo-futuro de sua
leitura. Conforme apontou Blanchot, toda escritura é uma tradução; diríamos que toda
leitura realizada para essa escritura é uma tradução em sentido duplo: o escritor traduz, ao
reescrevê-la, disfarçando o original e multiplicando os sentidos; e o leitor traduz essa
escritura — num sentido de volta ao original — ao perceber que sua construção/
organização se dá a partir de outros textos e de outros sentidos ali arquitetados. Esse trabalho
operado pelo autor na construção da escritura é semelhante à
leitura-tradutória realizada pelo leitor: assim como o autor, o leitor, através do "tempo
indefinido da leitura e da memória", constrói uma leitura palimpséstica, uma leitura
escritura que superpõe apenas os textos fragmentados lembrados/gravados na memória
desse sujeito-leitor no tempo da leitura. Noutro tempo, esse mesmo leitor já se lembraria/
eria outros fragmentos e construiria outra leitura-escritura. E assim até o infinito, uma vez
que a escritura em palimpsesto que é Uma Aprendizagem vai permitir que o leitor
organize sua leitura palimpséstica a cada empreitada leitural.
Uma vez que essa escritura (Uma Aprendizagem) de não-origem tem sua
suposta origem no tempo indefinido da leitura, pode-se concluir que cada texto lido/
organizado é original porque o ato de ler é sua produção enquanto tal. Fora desse tempo
de leitura, é como se o texto Uma Aprendizagem não existisse, ou melhor, é como se ele
só existisse no tempo fechado de sua construção definitiva — como se isso fosse pensável
para qualquer escritura —, e não também a partir do tempo indefinido do outro: o leitor.
Desse modo, é a partir desse tempo de leitura que o leitor cria sua leitura-escritura:
escreve seu texto e atribui a ele os "sentidos" que lhe convém enquanto sujeito. Assim,
através de cada texto organizado pela leitura palimpséstica, o leitor (escritor) atualiza a
escritura em palimpsesto que é Uma Aprendizagem, descentralizando sua origem e seu
original jamais escrito pelo autor (Clarice Lispector). E realiza, nessa tarefa de reler/
traduzir, o desejo buscado pelo escritor (todo escritor): a criação da escritura/literatura. Para a
organização da escritura que é Uma Aprendizagem (e que se escreve à
revelia de seu autor), o autor apropria-se de alguns fragmentos textuais seus, excluindo
outros, mas escriturando, assim, uma escritura que se produz, e produz sentidos, para
além das "intenções" de seu autor. Desse modo, o escritor organiza o que sabe, ou pensa
que sabe; e a escritura se escritura sobre um "saber" inconsciente do autor. Isso é possível
porque o sujeito-autor se define pelo desejo que carrega consigo, mas do qual nunca está
"plenamente consciente", e que, por isso, escreve o que escreve. Sua escritura acaba
dizendo os "desejos" que o constituem, enquanto sujeito, e denunciando as circunstâncias
que o obrigaram a escrever o que escreveu mais o seu processo de produção/organização.
Do mesmo modo, o leitor, como o autor, não pode deixar de lado as
circunstâncias que o constituem como sujeito-leitor; caso contrário, não poderá
estabelecer uma verdadeira relação com o objeto-texto. E, sem essa relação que se
constituiria por um processo criativo e sobretudo produtor, não haveria interpretação do
que quer que seja. Ou melhor: toda leitura é mediada/realizada pelo desejo do leitor. Ela é
esse desejo (in)consciente que diz o sujeito. Enfim, quer seja o autor, no trabalho de
organizar sua escritura, quer seja o leitor, no trabalho de organizar sua leitura, o que
atestam é que o original não existe, assim como a última escritura e a última leitura. Esse
descentramento por parte da escritura e, conseqüentemente, por parte da leitura, é o que
move a produção escritural de Uma Aprendizagem.
O termo tradução, que a princípio pode parecer meio forçado neste texto, não o
é, se o entendermos como "a leitura mais próxima que se pode fazer de um texto". E essa leitura pode
ser tanto aquela do autor, na sua "organização imaginária", antes de
reescrever seus fragmentos para a construção da escritura, como também a releitura do
leitor, na tentativa de que esta releitura assine definitivamente a escritura daquele — o
que é impossível. Nesse processo tradutório, quer seja no trabalho de reescrever do autor,
quer seja no trabalho de reler do leitor, o que ocorre é o eterno desencontro com a origem:
o escritor, tomado por esse "emaranhamento" (transferência) de reescrever/copiar seus
próprios textos, apropria-se do que é seu mesmo e lê a si nessa relação de interpretação; e
o leitor, na tentativa inconsciente de repetir uma segunda voz autoral, apropria-se do texto
do outro através de uma relação transferencial e (re)cria um texto só para si, que
descentraliza para sempre o original e a origem perdida.
Nesse processo desconstrutivista de que o escritor se apropria para escrever/
organizar a escritura de Uma Aprendizagem, através de uma multiplicidade de fragmentos
textuais, ocorre uma reversibilidade da própria escritura buscada. Tal escritura, por sua
vez, assemelha-se à "Torre de Babel", uma vez que denuncia sua "incompletude, a
impossibilidade de se terminar, de se totalizar, de se esgotar, de se completar algo da
ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica".57 O fato
de a narrativa do livro começar por "vírgula" e terminar com "dois pontos" é um exemplo
simples dessa questão. Por outro lado, a constatação de que a primeira parte do livro se
constrói por parágrafos incompletos, parágrafos que são suspensos antes do fim para que
o seguinte comece pelo meio, atesta a incompletude da escritura que se escreve e o 57 DERRIDA, citado
por ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.56.
arranjo escritural proposto pelo autor de forma a ludibriar o leitor no tocante aos
fragmentos superpostos.
O processo empregado pelo autor na construção da escritura atesta, entre
outras coisas, que reescrever aí pode significar rasurar a origem e escapar, assim, da idéia
de construção enquanto totalidade. Desse modo, mesmo quando o autor não reescreve os
fragmentos e os copia literalmente dentro da escritura, já está reescrevendo, uma vez que
os fragmentos, fora que estão de seu lugar de origem, aparecem em outro contexto e, por
isso mesmo, emanam um sentido novo e diferente. Pela leitura, pode-se ler o sentido
arcaico do fragmento superposto, mas desde que seja, por assim dizer, um leitor
"conhecedor" do processo de construção escritural clariceano. Caso contrário leria-se, e o
que não é pouco, uma escritura descontínua e fragmentária que se escreve e se diz para
além do silêncio de sua própria linguagem.
Pode-se dizer desse processo de produção utilizado pelo autor, ou melhor,
pode-se ler a escritura — ela deixa-se ler — como uma pós-escritura (pós-babélica) tal é
sua impossibilidade de se chegar à última escritura (totalidade) e ser, por isso, uma
reescritura infinita. Nesse processo desconstrutor, ela é antes um escrever que se
desescreve o tempo inteiro, afirmando, com isso, o processo (in)consciente de reescrever
operado pelo autor. Pode-se dizer ainda que o processo de (re)escrever — reescrever os
fragmentos e traduzir (multiplicar) os sentidos — operacionalizado pelo autor, ao deslocar
um fragmento de seu lugar de origem, precede o original, fundando-o enquanto tal. A
leitura seria a confirmação, a escrituração desse original não escrito (a escritura). Afinal, essa
escritura, como qualquer escritura, se funda e se recria no jogo da leitura
operacionalizado pelo leitor.
Cenas de uma marcha escritural
Analisando a prática escritural de Clarice Lispector, constatamos que o leitor
repete o mesmo jogo do autor frente à escritura, construindo-a por sua desleitura, e que os
personagens clariceanos, além de assumirem papéis de Autores e de personagens de si
mesmo, ao escreverem sua ficção e dialogarem entre si, dialogam com sua autora que, por
sua vez, nada mais é que "personagem de seus personagens, autora e leitora de seu
próprio livro, que nele e através dele se recapitula, Clarice Lispector, ortônima no meio de
seus heterônimos,"58 que assim escreve e se inscreve em sua escritura. Além dessa
repetição, entre autor, leitor e personagem, que dispersa, ou multiplica, o papel de autoria
inscrito no corpo mesmo da escritura, encontramos outro tipo de repetição — agora mais
voltado para o próprio estilo — que se repete no próprio discurso da autora, através de seu
processo narrativo, isto é, de seu processo de escrever reescrevendo, apropriando-se de si
mesma, como forma de revelar sua paixão pela linguagem.
Essa prática repetitiva e monótona operada por Clarice Lispector na linguagem
é o que a diferencia, quase sempre, dos demais escritores, uma vez que, com tal prática,
assume falar para além do silêncio das palavras. É dessa prática escritural de fazer falar o
silêncio que a maquinaria da linguagem entra em cena, e o leitor aparece para instaurar um sentido
instável e provisório ao texto. Desse modo, a autora, nessa prática escritural,
movida pela sedução da palavra, acaba por construir uma escritura do desejo (de
escrever).
Mas sua construção escritural parece se dar, antes de tudo, por uma ausência.
Como se ela já tivesse escrito sua última obra, entra, em seguida, numa luta infinita para
desconstruí-la. Essa desconstrução, no entanto, resulta nos diferentes textos inacabados da
autora, o que não impede que cada livro seja lido como uma cópia perfeita de si mesmo.
Entretanto, se tomados todos dentro da prática escritural da autora, perceber-se-á que ela
nada mais fez por toda sua vida de escritor do que buscar — via linguagem — a
desconstrução dessa obra inexistente após cada livro escrito.
O processo de enxertos textuais, além de assinalar que a prática se constrói
desconstruindo-se, também reforça a prática repetitiva e patética da autora. Observa-se
uma mudança semovente de fragmentos textuais de um texto para outro como processo
comum dentro de sua prática escritural. Outra prática que confirmaria essa movença de
textos são, por exemplo, as crônicas escritas por Clarice que saem do panteão da Crônica
para construir fragmentos de livros e/ou capítulos inteiros dos mesmos. Constata-se, com
isso, que a autora nada mais fez do que rearranjar seus escritos da forma que melhor lhe
conviessem. Nessa (des)construção escritural, que foi também uma desconstrução de
sentido, a autora, antes de construir uma grande obra finita, praticou sua desconstrução até
o último limite textual. Por conseguinte, essa prática escritural veio a exigir do leitor que 58 NUNES. O
drama da linguagem, p.170.
também ele rearranjasse, através de sua leitura, esses textos-fragmentos para alcançar seu
desejo (ou sentido) buscado.
O trabalho estressante e ao mesmo tempo prazeroso de leitura praticado pelo
leitor seria mais ou menos como se faz na montagem de um quebra-cabeça, no qual é
preciso, com muita atenção e uma certa habilidade — como se tratasse de uma leitura —,
juntar parte por parte, e não a bel-prazer, porque cada uma tem o seu lugar, para que se
obtenha a figura do desenho (texto) completo. O prazer do texto, ou melhor, o prazer que
o texto causa ao leitor, obriga que este, por uma prática de leitura enviesada, abandone o
Texto do autor para construir o seu próprio texto.
É um exemplo dessa leitura — se é que é possível exemplificá-la — que
procuraremos percorrer através de uma cena escritural clariceana que perpassa alguns de
seus livros. Essa cena, no entanto, sem ordem de entrada, será perseguida aqui pela ordem
cronológica dos livros, atentando para o cuidado de que não se pratique, ao mesmo
tempo, mais de uma desleitura, pelo menos aparentemente. A cena a ser perseguida, passo
a passo e livro por livro, é a cena dos cavalos. Sobre eles, a própria Clarice, em crônica
publicada no dia 20 de março de 1971, disse:
Quanto a cavalos, já escrevi muito sobre cavalos soltos no morro do pasto (A cidade sitiada),
onde de noite o cavalo branco, rei da natureza, lançava para o ar o seu relincho de glória. E já tive
perfeitas relações com eles. Lembrome de mim adolescente de pé, com a mesma altivez do cavalo,
passando a mão pela sua crina agreste. Eu me sentia assim: "a moça e o cavalo".59
59 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.521. Nessa crônica, a própria autora acaba por nos indicar, quando
escreve "(A
cidade sitiada)", o ponto de partida da marcha escritural dos cavalos e o começo da leitura
aqui desenvolvida. Nada mais resta ao leitor, então, do que se voltar, isto é, voltar a sua
leitura, para "o morro do pasto" da cidade sitiada pelos cavalos:
Mas à noite cavalos liberados as cargas e conduzidos à ervagem galopavam finos e soltos no
escuro. Potros, rocins, alazões, longas éguas, cascos duros — uma cabeça fria e escura de cavalo —
os cascos batendo, focinhos espumantes erguendo-se para o ar em ira e murmúrio. E às vezes um
suspiro que esfriava as ervas em tremor. Então o baio se adiantava. Andava de lado, a cabeça
encurvada até o peito, cadenciado. Os outros assistiam sem olhar.
Meio sentada no leito, Lucrécia Neves adivinhava os cascos secos avançando até estancarem no
ponto mais alto da colina. E a cabeça a dominar o subúrbio, lançando o longo relincho. O medo a
tomava nas trevas do quarto, o terror de um rei, a mocinha, quereria responder com as gengivas à
mostra. Na inveja do desejo o rosto adquiria a nobreza inquieta de uma cabeça de cavalo. Cansada,
jubilante, escutando o trote sonâmbulo. Mal saísse do quarto sua forma iria se avolumando e
apurando-se, e quando chegasse à rua já estaria a galopar com patas sensíveis, os cascos
escorregando nos últimos degraus. (...).
Mas as bestas não abandonavam o subúrbio. E se no meio da ronda selvagem aparecia um potro
branco — era um assombro no escuro. Todas estacavam. O cavalo prodigioso aparecia. Mostrava-se
empinado um instante. Imóveis, os animais aguardavam sem se espirar. Mas um deles batia o casco.
E a pancadinha breve quebrava a vigília: fustigados moviam-se de súbito álacres, entrecruzando-se
sem se tocarem e entre eles se perdia o cavalo branco. Até que um relincho de súbita cólera os
advertia — por um segundo atentos, logo se espalhavam em nova composição de trote, o dorso sem
cavaleiros, os pescoços abaixados até a boca tocar no peito. Eriçadas as crinas, regulares, incultos.
Noite alta vinha encontrá-los imóveis nas trevas. Estáveis e sem peso. Lá estavam eles
invisíveis, respirando. Aguardando com a inteligência curta. Embaixo, no subúrbio adormecido um
galo voava e empoleirava-se no bordo de uma janela. As galinhas espiavam. Além da ferrovia um
rato pronto a fugir.
Então o tordilho batia a pata. Ninguém tinha boca para falar mas um dava um pequeno sinal que
se manifestava de espaço a espaço na escuridão. Eles espiavam. Aqueles animais que tinham um olho
para ver da cada lado — nada era visto de frente, e essa era a noite de S. Geraldo, os flancos de um
cavalo percorridos por rápida contração. Nos primeiros silêncios uma égua esgazeava o olho como
se estivesse rodeada pela eternidade. O potro mais inquieto ainda erguia a crina em surdo relincho.
Enfim, reinava o silêncio.
Até que a madrugada os revelava, estavam separados, de pé sobre a colina. Exaustos, frescos.60
Como Lucrécia Neves que "de sua cama ela procurava ao menos escutar o
morro do pasto onde nas trevas cavalos sem nome galopavam", ou ainda como a mocinha
de "A moça e o cavalo" da primeira citação clariceana deste texto, o leitor, por essa prática
de leitura como desleitura (como as marcas das patas sobre as ruínas), a partir da leitura
do fragmento citado de A Cidade Sitiada, lembra-se — e essa prática de lembrar é uma
prática de desler61 — porque já viu/leu outra cena escritural de "cavalos", "rei", "noite na
montanha", "madrugada" e uma "mulher" envolvida. Essa cena é a segunda deste texto e
encontra-se em A Paixão Segundo G.H.:
Nunca mais repousarei: roubei o cavalo de caçada do rei de sabá. Se adormeço um instante, o
eco de um relincho me desperta. E é inútil não ir. No escuro da noite o resfolegar me arrepia. Finjo
que durmo mas no silêncio o ginete respira. Não diz nada mas respira, espera e respira. Todos os
dias será a mesma coisa: já ao entardecer começo a ficar melancólica e pensativa. Sei que o
primeiro tambor na montanha fará a noite, sei que o terceiro já me terá envolvido na sua trovoada.
E no quinto tambor já estarei inconsciente na minha cobiça, até que de madrugada, aos últimos
tambores levíssimos, me encontrarei sem saber como junto a um regato, sem jamais saber o que fiz,
ao lado da enorme e cansada cabeça do cavalo.
Cansada de quê? Que fizemos nós, os que trotam no inferno da alegria? Há dois séculos que não
vou. Da última vez que desci da sela enfeitada, era tão grande a minha tristeza humana que jurei que
nunca mais. O trote porém continua em mim. Converso, arrumo a casa, sorrio, mas sei que o trote está
em mim. Sinto falta como quem morre. Não posso deixar de ir.
E sei que de noite, quando ele me chamar, irei. Quero que ainda uma vez o cavalo conduza o
meu pensamento. Foi com ele que aprendi. Se é pensamento esta hora de latidos. Os cães latem,
começo a entristecer porque sei, com o olho já resplandecendo, que irei. Quando de noite ele me
chama para o inferno, eu vou. Desço como um gato pelos telhados. Ninguém sabe, ninguém vê. Apre-
sento-me no escuro, muda e em fulgor. Correm atrás de nós cinqüenta e três flautas. A nossa frente
uma clarineta nos alumia. E nada mais me é dado saber.
60 LISPECTOR. A cidade sitiada, p.22-23. (Grifo nosso). Destacamos todo o fragmento porque compõe, com pouquíssimas
alterações, a parte intitulada: No mistério da noite, do conto "Seco estudo de cavalos" de Onde estivestes de noite, p.49-51.
61 À revelia do que escreveu Barthes: "É precisamente porque esqueço, que eu leio." BARTHES. S/Z, p.17.
De madrugada eu nos verei exaustos junto ao regato , sem saber que crimes cometemos até
chegar a madrugada. Na minha boca e nas suas patas a marca do sangue. O que imolamos? De
madrugada estarei de pé ao lado do ginete mudo, com os primeiros sinos de uma Igreja escorrendo
pelo regato, com o resto das flautas ainda escorrendo dos cabelos.
A noite é a minha vida, entardece, a noite feliz é a minha vida triste — rouba, rouba de mim o
ginete porque de roubo em roubo até a madrugada eu já roubei, e dela fiz um pressentimento: rouba
depressa o ginete enquanto é tempo, enquanto ainda não entardece, se é que ainda há tempo, pois ao
roubar o ginete tive que matar o Rei, e ao assassiná-lo roubei a morte do Rei. E a alegria do
assassinato me consome em prazer.62
Se essa cena (a citação de A Paixão Segundo G. H.) neste texto — e isto mais
no nível de organização — é lida a partir da primeira cena (a citação de A Cidade Sitiada)
e vice-versa, o mesmo parece não ser válido para a terceira cena (agora citação de Água
Viva). Essa cena, diferentemente das duas anteriores, remete o leitor para os dois livros
citados e parece antecipar, por conseguinte, o fragmento da crônica, por nós já citado no
início deste texto, do livro A Descoberta do Mundo,63 que reúne grande parte das crônicas
da autora. Vamos à leitura desta terceira cena:
62 LISPECTOR. A paixão segundo G. H., p.123-124. (Grifo nosso) Esse segundo fragmento, assim como o primeiro, também com
pouquíssimas alterações, compõe a parte que se intitula: Estudo do cavalo demoníaco, do conto "Seco estudo de cavalos" de Onde
estivestes de noite, p.51-52. Observa-se como o leitor, independente da cena em que começar, é levado a lembrar de uma outra e mais
outra, e assim até o infinito. Veja-se, como exemplo menor, o fragmento grifado da primeira cena de A cidade sitiada e o fragmento,
também grifado, da segunda cena que é composta pela citação de A paixão segundo G. H.
63 A crônica, acima referida, cujo nome é "Bichos (conclusão)", foi publicada em 20 de março de 1971. Como o livro Água viva é de
1973, pode-se pensar que sua cena, ao invés de ter originado o fragmento da crônica, pode ter sido, pelo contrário, reescrita a partir
desse fragmento.
Já vi cavalos soltos no pasto onde de noite o cavalo branco — rei da natureza lançava para o
alto ar seu longo relincho de glória. Já tive perfeitas relações com eles. Lembro-me de mim de pé
com a mesma altivez do cavalo e a passar a mão pelo seu pêlo nu. Eu me sentia assim: a mulher e o
cavalo.64
Essa terceira cena é a que melhor sintetiza a relação entre a mulher e o cavalo.
É essa relação de alegria que, na primeira cena, "a mocinha Lucrécia Neves queria
responder com as gengivas à mostra. Na inveja do desejo, o rosto adquiria a nobreza
inquieta de uma cabeça de cavalo. Cansada, jubilante, escutando o trote sonâmbulo. Mal
saísse do quarto sua forma iria se avolumando e apurando-se, e quando chegasse a rua já
estaria a galopar com patas sensíveis, os cascos escorregando nos últimos degraus".
Enquanto aí a "mocinha" encontra-se "cansada, jubilante, escutando o trote sonâmbulo",
na segunda cena a "mulher" se pergunta: "cansada de quê? Que fizemos nós, os que
trotam no inferno da alegria?". E mais adiante, ainda nessa mesma cena, lê-se: "E sei que
de noite, quando ele me chamar, irei. Quero que ainda uma vez o cavalo conduza o meu
pensamento."
Essa relação é muito antiga: o lugar é nomeável, "o morro do pasto", mais
precisamente o subúrbio de S. Geraldo; não datável, no entanto, sabe-se que é por volta
de 192... Enquanto na primeira cena (A Cidade Sitiada) "a moça e um cavalo
representavam as duas raças de construtores que iniciaram a tradição da futura
metrópole", na segunda, diferentemente, a "mulher e o ginete" participam de uma alegria
infernal: "Eu havia roubado o cavalo de caçada de um rei da alegria. Nunca mais 64 LISPECTOR. Água
viva, p.51.
repousarei: roubei o cavalo da caçada do rei de sabá." O que se pode depreender da leitura
entre cenas é que os cavalos da primeira cena, ao emigrarem do morro, "entregando a
metrópole à glória de seu mecanismo", acabam chegando ao campo do "inferno" como o
"cavalo de caçada do rei de sabá" (2ª cena).
Mas voltemos à terceira cena, para não correr o risco de perder a trilha da
marcha escritural dos cavalos. Essa aparecerá, agora, totalmente desescrita dentro da
quarta cena (citação de Onde Estivestes de Noite), em que passa por um desarranjo
escritural, fragmenta-se em duas partes na composição. Vejamos esta última cena:
Adolescência da menina potro
Já me relacionei de modo perfeito com cavalo. Lembro-me de mim adolescente. De pé com a
mesma altivez do cavalo e a passar a mão pelo seu pêlo lustroso. Pela sua agreste crina agressiva. Eu
me sentia como se algo meu nos viesse de longe — Assim: "A moça e o cavalo".
O alarde
Na fazenda o cavalo branco — rei da natureza — lançava para o alto da acuidade do ar o seu
relincho de esplendor.65
Essa quarta cena, diferentemente das demais, e talvez por seu maior grau de
fragmentação e pelo contexto em que está inserta, parece não querer demandar uma
leitura em sua unicidade, mas tão-somente de todas as outras, inclusive daquelas que não
foram mencionadas aqui mas que compõem o conto "Seco estudo de cavalos". Não se
65 LISPECTOR. Onde estivestes de noite, p.47. Essa quarta cena, assim como as demais, encontra-se no conto "Seco estudo de
cavalos" de Onde estivestes de noite. Nesse conto, como o próprio título já indica, Clarice parece ter feito um estudo minucioso de tudo
(ou quase) o que tinha escrito até então sobre cavalos e organizou os fragmentos encontrados, dando, a cada um deles, um subtítulo
especial. O conto "Seco estudo de cavalos" é construído por quinze fragmentos, recebendo, cada um, um subtítulo.
pode esquecer que a quarta cena aparece, no conto, entre outras cenas que acabam
refletindo a própria construção do conto. Não é à-toa que ele se chama, precisamente,
"Seco estudo de cavalos".
Entretanto, cabe avaliar que mais importante do que destacar a cena-imagem
escritural aqui perseguida é constatar o processo de apropriação que a autora faz de si
mesma, por toda sua obra, quer seja reescrevendo, como tão bem mostra a cena, quer seja
recopiando tal qual, como também podemos encontrar na cena em estudo. Neste caso,
com uma diferença, uma vez que a autora pratica uma cópia imperfeita do texto anterior,
remetendo, assim, a suposta origem para o tempo do "ato de escrever" e constatando,
nessa prática, que a escritura nada mais é que uma espécie de anamnese necessária em sua
prática de escrever.
Assim, no processo de apropriação do que é seu mesmo, Clarice se vale da
paráfrase, da paródia e sobretudo do plágio e, confundindo a voz do autor com a voz das
personagens, enfim, dispersando os papéis de ambos na escritura, modifica completa
mente, como já observou Benedito Nunes, "conceitos, frases, maneiras de agir e de
pensar, locuções e passagens de contos, crônicas e romances da ficcionista".66
Por um tom repetitivo e monótono, Clarice reescreve fragmentos escriturais,
altera títulos, como forma de reaproveitá-los noutro lugar, o que, além de atestar o
processo (in)consciente de apropriação, justifica a prática de uma escritura que se
reescreve ad infinittum. Essa prática, por sua vez, antes de deixar que o leitor faça o seu 66 NUNES. O
drama da linguagem, p.170.
próprio percurso leitural, joga com ele, relembrando-o que o processo de ler, tal qual o
processo de escrever, se faz de fragmentos leiturais dispersos que se somam entre si.
Através dessa prática de reinscrição infinita do mesmo que é sempre outro,
através da tessitura que significa o escrever para Clarice Lispector, o leitor se encontra
envolvido nas tramas textuais arquitetadas e percebe, na comunhão com a palavra
enquanto isca, que os sentidos se fazem justamente da falta de sentido, uma vez que a
autora, ao jogar com seus textos (composição) ora reescrevendo-os, ora recopiando-os, ou
ainda modificando títulos — como é o caso dos contos de Onde Estivestes de Noite —,
altera sensivelmente qualquer sentido preexistente a eles. Não é por acaso que, justamente
a respeito desse livro, Renato Cordeiro Gomes vai observar que ele reúne "contos,
crônicas, impressões, reflexões, fragmentos de romances, que não apresentam unidade
homogênea, embora se possa estabelecer fios secretos que os articulam, para além das
classificações dos gêneros". Essa prática semovente entre textos, ainda de acordo com
Renato Cordeiro Gomes, "sinaliza a precariedade das classificações e revela uma
literatura em processo, num jogo intercambiante, que trabalha o inacabado, portanto, sem
fechamento, e realiza-se como rede, cuja leitura é travessia: errância!"67
É através dessa "literatura em processo", ou escritura que se escreve, e aqui
retornando à cena escritural por nós perseguida, que o leitor investe em sua atividade de
leitor, tendo a leitura como travessia e ele mesmo como perseguido de seu próprio
caminho. Deve-se acentuar que esse caminho está se construindo enquanto ele está lendo, 67 GOMES.
Apresentação. Errâncias, labirintos, mistérios.
isto é, enquanto está articulando as cenas escriturais, nas quais somente ele se encontra
nesse momento em que dura sua leitura. Aí, cada caminho é único. Outro leitor, mesmo
que perseguisse as mesmas cenas aqui descritas, traçaria seu próprio caminho e
construiria sua leitura — nunca a do outro. O que equivaleria a dizer, para finalizar, que o
ato de leitura se estrutura através de um processo que se volta sobre quem o pratica, não pela
repetição, mas pela diferença.

CAPÍTULO 3
CLARICE LISPECTOR – UMA PRÁTICA
DE DESCONSTRUÇÃO ESCRITURAL
Quero a experiência de uma falta de construção.
Clarice Lispector
Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
Clarice Lispector
Comecemos por uma citação:
Desconstruir um texto é revelar como ele funciona como desejo, como uma procura de presença
e satisfação que é eternamente adiada. Não se pode ler sem se abrir para o desejo da linguagem, para
a busca daquilo que permanece ausente e alheio a si mesmo. Sem um certo amor pelo texto, nenhuma
leitura seria possível. Em toda leitura, há um corps-à-corps entre leitor e texto, uma incorporação do
desejo do leitor ao desejo do texto.1
Pretendemos começar por essa citação por nos parecer prestar-se muito bem ao
tema deste capítulo que é, como já viemos tratando até aqui, a prática escritural de Clarice
Lispector, que se constrói por um processo de apropriação que a autora faz de si mesma,
produzindo textos em palimpsestos ou textos em fragmentos que nada mais são que uma
verdadeira escritura desconstrutora. Nesse processo de apropriação desenfreada, a autora
perde seu lugar de autor, se transforma numa personagem de seus escritos e torna-se
leitora de seus próprios textos e de si mesma. Assim, nesse processo de escrever, no qual
a autora está desfazendo a escritura antes mesmo dela se erigir, o que temos é uma
linguagem que diz ela mesma em escritura, como a forma em conteúdo, o significante em
significado, enfim, uma significância escritural que significa. A desconstrução aqui
exemplificada se dá pela própria prática de leitura que a autora faz dela mesma, no ato de 1 DERRIDA,
citado por ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.157.
seu processo de criação. Através do discurso dramático da escritura, em que o saber não
se quer saber e no entanto sabe, e em que escrever é reescrever e ler é reler, encontra-se
uma prática desconstrutivista que, por valorizar os fragmentos, as citações, parênteses e
pés de página, denuncia um olhar crítico que deverá ser seguido pelo leitor.
O leitor que trate de encarar esse olhar crítico lançado pelo texto literário e
procure dar consistência à multiplicidade fragmentária do escrevível, senão se verá
enredado e perdido tal qual o escritor dessa prática chamada literatura que, nas palavras
de Italo Calvino, "só pode viver se se propõe a objetivos desmesurados, até mesmo para
além de suas possibilidades de realização".2 Parece só restar ao leitor, frente à escritura
que tece os diversos saberes ao tecer-se, dando uma visão pluralística do mundo e tendo
este como seu reflexo, jogar com a prática escritural que, por ser encenação, encena várias
interpretações, para que possa ainda mais pluralizar a linguagem e multiplicar os sentidos.
Porque, somente assim, estaria excluindo a idéia de totalidade de um corpo que se
constrói senão por fragmentos e sentidos descontínuos. É sobre essa questão que o leitor
deve, insistentemente, se perguntar, quando seu trabalho vem envolto nessa prática
arquitetada em linguagem, para não correr o risco e fazer o papel de leitor ingênuo, ao ler
ao pé da letra o que o autor quis dizer. Antes de mais, esse tipo de leitura começaria
justamente por uma certa desconfiança não só naquilo que o autor diz, mas do como ele
diz. 2 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p.127.
É por esse viés de leitura crítica que devemos encarar a última produção de
Clarice Lispector, isto é, mais precisamente o que a autora escreveu a partir de 1967, ano
este que nos interessa aqui por ser a época em que ela começa a escrever crônicas para o
Jornal do Brasil e publica, daí a dois anos (1969), o livro Uma Aprendizagem ou o Livro
dos Prazeres que foi se escrevendo nas entrelinhas das crônicas sociais. Deve-se ressaltar,
ainda, que Clarice entra na década de 70 publicando o livro Água Viva (1973). Entre
todos os que até então tinha publicado e que viria a publicar, esse é, com certeza, o livro
mais fragmentário e descontínuo de sua galeria de "textos" que, além de desconcertar o
leitor, é desconcertante qualquer que seja o tipo de leitura realizada. Como podemos então
perceber, essa última produção de Clarice não só destoa de sua produção, como se
diferencia de sua prática de escrever anterior, além de destoar também do que se produziu
na Literatura Brasileira nessa época. Como muito bem observou Renato Cordeiro Gomes,
a respeito do livro Onde Estivestes de Noite, e que aqui tomo como exemplo para a
produção de Clarice nessa época, "esta coletânea não se alinha no paradigma dominante
da literatura brasileira dos anos 70, que deu ênfase ao romance e ao conto-reportagem, aos
depoimentos, às memórias, à autobiografia". E conclui Gomes: "Coerente com sua
produção, Clarice recusa a literatura mimética, jornalística, de base naturalista".3
Esse destoar não quer dizer, por sua vez, que Clarice se aliena frente ao
contexto "repressor" em que se encontra a nação brasileira. Muito pelo contrário, sua
própria prática de escrever, como sempre original, vem desmentir, quando se apresenta 3 GOMES.
Apresentação. Errâncias, labirintos, mistérios.
fragmentária e com recortes profundos em sua construção/fundação, o que acaba
refletindo um Livro que se constrói por "destroços de livros", tal qual uma nação que se
construiria, porque só pode se construir, por meio de seus próprios destroços históricos
(nem que seja para serem apagados/esquecidos logo a seguir).
É desse lugar de texto e de contexto que Clarice escreve suas crônicas —
notas, anotações, fragmentos, depoimentos, "crítica leve" e "crítica pesada", enfim,
verdadeiros minitextos "pessoais" que vão compor, no decorrer de sua história, o grande
texto inacabado da ficção — e, sobretudo, os livros Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres e Água Viva. Tais livros somam-se entre si quando refletem uma prática
fragmentária e descontínua, e mais ainda por assinalarem, ao mesmo tempo, uma certa
vontade de encontrar, por parte da autora, um "novo modo de escrever" e um certo
"fracasso" nessa busca.4
Nessa época, mais precisamente o tempo em que Clarice escreveu crônicas
para o Jornal do Brasil — de 19 de agosto de 1967 a 29 de dezembro de 1973 —, sua
produção traz inserta na própria arquitetura a preocupação com o problema histórico
social que assolava o País. Se sua produção anterior, como A Paixão Segundo G.H.,
publicado exatamente em 1964, tocava de leve na problemática social, o mesmo não vai
acontecer com sua produção a partir dessa data. Além de ser a época de produção intensa
4 A respeito do livro Uma aprendizagem, Nádia Gotlib observa que "Clarice considerava-o um romance falhado". GOTLIB.
Clarice: uma vida que se conta, p.394. Quanto ao livro Água viva, Olga Borelli vai considerá-lo como o "prenúncio do fim" ou "a ante-
sala da desagregação absoluta". Ibidem. p.412. E, ainda, José Américo Pessanha sugere à autora um subtítulo, para que o leitor possa
identificá-lo "como não-ficção, como apontamentos, como um certo tipo de diário, (...). Ibidem. p.405.
na vida de Clarice, seus textos circulam agora livremente do jornal para o livro,
confundindo realidade e ficção, relendo o tecido social em sua construção descontínua e
fragmentária. Daí querermos dizer que a preocupação de Clarice, com a questão social, a
partir dessa época, aparece nos interstícios mesmo de sua prática escritural, tramada ora
em seu compromisso com o ato de escrever, ora no discurso dramático da escritura.
Quando não, as entrelinhas mesmo dessa escritura de então, que se quer fragmentária e
descontínua, certifica o compromisso da autora com o contexto e sua época. É nas
entrelinhas do discurso da escritura que o saber se diz, diz a época em que está sendo
pensado, funda a escritura e acaba dizendo o seu sujeito enquanto tal.
Talvez não fosse mesmo uma preocupação explícita de Clarice tocar no
"social" da época, o que a destoava da literatura brasileira dos anos 70, mantendo-se,
conforme observou Gomes, "coerente com sua produção, Clarice recusa a literatura
mimética, jornalista, de base naturalista".5 Parece que, antes de demonstrar tal interesse
em dizer alguma coisa (conscientemente) nesse sentido, sua literatura de então, à revelia
da autora, acabou dizendo (inconscientemente) tal problemática.
Benedito Nunes, a respeito do livro Uma Aprendizagem (1969), comenta que
"pela primeira vez, ainda que de maneira canhestra, abstrata e pedante, a vida social como
tema ingressa no romance de Clarice Lispector".6 De acordo com o raciocínio que vimos
explanando até então, pensamos na possibilidade de discordar de Nunes, uma vez que tal 5 GOMES.

Apresentação. Errâncias, labirintos, mistérios. 6 NUNES. O drama da linguagem, p.82.


livro foi escrito dentro de um novo método de escrever praticado por Clarice a partir do
momento em que ela começa a escrever para o Jornal. Tal prática se singulariza pelo
fragmento, notas, anotações, enfim, destroços e pedaços de textos que se dispersam e se
multiplicam, refletindo, às vezes, o texto da época do endurecimento da ditadura militar
brasileira.
Não há como discordar de Vilma Arêas quando afirma que, com a publicação
de Uma Aprendizagem, "um novo estatuto de texto literário está em jogo".7 Aqui Clarice
se vale de uma prática informe, em que a linguagem chega à sua total dissolução, e a
própria organização material do livro desvela a caoticidade do pensamento. Nessa nova
busca por abrir caminho, a preocupação da escritora não parece estar no que escrever,
uma vez que há uma infinidade de textos-fragmentos circulando do jornal para o livro e
vice-versa, nesse período de produção intensa da autora; antes, sua preocupação parece
estar justamente na organização desse material disperso, quando seu objetivo é o de
organizar uma escrita maior, como é o caso dos livros Uma Aprendizagem e Água Viva,
publicados na época. Para a construção de tal empreitada, Clarice se vale de seus próprios
textos, apropriando-se e copiando a si própria como se fosse outro autor. E, nessa prática
desconstrutora, reescreve textos, recopia-os literalmente, enfim, faz citações do autor de
Jornal na ficção e desta naquele, como se fossem autores diferentes e não um mesmo
escritor pensante e atuante de sua época. Desse modo, Clarice acaba não só obtendo uma
nova prática de escrever, como também, e ao mesmo tempo, demanda, por parte do leitor, 7 ARÊAS.
Minas Gerais. Suplemento Literário, p.12-14.
uma participação ativa, intensa e sobretudo cuidadosa nessa economia ficcional levada ao
extremo da própria prática.
Devido a tal economia ficcional, a forma composicional do romance agora é
levada ao limite textual: os fragmentos textuais são reescritos, reelaborados, quando não
recopiados e misturados com a finalidade de disfarçarem sua origem compondo a
escritura. Tal prática escritural, entretanto, deixa marcas, rasuras no seu corpo que se
constrói por uma desarticulação harmoniosa. É dessa rasura, desse traço arcaico que ficou
superposto e aflui à superfície textual, que se torna possível ao leitor, em sua atividade, ler
reconstruindo não apenas o texto/sentido que vem à superfície, como também o que ficou
superposto na trama escritural arquitetada. Para tanto, é preciso que o leitor seja um leitor
cuidadoso e atento a essa prática desconstrutora, senão jamais conseguirá desvelar o
subtexto alojado. Por ser a economia ficcional mais superposta no livro Uma
Aprendizagem, percebe-se, em sua construção, a prática do texto em palimpsesto, em que
os fragmentos são inseridos de forma a ficarem meio "esquecidos" na leitura empreendida
pelo leitor. Já a construção do livro Água Viva, diferentemente daquele, se constrói por
fragmentos justapostos, o que, além de reiterar a economia textual operada, certifica a
interdependência de tais fragmentos.8
8 Vejamos em Poulet a diferença entre os termos justaposição e superposição: "Mas o que é justapor? É colocar uma coisa ao
lado da outra. Ao lado, e não em cima! É preciso distinguir cuidadosamente a justaposição de seu análogo, a superposição. Ambas
implicam a presença de duas realidades contiguas, mas que não se fundiram, colocadas de tal modo que o espírito vai de uma a outra
sem confundi-las, sem multiplicá-las. Porém, a justaposição supõe a simultaneidade das realidades reunidas, enquanto que a superposição
requer o desaparecimento de uma realidade para que a outra apareça." POULET. O espaço proustiano, p.77-78.
Na verdade, são esses fragmentos, descolados de seu lugar de origem e colados
em outro lugar, certificando o processo desconstrutivista praticado, que passam a moldar
a composição ficcional, traduzindo a própria poética da escrita e da leitura praticada por
Clarice Lispector. Daí afirmarmos que essa economia ficcional, antes de representar
algum tipo de "fracasso" na produção da autora, é que vai marcar o tom diferencial de sua
produção nessa época. É com base em tal contexto fragmentário e descontínuo, e porque
reflete no seu interior o mundo exterior desconcertante e sob ruínas, que passaremos a
decompor as práticas (des)construtoras dos livros Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres e Água Viva, talvez com a finalidade maior de ver como as mesmas se
constroem e se dizem enquanto tal no corpo mesmo da escritura.
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres – uma aprendizagem escritural
ou a escritura em palimpsesto
Os papéis colados perderam qualquer traço de seu meio de origem. Inseridos na colagem, os
fragmentos não retêm nada da realidade primitiva a que pertenciam, não conservam nenhuma
significação prévia sobre a qual a significação da própria colagem se construiria.
Compagnon
O livro Uma Aprendizagem é, no dizer sempre pertinente de Benedito Nunes,
um "romance de romances". Nele, a autora, ao investir numa nova aprendizagem
escritural, investe também numa aprendizagem de vida, ao fazer uma "recapitulação" de
seus escritos quer seja por meio de referências diretas ou simplesmente por alusões, reforçando que
a narrativa se compõe por uma superposição textual operada consciente
mente pela autora, ao se valer de pequenos textos fragmentados que, superpostos, resultam
na escritura do livro. A esse respeito, Benedito Nunes já observara que a narrativa se
constitui internamente por anotação diária, registro de uma única palavra na página em
branco, escrita dentro da escrita, história dentro da história e transcrição.9
Nádia Gotlib, por sua vez, vai observar que o livro se constrói "por histórias
que são contadas, mininarrativas enxertadas no romance, pois aí ambos são contadores:
falam, lêem e escrevem". Tal composição reflete a estratégia textual da qual a autora se
vale para organizar a escritura que compõe o livro. Quer seja a composição material do
livro, quer seja a estratégia textual da autora, ambas refletem a economia ficcional do
romance. Devido a tal economia, o livro se constrói de várias outras histórias (textos
enxertados) e da história de amor entre suas personagens, conta a história dessas e, ainda,
representa sua própria história (metaromance).10
Através do jogo discursivo posto em prática no livro, em que o monólogo,
acompanhando a evolução da narrativa, vai cedendo lugar ao diálogo, a autora parece
fazer um autocomentário não só de si, como também de sua produção. A presença
monologal forte, no início do livro, revela um maior número de textos superpostos na
narrativa, como mostraremos mais adiante. À medida que a história romanesco-amorosa
evolui, criando possibilidades de encontros e conversas entre Lóri e Ulisses, como 9 Cf. NUNES. O
drama da linguagem, p.81.
10 Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.388-389.
também à medida que Lóri se aproxima da resposta do "quem sou eu", o monólogo perde
espaço para o diálogo que perdura até o fim do "projeto inacabado" da narrativa.11 Assim,
através dessa desarticulação não só no nível do discurso, mas da própria narrativa, que se
articula numa desarticulação inteligente da autora, o leitor acaba por se deparar com um
texto arquitetado de forma a lhe propiciar desdobramentos de textos e de leituras. Pela
leitura, o leitor participa do jogo tramado na construção escritural do livro e descobre,
para sua surpresa, que textos menores foram superpostos na construção da escritura pela
autora, de forma que suas origens ficassem rasuradas e "esquecidas". Desse modo, o
leitor, além de constatar que tal prática se constrói por textos que são superpostos,
compondo uma escritura em palimpsesto, desvenda tal escritura ao participar de sua
construção pela leitura.
Tal escritura foi organizada de forma a estar o tempo inteiro repetindo para o
leitor: "decifra-me ou te devoro". Como se dissesse: leia-me construindo, ou não me
entenderás jamais. Não sobra muita escolha ao leitor: ou ele deslinda a escritura, deci
frando sua construção, ou corre o risco de não obter nenhum prazer leitural possível. Para
tanto, é preciso ainda que participe não só da própria desarticulação operada pela autora,
como também da composição da escritura, no nível do discurso textual. Ou o leitor aceita
o desafio de participar de tal aprendizagem escritural e discursiva, ou fica do lado de fora
do jogo textual. Ainda a respeito do discurso na narrativa clariceana, vejamos o que diz
Lúcia Helena numa leitura acerca do livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres:
11 Ver NUNES. Do monólogo ao diálogo.
O discurso personalíssimo trança associações insuspeitadas entre as palavras e as coisas,
introjetando na escritura um abismo insondável, que tanto assusta quanto arrebata, podendo expelir o
leitor para longe de seus anéis ou trazê-lo arrastado, seduzido, para dentro da engrenagem mágica,
onde não raro se surpreenderá lançado num movimento em tudo semelhante à busca das personagens
a que a autora dá vida.12
É nesse movimento de busca que o leitor deve investir na desconstrução da escritura em
palimpsesto que constitui o livro Uma Aprendizagem. Escritura essa que indica, pelo
discurso, "a continuação de um movimento", e que se apresenta como "um movimento de
escritura" que continua para além dos dois pontos que dão fim ao romance. Entre a
vírgula que abre o romance, anunciando que a narrativa avança num tempo
indeterminado, e os dois pontos que o concluem em sua materialidade, uma
multiplicidade de histórias e textos menores se encenam quer seja na superfície textual,
quer seja no plano de profundidade, lugar onde um subtexto se aloja e passa a ser
organizado pela leitura não menos palimpséstica do leitor. No plano da superfície textual,
os fragmentos vão aparecer compondo a escritura do livro, quase sempre entre aspas e
isoladamente, ou entre aspas, mas nesse caso, através da personagem Lóri que repete
como seu o suposto texto de sua autora e, ainda, através de blocos de textos que aparecem
"aleatoriamente" na composição. No plano da profundidade textual, os fragmentos vão
aparecer, também compondo a escritura, mas de forma bem mais superposta. Se no plano
da superfície a autora recopia os fragmentos para a composição da escritura, nesse caso,
diferentemente, ela os reescreve de forma que fiquem totalmente chapados na escritura. 12 HELENA.
Minas Gerais. Suplemento Literário, p.10-11.
Aqui tal processo textual é tão disfarçado que os fragmentos não destoam da história
amorosa do livro; antes, como mostra a parte inicial, são retrabalhados no corpo mesmo
da história e da escritura. Tal prática textual acaba desnudando o porquê do processo de
escrever rápido e disfarçado praticado pela autora — a começar pela vírgula que dá início
ao romance —, além de ainda justificar a primazia do monólogo nessa parte do livro.
Comparando-se as duas práticas de superposição textual operadas pela autora na
construção da escritura, percebemos que ambas acabam por demonstrar o próprio
processo de criação empregado: o que a autora escreve antes é, de algum modo,
previamente dirigido pelo que ela vai superpor depois no corpo da escritura.
Antes, porém, de nos atermos à construção da escritura e do próprio livro,
tentando mostrar como se organiza sua composição, através de textos-fragmentos por nós
elencados e comparados com aquele que lhes deu origem,13 devemos marcar o ponto de
vista, o olhar despreendido pela leitura que norteia este texto. E isso não no sentido de
não pluralizar tal leitura, ou de entregar-se a ela, mas, pelo contrário, para não incorrer em
"surpresas" do próprio jogo escritural. Na relação entre crítico e texto, todo cuidado é
pouco, uma vez que há um "excesso" nessa relação que escapa, ficando de fora do jogo,
mas que, por sua vez, proporcionará novas investidas. Tais investidas jamais abarcarão a
totalidade do que quer que seja, deixando sempre um lugar para que um outro sujeito se
13 A leitura deste trabalho privilegia a perspectiva de que os textos-fragmentos saem de seu lugar de origem e são reescritos e/ou
colados no livro. Entretanto, sabemos que o inverso é também verdadeiro, porque nessa época "jornalística" – de 1967 a 1973
aproximadamente –, Clarice escreve os livros Uma aprendizagem (1969) e Água viva (1973) e, por não ter o que "contar", acaba
publicando no Jornal do Brasil fragmento do livro que escrevia. Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.373-377.
aproprie do que é do outro e o faça seu, pelo menos até onde ele possa dar conta. Aqui
lembramos Derrida, quando declara que
há sempre uma surpresa guardada para a anatomia ou para a fisiologia de qualquer crítica que
possa pensar que domina o jogo, que controla todos os fios simultaneamente, enganando-se também
ao querer olhar para o texto sem tocálo, sem pôr a mão no objeto, sem arriscar — que é a única
chance de se entrar no jogo, tendo alguns dedos presos — a adição de algum fio novo. Acrescentar,
aqui, não é nada além do que entregar à leitura.14
Em vista disso, a leitura aqui se define exatamente pelo desejo de escrever do escritor e
pelo desejo de ler do leitor, resultando ambos num desejo comum e sobretudo "criativo".
Entregar-se a tal leitura, leitura essa que move esse texto, é correr o risco de tocar no que
está oculto, não querendo se dizer para o leitor, a não ser que seja pelo gesto inventivo de
leitura. Desse modo, por precaução e cuidado, antes de nos atermos especificamente à
escritura do livro, devemos delimintar ainda mais a perspectiva leitural aqui empregada.
Tal leitura partirá da consideração feita pela própria autora Clarice Lispector a respeito do
livro: "um romance falhado".15 Devemos lembrar que Vilma Arêas, em seu artigo "A
moralidade da forma", lê o livro a partir dessa perspectiva, examinando-o segundo dois
aspectos: "Sua ligação com o trabalho anterior de Clarice e o tratamento da questão
social."16 É por aqui que nossa leitura se desenvolve: não dando ênfase à questão social,
uma vez que pensamos que esta vem inserida no alicerce da própria escritura, mas no
14 DERRIDA, citado por ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.112.
15 Ver GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.394.
16 ARÊAS. Minas Gerais. Suplemento Literário, p.12-14.
sentido da relação entre os diferentes textos da autora, o processo apropriatório que ela faz
de si mesma na composição da escritura do livro.
Se noutra parte deste trabalho defendíamos a idéia de que devemos ler um
escritor desconfiando do que ele diz, e se agora estamos tomando ao pé da letra o que disse
Clarice a respeito da construção do livro, é porque é como livro "falhado" que melhor
podemos nos aproximar de sua construção enquanto escritura em palimpsesto. Livro
falhado, que apresenta "falhas", o que não quer dizer falta, é o modo como o romance
apresenta as marcas de sua composição e a "liberdade maior" exigida de sua autora,
conforme ela mesma observa em nota ao livro. Melhor ainda seria dizer livro composto
aos pedaços, de acordo com a prática fragmentária que circunda os anos 67, 68 e 69 da
produção da autora. Nessa prática fragmentária, que acaba refletindo e sendo o reflexo da
época do endurecimento da ditadura militar brasileira, a autora se apropria de seus textos
crônicas-fragmentos e organiza esse livro falhado, que denuncia a nova aprendizagem
buscada. Dentro dessa prática, no trabalho de reescrever os textos-crônicas-fragmentos
para compor a narrativa do livro, situa-se o primeiro "ato falho" de composição. Ao
reescrever uma crônica para inseri-la no romance, escapa alguma coisa da ordem da
reelaboração, o que reforça o tom descontínuo da narrativa. No trabalho de organizar um
texto-crônica, dentro do corpo da escritura, ocorre, às vezes, um descompasso, como se
um fragmento ficasse em falso na construção, denunciando um certo desritmo na
narrativa. Outras vezes, o trabalho de reescrever é perfeito, e, nesse caso, o texto-crônica
fica totalmente chapado na superposição textual operada pela autora. Mas, enfim, de uma forma ou de
outra, o que acaba levando o projeto romanesco até o fim é o trabalho sempre
intuitivo da autora.
O trabalho de superpor fragmentos vai resultar numa narrativa que se constrói
por várias mininarrativas que, muitas vezes, é o que redunda na desarticulação necessária
não só à escritura, mas sobretudo a qualquer leitura. Dessa forma, o livro Uma
Aprendizagem se constrói por uma narrativa descontínua e intervalada, que o sustém do
começo ao fim por um fio inacabado.17 Nessa reelaboração, "o trabalho da citação" dos
fragmentos leva a escritura à exaustão, no sentido de que esta cita-se a si mesma em sua
construção. A autora, por assim dizer, como mais uma citação do mundo ficcional, uma
vez que cita ela mesma, acaba re-citando duas vezes o mesmo fragmento na escritura do
livro, o que dá aquele tom do já-lido, do já-citado dentro do mesmo texto,
exaustivamente. Devemos observar ainda, a respeito da questão do "romance falhado",
que os encaixes dos fragmentos quebram a suposta linearidade da construção narrativa, e
que a escrita já é, conseqüentemente, uma composição dirigida, organizada de
fragmentos.
17 A respeito da heterogeneidade e da construção da narrativa do livro, citemos Vilma Arêas que observa: "Fiz referência às
formas heróicas, mas existe o registro bíblico (é evidente a retomada do episódio edênico, Adão, Eva e a maçã), as orações sussurradas
pela personagem, banalidades de uma 'história de amor' (creio que a velocidade da mudança na esfera dos costumes tornou demodés
certos dilemas e valores), informações científicas (que em G.H. se encaixam perfeitamente na camada imagística), as maiúsculas
(Infinito, Mundo, Onipotência, etc.) que reintroduzem em OLP certo tom hierático do romance decadente, a ourivesaria de imagens e o
pendor para o ornamento da art nouveau, tentativas de abordagem da questão social (Ulisses é 'socialista' e Lóri, professora de crianças
pobres, gasta a mesada do pai rico, comprando-lhes agasalhos rubros, iguais aos próprios mas a isso voltaremos mais adiante), poemas
alheios traduzidos e até mesmo uma proposta sutil de romance policial, forma que sempre ronda Clarice: a narrativa gira obsessivamente
ao redor do teor da aprendizagem, que não é dito, que Lóri tem de descobrir, tornando-se consciente do óbvio; o óbvio que, como
sabemos, sustenta o raciocínio analítico dos grandes detetives da tradução, ocupados em descobrir uma linha que una, numa mesma
superfície, à tona do texto, a seqüência de causa e conseqüências." ARÊAS. Minas Gerais. Suplemento Literário, p.12-14.
A primeira linha que abre a escritura do livro Uma Aprendizagem já faz o
leitor levantar a cabeça ao perceber que ali ocorre um trabalho de citação: um texto
crônica-fragmento foi recortado (reescrito) e colado (superposto) na escritura "oficial" do
livro. A leitura aqui efetuada descola o fragmento da escritura, converte-o em texto de si,
querendo lembrar de seu estado/lugar de origem (crônica). Tal leitura tem um recorte
definido: grifa, assinala apenas os fragmentos (crônicas) citados e que foram percebidos
por ela, durante sua realização. De certa forma, o trabalho da leitura repete o mesmo gesto
praticado pela escritora no ato de escrever, organizar a escritura do livro, porque ambos,
escritor e leitor, trabalham com os mesmos fragmentos. A diferença se dá somente
quando se percebe que o primeiro se vale dos fragmentos para compor o texto, enquanto o
segundo se vale deles para decompor, alterar sua organização:
, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque
cada vez mais matava o serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos, dera vários
telefonemas tomando providências, inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de
encanamentos de água, fora à cozinha para arrumar as compras e dispor na fruteira as maçãs que
eram a sua melhor comida, embora não soubesse enfeitar uma fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a
possibilidade futura de por exem-plo embelezar uma fruteira, viu o que a empregada deixara para
jantar antes de ir embora, pois o almoço estivera péssimo, enquanto notara que o terraço pequeno que
era
Ela estava muito ocupada: viera das compras de casa, deu vários telefonemas inclusive um
dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos de água, foi à cozinha ver se o almoço dos
meninos se adiantava, eles não podiam atrasar-se na ida à escola, riu de uma graça de uma das
meninas, recebeu um telefonema convidando-a para um chá de caridade, preparou a merenda das
crianças, e afinal fechou a porta à saída delas.
Então — então do ventre mesmo, como de um longínquo estremecer de terra que mal se sabe
ser o sinal do terremoto, do ventre o estremecimento gigantesco de uma forte torre abalada, do
ventre vem o estremecimento — e em
18 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.11-12.
privilégio de seu apartamento por ser térreo precisava ser lavado, recebera um telefonema
convidando-a para um coquetel de caridade em benefício de alguma coisa que ela não (...)
Então do ventre mesmo, como um estremecer longínquo de terra que mal se soubesse ser sinal
do terremoto, do útero, do coração contraído veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do
corpo todo o abalo — e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo
rasgando a terra — veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma,
aquele que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e não previra — sacudida como
a árvora fote que é mais profundamente abalada que a árvora frágil — afinal rebentados canos e
veias, então18
caretas não só de rosto mas de corpo vem com uma dificuldade de petróleo abrindo terra
dura — vem afinal o grande choro, um choro quase mudo, só a tortura seca do choro mudo
entrecortado de soluços, o choro secreto até para ela mesma, aquele que ela não adivinhou,
aquele que ela não quis nem previu — sacudida como uma árvore que é sempre mais sacudida que
a fraca — e afinal rebentados canos e veias e tendões pela grossura da água salgada do choro. Só
depois que passa percebe que nenhum lágrima a molhou. Foi o seco terremoto de um choro.19
O que aparece grifado, na leitura do fragmento recortado do livro, é o que foi reescrito, ou
recopiado, simplesmente, pela autora. No caso dessa citação, mesmo a autora tendo
reescrito, disseminando as palavras e alterado o contexto da história romanesca, constata
se, pela leitura, que o fragmento do livro lembra a crônica "O terremoto" como sua
origem. A leitura aqui desenvolvida nada mais seria que uma citação, uma vez que se
constrói a partir dos textos-crônicas-fragmentos que ela destaca e recorta da escritura do
livro, comparando-os com a leitura posterior dos textos-crônicas-fragmentos, antes de
serem citação. O que grifamos no livro comprova que a autora praticou o trabalho de
reescrever seus fragmentos, superpondo-os na escritura de Uma Aprendizagem, 19 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.225-226. A crônica "O terremoto" foi publicada no Jornal do Brasil, no dia 23 de novembro de 1968.
produzindo, assim, uma escritura em palimpsesto. E o que vem em itálico no texto
fragmento ao lado, nada mais seria, então, do que o reconhecimento de tal trabalho
operado pela autora e, ainda, reconhecimento do valor da leitura aqui praticada. O grifo
da leitura do livro seria, ainda, mais do que qualquer sentido encontrado, seu marco
material e o lugar onde o leitor se acomoda para destacar os textos-crônicas. Tais textos,
antes citados (reescritos) pela autora na construção da escritura do livro, agora são re
citados na leitura efetivada pelo leitor, de forma fragmentária e incompleta, uma vez que
o texto contemporâneo (Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres) é o simulacro
mesmo de sua própria citação.
Na parte inicial do livro, Clarice superpõe vários textos-crônicas-fragmentos,
constituindo verdadeiros blocos textuais que denominam o próprio parágrafo.20 Para
disfarçar o processo de reescrita de seus próprios textos, a autora interrompe um parágrafo
pelo meio e retoma o seguinte de forma contínua e natural, com o objetivo, talvez, de que
o fragmento superposto não aflore na superfície textual, ficando para sempre esquecido na
leitura. Se observamos o primeiro bloco do livro por nós citado, e compararmos com o
texto-crônica ao lado, perceberemos que aquilo que a autora suspende na construção —
quer seja valendo-se de uma vírgula, dois pontos, travessão ou simplesmente deixando a
última palavra escrita no começo ou meio da linha — encontra-se concluindo o parágrafo
da crônica. 20 "Ora, o parágrafo designa hoje o próprio bloco, conteúdo, intercalado entre dois parágrafos, no sentido antigo da
palavra." COMPAGNON. O trabalho da citação, p.26.
O primeiro bloco ou texto-fragmento do livro aqui apresentado, ao ser
suspenso na escritura pela autora, desemboca noutro parágrafo (ou bloco) que traz outro
texto-crônica-fragmento que, pela sua construção repetitiva, lembra o já-lido, já-escrito e
que, por isso, pede para ser lido como mais uma citação do texto:
sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o
crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de
conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz
de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escor-rendo sangue escarlate, e que ela não
estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio
do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-
cintilante, faz de conta que amava e era
amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma
transparente da
Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a
infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta
que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de
morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no
meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta
verdecintilante de olhos que vêem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não
precisava morrer de saudade, faz
de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e não
que estivesse
mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir,
faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar
cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os
fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela
era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta
que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela
fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta
que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz
douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de
conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro21
morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta
que ela não ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não
sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de
marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a
cor da lua, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os
olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que tudo o que tinha não era de faz de conta,
faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava pela floresta de açudes
tranqüilidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando22
Clarice pratica uma cópia quase perfeita do texto-crônica-fragmento ao trazê-lo para
dentro do livro, não fosse a alteração de alguns verbos e adjetivos que acabam mudando
sensivelmente o estado pessoal da personagem Lóri. Por outro lado, o que Clarice
acrescenta de mais substancial dentro do fragmento reescrito, como "não Lóri mas o seu
nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir", destoa do corpo da citação. 21
LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.12-13.
22 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.208-209. A crônica "Faz de conta" foi publicada no Jornal do Brasil, em 19 de outubro de
1968.
Tal descompasso se dá quase todas as vezes em que a autora reescreve o texto-fragmento
para compor a escritura. Nesse caso, tem-se uma composição imperfeita — não
necessariamente negativa — que justifica a idéia de "romance falhado": romance-corpo
que apresenta não só os problemas de sua construção, mas as falhas que o sustentam.
Outras vezes, quando a autora não reescreve o texto-fragmento, mas o copia literalmente,
e às vezes se valendo de aspas, o descompasso encontrado na escritura é de outra ordem.
Neste caso, diferentemente daquele, talvez o descompasso seja menos no nível da
construção da escrita que do sentido. Se tal descompasso de sentido ocorre nos
fragmentos intercalados "aleatoriamente" no corpo da escritura, os fragmentos que são
recopiados com aspas denunciam a presença dissimulada do sujeito-escritor e seu trabalho
de citação/apropriação de si mesmo. Enfim, quer seja num caso ou noutro, o mais
importante é perceber, na leitura, o trabalho de citar, de reescrever praticado pela autora,
porque esse trabalho é que faz o texto. Participando desse trabalho, desse jogo começado
pelo autor, chega-se ao sentido: "O sentido vem por acréscimo, ele é o suplemento do
trabalho."23
A prática da qual Clarice se vale para organizar os parágrafos, que dão início à
primeira parte do livro, faz com que os blocos textuais reflitam o desenho da própria
prática de reescrever-colar ali operada. Suspender um parágrafo antes do fim, deixando-o
inacabado, para que o outro comece pelo meio é, como já dissemos, uma prática
inteligente da autora de superpor/citar seus fragmentos, organizando, assim, a escritura do 23
COMPAGNON. O trabalho da citação, p.34.
livro. Se este se organiza de várias "folhas soltas" ou textos-fragmentos, que nele se tecem
e são citados por sua autora, o texto é, por conseguinte, a própria prática das folhas soltas,
dos fragmentos, como quer Compagnon: O texto é a prática do papel.24 Nessa prática de
escolher, reescrever e citar os fragmentos na composição da escritura do livro, tem-se o
recorte da leitura da autora e, por conseguinte, a elaboração da escritura. Pela leitura, o
leitor num gesto semelhante ao do autor, escolhe o fragmento — ou é escolhido por
ele? —, recorta-o, fazendo dele citação sua. Com a leitura, que é sempre seletiva, na qual
o leitor acaba lendo uns fragmentos e deixando outros de fora do recorte, ocorre uma
verdadeira explosão do texto-tutor organizado pelo autor. Mas em nada diferente do
trabalho de recortar e colar do autor, só resta ao leitor repetir: "Construo um mundo à
minha imagem, um mundo onde me pertenço, e é um mundo de papel."25
Assim, nessa prática do papel que é a prática do texto, Clarice trabalha a escrita
do livro Uma Aprendizagem que já é uma reescrita, porque a autora se apropria de textos
fragmentos separados e descontínuos e organiza-os de forma a comporem a escritura do
livro. Tal prática confirma uma escrita em que os textos-fragmentos são colados de modo
que fiquem a ela superpostos. Desse modo, cabe ao leitor, com seu trabalho, recopiar em
sua leitura os textos-fragmentos encontrados, recortados do todo do texto, justificando,
assim, que, antes da leitura buscar o sentido, opera o trabaho de recortar e colar, enfim, de
citar, já esboçado pelo autor. Nesse campo minado chamado texto, parece impossível 24 COMPAGNON.
O trabalho da citação, p.13. 25 Ibidem. p.12.
falar-se em "um sentido", mas tão-somente em uma "pluralidade de sentidos", porque é na
própria prática do papel de recortar-colar que o sentido se produz e se diz.
Ainda na parte que abre o livro Uma Aprendizagem, vamos encontrar vários
outros textos-crônicas-fragmentos ali reescritos que, além de trabalharem agora na
composição da escritura, citam-se na lembrança do leitor que os lê na origem, antes de
serem citação. No ato do seu trabalho, o leitor lembra de uma leitura, um texto-fragmento
posterior lido em seu próprio corpo-origem, assim como a personagem Lóri que, não
tendo nada o que escrever (à Ulisses), lembra-se da seguinte leitura:
Agora lúcida e calma, Lóri lembrou-se de que lera que os movimentos histéricos de um animal
preso tinham como intenção libertar, por meio de um desses movimentos, a coisa ignorada que o
estava prendendo — a ignorância do movimento único, exato e libertador era o que tornava o animal
histérico: ele apelava para o descontrole — durante o sábio descontrole de Lóri ela tivera para si
mesma agora as vantagens libertadoras vindas de sua vida mais primitiva e ani-mal: apelara
histericamente para tantos sentimentos contraditórios e violentos que o sentimento libertador
terminara desprendendo-a da rede, na sua ignorância animal ela não sabia sequer como,26
Li uma vez que os movimentos histéricos tendem a uma libertação por meio de um desses
movimentos. A ignorância do movimento exato, que seria o libertador, torna o animal histérico,
isto é, ele apela para o descontrole. E, durante o sábio descontrole, um dos movimentos sucede ser
o libertador.
Isso me fez pensar nas vantagens libertadoras de uma vida apenas primitiva, apenas
emocional. A pessoa primitiva apela, como que histericamente, para tantos sentimentos
contraditórios que o sentimento libertador termina vindo à tona, apesar da ignorância da pessoa.27
26 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.14.
27 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.389. A crônica "Os recursos de um ser primitivo" foi publicada no Jornal do Brasil, em
20 de dezembro de 1969.
O que antes na crônica fora lido por Clarice Lispector, agora, no livro, é lido — re-lido,
re-citado — pela então personagem-escritora Lóri. Diante dessa prática de papéis autorais
e, conseqüentemente, leiturais, confirma-se o processo de reescrever operado por Clarice,
e a prática empregada na construção da escritura do livro. Outro exemplo da ritualística
que move a prática de reescrever encontrada no livro acha-se disseminado nas páginas
seguintes, quando a autora apropria-se da crônica "O ritual":
enfeitar-se era um ritual que a tornava grave: a fazenda já não era um mero tecido,
transformava-se em matéria de coisa e era esse estofo que com o seu corpo ela dava corpo — como
podia um simples pano ganhar tanto movimento? seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do
pequeno terraço estavam de seda castanha mais antiga — bonita? não, mulher: Lóri então pintou
cuidadosa-mente os lábios e os olhos, o que ela fazia, segundo uma colega, muito mal feito, passou
perfume na testa e no nascimento dos seios — a terra era perfumada com cheiro de
(...)
— usaria brincos? hesitou, pois queria orelhas apenas delicadas e simples, alguma coisa
modestamente nua, hesitou mais: riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas
de corça e torná-las secretas, mas não resistiu: descobriu-as, esticando os cabelos para trás das
orelhas incongruentes e pálidas: rainha egípcia? não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e havia
também algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me, meu
Enfeitar-se é um ritual tão grave. A fazenda não é um mero tecido, é matéria de coisa. É a
esse estofo que com meu corpo eu dou corpo. Ah, como pode um simples pano ganhar tanta vida?
Meus cabelos, hoje lavados e secados ao sol do terraço, estão da seda mais antiga. Bonita? Nem
um pouco, mas mulher. Meu segredo ignorado por todos e até pelo espelho: mulher. Brincos?
Hesito. Não. Quero a orelha apenas delicada e simples — alguma coisa modestamente nua. Hesito
mais: riqueza ainda maior seria esconder com os cabelos as orelhas. Mas não resisto: descubro-
as, esticando os cabelos para trás. E fica de um feio hierático como o de uma rainha egípcia, com
o pescoço alongado e as orelhas incongruentes. Rainha egípcia? Não, sou eu, eu toda ornada
como as mulheres bíblicas.29
28 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.15-16.
29 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.225. A crônica "O ritual" foi publicada no Jornal do Brasil, em 23 de novembro de 1968.

amor, ou serei obrigada a devorar, e28


No ritual de escrever o livro reescrevendo os textos-crônicas-fragmentos, Clarice
apropria-se deles, recortando-os e superpondo-os ao longo do corpo da escritura, fazendo
dessa uma pergunta sempre aberta ao leitor: "Decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a
devorar." O leitor, longe de não querer decifrar nada, joga, recorta, participa do texto
enquanto prática de papel e pára novamente, à página seguinte do livro, na qual mais um
texto-crônica-fragmento se diz na leitura:
Mais uma vez, nas suas hesitações confusas, o que a tranqüilizou foi o que tantas vezes lhe
servia de sereno apoio: é que tudo o que existia, existia com uma precisão absoluta e no fundo o que
ela terminasse por fazer ou não fazer não escaparia dessa precisão; aquilo que fosse do tamanho da
cabeça de um alfinete, não transbordava nenhuma fração de milímetro além do tamanho de uma
cabeça de alfinete: tudo o que existia era de uma grande perfeição. Só que a maioria do que existia
com tal perfeição era, tecnicamente, invisível: a verdade, clara e exata em si própria, já vinha vaga e
quase insensível à mulher.
Bem, suspirou ela, se não vinha clara, pelo menos sabia que havia um sentido secreto das coisas
da vida. De tal modo sabia que às vezes, embora confusa, terminava pressentindo a perfeição —30
O que me tranqüiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do
tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho
de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte
do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara
em si própria, quando chega até nós se torna vaga pois é tecnicamente invisível. O bom é que a
verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.31
30 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.17.
31 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.226. A crônica "A perfeição" foi publicada no Jornal do Brasil, em 23 de novembro de
1968.
Aqui, mais uma vez, Clarice, com grande perfeição, reescreve e dissemina a crônica no
livro, de modo que fique totalmente invisível para o leitor o trabalho de apropriação. Mas
o leitor, conhecedor de tal perfeição escritural, pontua a escritura com uma certa
desconfiança, o que, por sua vez, propicia que ele participe do "sentido secreto" da
criação da escritura. E seguindo seu recorte leitural, o leitor chega, para sua surpresa, ao
final da parte que dá início ao livro grifando o último texto-crônica-fragmento que pede
para ser citado em tal leitura:
olhou-se avidamente de perto no espelho e se disse deslumbrada: como sou misteriosa, sou tão
delicada e forte, e a curva dos lábios manteve a inocência.
Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia homem ou mulher que por acaso não se tivesse
olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se
via como um objeto a ser olhado, o que poderiam chamar de narcisismo mas, já influenciada por
Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah,
então é verdade que eu não imaginei: eu existo.32
Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte.
E a curva dos lábios manteve a inocência.
Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido
consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado. A isto
se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na
figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei, eu existo.33
E assim o leitor chega ao final da primeira parte (capítulo?) que abre o livro, querendo,
desde o início de seu recorte leitural, grifar o fragmento do livro e, ao mesmo tempo, o
texto-crônica-fragmento, porque a autora pratica um "ato de reescrever" tão perfeito que 32
LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.19.
abala para sempre a origem textual. Comparando o fragmento do livro com aquele que lhe
deu origem, o leitor percebe que este, talvez até mais do que aquele, é outro texto, que
subsiste em sua uni(ci)dade e que qualquer possível relação entre ambos se dê apenas da
parte subjetiva da leitura. Desse modo, trabalhando com textos, entre os quais o elo foi
rasurado — o que não quer dizer apagado —, o leitor vale-se de sua leitura (fundando-a
enquanto tal) e grifa no livro o fragmento que lembra aquele texto-crônica que lhe deu
origem. Assim, se o grifo que o leitor faz no livro corresponde à sua leitura material e é
prova preliminar da presença do texto-crônica enquanto lembrança circular de citação,
não seria menos verdade ainda dizer que tal grifo acaba reconstruindo o texto posterior
(origem). Lendo no livro o que já fora lido na crônica, antes desta se tornar citação,
percebe-se o descompasso entre os textos, até mesmo no nível do contexto de ambos.
Nota-se ainda, conforme já observamos, um certo descompasso entre o que o leitor grifa
no livro e sua relação não só com a escritura, mas com a própria narrativa. Tal
descompasso de ritmo reflete, por sua vez, a descontinuidade narrativa e o próprio
processo de reescrever-sobrepor que caracteriza a escritura em palimpsesto do livro.
Retomando o fragmento do livro, e agora sem nenhuma surpresa, diríamos que ele, assim
como os demais até aqui elencados, e ainda com os que vamos recortar, é o lugar onde um
subtexto se aloja e se diz na escritura. 33 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.226. A crônica "A surpresa" foi
publicada no Jornal do Brasil, em 19 de agosto de 1967.
Se, terminada a primeira parte do livro, podemos constatar que Clarice
reescreveu os textos-crônicas de modo que ficassem superpostos, tecidos na profundidade
textual, o mesmo parece não ocorrer na parte seguinte do livro. Nesta parte,
diferentemente da primeira — onde a junção entre os fragmentos e a escritura é quase
perfeita, ficando os fragmentos reescritos chapados e indivisíveis no corpo escritural —,
os fragmentos aparecem colados, sendo eles, em sua extensão, uma parte do todo da
escritura. Nesse caso, mesmo a autora reescrevendo o fragmento da crônica para o livro,
suprimindo algumas linhas e acrescentando outras para dar ritmo à história e à escritura, e
ainda acrescentando o nome da personagem Lóri e criando "blocos" que não existiam na
origem, percebe-se que o fragmento reescrito aparece descolado do ritmo e/ou tom da
escritura do livro, justificando aquela idéia de "livro falhado". O que, por sua vez,
justifica que a leitura é um trabalho de citação, uma vez que ela produz a citação, e não o
contrário, como poderia se pensar. "A citação repete", diz Compagnon, "faz com que a
leitura ressoe na escrita: é que, na verdade, leitura e escrita são a mesma coisa, a prática
do texto que é a prática do papel".34
Diante disso, vejamos a parte do livro aqui descrita e o texto-crônica
fragmento como prova preliminar do que se disse e para que outras comparações surjam
no grifo da leitura:
Haviam-se passado momentos ou três Não, não fazia vermelho. Era quase mil anos? Momentos pelo
relógio em noite e estava ainda claro. Se pelo
34 COMPAGNON. O trabalho da citação, p.23.
que se divide o tempo, três mil anos pelo que Lóri sentiu quando com pesada angústia, toda
vestida e pintada, chegou à janela. Era uma velha de quatro milênios.
Não — não fazia vermelho. Era a união sensual do dia com a sua hora mais crepuscular. Era
quase noite e estava ainda claro. Se pelo menos fosse verme-lho à vista como o era nela intrinseca-
mente. Mas era um calor de luz sem cor, e parada. Não, a mulher não conseguia transpirar. Estava
seca e límpida. E lá fora só voavam pássaros de penas empalhadas. Se a mulher fechava os olhos
para não ver o calor, pois era um calor visível, só então vinha a aluci-nação lenta simbolizando-o:
via elefantes grossos se aproximarem, elefantes doces e pesados, de casca seca, embora mergu-
lhados no interior da carne por uma ternura quente insuportável; eles eram
menos fosse vermelho à vista como o era intrinsecamente. Mas era um calor de luz sem cor, e
parada. Não, a mulher não conseguia transpirar. Estava seca e límpida. E lá fora só voavam
pássaros de penas empalhadas. Mas era um calor visível, se ela fechava os olhos para não ver o
calor, então vinha a alucinação lenta simbolizando-o: via elefantes grossos se aproximarem,
elefantes doces e pesados, de casca seca, embora molhados no interior da carne por uma ternura
quente insuportável; eles eram difíceis de se carregarem a si próprios, o que os tornava lentos e
pesados.
Ainda era cedo para acender as lâmpadas, o que pelo menos precipitaria uma noite. A noite que
não vinha, não vinha, não vinha, que era impossível. E o seu amor que agora era impossível — que
era seco como a febre
difíceis de se enganarem a si próprios, o que os tornava lentos e pesados.
Ainda era cedo para acender as lâmpadas, o que pelo menos precipitaria uma noite. A noite que
não vinha, não vinha, não vinha, que era impossível. E o seu amor que agora era impossível — que
era seco como a febre de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. E "eu te amo" era uma
farpa que não se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé.
Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável. Mas ah, a falta de sede. Não havia senão
faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem pontas salientes por onde serem
pinçadas e extirpadas. Só os dentes estavam úmidos. Dentro de uma boca voraz e ressequida os
dentes úmidos mas duros — e sobretudo a boca voraz para nada. E o nada era quente naquele fim de
tarde eternizada pelo planeta Marte.
Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os pardais secos. "Eu vos amo, pessoas", era
frase impossível. A humanidade lhe era como morte eterna que no entanto não tivesse o alívio de
enfim morrer. Nada, nada morria na tarde enxuta, nada apodrecia. E às seis horas da tarde fazia
meio-dia. Fazia meio-dia com um barulho atento de máquina de bomba de água, bomba que
trabalhava há tanto tempo sem água e que virara ferro enferrujado: há dois dias faltava água em
diversas zonas da cidade. Nada jamais fora tão acordado como seu corpo sem transpiração e seus
olhos diamantes, e de vibração parada. E o Deus? Não. Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem
contração. Não havia grito.
Enquanto isso era verão. Verão largo como o pátio vazio nas férias da escola?
de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. E "eu te amo" era uma farpa que não
se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé.
Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável. Mas ah, a falta de sede. Não havia senão
faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem pontas salientes por onde serem
pinçadas e extirpadas. Só os dentes estavam úmidos. Dentro de uma boca voraz e ressequida os
dentes úmidos mas duros — e sobretudo boca voraz de nada. E o nada era quente naquele fim de
tarde eternizada.
Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os pardais secos. "Eu vos amo, pessoas", era
frase impossível. A humanidade lhe era como uma morte eterna que no entanto não tinha o alívio de
enfim morrer. Nada, nada morria na tarde enxuta, nada apodrecia. E às seis horas da tarde fazia
meio-dia. Fazia
meio-dia com um barulho atento de máquina de bomba de água, bomba que trabalhava há tanto
tempo sem água e que virara ferro enferrujado. Há dois dias faltava água na cidade. Nada jamais fora
tão acordado como seu corpo sem transpiração e seus olhos diamantes, e de vibração parada. E
Deus? Não. Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem contração. Não havia grito.
Enquanto isso era verão. Verão largo como um pátio vazio nas férias da escola. Dor? Nenhuma.
Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada: como a da casca lenta
dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e quente. Pensar no seu homem? Não, farpa
na sola do pé. Filhos? Quinze filhos dependurados, sem se balançarem à ausência de vento. Ah, se as
mãos começassem a se umede
Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrimas e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada:
como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e quente. Pensar no
seu homem? Não, era a farpa na parte coração dos pés. Lamentar não ter casa-do e não ter filhos?
Quinze filhos depen-durados, sem se balançarem à ausência de vento. Ah, se as mãos começassem a
se umedecer. Nem que houvesse água, por ódio não se banharia. Era por ódio que não havia água.
Nada escorria. A dificuldade era uma coisa parada. É uma jóia diamante. A cigarra de garganta seca
não parava de rosnar. E se o Deus se liquefaz enfim em chuva? Não. Nem quero. Por seco e calmo
ódio, quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a cigarra rude torna sensível. Sensível? Não
se sente nada. Senão esta dura falta de ópio que amenize. Quero que isto que é intolerável continue
porque quero a eternidade. Quero esta espera contínua como o canto avermelhado da cigarra, pois
tudo isso é a morte parada, é a Eternidade de trilhões de anos das estrelas e da Terra, é o cio sem
desejo, os cães sem ladrar. É nessa hora que o bem e o mal não existem. É o perdão súbito, nós que
nos alimentávamos com indiferença de um perdão. Pois não há
mais julgamento. Não é um perdão que tenha vindo depois de um julgamento. É a ausência de
juiz e condenado. E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são duas pérolas
secas. Vou vos dizer a verdade: por ódio seco, quero é isto mesmo, e que não chova.
E exatamente então ela ouve alguma coisa. Uma coisa também seca que a deixa ainda mais seca
de atenção. É um rolar de trovão seco, sem uma saliva, que rola, mas onde? No céu nu e
cer. Nem que houvesse água, por ódio não tomaria banho. Por ódio não havia água. Nada
escorria. A dificuldade é uma coisa parada. É uma jóia-diamante. A cigarra de garganta seca não
parava de rosnar. E Deus se liquefez enfim em chuva? Não. Nem quero. Por seco e calmo ódio,
quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a cigarra rude torna sensível. Sensível? Não se
sente nada. Senão esta dura falta de ópio que amenize. Quero que isto que é intolerável continue
porque quero a eternidade. Quero esta espera contínua como o canto avermelhado da cigarra,
pois tudo isso é a morte parada, é a eternidade, é o cio sem desejo, os cães sem ladrar. É nessa
hora que o bem e o mal não existem. É o perdão súbito, nós que nos alimentávamos da punição.
Agora é a indiferença de um perdão. Não há mais julgamento. Não é o perdão depois de um
julgamento. É a ausência de juiz e de condenado. E a morte, que era para ser uma única boa vez,
não: está sendo sem parar. E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são duas
pérolas secas. Vou vos dizer a verdade: por ódio seco, quero é isto mesmo, e que não chova.
E exatamente então ela ouve alguma coisa. É uma coisa também enxuta que
a deixa ainda mais seca de atenção. É um rolar de trovão seco, sem uma saliva, que rola mas
onde? No céu absolutamente azul, nem uma nuvem de amor. Deve ser de muito longe o trovão. Mas
ao mesmo tempo vem um cheiro adocicado de elefantes grandes, e de jasmim da casa ao lado. A
Índia invadindo, com suas mulheres adocicadas. Um cheiro de cravos de cemitério. Irá tudo mudar
tão de repente? Para quem não tinha nem noite nem chuva
absolutamente azul sem nenhuma nuvem de amor que chore. Deve ser de muito longe o trovão.
Ao mesmo tempo o ar tem um cheiro adocicado de elefantes grandes, e de jasmim adocidado da casa
ao lado. A Índia invadindo o Rio de Janeiro com suas mulheres adocicadas. Um cheiro de cravos de
cemitério. Irá tudo mudar tão de repente? Para quem não tinha nem noite nem chuva nem
apodrecimento de madeira na água — para quem não tinha senão pérolas, será que a noite vai
chegar? Vai ter madeira enfim apodrecendo, cravo vivo de chuva no cemitério, chuva que vem da
Malásia?
A urgência é ainda imóvel mas já tem um tremor dentro. Lóri não percebe que o tremor é seu,
como não percebera que aquilo que a queimava não era o fim da tarde encalorada, e sim o seu calor
humano. Ela só percebe que agora alguma coisa vai mudar, que choverá ou cairá a noite. Mas não
suporta a espera de uma passagem, e antes da chuva cair, o diamante dos olhos se liquefaz em duas
lágrimas.
E enfim o céu se abranda.36
nem apodrecimento de madeira na água — para quem não tinha senão pérolas, vai vir a
noite, vai vir madeira enfim apodrecendo, cravo vivo de chuva no cemitério, chuva que vem da
Malásia? A urgência é ainda imóvel mas já tem um tremor dentro. Ela não percebe, a mulher, que
o tremor é seu, como não percebera que aquilo que a queimava não era a tarde encalorada e sim o
seu calor humano. Ela só percebe que agora alguma coisa vai mudar, que choverá ou cairá a
noite. Mas não suporta a espera de uma passagem, e antes da chuva cair, o diamante dos olhos se
liquefaz em duas lágrimas. E enfim o céu se abranda.35
A leitura assinala praticamente todo o fragmento recortado do livro, dando a ilusão de
uma cópia perfeita do texto anterior. Entretanto, se lido um ao lado do outro e ao mesmo
tempo, percebe-se uma tênue mudança, inclusive sintática, entre ambos. Além do
contexto que põe cada fragmento em seu devido lugar, constata-se ainda o fato de que a
autora reescreve o texto-crônica com a finalidade de torná-lo um texto mais corrido e 35 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.78-80. A crônica "Calor humano" foi publicada no Jornal do Brasil, em 13 de janeiro de 1968.
36 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.21-24.
pessoal, como é o caso das crônicas, em um texto que assuma o ritmo mais difuso do
romance. Tal prática de reescrever, além de caracterizar a época em que a autora escreve
para o Jornal e publica os livros Uma Aprendizagem e Água Viva, assinala,
conseqüentemente, conforme apontou Vilma Arêas, que um novo estatuto literário está
em jogo. Nesse contexto, a autora não só desfaz o fazer do Romance, como pastichisa e
zomba de seu próprio fazer, quando pratica uma cópia imperfeita quer seja trocando,
mesmo que sem perceber, uma palavra por outra, quer seja recopiando duas vezes a
mesma passagem dentro do mesmo livro. Enfim, é nessa movença material de fragmentos
imperfeitos e de palavras trocadas que o livro Uma Aprendizagem se organiza em sua
materialidade e a escritura se constrói apresentando suas "falhas". Desse modo, o livro
pede uma leitura que não seja aquela que viria a desconsiderar o estado perempto em que
se organiza; antes, parece acenar para o leitor que qualquer trabalho de leitura se daria
justamente a partir ou entre as "falhas" nele encontradas. Reconhecer tais "falhas" é
participar da construção caótica do livro, chegar ao texto enquanto prática de papel. O
sentido não é o mais importante, vindo por acréscimo, e é o suplemento do trabalho
realizado.
Nádia Gotlib, ao analisar a construção do romance, observa que ambas as
personagens participam da ação romanesca: "Falam, lêem e escrevem." Tomaríamos a
constatação como mais uma estratégia textual da qual Clarice se vale para reaproveitar
seus textos-crônicas na organização da escritura do livro. Nesse caso, mesmo
apropriando-se de seus próprios fragmentos, a autora, valendo-se de aspas, cita-os na "fala" ou
"escrita" de suas personagens e se põe em retirada; e as aspas, por sua vez,
deixam o autor se enganar como se não soubesse de tal roubo a si mesmo. Se as aspas
indicam o lugar por onde o autor foge, renunciando a seu papel de autor, delegando-o a
um outro, é também o rastro de uma possível paternidade, como podemos perceber no
fragmento do livro a seguir:
"Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Tratase de um cavalo preto
e lustroso que apesar de inteiramente selvagem — pois nunca morou antes em ninguém nem jamais
lhe puseram rédeas nem sela — apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura
primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu
beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos
que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo
selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se
acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autori-dade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-
casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente
se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer e de cólera, a
gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez".38
Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa sua, e é. Tratase de um cavalo
preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem — pois nunca morou em ninguém nem jamais
lhe puseram rédeas nem sela — apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura
primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu
beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos
que ele escolha outra casa que não tenha medo do que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso
que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas uma vez
chamado com doçura e autoridade ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo é livre, ele trota sem
ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é
a gente mesmo que está relinchando de prazer e de cólera.37
37 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.226. A crônica "Como tratar o que se tem" foi publicada no Jornal do Brasil, em 3 de
agosto de 1968.
38 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.28.
"Não há nada mais real que o roubo", diz Compagnon. Nesse fragmento, Clarice não só
rouba todo o texto-crônica-fragmento, como, apropriando-se com propriedade, altera a
cópia deslocando as aspas de seu suposto lugar de origem. A figura do autor apresenta-se
como um verdadeiro bricoleur: "O autor trabalha com o que encontra, monta com
alfinetes, ajusta; é uma costureirinha."39 Renuncia, inclusive, ao seu papel, para que um
outro escreva em seu lugar, como é o caso do fragmento citado em que, pela primeira vez
no romance, a personagem Lóri escreve em "folhas soltas", repetindo, assim, o gesto de
sua própria autora, o que caracteriza o processo de construção do romance em questão.
Lóri, enquanto aquela que escreve, apropria-se de sua autora e copia literalmente o que
ela disse; essa, por sua vez, interposta à figura daquela, retoma o que ela mesma escreveu
e, reescrevendo, toma posse do que é seu mesmo.
Benedito Nunes, analisando a narrativa do livro não só constatou as variações
internas que a caracterizam, como chamou de "escrita dentro da escrita" as partes
(fragmentos) escritas pela personagem Lóri.40 O que Lóri escreve soa como uma escrita
diferente dentro do livro, uma vez que tal fragmento aparece colado ao corpo do texto e
emoldurado por aspas. Tal destoamento reforça a idéia de romance falhado perseguida: o
trabalho de escrever de Lóri é uma réplica perfeita do trabalho empregado por Clarice na
construção do livro. Valendo-se de seus textos-crônicas-fragmentos, e tendo da
linguagem tão-somente o seu fracasso, a sua escassez, Clarice tenta se comunicar, 39 COMPAGNON. O
trabalho da citação, p.30.
40 Essas variações internas são: anotações diária, registro de uma única palavra na página em branco, escrita dentro da escrita, história
dentro da história e transcrição. Cf. NUNES. O drama da linguagem, p.81.
"através de gestos, de gaguejos, de palavras mal ditas e malditas", com seu leitor
imaginário na construção do livro, assim como Lóri, que faz da escassez de papel (folhas
soltas) e de palavras sua comunicação lenta, mas por escrito, com Ulisses. Diante disso,
vejamos o próximo texto-crônica-fragmento, ou "escrita dentro da escrita", escrito por
Lóri e colado à escritura do livro:
Já era de manhã mais alta quando ela preparou café forte, tomou-o e dispôs-se a se comunicar
com Ulisses, já que Ulisses era o seu homem. Escreveu:
"É tão vasta a noite na montanha. Tão despovoada. A noite espanhola tem o perfume e o eco
duro do sapateado da dança, a italiana tem o mar cálido mesmo se ausente. Mas a noite de Berna tem
o silêncio.
Tenta-se em vão ler para não ouvilo, pensar depressa para disfarçá-lo, inventar um programa,
frágil ponte que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como ultrapassar essa paz
que nos espreita. Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça se
inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo possível. Como estar ao alcance dessa
profunda meditação do silêncio? Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te
abençoar?
É um silêncio, Ulisses, que não dorme: é insone; imóvel mas insone e sem fantasmas. É terrível
— sem nenhum fantasma. Inútil querer povoálo com a possibilidade de uma porta que se abra
rangendo, de uma cortina que se abra e "diga" alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Como eu,
Ulisses? Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. Mas nas noites que passei em Berna
não havia vento e cada folha estava incrustada no galho das árvores imóveis. Ou se fosse época de
cair neve. Que é muda mas deixa rastro — tudo embranquece, as crianças riem brincando com os
flocos, os passos rangem e marcam. Isso durante o dia é tão intenso que a noite ainda é povoada. Há
uma descontinuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio
como se fala da
É tão vasta. Tão despovoada. A noite espanhola tem o perfume e eco duro do sapateado da
dança, a italiana tem o mar cálido mesmo se ausente. A noite de Berna tem o silêncio.
Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçálo. Ou inventar um
programa, frágil ponte que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como
ultrapassar essa paz que nos espreita. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Montanhas
tão altas que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo
escuta: nenhum rumor. Nenhum galo. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do
silêncio? Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar.
É um silêncio que não dorme: é insone; imóvel mas insone e sem fantasmas. É terrível — sem
nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibili-
dade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é
vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda
mas deixa rastro — tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma
continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como
se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se diria da neve: sentiu o silêncio desta noite?
Quem ouviu não diz.
A noite desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas, com o cansaço que tanto
justifica o dia. As crianças de Berna adormecem, fechamse as últimas portas. As ruas brilham nas
pedras do chão e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais
neve. O silêncio é a profunda noite secreta do mundo. E não se pode falar do silêncio como se
fala da neve: sentiu o silêncio dessas noites? Quem ouviu não diz. Há uma maçonaria do silêncio que
consiste em não falar dele e de adorá-lo sem palavras.
A noite, Ulisses, desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas, com o cansaço
que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem, fecham-se as últimas portas. As ruas
brilham nas lajes e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes das casas. Só um ou outro poste
iluminado para iluminar o silêncio.
Mas este primeiro silêncio, Ulisses, ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as folhas das
árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça com esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da
Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da
gente.
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se
perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é
apenas fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta — como arde, Ulisses, por
ser chamada e responder — cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silêncio.
Mas isto os da maçonaria sabem. Não o fim do silêncio mas o auxílio bendito de um terceiro
elemento: a luz da aurora.
Depois nunca mais se esquece, Ulisses. Inútil até fugir para outra cidade. Pois quando menos se
espera pode-se reconhecê-lo — de repente. Ao
distantes.
Mas este primeiro silêncio ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as folhas das árvores
ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça com esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que o corpo descansado se ergue o espírito atento, e da terra a lua alta.
Então ele, o silêncio, aparece.
O coração bate ao reconhecê-lo. Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que
passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento
pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma
resposta — como ardemos por ser chamados e responder! — cedo se descobre que de ti ele nada
exige, talvez apenas o teu silêncio. Quantas horas se perdem na
escuridão supondo que o silêncio te julga — como esperamos em vão por ser julgados pelo
Deus. Surgem as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até à indignidade e
ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de nascença.
Até que se descobre — nem a tua indignidade ele quer. Ele é o silêncio.
Pode-se tentar enganá-lo também. Deixa-se como por acaso o livro da cabeceira cair no chão. Mas,
horror — o livro cai dentro do silêncio e se perde na muda e parada voragem deste. E se um pássaro
enlouquecido cantasse? esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o
silêncio.
Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele, nós os únicos fantasmas de uma
noite em Berna. Que se entre. Que não se espere o resto da escuridão diante dele, só ele
atra-vessar a rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasma-górica e outra.
Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra se reconhece o Silêncio. Os
ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia — ei-lo. E dessa vez ele é
fantasma.41
próprio. Será como se estivéssemos num navio tão descomunalmente enorme que
ignorássemos estar num navio. E este singrasse tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais
do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do
que as veias podem suportar. Não há sequer um filho de astro e de mulher como intermediário
piedoso. O coração tem que se apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas. Só
se sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação, é
submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio.
Se não há coragem, que não se entre. Que se espere o resto da escuridão diante do silêncio, só
os pés molhados pela espuma de algo que se espraia de dentro de nós. Que se espere. Um insolúvel
pelo outro. Um ao lado do outro, duas coisas que não se vêem na escuridão. Que se espere. Não o
fim do silêncio mas o auxílio bendito de um terceiro elemento, a luz da aurora.
Depois nunca mais se esquece. Inútil até fugir para outra cidade. Pois quando menos se
espera pode-se reconhecê-lo — de repente. Ao atravessar a rua no meio das buzinas dos carros.
Entre uma gargalhada fantasmagórica e outra. Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio
coração da palavra. Os ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia — ei-lo. E dessa vez ele é
fantasma.42
41 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.35-39. Nesse fragmento, diferentemente do anterior, a
personagem-escritora Lóri pratica uma
cópia imperfeita do texto-crônica-fragmento original, acrescentando no diálogo, por
escrito, com Ulisses o que faltava à sua própria história. Tal trabalho é o mesmo praticado
pela autora na composição da escritura do livro: recortando e colando, escrevendo e
reescrevendo, Clarice organiza a escritura que se constrói em torno de outras escritas nela
superpostas. Nesse trabalho, quer seja no da personagem Lóri, quer seja no de sua autora,
o decalque jamais seria perfeito, porque é justamente a diferença — a "falha" — que
caracteriza o processo de construção escritural do livro. Se o que Lóri escreve pode ser
tomado por um "quadro emoldurado" por aspas, sua réplica, a escritura, pode ser lida
como um quadro sem molduras, sem começo nem fim, mas que acontece pelo meio, em
sua própria travessia, terminando apenas na forma material do livro.
O trabalho de reescrever os fragmentos para a construção da escritura denuncia
uma certa crise quer seja no sentido de escrever o "romance", quer seja no sentido de
relatar o contexto "político" da época. Do Jornal (realidade) para o livro (ficção) e deste
para aquele, textos diferentes se tecem e se reescrevem produzindo outros textos e outros
sentidos superpostos na escritura. O trabalho de reescrever-colar operado pela autora é tão
perfeito que textos-fragmentos publicados em épocas distantes no Jornal aparecem em
blocos contínuos na escritura do livro, como podemos constatar nos exemplos a seguir:
O que também salvara Lóri é que Se o meu mundo não fosse humano, sentia que se o seu mundo
particular não fosse humano, também haveria lugar para ela, e com grande beleza: ela seria uma
mancha difusa de instintos, doçuras e ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta, como era
humanamente, mas seria de forma permanente: porque se o seu mundo não fosse humano ela seria um
bicho. Por um instante então desprezava o próprio humano e experimentava a silenciosa alma da vida
animal.43
42 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.181-183. A crônica "Noite na montanha" foi publicada no Jornal do Brasil, no dia
24 de agosto 1968. O mesmo fragmento, mas com alterações, foi publicado com o título de "Silêncio" no livro Onde estivestes de noite.
também haveria lugar para mim: eu seria uma mancha difusa de instintos, doçuras e
ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta: se o mundo não fosse humano eu me arranjaria
sendo um bicho. Por um instante então desprezo o lado humano da vida e experimento a silenciosa
alma da vida animal. É bom, é verdadeiro, ela é a semente do que depois se torna humano.44
E era bom. "Não entender" era tão vasto que ultrapassava qualquer entender — entender era
sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um
espírito. O bom era ter uma inteligência
e não entender. Era uma bênção estranha como a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse
manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez.
Mas de vez em quando vinha a inquietação insuportável: queria entender o bastante para pelo
menos ter mais consciência daquilo que ela não entendia.45
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como
falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e
não entender. É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é
uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco.
Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.46
Mais do que reescrever e juntar os fragmentos, superpondo-os na escritura, Clarice pratica
uma verdadeira economia ficcional: ora reescrevendo, ora recopiando os fragmentos, é 43 LISPECTOR.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.44.
44 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.637-638. A crônica "Eu me arranjaria" foi publicada no Jornal do Brasil, em 5 de
fevereiro de 1972.
45 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.44-45.
46 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.253-254. A crônica "Não entender" foi publicada no Jornal do Brasil, em 1º de fevereiro
de 1969.
nesse trabalho árduo, mas prazeroso, que a escritura do livro se organiza e se diz.
Parodiando o fragmento citado acima, Clarice escreve porque não entende o que escreve:
o entender é limitado, enquanto o não-entender é sem fronteiras. Talvez seja esse não
entender que mova o processo desejante de escrever que nada mais é que a não
aprendizagem do saber com sabor do escritor. Compreender o não-entender é ter
consciência de que "não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura: a vida
também não". Disso o escritor sempre soube; Clarice, sobretudo. O processo de escrever
o livro, reescrevendo os fragmentos, é uma forma de não querer entender o entendido,
porque é na desarticulação que está a organização daquilo que se busca. Conforme
explica Ulisses a Lóri: "Essa desarticulação é necessária para que se veja aquilo que, se
fosse articulado e harmonioso, não seria visto, seria tomado como óbvio. Na
desarticulação haverá um choque entre você e a realidade, é preferível estar preparada
para isso, Lóri, a verdade é que estou contando a você parte do meu caminho já
percorrido."47 Caminho esse que pode ser tomado como a busca, por Clarice, de um novo
caminho encenado a partir da construção do livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres.
No livro, o texto-crônica-fragmento que melhor ainda exemplifica o processo
de economia textual praticado por Clarice é justamente a "prece" feita por Lóri. A
personagem repete duas vezes a mesma "prece", e Clarice, conseqüentemente, a reescreve
duas vezes. Na verdade, a crônica "prece" foi escrita para um certo "Padre X" que havia 47
LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.106.
pedido para Clarice rezar por ele. Por isso, nesse texto, a autora se dirigia a um "ele". No
livro, diferentemente, a "prece" é feita por Lóri; logo, por um "eu". Da crônica para o
livro, além da alteração pronominal, Clarice apenas substitui a palavra "medo" pela
palavra "receio". Da primeira vez, Lóri repete a "prece" em toda a sua extensão, tal como
aparece na origem em que foi escrita e dedicada ao "Padre X":
Não, não devia pedir mais vida. Por enquanto era perigoso. Ajoelhou-se trêmula junto da cama
pois era assim que se rezava e disse baixo, severo, triste, gaguejando sua prece com um pouco de
pudor: alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha,
faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze
com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com
que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta
seria tão
misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque
um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu
receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também
incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa
conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para que eu viva com
alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade
Uma noite gaguejei uma prece por um padre que tem medo de morrer e tem vergonha de ter
medo. Eu disse um pouco para Deus, com algum pudor: alivia a alma do Padre X..., faze com que
ele sinta que Tua mão está dada à dele, faze com que ele sinta que a morte
não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que ele sinta que amar é
não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que ele sinta uma alegria
modesta e diária, faze com que ele não Te inda-gue demais, porque a resposta seria tão misteriosa
quanto a pergunta, faze com
que ele se lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e
no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que ele receba o mundo sem medo, pois
para esse mundo incompreensível nós fomos criados e nós mesmos também incompreensíveis, então
é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós
enquanto quisermos entendêla, aben-çoa-me para que ele viva com alegria o pão que ele come, o
sono que ele durme, faze com que ele tenha caridade por si mesmo, pois senão não
por mim mesma pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o
pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha,
amém.48
poderá sentir que Deus o amou, faze com que ele perca o pudor de desejar que na hora de sua
morte ele tenha uma mão humana para apertar a sua, amém. (Padre X... tinha me pedido para eu
rezar por ele.)49
Da segunda vez, diferentemente, Lóri não repete mais toda a "prece", assim como Clarice
que a copia pela metade e que, ao recopiá-la, a reescreve. Nesse caso, mesmo Clarice não
reescrevendo todo o fragmento como da primeira vez, este se aproxima mais da crônica
do que propriamente de quando aparece no livro. Se grifássemos tal fragmento, como
fizemos com o anterior, e comparássemos os três, perceberíamos no grifo da leitura que
Clarice suprime no fragmento, com relação ao anterior, o período "faze com que me
lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no
entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito", acrescenta "e sim a vida" e interrompe a
"prece" alterando sensivelmente o seu final: "Faze com que eu tenha caridade e paciência
comigo mesma, amém." Comparando agora esse fragmento com a crônica, percebemos
que Clarice se volta para o texto-origem alterando, inclusive, o que tinha reescrito no
fragmento anterior, como constatamos na passagem: "Faze com que eu receba o mundo
sem medo, pois para esse mundo incompreensível nós fomos criados e nós mesmos 48 LISPECTOR. Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.58.
49 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.24-25. A crônica "Prece por um padre" foi publicada no Jornal do Brasil, em
16 de setembro de 1967. O mesmo fragmento reaparece no livro à página 125 da seguinte forma: "Alivia minha alma, faze com que eu
sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze
com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte e sim a vida, faze com que sinta uma alegria
modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que eu
receba o mundo sem medo, pois para esse mundo incompreensível nós fomos criados e nós mesmos também incompreensíveis, então é
que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la,
abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade e paciência comigo
mesma, amém." LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.125.
também incompreensíveis." Essa economia textual operada por Clarice atesta não só sua
prática de reescrita, como também demonstra o processo de apropriação que a autora faz
de si mesma, moldando e inserindo os fragmentos no corpo da escritura como melhor lhe
aprouver. Demonstra ainda o jogo intertextual em que é tomado o texto, sendo este o
"entretexto de outro texto", como disse Barthes. Na verdade, a economia ficcional
clariceana se resume antes no jogo intratextual, em que os fragmentos, como uma citação,
são recortados, reescritos e colados noutro lugar-texto e contexto totalmente diferentes,
rasurando sua origem textual.
Reinventando a cópia do que escreve, Clarice aproveita somente o que lhe
interessa na construção da escritura do livro. Se pegarmos a crônica intitulada
precisamente "Temas que morrem", em que Clarice descreve "sobre o que escrever",
perceberemos que a crônica aproveitará somente parte de um parágrafo. Nesse caso,
aquilo que era escrito (dito) por Clarice, na crônica, no romance passa a ser dito por
Ulisses, como mostra o fragmento a seguir:
E porque Ulisses também teria pensado na morte, ele disse:
— Antes de morrer se vive, Lóri. É uma naturalidade morrer, transformarse, transmutar-se.
Nunca se inventou nada além de morrer. Como nunca se inventou um modo diferente de amor de
corpo que, no entanto, é estranho e cego e no entanto cada pessoa, sem saber da outra, reinventa a
cópia. Morrer deve ser um gozo natural. Depois de morrer não se vai ao paraíso, morrer é que é o
(...)
E às vezes, por mais absurdo, acho
lícito escrever assim nunca se inventou nada além de morrer. E me acrescento: deve ser um
gozo natural, o de morrer, pois faz parte essencial da natureza humana, animal e vegetal, e também
as coisas morrem. E, como se houvesse ligação com essa descoberta, vem a outra óbvia e espan-
tosa: nunca se inventou um modo dife-rente de amor de corpo que é estranho e cego. Cada um vai
paraíso.50naturalmente em direção à reinvenção
da cópia, que abso-lutamente original quando realmente se ama. E de novo volta o assunto
morrer. E vem a idéia de que, depois de morrer, não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso.51
O que a leitura grifa no fragmento do livro é quase impossível de ser reconstituído no
texto-crônica-fragmento. Para tanto, antes seria preciso lê-lo com base no fragmento do
livro, e não o contrário, como aqui se tem praticado. Tal constatação reforça o nível do
trabalho de reescrever, operado por Clarice, e o poder, quase inconsciente, do jogo
intratextual posto em prática na construção da escritura do livro. Pôr o fragmento reescrito
na "boca" ou "escrita" de suas personagens é outra estratégia da qual Clarice se vale para
camuflar o processo de apropriação e aproveitamento de seus textos-crônicas-fragmentos.
Ao praticar tal gesto, apaga-se aquele "tom" mais pessoal que era dado à crônica, uma vez
que ocorre uma substituição do sujeito que "fala", como foi constatado no fragmento
citado acima e reforçado no seguinte:
Ulisses falou:
— Bem tranqüila, Lóri, vá bem tranqüila. Mas cuidado. É melhor não falar, não me dizer. Há um
grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem
vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio. Por que é que você olha tão
demoradaTantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere
o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho.
Eu estou precisando desse sonho. Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou
precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca mente cada pessoa?52 escrevi, e
morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E
esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. e do silêncio tem vindo o que é mais precioso
que tudo: o próprio silêncio.53
50 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.64.
51 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.294-296. A crônica "Temas que morrem" foi publicada no Jornal do Brasil, em 24 de
maio de 1969.
Aqui, a cópia do que Clarice aproveita da crônica é "ipsis litteris". Diferentemente dos
demais fragmentos grifados, diríamos que nesse, antes de haver uma reescrita, há uma
transcrição, tal como ocorre com a letra de uma canção da Tchecoslováquia que Lóri viu
reproduzida no Jornal de domingo, copiou-a e deu-a a Ulisses.54 Talvez haja, sim,
reescrita, não de grafia, mas de deslocamento do (con)texto: se, na crônica, o fragmento
era dito por Clarice e sobre ela (sua "pessoalidade" de escritor), no livro, quem o diz, é
Ulisses. Se a frase "esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras" torna ambígua o
papel de ambos na reescrita do sentido deslocado, revela, por conseguinte, o "anonimato"
da autora superposto no fragmento colado no livro.
Clarice volta a recopiar um texto-crônica fragmento quase em sua total
literalidade. Reescreve quase nada, dando a impressão, mais uma vez, de que a
transcrição é perfeita. A mesma seqüência da linearidade do grifo da leitura do fragmento
do livro é encontrada no texto-crônica-fragmento. Não há alterações substanciais entre os
fragmentos, a não ser, exceto, o deslocamento do eu (Clarice?) da crônica para o eu (Lóri)
acrescido no fragmento do livro. Encontramos ainda, no fragmento, uma questão que 52 LISPECTOR.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.74-75.
53 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.92. A crônica "Anonimato" foi publicada no Jornal do Brasil, em 10 de fevereiro de 1968.
desenha a composição "falhada" do romance, qual seja, a de tornar o ritmo comum da
crônica no ritmo confuso do "fluxo da consciência" que o romance demanda:
Lóri estava suavemente espantada. Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois
seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me
transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço?
Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como
uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está
começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah,
milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa
desconhecida que é sentir-se feliz e
preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo.55
Então isso era a felicidade. E por assim dizer sem motivo. De início se sentiu vazia. Depois
os olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me
transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço?
Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer
como uma angústia, como um grande silêncio? A quem dou minha felicidade, que já está
começando a me rasgar um pouco e me assusta? Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade.
Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa
desconhecida
que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade.56
O fragmento do livro que melhor sintetiza a errância textual que circunda a época da
publicação do livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, assim como o próprio
romance, é justamente o "capítulo" que trata da relação da mulher e do mar. Tal
fragmento-capítulo aparece colado no corpo da escritura, compondo a história romanesca.
Para ser inserto no romance, percebe-se, com legibilidade, o processo de reescrita feito 54 Ver

LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.130-131. 55 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, p.77-78.
por Clarice: ao praticar tal processo, Clarice cria blocos (parágrafos) que não existiam no
texto-crônica-fragmento, acrescenta "fatos" com relação à história do romance, altera o
tempo verbal e chama a mulher pelo nome: Lóri. Enfim, o processo de reescrever, no
romance, funciona sempre como uma forma de ajustar o texto do Jornal ao texto do
romance. É exatamente nesse ajustamento de "textos" reescritos e colados que o romance
se deixa ler em suas "falhas", não visando, unicamente, à totalidade do conjunto
organizado. Ou melhor, o romance existe, existe a história romanesca, o livro fecha-se em
sua materialidade, mas, nesse entremeio, a escrita apresenta seu jogo, revela "falhas"
arquiteturais, demonstrando a prática imperfeita do reescrever-colar do/no papel — o
texto é esse trabalho —, convidando, assim, o leitor para participar do jogo inacabado da
escritura.
O fragmento, que no livro compõe um capítulo, antes de ser a prova perfeita do
processo de reescrever-colar praticado por Clarice, testemunha a apropriação que a autora
faz de si mesma, movendo seus textos-fragmentos por toda sua obra. Não é por acaso que
Nádia Gotlib vai observar que é a partir de 1964 "que se inicia um período de movimento
dos textos de Clarice entre as várias publicações suas em jornais, revistas e livros: estes
textos circulam, aparecem e reaparecem, por vezes sem qualquer alteração de construção,
realizando, assim, uma verdadeira ciranda de textos".57 Desse modo, vejamos porque o
56 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.30. A crônica "Medo do desconhecido" foi publicada no Jornal do Brasil, em 7 de
outubro de 1969. O mesmo fragmento, com alterações, foi republicado com o título de "Por medo do desconhecido (trecho)", em 3 de
junho de 1972.
57 GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.189.

fragmento-capítulo talvez seja um caso característico da "prática dissolvente"58 de Clarice


a partir dessa época: primeiro, o fragmento intitulado "Ritual-Trecho" aparece publicado
no Jornal do Brasil no dia 27 de julho de 1968. Lendo-o em sua origem — do título
"Ritual-Trecho" —, podemos pensar que a autora talvez já o tivesse escrito pensando na
história romanesca de Lóri. Entretanto, como veremos na comparação, ele sofrerá
alterações substanciais, inclusive o acréscimo do nome Lóri, que antes aparecia como um
"Ela". Coincidência ou não, a reescrita é perfeita e o "trecho" aparecerá com um capítulo
do romance. Depois dessa apropriação, o mesmo fragmento aparecerá, agora em 1971,
como um conto do livro Felicidade Clandestina. Como conto, Clarice recopia o "trecho"
original e dá um novo título à nova (re)escrita: "As águas do mundo."59 Numa ritualística
de reescrita muito consciente, Clarice volta a reaproveitar o mesmo "Ritual — Trecho" e,
alterando o nome para "As águas do mar", o republica no mesmo Jornal, no dia 13 de
outubro de 1972.60 Para finalizar o ciclo desta "prática dissolvente" Clarice volta a
republicar o mesmo fragmento, agora não mais como "capítulo" de livro, nem como
"conto", nem mesmo como crônica, mas tão-somente como texto, conforme pensamos
resumir os textos do livro Onde Estivestes de Noite.
Tal livro, composto por destroços de outros livros, reúne textos que são, antes
de mais nada, esboços, ensaios, exercícios de escrita, trabalhos que antecedem a realiza
ção de um projeto escritural e são a própria escritura. Textos inacabados e descontínuos, 58

ARRIGUCCI Jr. Achados e perdidos, p.171. 59 LISPECTOR. Felicidade clandestina, p.151-153.


sem lugar e sem origem, fragmentados e colados, como andaime do projeto escritural do
escritor, podem ser tomados como símbolos da "prática dissolvente" que permeia a
produção clariceana a partir de 1964. Diante disso, vejamos o seguinte fragmento
capítulo:
Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé,
o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo,
tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois
mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.
Lóri olhava o mar, era o que podia fazer. Ele só lhe era delimitado pela linha do horizonte, isto
é, pela sua incapaci-dade humana de ver a curvatura da Terra.
Deviam ser seis horas da manhã. O cão livre hesitava na praia, o cão negro. Por que é que um
cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.
Seu corpo se consola de sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a
exigüidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre
gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem
raiva ruge no silêncio da madrugada.
A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a
Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de
pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta
sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois
mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.
Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela
sua incapacidade humana de ver a curvatura da Terra.
São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é
tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.
Seu corpo se consola de sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a
exigüidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que a torna pobre e livre
gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem
raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem.
Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de
60 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.755.
praia vazia nessa hora, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no
mar em simples jogo leviano de viver. Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é
salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de, não se conhecendo,
no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas.
Mas uma alegria fatal — a alegria é uma fatalidade — já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir.
Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais
adormecido sono secular.
E agora está alerta, mesmo sem pensar, como um pescador está alerta sem pensar. A mulher é
agora uma compacta e uma leve e uma aguda — e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a
ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido secreto.
O caminho lento aumenta sua coragem secreta — e de repente ela se deixa cobrir pela primeira
onda! O sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo — espantada de
pé, fertilizada.
outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está
sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização.Nessa
hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo,
no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma
alegria fatal — a alegria é uma fatalidade — já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo
contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais
adormecidos sonos secu-lares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está
alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda — e abre caminho na
gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição
pode ser um pedido.
O caminho lento aumenta sua coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira
onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns
Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água, agora o frio se transforma em
frígido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa de coragem, agora já é
antiga no ritual retomado que abandonara há milênios. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e
retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão
na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão se
instantes cega, toda escorrendo — espantada de pé, fertilizada.
Agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre o mar pelo meio. Já não precisa de
coragem, agora já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira
que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os
cabelos ao sol quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das
endurecendo de sal. Com a concha das mãos e com a altivez dos que nunca darão explicação
nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes, bons para a
saúde de um corpo.
E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem.
Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos
avermelham-se pelo sal que seca, as ondas lhe batem e voltam, lhe batem e voltam pois ela é um
anteparo compacto.
Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já conhece e já tem um
ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois que sabe que terá tudo de novo.
O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e
menos aguda. Agora sabe o que quer: quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra
os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A mulher não recebe transmissões nem
transmite. Não precisa de comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia, e as ondas empurram-na suavemente ajudando-
a a sair. Não está caminhando sobre as águas — ah nunca faria isso depois que há milênios já haviam
andado sobre as águas — mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe
opõe resistência à sua saída puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um
pouco mais dura e áspera.
E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo
mãos faz o que sempre fez no mar, e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles
mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe em goles grandes bons.
E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem.
Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos averme-
lham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo
compacto.
Mergulha de novo, de novo bebe, mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é
a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de
novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no
mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A mulher
não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas — ah
nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas — mas ninguém lhe tira isso:
caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a com força para trás, mas
então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.
E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui
a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos
escorridos são de náufrago. Porque sabe — sabe que fez um perigo.
que o esqueça, nunca poderá perder Um perigo tão antigo quanto o ser tudo isso. De algum
modo obscuro seus humano.61
cabelos escorridos são de náufrago.
Porque sabe — sabe que fez um perigo.
Um perigo tão antigo quanto o ser
humano.62
Assim a "prática dissolvente" de reescrita e de aproveitamento de outros textos
se estende por toda a escritura do livro. O capítulo seguinte nada mais é do que a
dissolução de dois textos-crônicas-fragmentos que ali aparecem reescritos e disseminados.
Na composição do capítulo, Clarice intercala uma crônica a outra, de modo que ambas
fiquem superpostas na escritura, rasurando, definitivamente, a origem. O trabalho
exaustivo e quase impossível de grifar na leitura o fragmento encontrado no livro
esclarece, por sua vez, o trabalho de reescrita levado ao grau zero pela autora:
Sentia que a vida lhe fugia de novo por entre os dedos. Na sua humildade esquecia que ela
mesma era fonte de vida e de criação. Então saía pouco, não aceitava convites. Não era mulher de
perceber sempre quando um homem estava interessado nela a menos que ele o dissesse — então se
surpreendia e aceitava.
Telefonou antes para a sua amiga cartomante que a pôs em brios. Como então ela, uma mulher
feita, era tão humilde? Como é que não percebia que vários homens a queriam? Como não percebia
que devia, dentro de sua própria dignidade, ter um caso de amor?
Z. M. Sentia que a vida lhe fugia por entre os dedos. Na sua humildade esquecia que ela
mesma era fonte de vida e de criação. Então saía pouco, não aceitava convites. Não era mulher de
perceber sempre quando um homem estava interessado nela a menos que ele o dissesse — então se
surpreendia e aceitava.
De tarde — era primavera, primeiro dia de primavera — foi visitar uma amiga que a pôs em
brios. Como então ela, uma mulher feita, era tão humilde? como é que não percebia que vários
homens a queriam? como não percebia que devia, dentro de sua própria
61 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.167-169. A crônica "Ritual – Trecho" foi publicada no Jornal do Brasil, em 27 de julho
de 1968. O mesmo fragmento foi republicado, com o título de "As águas do mar", no dia 13 de outubro de 1972. Aparece, ainda, como
"conto" nos livros Felicidade clandestina e Onde estivestes de noite.
62 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.83-86.
— Naquela festa de Maria, disse-lhe a cartomante, eu te vi entrar na casa onde todos os que ali
estavam eram teus conhecidos. E nenhum dos presentes, por um acaso, chegava a teus pés em matéria
de talento didático, em matéria de com-preensão intuitiva, e mesmo de graça feminina. E no entanto
você entrou tímida como ausente, como uma corça de cabeça baixa.
— Mas é que..., tentou Lóri defender-se, é que eu me sinto tão... tão nada.
— Não é o que as cartas dizem. Você precisa andar de cabeça levantada, você tem que sofrer porque
você é diferente dos outros — cosmicamente diferente, é assim que dizem as tuas cartas, então aceite
que você não pode ter a vida burguesa dos outros e vá hoje ao coquetel, e entre na sala com tua
cabeça bem levantada.
— Mas há tanto tempo que não vou mais que perdi a prática. E entrar sozinha numa sala cheia de
gente? Não seria melhor eu combinar a ida com uma amiga?
(...)
Vestiu um vestido mais ou menos
novo, pronta que queria estar para encontrar algum homem, mas a coragem não vinha. Então,
sem entender o que fazia — só o entendeu depois — pintou demais os olhos e demais a boca até que
seu rosto branco de pó parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: esse
alguém era fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era
exatamente o que ela não era.
Na hora de sair de casa, fraquejou; não estaria exigindo demais de si mesma? Não seria uma
bravata ir sozinha? Toda pronta, com uma máscara de pintura no rosto — ah "persona", como não te
usar e ser! — sem coragem, sentou-se na poltrona de
dignidade, ter um caso de amor? Disse ainda que a vira entrar numa sala onde todos eram
conhecidos. E por acaso nenhum dos presentes chegava a seus pés. E no entanto entrou tímida
como ausente, como uma corça de cabeça baixa. "Você precisa andar de cabeça levantada, você
tem que sofrer porque você é diferente, cosmicamente diferente, então aceite que você não pode ter
a vida burguesa, e entre numa sala com tua cabeça levantada". "Mas entrar sozinha numa sala
cheia de gente?" "Exatamente. Você não precisa de companhia para ir, você mesma é bastante."
Lembrou-se que no fim da tarde havia uma espécie de coquetel para os professores primários,
em férias. Lembrou-se da atitude nova que desejava, não combinou a ida com nenhum professor ou
professora — arriscar-se-ia toda só. Vestiu um vestido mais ou menos novo, mas a coragem não
vinha. Então — só o entendeu depois — pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto
parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: esse alguém era
fantasticamente
desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era exatamente o que ela
não era. Mas na hora de sair de casa, fraquejou: não estaria exigindo demais de si mesma? Toda
vestida, com uma máscara de pintura no rosto — ah persona, como não te usar e enfim ser! — sem
coragem, sentou-se na poltrona de sua sala tão conhecida e seu coração pedia para ela não ir.
Parecia que previa que ia se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarro-
decoragem, levantou-se e foi.
Pareceu-lhe que as torturas de uma pessoa tímida jamais foram completamente descritas. No
táxi que rolava ela morria um pouco.
sua sala tão conhecida e seu coração pedia para ela não ir. Parecia prever que ia se machucar
muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarro-dacoragem, levantou-se e foi.
Pareceu-lhe que as torturas de uma pessoa tímida jamais tinham sido completamente descritas
— no táxi que rolava ela morria um pouco.
E de repente ei-la diante de um salão descomunal de grande com muitas pessoas, talvez, mas
pareciam poucas dentro do espaço enorme onde como um ritual se processava o coquetel.
Quanto tempo suportou de cabeça falsamente erguida? A máscara a incomodava, ela sabia ainda
por cima que era mais bonita sem pintura. Mas sem pintura seria a nudez da alma. E ela ainda não
podia se arriscar nem se dar a esse luxo.
Falava sorrindo com um, falava sorrindo com outro. Mas como em todos os coquetéis, nesse era
impossível a conversa e, quando ela percebia, estava
de novo sozinha. Viu dois homens que tinham sido seus amantes,
(...)
Até que sentiu que não suportava mais manter a cabeça de pé, apesar dos dois uísques que tomara.
Mas como atravessar a enorme extensão até a porta? Sozinha, como uma fugida? Viu que chegara ao
impasse de si mesma. Então, em meias palavras, confessou seu drama a uma das professoras, disse-
lhe que não queria sair sozinha e a moça, entendendo, levou-a até a porta.
E no escuro daquela noite que já prenunciava o outono Lóri era uma mulher infeliz. Sim, era
diferente. Mas sim, era tímida. Sim, era supersensível. Sim, vira dois homens que tinham sido seus
amantes e agora eram apenas semiamigos. O escuro da noite outonal onde frescamente o vento
soprava balançando
E ei-la de repente diante de um salão enorme com talvez muitas pessoas, mas pareciam
poucas dentro do desco-munal espaço onde se processava o coquetel.
Quanto tempo suportou de cabeça falsamente erguida? A máscara a incomodava, ela sabia ainda
por cima que era mais bonita sem pintura. Mas sem pintura seria a nudez da alma. E ela ainda não
podia se arriscar nem se dar esse luxo.
Falava sorrindo com um, falava sorrindo com outro. Mas como em todos os coquetéis, nesse era
impossível a conversa e, quando ela viu estava de novo sozinha.
Viu um homem que tinha sido seu amante. E ela pensou: por mais amor que este homem tenha
recebido, fui eu que lhe dei toda a minha alma e todo o meu corpo. Os dois se olharam, perscrutaram-
se, ele com certeza espantado com a máscara de pintura. Não soube o que
fazer senão perguntar-lhe se ele era seu amigo, se podia ser. Ele disse que sim, para sempre.
Até que sentiu que não suportava mais manter a cabeça de pé. Mas como atravessar a enorme
extensão até a porta? Sozinha, como uma fugida? Então em meias palavras, confessou seu drama
a uma das professoras e ela levou-a pela enorme extensão até a porta.
E no escuro da noite primaveril ela era uma mulher infeliz. Sim, era diferente. Mas sim, era
tímida. Sim, era supersensível. Sim, vira um amor passado. O escuro e o perfume da primavera. O
coração do mundo batialhe no peito. Sempre soubera sentir o cheiro da natureza. Achou finalmente
um táxi onde se sentou quase em lágrimas de alívio, lembrando-se de que
com delicadeza os ramos pesados das árvores. O perfume da noite. Sempre soubera sentir o
cheiro da Natureza. Atravessou com algum prazer — o único da festa — o viaduto de ... (como é o
nome?). Achou finalmente um táxi onde se sentou quase em lágrimas de alívio, lembrando-se de que
em Paris lhe acon-tecera o mesmo, porém pior ainda, pois agora estava mais enraizada na terra.
[O modo como o chofer olhou-a fêla adivinhar: ela estava tão pintada que ele provavelmente
tomara-a como uma prostituta. "Persona". Lóri tinha pouca memória, não sabia por isso se era no
antigo teatro grego ou romano que os atores, antes de entrarem em cena, pregavam ao rosto uma
máscara que representava pela expressão o que o papel de cada um deles iria exprimir.
Lóri bem sabia que uma das qualidades de um ator estava nas mutações sensíveis do rosto, e
que a máscara as esconderia. Por que então lhe agradava tanto a idéia de atores entrarem no palco
sem rosto próprio? Quem sabe, ela achava que a máscara era um dar-se tão importante quanto o dar-
se pela dor do rosto. Inclusive os adolescentes, que eram de rosto puro, à medida que iam vivendo
fabricavam a própria máscara. E com muita dor. Porque saber que de então em diante se vai passar a
representar um papel que era de uma surpresa amedron-tadora. Era a liberdade horrível de não-ser. E
a hora da escolha.
Também Lóri usava a máscara de palhaço da pintura excessiva. Aquela mesma que nos partos
da adolescência se escolhia para não se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é que se fizesse
mal em deixar o próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse
em Paris lhe acontecera o mesmo porém pior ainda.
[Persona . Tenho pouca memória, por isso já não sei se era no antigo teatro grego que os
atores, antes de entrar em cena, pregavam ao rosto uma máscara que representava pela expressão
o que o papel de cada um deles iria exprimir.
Bem sei que uma das qualidades de um ator está nas mutações sensíveis de seu rosto, e que a
máscara as esconde. Por que então me agrada tanto a idéia de atores entrarem no palco sem rosto
próprio? Quem sabe, eu acho que a máscara é um dar-se tão importante quanto o dar-se pela dor
do rosto. Inclusive os adolescentes, estes que são puro rosto, à medida que vão vivendo fabricam a
própria máscara. E com
muita dor. Porque saber que de então em diante se vai passar a representar um papel é uma
surpresa amedrontadora. É a liberdade horrível de nãoser. E a hora da escolha.
Mesmo sem ser atriz nem ter perten-cido ao teatro grego — uso uma máscara. Aquela mesma
que nos partos da adolescência se escolhe para não se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é
que se faça mal em deixar o próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto que estava
nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e terrível. É, pois, menos
perigoso escolher sozinho sem ser uma pessoa. Escolher a própria máscara é o primeiro gesto
voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para
representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva
como a de quem
rosto que estivesse nu poderia, ao ferirse, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e
terrível: era pois menos perigoso escolher, antes que isso fatalmente acontecesse, escolher sozinha
ser uma "persona". Escolher a própria máscara era o primeiro gesto voluntário humano. E solitário.
Mas quando enfim se afivelava a máscara daquilo que se escolhera para representar-se e represen-
tar o mundo, o corpo ganhava uma nova firmeza, a cabeça podia às vezes se manter altiva como a de
quem superou um obstáculo: a pessoa era.
Se bem que podia acontecer uma coisa humilhante. Como agora no táxi acontecia com Lóri. É
que, depois de anos de relativo sucesso com a máscara, de repente — ah menos que de repente, por
causa de um olhar passageiro ou de uma palavra ouvida do chofer — de repente a máscara de guerra
de vida crestava-se toda como lama seca, e os pedaços irregulares caíam no chão com um ruído oco.
E eis rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E o rosto de máscara crestada
chorava em silêncio para não morrer.]64
Entrou em casa como uma foragida do mundo. Era inútil esconder: a verdade é que não sabia
viver. Em casa estava bom, ela se olhou ao espelho enquanto lavava as mãos e viu a "persona" afive-
lada no seu rosto. Parecia um macaco enfeitado. Seus olhos, sob a grossa pin-
tura, estavam úmidos e neutros, como se no homem ainda não se tivesse manifes
superou um obstáculo. A pessoa é.
Se bem que pode acontecer uma coisa que me humilha contar.
É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente — ah, menos que de
repente, por causa de um olhar passageiro ou de uma palavra ouvida — de repente a máscara de
guerra de vida crestava-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares caem com um
ruído oco no chão. Eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E ele
chora em silêncio para não morrer. Pois nessa certeza sou implacável: este ser morrerá. A menos
que renasça até que dele se possa dizer "esta é uma pessoa". Como pessoa teve que passar pelo
caminho de Cristo.]63
Foi para casa como uma foragida do mundo. Era inútil esconder: a verdade é que não sabia
viver. Em casa estava agasalhante, ela se olhou ao espelho quando estava lavando as mãos e viu a
persona afivelada no seu rosto: a persona tinha um sorriso parado de palhaço. Então lavou o rosto e
com alívio estava de novo de alma nua. Tomou então uma pílula para dormir. Antes que chegasse o
sono, ficou alerta e se prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção. A pílula de dormir
começava a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos começou.65
63 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.99-101. A crônica "Persona" foi publicada no Jornal do Brasil, em 2 de março de 1968.
64 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.91-93.
65 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.212-214. A crônica "A bravata" foi publicada no Jornal do Brasil, em 26 de outubro de
1968.
tado a Inteligência. Então lavou-o, e com alívio estava de novo de alma nua. Tomou então uma
pílula para dormir e esquecer o fracasso de sua bravata. Antes que chegasse o sono, ficou alerta e se
prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção.
A pílula de fazer dormir começara a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos começou,
vasta, em levitação.66
Pelo trabalho de escavar e grifar no livro os textos-crônicas nele reescritos e superpostos,
percebe-se, parodiando o narrador, que não há aprendizagem de coisa nova, mas tão
somente a redescoberta do que se reescreveu na escritura. Se há aprendizagem, ela está
sobretudo no trabalho de descobrir de novo, pela leitura, o que foi reescrito na escrita que
compõe o livro. Grifando, o leitor redescobre mais um texto-crônica reescrito e
disseminado no corpo da escritura:
Depois passaram para o salão da lareira, também este vazio, e sentaramse no sofá que ficava em
frente. Ali ele fumou. Quando ela pensou que, além do frio, chovia como que no mundo inteiro, não
pôde acreditar que tanto de bom lhe fosse dado. Era o acordo da Terra com aquilo que ela nunca
soubera que precisava com tanta fome de alma. Chovia, chovia. O fogo aceso piscava.
Ele, o homem, se ocupava atiçando o fogo. Ela nem se lembrava de fazer o mesmo: não era o
seu papel, pois tinha o seu homem para isso. Não sendo donzela, que o homem então cumprisse a sua
missão.
O mais que fazia foi uma ou duas Pois no Rio tinha um lugar com uma lareira. E quando ela
percebeu que, além do frio, chovia nas árvores, não pôde acreditar que tanto lhe fosse dado. O
acordo do mundo com aquilo que ela nem sequer sabia que precisava como numa fome. Chovia,
chovia. O fogo aceso pisca para ela e para o homem. Ele, o homem, se ocupa do que ela nem
sequer lhe agradece: ele atiça o fogo na lareira, o que não lhe é senão dever de nascimento. E ela
— que é sempre inquieta, fazedora de coisas e experimentadora de curiosidades — pois ela nem se
lembra sequer de atiçar o fogo: não é seu papel, pois se tem o seu homem para isso. Não sendo
donzela, que o homem então cumpra a sua
66 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.88-93.
vezes instigá-lo:
— Olhe aquela acha, ela ainda não
pegou...
E ele, antes de ela acabar a frase,
por si próprio já notara a acha apagada,
homem seu que ele era, e já estava
atiçando-a com o ferro. Não a comando
seu que era mulher de um homem e que
perderia o seu estado se lhe desse uma
ordem. Com a mão direita ele segurava
o ferro que fazia as flamas crescerem. A
mão esquerda, a livre, estava ao alcance
dela. Lóri sabia que podia tomá-la, que
ele não se recusaria; mas não a tomava,
pois queria que as coisas
"acontecessem"
e não que ela as provocasse. (...)
Ah, e dizer que isso ia acabar. Que
por si mesmo não podia durar. Não, ela
não se referia ao fogo, referia-se ao que
sentia. O que sentia nunca durava,
acabava e podia nunca mais voltar.
Encarniçou-se então sobre o momento,
comia-lhe o fogo interno, e o fogo
externo ardia doce, ardia, flamejava.
Então, como tudo ia acabar, em
imginação vívida, pegou a mão livre do
homem, e em imaginação ainda, ao
prender essa mão entre as suas, ela toda
doce ardia, ardia, flamejava.67
missão. O mais que ela faz é às vezes intigá-lo: "aquela acha", diz-lhe, "aquela ainda não
pegou". E ele, um instante antes que ela acabe a frase que o esclareceria, ele, por ele mesmo já
notara a acha, homem seu que é, e já está atiçando a acha. Não a comando seu, que é a mulher de
um homem e que perderia o seu estado se lhe desse uma ordem. A outra mão dele, a livre, está ao
alcance dela. ela sabe, e não a toma. Quer a mão dele, sabe que quer, e não a toma. Tem
exatamente o que precisa: pode ter.
Ah, e dizer que isto vai acabar! que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se
referindo ao fogo, refere-se ao que sentia. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e
pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde,
arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la
nas suas, ela toda doce arde, arde, flameja.68
Constata, para sua surpresa, que a reescrita é perfeita e que muitos outros textos-crônicas
fluem da escritura para a leitura, pedindo para serem grifados. Tomado por essa "prática
dissolvente" que repercute em sua leitura, o leitor se põe a elencar e grifar os fragmentos
(re)encontrados:
67 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.114-116.
68 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.132-133. A crônica "A volta ao natural – trecho" foi publicada no Jornal do Brasil, em
4 de maio de 1968. O mesmo fragmento, com o título de "Vida ao natural", foi publicado no livro Onde estivestes de noite.
E ela? Que fazia como exercício profundo de ser uma pessoa? Fazia o mar de manhã... Antes
não ia à praia por indolência e também porque lhe desagra-dava a multidão. Agora ia sem preguiça
às cinco da manhã, quando o cheiro do mar ainda não usado a deixava tonta de alegria. Era a
maresia, palavra feminina, ms para Lóri o cheiro maresia era a hora da grande solidão do mar. Às
vezes pssava pela calçada um homem passean-do o seu cachorro, só isso. Como expli-car que o mar
era o seu berço materno mas que o cheiro era todo masculino? Talvez se tratasse da fusão perfeita.
Além do que, de madrugada, as espumas pareciam mais brancas.69
O mar. Tenho deixado de ir ao mar por indolência. E também por impaciência com o ritual
necessário: barraca, areia colada por toda a pele. E mesmo não sei ir ao mar sem molhar os cabelos.
E, chegando em casa, tem-se que tirar o sal.
Mas um dia vou falar do mar de um modo melhor. Aliás, acho que vou começar um pouquinho
agora. Vou falar do cheiro do mar que às vezes me deixa tonta.
Tenho uma conhecida que mora na Zona Norte, o que não justifica nunca ter entrado no mar.
Fiquei pasma quando me contou. E prometi que ela viria em
casa para entrarmos no mar às seis horas da manhã. Por quê? Porque é a hora da grande solidão do
mar. Como explicar que o mar é o nosso berço materno mas que o cheiro seja todo masculino; no
entanto berço materno? Talvez se trate da fusão perfeita do masculino com o feminino. Às seis
horas da manhã as espumas são mais brancas.70
O fragmento do livro, muito sutilmente, lembra o texto-crônica. Nesse caso, parece não
haver, na verdade, uma reescrita entre ambos, mas, talvez, somente uma "lembrança
circular" por parte da autora. Melhor seria, entretanto, pensar o contrário: que a reescrita é
perfeita e que a autora se apropria só do que lhe convém para a construção da escritura. O
fragmento seguinte do livro, tal como esse, reforça a reescrita dissolvente da autora:
69 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.121.
70 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.732-733. A crônica "O mar da manhã" foi publicada no Jornal do Brasil, em 7 de abril de
1972.
Para o mundo de perfumes, Lóri já acordara. Quando voltava da rua de noite, passava pela casa
vizinha cheia de dama-da-noite, que lembrava o jasmim, só que mais forte. Ela aspirava o cheiro
Depois voltarei ao mar, sempre volto. Mas falei em perfume. Lembreime do jasmim. Jasmim é
de noite. E me mata lentamente. Luto contra, desisto porque sinto que o perfume é mais forte
da dama-da-noite que era noturno. E o perfume parecia matá-la lentamente. Lutava contra, pois
sentia que o perfume era mais forte do que ela, e que poderia de algum modo morrer dele. Agora é
que ela notava tudo isso. Era uma iniciada no mundo.71
do que eu, e morro. Quando acordo, sou uma iniciada.72
Mais uma vez a reescrita é perfeita e o texto-crônica fica totalmente superposto na
escritura. Somente pela leitura, percebe-se que há um texto rasurado no corpo da escritura,
o que a caracteriza como texto em palimpsesto. Ainda na mesma página do livro, o leitor
grifa outro fragmento reescrito e colado, compondo a escritura:
Milagres, não. Mas as coincidências. Vivia de coincidências, vivia de linhas que incidiam e se
cruzavam e, no cruzamento, formavam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que era
mais feito de segredo. Mal falasse das coincidências, e já estaria falando em nada.
Mas possuía um milagre, sim. O milagre as folhas. Estava andando na rua e do vento lhe caíra
exatamente nos cabelos: a incidência de linha de milhões de folhas transformada em um que caía, e
de milhões de pessoas a incidência de reduzi-lo a ela. Isso lhe acontecia tantas vezes que passou a se
considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tirara a folha dos cabelos e
guardara-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia,
Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas
também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas
assim, sobre milagres: "Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se
quebraria." Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empre-gadas. Até que fui
obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles
para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de
adormecer — seria milagre? Mas já me foi tranqüilamente explicado que isso até nome tem: cide-
tismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes.
abrindo a bolsa, encontrara entre os mil objetos que sempre carregava a folha seca, engelhada e
morta. Jogara-a fora: não lhe interessava o fetiche morto como lembrança. E também porque sabia
que novas folhas iriam coincidir com ela. Um dia uma folha que caíra batera
lhe nos cílios. Achou então Deus de uma grande delicadeza.73
71 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.121-122.
72 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.733. A crônica "Jasmim" foi publicada no Jornal do Brasil, em 7 de abril de 1972. Uma
vez que as crônicas foram publicadas no mesmo dia, percebe-se uma certa seqüência entre elas.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma
na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo
que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma
folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma
única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que
passei a me considerar modestamente a esco-lhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos
cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa,
encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto
como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.
Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.74
Apesar das alterações que o fragmento do livro recebe, pode-se dizer que a cópia é
perfeita, quando a autora repete, dentro do livro, o que, na crônica, é seu título: "O
milagre das folhas". O título, nesse caso, parece funcionar como a epígrafe do texto
anterior, sendo essa o texto anterior. 73 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.122-123.
74 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.241-242. A crônica "O milagre das folhas" foi publicada no Jornal do Brasil, em 4 de
janeiro de 1969.
Esses três últimos fragmentos aqui grifados demonstram que subsiste, no
subtexto, um certo "tom" que lembra a "pessoalidade" da cronista-escritora Clarice
Lispector, quando comparados com os textos-crônicas. Diferentemente desses
fragmentos, o seguinte apresenta uma certa "pessoalidade" da autora através de seu título:
"Primavera ao correr da máquina". A cópia desse texto-crônica é tão perfeita no livro que
a autora, talvez para disfarçar o roubo, o subdivide em mais nove blocos que não existiam
no texto original. Esse texto-crônica, por sua vez, e pela época em que foi escrito (23 de
setembro de 1967), de certa forma retoma o "subtítulo" do livro: "A origem da primavera
ou a morte necessária em pleno dia". Eis o fragmento:
Já se passara o ano. Os primeiros calores da primavera, tão antigos como um primeiro sopro. E
que a fazia não poder deixar de sorrir. Sem se olhar no espelho, era um sorriso que tinha a idiotice
dos anjos.
Muito antes de vir a nova estação já havia o prenúncio: inesperadamente uma tepidez de vento,
as primeiras doçuras do ar. Impossível! Impossível que essa doçura de ar não traga outras! diz o
coração se quebrando.
Impossível, diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera. Impossível que
esse ar não traga o amor do mundo! Repete o coração que parte sua secura crestada num sorriso. E
nem sequer reconhece que já o trouxe, que aquilo é um amor. Esse primeiro calor ainda fresco trazia:
tudo. Apenas isso, e indiviso: tudo.
E tudo era muito para um coração de repente enfraquecido que só suportava o menos, só podia
querer o pouco aos poucos. Sentia hoje, e
Os primeiros calores da primavera, tão antigos como um primeiro sopro. E que me faz não
poder deixar de sorrir. Sem me olhar no espelho, é um sorriso que tem a idiotice dos anjos.
Muito antes de vir a nova estação já havia o prenúncio: inesperadamente uma tepidez de vento,
as primeiras doçuras do ar. Impossível! impossível que essa doçura de ar não traga outras! diz o
coração se quebrando.
Impossível, diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera. Impossível que
esse ar não traga o amor do mundo! repete o coração que parte sua secura crestada num sorriso. E
nem sequer reconhece que já o trouxe, que aquilo é amor. Esse primeiro calor ainda fresco traz: tudo.
Apenas isso, e indiviso: tudo.
E tudo é muito para um coração de repente enfraquecido que só suporta o menos, só pode querer
o pouco e aos poucos. Sinto hoje, e também mordente, uma espécie de lembrança ainda vindoura do
dia de hoje. E dizer que
também mordente, uma espécie de lembrança ainda vindoura do dia de hoje. E dizer que nunca,
nunca dera isto que estava sentindo a ninguém e a nada. Dera a si mesma?
Só na medida em que a pungência do que era bom cabia dentro de nervos tão frágeis, de mortes
tão suaves. Ah como
queria morrer. Nunca experimentara ainda morrer — que abertura de caminho tinha ainda à
frente. Morrer teria a mesma pungência indivisível do bom. A quem daria a sua morte? Que seria
como os primeiros calores frescos de uma nova estação.
Ah como a dor era mais suportável e compreensível que aquela promessa de frígida e líquida
alegria da primavera. E com tal pudor a esperava: a pungência do bom.
Mas nunca morrer antes de realmente morrer: pois era tão bom prolongar aquela promessa.
Queria prolongá-la com tal finura.
Nessa finura Lóri se banhava, nutria-se da vida melhor e mais fina, pois nada era bom demais
para se preparar para o instante daquela nova estação. Queria os melhores óleos e perfumes, queria a
vida da melhor espécie, queria as esperas as mais delicadas, queria as melhores carnes finas e
também as pesadas para comer, queria a quebra de sua carne em espírito e do espírito se quebrando
em carne, queria essas finas misturas — tudo o que secretamente a adestraria para aqueles primeiros
momentos que viriam.
Iniciada, pressentia a mudança de estação. E desejava a vida mais cheia de um fruto enorme.
Dentro daquele fruto que era suculento, havia lugar para a mais leve das insônias diurnas que era a
sua sabedoria de bicho acordado: um véu de alerteza, esperta bastante para apenas pressentir. Ah
pressentir era
nunca, nunca dei isto que estou sentindo a ninguém e a nada. Dei a mim mesma? Só dei na
medida em que a pungência do que é bom cabe dentro de nervos tão frágeis, de mortes tão suaves.
Ah como quero morrer. Nunca ainda experimentei morrer — que abertura de caminho
tenho ainda à frente. Morrer terá a mesma pungência indivisível do bom. A quem darei a sua
morte? que será como os primeiros calores frescos de uma nova estação. Ah, como a dor é mais
suportável e compreensível que essa promessa de frígida e líquida alegria da primavera. É com tal
pudor espero morrer: a pungência do bom. Mas nunca morrer antes de realmente morrer: pois é tão
bom prolongar essa promessa. Queria prolongá-la com tal finura. Eu me banho, nutro-me da vida
melhor e mais fina, pois nada é bom demais para me preparar para o instante dessa nova estação.
Quero os melhores óleos e perfumes, quero a vida da melhor espécie, quero as esperas as mais
delicadas, quero as melhores carnes finas e também as pesadas para comer, quero a quebra de minha
carne em espírito e do espírito se quebrando em carne, quero essas finas misturas — tudo o que
secretamente me adestrará para aqueles primeiros momentos que virão. Iniciada, pressinto a mudança
de estação. E desejo a vida mais cheia de um fruto enorme. Dentro desse fruto que em mim se
prepara, dentro desse fruto que é suculento, há lugar para a mais leve das insônias que é a minha
sabedoria de bicho acordado: um véu de alerteza, esperta apenas o bastante para apenas pressentir.
Ah pressentir é mais ameno do que o intolerável agudo do bom. E que eu não esqueça, nessa minha
fina luta travada, que o mais difícil de se entender é a alegria. Que
mais ameno do que o intolerável agudo do bom. E que ela não se esquecesse, naquela sua fina
luta travada, que o mais difícil de se entender era a alegria.
Que ela não se esquecesse que a subida mais escarpada, e mais à mercê dos ventos, era sorrir
de alegria. E que por isso era que aquilo que menos tinha cabido dentro dela: a delicadeza infinita da
alegria. Pois quando se demorava demais nela e procurava se apoderar de sua levíssima vastidão,
lágrimas de cansaço lhe vinham aos olhos: era fraca diante da beleza do que existia e do que ia
existir.
E não conseguia, adestramento contínuo, apoderar-se do primeiro rego-zijo da vida.
nesse
eu não esqueça que a subida mais escarpada e mais à mercê dos ventos, é sorrir de alegria. E
que por isso e aquilo é que menos tem cabido em mim: a delicadeza infinita da alegria. Pois
quando me demoro demais nela e procuro me apoderar de sua levíssima vastidão, lágrimas de
cansaço me vêm aos olhos: sou fraca diante da beleza do que existe e do que vai existir. E não
consigo, nesse adestramento contínuo, me apoderar do primeiro regozijo da vida.
Conseguirei captar o regozijo infinitamente doce de morrer? Ah, como me inquieta não
conseguir viver o melhor, e assim poder enfim morrer o
Conseguiria dessa vez captar o regozijo infinitamente doce que era como morrer? Ah como se
inquietava de não conseguir viver o melhor, e assim poder um dia enfim morrer o melhor. Como se
inquietava que alguém pudesse não compreender que morreria numa ida para uma tonta felicidade de
primavera. Mas não apressaria de um instante a vinda dessa felicidade — pois esperá-la vivendo era
a sua vigília de castidade.
Dia e noite não deixava apagar-se a vela — para prolongá-la na melhor das esperas.
A primeira calidez fresca da primavera... mas aquilo era amor! A felicidade a deixava com um
sorriso de filha. Cortara os cabelos e andava toda bem penteada. Só que a espera quase que não
cabia mais nela. Era tão bom que Lóri corria o risco de se ultrapassar, de vir a perder a sua primeira
morte primaveril, e, no suor de tanta espera tépida, como que morrer antes. Por
melhor. Como me inquieta que alguém possa não compreender que morrerei numa ida para
uma tonta felicidade de primavera. Mas não apressarei de um instante a vinda dessa felicidade —
pois esperá-la vivendo é a minha vigília de vestal. Dia e noite não deixo apagar-se a vela — para
prolongá-la na melhor das esperas. Os primeiros calores da primavera... mas isso é amor! A
felicidade me deixa com um sorriso de filha. Estou toda bem penteada. Só que a espera quase não
cabe mais em mim. É tão bom que corro o risco de me ultrapassar, de vir a perder a minha
primeira morte primaveril, e, no suor de tanta espera tépida, morrer antes. Por curiosidade,
morrer antes: pois já quero saber como é a nova estação.
Mas vou esperar. Vou esperar comendo com delicadeza e recato e avidez controlada cada
mínima migalha de tudo, quero tudo pois nada é bom demais para a minha morte que é a minha vida
tão eterna que hoje mesmo
curiosidade, morrer antes: pois já queria ela já existe e já é. 75
saber como era a nova estação.
Mas ia esperar. Ia esperar comendo
com delicadeza e recato e avidez controlada
cada mínima migalha de tudo, queria
tudo pois
nada era bom demais para a sua morte que
era a sua vida tão eterna que hoje mesmo
ela já existia e já era.76
Os próximos fragmentos que sucedem a esse no livro retomam e dão continuidade à
"prática dissolvente" de reescrita que sustenta o projeto escritural do livro e,
conseqüentemente, o próprio Texto do livro que se tece entre textos-fragmentos os mais
diversos possíveis. Desse modo, vejamos tais fragmentos comparando-os com aqueles
que lhes deram origem, fazendo-os existir pela reescrita:
De novo Ulisses a ajudara, sobretudo com o tom de sua voz que era muito rica em inflexões. E
Lóri pensou que talvez essa fosse uma das experiências humanas e animais mais importantes: a de
pedir mudamente socorro e mudamente esse socorro ser dado. Pois, apesar das palavras trocadas,
fora mudamente que ele a havia ajudado. Lóri se sentia como se fosse um tigre perigoso com uma
flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem
lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que um tigre ferido não é perigoso. E
aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podiam agradecer.
Talvez seja uma das experiências humanas e animais mais importantes. A de pedir socorro e,
por pura bondade e compreensão do outro, o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter nascido para
que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu já pedi socorro. E não me foi negado.
Senti-me então como se eu fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que
estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então
uma pessoa tivesse sentido que um tigre ferido é apenas tão perigoso como uma criança. E
aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem
75 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.27-29. A crônica "Primavera ao correr da máquina" foi publicada no Jornal do Brasil, em
23 de setembro de 1967.
Então ela, o tigre, dera umas voltas vagarosas em frente ao homem, hesitara, lambera uma das
patas e depois, como não era a palavra ou o grunhido o que tinha importância, afastara-se silenciosa-
mente. Lóri nunca esqueceria a ajuda
que recebera quando ela só conseguiria gaguejar de medo.78
pessoas nem animais podiam
agradecer. Então ela, o tigre, dei umas
voltas vagarosas em frente à pessoa,
hesitei, lambi uma das patas e depois,
como não é a palavra o que tem
importância, afastei-me silenciosamente.77
Valendo-se da experiência da reescrita, Clarice insere no corpo da escritura um fragmento
que, talvez pela temática, parece destoar da história romanesca. O fragmento seguinte, tal
como esse, sugere a prática de reescrever-colar que molda o projeto de construção
escritural do qual a autora se vale no livro:
A procura se tornava inútil. Então ela se perguntou, como antes fazia, já que perdia tanto as
coisas que guardava: se eu fosse eu e tivesse um documento importante para guardar que lugar eu
escolheria? Na maioria das vezes isso a guiava a achar o perdido.
Mas desta vez ficou tão pressionada pela frase "se eu fosse eu" que a procura da prova se
tornara secundária, e ela começava sem querer a pensar, o que nela era sentir.
E não se sentia cômoda. "Se eu fosse eu" provocara um constrangimento: a mentira em que se
havia acomodado acabava de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já
lera biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam
Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: "se
eu fosse eu" e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo.
Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna
secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.
E não se sento bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início
se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente
locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente
passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu,
os amigos não me cumprimentariam
77 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.154-155. A crônica "Uma experiência" foi publicada no Jornal do Brasil, em 22 de junho
de 1968. O fragmento aparece reescrito em Água viva, p.87.
inteiramente de vida, pelo menos de vida interior. Lóri achava que se ela fosse ela, os
conhecidos não a cumprimentariam na rua porque até sua fisionomia teria mudado. "Se eu fosse eu"
parecia representar o maior perigo de viver, parecia a entrada nova do desconhecido.
No entanto, Lóri tinha a intuição de que, passadas as primeiras perturbações da festa íntima que
haveria, ela teria enfim a experiência do mundo. Bem sabia, experimentaria enfim em pleno a dor do
mundo. E a sua própria dor de criatura mortal, a dor que aprendera a não sentir. Mas também seria
por vezes tomada de um êxtase de prazer puro e legítimo que ela mal podia adivinhar. Aliás já estava
adivinhando porque se
sentiu sorrindo e também sentiu uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande
demais.79
na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um
certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o
futuro ao futuro.
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no
desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da
festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimen- taríamos enfim em
pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que
aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura
e legítima que mal
posso adivinhar. Não, acho que já estou adivinhando porque me senti sorrindo e também senti
uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.80
O texto-crônica é completamente reescrito e disseminado no corpo da escritura. Nesse caso, se há
uma "lembrança circular" do texto-crônica na leitura, talvez tal lembrança se dê pelo grifo na
expressão "Se eu fosse eu" que, além de vir entre aspas sugerindo uma certa "pessoalidade", é
título do texto-crônica. O fragmento seguinte, não diferente dos dois últimos aqui grifados, nada
mais é que um diálogo que constitui o texto-crônica "O processo". Inserido no livro, tal diálogo se
estabelece entre Lóri e Ulisses, numa conversa por telefone:
Quando chegou em casa telefonou para Ulisses:
— Que é que eu faço? Não estou agüentando viver. A vida é tão curta e eu não estou agüentando
viver.
— Mas há muitas coisas, Lóri, que você ainda desconhece. E há um ponto em que o desespero é
uma luz e um amor.
— E depois?
— Depois vem a Natureza.
— Você está chamando a morte de
Natureza.
— Não, Lóri, estou chamando a nós
de Natureza.
— Será que todas as vidas foram isso?
— Não sei, Lóri.81
— Que é que eu faço? Não estou agüentando viver. A vida é tão curta, e eu não estou
agüentando viver.
— Não sei. Eu sinto o mesmo. Mas há coisas, há muitas coisas. Há um ponto
em que o desespero é uma luz, e um amor.
— E depois?
— Depois vem a Natureza.
— Você está chamando a morte de
Natureza?
— Não. Estou chamando a natureza
de Natureza.
— Será que todas as vidas foram
isso? 82— Acho que sim.
Os três últimos fragmentos grifados, aparentemente simples, tornam-se importantes
quando, pela leitura, o leitor percebe que no corpo da escritura se aloja um "texto
estranho" que vem se dizer no tempo da leitura. Na verdade, tal "texto estranho" somente
se inscreve naquele tempo em que o leitor levanta a cabeça, como se se lembrasse de uma
leitura posterior, apagada, mas que no "ato de ler" ressurge e rasura o fragmento como
citação na escritura do livro.
O livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres encaminha-se para seu
final demonstrando, como desde seu início, que se organiza de vários outros textos
menores nele reescritos e superpostos. Seus últimos capítulos resumem pelo menos dois
outros fragmentos que, além de aparecerem como texto-crônicas, foram republicados em 80
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.228-229. A crônica "Se eu fosse eu" foi publicada no Jornal do Brasil, em 30 de novembro
de 1968.
outros livros. O primeiro desses fragmentos é o conhecido "Estado de graça" que compõe,
isoladamente, um capítulo do livro. Parte desse fragmento aparecerá também no livro
Água Viva. Nesse livro, diferentemente daquele, a autora retoma o texto-crônica,
recopiando-o com mais perfeição, demonstrando, com isso, que tais livros têm uma
prática de construção semelhante mas não igual: em Uma Aprendizagem, o trabalho de
reescrita é mais cuidadoso pela própria demanda da escritura, ficando os textos-crônicas
superpostos, enquanto em Água Viva, os fragmentos são justapostos, compondo, assim, a
escritura fragmentária que o livro demanda. O que distancia ainda mais a prática da
reescrita entre ambos é o fato de que os textos-crônicas são inseridos no livro Água Viva
na mesma pessoa que os narra (o eu), enquanto o mesmo dificilmente acontece no livro
Uma Aprendizagem. Essa constatação vai dar, por sua vez, aquele "tom" mais
autobiográfico que caracteriza o livro Água Viva, mesmo se chamado de "ficção".
Vejamos o texto-crônica "Estado de graça — trecho" reescrito e compondo mais um
capítulo do livro:
Só deu uma mordida e depositou a maçã na mesa. Porque alguma coisa desconhecida estava
suavemente aconte-cendo. Era o começo — de um estado de graça.
Só quem já tivesse estado em graça, poderia reconhecer o que ela sentia. Não se tratava de uma
inspiração, que era uma graça especial que tantas vezes acontecia aos que lidavam com arte.
Quem já conheceu o estado de graça, reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à
inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.
O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se
soubesse que realmente se existe. Nesse estado, além da tranqüila felicidade que se irradia de
82 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.15. A crônica "O processo" foi publicada no Jornal do Brasil, em 26 de agosto de 1967.
O estado de graça em que estava não era usado para nada. Era como se viesse apenas para
que se soubesse que realmente se existia. Nesse estado, além da tranqüila felicidade que se
irradiava de pessoas lembradas e de coisas, havia uma lucidez que Lóri só chamava de leve
porque na graça tudo era tão, tão leve. Era uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço,
sabe. Apenas isto: sabe. Que não lhe perguntassem o que, pois só poderia responder do mesmo
modo infantil: sem esforço, sabe-se.
E havia uma bem-aventurança física que a nada se comparava. O corpo se transformava num
dom. E ela sentia que era um dom porque estava experimentando, de uma fonte direta, a dádiva
indubitável de existir materialmente.
No estado de graça, via-se a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás,
ganhava uma espécie de nimbo que não era imaginário: vinha do esplendor da irradiação quase
matemática das coisas e das pessoas. Passava-se a sentir que tudo o que existe — pessoa ou coisa —
respirava e exalava uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Esta energia é a maior verdade
do mundo e é impalpável.
Nem de longe Lóri podia imaginar ser o estado de graça dos santos. Aquele estado ela jamais
conhecera e nem sequer consiguia adivinhá-lo. O que lhe acontecia era apenas o estado de graça de
uma pessoa comum que de súbito se torna real, porque é comum e humana e reconhecível e tem olhos
e ouvidos para ver e ouvir.
As descobertas naquele estado eram indizíveis e incomunicáveis. Ela se manteve sentada,
quieta, silenciosa. Era como uma anunciação. Não sendo porém precedida pelos anjos que, suponha,
antecediam a graça dos santos.
pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. É
uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o
quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.
E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se
sente que é um dom porque está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir
materialmente.
No estado de graça, vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo,
aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase
matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe — pessoa ou coisa —
respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. A verdade do mundo é impalpável.
Não é nem de longe o que mal imagino deve ser o estado de graça dos santos. Esse estado
jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum
que de súbito se torna totalmente real porque é comum e humana e reconhecível.
As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de
graça, mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como numa anunciação. Não sendo porém
precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos santos, é como se o anjo da
vida viesse me anunciar o mundo.
Depois, lentamente, se sai. Não como se estivesse estado em transe — não há nenhum transe —,
sai-se devagar, com um suspiro de quem teve
Mas era como se o anjo da vida viesse anunciar-lhe o mundo.
Depois lentamente saiu daquela situação. Não como se tivesse estado em transe — não houvera
nenhum transe — saía-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este é. Também já era
um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a terra e o céu,
queria-se mais e mais. Mas é inútil desejar: só vinha espontaneamente.
Lóri não sabia explicar por que, mas achava que os animais entravam com mais freqüência na
graça de existir do que os humanos. Só que aqueles não sabiam, e os humanos percebiam. Os
humanos tinham obstáculos que não dificultavam a vida dos animais, como raciocínio, lógica,
compreensão. Enquanto que os animais tinham esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.
O Deus sabia o que fazia: Lóri achava que estava certo o estado de graça não nos ser dado
freqüentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o "outro lado" da vida, que esse
outro lado também era real mas ninguém nos entenderia jamais: perderíamos a linguagem em comum.
Também era bom que não viesse tantas vezes quantas queria: porque ela poderia se habituar à
felicidade. Sim, porque em estado de graça se era muito feliz. E habituar-se à felicidade, seria um
perigo social. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o eram, menos sensíveis à dor
humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisavam — tudo por termos na
graça a compensação e o resumo da vida.
Não, nem que dependesse de Lóri, ela não quereria ter com muita freqüência o estado de graça.
Seria como
o mundo como este é. Também já é um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar
um corpo e uma alma e a terra, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e
espontaneamente.
Não sei por que, mas acho que os animais entram com mais freqüência na graça de existir do
que os humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm obstáculos que não
dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a
esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.
Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado freqüentemente. Se
fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também é real mas ninguém
nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum.
Também é bom que não venha tantas vezes quanto eu queria. Porque eu poderia me habituar à
felicidade — esqueci de dizer que em estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à felicidade seria
um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o são, menos sensíveis à dor humana,
não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisam — tudo por termos na graça a
compensa-ção e o resumo da vida.
Não, mesmo se dependesse de mim, eu não quereria ter com muita freqüência o estado de graça.
Seria como cair num vício, iria me atrair como um vício, eu me tornaria contemplativa como os
fumadores de ópio. E se aparecesse mais a miúdo, tenho certeza de que eu abusaria: passaria a
querer viver permanentemente em graça. E isto representaria uma fuga imperdoável ao destino
simplesmente humano, que é
cair num vício, iria atraí-la como um vício, ela se tornaria contemplativa como os fumadores de
ópio. E se aparecesse mais a miúdo, Lóri tinha certeza de que abusaria: passaria a querer viver
perma- nentemente em graça. E isto represen-taria uma fuga imperdoável ao detino humano, que era
feito de luta e sofrimento e perplexidade e alegrias.
feito de luta e sofrimento e perplexidade e alegrias menores.
Também é bom que o estado de graça demore pouco. Se durasse muito, bem sei, eu que conheço
minhas ambições quase infantis, eu terminaria tentando entrar nos mistérios da Natureza. No que eu
tentasse, aliás, tenho a
Também era bom que o estado de graça demorasse poucos momentos. Se durasse mais, ela bem
sabia, ela que conhecia suas ambições quase infantis terminaria tentando entrar nos mistérios da
Natureza. No que ela tentasse, aliás, tinha certeza de que a graça desapareceria. Pois a graça era uma
dádiva e, se
certeza de que a graça desapareceria. Pois ela é dádiva e, se nada exige, desvaneceria se
passássemos a exigir dela uma resposta. É preciso não esquecer que o estado de graça é apenas
uma pequena abertura para uma terra que é uma espécie de calmo paraíso, mas não é a entrada
nele, nem
nada exigia, desvaneceria se passássemos a exigir dela uma resposta. Era preciso não esquecer
que o estado de graça era apenas uma pequena abertura para o mundo que era uma espécie de paraíso
— mas não era uma entrada nele, nem dava o direito de se comer dos frutos de seus pomares.
Lóri saiu do estado de graça com o rosto liso, os olhos abertos e pensativos e, embora não se
tivesse sorrido, era como se o corpo todo acabase de sair de um sorriso suave. E saíra melhor
criatura do que se entrara.
dá o direito de se comer dos frutos de seus pomares.
Sai-se do estado de graça com o rosto liso, os olhos abertos e pensativos e, embora não se tenha
sorrido, é como se o corpo todo viesse de um sorriso suave. E sai-se melhor criatura do que se
entrou. Experimentou-se alguma coisa que parece redimir a condição humana, embora ao mesmo
tempo fiquem acentuados os estreitos limites dessa condição. E exatamente porque depois da graça a
condição humana se revela na sua pobreza implorante, aprende-se
Havia experimentado alguma coisa que parecia redimir a condição humana, embora ao mesmo
tempo ficassem acentuados os estreitos limites dessa condição. E exatamente porque depois da graça
a condição humana se revelava na sua pobreza implorante, aprendia-se a amar mais, a esperar mais.
Passava-se a
a amar mais, a perdoar mais, a esperar mais. Passa-se a ter uma espécie de confiança no
sofrimento e em seus caminhos tantas vezes intoleráveis.
Há dias que são tão áridos e desérticos que eu daria anos de minha vida em troca de uns minutos
de graça.
____
ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes intoleráveis.
Havia dias que eram tão áridos e desérticos que ela daria anos de sua vida em troca de uns
minutos de graça.83 P.S. — Estou solidária, de corpo e alma, com a tragédia dos estudantes do
Brasil.84
Em se tratando da comparação entre o texto-crônica e o fragmento do livro, podemos
dizer que a autora procura fazer o trabalho da reescrita de modo tão perfeito, reescrevendo
ou copiando palavra por palavra, parágrafo por parágrafo e fragmento por fragmento que,
às vezes, consciente ou inconscientemente troca uma palavra por outra como nos parece
ser o caso das palavras "nimbo"/"ninho", grifadas na leitura.
O fragmento seguinte grifado na leitura reafirma o que aqui se disse e
demonstra a prática de colar um fragmento (tema) dentro da escritura, de forma que fique
totalmente chapado a essa. A fusão entre o texto que se reaproveita e o texto que se
escreve é perfeita, não fosse a demanda do contexto da leitura de quem os lê: no ato de
ler, o leitor clariceano percebe, no livro, a presença intratextual e grifa o fragmento
reescrito/citado, fazendo-o existir. Esse trabalho do leitor de grifar no texto outro texto
resume a leitura executada neste trabalho. Grifemos o fragmento:
83 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.146-150.
84 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.119-121. A crônica "Estado de graça – trecho" foi publicada no Jornal do Brasil, em 6
de abril de 1968. O mesmo fragmento aparece reescrito às páginas 88-90 de Água viva.
Apesar da ameaça de chuva iminente e da angústia que o jasmim sufocante já lhe estava dando,
descobria, descobria. E não chovia, não chovia. Mas a hora mais escura precedeu aquela coisa que
ela não queria sequer tentar definir. Esta coisa era uma luz dentro dela, e a essa chamariam de
alegria, alegria mansa.
Ficou um pouco desnorteada como se um coração lhe tivesse sido tirado, e em lugar dele
estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável, do que era antes um órgão banhado
pela escuridão da dor.
Porque ela estava sentindo a grande dor. Nessa dor havia porém o contrário de um
entorpecimento: era um modo mais leve e mais silencioso de existir. Quem sou eu? perguntou-se em
grande perigo. E o cheiro do jasmineiro respondeu: eu sou o meu perfume.
Viu que, igual ao balançar inquieto das árvores da casa vizinha, também ela estava indócil,
inquieta. Organizara-se para se consolar da angústia e da dor. Mas como era que se consolaria da
mistura de simples e tranqüila alegria com a angústia? Ela não estava habituada a prescindir do
consolo.
Então começou finalmente a chover. Antes uma chuva rala, depois tão densa que fazia barulho
em todos os telhados.
Já sei, pensou de repente. Soube que estava procurando na chuva uma alegria tão grande que se
tornasse aguda, e que a pusesse em contato com uma agudez que se parecia com a agudez da dor. Mas
fora inútil a procura. Estava à porta do terraço e só acontecia isto: ela via a chuva e a chuva caía de
acordo com ela. Ela e a chuva estavam ocupadas em fluir com violência.
Quanto duraria esse seu estado?
Pois a hora mais escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa coisa que não
quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero ainda tentar
definir é uma luz tranqüila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um
pouco desnorteada
como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência,
uma ausência quase palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão diurna da dor. Não
estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e mais silencioso de
existir.
Mas estou também inquieta. Eu estava organizada para me consolar da angústia e da dor. Mas
como é que me consolo dessa simples e tranqüila alegria? É que não estou habituada a não precisar
de consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ela já
se havia transformado em carne e espírito, já não existir mais como pensamento.
Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando na chuva o que em outro
momento me
serviria de consolo. Mas não tenho dor a consolar.
Ah, eu sei. Estou procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda,e que me
ponha em contato com uma agudez que se pareça com a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à
janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo.
Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebo que, com esta pergunta,
estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar doLórido de antes. E vejo que
Percebeu que com essa pergunta estava apalpando seu pulso para sentir onde estaria o latejar
doLórido de antes.
E viu que não havia o latejar da dor como antigamente. Apenas isso: chovia fortemente e ela
estava vendo a chuva e molhando-se toda.
Que simplicidade.
Nunca imaginara que uma vez o mundo e ela chegassem a esse ponto de trigo maduro. A chuva e Lóri
estavam tão juntas como a água da chuva estava ligada à chuva. E ela, Lóri, não estava agradecendo
nada. Não tivesse ela, logo depois de nascer tomado por acaso e forçosamente o caminho que tomara
— qual? — e teria sido sempre o que realmente ela estava sendo: uma camponesa que está num
campo onde chove. Nem sequer agradecendo ao Deus ou à Natureza. A chuva também não agradecia
nada. Sem gratidão ou ingratidão, Lóri era uma mulher, era uma pessoa, era uma atenção, era um
corpo habitado olhando a chuva grossa cair. Assim como a chuva não era grata por não ser dura
como uma pedra: ela era a chuva. Talvez fosse
isso, porém exatamente isso: viva. E apesar de apenas viva era de uma alegria mansa, de cavalo que
come na mão da gente. Lóri estava mansamente feliz.86
não há o latejar da dor. Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca
pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está
precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a
água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois
de nascer, tomado involutária e forçada-mente o caminho que tomei — e teria sido sempre o que
realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agrade-
cendo ao Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que
agradece ter se transfor-mado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou
um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser uma pedra. Ela é uma
chuva. Talvez seja isso que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E
apenas vivo é uma alegria mansa.85
Assim o livro chega ao seu final, mas não antes que o leitor grife os derradeiros textos
crônicas nele superpostos:
85 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.131-132. A crônica "A alegria mansa – trecho " foi publicada no Jornal do Brasil,
em 4 de maio de 1968. O mesmo fragmento reaparece com o título de "Tanta mansidão" em Onde estivestes de noite.
86 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.157-159.
Quanto a ela, lutara toda a sua vida contra a tendência ao devaneio, nunca deixando que ele a
levasse até as últimas
Lutei toda a minha vida contra a tendência ao devaneio, sempre sem jamais deixar que ele me
levasse até as
águas. Mas o esforço de nadar contra a corrente doce havia tirado parte de sua força vital.
Agora, no silêncio em que ambos estavam, ela abriu suas portas, relaxou a alma e o corpo, e não
soube quanto tempo se passara pois tinha-se entregue a um profundo e cego devaneio que o relógio
da Glória não interrompia.87
últimas águas. Mas o esforço de nadar contra a doce corrente tira parte de minha força vital.
E, se lutando contra o devaneio, ganho no domínio da ação, perco interiormente uma coisa muito
suave de se ser e que nada substitui. Mas um dia ainda ei de ir sem me importar para onde o ir me
levará.88
— Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se
pode dar de si, disse Ulisses.89
... amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que
se pode dar de si.90
Tais fragmentos encerram a "prática dissolvente" empregada pela autora na construção da
escritura do livro; encerram a prática de grifá-los e, conseqüentemente, a leitura que move
este trabalho. Entretanto, além do cotejo que a escritura do livro mantém com os textos
crônicas, percebemos, subrepticiamente, que a escritura também copia a si mesma,
repetindo o gesto de sua construção ao praticar uma reescrita intratextual, como atestam
as seguintes passagens do livro:
Mas da lua ela não tinha receio porque era mais lunar que solar e via de Antes de se deitar foi ao
terraço: uma lua cheia estava sinistra no céu.
87 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.165.
88 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.436. A crônica "Ir contra uma maré" foi publicada no Jornal do Brasil, em 25 de abril de
1970.
89 Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.173.
90 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.436. A crônica "O presente" foi publicada no Jornal do Brasil, em 8 de julho de 1972.
olhos bem abertos nas madrugadas tão escuras a lua sinistra no céu. Então ela se banhava toda
nos raios lunares, assim como havia os que tomavam banhos de sol. E ficava profundamente límpida.
(p.33-34)
Então ela se banhou toda nos raios lunares e se sentiu profundamente límpida e tranqüila.
(p.126)
Nesta madrugada fresca foi ao terraço e refletindo um pouco chegou a assustadora certeza de
que seus pensamentos eram tão sobrenaturais como uma história passada depois da morte. Ela
simplesmente sentira de súbito, que pensar não lhe era natural. Depois chegara à conclusão de que
ela não tinha um dia-a-dia mais sim uma vida-a-vida. E aquela vida que era sua nas madrugadas era
sobrenatural com suas inúmeras luas banhando-a de um prateado líquido tão terrível. (p.34)
Ali em pé na semi-escuridão do terraço, de repente mais suave, veio-lhe outra revelação que
durou pois era o resultado intuitivo de coisas que ela pensara antes racionalmente. O que lhe veio
foi a levemente assustadora certeza de que os nossos sentimentos e pensamentos são tão
sobrenaturais como uma história passada depois da morte. (...) Simplesmente, com o copo de água
na mão, descobria que pensar não lhe era natural. Depois refletiu um pouco, com a cabeça
inclinada para um lado, que não tinha um dia-a-dia. Era uma vidaa-vida. E que a vida era
sobrenatural. (p.156)
A constatação da repetição intratextual reforça não só o uso da "prática dissolvente" na
escritura, como aponta suas "falhas" no nível da construção. Demonstra também que o
livro foi escrito aos pedaços, denunciando a prática de escrita "falhada", isto é, informe,
que, desde então, molda a produção da autora. Vejamos, então, mais uma passagem do
livro que caracteriza essa escrita intratextual dissolvente:
— A noite de hoje está me parecendo um sonho.
— Mas não é. É que a realidade é inacreditável. (p.161)
...( Tudo me parece um sonho. Mas não é, dise ele, a realidade é que é inacreditável.) (p.168)
O que, da primeira vez, faz parte de um diálogo entre Lóri e Ulisses, na segunda,
diferentemente, é repetido somente por Ulisses e entre parênteses. Essa forma recolhida
entre parênteses acaba denunciando um certo destoar no nível da escrita e, ao mesmo
tempo, reforça o aproveitamento de uma mesma passagem duas vezes no livro. Se tal prática
recolhida de escrita seria uma forma de escamotear a repetição da mesma
passagem, antes, pelo contrário, faz é revelar um trabalho imperfeito de cópia que, por sua
vez, reflete a "falha" escritural que move a escritura e, por extensão, o livro do começo ao
fim.
Do começo ao fim — da vírgula que lhe dá início aos dois pontos que o
concluem —, o livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres é um trabalho de
escrita. É nessa prática com o papel que o texto se constrói, e o trabalho da autora se
organiza e se diz em forma de livro. Trabalho material em que a autora pratica uma nova
forma de escrita, a reescrita, que já é a realização do que se busca.
Por meio do trabalho de reescrever-colar, a escritura do livro se organiza
enquanto tal e relata, além de tantas outras histórias que nela se inscrevem, a história de
amor entre Lóri e Ulisses e sua própria história de construção. Valendo-se da história
romanesca a autora insere outras histórias, outros textos que passam a compor o todo da
escritura do livro. Tais textos estranhos (crônicas), antes superpostos na escritura,
ressurgem na leitura, revelando o projeto escritural do qual a autora se valeu para a
construção do livro.
Grifar tais textos na leitura é percorrer o trajeto realizado pela autora na
construção do livro. Conseqüentemente, encontra-se nesse caminho um trabalho árduo de
reescrever e recopiar o que foi escrito pela mesma autora, mas em outro lugar e em outro
(con)texto. É nessa empreitada de se apropriar de seus próprios textos que a autora se
investe na construção da escritura, mas não sai ilesa, deixando as marcas (falhas) de tal trabalho e as
pegadas de tal sujeito inscritas no corpo da escritura. Desse modo, mais
importante do que a história romanesca do livro — que é escrita, às vezes, pelos próprios
personagens —, pensamos ser a história do trabalho de reescrita, que se organiza de textos
sob textos numa escritura em palimpsesto que vem se dizer no tempo da leitura.
Água Viva — uma fragmentação escritural
O livro Água Viva é, do começo ao fim, uma verdadeira fragmentação
escritural. Melhor dizendo, do começo ao fim, não, porque o livro continua — sua
escritura continua inacabada. Traz, desde sua "origem", uma mudança semovente de
títulos, fragmentos, páginas e, conseqüentemente, de significação. Em sua primeira
versão, recebeu o título de Atrás do Pensamento: Monólogo com a Vida; depois, após a
autora retirar cem páginas aproximadamente, sobretudo aquelas de "tom" mais pessoal,
recebe o título de Objeto Gritante e, por último, o de Água Viva, coisa que borbulha na
fonte.91
Se a mudança de títulos, de certa forma, reforça a fragmentariedade do livro —
uma vez que a autora ao mudar o título cortava páginas, recortando os fragmentos ao
invés de colá-los na possível escritura —, o fato de que os fragmentos foram organizados
por Olga Borelli sela tal suspeita. Contudo, o que vai caracterizar a fragmentação do livro
escrito, por assim dizer, a quatro mãos, é sua escritura resultante. 91 "Esse livrinho tinha 280 páginas; eu fui
cortando – cortando e torturando – durante três anos. Eu não sabia o que fazer mais. Eu estava desesperada. Tinha outro nome. Era
tudo diferente... ... Era Objeto gritante, mas não tem
Para a construção da escritura, Clarice "se aproveitou de coisas que já estavam
escritas" — as crônicas, por exemplo — e foi recortando e colando, ajuntando
fragmentos, até que se deu conta de que o trabalho estava ficando grande demais, e
perigoso demais, achando por bem reduzir algumas páginas, sobretudo aquelas que eram
de crônicas em que ela — a mulher-cronista-escritora — aparecia de forma mais pessoal.
No entanto, mesmo tendo feito todo esse trabalho cuidadoso de cortar o grande texto na
tentativa de rasurar o "eu" pessoal, outros textos-crônicas permaneceram na escritura, mas
sem perder o sentido emanado pelo fragmento. Ou melhor: cada fragmento (crônica)
encaminha-se para a formação do grande sentido do livro — se é possível falar aqui em
grande sentido — mantendo, contudo, o que já trazia no seu corpo-fragmento. Desse
modo, o livro se assemelha a um "fundo de gaveta", lugar de onde a autora retira os
fragmentos que nada mais são que "reminiscências", objetos guardados, e, justapondo-os,
monta a escritura fragmentária que o constitui.
Por isso, esse livro de Clarice é, entre todos os demais, aquele que traz uma
escritura mais instigante e desafiadora ao leitor. Seu texto, que a princípio pode parecer
fácil, convoca o leitor para o seu desvelamento: texto sem texto, fundo sem fundo. Vem
de encontro ao que disse Derrida, que "um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro
olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo".92 Então
diríamos que sua composição — se é possível falar em composição ao se referir a Água função mais. Eu
prefiro Água viva, coisa que borbulha. Na fonte. ...". Clarice, citado por Gotlib. Clarice: uma vida que se conta, p.410.
92 DERRIDA. A farmácia de Platão, p.7.
Viva — constitui-se enquanto tal pela leitura, sendo esta um "fac-símile" de leitura, como
o texto é um "fac-símile" de texto (de livro, disse a autora).93 Como a autora, que se lança
no traço imprevisto de seu desenho escritural,94 também o leitor, que pensa e deseja
construir uma leitura (sentido)95 possível dessa escritura que "quase" se escreve, deve
aventurar-se no campo desconhecido, fragmentado e movediço que é o texto de Água
Viva.
Os fragmentos escriturais que compõem o livro jogam com o leitor,
disseminando um sentido que, previamente, não existe. O leitor, assim, é tomado pelo
jogo escritural que se encena, e é preciso aprender a jogar, a jogar com a escritura,
encenar sua leitura, enfim. Essa é a única forma de entregar-se à escritura de Água Viva,
mas sem render-se ao jogo, joga com sua leitura, articula os fragmentos "dispersos" do
texto e constrói a escritura-leitura. Diante do jogo que se estabelece entre escritura e
leitura/leitura e escritura não há vencedor nem vencido: ora um ocupa o lugar do outro, e
assim infinitamente.96
"O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa." Assim o texto de Água
Viva é um convite reiterado ao leitor para que este o deseje: deseje a sua leitura. Esse
93 LISPECTOR. Água viva, p.55.
94 Ibidem. p.24.
95 Segundo Barthes, "não pode dizer-se que a literatura não diz nada, mas também se não pode dizer que ela diz alguma coisa ou que
diz tudo. Então que é que se passa? Encontramo-nos numa região que podemos provisoriamente qualificar de impossível; não me
repugnaria dizer que a escrita é da ordem do dizer 'quase alguma coisa', e que, se é da ordem do 'quase alguma coisa', isso nos arrasta
para uma epistemologia completamente nova, que se procura talvez a partir de regiões mais próximas de Nietzsche: uma semiologia ou
uma textologia, se assim pode dizer-se, das intensidades e não das mensagens, o 'quase' remetendo para o diferencial de intensidades e
não para um diferencial de mensagens". BARTHES citado por NAVA. Leituras de Roland Barthes, p.196.
texto, que não traz significado original de seu autor, constitui-se enquanto texto através da
relação que o leitor estabelece com ele — dando-lhe uma interpretação.
Clarice juntou "fragmentos" na construção da escritura do livro, abrindo a
possibilidade para que o leitor venha e dê um sentido a esse "original" (texto resultante)
sem sentido aparente; e, contudo, intervalado por "sentidos" emanados dos fragmentos
justapostos. A leitura aqui realizada seria, em certo sentido, uma leitura meio parricida,
uma vez que o leitor se ocupa dos intervalos dos fragmentos na tentativa de fundar a
própria escritura do livro. Podemos dizer que o texto acontece nessa prática leitural. Não
sendo assinado no momento em que foi escrito — porque não existia enquanto tal —, o
texto é assinado pelo leitor, que o constrói. Clarice escreve o texto sob os olhos do leitor:
há um convite reiterado para que este participe da construção de sua escritura. A
narradora-feiticeira do livro escreve-o para um leitor que a ouve em silêncio.
O contrabando não dissimulado por Clarice na construção do livro — em que
ela traz textos seus de outros lugares para dentro desse, além de retirar outros (ou os
mesmos trazidos) por excesso — nos permite dizer que o texto que chegou até ao leitor
não tem "origem". Seria o simulacro do texto original não escrito. Nesse texto-simulacro,
vários outros textos-fragmentos se encenam, persistem, simulam uma certa origem, na
tentativa de apagar, definitivamente, a origem do texto original não escrito. Por outro
lado, pela leitura, o sentido de um fragmento do texto esbarra em outro fragmento
(anterior ou posterior) refletindo, assim, o próprio "sentido" da escritura que só existe 96 Para
DERRIDA, "o é que une a leitura à escritura deve descosê-las". DERRIDA. A farmácia de Platão, p.7.
nesse deslizar. Podemos dizer, inclusive, que a forma como a escritura de Água Viva se
constrói já traz, em si, esse sentido deslizante: ela é o seu próprio sentido e acontece no
deslizar.
Com sua leitura, o leitor articula as formas possíveis dos fragmentos e acaba
ativando o texto que vem se dizer durante a "travessia" leitural que é também escritural.
Para que o leitor possa ler de fato o texto é preciso que ele seja "transferido" para dentro
do texto, porque, somente assim, ele poderá olhá-lo de dentro. Afinal, sem se apropriar do
escrito, por uma relação amorosa e desejante, não há leitura possível. Por isso, no ato de
ler a escritura de Água Viva, o leitor acaba se confundindo com o que está lendo — ele é
tragado pelo objeto-texto — e lê por acréscimo: lê o que ali não existia. O que confirma,
por sua vez, que "ler é sempre uma forma de se estar apaixonado".97
Parece que sem uma certa paixão pelo texto Água Viva, assim como por
qualquer texto literário, não há leitura possível. O tempo da escritura existe no mesmo
tempo da leitura: são fundantes da significação textual. "Estas minhas frases balbuciadas
são feitas na hora mesma em que estão sendo escritas e crepitam de tão novas e ainda
verdes."98 Jamais em outro tempo. O leitor é tomado por essa "convulsão de linguagem"
que funda a própria escritura. Tal escritura, como sua própria narradora-feiticeira, é uma
pergunta.99 A narradora, além de trabalhar "com o indireto, o informal e o imprevisto" —
97 ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.158.
98 LISPECTOR. Água viva, p.17.
99 Ibidem. p.40.

a palavra —, escreve com sua própria voz ao leitor100 para que este a acompanhe em
silêncio.
Podemos dizer que com a produção escritural de Água Viva, Clarice parece ter
chegado ao seu limite de escritora: ao justapor, nele, "trechos de diversos níveis e sem
temer o trivial",101 denuncia que seu processo de escrever se encaminhou para esse lugar
impossível, ou melhor, para essa escritura sem texto e que, por esse motivo, rasura a si
mesma o tempo inteiro. Água Viva pode ser tomado como um "resumo" do que até então
tinha escrito a autora e, ao mesmo tempo, um "rascunho" já dos textos que estavam por
vir. Tal livro, por sua própria construção, destrói toda e qualquer noção de gênero, o que
só vem reforçar o "estilo" buscado pela autora desde o seu primeiro livro. José Américo
Pessanha, em carta a Clarice, sobre o livro, sugere que ela lhe dê um subtítulo para que o
leitor possa identificar a obra "como não-ficção, como apontamentos, como um certo tipo
de diário, enfim, como você considere melhor qualificá-la sem traí-la em excesso".102
Recorremos a uma passagem do livro:
Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais.
Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de
não poder pintá-lo ou escrevê-lo.103
100 Ibidem. p.41.
101 PESSANHA, citado por GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.405. De fato Clarice não escreve o livro; antes,
deixa-se ser escrito por ele. A escritura de Água
Viva escreve-se a si mesma. O processo de escrever aí tornou-se imanente ao vivido
pessoal de sua autora. Clarice foi tragada para dentro do livro pelo processo de escrever e
tornou-se o seu próprio tema.104 Por mais que ela tenha tentado apagar o "eu" pessoal/
ficcional, retirando as crônicas justapostas ao texto, muitas outras subsistiram à revelia da
autora para confirmar suas "marcas" pessoais, além de que a própria tessitura escritural se
dá pelo despojamento de um corpo autoral inscrito no texto.
Podemos dizer, no sentido que aqui nos interessa, que não há texto em Água
Viva, mas apenas relações "entre" textos: um texto menor — um fragmento — relaciona
se com outro texto menor — outro fragmento —, e, assim, encaminham-se todos os
fragmentos para a construção da escritura do livro que não se quer escrita nem concluída:
"O que te escrevo não tem começo: é uma continuação."105 No processo intertextual e
intratextual de que Clarice se vale para a construção da escritura ocorre, por parte da
própria autora, uma busca desesperada em apagar a "origem" (os textos-crônicas
fragmentos) dessa mesma escritura: a autora tenta apagar-se a si própria, uma vez que ela
é a própria origem. Retoma seus textos-fragmentos armazenados no "fundo de gaveta" e
recortando-os e colando-os, monta a escritura de Água Viva. Nesse caso, mesmo quando
ela copia o fragmento tal qual aparece inicialmente, ele não tem mais a mesma signifi
cação, porque só o deslocamento da "origem" para o texto "sem origem" (Água Viva) já re-cria outro
texto e, conseqüentemente, nova leitura. Daí dizermos que Clarice é sua própria
origem: é a si que ela se reporta, pela prática intratextual, lendo e relendo-a a partir de uma
leitura que é sempre outra. Desse modo, a escritura do livro tem origem na leitura que sua
própria autora faz de si mesma; às vezes, mesmo que inconsciente.
Não muito diferente da relação entre autor e texto, se dá a relação entre texto e
leitor. Este que não trate de se envolver pelo texto que está sendo lido, que não se
apaixone e se deixe "misturar" a ele porque, caso contrário, não vai recriá-lo em sua
leitura. Sem o trabalho da reinvenção (releitura) não há fundação; logo, não há leitura
possível. Para que a leitura exista, é preciso que o leitor, assim como o autor, deixe suas
marcas no "texto" apropriado. Não é por acaso que o texto de Água Viva parece chamar
por um leitor especial: um leitor obcecado pelo desejo de reescrever por completo toda a
escritura fragmentária que o constitui. Mesmo o leitor sabendo que isso é da ordem do
impossível, é nessa tarefa que tem de se aventurar, na tentativa obstinada de reescrever a
escritura na leitura empreendida. A isso chamaríamos de ler o texto literário: uma leitura
fundadora do texto. Através da leitura, a relação do leitor com o autor do texto não é tão
apaziguadora como se pensa, uma vez que aquele luta pelo poder autoral de estabelecer
significados e, com isso, assinar o texto definitivamente. De acordo com Rosemary
Arroyo, "a relação entre leitura e escritura, ou entre leitor e texto, é, sempre, em algum
nível, permeada por um conflito decorrente de uma luta pelo poder de decidir sobre o
significado".106 Por outro lado, o significado seria o resultado de uma colaboração entre
escritura e leitura, entre autor e leitor.
A escritura do livro Água Viva parece estar, desde a "origem" e por sua
construção, prestes a se escrever: dizer-se. Daí postularmos que o leitor a escreve com sua
leitura, ou melhor, sua escrita-leitura. É um texto que vem se dizer na leitura do leitor.
Sua autora, nele mesmo anunciou: "Gênero não me pega mais."107 É um texto sem texto,
um texto "escrevível" para dizer com Barthes: "É o romanesco sem o romance, a poesia
sem o poema, o ensaio sem a dissertação, a escrita sem o estilo, a produção sem o
produto, a estruturação sem a estrutura."108O texto Água Viva é isso. É um texto sem
ordem de entrada, sem começo nem fim, um texto que continua ("o que te escrevo
continua e estou enfeitiçada",109 nos adverte a narradora-feiticeira ao concluí-lo); é um
texto que se dá sob uma movença espiralada de fragmentos e, conseqüentemente, de
sentidos, enfim, uma "galáxia de significantes". Para que o leitor possa ler tal texto é
preciso que ele rearticule os fragmentos que o compõem (fragmento aqui poderia ser lido
como citação, já que a escrita acaba citando a si mesma, disfarçadamente). No rearranjo, o
leitor faz sempre um recorte — porque é impossível ler toda a escritura numa leitura, uma
vez que tal leitura vai ser sempre, como qualquer leitura, da ordem do desejo do leitor —
e, ao recortar, desvia sem olhar, "esquece" de um sentido (de um fragmento) e funda a
106 ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.179.
107 LISPECTOR. Água viva, p.13.
108 BARTHES. S/Z, p.12.

leitura: "Ler é encontrar sentidos, e encontrar sentidos é nomeá-los."110 Tal leitura, longe
de querer fundar uma verdade — porque ela é em si a verdade — se pluraliza ainda mais,
já que o texto Água Viva é um texto plural em todos os sentidos. O esquecimento dos
sentidos, disse Barthes, não é motivo para desculpas, mas é um valor afirmativo, uma
forma de afirmar a irresponsabilidade do texto.111
Ler o texto Água Viva como um texto em fragmentos (citação intratextual
infinita) é querer — desejar mesmo — sua não construção, porque nele "tudo significa
sem cessar e várias vezes". Cada fragmento existe por si só, em sua uni(ci)dade, sem
preocupação excessiva de se encaminhar para um conjunto escritural maior, que acabaria
reduzindo os sentidos emanados por eles num sentido único, logo reducionista de
significação. A leitura aqui buscada, antes de ser única, é, como o texto, também plural,
que chama por uma re-leitura que deslize sobre o texto que só existe no deslizar escritural.
O sentido (ou sentidos) do livro Água Viva se dá por deslizamento, uma vez que os
fragmentos que o compõem também não param de deslizar, encaminhando-se — todos
tão uníssonos quanto díspares — para uma possível construção do desenho escritural do
livro. É exatamente aí neste movimento deslizante de sentidos, que a escritura se dá a ler
enquanto tal e o texto se constrói.
Alain Robbe-Grillet, no livro Por Que Amo Barthes, ao se referir a Barthes
como um "romancista moderno", diz que "o romance moderno, em lugar de apresentar 110 BARTHES.
S/Z, p.16. 111 Ibidem. (Grifo nosso)
um texto como o romance balzaquiano, bem juntado, todo redondo em torno do seu
núcleo sólido de sentido e de verdade, apresenta apenas fragmentos que, além do mais,
descrevem sempre a mesma coisa, sendo quase nada esta mesma coisa." E acrescenta que
"o movi-mento da literatura é o deslizamento de uma cena à mesma cena, que se repete
sob uma forma relativamente desencaminhada, um pouco contornada, um pouco
invertida...".112 Também assim se constrói o texto clariceano. Em sua prática escritural, a
autora faz, com muita freqüência, uma apropriação disfarçada, levando um texto, ou um
fragmento, de um lugar para outro lugar, para outro texto; às vezes, reescrevendo-o,
outras vezes, recopiando-o e, quando não, pondo-o na "fala" e/ou "escrita" de uma outra
personagem, como é o caso de Lóri do livro Uma Aprendizagem que, não
coincidentemente, escreve a Ulisses "entre aspas".
O texto de Água Viva vem se construir no momento mesmo de sua escrita —
de sua leitura — trazendo, em sua fragmentação escritural, traços que lembram os
pequenos textos reminiscentes (as crônicas, por exemplo) da autora. Nesse sentido, vozes
"passadas" e "presentes" se entrecruzam, superpostas, de modo a escamotearem a
"origem" do texto tutor (Água Viva). Nele, sua narradora-feiticeira, enfeitiçada pela trama
escritural, acaba adiando o seu contar, e a "linguagem fala, é tudo".113 Por isso, podemos
dizer que para o escritor não há outra origem senão a própria linguagem literária. Livro de
escritura "autodilacerada", chamado de ficção, traz um texto em fragmentos — prestes a 112 ROBBE-
GRILLET. Por que amo Barthes, p.34-35.
se construir — que, segundo Benedito Nunes, "está no limite entre literatura e experiência
vivida".114 Talvez aqui esteja a grandeza desse tecido escritural que se quer sempre
tecendo no presente da escritura-leitura: ao mesmo tempo em que se lê, nele, uma
escritura que flui incessantemente e a ele reflui, lê-se também uma "história" pessoal que
se conta nas entrelinhas, ou nos interstícios dos fragmentos, à revelia da própria autora.
Tais fragmentos, colados e justapostos, além de assinarem o livro enquanto
ficção e encenarem sua própria teoria, testemunham que só a escritura — nesse mundo
fragmentário e descontínuo, que constitui o seu próprio texto — pode dividir-se sem
deixar de ser total: um fragmento de escritura é sempre uma essência de escritura .115
Isto nos faz perceber que tais fragmentos são, ao mesmo tempo, estilhaços do "eu" que os
praticou, como também estilhaços de linguagem que compõem a escritura do livro Água
Viva. Livro esse que apresenta um texto composto por fragmentos, ou melhor, "citações"
sem origem, que "não conta uma história" e "contenta-se em evocar os reinos
incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna
existência", lembrando a imagem do céu/"texto estelado" de Barthes:
O texto, no seu conjunto, é comparável a um céu simultaneamente plano e profundo, liso, sem
margens nem pontos de referência; tal como o áugure que, com a ponta do seu cajado, corta um
tectângulo fictício do céu, para nele interrogar, segundo certos princípios, o vôo dos pássaros, assim
o comentador traça, ao longo do texto, zonas de leitura, para nelas observar a migração dos sentidos,
o aflorar dos códigos, a passagem das citações.116
114 NUNES. O drama da linguagem, p.157.
115 Ver BARTHES. O rumor da língua, p. 235. (Grifo nosso) Fragmentos
achados e perdidos
Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos. Clarice
Lispector
Após trabalhar durante três anos seguidos, "cortando" e "torturando" os
fragmentos dispersos que representavam a fragmentação de seu próprio pensamento,
Clarice Lispector, depois de retirar cem páginas aproximadamente e alterar o título pela
terceira vez, chega ao final dessa mais nova empreitada escritural (citacional), publicando
o livro com apenas 97 páginas e com o título de Água Viva. Com tal corte textual, a
autora procurou eliminar os "fragmentos" que revelavam traços mais pessoais, sobretudo
as crônicas publicadas no Jornal do Brasil.117 Mesmo assim, muitos outros fragmentos —
além do próprio "estilo" fragmentário que caracteriza a escritura — permaneceram na
construção do livro confirmando, mais do que as impressões pessoais e as reminiscências,
a prática de escrita como montagem empregada por Clarice. Mais adiante, procuraremos
elencar tais fragmentos como aparecem no livro e em seu lugar de origem, com a
finalidade de observar como se dá o trabalho intertextual/intratextual operado pela autora.
Antes, porém, nos parece interessante observar que — ainda com relação aos traços da
autora —, mesmo que ela tenha tentado "cortar", "rasurar" as crônicas que denunciavam
seus traços pessoais, outras marcas permaneceram na construção textual, como nos 117 GOTLIB. Clarice:
uma vida que se conta, p. 410.
denuncia a primeira página da versão original do texto.118 Nessa página, na qual já se lê
"Água Viva" escrito a mão, sem acento e entre parênteses, substituindo o título anterior
"Objeto Gritante", datilografado no centro da página, encontramos uma pista da autora
para a leitura do livro: "Comece a ler pelas páginas soltas e emende a leitura na página
48." O que vem confirmar, por sua vez, o tom fragmentário e descontínuo da escritura
percebido na leitura do leitor, que percorrerá o caminho paralelo ao da escritura, na
tentativa de construir uma leitura possível. Ao seguir o "conselho" dado por Clarice,
observamos que aí — principalmente pelo que lemos à página 48 — "traços pessoais" são
tecidos no ficcional: "Estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova
para mim que ainda não tem pensamentos correspondentes e muito menos ainda alguma
palavra que a signifique: é uma sensação atrás do pensamento." A expressão "atrás do
pensamento" que encontramos à página 48, em que a autora sugere que ali se emende a
leitura, remete o leitor clariceano ao primeiro título dado ao livro que era Atrás do
Pensamento: Monólogo com a Vida,119 que trazia as crônicas pessoais tecidas nas páginas
que foram retiradas antes do livro receber o título de Água Viva e ser publicado com o
número de páginas inferior ao retirado. Isso reforça, por sua vez, que, se a autora retirou
as crônicas mais pessoais pensando que assim sairia da cena escritural, outros traços,
como o que acabamos de mostrar, que nos remetem para a "origem" textual, subsistiram
118 Ibidem. p. 40.
119 À página 45 desse livro lê-se: "Meu número é 9. É 7. É 8. Tudo atrás do pensamento." Tais enunciados podem ser decifrados
assim: 9, o número de letras da palavra LISPECTOR; 7, o número de letras do nome CLARICE; e 8, o número de palavras do último
título dado ao livro: Água viva. Tudo – pessoal e ficcional – tecido "atrás do
tecidos no ficcional. Desse modo, o livro Água Viva, fragmentado desde sua origem, é
considerado por Olga Borelli como "o prenúncio do fim" ou "a ante-sala da desagregação
absoluta", que segundo Gotlib "viria dali a alguns anos, com seus [da autora] últimos
manuscritos".120
Na fragmentação escritural que constitui o texto Água Viva encontramos, além
de textos-crônicas, fragmentos de outros livros como os da segunda parte de A Legião
Estrangeira, mais tarde republicada com o título de Para Não Esquecer, e também do
livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres.121 Desses fragmentos, procuraremos
apontar aqui somente os que se encontram no livro de crônicas A Descoberta do Mundo e,
mais adiante, destacaremos, ainda, os fragmentos que se deslocaram do texto de Uma
Aprendizagem (1969) para o texto de Água Viva (1973). Com isso, mostraremos que em
Clarice Lispector a troca intertextual/intratextual é tão comum que, às vezes, nessa
apropriação desenfreada, uma palavra é substituída por outra à revelia de quem pratica tal
ato. Porém, antes de destacar tais fragmentos, que se articulam entre si na construção da
escritura fragmentária de Água Viva, reiteramos, como quer Walter Benjamin, que devem
ser lidos
Como os cacos de uma ânfora, para que, nos mínimos detalhes, se possam recompor, mas nem
por isso se assemelhar, assim também a tradução, ao invés de se fazer semelhante ao sentido do
original, deve, em seu movimento amoroso que chega ao nível de detalhe, fazer passar em sua
própria língua o modo de significar do original. Do mesmo modo que os cacos tornam-se
reconhecíveis como fragmentos de uma mesma ânfora, assim também original e traduções tornam-se
reconhecíveis como fragmentos de uma linguagem maior.122
pensamento: monólogo com a vida" na escritura fragmentária de Água viva. A esse respeito, ver ainda LUCCHESI. Crise e escritura,
p.26.
120 GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.412.
121 Ibidem. p.410.
Homi K.Bhabha, em nota ao texto, reforça que Benjamin "não está dizendo que os
fragmentos constituem uma totalidade, ele diz que fragmentos são fragmentos, e que
permanecem essencialmente fragmentário. Sucedem um ao outro, metonimicamente e
nunca constituem uma totalidade."123 Assim também os fragmentos na escritura de Água
Viva: eles não se justapõem buscando uma totalidade porque a escritura continua
inacabada; ao contrário, e melhor, se constituem e significam enquanto fragmento, o que
só reforça o brilho e a razão de ser da escritura que se quer fragmentária e relampejante
(borbulhante) o tempo inteiro.
Em Água Viva, o primeiro fragmento que aparece para justificar o processo de
montagem da escritura, reforçando sua fragmentação, constitui o último parágrafo da
página 21:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é
palavra. Quando essa não-palavra — a entrelinha — morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma
vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia:
a nãopalavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.124
Esse mesmo fragmento (citação) apareceu, primeiramente, na parte "Fundo de Gaveta" de
A Legião Estrangeira (1964) com o título de "A pesca milagrosa" e foi publicado também
122 BENJAMIN, citado por BHABHA. DissemiNação: tempo, narrativa e as margens da nação moderna, p.57.
123 Ver "nota" 68 do texto de BHABHA. DissemiNação, p.61.
124 LISPECTOR. Água viva, p.21.

no Jornal do Brasil, em 6 de novembro de 1971, intitulado "Escrever as entrelinhas".125


No livro de crônicas A Descoberta do Mundo, o fragmento traz a palavra "distraidamente"
em itálico, diferenciando-se do modo como aparece em Água Viva e, ao mesmo tempo,
retomando o fragmento tal qual apareceu em seu lugar de origem, entre aspas, na parte
"Fundo de gaveta". Além disso, a última frase do fragmento passa por uma reescrita que
altera radicalmente seu sentido e, conseqüentemente, da própria poética da escrita e da
leitura que subjaz tecida na produção escritural da autora. Ler-escrever distraidamente o
que se escreve nas entrelinhas da escritura clariceana é assumir o risco de que basta uma
palavra ser trocada por outra, ou vir entre aspas, ou ainda aparecer em itálico, enfim, basta
um novo arranjo na grafia para que o rumo da escrita e da leitura tome posições múltiplas,
testemunhando, com isso, que o texto é justamente essa prática sempre a mesma e sempre
diferente com o papel. O sentido, nesse caso, seria o que vem por acréscimo, o
suplemento desse trabalho inacabado, sempre a recomeçar. Melhor seria dizer que o
sentido se insinua nem antes nem depois do trabalho, mas no seu "entre": durante o
trabalho de escrever, grifar, alterar a letra no papel. Vejamos, como exemplo, a frase
citada nos seus diferentes textos: (1) "O que salva então é ler 'distraidamente', da crônica
"A pesca milagrosa", na parte "Fundo de gaveta" de A Legião Estrangeira, p.142; (2) "O
que salva então é escrever distraidamente, da crônica "Escrever as entrelinhas" em A
Descoberta do Mundo, p.605; (3) e "O que salva então é escrever distraidamente", em
Água Viva, p.21. A mudança ocorrida na grafia das frases acima registra, de certa forma, 125
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.605.
mais do que o desejo de quem as praticou/alterou, o próprio tom fragmentário e o uso do
recorte e da montagem que constituem a produção da autora nessa época. A mudança de
títulos que o fragmento elencado sofre no decorrer de seu percurso textual, até chegar ao
livro Água Viva, sendo apenas mais um fragmento que o compõe, demonstra que, antes de
intitular o texto (fragmento) que o nomeia, titula o autor: cada título é uma citação de seu
desejo de "ler" e de "escrever" distraidamente o sonho interdito nas entrelinhas da
escritura. Os traços, que vêm marcado na grafia dos fragmentos, dizem do trabalho do
autor ali praticado, antes mesmo de pensar em sentido, que seria sempre a posteriori. A
palavra "distraidamente" do fragmento "A pesca milagrosa" vem entre aspas, sugerindo,
com isso, que não foi o autor quem a disse. Desse modo, ele não estaria assumindo a
afirmativa "O que salva então é ler "distraidamente". Ou melhor: ele deixa uma pista ao
leitor (ler "distraidamente") e fica à espreita, como se não fosse ele também um leitor de
si mesmo. Em seguida, no fragmento "Escrever as entrelinhas", a mesma palavra vem em
itálico, fazendo jus ao verbo que vem ao seu lado: escrever. Se as aspas, no caso acima,
denunciavam a fuga discreta do autor, aqui, pelo contrário, através do uso do itálico o
autor confirma narcisicamente: sou eu mesmo que estou escrevendo — distraidamente. E,
finalmente, o fragmento é colado, agora sem título, no corpo da escritura, contribuindo
para que ali alguma coisa se escreva e se diga nas entrelinhas dos fragmentos que
compõem o texto chamado de ficção.
Outro fragmento que reforça o intratexto usado por Clarice na construção da
escritura encontra-se reescrito às páginas 49 a 53 do livro:
Arrepio-me toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. Os
bichos me fantasticam. Eles são o tempo que não se conta. Pareço ter certo horror daquela criatura
viva que não é humana e que tem meus próprios instintos embora livres e indomáveis. Animal nunca
substitui uma coisa por outra.
Os animais não riem. Embora às vezes o cão ri. Além da boca arfante o sorriso se transmite por
olhos tornados brilhantes e mais sensuais, enquanto o rabo abana em alegre perspectiva. Mas gato
não ri nunca. Um "ele" que conheço não quer mais saber de gatos. Fartou-se para sempre porque
tinha certa gata que ficava em danação periódica. Eram tão imperativos os seus instintos que na
época do cio, após longos e plangentes miados, jogava-se de cima do telhado e feria-se no chão.
Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece
que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho. E confundo-me toda. Fico ao que parece com
medo de encarar instintos abafados que diante do bicho sou obrigada a assumir.
Conheci um "ela" que humanizava bicho conversando com ele e emprestando-lhe as próprias
características. Não humanizo bicho porque é ofensa — há que respeitar-lhe a natureza — eu é que
me animalizo. Não é difícil e vem simplesmente. É só não lutar contra e só entregar-se.
Nada existe de mais difícil do que entregar-se ao instante. Esta dificuldade é dor humana. É
nossa. Eu me entrego em palavras e me entrego quando pinto.
Segurar passarinho na concha meio
Às vezes me arrepio-me toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão
deles. Pareço ter certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos
mesmos instintos, embora mais livres e mais indomáveis. Um animal jamais substitui uma coisa
por outra, jamais sublima como nós somos forçados a fazer. E move-se, essa coisa viva! Move-se
independente, por força mesmo dessa coisa sem nome que é a Vida.
Fiz notar a uma pessoa que os animais não riem, e ela me falou que Bergson tem uma anotação
a respeito no seu ensaio sobre o riso. Embora às vezes o cão, tenho certeza, ri, o sorriso se
transmite pelos olhos tornados mais brilhantes, pela boca entreaberta arfando, enquanto o rabo
abana. Mas o gato não ri nunca. No entanto sabe brincar: tenho longa prática de gatos. Quando eu
era pequena tinha uma gata de espécie vulgar, rajada de vários tons de cinza sabida com aquele senso
felino, desconfiado e agressivo que os gatos têm. Minha gata vivia parindo, e cada vez era a mesma
tragédia: eu queria ficar com todos os gatinhos e ter uma verdadeira gataria em casa. Ocultando de
mim, distribuíam os filhotes não sei para quem. Até que o problema se tornou mais agudo pois eu
reclamava demais a ausência dos gatinhos. E então, um dia, enquanto eu estava na escola, deram
minha gata. Meu choque foi tamanho que adoeci de cama com febre. Para me consolarem
presentearam-me com um gato de pano, o que era para mim irri-sório: como é que aquele objeto
morto e mole e "coisa" poderia jamais substituir a elasticidade de uma gata viva?
Por falar em gata viva, um amigo
fechada da mão é terrível, é como se tivesse os instantes trêmulos na mão. O passarinho
espavorido esbate desordena-damente milhares de asas e de repente se tem na mão semicerrada as
asas finas debatendo-se e de repente se torna intolerável e abre-se depressa a mãe para libertar a
presa leve. Ou se entrega-o depressa ao dono para que ele lhe dê a maior liberdade relativa da
gaiola. Pássaros — eu os quero nas árvores ou voando longe de minhas mãos. Talvez certo dia venha
a ficar íntima deles e a gozar-lhes a levíssima presença de ins-tante. "Gozar-lhes a levíssima
presença" dá-me a sensação de ter escrito frase completa por dizer exatamente o que é: a levitação
dos pássaros.
Ter coruja nunca me ocorreria, embora eu as tenha pintado nas grutas. Mas um "ela" achou por
terra na mata de Santa Teresa um filhote de coruja todo só e à míngua de mãe. Levou-o para casa.
Aconchegou-o. Alimentou-o e dava-lhe murmúrios e terminou descobrindo que ele gostava de carne
crua. Quando ficou forte era de se esperar que fugisse imediatamente mas demorou a ir em busca do
próprio destino que seria o de reunir-se aos de sua doida raça: é que se afeiçoara, essa diabólica
ave, à moça. Até que num arranco — como se estivesse em luta consigo próprio — libertou-se com o
vôo para a profundeza do mundo.
Já vi cavalos soltos no pasto onde de noite o cavalo branco — rei da natureza — lançava para o
alto ar seu longo relincho de glória. Já tive perfeitas relações com eles. Lembro-me de mim de pé
com a mesma altivez do cavalo e a passar a mão pelo seu pêlo nu. Pela sua crina agreste, Eu me
sentia assim: a mulher e o cavalo.
Sei história passada mas que se
meu não quer mais saber de gatos, encheu-se para sempre deles depois que teve gata em
periódica danação: eram tão fortes os seus instintos, tão imperativos, que na época de cio, depois
dos longos miados plangentes que ecoavam pelo quarteirão, ficava de repente meio histérica e se
jogava de cima do telhado, machucando-se toda no chão. "Cruz credo", benzeu-se uma empregada a
quem contei o fato.
Da lenta e empoeirada tartaruga carregando seu pétreo casco, não quero falar. Esse animal que
nos vem de era terciária, dinossáurico, não me interessa: é por demais estúpido, não entra em relação
com ninguém, nem consigo próprio. O ato de amor de duas tarta-rugas não deve ter calor nem vida.
Sem ser cientista, aventuro-me a prognosticar que a espécie vai daqui a poucos milênios acabar.
Sobre galinhas e suas relações com elas próprias, com as pessoas e sobretudo com sua gravidez
de ovo, escrevi a vida toda, e falar sobre macacos também já falei.
Mulher feita, tive um cachorro viralata que comprei de uma mulher do povo no meio do
burburinho de uma rua de Nápoles porque senti que ele nascera para ser meu, o que ele também
sentiu em alegria enorme, imediatamente me seguindo já sem saudade da ex-dona, sem sequer olhar
para trás, abanando o rabo e me lambendo. Mas é uma história comprida, a de minha vida com esse
cão que tinha cara de mulato-malandro brasileiro, apesar de ter nascido e vivido em Nápoles, e a
quem dei o nome rebuscado de Dilermando pelo que nele havia de pernosticamente simpático e de
bacharel do começo do século. Desse Dilermando eu teria muito a contar. Nossas relações eram tão
estreitas, sua sensibilidade estava de tal modo ligada renova já O ele contou-me que morou durante
algum tempo com parte de sua família que vivia em pequena aldeia num vale dos altos Pirineus
nevados. No inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas até a aldeia a farejar presa. Todos
os habitantes se trancavam atentos em casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e cães e cabras, o
calor humano e calor animal — todos alertamente a ouvir o arranhar de garras dos lobos nas portas
cerradas. A escutar. A escutar.
Estou melancólica. É de manhã. Mas conheço o segredo das manhãs puras. E descanso na
melancolia.
Sei de história de uma rosa. Parecete estranho falar em rosa quando estou me ocupando com
bichos? Mas ela agiu de um modo tal que lembra os mistérios animais. De dois em dois dias eu
comprava uma rosa e colocava-a na água dentro da jarra feita especialmente estreita para abrigar o
longo talo de uma só flor. De dois em dois dias a rosa murchava e eu a trocava por outra. Até que
houve determinada rosa. Cor-derosa sem corante ou enxerto porém do mais vivo rosa pela natureza
mesmo. Sua beleza alargava o coração em amplidões. Parecia tão orgulhosa da turgidez de sua
corola toda aberta e das próprias pétalas que era com uma altivez que se mantinha quase erecta.
Porque não ficava totalmente erecta: com graciosidade inclinava-se sobre o talo que era fino e
quebradiço. Uma relação íntima estabeleceu-se intensamente entre mim e a flor: eu a admirava e ela
parecia sentir-se admirada. E tão gloriosa ficou na sua assombração e com tanto amor era observada
que se passavam os dias e ela não murchava: continuava de corola toda aberta e túmida, fresca como
flor nascida. Durou em beleza e vida uma semana inteira. Só então começou a dar à minha que ele
pressentia e sentia minhas dificuldades. Quando eu estava escre-vendo à máquina, ele ficava meio
deitado ao meu lado, exatamente como a figura da esfinge, dormitando. Se eu parava de bater por ter
encontrado um obstáculo e ficava muito desanimada, ele imediata-mente abria os olhos, levantava
alto a cabeça, olhava-me, com uma das orelhas de pé, esperando. Quando eu resolvia o problema e
continuava a escrever, ele se acomodava de novo na sua sonolência povoada de que sonhos —
porque cachorro sonha, eu vi. Nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser tão totalmente
amada como fui amada sem restrições por esse cão.
Quando meus filhos nasceram e cresceram um pouco, demos-lhes um cão enorme e belo, que
pacientemente deixava o menino lhe montar o dorso e que, sem que ninguém o tivesse incumbido,
vigiava por demais a casa e a rua, acordando de noite todos os vizinhos com seus latidos de
advertência. Dei a meus filhos pintinhos amarelos que andavam rente atrás de nós, embaralhando-nos
os passos, como se fôssemos a galinha-mãe, aquela coisa mínima carecia de mãe como os humanos.
Dei também dois coelhos, dei patos, dei micos: é que as relações entre homem e bicho são
singulares, não substituíveis por nenhuma outra. Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não
conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de
um bicho está com medo de si próprio.
Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de
mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me
confundo toda, fico ao que parece com
mostras de algum cansaço. Depois morreu. Foi com relutância que a troquei por outra. E nunca a
esqueci. O estranho é que a empregada perguntoume um dia à queima-roupa: "e aquela rosa?" Nem
perguntei qual. Sabia. Esta rosa que viveu por amor longamente dado era lembrada porque a mulher
vira o modo como eu olhava a flor e transmitia-lhe em ondas a minha energia. Intuíra cegamente que
algo se passara entre mim e a rosa. Esta — deume vontade de chamá-la de "jóia da vida", pois
chamo muito as coisas — tinha tanto instinto de natureza que eu e ela tínhamos podido nos viver uma
a outra profundamente como só acontece entre bicho e homem.
Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia. Eles às vezes clamam do longe muitas
gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado.126
medo de encarar seus próprios instintos abafados que, diante do bicho, sou obrigada a
assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobre de nós. Conheci uma mulher que humanizava
os bichos, conversando com eles, empres-tando-lhes suas próprias características. Mas eu não
humanizo os bichos, acho que é uma ofensa — há de respeitar-lhes a natura — eu é que me
animalizo. Não é difícil, vem simplesmente, é só não lutar contra, é só entregar-se.
Mas, indo bem mais fundo, chego muito pensativa à conclusão de que não existe nada mais
difícil que entregar-se totalmente. Essa dificuldade é uma das dores humanas.
Segurar um passarinho na concha meio fechada da mão é terrível. Ele espavorido esbate
desordenadamente e velozmente as asas, de repente se tem na mão semicerrada milhares de asas
finas se debatendo esvoaçantes, e de repente se torna intolerável e abre-se depressa a mão
libertando-o, ou entrega-se-o depressa ao dono para que este lhe dê a maior liberdade relativa de
uma gaiola. Enfim, pássaros eu os quero nas árvores ou voando mas longe de minhas mãos. Talvez
algum dia, em contato mais continuado no Largo do Boticário com os pássaros de Augusto
Rodrigues, eu venha a ficar íntima deles, e a gozar-lhes a levíssima presença. ("Gozar-lhes a
levíssima presença" me dá a sensação de ter escrito frase completa por dizer exatamente o que é,
é engraçada a sensação, não sei se estou ou não com razão mas isso já é outro problema.)
Ter uma coruja nunca me ocorreria. Mas uma amiguinha minha achou por terra na mata de
Santa Teresa um filhote de coruja, todo sozinho, à mingua da mãe. Levou-o para casa,
aconchegou-o, alimentou-o, dava-lhe murmúrios, terminou descobrindo que ele gostava de carne
crua. Quando ficou forte era de se esperar que fugisse imediatamente mas demorou a ir em busca
do próprio destino, o de reunir-se aos de sua raça: é que se afeiçoara essa estranha ave à minha
amiguinha. Relutou muito, via-se: afastava-se um pouco e logo voltava. Até que num arranco,
como se estivesse em luta consigo mesma libertou-se voando para as profundezas do mundo.
126 LISPECTOR. Água viva, p.49-53.
...
A mudez do coelho, seu modo de comer depressinha-depressinha as cenouras, sua desinibida
relação sexual tão freqüente quanto veloz — não sei porque acho as tais relações mútuas dos coelhos
de uma grande futilidade, nem parecem ter raízes profundas. O coelho faz-me ficar de um meditativo
vazio: é que simplesmente nada tenho a ver com ele, somos estranhos, minha raça não vai com a dele.
O curioso é que pode ser aprisionado e parece até conformado mas não é domesticável: apenas
aparente é a sua resignação. Em verdade, fútil e assustado como é, ele é um livre, o que não combina
com sua superficialidade.
Quanto a cavalos, já escrevi muito sobre cavalos soltos no morro do pasto (A cidade sitiada),
onde de noite o cavalo branco, rei da natureza, lançava para o ar o seu longo relincho de glória. E
já tive perfeitas relações com eles. Lembro-me de mim adolescente, de pé, com a mesma altivez do
cavalo, passando a mão pelo seu pêlo aveludado, pela sua crina agreste. Eu me sentia assim: "a
moça e o cavalo".
Os peixes no aquário não param nem um segundo de nadar. Isso me inquieta. Além do mais acho
esse peixe de aquário um ser vazio e raso. Mas deve ser engano meu, pois não só eles devoram
comida como procriam: e é preciso ser de matéria viva para isso. O que me intriga é que, pelo menos
nos peixes de aquário, o instinto falha: eles comem até estourar, não sabem parar, eis um peixe morto.
São seres aterrorizados quando pequenos, perigosos quando grandes. Além de pertencerem a um
reino que não me é familiar, o que de novo me inquieta.
Sei de uma história muito bonita. Um espanhol amigo meu, Jaime Vilaseca, contou-me que
morou uns tempos com parte de sua família que vivia em pequena aldeia num vale dos altos e
nevados Pireneus. No inverno os lobos esfaimados terminavam descendo das montanhas até a
aldeia, farejando presa, e todos os habitantes se trancavam atentos em casa, abrigando na sala
ovelhas, cavalos, cães, cabras, calor humano e calor animal, todos alerta ouvindo o arranhar das
garras dos lobos nas portas cerradas, escutando, escutando...
Mas sei da história de uma rosa. Parece estranho falar nela quando estou me ocupando de
bichos. Mas é que agiu de um modo tal que lembra os mistérios instintivos e intuitivos do animal.
Um médico amigo meu, Dr. Azulay, psicana-lista, autor de Um Deus esquecido, de dois em dois dias
trazia para o consultório uma rosa que ele punha na água dentro de uma dessas jarras muito
estreitas, feitas especialmente para abrigar o longo talo de uma só flor. De dois em dois dias a
rosa murchava e meu amigo a trocava por outra. Mas houve uma determinada Rosa. Era cor-de-
rosa, não por artifícios de corantes ou enxertos, porém do mais requintado rosa pela natureza
mesmo. Sua beleza alargava o coração em amplidões. E parecia tão orgulhosa da turgidez de sua
corola toda aberta, das próprias pétalas grossas e macias, que eracom uma altivez linda que se
mantinha quase erecta. Pois não ficava totalmente erecta: com infinita graciosi-dade inclinava-se
bem levemente sobre o talo que era fino. E uma relação íntima estabeleceu-se entre o homem e a
flor: ele a admirava e ela parecia sentir-se admi-rada. E tão gloriosa ficou, e com tanto amor era
observada, que se passavam os dias e ela não murchava: continuava de corola toda aberta e
túmida e fresca como flor nova. Durou em beleza e vida uma semana inteira. Só depois começou a
dar mostras de algum cançaso. Depois mor-reu. Foi com relutância que meu amigo a trocou por
outra. E nunca a esqueceu. O curioso é que uma paciente sua que frequentava o consultório
perguntou-lhe sem mais nem menos: "E aquela rosa?" Ele nem perguntou qual, sabia da que a
paciente falava. Essa rosa, que viveu mais longamente por amor, era lembrada porque a paciente,
tendo visto o modo como o médico olhava a flor, transmitindo-lhe em ondas a própria energia
vital, intuíra cegamente que algo se passava entre ele e a rosa. Essa — e deu-me vontade de
chamá-la de "jóia da vida" — tinha tanto instinto de natureza que o médico e ela haviam podido
se viverem um ao outro profundamente, como só acontece entre bichos e homens.
E eis que de repente fiquei agora mesmo com saudade de Dilermando, meu cão, uma saudade
aguda e dolorida e desconsolável, a mesma que tenho certeza ele sentiu quando foi obrigado a viver
com outra família porque eu ia morar na Suiça e haviam me informado erradamente que lá os hotéis,
onde teríamos que permanecer algum tempo, não permitiam a entrada de animais. Lembro-me, e a
lembrança ainda me faz sorrir, de que uma vez, morando ainda na Itália, vim ao Brasil, deixando
Dilermando com uma amiga. Quando voltei, fui à minha amiga para buscá-lo para casa. Mas acontece
que nesse ínterim se tornara inverno e eu estava com um casaco de peles. O cão ficou parado me
olhando, petrificado. Depois aventurou cautelosamente aproximar-se e sentiu o odor do casaco,
talvez de algum animal ameaçador. E ao mesmo tempo, para a sua confusão, farejava meu cheiro.
Tornou-se inquietíssimo, chegava a rodar em torno de si mesmo. E eu imóvel, esperando que ele
viesse a mim, e me sentisse: se eu me precipitasse, ele se assustaria. Quando comecei a sentir calor
na sala aquecida, tirei o casaco e da distância mesmo joguei-o longe num divã. Dilermando, ao me
farejar puramente, atirou-se de repente num grande salto sobre mim, um pulo fantástico do chão ao
meu peito, inteiramente alvoroçado, fora de si, me fazendo tanta festa doida que me deixou bem
arranhada nos braços e no rosto, mas eu ria de prazer, e sorria às fingidas e rápidas mordidas leves
que ele aloucadamente me dava, não doíam, eram mordidas de amor.
Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do
longe de muitas gerações e eu não posso responder senão ficando desassossegada. É o
chamado.127
Nesse caso, Clarice recorta algumas partes das crônicas, reescreve e cola essas partes no
corpo da escritura do livro. Tal prática de recortar-colar, reescrever, além de reforçar a prática
fragmentária de compor o livro, mostra também que "temas" e "assuntos" os mais
diferentes são simplesmente recortados e colados na composição, tratando cada um, quase
sempre, de um tema diferente no enxerto textual, como se fosse, a todo tempo, começar
uma história (um outro texto) ali mesma interrompida. Tal história, de fato, não chega a
existir mas o fragmento, diferentemente, permanece enquanto fragmento colado, mesmo
que compondo o texto "imprevisto" do livro. Antes de colar as crônicas no livro, Clarice
recorta, retirando o que é de mais pessoal, reeescreve outras partes, mas mantém o texto
original que são duas crônicas sobre "bichos" publicadas nos dias 13 e 20 de março de
1971. Da crônica do dia 20, a autora retoma uma cena recorrente em vários de seus livros
— a cena dos cavalos —, por nós já estudada neste trabalho.128
Já os fragmentos que compõem as páginas 55 e 56 do livro Água Viva foram,
na verdade, reescritos pela autora de forma que ficassem quase imperceptíveis na leitura:
Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever. Esse é um modo de não
haver defasagem entre o instante e eu: ajo no âmago do próprio instante. Mas de qualquer modo há
alguma defasagem. Começa assim: como o amor impede a morte, e não sei o que estou querendo
dizer com isto. Confio na minha incompreensão que tem me dado vida liberta do entendimento, perdi
amigos, não entendo a morte. O horrível dever é o de ir até o fim. E sem contar com
Meu Deus, como o amor impede a morte! Não sei o que estou querendo dizer com isso: confio
na minha incompreensão, que tem me dado vida instintiva e intuitiva, enquanto que a chamada
compreensão é tão limitada. Perdi amigos. Não entendo a morte. Mas não tenho medo de morrer.
Vai ser um descanso: um berço enfim. Não a apressarei, viverei até a última gota de fel. Não gosto
quando dizem que tenho afinidade com Virgínia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o meu
primeiro ninguém. Viver-se a si mesma. E para sofrer menos embotar-me um pouco. Porque não
posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer quando sinto totalmente o que outras pessoas são e
sentem? Vivo-as mas não tenho mais força. Não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Seria
trair o é-se. Sinto que sei de umas verdades. Que já pressinto. Mas verdades não têm palavras,
Verdades ou verdade? Não vou falar no Deus, Ele é segredo meu. Está fazendo um dia de sol. A praia
estava cheia de vento bom e de uma liberdade. E eu estava só. Sem precisar de ninguém. É difícil
porque preciso repartir contigo o que sinto. O mar calmo. Mas à espreita e em suspeita. Como se tal
calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me
fascina. Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu.
É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio
do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais
momentos são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado
agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que alcanço um plano mais alto de
humanidade. Ou da desumanidade — o it.
127 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.527-524. A crônica "Bichos-I" foi publicada no Jornal do Brasil, em 13 de março de

1971. A crônica "Bichos (conclusão)" foi publicada no dia 20 de março de 1971. 128 Cf. "Cenas de uma marcha escritural", neste
trabalho, p.91.
(...)
Agora vou acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui mesmo para sempre.
Eu, que nunca sou adequada.
Voltei. Estou pensando em tartarugas. Uma vez eu disse por pura intuição que a tartaruga era um
animal dinossáurico. Depois é que vim ler que é mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou livro): é que
não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com
ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a verdade. E, para sofrer menos, embotar-me um
pouco. Pois não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer, se sinto totalmente o que as
outras pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais força. Vou viver um pouco na
minha. Vou me impermeabilizar um pouco mais. — Há coisas que jamais direi: nem em livros e
muito menos em jornal. E não direi a ninguém no mundo. Um homem me disse que no Talmude falam
de coisas que a gente não pode contar a muitos, há outras a poucos, e outras a ninguém. Acrescento:
não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Sinto que sei de umas verdades. Mas não sei se
as entenderia mentalmente. E preciso amadurecer um pouco mais para me achegar a essas verdades.
Que já pressinto. Mas as verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não, nem pensem que
vou falar em Deus: é um segredo meu.
Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de uma
liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso aprender a não
precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar estava
calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa calma não pudesse durar. Algo está
sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.
Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como
explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra
pintar tartarugas. Elas me interessam muito. Todos os seres vivos, que não o homem, são um
escândalo de maravilhamento: fomos modelados e sobrou muita matéria-prima — it — e formaram-
se então os bichos. Para que uma tartaruga? Talvez o título do que estou te escrevendo devesse ser
um pouco assim e em forma interrogativa: "E as tartarugas?" Você que me lê diria: é verdade que há
muito tempo não penso em tartarugas.129
pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão
silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É dificílimo contar:
nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses
momentos são o meu segredo. Houve o que se chama da comunhão perfeita. Eu chamo isso de:
estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano
mais alto de humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais tive. Só que depois ... Depois
eu percebi que para essas pessoas esses momentos de nada valiam, elas estavam ocupadas com
outras. Eu estivera só, toda só. É uma dor sem palavra, de tão funda. Agora vou interromper um
pouco para atender o homem que veio consertar o tocadiscos. Não sei com que disposição voltarei à
máquina. Música não ouço há bastante tempo pois estou procurando me dessensibilizar. Mas um dia
desses fui pegada desprevenida, ao ver o filme Cada um vive como quer. Tinha música e eu chorei.
Não é vergonha chorar. É vergonha eu contar em público que chorei. Pagam-me para eu escrever. Eu
escrevo, então.
Pronto, já voltei. O dia continua muito bonito. Mas a vida está muito cara (isso por causa do
preço que o homem pediu pelo conserto). Preciso trabalhar muito para ter as coisas que quero ou de
que preciso. Acho que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou escrever para este jornal. Eu
queria um emprego de poucas horas por dia, digamos duas ou três horas, e que me fizesse (o
emprego) lidar com pessoas. Tenho jeito para isso, embora pareça um pouco ausente às vezes. Mas,
quando estou com uma pessoa verdadeira, fico verdadeira também. Se vocês pensam que vou
recopiar o que estou escrevendo ou corrigir este texto, estão enganados. Vai é assim mesmo. Só que
lerei para corrigir erros datilográficos.
129 LISPECTOR. Água viva, p.54-55.
A propósito de uma pessoa de quem estou me lembrando agora e que usa uma pontuação
completamente diferente da minha, digo que a pontuação é a respiração da frase. Acho que já disse
uma vez. Escrevo à medida de meu fôlego. Estarei sendo hermética? Porque parece que em jornal se
tem de ser terrivelmente explícito. Sou explícita? Pouco se me dá.
Agora vou interromper para acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por
aqui mesmo.
Voltei. Estou agora pensando em tartarugas. Quando escrevi sobre bichos, disse, de pura
intuição, que a tartaruga era um animal dinossáurico. Depois é que vim a ler que é mesmo. Tenho
cada uma. Um dia vou escrever sobre tartarugas. Elas me interessam muito. Aliás, todos os seres
vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento. Parece que, se fomos modelados,
sobrou muita matéria energética e formaram-se os bichos. Para que serve, meu Deus, uma
tartaruga? O
título do que estou escrevendo agora não devia ser Ao correr da máquina. Devia ser mais ou
menos assim, em forma interrogativa: E as tartarugas? E quem me lê se diria: é verdade, há muito
tempo que não penso em tartarugas. Agora vou acabar mesmo. Adeus. Até sábado que vem.130
Clarice recorta a crônica e cola somente algumas partes na escritura fragmentária do livro.
Tais fragmentos, que na origem compunham a crônica "Ao correr da máquina", publicada
no dia 17 de abril de 1971, não continham o tom fragmentário que recebem no livro. Um
dos motivos da fragmentação advém do fato de que a autora, ao recortar e reescrever
antes de colar na escritura, acrescenta novos fragmentos no lugar daqueles retirados, por
serem de tom mais pessoal. Na crônica, Clarice, ao comentar o seu trabalho de escrever
para o Jornal, disse: "Se vocês pensam que vou recopiar o que estou escrevendo ou
corrigir este texto, estão enganados." Se assim ela agiu para publicar a crônica no Jornal,
o mesmo não se deu ao transpor a crônica para dentro do texto do livro. Aqui, ela não só
recopiou a crônica, como ainda reescreveu-a, de forma que a mesma resultasse num novo
texto: um fragmento de escritura.
Outra crônica que aparece reescrita, compondo a fragmentação escritural do
livro, é o texto-citação "De natura florum", que traz como subtítulo "Dicionário":
Agora vou falar da dolência das flores para sentir mais a ordem do que existe. Antes te dou com
prazer o néctar, suco doce que muitas flores contêm e que os insetos buscam com avidez. Pistilo é
órgão feminino da flor que geralmente ocupa o centro e contém o rudimento da semente. Pólem é pó
fecundante produzido nos estames e
“E plantou Javé Deus um jardim no Éden, que fica no Oriente, e colocou nele o homem que
formara.” (Gen, II, 8)
DICIONÁRIO
Néctar — Suco doce que muitas flores contêm e que os insetos buscam com avidez.
Pistilo — Órgão feminino da flor, que geralmente ocupa seu centro e
130 LISPECTOR. Adescoberta do mundo, p. 529-532. A crônica "Ao correr da máquina" foi publicada no Jornal do Brasil, em 17 de
abril de 1971.
contido nas anteras. Estame é o órgão masculino da flor. É composto por estilete e pela antera
na parte inferior contornando o pistilo. Fecundação é a união de dois elementos de geração —
masculino e feminino — da qual resulta o fruto fértil. "E plantou Javé Deus um jardim no Éden que
fica no Oriente e colocou nele o homem que formara" (Gen. 11, 8).
Quero pintar uma rosa.
Rosa é a flor feminina que se dá toda e tanto que para ela só resta a alegria de se ter dado. Seu
perfume é mistério doido. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o
interior do corpo inteiro perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. As pétalas têm
gosto bom na boca — é só experimentar. Mas rosa não é it. É ela. As encarnadas são de grande
sensualidade. As brancas são a paz do Deus. É muito raro encontrar na casa de flores rosas brancas.
As amarelas são de um alarme alegre. As cor-de-rosa são em geral mais carnudas e têm a cor por
excelência. As alaranjadas são produto de enxerto e são sexualmente atraentes.
Preste atenção e é um favor: estou convidando você para mudar-se para reino novo.
Já o cravo tem uma agressividade que vem de certa irritação. São ásperas e arrebitadas as pontas de
suas pétalas. O perfume do cravo é de algum modo mortal. Os cravos vermelhos berram em violenta
beleza. Os brancos lembram o pequeno caixão de criança defunta: o cheiro então se torna pungente e
a gente desvia a cabeça para o lado com horror. Como transplantar o cravo para a tela?
O girassol é o grande filho do sol. Tanto que sabe virar sua enorme corola para o lado de quem o
criou. Não importa se é pai ou mãe. Não sei. Será o
contém o rudimento da semente.
Pólen — Pó fecundante, produzido nos estames e contido nas anteras.
Estame — Órgão masculino da flor, composto pelo estilete e pela antera na sua parte inferior em
torno do pistilo que, como acima foi dito, é o órgão feminino da flor.
Fecundação — União de dois elementos de geração (masculino e feminino), da qual resulta o fruto
fértil.
Rosa — É a flor feminina, dá-se toda e tanto que para ela própria só resta a alegria de se ter dado.
Seu perfume é de um mistério feminino, se profundamente aspirada, toca no fundo do coração e deixa
o corpo todo perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. Suas pétalas têm um gosto
bom na boca, é só experimentar. As vermelhas ou as príncipe negro são de grande sensualidade. As
amarelas dão um alarme alegre. As brancas são a paz. As cor-de-rosa são em geral mais carnudas e
têm a cor por excelência. As alaranjadas são sexualmente atraentes.
Cravo — Tem uma agressividade que vem de certa irritação. São ásperas e arrebitadas as pontas de
suas pétalas. O perfume do cravo é de algum modo mortal. Os cravos vermelhos berram em violenta
beleza. Os brancos lembram o pequeno caixão de criança defunta; seu cheiro então se torna pungente.
Girassol — É o grande filho do Sol. tanto que já nasce com o instinto de virar sua enorme corola
para o lado de sua mãe. Não importa se o Sol é pai ou mãe, não sei. Será o girassol flor feminina ou
masculina? Acho masculina. Mas uma coisa é certa; o girassol é russo, provavelmente ucraniano.
Violeta — É introvertida, sua introspecção é profunda. Ela não se esconde, como dizem, por
modéstia. Ela se esconde para poder entender o seu
girassol flor feminina ou masculina? Acho que masculina.
A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não
é. Escondese para poder captar o próprio segredo. Seu quase-não-perfume é glória abafada mas
exige da gente que o busque. Não grita nunca o seu perfume. Violeta diz levezas que não se podem
dizer.
A sempre-viva é sempre morta. Sua secura tende à eternidade. O nome em grego quer dizer: sol
de ouro. A margarida é florzinha alegre. É simples e à tona da pele. Só tem uma camada de pétalas. O
centro é uma brincadeira infantil.
A formosa orquídea é exquise e antipática. Não é espontânea. Requer redoma. Mas é mulher
esplendorosa e isto não se pode negar. Também não se pode negar que é nobre porque é epífita.
Epífitas nascem sobre outras plantas sem contudo tirar delas a nutrição. Estava mentindo quando
disse que era antipática. Adoro orquídeas. Já nascem artificiais, já nascem arte.
Tulipa só é tulipa na Holanda. Uma única tulipa simplesmente não é. Precisa de campo aberto
para ser.
Flor dos trigais só dá no meio do trigo. Na sua humildade tem a ousadia de aparecer em
diversas formas e cores. A flor do trigal é bíblica. Nos presépios da Espanha não se separa dos
ramos de trigo. É um pequeno coração batendo.
Mas a angélica é perigosa. Tem perfume de capela. Traz êxtase. Lembra a hóstia. Muitos têm
vontade de comê-la e encher a boca com o intenso cheiro sagrado.
O jasmim é dos namorados. Dá vontade de pôr reticências agora. Eles andam de mãos dadas,
balançando os braços e se dão beijos suaves ao quase som odorante do jasmim.
próprio segredo. O seu perfume é uma glória mas que exige da pessoa uma busca: seu
perfume diz o que não se pode dizer. Um ramo de violeta equivale a "ama os outros como a ti
mesmo".
Sempre-viva — É uma sempre morta. Sua secura tende à eternidade. Seu nome em grego quer
dizer sol de ouro.
Margarida — É uma flor alegrezinha. É simples: só tem uma camada de pétalas. Seu centro
amarelo é uma brincadeira infantil.
Palma — Não tem perfume. Ela se dá altivamente — pois é altiva — em forma e cor. É
francamente masculina.
Orquídea — É formosa, é exquise e antipática. Não é espontânea. Ela quer redoma. Mas é
uma mulher esplendorosa, isto não se pode negar. Também não se pode negar que é nobre; é
epífita, isto é, nasce sobre outra planta sem contudo tirar dela a sua nutrição. Minto: adoro
orquídeas.
Tulipa — Só é tulipa quando em largo campo coberto delas, como na Holanda. Uma única tulipa
simplesmente não é.
Florzinha dos trigais — Só dá no meio do trigo. Tem na sua humildade a ousadia de se mostrar
em diversas formas e cores. A flor do trigal é bíblica. Na Espanha é usada para enfeitar os presépios,
junto a ramos de trigo, do qual jamais se separa.
Angélica — Tem um perfumne de capela. Traz êxtase místico. Lembra a hóstia. Muitos têm
vontade de comê-la e encher a boca com o seu perfume intenso e sagrado.
Jasmim — É dos namorados: eles andam de mãos dadas balançando os braços, e se dão
beijinhos suaves, eu diria ao som odorante do jasmim.
Estrelícia — É masculina por excelência. Tem uma agressividade de
Estrelícia é masculina por excelência. Tem uma agressividade de amor e de sadio orgulho.
Parece ter crista de galo e o seu canto. Só que não espera pela aurora. A violência de tua beleza.
Dama-da-noite tem perfume de lua cheia. É fantasmagórica e um pouco assustadora e é para
quem ama o perigo. Só sai de noite com o seu cheiro tonteador. Dama-da-noite é silene. E também da
esquina deserta e em trevas e dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas. É
perigosíssima: é um assobio no escuro, o que ninguem aguenta. Mas eu aguento porque amo o perigo.
Quanto à suculenta flor de cáctus, é grande e cheirosa e de cor brilhante. É a vingança sumarenta que
faz a planta desértica. É o esplendor nascendo da esterilidade despótica.
Estou com preguiça de falar da edelvais. É que se encontra à altura de três mil e quatrocentos
metros de altitude. É branca e lanosa. Raramente alcançável: é a aspiração.
Gerânio é flor de canteiro de janela. Encontra-se em São Paulo, no bairro de Grajaú e na Suiça.
Vitória-régia está no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Enorme e até quase dois metros de
diâmetro. Aquáticas, é de se morrer delas. Elas são o amazônico: o dinossauro das flores. Espalham
grande tranqüilidade. A um tempo majestosas e simples. E apesar de viverem no nível das águas elas
dão
sombra. Isto que estou te escrevendo é em latim: de natura florum. Depois te mostrarei o meu estudo
já transformado em desenho linear.131
amor e de sadio orgulho. Parece ter crista de galo, tem o seu canto, só que não espera pela
aurora — quando se a vê realmente, ela dá o seu grito visual de saudação ao mundo, que este é
sempre nascido.
Azaléia — Há quem a chame de azálea, mas prefiro mesmo azaléia. É espiritual e leve; é uma
flor feliz e que dá felicidade. Ela é humildemente bela. As pessoas que se chamam Azaléia — como
minha amiga Azaléia — adquirem as qualidades da flor: é uma alegria pura lidar com elas. Recebi
de Azaléia muitas azaléias brancas que perfumaram a sala toda.
Dama-da-noite — Tem perfume de lua cheia. É fantasmagórica e um pouco assustadora: só
sai à noite, com seu cheiro embriagador, misterioso, silente. É também das esquinas desertas e em
trevas, dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas. É perigosa.
Flor de cactos — A flor de cactos é suculenta, às vezes grande, cheirosa e de cor brilhante:
vermelha, amarela e branca. É a vingança sumarenta que ela faz para a planta desértica: é o
esplendor nascendo da esterilidade despótica.
Edelvais — Encontra-se apenas nas grandes alturas, embora nunca acima de 3.400 metros de
altitude. Essa Rainha dos Alpes, como também é chamada, é o símbolo da conquista do homem. É
branca e lanosa. Raramente atingível: é
uma aspiração humana.
Gerânio — Flor de canteiro de janela na Suiça, em São Paulo, no Grajaú. Tem o sarcófilo, isto
é, folha suculenta, muito cheiroso.
Vitória-régia — No Jardim Botânico do Rio há enormes, até quase dois metros de diâmetro.
Aquáticas, lindas de morrer. Elas são o Brasil grande. Evoluentes: no primeiro dia brancas, depois
rosadas ou mesmo avermelhadas. Espalham grande tranqüilidade. A um tempo majestosas e simples.
Apesar de viverem no nível das águas, elas dão sombra.132
131 LISPECTOR. Água viva, p. 57-61.
Clarice se apropria da crônica-citação e, mesmo copiando palavra por palavra, altera a
pontuação e apaga o itálico que existia na crônica, reforçando sua suposta autoria duas
vezes, não fossem as aspas que permanecem e que, por isso mesmo, designam uma
renúncia a um direito de autor (conferir, no fragmento, o texto do Gênesis). Nesse caso, o
texto da crônica "De natura florum" aparece com o título de "Dicionário", sendo, por isso,
uma "citação por excelência", como disse Compagnon.133 No livro, diferentemente, a
crônica "De natura florum" não passa de mais uma "citação"/fragmento que compõe a
escritura, mesmo vindo entre aspas e denominando seu lugar de origem. Os demais
fragmentos não vêm entre aspas mas trazem encimando no texto o dia, o mês e o ano da
publicação. Quer seja com aspas ou sem, com itálico ou não, sendo epígrafe ou citação, o
importante é o trabalho de recortar e colar, de reescrever, ou melhor, o trabalho de
reaproveitar fragmentos os mais diversos possíveis na montagem da escritura
fragmentária que constitui o livro. O processo mesmo de Clarice recopiar o fragmento
"bíblico" da crônica para dentro do livro, apropriando-se como lhe convém, apaga 132 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p. 525-528. A crônica "De natura florum" foi publicada no Jornal do Brasil, em 3 de abril de 1971.
133 COMPAGNON. O trabalho da citação, p. 27.
radicalmente a origem bíblica do texto. Tal processo pode ser tomado como o exemplo da
própria prática intratextual buscada por Clarice para a "composição" da escritura. Copiar,
aleatoriamente, algumas palavras e seus significados da crônica "Dicionário" também
reforça a prática fragmentária de montar a escritura do livro. Reescrevendo o que lhe
convém, os fragmentos vão sendo justapostos e colados no corpo da escritura que
"borbulha na fonte" mesma do ato de criar.
Os fragmentos que aparecem recortados, reescritos e colados às páginas 61, 62
e 63 do livro Água Viva, remetem o leitor clariceano, imediatamente, para a crônica ali
disseminada "Eu tomo conta do mundo":
Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta
do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar e vejo as espessas
espumas mais brancas e que durante a noite as águas avançaram inquietas. Vejo isto pela marca que
as ondas deixam na areia. Olho as amendoeiras da rua onde moro. Antes de dormir tomo conta do
mundo e vejo se o céu da noite está estrelado e azul-marinho porque em certas noites em vez de
negro o céu parece azul-marinho intenso, cor que já pintei em vitral. Gosto de intensidades. Tomo
conta do menino que tem nove anos de idade e que está vestido de trapos e magérrimo. Terá
tuberculose, se é que já não a tem. No Jardim Botânico, então, fico exaurida. Tenho que tomar conta
com o olhar de milhares de plantas e árvores e sobretudo da vitória-régia. Ela está lá. E eu a olho.
Repare que não menciono minhas
Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o
pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as espumas parecem mais brancas e que às vezes
durante a noite as águas avançaram inquietas, vejo isso pela marca que as ondas deixaram na
areia. Olho as amendoeiras de minha rua. Presto atenção se o céu da noite, antes de eu dormir e
tomar conta do mundo em forma de sonho, se o céu de noite está estrelado e azul-marinho, porque
em certas noites em vez de negro parece azul-marinho. O cosmos me dá muito trabalho, sobretudo
porque vejo que Deus é o cosmos. Disso eu tomo conta com alguma relutância.
Observo o menino de uns dez anos, vestido de trapos e magérrimo. Terá futura tuberculose, se
é que já não a tem.
No Jardim Botânico, então, fico
exaurida, tenho que tomar conta com o
impressões emotivas: lucidamente falo de algumas das milhares de coisas e pessoas das quais
tomo conta. Também não se trata de emprego pois dinheiro não ganho por isto. Fico apenas sabendo
como é o mundo.
Se tomar conta do mundo dá muito trabalho? Sim. Por exemplo: obriga-me a me lembrar do
rosto inexpressivo e por isso assustador da mulher que vi na rua. Com os olhos tomo conta da
miséria dos que vivem encosta acima.
Você há de me perguntar por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida.
Tomei em criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando um
mínimo de folha. O que não impede que cada uma comunique alguma coisa à que vier em direção
oposta. Formiga e abelha já não são it. São elas.
Li o livro sobre as abelhas e desde então tomo conta sobretudo da rainhamãe. As abelhas voam
e lidam com flores. É banal? Isto eu mesma constatei. Faz parte do trabalho registrar o óbvio. Na
pequena formiga cabe todo o mundo que me escapa se eu não tomar cuidado. Por exemplo: cabe
senso instintivo de organização, linguagem para além do supersônico e sentimentos de sexo. Agora
não encontro uma só formiga para olhar. Que não houve matança eu sei porque senão já teria sabido.
Tomar conta do mundo exige também muita paciência: tenho que esperar pelo dia em que me
apareça uma formiga.
Só não encontrei ainda a quem prestar contas.134
olhar das mil de plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias.
Que se repare que não menciono nenhuma vez as minhas impressões emotivas: lucidamente
apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de quem eu tomo conta. Também não se
trata de um emprego pois dinheiro não ganho por isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.
Se tomar conta do mundo dá trabalho? Sim. E lembro-me de um rosto terrivelmente
inexpressível de uma mulher que vi na rua. Tomo conta dos milhares de favelados pelas encostas
acima. Observo em mim mesma as mudanças de estação: eu claramente mudo com elas.
Hão de me perguntar por que tomo conta do mundo: é que nasci incumbida. E sou
responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras, e pelos crimes de leso-corpo e lesa-alma.
Sou inclusive responsável pelo Deus que está em constante cósmica evolução para melhor.
Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando
um pedacinho e folha, o que não impede que cada uma, encontrando uma fila de formigas que
venha de direção oposta, pare para dizer alguma coisa às outras.
Li o livro célebre sobre as abelhas, e tomei desde então conta das abelhas, sobretudo da
rainha-mãe. As abelhas voam e lidam com flores: isto eu constatei.
Mas as formigas têm uma cintura muito fininha. Nela, pequena como é,
cabe todo o mundo que, se não tomar cuidado, me escapa: senso instintivo de organização,
linguagem para além do supersônico aos nossos ouvidos, e provavelmente para sentimentos
instintivos de amor-sentimento, já que falam. Tomei muito conta de formiga quando era pequena, e
agora, que eu queria tanto poder revê-las, não encontro uma. Que não houve matança delas, eu sei
porque se tivesse havido eu já teria sabido. Tomar conta do mundo exige também muita paciência:
tenho que esperar pelo dia em que me apareça uma formiga. Paciência: observar as flores
impercepti-velmente e lentamente se abrindo.
Só não encontrei ainda a quem prestar contas.135
Se lermos atentamente a parte do livro e o texto-crônica perceberemos que a autora corta
e recorta, emenda e reescreve, naturalmente, dentro de uma prática comum, onde "registra
o óbvio", misturando não só os fragmentos, como os temas que são os mais diversos
possíveis. O tema do fragmento aqui descrito já abre o novo parágrafo do livro,
interligando um novo fragmento (crônica) que trata de um "assunto", e que a princípio
não tem nada a ver com o anterior:
Ou não? Pois estou te prestando contas aqui mesmo. Vou agora mesmo prestarte contas daquela
primavera que foi bem seca. O rádio estalava ao captar-lhe a estática. A roupa eriçava-se ao largar a
eletricidade do corpo e o pente erguia os cabelos imantados — esta era uma dura primavera. Ela
estava exausta do inverno e brotava toda elétrica. De qualquer ponto em que se estava partia-se para
o
Essa primavera era bem seca, e o rádio estalava captando sua estática, a roupa eriçava ao
largar a eletricidade do corpo, o pente levantava os cabelos imantados, era uma dura primavera.
E muito vazia. De qualquer ponto em que se estava partia-se para o longe: nunca se viu tanto
caminho. Falava-se pouco; o corpo pesava como seu sono; os olhos estavam grandes e
inexpressivos. No ter-
135 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.420-422. A crônica "Eu tomo conta do mundo" foi publicada no Jornal do Brasil, em 4
de março de 1970.
longe. Nunca se viu tanto caminho. Falamos pouco, tu e eu. Ignoro por que todo o mundo estava
tão zangado e eletronicamente apto. Mas apto a quê? O corpo pesava de sono. E os nossos grandes
olhos inexpressivos como olhos de cego quando estão bem abertos. No terraço estava o peixe no
aquário e tomamos refresco naquele bar de hotel olhando para o campo. Com o vento vinha o sonho
das cabras: na outra mesa um fauno solitário. Olhávamos o copo de refresco gelado e sonhávamos
estáticos dentro do copo transparente. "O que é mesmo o que você disse?", você perguntava. "Eu não
disse nada". Passavam-se dias e mais dias e tudo naquele perigo e os gerânios tão encarnados.
Bastava um instante de sintonização e de novo captava-se a estática farpada da primavera ao vento: o
sonho imprudente das cabras e o peixe todo vazio e nossa súbita tendência ao roubo de frutas. O
fauno agora coroado em saltos solitários. "O que?" "Eu não disse nada". Mas eu percebia um
primeiro rumor como o de um coração batendo debaixo da terra. Colocava quietamente o ouvido no
chão e ouvia o verão abrir
caminho por dentro e o meu coração embaixo da terra — "nada! eu não disse nada!" — e sentia a
paciente brutalidade com que a terra fechada se abria por dentro em parto, e sabia com que peso de
douçura o verão amadurecia cem mil laranjas e sabia que as laranjas eram minhas. Porque eu
queria.137
raço estava o peixe no aquário, tomamos refresco olhando para o campo. Com o vento, vem
do campo o sonho das cabras. Na outra mesa do terraço, um fauno solitário. Olhamos o copo de
refresco e sonhamos estáticos dentro do copo. "O que é que você disse?" "Eu não disse nada".
Passavam-se dias e mais dias. Mas bastava um instante de sintonização e de novo captava-se a
estática farpada da primavera: o sonho imprudente das cabras, o peixe todo vazio e uma súbita
tendência ao roubo de frutas, o fauno coroado em saltos solitários. "O que?" "Nada, eu não disse
nada". Mas eu percebia um primeiro rumor como um coração batendo debaixo da terra. Quieta,
colava meu ouvido na terra e ouvia o verão abrir caminho por dentro, e meu coração embaixo da
terra, oh nada! — eu não disse nada! — e sentia a paciente brutalidade com que a terra fechada
se abria por dentro em parto, e sabia com que peso de douçura o verão amadurecia 100 mil
laranjas, e sabia que as laranjas eram minhas — só porque assim queria.136
136 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 490-491. A crônica "Lembrança de uma primavera suíça" foi publicada no Jornal do
Brasil, em 10 de outubro de 1970.
Depois de ler "o livro sobre as abelhas" e de cuidar de formigas, porque faz parte do
trabalho "registrar o óbvio", e por não ter ninguém a quem prestar contas, a narradora
personagem se põe a prestar conta ali mesmo, ao seu leitor imaginário e a si mesma, para
que a narrativa não se esvaia, falando da "lembrança de uma primavera suíça". Como se
vê, fragmentos tão desconexos, temas tão díspares, são colados e justapostos para que o
quebra-cabeça escritural não pare, não destoe, mantendo aquele fio (tom) fragmentário
que o sustém. Há um diálogo no fragmento disfarçando o grande monólogo que constitui
a escritura do livro e denunciando, por conseguinte, a exatidão da cópia, ou melhor, a
transcrição perfeita que a autora faz da crônica para o livro. Se a narradora-personagem
dialoga com seu leitor imaginário, o sujeito-leitor, por sua vez, sabe que é com esse
grande monólogo fragmentado que terá que ensaiar uma escrita e improvisar uma leitura
para que nas "entrelinhas" dos fragmentos o não-dito se apresente: aquilo que não é ainda
da ordem do sentido, mas da ordem do fazer, o texto é a prática do papel. É nesse
trabalho por fazer que o leitor deve investir-se, incansavelmente, como num jogo,
querendo montar as peças desse quebra-cabeça improvisado e inacabado, no qual ele sabe
que nada mais é senão uma "mão-de-obra" que pratica a ação de trabalhar fragmento por
fragmento, fazendo o processo textual interminável de Água Viva. Como disse
Compagnon: "O working paper é o trabalho em processo, o texto se construindo (...). É o
papel em trabalho."138 Ler o livro Água Viva é meio isto: não basta detectar os fragmentos
ali colados, nem muito menos saber que sua escritura é fragmentária do começo ao fim; 138
COMPAGNON. O trabalho da citação, p.33.
antes, ler Água Viva é querer, desejar mesmo, o trabalho de descolar tais fragmentos para
colá-los em outro lugar, enfim, construir outro texto — não mais "borbulhante" mas
flutuante — através de uma leitura que não vise à totalidade, porque ela também é
fragmentária, cortada, intervalada, "esquecida" como o sujeito que a pôs em prática.
Nesse caso, ler já seria o trabalho de cortar e recortar, mais do que um sentido por outro,
mas um fragmento por outro, pelo simples prazer de pôr em movimento tudo o que viria a
ser chamado texto.
Reescrevendo, recortando e colando, os fragmentos deslizam por sobre o corpo
escritural não menos deslizante que não pára de emanar sentidos, os quais também
deslizam de um fragmento para outro, não se fixando em nenhum texto que não se quer
acabado, como mostra o seguinte fragmento:
... eu o vi de repente e era um homem tão extraordinariamente bonito e viril que eu senti uma
alegria de criação. Não é que eu o quisesse para mim assim como não quero para mim o menino que
vi com cabelos de arcanjo correndo atrás da bola. Eu queria somente olhar. O homem olhou um
instante para mim e sorriu calmo: ele sabia quanto era belo e sei que sabia que eu não o queria para
mim. Sorriu porque não sentiu ameaça alguma. É que os seres excepcionais em qualquer sentido
estão sujeitos a mais
perigos do que o comum das pessoas. Atravessei a rua e tomei um táxi. A brisa arrepiava-me os
cabelos da nuca. E eu estava tão feliz que me encolhi no canto do táxi de medo porque a felicidade
dói. E isto tudo causado pela
... eu o vi de repente e era um homem tão extraordinariamente bonito e viril que eu senti uma
alegria de criação. Não é que eu o quisesse para mim assim como não quero a Lua nas suas noites
em que ela se torna leve e frígida como uma pérola. Assim como não quero para mim um menino de
nove anos que vi, com cabelos de arcanjo, correndo atrás da bola. Eu queria em tudo somente
olhar. O homem olhou um instante para mim e sorriu calmo: ele sabia quanto era belo, e sei que
sabia
que eu não o queria para mim, ele sorriu porque não sentiu nenhuma ameaça. (Os seres
excepcionais estão mais sujeitos a perigos do que o comum das pessoas). Atravessei a rua e
apanhei um táxi. A brisa me arrepiava os cabelos da
visão do homem bonito. Eu continuava a não querê-lo para mim — gosto é das pessoas um
pouco feias e ao mesmo tempo harmo-niosas, mas ele de certo modo dera-me muito com o sorriso de
camaradagem entre pessoas que se entendem. Tudo isso eu não entendia.139nuca e era outono mas
parecia prenunciar uma nova primavera como se o verão estafante merecesse a frescura do
nascimento de flores. Era no entanto outono e as folhas amarelavam nas amendoeiras. Eu estava tão
feliz que me encolhi num canto do táxi de medo pois a felicidade também dói. E tudo isso causado
pela visão de um homem bonito. Eu continuava a não querê-lo para mim mas ele de algum modo
me dera muito com o seu sorriso de camaradagem entre pessoas que se entendem. A essa altura,
perto do Viaduto do Museu de Arte Moderna, eu já não me sentia feliz, e o outono me pareceu uma
ameaça dirigida contra mim. Tive então vontade de chorar de manso.140
A crônica "Chorando de manso" é simplesmente recortada, reescrita em algumas partes, e
colada no corpo da escritura: o seu modo original de começar por reticências e letra
minúscula permanece, inclusive, na escritura, reforçando o trabalho simples de colagem
operado pela autora. Quer seja na crônica, quer seja no livro, tem-se um fragmento que já
começa pelo meio, destoando de tudo o que viria antes ou depois, e reforçando, com isso,
o porquê de ser um objeto (texto) fragmentado. Um fragmento vai ser sempre um
fragmento, não importando o lugar e contexto em que aparecer, porque ele existe em sua
uni(ci)dade e porque só nela ele pode se configurar enquanto tal. O máximo que podemos
fazer é contornar o seu contorno, o seu desenho que, quase sempre, é informe e disforme
ao mesmo tempo. É no trabalho com o papel, recortando e colando, até que o fragmento 139
LISPECTOR. Água viva, p.65-66.
140 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.427-428. A crônica "Chorando de manso" foi publicada no Jornal do Brasil, em 14 de
março de 1970.
chegue a um estado de alto-relevo, que podemos entrar no jogo e alterá-lo a nosso bel
prazer. Caso contrário, todos os fragmentos permaneceriam no corpo amorfo de uma
suposta escritura emanando um sentido arcaico para um sujeito-leitor parasitário, não
podendo haver cena mais deprimente e totalidade de criação mais perfeita. O bom
trabalho acontece justamente quando, como disse Clarice: "A criação me escapa."141 Ou
só como ela mesma poderia concluir: "Eu, que fabrico o futuro como uma aranha
diligente. E o melhor de mim é quando nada sei e fabrico não sei o quê."142 Assim como a
autora que se lança no traço de seu desenho sem forma e imprevisto, também o leitor,
através de seu ofício, deve aventurar-se no trabalho de compreender os fragmentos
esgarçados da composição ficcional. Compreender tais fragmentos não quer dizer dar-lhes
o último sentido, mas, pelo contrário, que eles resultem de uma "experiência de uma falta
de construção". Embora a autora afirme que seu texto é "atravessado de ponta a ponta por
um frágil fio condutor", percebemos que o tempo do ato de escrever é o mesmo tempo do
ato de ler, independentemente de quem os pratica. O tempo da escritura é um tempo sem
tempo, atemporal, "é uma sensação atrás do pensamento". É o momento em que o
"objeto" é visto e eminentemente esquecido, semelhante àquele momento em que, no rio,
a água viva passa e já não é mais. Enfim, o tempo da escritura é o tempo da voz que a
atravessa, do começo ao fim, sendo a leitura o timbre dessa voz que quase não se diz.
Vale lembrar que no livro não se conta uma história, senão apenas palavras que vivem de "som", ou
melhor, são esse som, que dura um instante: "Estas minhas frases balbuciadas
são feitas na hora mesma em que estão sendo escritas e crepitam de tão novas e ainda
verdes."143
Nesse mundo minado chamado texto, sem tempo de escrita e de leitura, em que
um fragmento reclama por outro fragmento, unidos por um fio de voz esgarçada,
encontramos, em meio à colagem, uma "conversa puxando outra conversa", mais pessoal,
mais ligada ao "eu" que subjaz na trama ou entrelinhas dos fragmentos justapostos:
Ontem eu estava tomando café e ouvi a empregada na área de serviço a pendurar roupa na corda
e a cantar uma melodia sem palavras. Espécie de cantilena extremamente plangente. Perguntei-lhe de
quem era a canção, e ela respon-deu: é bobagem minha mesmo, não é de ninguém.144
Eu estava na copa tomando um café e ouvi a cozinheira na área de serviço cantando uma
melodia sem palavras, uma espécie de cantilena extremamente harmoniosa. Pergunteilhe de quem
era a canção. Respondeu: é bobagem minha mesmo.
Ela não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo. Parei de tomar o café,
meditei: o mundo ainda será muito mais criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão
atrasados em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa não será usada como palavra, nem
mesmo vai se falar nela: apenas tudo se criará. Não é culpa nossa — continuei com meu café — se
estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em "milhares de anos à nossa frente", deu-me
quase uma vertigem pois não consigo contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e
esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos, é possível que voltemos às
cavernas e que tudo se repita de novo? Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o
mundo será
daqui a lado, continuei, nós estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai
dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto estamos secos como um figo
seco onde ainda há um pouco de umidade.
Enquanto isso a empregada estende roupa na corda e continua sua melopéia sem palavras.
Banho-me nela. A empre-gada é magra e morena, e nela se aloja um "eu". Um corpo separado dos
outros,
e a isso se chama de "eu"? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado
corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado. Ela é um
"eu".145
Clarice reaproveita, na montagem do livro, somente o primeiro parágrafo da crônica. A
cópia do "pedaço" é perfeita e mostra, por conseguinte, a prática usada pela autora na
construção do livro que é, como estamos frisando, a de recortar e colar, a bel-prazer, os
fragmentos encontrados no "fundo de gaveta" no qual se armazena de tudo, e há anos,
resumindo, de certa forma, o próprio pensamento fragmentário da escritora Clarice
Lispector. Tal fragmento vai servir de "gancho" para a abertura do próximo parágrafo do
livro, em que ela diz: "Sim, o que te escrevo não é de ninguém."146 O que demonstra, por
seu lado, que a escrita é remetida à própria escrita, para o próprio ato de escrever, uma 145
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.444-445. A crônica "Conversa puxa conversa à-toa" foi publicada no Jornal do Brasil, em
16 de maio de 1970.
escrita que não é "corrigida" pelo seu autor, sem revisão, e que acontece no tempo mesmo
do trabalho de escrever. No entanto, uma escrita com "autor verdadeiro", que confirma:
"E não escrevo para te agradar."147 E que diria, sem se contradizer, porque chegou a tal
"liberdade" de pensar-sentir-escrever que "o verdadeiro pensamento parece sem autor".148
Resumindo, diríamos que a montagem dos fragmentos é a forma como dessa vez,
sobretudo, acontece o livro (Água Viva) para Clarice. O livro só, não, mas a própria
escrita. Os fragmentos, nesse caso, são o material que o escritor tem às mãos. Aliás, como
muito bem observou Calabrese, "o fragmento como material criativo corresponde também
a uma exigência formal e de conteúdo. Formal: exprimir o caos, a casualidade, o ritmo, o
intervalo da escrita. De conteúdo: evitar a ordem das conexões, afastar para longe 'o
monstro da totalidade'."149
O fragmento do livro que se segue, em sua origem intitula-se, oportunamente,
"Brain Storm" e sintetiza a exigência do fragmento com relação à forma e ao conteúdo de
que fala Calabrese. Numa verdadeira "tempestade cerebral", e cada vez mais longe do que
poderia chamar-se texto, ou contar-se uma história, tem-se um fluxo contínuo do que vem
à mente, quer sejam palavras, pensamentos-palavras, frases desconexas como um "objeto"
solto na página, enfim, nada mais do que verdadeiros fragmentos "quebrados", reforçando
que o inteiro (no caso o texto de Água Viva) está in absentia. Tal fragmento, de certa
146 LISPECTOR. Água viva, p.84.
147 Ibidem. p.85.
148 Ibidem. p.91.
149 CALABRESE. A idade neobarroca, p.101.
forma, resume o ser do livro como um todo. Pela reescrita, a autora escreve no livro: "É
preciso coragem para escrever o que me vem: nunca se sabe o que pode vir e assustar";
enquanto na crônica, lia-se: "É preciso ter coragem para fazer um brain storm: nunca se
sabe o que pode vir e nos assustar". Quer seja na coragem para "escrever", quer seja na
coragem para "fazer", o que constatamos é que "o monstro sagrado [da totalidade do que
quer que seja] morreu".150 Não há mais texto — como tão comumente se diz — mas tão
somente fragmentos de fragmentos que foram para sempre "desarqueologizados",
perdendo definitivamente a origem, evitando o centro (do texto) e a ordem do discurso,
mas mantendo sua forma "quebrada" que, dessa vez, se aproxima do "não-livro" ou, para
usar uma definição da própria autora com relação ao livro, "fac-símile de livro".151
Vejamos tal fragmento:
150 LISPECTOR. Água viva, p.87. 151 Ibidem. p.55.
Ah se eu sei que era assim eu não nascia. Ah se eu sei eu não nascia. A loucura é vizinha da
mais cruel sensatez. Isto é uma tempestade de cérebro e uma frase mal tem a ver com outra. Engulo a
loucura que não é loucura — é outra coisa. Você me entende? Mas vou ter que parar porque estou tão
e tão cansada que só morrer me tiraria deste cansaço. Vou embora.
Voltei. Agora tentarei me atualizar de novo com o que no momento me ocorre — e assim criarei
a mim mesma. É assim:
O anel que tu me destes era de vidro e se quebrou e o amor acabou. Mas às vezes em seu lugar
vem o ódio dos que amaram e se entredevorararam.. A cadeira que está aí em frente me é um objeto.
Inútil enquanto eu a olho. Digame por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta
hora. Estou me encontrando comigo mesma: é mortal porque só a morte me conclui. Mas eu
agüento até o fim. Vou lhe contar um segredo: a vida é mortal. Vou ter que interromper tudo para te
dizer o seguinte: a morte é o impossível e o intangível. De tal forma a morte é apenas futura e há
quem não a agüente e se suicide. É como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não houvesse
o seguinte. Só os dois pontos à espera. Nós mantemos este segredo em mutismo para esconder que
cada instante é mortal. O objeto cadeira me interessa. Eu amo os objetos na medida em que eles não
me amam. Mas se não compreendo o que escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar porque falar
salva. Mas não tenho nenhuma palavra a dizer. O que é que na loucura da franqueza uma pessoa diria
a si mesma? Mas seria a salvação. Embora o terror
Ah, se eu sei, não nascia, ah se eu sei, não nascia. A loucura é vizinha da mais cruel sensatez.
Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente. O anel que tu me destes era de vidro e se
quebrou e o amor não acabou, mas em lugar de, o ódio dos que amam. A cadeira me é um objeto.
Inútil enquanto a olho. Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta
hora. A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse germe mas tenho
incipiente a loucu-ra que em si mesma é criação válida. Nada mais tenho a ver com a validez das
coisas. Estou liberta ou perdida. Vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse
segredo em mutismo cda um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante
mortal. Ibrahim Sued disse que era um imortal sem fardão. O objeto cadeira sempre me interessou.
Olho esta que é antiga, comprada num antiquário
em Berna, e estilo império: não se poderia imaginar maior simplicidade de linhas, contrastando
com o assento de feltro vermelho. Eu amo os objetos na medida em que eles não me amam. Mas se
não compreendo o que escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar pois falar salva. Mas não
tenho uma só palavra a dizer. As palavras já ditas me amorda-çaram a boca. O que é que uma
pessoa diz a outra? Fora "como vai?"Se desse a loucura da franqueza, que diriam as pessoas às
outras? E o pior é o que se diria uma pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a
franqueza seja determinada no nível consciente, e o terror da franqueza vem da parte que tem no
vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criadora inconsciên-cia do mundo. Hoje
da franqueza venha da parte das trevas que me ligam ao mundo e à criadora inconsciência do
mundo. Hoje é noite de muita estrela no céu. Parou de chover. Eu estou cega. Abro bem os olhos e
apenas vejo. Mas o segredo — este não vejo nem sinto. Estarei fazendo aqui verdadeira orgia de
detrás do pensa-mento? orgia de palavras? A eletrola está quebrada. Olho a cadeira e desta vez foi
como se ela também tivesse olhado e visto. O futuro é meu — enquanto eu viver. Vejo as flores na
jarra. São flores do campo e que nasceram sem se plantar. São amarelas. Mas minha cozinheira
disse: que flores feias. Só porque é difícil amar o que é franciscano. No atrás do meu pensamento
está a verdade que é a do mundo. A ilogicidade da natureza. Que silêncio. "Deus" é de um tal enorme
silêncio que me aterroriza. Quem terá inventado a cadeira? É preciso coragem para escrever
o que me vem: nunca se sabe o que pode vir e assustar. O monstro sagrado morreu. Em seu lugar
nasceu uma menina que era órfã de mãe. Bem sei que terei que parar. Não por falta de palavras mas
porque estas coisas e sobretudo as que só penso e não escrevi — não se dizem.152
é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim pro-mete esta tarde triste que uma palavra
humama salvaria. A pior cegueira é a dos que não sabem que estão cegos. Abro bem os olhos, e
não adianta: apenas vejo. Mas o segredo, este não vejo nem sinto. A eletrola está quebrada, o
conserto é muito caro, e não viver com música é trair a condição humana que é cercada de música.
Aliás música é uma abstração do pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel. Aquele abraço,
eu já não agüento mais essa canção que no entanto é toda fraternal. Só posso escrever se estiver
livre, e livre de censura, senão sucumbo. Olho a cadeira estilo império e dessa vez foi como se ela
também me tivesse olhado e visto. O futuro é meu enquanto eu viver. No futuro vai-se ter mais
tempo de viver, e, de cambulhada, escrever. No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia. Marly de
Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima. Aliás eu só sei em todas as
circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada. Tudo o que nunca se fez, far-se-á um dia? O
futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a
loucura: e nela então o humano do homem se refugia. Vejo as flores na jarra: são flores do campo,
nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas minha cozinheira disse: mas que flores feias.
Só porque é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é
vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana. Quantas
mentiras sou obrigada a mentir. Senão, o que me resta? A verdade é o resíduo final de todas as coisas
e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo. A Lua é, como diria Paul Eluard,
éclatante de silence. Hoje não sei se vamos ter Lua visível pos já se torna tarde e não a vejo no céu.
Uma vez numa estação de águas em Minas, para onde acompanhei meu pai, eu olhei de noite para o
céu, circunscrevendo-o com a cabeça deitada para trás, e fiquei tonta de tantas estrelas que se vêem
no campo, pois, o céu do campo é limpo. Não há lógica, se se for pensar um pouco, na ilogicidade
perfei-tamente equilibrada da natureza. Da natureza humana também. O que seria do mundo, do
cosmos, se o homem não existisse. Se eu pudesse escrever sempre assim como estou escrevendo
agora eu estaria em plena tempestade de cérebro que significa brain storm. Quem terá inventado a
cadeira? Alguém com amor por si mesmo. Inventou então um maior conforto para o seu corpo.
Depois os séculos se seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira, pois
usá-la é apenas automático. É preciso ter coragem para fazer um brain storm: nunca se sabe o que
pode vir e nos assustar. O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era órfã
de mãe. Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas e
sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.153
152 LISPECTOR. Água viva, p.85-87.
153 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.374-376. A crônica "Brain storm" foi publicada no Jornal do Brasil, em
22 de novembro de 1969. O mesmo fragmento, agora intitulado "Tempestade de almas", aparece em Onde estivestes de noite.
Tais fragmentos não nos possibilitam quaisquer tipos de comparação entre si, por
existirem em sua própria uni(ci)dade textual, independente do lugar ou conjunto em que
aparecem, são textos de textos, textos. Somente pela leitura, enquanto trabalho de citar
que, pela sua natureza, se aproxima do ato de escrever, podemos grifar no texto do
"instante" a lembrança do outro texto ali subjacente. A leitura grifada que fizemos,
sobretudo nos finais dos fragmentos, demonstra, mais do que uma síntese do processo de
reescrever operado pela autora, um possível conceito da poética do inacabado que molda
a sua produção e, ao mesmo tempo, sua consciência dilacerante com relação à tal prática.
A respeito ainda do que aqui estamos querendo dizer, Clarice tenta explicar, no livro, "o
ar despojado dos portais", na pintura, e, dos fragmentos, na escritura, quando diz:
A simetria foi a coisa mais conseguida que fiz. Perdi o medo da simetria, depois da desordem
da inspiração. É preciso experiência ou coragem para revalorizar a simetria, quando facilmente se
pode imitar o falso assimétrico, uma das originalidades mais comuns. Minha simetria nos portais da
igreja é concentrada, conseguida, mas não dogmática. É perpassada pela esperança de que duas
assimetrias encontrar-se-ão na simetria. Esta como solução terceira: a síntese.154
Dessa forma, imitando o "falso assimétrico", e fazendo desse sua maior
originalidade, Clarice monta sua "simetria arquitetural" que resume o livro-ficção Água
Viva enquanto fragmentos dispostos por uma simetria assimétrica: "Daí talvez o ar
despojado dos portais, a delicadeza de coisa vivida e depois revivida, e não um certo
arrojo inconseqüente dos que não sabem."155154 LISPECTOR. Água viva, p.77. (Grifo nosso) 155 Ibidem. p.77.
Na "dura escritura" que constitui o escrever para Clarice em Água Viva, há,
como ela mesma diz, "uma dura luta pela coisa que apesar de corroída se mantém de
pé".156 E continua a autora mais adiante: "Minhas cruzes são entortadas por séculos de
mortificação. Os portais já são um prenúncio de altares? O silêncio dos portais. O
esverdeamento deles toma um tom do que estivesse entre vida e morte, uma intensidade
de crepúsculo."157 Se os portais, em tal imagem, já são o prenúncio de seu próprio
silêncio, o livro Água Viva é, conseqüentemente, como considerou Olga Borelli, "o
prenúncio do fim" ou "a ante-sala da desagregação absoluta".158 Entretanto, se nos
reportarmos para a penúltima página do livro, ali encontramos a preocupação maior que
permeia a vida da escritora a partir dessa época, sobretudo o período em que escreveu
para o Jornal do Brasil. Em tal página, vamos encontrar, reescrita, a crônica intitulada
"Mistério", publicada no Jornal do Brasil em 7 de setembro de 1968. Por volta desse ano,
Clarice escrevia o livro Uma Aprendizagem e recolhia material para o livro Água Viva.
Nesse período, o mistério que rondava o trabalho da autora era, antes de tudo, uma nova
prática de escrever, como a crônica reescrita vai rememorar no livro:
O que quero agora escrever? Quero alguma coisa tranqüila e sem modas. Alguma coisa como a
lembrança de um monumento alto que parece mais alto porque é lembrança. Mas quero de passagem
ter realmente tocado no monumento.159
156 Idem.
157 LISPECTOR. Água viva, p.77-78.
158 Ver GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.412.
159 LISPECTOR. Água viva, p.70. O texto-crônica diz o seguinte: "Quando comecei a escrever, que desejava eu atingir? Queria
escrever alguma coisa que fosse tranqüila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto Sem saber o que
simbolizava a palavra monumento, Clarice terminou escrevendo coisas
inteiramente diferentes, a partir de então, como o livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres e sobretudo o livro Água Viva, que pode ser lido como síntese da poética da
autora.
Além das crônicas aqui citadas, outras de origem mais remota, como "A pesca
milagrosa",160 vão aparecer tecendo a fragmentação escritural do livro. Tais crônicas,
intituladas "Os espelhos de Vera Mindlin" e "Esboço de um guarda-roupa" têm como
origem a segunda parte do livro A Legião Estrangeira que se intitulava, precisamente,
"Fundo de gaveta". Mais tarde, essa segunda parte é publicada separadamente dos contos
com o título de Para não Esquecer. Em nota explicativa a "Fundo de gaveta" (1964),
Clarice se perguntava: "Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também
não presta. Além do mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito.
Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente
tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão."161 Tal afirmativa, por sua vez, reforça a
prática que vai moldar a escritura do livro que se constitui, basicamente, em "amontoar"
os fragmentos dispersos pelo caminho da produção da autora. De anotação em anotação,
de fragmento em fragmento, valendo-se do que presta e do que não presta, tudo vem a
público, ou melhor, inscreve-se e se apresenta formando o corpo escritural fragmentário
monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente
não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes." LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.190.
160 Cf. p.196 deste trabalho.
161 LISPECTOR. A legião estrangeira, p.127.
de Água Viva. E formando também, de certa forma, já que os fragmentos representam o
próprio modo de pensar da autora, a inscrição do corpo e da voz do escritor no papel:
"Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus corpos pelos
caminhos."162
Das duas crônicas de "Fundo de gaveta", a primeira que aparece reescrita
dentro do livro é "Os espelhos de Vera Mindlin", compondo um grande texto-fragmento
colado às páginas 78, 79, 80 e 81 do livro Água Viva. Ao reescrevê-la, Clarice,
obviamente, retira o nome "Vera Mindlin", o que daria um tom pessoal, e subdivide a
crônica em outros blocos (parágrafos) que não existiam na origem. O que, na crônica, era
praticado por Vera Mindlin, no livro, diferentemente, há uma troca de papéis autorais, e a
narradora-escritora é quem "pinta", descreve o espelho. Sem conseguir des/escrever um
espelho, apesar de sua materialidade natural, Clarice acrescenta algo importante ao
fragmento colado no livro: "Não, eu não descrevi o espelho — eu fui ele. E as palavras
são elas mesmas, sem tom de discurso."163 Comparemos tais fragmentos:
Mas agora estou interessada pelo mistério do espelho. Procuro um meio de pintá-lo ou falar
dele com a palavra. Mas o que é um espelho? Não existe a palavra espelho, só existem espelhos,
pois um único é uma infinidade de espelhos. Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de
espelhos? Espelho não é coisa criada e sim nascida. Não são precisos muitos para
O que é um espelho? Não existe a palavra espelho — só espelhos, pois um único é uma
infinidade de espelhos. — Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são
precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do
que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente ad
162 LISPECTOR. Água viva, p.75. 163 Ibidem. p.81.
se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro
refletiu, num tremor que se transmite em mensagem telegráfica intensa e muda, insistente, liquidez em
que se pode mergular a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos dessa dura água que é o
espelho. Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que para o vidente é o seu
campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. E mal posso falar, de tanto silêncio
desdobrado em outros.
Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir pra sempre em frente
sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço
quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é extraordinário. Como um
gato de dorso arrrepiado, arrepio-me diante de mim. Do deserto também voltaria vazia, iluminada e
translúcida, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho.
A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-la e alterálo. Espelho é luz. Um
pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo.
Tire-se a sua moldura ou a linha de seu recortado, e ele cresce assim como água se derrama.
O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem
consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem
caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem —
esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa. Para isso há de se surpreendê-lo quando está
sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele
poderia
infinitum, liquidez em que se pode mergular a mão fascinada e retirá-la escorrendo de
reflexos, os reflexos dessa dura água. — O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes,
ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de
silêncios e silêncios. — Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre
em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. — E é coisa mágica: quem
tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria
vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. — A sua forma
não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho
quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tire-se a sua moldura e ele
cresce assim como água se derrama. — O que é um espelho? é o único material inventado que é
natural.
Quem , como Vera, olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem
consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha
para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem — então
percebeu o seu mistério. Para isso há de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto
vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformálo em simples imagem
de uma agulha.
Vera deve ter precisado de sua própria delicadeza para não atravessálo com a própria
imagem, pois espelho em que eu me veja sou eu, mas espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma
pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio,
transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de
reflexão levíssima, só imagem e não o corpo. Corpo da coisa.
Ao pintá-lo precisei de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem,
pois espelho em que eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa
muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal
ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então
penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: viu o espelho propriamente dito.
E descobriu os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou
outro bloco de gelo. Espelho é frio e gelo. Mas há a sucessão e escuridões dentro dele — perceber
isto é instante muito raro — e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para
poder captar e surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Com cores de preto e
branco recapturei na tela sua lumino-sidade trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturo também,
num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso
entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo assim como se recriasse a
violenta ausência de gosto da água.
Não, eu não descrevi o espelho — eu fui ele. E as palavras são elas mesmas, sem tom de
discurso.165
164 LISPECTOR. A legião estrangeira, p.129-131. 165 LISPECTOR. Água viva, p.78-80.
e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa
pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vera viu o espelho
propriamente dito.
E descobriu os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou
outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro — e é preciso ficar de espreita dias e
noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante — nesse instante ela conseguiu
surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco,
recapturou sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturou
também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É
preciso entender a violenta au
sência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta
ausência de gosto da água.164
A outra crônica que se desloca de "Fundo de gaveta" para ser colada na
composição de Água Viva é "Esboço de um guarda-roupa", que aparece reescrita às
páginas 83 e 84 do livro. Essa crônica acaba esboçando o próprio processo de reescrever e
de colar que a autora pratica, ao apropriar-se de seus textos no decorrer de sua produção
textual. Ao estudar o guarda-roupa, com o intuito de pintar o tema e criar o objeto, a
autora esboça não só a sua prática de escrita, como também a realiza na prática com o
papel:
Mas eu também quero pintar um tema, quero criar um objeto. E esse objeto será — um guarda-
roupa, pois que há de mais concreto? Tenho que estudar o guarda-roupa antes de pintálo. Que vejo?
Vejo que o guarda-roupa parece penetrável porque tem uma porta. Mas ao abri-la, vê-se que se adiou
o penetrar: pois por dentro é também uma superfície de madeira, como uma porta fechada. Função do
guarda-roupa: conservar no escuro os travestis. Natureza: a da inviolabilidade das coisas. Relação
com pessoas: a gente se olha ao espelho da parte de dentro de sua porta, a gente se olha sempre em
luz inconveniente porque o guarda-roupa nunca está em lugar adequado: desajeitado, fica de pé onde
couber, sempre descomunal, corcunda, tímido e desastrado, sem saber como ser mais discreto, pois
tem presença demais. Guarda-roupa é enorme, intruso, triste, bondoso.
Mas eis que se abre a portaespelho — e eis que, ao movimento que
166 LISPECTOR. Água viva, p.83-84. 167 LISPECTOR. A legião estrangeira, p.148.
Parece penetrável porque tem uma porta. Ao abri-la, vê-se que se adiou o penetrar: pois por
dentro é também uma superfície de madeira, como uma porta fechada. Função: conservar no
escuro os travestis. Natureza: a da inviolabilidade das coisas. Relação com pessoas: a gente se
olha ao seu espelho sempre em luz inconveniente porque o guardaroupa nunca está em lugar
adequado: fica de pé onde couber, sempre descomunal, corcunda, tímido, sem saber como ser mais
discreto. Guarda-roupa é enorme, intruso, triste, bondoso. Cerrase, porém, a porta-espelho — e,
ao movimento, na nova composição do quarto em sombra, entram frascos e frascos de vidro.
(Rápida esperteza, contribuição ao quarto, indício de vida dupla, influência no mundo, eminência
parda, o verdadeiro poder nos bastidores.)167
a porta faz, e na nova composição do quarto em sombra, nessa composição entram frascos e frascos
de vidro de claridade fugitiva.166
Como exemplificam os fragmentos textuais acima, a prática da autora só se deixa ser
reconhecida como "o figurativo do inominável", isto é, lugar onde os fragmentos,
trabalhados e retrabalhados, colados e descolados, podem ser reconhecíveis no cenário
escritural mas não podem mais receber um nome senão o de Texto. Comprova-se tal
constatação quando percebe-se que o mesmo fragmento aqui descrito — mas já figurando
um outro texto — aparece como crônica intitulada "Estudo de um guarda-roupa",
publicada no Jornal do Brasil, em 18 de dezembro de 1971:
Parece penetrável porque tem uma porta. Ao abri-la, vê-se que se adiou o penetrar: pois por
dentro é também uma superfície de madeira, como uma porta fechada. Função: conservar no escuro
os travestis. Natureza: a da inviolabilidade das coisas. Relação com pessoas: a gente se olha ao seu
espelho sempre em luz inconveniente porque o guarda-roupa nunca está em lugar adequado: gauche,
fica de pé onde couber, sempre descomunal, corcunda, tímido, sem saber como ser mais discreto.
Guarda-roupa é enorme, intruso, triste, bondoso. Cerra-se, porém, a porta-espelho — e eis que, ao
movimento, na nova composição do quarto em sombra, entram frascos e frascos de vidro de
claridade fugitiva. (Rápida esperteza do guarda-roupa, contribuição ao quarto, indício de vida dupla,
influência no mundo, eminência parda, o verdadeiro poder nos bastidores.)168
Comparando os três textos-fragmentos, diríamos que são tão iguais quanto diferentes.
Iguais, porque partem da primeira escrita-origem, do primeiro rascunho, da primeira
cópia, da primeira grafia, enfim, do primeiro trabalho com a prática com o papel em torno
da primeira escrita do fragmento enquanto texto original. Diferentes, porque são a própria escrita e,
enquanto escrita, são reescrita. Enquanto tal, a escrita é trabalhada de forma que
não seja apenas cópia, mas uma tradução, uma citação, e não só do texto-fragmento
anterior, como também do posterior, por um processo circular de lembrar-escrever
esquecer do autor na prática com o papel. Diferentes ainda porque cada um é sua própria
origem, seu próprio rascunho e sua própria cópia, mesmo que apresentem traços arcaicos
de uma grafia posterior — o que não é problema, porque a cópia, a mais verdadeira, seria
sempre uma reescrita. Diferentes, também, porque a enunciação produzida é sempre
outra, é sempre aquela que convém ao leitor (citante). Diferentes, sobretudo, porque é nas
entrelinhas dos fragmentos que se produz uma rede de citações que, por conseguinte,
produz outros textos que, por sua vez, produzem outras leituras até o infinito do trabalho
da leitura e da escrita, que nada mais são que recortes e colagens, reescritas e releituras.
Nunca lerás o que escrevo
Sei que depois de me leres é difícil reproduzir de ouvido a minha música, não é possível cantá-
la sem tê-la decorado. E como decorar uma coisa que não tem história?
Clarice Lispector
A escritura clariceana é uma escritura que se escreve: cada novo livro seu é
uma busca desesperada, pela linguagem, para alcançar a última escritura impossível. Por
outro lado, cada escritura de cada um dos livros — por ser uma construção de linguagem 168
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.617.
— representa uma (des)construção da escritura impossível buscada. De uma forma ou de
outra, o que aí deparamos é com uma escritura que se constrói pela sua desconstrução.
Afinal, segundo a própria autora: "O indizível só me poderá ser dado através do fracasso
de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não
conseguiu."169 Como grande escritora que sempre foi, Clarice soube "desistir" no
momento final — desistir que não é da ordem do fracasso mas da ordem da "revelação"
— deixando que o silêncio da linguagem falasse, significasse, fosse, enfim, fundador de
toda significação.
Desse modo, cada escritura busca outra escritura, cada página lembra outra
página, cada fragmento reescreve outro fragmento, cada construção reescreve a mesma
escritura que se escreve porque, nessa prática escritural, "não há fim e tampouco há
princípio: tudo é centro".170 O livro Água Viva representa esse centro: lugar em que a
escritura fragmentária se inscreve e busca, ao mesmo tempo, um sentido que ela não quer
e que o adia para frente, para sua incompletude, para o seu fim sem fim porque, assim
como ela não começou, não terminará e continuará inacabada. Sua narradora
personagem-feiticeira que foi seduzida pela escritura, e que acaba seduzindo o leitor,
assim se despede fechando a narrativa: "O que te escrevo continua e estou enfeitiçada".171169
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p.172. Lê-se em Água viva: "Quero a experiência de uma falta de construção". LISPECTOR.
Água viva, p.27.
170 PAZ. O mono gramático, p.140.
171 LISPECTOR. Água viva, p.97
A escritura fragmentária de Água Viva traz, além dos fragmentos já apontados,
outros que apareceram antes citados na escritura do livro Uma Aprendizagem ou o Livro
dos Prazeres. Tais fragmentos, no entanto, também vão compor duas crônicas intituladas
"Uma experiência" e "Estado de graça — trecho". Entretanto, o que nos interessa
observar no momento é que em livros aparentemente tão díspares, fragmentos comuns
sejam inseri-dos na construção de ambas as escrituras. Diante disso, exemplifiquemos
com o primeiro fragmento (a crônica "Uma experiência") que se repete na construção dos
dois livros:
Vou falar do que se chama a experiência. É a experiência de pedir socorro e o socorro ser dado.
Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu
pedi socorro e não me foi negado. Sentime então como se eu fosse um tigre com flecha mortal
cravada na carne e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem teria
coragem de aproximar-se e tirar-lhe a dor. E então há a pessoa que sabe que tigre ferido é apenas tão
perigoso como criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, arranca a flecha fincada.
E o tigre? Não se pode agradecer. Então eu dou umas voltas vagarosas em frente à pessoa e
hesito. Lambo uma das patas e depois, como não é a palavra que tem então importância, afasto-me
silen-ciosamente.172
E Lóri pensou que talvez essa fosse uma das experiências humanas e animais mais
importantes: a de pedir mudamente socorro e mudamente esse socorro ser dado. Pois, apesar das
palavras trocadas, fora mudamente que ele a havia ajudado. Lóri se sentia como se fosse um tigre
perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas
medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que
um tigre ferido não é perigoso. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado
com cuidado a flecha fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podiam agradecer. Então ela, o tigre,
dera umas voltas vagarosas em frente ao homem, hesitara, lambera uma das patas e depois, como
não era a palavra ou o grunhido o que tinha importância, afastara-se silencio-samente. Lóri nunca
esqueceria a ajuda que recebera quando ela só conseguiria gaguejar de medo.173
A comparação entre os fragmentos escriturais reforça que o entretexto na produção de
Clarice Lispector é a fundação do texto que ali se erige, podendo-se dizer, inclusive, que
antes do Texto que está sempre prestes a se concluir, o que ocorre é uma verdadeira
relação entre textos na escritura que se escreve. Ou melhor: contradizendo Clarice, no
final dos fragmentos, que afirma não ser a palavra que tem importância, diríamos que no 172
LISPECTOR. Água viva, p.87.
trabalho com a escrita, no seu trabalho, o que realmente conta é a palavra, o trabalho com
a palavra, a construção e a desconstrução da palavra, porque essa é a prática que resume e
diz não só o que é literário, mas o que move toda e qualquer criação literária. Tal prática,
antes de se ater à busca do sentido, qualquer sentido, procuraria, tal como disse Clarice na
crônica "Mistério" aqui antes mencionada, tocar no monumento, mesmo que esse fosse
apenas a palavra monumento. Porque aí reside o trabalho com o papel, lugar onde o texto
em processo se constrói, e o autor, recortando palavra por palavra, cola sua leitura em
escrita que produz o texto. É esse trabalho material com o papel de armazenar e
desarmazenar palavras, e organizá-las canonicamente, que diz a responsabilidade do
escritor e conceitua a própria literatura enquanto projeto.
Mas é o segundo fragmento, a crônica "Estado de graça — trecho", publicada
em 6 de abril de 1968, que melhor vai exemplificar a relação entre os textos fragmentados
e inacabados que constituem a produção literária de Clarice Lispector a partir dessa
época. Tal crônica aparecerá reescrita na escritura do livro Uma Aprendizagem (1969),
como já mostramos anteriormente, e aparecerá depois reescrita na escritura de Água Viva
(1973). É essa relação textual de um mesmo fragmento (a crônica como origem) tecido
nas escrituras dos livros que aqui nos interessa.
Se a "origem" dos dois fragmentos que compõem partes das escrituras é a
crônica "Estado de graça — trecho", constatamos que o trabalho operado pela autora — o
de voltar ao texto "origem" — acaba alterando o texto original. Tal mudança se daria não 173
LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.135. A crônica "Uma experiência" já foi citada na
só pelo trabalho de reescrever, mas também, e principalmente, porque, na re-leitura, uma
palavra pode ser lida por outra, pode ser trocada por outra, consciente ou inconscien
temente, na "prática dissolvente" levada ao extremo por Clarice Lispector, como muito
bem exemplifica o mesmo "pedaço" de textos nos dois livros:
Tudo ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação
matemática das coisas e da lembrança de pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe respira e
exala um finíssimo resplendor de energia. A verdade do mundo, porém, é impalpável.174 No estado
de graça, via-se a profunda beleza, antes inatingível, de outra pes-soa. Tudo, aliás, ganhava uma
espécie de ninho que não era imaginário: vinha do esplendor da irradiação quase mate-mática
das coisas e das pessoas. Passa-va-se a sentir que tudo o que existe — pessoa ou coisa —
respirava e exalava
uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Esta energia é a maior verdade do mundo e é
impalpável.175
Tal processo nos diz que o trabalho da autora não se resume simplesmente em reescrever
um fragmento tornando-o outro, porque diz muito mais: revela o compromisso do escritor
com o próprio fazer literário, seu trabalho com o texto enquanto criação. Não seria mais o
caso de reescrever um fragmento por outro, um sentido por outro, enfim, um texto por
outro texto. No caso das palavras ninho/limbo, não teríamos mais onde recorrer, porque a
origem foi para sempre extraviada, deixando dúvidas quanto à sua existência mas confir
mando cada palavra em sua originalidade. A fundação da palavra estaria em sua própria
materialidade, como a escrita de Água Viva que não se identifica com nenhum objeto — a íntegra neste
trabalho à página 167.
174 LISPECTOR. Água viva, p.89.
175 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.147
não ser o objeto literário. Como nos diz Barthes: "A escritura é uma criação; e, nessa
medida, é também uma prática de procriação."176 Nessa prática, já nos é impossível falar
de começos, de origem, porque o texto literário — tendo aqui o livro Água Viva, como
exemplo — abre-se em rede, ou melhor, em fragmentos, e por fragmentos se cria,
partindo de uma voz que começa por dizer o próprio texto (Água Viva), se multiplica e
acaba dizendo o texto maior da literatura. É no trabalho dessa prática enquanto criação
literária que o autor se sacraliza e sua obra se confirma no tempo, testemunhando que a
literatura se faz de palavras que são ditas para serem reditas, às vezes mal ditas e malditas,
no trabalho material com o papel, por onde elas deslizam como pura matéria significante.
Ainda não há sentido, porque há o trabalho com as palavras, que se trabalham, há o tra
balho com o papel — que é o texto — que resulta em "livros ilegíveis, mas completos. Tão
longe de todas as palavras quanto o desconhecido se encontra de um amor sem objeto."177
Assim retomaríamos o começo, a epígrafe, reescrevendo-a e recopiando-a, melhor, rein
ventando a cópia, para dizer que tinha que existir uma escritura totalmente livre da depen
dência do objeto. Escritura essa que não ilustrasse coisa alguma, a não ser a si mesma, que não
contasse uma história senão a sua que é, por extensão, a da própria criação literária (literatura),
e que se contentasse "em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna
pensamento, onde o traço se torna existência".178 Essa escritura tem nome: Água Viva. 176 BARTHES. O
grão da voz, p.398.
177 DURAS. Escrever, p.18.
178A epígrafe do livro é a seguinte: "Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a
música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura

TODOS OS FINS, O FIM


Não, talvez não seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me
modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. Ou,
pelo menos, não era apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não
posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas
histórias. E nem todas posso contar — uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer
desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras.
Clarice Lispector
Como terminar o que não tem começo?, ajusta-se de forma apropriada à
escritura inacabada de Clarice Lispector. Porém, não se ajusta ao seu projeto literário de
escritor e nem ao projeto que moveu este trabalho. A escritura apresenta-se em sua
materialidade, pelo meio, longe de uma suposta origem, compondo-se de fragmentos que
nada mais são que fragmentos de outros fragmentos de outros textos. O projeto do
escritor, que engloba a escrita que se perde em suas entrelinhas ao se arquitetar no
subtexto do papel, diz o pensamento do sujeito que o pensou e se estrutura a partir da
época em que foi pensado. Assim, o projeto literário de um escritor faz de seu suporte
material o desenho firme de sua época; sendo o contexto sua origem demarcada.
Nosso trabalho procurou, de certa forma, acompanhar o projeto literário de
Clarice Lispector a partir da época em que a autora começou a escrever crônicas para o
Jornal do Brasil (de 19 de agosto de 1967 a 29 de dezembro de 1973), tendo como
material para ser escavado as escrituras dos livros Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres e Água Viva. Constatamos que o projeto do primeiro livro apresentava-se
incompleto, tal como o livro, "falhado", com uma narrativa que começa por vírgula e
termina com dois pontos, e, em que vários outros textos são colados, ficando sobrepostos e criando
um texto à parte, no subtexto, que às vezes reflui na superfície da escritura.
Percebemos também que o projeto do segundo livro apresentava-se inconcluso,
"extraviado", um projeto "desorientado", tal como sua escritura que justapõe fragmentos
aleatoriamente, dispersando os sentidos não só dos fragmentos, mas da própria escritura.
Desses projetos imperfeitos e de suas escrituras inacabadas, procuramos colar nosso
estudo crítico como forma de melhor acompanhar a construção não só das escrituras, mas
principalmente a articulação dos projetos ficcionais do escritor. Aqui, tais projetos se
assemelham porque, tanto num livro quanto noutro, é o arranjo de cada um deles, ou a
pergunta feita ao "ato de escrever" — que se diz nas entrelinhas — que funda a escritura
enquanto tal. Desse modo, ler as escrituras seria muito pouco; agora, ler as escrituras em
sua materialidade com o papel, a escolha pessoal do escritor, a palavra dita e mal dita, ler
o livro em sua corporeidade, é querer ler o dentro e o fora de um desejo maior que move
todo escritor: escrever. Nesse trabalho arqueológico com o texto e seu projeto, o sentido
— qualquer sentido — viria a posteriori, como suplemento.
Por isso, não nos preocupamos com o sentido a princípio. Repetindo o gesto de
recortar e colar praticado pelo escritor, tomamos seu texto e o fizemos nosso no recorte.
Com reserva, é claro, uma vez que não devemos confiar em tudo o que ele diz e nem ler
ao pé da letra o que escreve. Nesse intervalo, além de um corpo autoral ali inscrito,
fazendo dono da palavra, encontramos traços arcaicos de um velho escriba, mero
escrivinhador. E deciframos a assinatura despojada no corpo da escritura: Clarice
Lispector. Se a conclusão é o acabamento da escrita, e aqui, por extensão, deste trabalho,
diríamos, como quer Compagnon, que ela também é o desenlace de outros textos, começo
de uma outra escrita e seu fantasma. Porque, ao pensarmos em concluir o trabalho
começado, descobrimos, para nossa surpresa, que muitos outros fragmentos textuais
ficaram de fora, à margem de nossa leitura, inconcluindo nosso trabalho, mas convocando
o leitor para um outro, a posteriori. Tal constatação, antes de denotar um sentido de
"fracasso", reitera o valor e importância da empreitada crítica efetuada nos textos
clariceanos. Se muito já se estudou sobre a obra da autora, demonstrando o valor de sua
linguagem literária e o lugar ímpar de sua escritura, por outro lado, só mais recentemente
e de forma muito iniciatória, a crítica tem se voltado para o projeto de criação literária da
autora. Entenda-se bem esse projeto como a prática inteligente da autora de rearticular
seus textos já-escritos e transformá-los em um outro, completamente novo e diferente.
Nessa desarticulação, em que entram não só "fragmentos", "notas",
"anotações", "escritos pessoais", "críticas" etc., confirmando uma certa economia
ficcional consciente praticada, há ainda o trabalho, não menos inteligente porque
multiplica a produção, de alterar "títulos" de textos e republicá-los em livros de épocas
diferentes. Essa movença disfarçada de textos, além de influir na recepção da obra da
autora na atualidade, permitindo que novas leituras sejam feitas, diz que o projeto de
criação se constrói por fragmentos, de acordo com o seu pensamento que é, por extensão,
o da época. O que acaba desvelando, mais do que o papel do escritor, o lugar múltiplo, instável e
provisório que ele passa a ocupar na contemporaneidade. Seu projeto, ao dizer
seu compromisso enquanto escritor, contextualiza/atualiza o próprio papel e lugar da
Literatura no mundo.
Mesmo tendo um corpus delimitado, como é o caso deste, ao estudarmos o
projeto fragmentado de Clarice, textos que a princípio deveriam compor nosso recorte de
leitura ficaram de fora, escapando ao grifo dessa. Citemos, como exemplo, o texto
intitulado "Gastão Manoel Henrique" de Fundo de Gaveta (1964) que reaparece
totalmente desescrito às páginas 77 e 78 de Água Viva. No momento da leitura do livro,
tomamos tal texto como teoria, quando falávamos de "simetria" e "falso assimétrico", mas
na leitura grifada, que moveu o trabalho, "saltamos" esse e lemos o seguinte, sobre "o que
é um espelho?". Estamos frisando essa seqüência porque, somente agora, no tempo da
conclusão, que é um tempo de retomar/retornar à origem para concluir e, conseqüen
temente, redizer, reler, lemos que o texto que abre a parte "Fundo de gaveta" de A Legião
Estrangeira é justamente o texto "Gastão Manoel Henrique", seguido exatamente por "Os
espelhos de Vera Mindlin". O que nos faz entender mais do que a "simetria", a "síntese"
da prática de ler-escrever de Clarice: a autora repete, nesse caso, no livro Água Viva a
seqüência dos textos que abrem "Fundo de gaveta", justificando que seu projeto de
criação se arquiteta por uma montagem de leituras e de escritas que se articulam entre si.
Enfim, nosso intuito aqui é menos o de concluir — quando sabemos com
Compagnon que a conclusão é o acabamento da escrita e o desenlace de outra — do que
propriamente tentar mostrar que muito ainda há por pesquisar a respeito da obra de Clarice. Mesmo
quando se trata de uma autora tão estudada, quer seja no Brasil ou no
exterior, sua obra, por um processo circular de jogo e montagem, desarticula qualquer
recepção a ela instituída. Nesse sentido, vejamos o que disse recentemente Walnice
Nogueira Galvão na apresentação "Entre o silêncio e a vertigem" do último livro
publicado que reúne contos/textos de Clarice:
Um último ponto, a exigir cuidados ecdóticos mais apurados. Observase no conjunto da obra de
Clarice Lispector um curioso fenômeno, bastante peculiar, a que se poderia chamar transmigração
auto-intertextual. Com esse abuso polissilábico pretende-se apenas indicar que seus textos são
dotados de mobilidade e que o leitor pode reecontrá-los onde menos espera. Uma crônica já
publicada vai reaparecer integrada a um conto posterior. Um trecho de romance ressurge como um
conto independente. Um conto muda de título e é reeditado em outra reunião de contos. Um texto
volta reduzido a fragmentos, ou vários fragmentos se amalgamam para constituir um texto mais longo.
Um livro se transforma em dois livros. Esse moto-contínuo em metamorfose já foi detectado pela
crítica, aguardando novos estudos.1
Diante disso, concluimos que esta dissertação se quer como mais um estudo que procurou
elucidar, de certa forma, o processo em metamorfose de criação textual levado ao extremo
pela autora. Por outro lado, nessa movença espiralada de textos, ou "transmigração auto
intertextual", sabemos, com Clarice, que a escritura continua para além de seus traços e da
borda do papel:
1GALVÃO. Entre o silêncio e a vertigem, p.11. Tal como Walnice, a esse respeito, remetemos para os estudos críticos de GOTLIB. Um
fio de voz: histórias de Clarice, p.160-195; e Clarice: uma vida que se conta.
Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito.
O melhor está nas entrelinhas.2
2 LISPECTOR. Água viva, p.96.

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ABSTRACT
This essay investigates the process employed by Clarice Lispector in writing
the books Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres and Água viva. Through the
appropriation of her own textual fragments (chronicles), using a process of selection and
assembly, the author pushed her literary project to the textual limit. That project is not
only analysed, but dis-assembled, with the purpose of revealing, in its original state, the
essence of Lispector's criative process.

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