Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
AGRADECIMENTOS
Vera Lúcia Andrade, pela orientação amiga, segura e produtiva.
Paulo Sérgio Nolasco, pela colaboração.
Pais e irmãos, por tudo.
Professores e colegas do Curso de Pós-Graduação em Letras da UFMG.
Geraldo M. Martins e Cristina Ávila, meus amigos.
Ronaldo, Lyslei e Eliane, pela amizade.
CNPq, pela concessão da bolsa de estudos. Pois que dedico esta coisa aí ao Paulinho.
RESUMO
Este trabalho propõe uma investigação do processo operacionalizado por
Clarice Lispector na construção das escrituras dos livros Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres e Água viva. Através da apropriação de seus textos-fragmentos (crônicas),
por um exercício de jogo e montagem, a autora trabalha seu projeto literário até o limite
textual. Tal projeto é mais do que analisado, desmontado, com a finalidade de reconhecer, em sua
fundação, a assinatura daquele que o arquitetou na prática do papel.
SUMÁRIO
TODOS OS COMEÇOS, O COMEÇO .............................................................. 8
CAPÍTULO 1 - LITERATURA, ESCRITURA OU TEXTO –
O LUGAR DO AUTOR/LEITOR NA MODERNIDADE ................................ 14 Autor/leitor no
cenário escritural ............................................................................ 19 Clarice Lispector: um autor
que se inscreve ........................................................... 27
CAPÍTULO 2 - ESCRITURA E ESCRITURAÇÃO –
A PRÁTICA ESCRITURAL DE CLARICE LISPECTOR ............................. 45 A assinatura e a
grafia da escritura ......................................................................... 55 Clarice Lispector: quando
escrever é lembrar ou a escritura da não-memória ....... 68 Uma aprendizagem escritural ou o livro
dos prazeres da tradução ........................ 82 Cenas de uma marcha escritural
............................................................................. 91
CAPÍTULO 3 - CLARICE LISPECTOR – UMA PRÁTICA DE
DESCONSTRUÇÃO ESCRITURAL ................................................................. 101 Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres – uma aprendizagem escritural ou a escritura em palimpsesto
................................................................................. 109 Água viva – uma fragmentação escritural
............................................................... 177 Fragmentos achados e perdidos
.............................................................................. 188 Nunca lerás o que escrevo
...................................................................................... 233
TODOS OS FINS, O FIM .................................................................................... 239
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 245
CAPÍTULO 1
LITERATURA, ESCRITURA OU TEXTO –
O LUGAR DO AUTOR/LEITOR NA MODERNIDADE
Antes de mais nada, pinto a pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura.
Clarice Lispector
Nestes tempos pós-modernos, quando se pergunta sobre o estatuto da criação
do texto literário, sobrepõe-se uma pergunta que diz respeito à encenação do sujeito
(autor-ator/escritor, leitor) no cenário da linguagem literária. Se, antes, decretou-se a
"morte do autor", agora, diferentemente, indaga-se sobre o "lugar" que esse autor/ator
representa na teatralização textual, dividindo com o leitor o mesmo espetáculo na/da
escritura. O lugar que esses atores-personagens ocupam no corpo da escritura, ou que
passam a ocupar na sua prática pela leitura não só desconstrói a identidade do sujeito do
saber, que se pensava dono de uma verdade totalizadora/tantalizadora, como traz para o
centro da reflexão-crítica o processo de produção do objeto literário: o texto.
Cada vez mais, nas obras da modernidade, essa questão do sujeito se coloca
como "sine qua non", quando o objetivo é lê-las criticamente. Em vista disso, justifica-se
estudar/ler a escritura de Clarice Lispector. Para abordar seu processo de criação escritural
é indispensável, desde o início, voltar-se para a figura do autor (escritor) que nele se
inscreve/escreve deixando suas "marcas" e constituindo-se enquanto tal. Seguir as marcas
que vão se inscrevendo pelo tecido escritural é querer, de certa forma, resgatar pela leitura o
trabalho operado pelo escritor (Clarice Lispector) e — o que parece fundamental ainda
— obter uma assinatura possível daquele que ali se erige na escritura pela leitura.
Mas como percorrer o caminho desse autor que se inscreve e se apaga durante
a escritura clariceana que se escreve, desprovido de uma identidade/totalidade e de uma
verdade que lhe garantam o seu papel representado na cena do discurso e no corpo da
escritura? Desprovido de um lugar em que se pensava eterno, e longe de qualquer origem
e assinatura, esse autor/ator (escritor: Clarice Lispector) se desfaz na linguagem literária
para dela renascer alhures (sempre em outro lugar). Numa obra como a de Clarice, em
que cada escritura (texto) é a tentativa apaixonada de chegar ao seu esvaziamento, ao seu
fracasso, ao eu sem "máscara",1 torna-se quase impossível situar esse autor que se
multiplica para dentro, ressurgindo a cada nova escritura como um "eu enviesado".2
Em se tratando de Clarice Lispector, não se pode esquecer do fato de que ela
fez de sua vida matéria para sua ficção. Em carta à própria autora sobre o livro Água Viva
(nessa época intitulado Objeto Gritante), José Américo Pessanha observou:
E, se como você mesma sabe, fazer literatura nunca significou para você o que geralmente
significa para o literário "profissional" — é seu modo de sobreviver adiando abismos, como
Xerazade que inventa estórias para adiar com palavras as ameaças — aquela inerência do escrito ao
vivido talvez crie impasses de que você terá que ter consciência para superar (quer do lado do
vivido, quer do lado da atividade literária).3
1 Cf. NUNES. O drama da linguagem, p.155.
2 Cf. LISPECTOR. Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector), p.7.
3 PESSANHA, citado por GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.406.
E continua Pessanha: "Tento me explicar melhor: você se transcendia e se 'resolvia' em
termos de criação literária: agora a 'literatura' desce a você e fica (ou aparece) como
imanente ao seu cotidiano; você é seu próprio tema."4 Isso tudo, por sua vez, só vem
confirmar que, em Clarice Lispector quer seja do mundo da ficção para o mundo da vida
real (do escritor), ou deste para o mundo da ficção, o que se dá nesse intervalo entre
escritura e vida/vida e escritura é nada mais que uma (des)aprendizagem do autor que se
inscreve no tempo da escritura e, ao mesmo tempo, do leitor no tempo da leitura.
O caminho que aqui nos parece interessante percorrer, para pontuar o lugar do
sujeito-escritor na produção escritural de Clarice Lispector, se limita ao tempo em que a
autora escreveu crônicas para o Jornal do Brasil: de 19 de agosto de 1967 a 29 de
dezembro de 1973.5 Essa escolha se dá por dois motivos básicos e fundamentais:
primeiro, porque nessa época Clarice escreve os livros Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres (1969) e Água Viva (1973) — livros esses objeto de estudo deste trabalho; e,
segundo, porque, ao escrever para o Jornal, aquela "máscara" de escritor (autor)
"anônima" e "discreta" começa a ser desfeita para dar lugar a um sujeito-escritor que
reaparece de forma mais exposta na cena do discurso e do texto (crônica), transformando
se em um personagem da escrita a ser lido/construído pelo sujeito/leitor. Nessa época, ao
escrever seus textos-crônicas para o Jornal do Brasil, indaga-se sobre sua identidade,
sobretudo. Desse modo, a partir de "conselhos" de seus leitores como "Seja você mesma", 4 Idem.
5 Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.373.
ela se pergunta: "quem sou eu? como sou? quem sou realmente? e eu sou?". Se esses
pequenos-textos serviram para que ela se indagasse sobre seu eu pessoal e enviesado,
sobre sua identidade e sobre seu processo de criação, serviram ainda para que ela
constatasse que, mesmo em seus livros, no qual se pensava "anônima" e "discreta", se
delatava.
De acordo com Nádia Gotlib, "A jornalista não só assina seu próprio nome,
Clarice Lispector, como nesses textos trata diretamente de si mesma". E, ainda, segundo
Gotlib, "embora afirme não ser esta a sua intenção, insere também um passado seu,
inclusive literário, através de textos diversos que já produziu e publicou anteriormente:
contos, crônicas, capítulos ou trechos de romances".6
A preocupação maior da autora nesses pequenos textos era com o que publicar,
o que escrever, ou melhor, o que contar. Diante de tal dificuldade, a autora acabava
publicando o que tinha à mão: "Eu estava escrevendo o livro, então eu detestava fazer
crônica. Então eu aproveitava e botava — não era crônica não, era um texto que eu
publicava."7 Assim, ao praticar esse contrabando de seus próprios textos, Clarice acaba
des/ficcionalizando o próprio eu: o eu do fragmento do livro, ao ser publicado como
crônica, passa por uma desficcionalização, tornando-se mais pessoal, ou melhor,
ficcionalizando-se em outro nível. Diferentemente, ao levar um fragmento-crônica para
dentro da fragmentação textual do livro (Água Viva, por exemplo) a autora ficcionaliza 6 GOTLIB.
PERRONE-MOISÉS. Texto, crítica, escritura, p.49. 19 PERRONE-MOISÉS. Texto, crítica, escritura, p.49.
de origem/originalidade, a preocupação do escritor centra-se no reescrever; a escritura —
perdido o original — nada mais é que uma escritura paralela, isto é, constrói-se por uma
apropriação, lembrando, por um processo intertextual, de outras escrituras e de si mesma.
Ao leitor, que tem a impressão de estar sempre chegando tarde demais para assinar a
escritura ou para o próprio ato enunciativo, só resta perguntar: "Quem está falando?". Por
certo, não é ele, como também não é o autor. Seu trabalho, bem como o do escritor
(reescrever), acontece sempre depois: reler.
Entre os processos — reescrever (autor), reler (leitor)/reler (autor), reescrever
(leitor) — extravia-se toda e qualquer noção de origem em proveito de uma escritura que
se escreve e que se relê à revelia de seus supostos autores(?).21 Esse mundo escritural
sobre ruínas e sem origem, do qual o registro original foi extraviado, e em que, por isso,
escritor e leitor sabem ocupar seus papéis com reservas na escritura que se escreve, só
vem confirmar uma suspeita: "A fragmentação e a reprodução também são condições de
subjetividade".22 Essa constatação vem nos dizer, entre outras coisas, que, em se tratando
da pergunta feita ao processo de produção escritural, tudo está para ser construído, ou,
para usar uma expressão barthesiana, deslindado23 pela leitura, inclusive as condições em
que se dá essa leitura. 20 BARTHES. O prazer do texto, p.80.
21A esse respeito, ver o texto "Uma aprendizagem escritural ou o livro dos prazeres da tradução", neste trabalho, p.83.
22 HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, p.116.
23 BARTHES. O rumor da língua, p.69.
Enfim, em meio a cópias, intertextos e paródias, mundo este que constitui a
produção escritural contemporânea, não devemos nos esquecer jamais que o que temos
para trabalhar — o texto — é um "sistema de signos". Seguindo as palavras de Hutcheon,
é a partir desses sistemas de significação que atribuímos sentido ao real. É, ainda, nesse
mundo que se apresenta o sujeito (autor, leitor e texto) e se percebe que suas linguagens
são arbitrárias. Parece só restar ao crítico estudar esse mundo que se re/presenta em
escritura para entender como veicula seu "saber" (conhecimento) e o saber do outro, além de
desconstruir/construir o processo de produção escritural que produz e determina sentidos.
Clarice Lispector: um autor que se inscreve
Perdida a imagem paterna do autor enquanto aquele sujeito que assinava sua
obra, mas que na contemporaneidade retorna através de um corpo que se inscreve na
escritura e é reconhecido/reconstruído pela leitura, a figura desse que escreve — o escritor
— entra em cena para atestar a problemática que permeia o processo de escrever na
modernidade. Para tanto, o escritor subscreve-se a si nesse processo, apresentando-se
como um tema da produção e ao mesmo tempo questionando a (im)possibilidade dessa
produção nos dias de hoje. Tal é o processo de criação de Clarice Lispector. Seus
pequenos textos — crônicas, anotações e fragmentos — são um exemplo dessa questão.
Por isso, procuraremos, a partir de agora, rastrear esses textos para ver como se inscreve
neles o escritor (Persona do autor) e sua pergunta sobre o próprio processo de produção
que traz em sua construção respostas sobre o autor, o leitor e o texto. No texto-crônica, ou texto-
fragmento, publicado em 2 de março de 1968
intitulado, precisamente, de "Persona",24 Clarice se propõe a falar da palavra "pessoa",
que é um dos sentidos do termo persona.25 Esse texto parece ser um bom começo porque,
ao discutir a respeito da persona e sua máscara, é uma reflexão sobre o próprio papel do
escritor (Clarice) e a "máscara" que ele usa no cenário textual, contribuindo para a
teatralização que, segundo Barthes, ilimita a linguagem.26 Soma-se a isso o fato de que, ao
refletir sobre questões como essa (persona) e muitas outras relacionadas ao papel do
escritor, do leitor e do texto, Clarice nos permite ler uma outra Clarice (escritor) mais
pessoal, menos intimista, dialogando em silêncio com seu leitor. Por esse viés de leitura,
tem-se um novo escritor (autor) e uma obra original a ser lida: ler Clarice Lispector
tomando-se como base seus pequenos textos, meio esquecidos da crítica em prol dos
grandes, é buscar a descoberta de como se constroem, na verdade, esses grandes textos,
sobretudo, e principalmente, as últimas obras da autora.27
Essa leitura às avessas nos permite compreender o processo de produção
escritural clariceano, uma vez que considera que esses pequenos textos, além de
fundadores do grande texto, historicizam o sujeito-autor no texto da autora, permitindo 24 LISPECTOR.
A descoberta do mundo, p.99.
25 Costa Lima, no ensaio "Persona e discurso ficcional", afirma: "A persona não nasce no útero senão que da sociedade. Ao tornar-
se persona, assumo a máscara que me protegerá de minha fragilidade biológica. (...) Não custa esforço entender-se que a persona só
se concretiza e atua pela assunção de papéis. É pelos papéis que a persona só se socializa e se vê a si mesma e aos outros como
dotados de certo perfil, com direito pois a um tratamento diferenciado." COSTA LIMA. Anais..., v.1, p.117.
26 BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p.9.
27Cita-se, como exemplo, os livros Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), Água viva (1973), Onde estivestes de noite
(1974) e A via crucis do corpo (1974).
que o leitor acompanhe o papel do escritor (sua reflexão crítica) em seu ofício. Através da
prática leitural, que não exclui a produção marginal do autor, o leitor acaba construindo
vida e obra desse autor, arrolando documentos mais originais, uma vez que voltou sua
leitura para a origem do corpo escritural.
Em seu texto-crônica "Persona", já aqui referido, Clarice nos lembra que, no
antigo teatro grego, os atores, antes de entrar em cena, pregavam no rosto uma máscara
que representava, pela expressão, o que o papel de cada um deles iria exprimir.28 Mesmo
sabendo que as "qualidades de um ator está nas mutações sensíveis de seu rosto, e que a
máscara as esconde", Clarice indaga-se por que essa idéia dos atores entrarem no palco
sem rosto próprio lhe agrada tanto. Talvez uma resposta esteja no papel desempenhado
pelo próprio escritor (Clarice) que, ao representar o seu papel na cena da escritura,
"mascara sua máscara" de escritor, tornando-se, assim, uma figura/ator ficcional que se
origina na cena especular da escritura. Ocorre aí também, nesse tempo, um
descentramento do eu de quem narra:29 o escritor aponta sua máscara com o dedo. Esse
descentramento, no entanto, não deve ser lido como negação do sujeito-escritor porque,
nas palavras de Hutcheon, "descentralizar não é negar"; antes, descentralizar o sujeito
escritor é apontar seu lugar provindo da escritura. Derrida afirmou que "o sujeito é 28 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.100. 29 NUNES. O drama da linguagem, p.151.
absolutamente indispensável. Eu não destruo o sujeito; eu o situo".30 Situar aqui deve ser
entendido como apontar o lugar ocupado pelo escritor na contemporaneidade.
De acordo com Barthes, o escritor pode ser lido como um efeito de linguagem,
nascendo simultaneamente a seu texto, porque "outro tempo não há senão o da
enunciação, e todo texto é escrito eternamente aqui e agora".31 Não havendo outro tempo
que não esse da enunciação, é nele que o leitor lê/constrói a escritura, constrói a si e o seu
autor e assina o papel de leitor-autor/produtor.
Lendo o texto-crônica "Persona", ainda podemos dizer, segundo a própria
autora, que o primeiro "gesto voluntário" do escritor é escolher sua própria máscara. Ao
escrever, ele está fabricando sua própria máscara, uma vez que ela "é um dar-se tão
importante quanto o dar-se pela dor do rosto". Mesmo que amedrontador, o escritor tem
consciência de que usar a máscara é "representar um papel" para o Outro e para o leitor.
Pode-se dizer, com alguma reserva, que ele só ocupa esse lugar de escritor enquanto faz
uso da máscara. Tirada essa máscara, ele deixa de ser. Ao contrário, ao usá-la, ele
representa a si e representa o mundo — escreve a escritura — e, enfim, pode ser: "uso
uma máscara"; logo, "sou uma persona".
Em outro texto-crônica intitulado "A bravata,32 publicado em 26 de outubro do
mesmo ano, como no primeiro texto (Persona), Clarice volta a discutir a questão da
persona, ao se referir à personagem Z. M.. Essa — como o escritor — humildemente 30 DERRIDA citado
por HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, p.204. 31 BARTHES. O rumor da língua, p.68.
"esquecia que ela mesma era fonte de vida e de criação". Por outro lado, Z. M. — agora
diferentemente do papel do escritor — ao se lembrar que havia uma "festa" para ir, e
porque não tinha coragem, "pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto
parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: (...). Esse alguém
era exatamente o que ela não era". Aqui, esse outro pode ser tomado como o papel
desempenhado pelo escritor. Esse, diferentemente da personagem da crônica, existe
somente por meio de sua máscara, ou melhor, quanto mais a usa na encenação escritural,
mais se dá a ler enquanto tal. A personagem Z. M. usa a máscara para obter uma coragem
que não era dela, mas de uma outra persona sua — "Ah persona, como não te usar e
enfim ser!". O escritor, ao contrário, é esse eu que se dá a ler com base na máscara que
não o incomoda nunca. Diferentemente de Z. M. que, na "festa", sabia que tinha um outro
eu (outro rosto) por trás daquele eu/ela que ali se representava falsamente, o escritor,
valendo-se de uma farsa, se lê a partir da própria "festa" da escritura. Enquanto a
personagem Z. M. "viu a persona afivelada no seu rosto", o escritor, no espetáculo da
escritura, é "a persona afivelada no seu rosto". Z. M. observou que "a persona tinha um
sorriso parado de palhaço": o escritor é essa encenação/representação parada, mas não
estática.33
Como a escritura clariceana, o escritor "ficcionista" volta-se sobre si mesmo,
em busca de um eu sem máscara, desconfia-se de seu papel e se encontra perdido na 32 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.212.
33 As crônicas Persona e A bravata aparecem reescritas às páginas 88 e 93 do livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Voltaremos a essa questão ao tratarmos da construção escritural desse livro.
construção da escritura. É sabedor — enquanto sujeito-escritor na contemporaneidade —
de que a narrativa chegou ao seu limite, isto é, que o narrar narra não só o seu fracasso e a
sua perda, como também a sua continuidade, e de que a escritura se constrói
desconstruindo-se. A respeito da crise e da impossibilidade de narrar/contar, Barthes
assim resumiu ao comentar sobre a narração da novela Sarrasine de Balzac:
A mensagem está parametricamente ligada à sua performance; não há, de um lado, enunciados e
de outro enunciação. (...) como sentido, o assunto da história encerra uma força recorrente que se
volta contra a palavra e desmitifica, destrói a inocência de sua emissão: o que é contado é o contar.
Finalmente, não existe objecto da narrativa: a narrativa não trata senão dela própria: a narrativa
conta-se.34
Em se tratando do processo escritural de Clarice Lispector, pode-se dizer que
sua escritura é uma escritura que se escreve, porque, ao se escrever/inscrever uma
escritura ou fragmento, retoma e reescreve um outro fragmento/escritura, deixando,
assim, um texto sempre a recomeçar. Essa prática escritural talvez tenha sua possível
completude na prática leitural, em que uma complementa a outra, tornando-se, por isso,
indissociáveis. Pelo processo de ler, o leitor lembra-se de um outro fragmento que, por
sua vez, reescreve outro, e, nesse recorte leitural — que é também escritural —, o leitor
deixa de inserir outros, distanciando-se, desse modo, de qualquer noção de texto-origem,
mas fundando aí, nessa "falta" esquecida e inconsciente, a leitura.35 Seguindo o
pensamento barthesiano, podemos dizer que, quanto mais o leitor esquece de somar os 34 BARTHES. S/Z,
p.158.
35 A esse respeito, ver o texto "Clarice Lispector: quando escrever é lembrar ou a escritura da não-memória", neste trabalho, p.69.
fragmentos escriturais, mais ele lê, uma vez que somar corresponderia a uma exatidão,
uma totalidade, enfim, uma leitura acabada. A escritura clariceana é, como já dissemos,
uma escritura que se escreve, isto é, ela é da ordem da continuidade: "Tudo acaba mas o
que te escrevo continua."36 Desse modo, podemos reiterar, ainda com Barthes, que essa
multiplicidade de fragmentos, que concorre para a escritura clariceana, é o que permite a
permanência do leitor na verdade do texto clariceano.
Nesse cenário escritural fragmentário e descontínuo que é o texto clariceano, o
escritor encontra-se para sempre perdido, isto é, "sabe" que ele não é mais ele, mas apenas
representa um papel em que o seu eu aparece incompleto e "enviesado". No texto-crônica
"Se Eu Fosse Eu",37 Clarice parece alertar o leitor para o fato de que o eu/ela está sempre
representando um outro papel (outra pessoa), porque, segundo ela mesma, "se eu fosse eu
parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no
desconhecido". Nesse mesmo texto comenta: "Já li biografias de pessoas que de repente
passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida." Talvez tudo isso somente
para explicar ao seu leitor "que se eu fosse realmente eu, os amigos não me
cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado". Somada à questão:
"como é que se escreve?", a pergunta ao eu é uma constante na produção escritural da
autora, que se encaminha para a pergunta maior, a sua própria escritura. 36 LISPECTOR. Água viva, p.96.
37Esse texto-crônica aparece também reescrito nas páginas 139 e 140 do livro Água viva. LISPECTOR. A descoberta do mundo,
p.228.
No texto-crônica "Perguntas Grandes",38 Clarice registra que seus leitores lhe
escreviam dizendo: "Seja você mesma." Segundo ela, a partir daí vieram perguntas
terríveis como: "quem sou eu? como sou? quem sou realmente? e eu sou?" Jamais soube
responder, e sua escritura é uma prova disso. Ela conclui esse texto da seguinte maneira:
"Mas eram perguntas maiores do que eu." Afirmativas como essa mais as perguntas que
estamos propositalmente pontuando neste texto vêm reforçar que o eu do escritor sempre
esteve disperso nos seus escritos (fragmentos) e disseminado em sua escritura, não
ocupando um lugar nem além nem aquém de sua produção, mas se eregindo ali, no tempo
de sua produção (enunciação). Vale lembrar aqui a nota do livro Uma Aprendizagem, em
que a autora confessa: "Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele
está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu."
E assina: "C. L.". Através dessa nota e do que vimos apontando, podemos arriscar a dizer
que a origem do escritor — se é possível falar em origem de escritor — é a sua escritura.
Dela, ele se origina e se assina enquanto autor. Com base nesse texto que se escreve
(porque eternamente inacabado; logo, texto da não-origem, mas que vem das diferentes
leituras/culturas e a elas retorna, diferente), cria-se um espaço para que o escritor
inscreva-se a si: "Eu sou mais forte do que eu."
De acordo com Barthes, esse eu que diz eu nada mais é que o sujeito
conhecido da linguagem — jamais uma pessoa —, que só existe no tempo da enunciação
definido enquanto tal, e que é sustentado pela linguagem e a mantém no sentido de 38 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.267.
exauri-la.39 Esse eu que lemos na escritura clariceana (que vem dela e a ela retorna),
jamais estaria preso ao eu de uma autobiografia tradicional, porque se enuncia da
escritura, a partir dela enquanto lugar de origem. O que não quer dizer que estivesse por
trás da escritura, porque não há possibilidade de que haja nenhum sujeito (autor e/ou
leitor) "antes" da escritura. Ele nada mais seria que mais uma citação dessa escritura. E o
sujeito-leitor, ainda segundo Barthes, "é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que
nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura". Esse leitor impessoal é
o destino mesmo para onde se dirige o todo da escritura (o texto); "ele é apenas esse
alguém que mantém reunidos em um único campo todos os traços de que é constituído o
escrito".40 Por isso, esse leitor pode ser lido como mais uma citação sem aspas da
escritura: uma citação que se inscreve pela leitura.
Barthes, ao comentar sobre o eu na obra proustiana, é quem mais uma vez nos
esclarece o fato de que o autor coloca, em narrativa, não a sua vida, mas "seu desejo de
escrever". Isso vale especialmente para Proust que não contou sua vida mas percebeu que
ela tinha a significação de uma obra de arte, podendo ser tomado como o desejo que move
qualquer escritor: escrever. Fundamentado nesse desejo, podemos dizer que a vida do
autor acaba se extravasando para a obra, mas é, por assim dizer, uma vida "desorientada".
O eu que melhor sintetizaria esse escritor-autor seria aquele eu enviesado clariceano, isto
é, aquele que resume vida e ficção numa só escritura, já citado neste texto. 39 Cf. BARTHES. O rumor da
língua, p.67. 40 Ibidem. p.70.
Se tomarmos o texto em que aparece escrito esse eu enviesado, intitulado
"Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector)", poderíamos nos perguntar: Que
Autor é esse? que Clarice é essa? Como lermos esse texto-dedicatória? Quem dedica o
quê e a quem? Como lemos esse Autor que se confunde com a autora "(Na verdade
Clarice Lispector)"? Na verdade, talvez possamos dizer que temos nesse texto um sujeito
escritor escrevendo a um sujeito-leitor ("vós") partindo de sua vida pessoal/ficcional: um
eu enviesado entre o real e a ficção. Mas isso seria reduzir demais uma questão complexa
como essa: falar do sujeito implica em falar, cada vez mais, de um lugar enviesado,
movediço, como falar do escritor implica em perder-se nos meandros de sua escritura, em
busca de traços arcaicos/biográficos (Biografemas) dispersos no cenário escritural à
espera que o leitor, por meio de seu trabalho rudimentar de leitura, os situe enquanto parte
de um corpo que se escreve/nasce da escritura. Correndo o risco de não darmos conta de
decifrar esse eu enviesado da "Dedicatória do Autor", só nos resta deixá-lo em silêncio,
porque nos falta resposta, e copiar o final desta dedicatória de um Autor des/conhecido:
"Trata-se de um livro inacabado porque lhe falta a resposta."41
Livro inacabado, escritura que se escreve, sujeito em processo porque discurso
descontínuo, por aí circula a filosofia pluralista do sujeito para Barthes, na qual o homem
assume a sua multiplicidade, criando uma nova ética do signo, contribuindo para um novo
posicionamento face ao mundo contemporâneo. Com base nessa escritura que se escreve,
tal qual seu sujeito que nela deixa suas marcas, o leitor deseja o autor do "seu" texto: "Eu 41
LISPECTOR. A hora da estrela, p.7-8.
desejo o autor: tenho necessidade de sua figura..."42 Ainda de acordo com Barthes, "a
perda do sujeito na escritura nunca é mais completa (tornando-se o sujeito totalmente
inidentificável) do que nesses enunciados cujo despegamento da enunciação se produz ao
infinito",43 como na escritura clariceana e nos seus textos-crônicas (fragmentos escriturais)
em que o escritor problematiza o "seu" eu e o seu processo de produção.
Pelo que vimos assinalando até aqui, a respeito da inscrição do sujeito na
escritura, dela (re)tornando sempre em outro lugar, constatamos, num crescendo, que o
escritor clariceano não traz consigo uma aprendizagem que preceda o seu ofício; antes,
ele investe a si na construção de sua escritura, que é, ao mesmo tempo, a sua construção.
O escritor vai se inscrevendo — dando-se a reconhecer enquanto tal — por toda a
escritura, uma vez que ela se escreve descontinuamente. Não é por acaso que, no texto
crônica "Fios de Seda",44 Clarice sugere um conselho ao leitor: "Avisem-me se eu
começar a me tornar eu mesma demais. É minha tendência." Esse "tornar eu mesma
demais" pode ser entendido como o começo de um certo esquecimento inconsciente do eu
do escritor ficcional, para um encontro com o eu pessoal sem máscara.
Muitas vezes, esse descarrilamento entre esses "eus" (ficcional/pessoal), essa
multiplicidade de sujeitos que vem da escritura e nela se dispersa, leva o escritor a
escrever à vontade: "Sem muito sentido, mas à vontade"; e, inclusive, a dizer: "Que
42 BARTHES. O prazer do texto, p.38.
43 BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p.90.
44 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.290-291.
importa o sentido? O sentido sou eu."45 Como podemos então perceber, essa busca — que
quase sempre resulta num desespero "sobre-humano de aprendizagem" — do escritor pela
palavra "intocada" através da linguagem, essa investida pela expressão perfeita da
escritura, acaba devolvendo o escritor ao encontro de si mesmo: "E, se houver o que se
chama de expressão, que se exale do que sou. Não vai mais ser: Eu me expresso, logo
sou. Será: Eu sou; logo sou."
Como já dissemos anteirormente, nessa época em que Clarice escreve seus
textos-crônicas para o Jornal do Brasil (período este de 19 de agosto de 19667 a 29 de
dezembro de 1973), um novo escritor se encena deixando seus traços nesses fragmentos
textuais/pessoais. Segundo Nádia Gotlib, "essa atividade trouxe ao público uma Clarice
que já existia — a Clarice-cronista —, mas numa nova postura narrativa".46 Essa nova
postura narrativa, por sua vez, vai se estender por toda a produção escritural da autora a
partir dessa época, sobretudo nos livros Uma Aprendizagem, publicado em 1969, e Água
Viva, de 1973. Mais adiante, neste trabalho, trataremos especificamente do processo de
construção escritural dessas obras.
Entretanto, nos interessa adiantar aqui que essas obras foram escritas e
publicadas nessa época, porque queremos chamar a atenção para o fato de que essas
escrituras se tecem e se escrituram enquanto tal, num subtexto mais pessoal do escritor
que se diz nas suas entrelinhas. Essa constatação nos permite avaliar, ainda, que não se 45 Ibidem. p.292-
293.
trata mais de escrituras "mestras" ou grandes escrituras, uma vez que elas só são
reconhecidas enquanto escrituras, quando desvendamos que suas construções se dão por
intermédio de uma infinidade de outras escrituras (fragmentos) que se escrevem ao
mesmo tempo.
A respeito da construção desses textos-crônicas, podemos dizer, então, que eles
se dão, sobretudo, pela problematização do eu que escreve (a pessoalidade), sua
identidade e, por último, sua assinatura nesses textos que tratam do próprio escrever.
Erige-se aí, nesses textos fora de qualquer gênero, a figura de um novo escritor clariceano
que se permite ler a si de forma mais aberta. Segundo Gotlib, "o espaço jornalístico
propicia-lhe essa revisão de si". Desse modo, somando-se esses pequenos fragmentos
textuais produzidos entre as décadas de 60 e 70, tem-se um escritor (Clarice Lispector)
revendo/relendo sua produção e a si ao mesmo tempo. De acordo com Gotlib, "aí está a
Clarice Lispector de agora (...) recolhendo as várias Clarices de todos os tempos e, em
certos momentos, revendo-a. Ou melhor: relendo-a."47 Assim, através dessa "procura
humilde", desse "modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento",48 Clarice
acaba fazendo sua própria autocrítica a respeito de seu novo processo de escrever: "Eu
quero escrever, algum dia talvez. Embora sentindo que se voltar a escrever, será de um
modo diferente do meu antigo: diferente em que? Não me interessa."49 Além de
47 GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.377.
48 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.361.
49 Ibidem. p.303. Essa citação faz parte do texto-crônica "Autocrítica no entanto benévola", publicada em 14 de julho de 1969, ano da
publicação do livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
autocríticas como essa e de perguntas a respeito de seu processo de escrever, fazendo
disso seu próprio tema de inúmeros textos-crônicas, é nesse ano (1969) que Clarice
publica o livro Uma Aprendizagem. Desse modo, baseando-se no contexto que
compreende essa época da autora, sobretudo pelo que ela está escrevendo no momento,
como também a intensidade de sua produção, constatamos que ela está lendo a si
enquanto sujeito-escritor e relendo-a por um processo de apropriação/aproveitamento de
seus textos já escritos. Numa carta que escreve ao filho Paulo, em maio de 1969, mês da
publicação do livro, Clarice escreve: "As crônicas do Jornal do Brasil não me preocupam
porque tenho um punhado delas, é só escolher e pronto. Além do mais eu pretendo me
plagiar: publicar coisas do livro A Legião Estrangeira, (...)."50 E assim esse escritor não
só escreve como se reescreve, e se inscreve, como acaba propiciando que suas
"personagens" participem dessa aprendizagem escritural que é a sua escritura. Muito
apropriadamente Nádia Gotlib observou como se dá a construção do livro Uma
Aprendizagem: "Por histórias que são contadas, mininarrativas enxertadas no romance,
pois aí também ambos são contadores: falam, lêem e escrevem."51
De acordo com o que vimos tratando, e segundo Gotlib, os textos publicados
no Jornal do Brasil podem ser considerados um extenso diário de Clarice Lispector.
Acrescentando-se a isso o discurso da personagem Lóri que se aproxima do "diário
íntimo" ou "autocomentário lírico", constata-se, num crescendo, que, nessa 50 Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida
que se conta, p.386. (Grifo nosso)
des/construção de linguagem, um eu se transforma em outro, e esse novo escritor, em
reverência, quase deixa sua máscara cair, um pouco sem medo que seu eu pessoal se
apresente por completo para o ouvinte.
Através do seu processo de escrever, o escritor vai se descobrindo, constrói
uma linguagem para ser imediatamente ultrapassada em função de sua busca para dizer a
última linguagem que desemboca no silêncio da escritura. Não é por acaso que, para
Clarice, "escrever é procurar entender", assim como qualquer compreensão possível se dá
"através do processo de escrever". É essa tentativa, por sua vez, que move a prática
escritural clariceana: "Escrevo porque não quero as palavras que encontro: por
subtração."52
Em vista disso, podemos dizer que seu processo de escrever se constitui,
basicamente, em uma desaprendizagem não só do sujeito-escritor, do "saber"
"organizado, mas, sobretudo, a partir de um não-entender, um não-saber: "Entender é
sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais
completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom."53 Não é
por acaso que o dom maior desse escritor foi trabalhar sua linguagem (a linguagem) até
uma não-linguagem: "O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha
linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu."54 Essa
"desistência" pela linguagem, alcançada pelo escritor clariceano, é o estado pleno de 52 BARTHES. O
prazer do texto, p.54.
53 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.253-254.
linguagem. O silêncio que emerge aí, dessa linguagem/escritura que não se comunica, é
produtor de sentido (ele é o sentido), uma vez que esse silêncio não significaria jamais o
vazio. Tratando aqui diretamente do uso da linguagem do texto clariceano, constatamos,
de acordo com Octávio Paz, que a autora usa uma linguagem que não seria linguagem: "O
duplo do mundo e não sua tradução nem seu símbolo." Ainda segundo Paz, "o caminho
da escritura poética resulta na abolição da escritura: no final, ele nos obriga a enfrentar
uma realidade indizível".55 Essa realidade indizível, no texto clariceano, equivaleria, por
assim dizer, ao silêncio que não corresponde ao fracasso da linguagem, mas à própria
significação escritural. E por ser um silêncio fundador de sentido e ser o indício de uma
totalidade significativa, segundo Eni Orlandi, esse silêncio, por sua vez, acaba atestando
que não há só uma incompletude da linguagem como também do próprio sujeito.56 O
silêncio significativo que se nomeia e se diz no tecido da escritura clariceana existe,
porque a autora não acreditava nem um pouco na capacidade da linguagem para dizer o
que quer que fosse. Nas palavras de Leyla Perrone-Moisés, "ela operava emergências de
real na linguagem, urgências de verdade." Por isso, continua Leyla, "resta ao leitor
receber suas mensagens em branco, e ouvir o que de essencial se diz em seus silêncios."57
Se a linguagem literária de Clarice se constrói nesse silêncio escritural, não
muito diferente, seu sujeito-escritor faz de seu "processo de escrever" uma reflexão
54 LISPECTOR. A paixão segundo G. H., p.172.
55 PAZ. O mono gramático, p.119.
56 Cf. ORLANDI. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p.70.
57 PERRONE-MOISÉS. Flores da escrivaninha, p.177.
incessante sobre o escrever no momento mesmo que o pratica. Não é por acaso que
Barthes, em Aula, vai afirmar que entende por literatura "o grafo complexo das pegadas
de uma prática: a prática de escrever";58 e define um escritor como o sujeito dessa prática.
A prática escritural de Clarice autentica que a escritora faz de sua busca pela linguagem
sua própria prática, de forma que o monumento escritural se eregisse ali, diante do olhar
desse leitor-escritor, e fora de qualquer tempo, a não ser o tempo dessa leitura-escritura. Com
isso o escritor-Clarice reforça que sua prática de escrever se encaminha para uma "escritura
que se escreve", porque sempre inacabada, descontínua como seu sujeito, fragmentária desde
sua não-origem, enfim, condenada eternamente a recomeçar. Afinal, como muito bem nos
advertiu Barthes, "só a escritura, enfim, pode desdobrar-se sem lugar de origem".59
Através desses textos-crônicas clariceanos, concluímos que nos é permitido
mapear sua teoria poética. Ao escrever sobre o papel e/ou lugar do escritor, sobre seu
"próprio método de trabalho" e sobre o escrever/ contar, Clarice acaba nos revelando o
seu processo de produção escritural. No texto-crônica "Lembrança da Feitura de um
Romance",60 chega mesmo a dizer que não sabe "redigir", não consegue "relatar" uma
idéia, enfim, que não sabe "vestir uma idéia com palavras". O que só vem reforçar, entre
outras coisas que, para a autora, escrever e viver sempre foram um processo único e
indissociável — como ela mesma assim o definiu: "viveria, não usaria palavras". Esse
escrever, ao se aproximar mais do viver do escritor, aqui pode ser entendido como uma 58 BARTHES.
Aula, p.17.
59 BARTHES. O rumor da língua, p.127.
prática de escrever que se afasta da concepção clássica ou tradicional de fazer romance
(de escrever), uma vez que não mais se ocupa da "descrição" e da "moldura".61 Através
dessa prática de "escrever por intermédio de desenhar na madeira", o escritor clariceano
desenha "linhas e linhas, uma cruzando a outra", como um texto reescreve outro texto,
formando, assim, o verdadeiro tecido escritural clariceano — o texto —, longe de
qualquer "moldura" que o delimite enquanto texto. Sobr*e isso, a autora se questiona:
"Escrever não é quase sempre pintar com palavras".62 Clarice tentou trabalhar essa prática
na construção da escritura do livro Água Viva. Nele, escrever e pintar são uma mesma e
constante aprendizagem. Ali Clarice inventa o seu próprio método de escrever/desenhar
com palavras. O que a autora disse não propriamente sobre o livro, mas sobre o Escrever63
é aqui sumamente oportuno: "Eu tinha que eu mesma me erguer de um nada, tinha eu
mesma que me entender, eu mesma inventar por assim dizer a minha verdade." Ainda
nesse texto, no qual a autora fala da época em que começou a escrever, encontramos uma
explicação para a compreensão de seu processo de escrever descontínuo e fragmentário:
"Comecei, e nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam um ao outro — o
sentido se contradizia, o desespero de não poder era um obstáculo a mais para realmente
poder." Não nos esquecendo que viemos mapeando esses "dizeres" fragmentados do
escritor com uma certa reserva, como se estivéssemos, o tempo todo, desconfiando dele,
60 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.438.
61 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.412.
62 Ibidem. p.296.
63 Ibidem. p.439.
constatamos que escrever, para o escritor clariceano, sempre foi "um esforço quase sobre
humano de aprendizagem, de autoconhecimento". Talvez, por esse motivo Clarice tenha
resumido sua vida desta forma: "minha vida tem que ser escrever, escrever, escrever?"64
Sim, responde-ríamos com base em sua escritura. Ao que ela completaria: "O personagem
leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e
com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é
o escritor."65
A mise-en-scène que o sujeito-escritor-clariceano encena no palco de sua
escritura concorre para a figura-pessoa Clarice que ela trouxe consigo por toda sua vida:
"Um estar ali e não estar ali, simultaneamente, num encontro desencontrado",66 como o eu
enviesado que escreve e é inscrito, ao mesmo tempo, entre o real e a ficção, a escritura e a vida —
lugares limítrofes — e, por isso, para sempre dissituado.
64 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.419.
65 Ibidem. p.97.
66 GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.382.
CAPÍTULO 2
ESCRITURA E ESCRITURAÇÃO –
A PRÁTICA ESCRITURAL DE CLARICE LISPECTOR
... não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E se você
me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
Clarice Lispector
Se é verdade que o autor, na contemporaneidade, retorna ao seu texto como
que justificando que nunca esteve ausente, e sua assinatura é, por assim dizer, o ato oficial
da escrituração de sua escritura, não é menos verdade ainda que o que sobra ao leitor, bem
como ao estudioso dessa escritura, é tão-somente um "fictício de identidade".1
Além dessa "retratação do autor", dessa volta ao seu lugar de origem, Antoine
Compagnon vai apontar outras características que especificam os textos da contempora
neidade, como a indeterminação do sentido, o questionamento da narração, a exibição dos
bastidores, a interpelação ao leitor e a integração da leitura.2
Entretanto, parece só restar ao leitor e/ou crítico, mais uma vez, perguntar ao
próprio texto o que deseja saber. Como sempre, é no seu próprio tecido textual que todas
as indagações e qualquer possível constituição do sujeito nele deixam suas marcas.
Comprova-se esse fato quando percebe-se que o escritor, ao praticar o ato de escrever
não, sai ileso dessa empreitada, uma vez que a pratica a partir de todas as circunstâncias
1 Esse termo deve ser entendido como a identidade mesma do autor enquanto ser de papel que nasce de sua própria escritura e nela
se inscreve. BARTHES. O prazer do texto, p.81. A esse respeito, ver ainda SOUZA. A pedra mágica do discurso, p.29.
2 Ver COMPAGNON. Os cinco paradoxos da modernidade, p.114.
que o constituem como sujeito. A assinatura, nesse caso, mais do que o ato oficial da
escrituração, seria já o suplemento do vivido do autor.
Em sua atividade de ler, o leitor, não diferente do escritor, percorreria o mesmo
caminho, uma vez que lê o que lê, nas circunstâncias que o constituem como sujeito
leitor. Em vista disso, constata-se que o texto não teria um sentido preexistente; antes, que
este se instauraria no tempo da leitura. Ou melhor, o sentido seria a leitura, assim como a
escritura (o texto) seria, por conseguinte, a instauração da leitura do autor. Constata-se
que ambos, escritor e leitor, buscam caminhos semelhantes: enquanto o primeiro investe
se a si na construção de sua escritura-leitura, o segundo também investe-se a si na
construção de sua leitura-escritura. A diferença é apenas uma questão de ordem.
Se os sujeitos, escritor e leitor, investem-se a si próprios na escritura,
esquecendo qualquer noção de origem, cabe à escritura, por sua vez, devolver-lhes uma
identidade tão verossímil quanto verdadeira. É com base nesse documento, que se quer
lido como verdadeiro e falso ao mesmo tempo, dessa assinatura, que oficializa o ato da
enunciação, que é possível mapear e autenticar os rastros da prática escritural de Clarice
Lispector, assim como de qualquer escritor.
Se o nosso objetivo aqui é o de inquirir a respeito do processo de criação de
Clarice Lispector, e se, ao nos voltarmos para ele perguntando como se dá sua
escrituração, estamos fazendo a partir da retratação do autor na escritura, de sua inscrição
— somada à sua assinatura que se quer lida como documento e ficção ao mesmo tempo
— é porque a própria escritura clariceana interpela ao leitor e demanda essa leitura. Desse modo, o
que vem se somar à retratação do autor como mais uma característica capaz de
encontrar respostas (ou mais perguntas?) a respeito da prática escritural da autora é a
participação do leitor crítico, integrando o processo de ler ao processo de escrever,
confundindo leitura e escritura, mas de forma crítica. Resta apenas se perguntar a respeito
da prática de escrever de um escritor — quer esse seja contemporâneo ou não — através
de uma prática leitural teórico-crítica. Tal prática de leitura é o "ponto crucial" da tarefa
operada pelo crítico ao indagar-se a respeito de uma prática escritural.
O escritor procura pôr em narrativa não sua vida mas sim "seu desejo de
escrever".3 Diríamos mesmo que, com uma aparente contradição, ele faz de sua prática
escritural um ato inconsciente de sua inscrição. O tempo mesmo do ato de escrever acaba
dizendo não só sobre o seu sujeito, como também as circunstâncias em que se encontra o
sujeito. De uma forma ou de outra, consciente ou inconsciente, o sujeito-escritor traz para
a sua prática seu tempo, sua ideologia, sua formação e sua psicologia, enfim, tudo o que o
constitui como sujeito.
Mesmo que o escritor pratique seu ato de escrever tomando por base seu
contexto histórico-sócio-cultural, não há nenhuma garantia de que ele tenha pleno
domínio de sua produção, porque ocorre, nesse tempo, algo que é da ordem do
inconsciente, que circula na linguagem. Por esse motivo, o leitor jamais poderia louvar os
"significados originais" de uma escritura porque, assim como é impossível falar em
sentido original, esses significados acontecem só-depois e, por conseguinte, à revelia do 3 Ver capítulo 1,
deste trabalho.
seu próprio autor. Tal qual o autor, é através das circunstâncias que o constituem como
sujeito que o leitor investe no processo de interpretação da escritura, ocupando aí o papel
de produtor, já que é nesse tempo que qualquer sentido possível se formula. De acordo
com Rosemary Arroyo, "o significado de um texto somente se delineia, e se cria, a partir
de um ato de interpretação, sempre provisória e temporariamente, com base na ideologia,
nos poderes estéticos, éticos e morais, nas circunstâncias históricas e na psicologia que
constituem a comunidade sociocultural (...) em que é lido".4 Arroyo ainda reitera que, de
uma forma ou de outra, o que o leitor acaba lendo num texto será sempre o que sua
"comunidade interpretativa" lhe permite ler naquilo que lê, e jamais outra coisa. Desse
modo, ao se perguntar a respeito da construção e/ou prática escritural de um escritor,
estaremos sempre acrescentando alguma palavra a mais, uma vez que qualquer resposta
possível se dá com base na leitura empreendida, sendo a própria leitura uma construção
de seu sujeito.
O sujeito-escritor, ao praticar o ato de escrituração, acaba deixando marcas,
rastros, por assim dizer, de sua pessoalidade, que serão buscados pela atividade do leitor
que nunca as desvendará em sua totalidade. Em sua investida, o leitor, apropriando-se do
objeto-texto, deixa alguma coisa escapar de sua relação com o texto, mas é justamente
esse excesso, isso que ficou de fora, que atesta o seu envolvimento com a textura do que
lê. Compreender a prática escritural de um escritor demanda uma entrega total do leitor,
no sentido de que este invista o seu desejo que será, por assim dizer, uma continuidade do 4 ARROYO.
Tradução, desconstrução e psicanálise, p.19.
desejo daquele, no momento do ato de escrever. O ato de ler seria, nesse sentido, uma
operação que se apresenta menos preocupada em desvendar a prática do escritor do que
em estender esse processo até o infinito. Assim como a escritura se quer sempre
inacabada, descontínua e fragmentária, qualquer leitura nada mais seria que um
inacabamento de princípio. É somente quando as práticas de escrever e de ler se
encontram mapeadas por um desejo comum, e identificáveis, é que ocorre qualquer
produção criativa e inventiva do que quer que seja.
Um escritor jamais poderia pensar que traz consigo a chave capaz de
desvendar o seu processo de produção porque, ao agir assim, estaria instituindo a leitura
ideal e original do seu texto. Sendo sua prática da ordem do desejo (e do inconsciente),
logo escapa-lhe ao controle de mero escrivinhador. Antes cabe ao leitor investir na
tentativa de dar um significado ao texto lido mas, não muito diferente, o que lhe garante
que esse sentido é seu, e não do texto ou, ainda, do outro? Pensando ser impossível
encontrar aqui respostas satisfatórias, vejamos o que diz Rosemary Arroyo:
Qualquer contato entre um autor, um tradutor ou um leitor e o texto com que estabelecem uma
relação é apropriadamente descrito por Derrida como um corps-à-corps, sempre inspirado por um
"certo amor" que anula a possibilidade de qualquer nível de neutralidade e de qualquer rigor
matemático que pudessem deixar intacto o que quer que chamemos de forma ou de conteúdo. Em
suma, não pode haver nenhuma leitura, sem a inscrição de imprevisibilidade inerente a qualquer
relacionamento, sempre motivado e determinado pelo desejo — esse atributo essencialmente humano
que marca todas as nossas produções com o desenho de nossa própria história.5
5 ARROYO. Tradução, descontrução e psicanálise, p.128-129. A citação nos permite ver ainda que é somente
nesse corpo-a-corpo entre
escritor e leitor, na soma da prática de ambos, que se instaura e se diz uma verdade
possível e comum às práticas. Nesse sentido, essa verdade seria a linguagem literária
trabalhada até seu limite, a compreensão e a extensão da prática de escrever do escritor
pela/na prática de ler do leitor, enfim, lugar onde o real se funda e se diz. Por outro lado,
compreender a prática escritural de um escritor implica, conseqüentemente, numa
apropriação desenfreada por parte do leitor no ato de ler, não no sentido de ocupar o
"lugar" do outro, mas, antes, no de arquitetar a própria prática de ler-escrevendo,
fundando, assim, o sentido que melhor lhe aprouver.
Através dessa leitura que encampa a prática escritural do Autor à sua própria
prática, lugar privilegiado onde o leitor se transforma em autor, constatamos, como quer
Bloom quando diz "que não há textos, mas apenas relações entre textos",6 que não há uma
prática acabada em si mesma; antes, uma demanda a presença da outra, como se fosse,
por assim dizer, para dar continuidade a esse projeto, quer escritural ou leitural, para
sempre inacabado.
Mais uma vez, apropriando-nos do que diz Bloom, acrescentamos que uma
prática — quer escritural ou leitural, ou vice-versa — solicita, de algum modo, a
"influência" da outra sobre si, no sentido de fundá-la do outro lado: onde a leitura é uma
des-escritura, e a escritura, uma desleitura. Essa prática leitural crítica (desleitura), de que
estamos tratando, capaz de produzir seu próprio texto e dar continuidade ao texto do outro 6 BLOOM,
citado por ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.107.
(autor), deve afirmar, ao afinal de sua extensão, sua verdade, que é também a verdade do
outro (Texto).
Indagar a respeito de como se forma a prática escritural de um escritor é, mais
do que saber que seu texto é uma construção de linguagem, descobrir a linguagem
naquele "ponto" em que ela torna-se o essencial. Esse ponto onde a linguagem ocupa toda
a sua importância é, segundo Blanchot, exatamente aquele em que só ela "fala" e
significa. Parece que as práticas escriturais contemporâneas se constroem em torno desse
ponto circular, lugar em que a linguagem aparece e desaparece, uma vez que tais práticas
buscam uma linguagem que será descontruída logo a seguir, deixando a impressão por
todo seu corpo escritural de que elas são o fracasso de sua linguagem.
Não muito diferente, Octávio Paz chamou esse "ponto", ou outro lado da
linguagem poética na qual ela se dá, antes, como uma não-linguagem: "O duplo do
mundo e não sua tradução nem seu símbolo".7 Na linha de Paz, diríamos que ver a
realidade, a verdade expressa por essa linguagem equivaleria não só em perder a "razão",
mas qualquer possibilidade de sentido. A realidade obtida por trás dessa não-linguagem
poética é, desde sua origem, insuportável e enlouquecedora. Toda prática escritural é
trabalhada em torno dessa linguagem voltada sobre si mesma, que se constrói
desconstruindo até que apareça o seu próprio reverso. É por essa prática operada
diretamente na linguagem que a escritura busca um sentido dissipador antes mesmo de ser
escrito/dito na linguagem. Por aqui, e ainda com Paz, revela-se a duplicidade da escritura, 7 PAZ. O
mono gramático, p.119.
de que ela é, ao mesmo tempo, uma escritura e uma leitura; e cada uma trabalha,
concomitantemente, para a construção da outra que equivale à destruição da outra e de si,
respectivamente. Afinal, ambas se constroem na busca de um sentido que "culmina na
aparição de uma realidade que está além do sentido e que o desagrega, o destrói",
conforma e afirma Paz.8
Um exemplo dessa linguagem, dessa realidade que vem da linguagem e a ela
retorna, no momento mesmo em que a linguagem se constitui enquanto tal, é-nos
oferecido pela própria Clarice Lispector, quando diz:
A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la — e como não acho.
Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A
linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos
vazias. Mas — volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de
minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.9
"Só quando falha a construção", nesse contexto, e principalmente com relação à prática
escritural do escritor, pode ser entendido como o "ponto central" da prática de escrever
que, segundo Blanchot,
somente começa quando escrever é abordar aquele ponto em que nada se revela, em que, no
seio da dissimulação, fala ainda não é mais do que a sombra da fala, linguagem que ainda não é mais
do que a sua imagem, linguagem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém fala,
murmúrio do incessante e do interminável a que é preciso impor silêncio, se quiser, enfim, que se
faça ouvir.10
8 PAZ. O mono gramático, p.121.
9 LISPECTOR. A paixão segundo G. H., p.172.
Se, para Blanchot, escrever é encontrar esse ponto, para Clarice, diferente
mente, escrever é buscar esse ponto que jamais será encontrado: sua linguagem busca essa
travessia, aqui chamada de escritura que se escreve, ou melhor, é essa travessia, uma vez
que se constitui enquanto tal nesse lugar para sempre deslizante. A prática escritural de
Clarice certifica que a escritura acontece justamente aí, nesse deslizar escritural e incessante,
lugar onde o sentido também se produz, acompanhando o movimento escritural: é nesse
movimento deslizante que o texto se dá a ler enquanto tal. Por assim dizer, a a prática
escritural de Clarice é o simulacro mesmo do modo como a autora busca uma linguagem que
jamais se diz, uma linguagem que lhe devolve o indizível: aquele silêncio que significa e
que, por isso mesmo, jamais seria um "fracasso".11 É nesse tempo, enquanto a autora
investe na linguagem e não encontra uma construção possível, que a prática escritural
clariceana se arquiteta e se diz. Para Clarice, encontrar esse "ponto infinito" de que fala
Blanchot seria obter o "fracasso" não significativo; enfim, seria não encontrar aquela
"desistência" reveladora de uma verdade escritural que move a escritura clariceana.
10 BLANCHOT. O espaço literário, p.42. Blanchot observa em nota: "Será que a própria linguagem não se torna, na literatura,
imagem inteira, não uma linguagem que conteria imagem ou colocaria a realidade em figura, mas que seria a sua própria imagem,
imagem da linguagem – ou ainda linguagem imaginária, linguagem que ninguém fala, ou seja, que se fala a partir de sua própria ausência,
tal como a imagem aparece sobre a ausência da coisa, linguagem que se dirige também à sombra dos acontecimentos, não à sua
realidade, e pelo fato de que as palavras que os exprimem não são signos mas imagens, imagens de palavras e palavras onde as coisas
se fazem imagens?" (BLANCHOT. O espaço literário, p.25.)
11 A esse respeito ver página 28 et seq. deste trabalho, onde abordamos a questão do "fracasso" da linguagem e do silêncio como
fundador da significação escritural na escritura de Clarice Lispector.
Em sua prática escritural, esse fracasso de linguagem que significa, bem como
a desistência, que é uma escolha do autor, podem atestar, entre outras coisas, que o
escritor, mais do que se manter à margem, permanece na escritura, porque esta, inacabada
como diz Blanchot, ou escritura que se escreve, "não o solta". Esse tipo de prática
escritural traz, por sua vez, em seu corpo, marcas do seu autor, isto é, daquele que quer
terminá-la de fora, ao assiná-la. Nesse sentido, poderíamos argumentar que talvez por
esse motivo a prática escritural de Clarice seja uma pura paixão pela linguagem, mas uma
paixão exacerbada, realizada pelo fracasso de sua busca, e que, de uma forma ou de outra,
parece estar o tempo inteiro afirmando que, custe o que custar, é preciso escrever. É
através da responsabilidade do escritor com o "ato de escrever" que seu compromisso se
revela, e a verdade se diz na linguagem literária. É aí nesse lugar enviesado do real às
palavras e das palavras ao real, onde o sujeito-escritor não menos enviesado se produz,
que o escritor acaba revelando seu compromisso com o mundo:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é
palavra. Quando essa não-palavra — a entrelinha — morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma
vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia:
a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.12
Resta-nos perguntar agora a respeito da responsabilidade do leitor frente a essa
prática que se constrói sob seu olhar: não que a literatura estivesse por ser feita, porque
afinal existe uma canônica tradição, mas que o leitor pode, e deve, pela sua atividade de 12
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.605.
leitor, dar continuidade, ou melhor, vivificar essa prática escritural com a sua experiência
de sujeito-leitor que é.
A assinatura e a grafia da escritura
Pela constatação de que o que sobra ao leitor e ao crítico é tão-somente um
"fictício de identidade" autoral, e o fato de que Clarice Lispector fez de sua vida matéria
para sua ficção, acrescentamos, agora, que a autora fez da busca pela/na linguagem a
inscrição e a procura de sua própria identidade de escritor.13
Para melhor abordarmos e exemplificarmos o que aqui queremos tratar, vamos
nos valer das obras A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida, por entendermos que mesmo
não sendo elas romances, mas o "puramente romanesco", tratam do factício e do fictício
de toda identidade, quer esta seja de uma obra ou de um sujeito. Nesse espaço romanesco,
onde o escritor escreve sem nunca escrever,14 ocorre a circulação incessante de seus
desejos e a inscrição de seu prazer que, como a escritura, é insustentável, impossível,
circulando infinitamente nessa maquinaria de linguagem desejante chamada escritura.
De acordo com Michel Schneider, diríamos que as escrituras, tanto a de A
Hora da Estrela quanto a de Um Sopro de Vida, trabalham, num certo ponto de sua
construção, o encontro de seu autor ficcional (?) com seu leitor, na medida em que um 13 SCHNEIDER.
Ladrões de palavras, p.9.
14 A respeito do texto que se escreve, Barthes afirma: "O escriptível é o romanesco sem o romance, a poesia sem o poema, o ensaio
sem a dissertação, a escritura sem o estilo, a produção sem o produto, a estruturação sem a estrutura." BARTHES. S/Z, p.11.
interroga sobre o outro, como se um sempre pudesse dizer a identidade do outro. Nesse
sentido, a prática escritural dessas obras encontra-se aberta, demandando uma
participação ativa do leitor para sua construção inacabada.
A assinatura (ou nome próprio) Clarice Lispector aparece como um dos 14
subtítulos que abrem o registro chamado de A Hora da Estrela.15 Diferentemente dos
demais subtítulos, esse não aparece escrito no corpo da escritura, mas, como essa, é
totalmente explícito desde sua origem, remetendo o leitor para um autor sem máscara:
traços de um corpo já-escrito e já-lido em outras escrituras clariceanas vêm se dizer ali,
nessa última, querendo dizer ao leitor que essas escrituras nada mais são que seus "papéis
de identidade". A cada nova escritura, a cada novo registro, ele se inscreve — deixa sua
assinatura no corpo escritural — tornando-se mais próximo de sua identidade. Atestar a
identidade de escritor não é mais se perguntar "quem sou eu?"16 mas, pelo contrário, saber
que se escreve com o próprio corpo e saber por que se escreve: "Antes de tudo porque
captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto
não por causa da nordestina mas por motivo geral de 'força maior', como se diz nos
requerimentos oficiais, por 'força de lei'."17
15 Benedito Nunes fala em "treze títulos diferentes"; ao que acrescentaríamos mais um, o próprio nome da autora – Clarice Lispector
– que ali aparece assinado e ninguém o poderá retirar; o que, por sua vez, tal qual o nome A hora da estrela, pode ser lido como um dos
sub/títulos concorrentes para o livro. Cf. NUNES. O drama da linguagem, p.164.
16 "Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar 'quem
sou eu', cairia estatelada e em cheio no chão. É que 'quem sou eu'? provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se
indaga é incompleto." LISPECTOR. A hora da estrela, p.21-22.
17 Ibidem. p.24.
É através dessa "força maior" que o escritor escreve o que escreve, mesmo
sabendo que não sabe o que vai escrever, e se inscreve, às vezes se transfigurando em
outrem e materializando-se enfim em objeto escritural, como é o caso do registro
inacabado de A Hora da Estrela. Aplicando o exemplo ao livro Um Sopro de Vida,
Ângela, a personagem-autora criada pelo Autor, é a materialidade ficcional do escritor.
Mas voltando ao "registro que em breve vai ter que começar,18 e nunca
começa, porque o escritor não quer escrever nada senão seu próprio desejo de escrever,
que cessa no intransitivo da escritura, diríamos que nada resta ao escritor (ou ao Autor do
registro de A Hora da Estrela) senão copiar a si mesmo, uma vez que o que vai escrever
já está de certa forma escrito em si, no seu corpo. Esse escritor, essencialmente moderno,
acaba escrevendo sobre a própria literatura,19 o que denuncia, por sua vez, que ele sofre
de uma certa ansiedade, não ansiedade da influência, mas, antes, de uma "falta" de
assunto (história) e de tema (ele tornou-se seu próprio tema), tendo a linguagem nela
mesma e o "ato de escrever" como sua busca. Como observa o Autor do registro, "a
palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu
primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem
que ser apenas ela."20 O que leva o escritor a escrever não é só por se achar "desesperado"
e estar "cansado", por não suportar mais a si mesmo e nem "a sempre novidade que é
escrever" mas, pelo contrário, o que parece mover essa prática inacabada — pegar o "ato 18
CAPÍTULO 3
CLARICE LISPECTOR – UMA PRÁTICA
DE DESCONSTRUÇÃO ESCRITURAL
Quero a experiência de uma falta de construção.
Clarice Lispector
Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
Clarice Lispector
Comecemos por uma citação:
Desconstruir um texto é revelar como ele funciona como desejo, como uma procura de presença
e satisfação que é eternamente adiada. Não se pode ler sem se abrir para o desejo da linguagem, para
a busca daquilo que permanece ausente e alheio a si mesmo. Sem um certo amor pelo texto, nenhuma
leitura seria possível. Em toda leitura, há um corps-à-corps entre leitor e texto, uma incorporação do
desejo do leitor ao desejo do texto.1
Pretendemos começar por essa citação por nos parecer prestar-se muito bem ao
tema deste capítulo que é, como já viemos tratando até aqui, a prática escritural de Clarice
Lispector, que se constrói por um processo de apropriação que a autora faz de si mesma,
produzindo textos em palimpsestos ou textos em fragmentos que nada mais são que uma
verdadeira escritura desconstrutora. Nesse processo de apropriação desenfreada, a autora
perde seu lugar de autor, se transforma numa personagem de seus escritos e torna-se
leitora de seus próprios textos e de si mesma. Assim, nesse processo de escrever, no qual
a autora está desfazendo a escritura antes mesmo dela se erigir, o que temos é uma
linguagem que diz ela mesma em escritura, como a forma em conteúdo, o significante em
significado, enfim, uma significância escritural que significa. A desconstrução aqui
exemplificada se dá pela própria prática de leitura que a autora faz dela mesma, no ato de 1 DERRIDA,
citado por ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.157.
seu processo de criação. Através do discurso dramático da escritura, em que o saber não
se quer saber e no entanto sabe, e em que escrever é reescrever e ler é reler, encontra-se
uma prática desconstrutivista que, por valorizar os fragmentos, as citações, parênteses e
pés de página, denuncia um olhar crítico que deverá ser seguido pelo leitor.
O leitor que trate de encarar esse olhar crítico lançado pelo texto literário e
procure dar consistência à multiplicidade fragmentária do escrevível, senão se verá
enredado e perdido tal qual o escritor dessa prática chamada literatura que, nas palavras
de Italo Calvino, "só pode viver se se propõe a objetivos desmesurados, até mesmo para
além de suas possibilidades de realização".2 Parece só restar ao leitor, frente à escritura
que tece os diversos saberes ao tecer-se, dando uma visão pluralística do mundo e tendo
este como seu reflexo, jogar com a prática escritural que, por ser encenação, encena várias
interpretações, para que possa ainda mais pluralizar a linguagem e multiplicar os sentidos.
Porque, somente assim, estaria excluindo a idéia de totalidade de um corpo que se
constrói senão por fragmentos e sentidos descontínuos. É sobre essa questão que o leitor
deve, insistentemente, se perguntar, quando seu trabalho vem envolto nessa prática
arquitetada em linguagem, para não correr o risco e fazer o papel de leitor ingênuo, ao ler
ao pé da letra o que o autor quis dizer. Antes de mais, esse tipo de leitura começaria
justamente por uma certa desconfiança não só naquilo que o autor diz, mas do como ele
diz. 2 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p.127.
É por esse viés de leitura crítica que devemos encarar a última produção de
Clarice Lispector, isto é, mais precisamente o que a autora escreveu a partir de 1967, ano
este que nos interessa aqui por ser a época em que ela começa a escrever crônicas para o
Jornal do Brasil e publica, daí a dois anos (1969), o livro Uma Aprendizagem ou o Livro
dos Prazeres que foi se escrevendo nas entrelinhas das crônicas sociais. Deve-se ressaltar,
ainda, que Clarice entra na década de 70 publicando o livro Água Viva (1973). Entre
todos os que até então tinha publicado e que viria a publicar, esse é, com certeza, o livro
mais fragmentário e descontínuo de sua galeria de "textos" que, além de desconcertar o
leitor, é desconcertante qualquer que seja o tipo de leitura realizada. Como podemos então
perceber, essa última produção de Clarice não só destoa de sua produção, como se
diferencia de sua prática de escrever anterior, além de destoar também do que se produziu
na Literatura Brasileira nessa época. Como muito bem observou Renato Cordeiro Gomes,
a respeito do livro Onde Estivestes de Noite, e que aqui tomo como exemplo para a
produção de Clarice nessa época, "esta coletânea não se alinha no paradigma dominante
da literatura brasileira dos anos 70, que deu ênfase ao romance e ao conto-reportagem, aos
depoimentos, às memórias, à autobiografia". E conclui Gomes: "Coerente com sua
produção, Clarice recusa a literatura mimética, jornalística, de base naturalista".3
Esse destoar não quer dizer, por sua vez, que Clarice se aliena frente ao
contexto "repressor" em que se encontra a nação brasileira. Muito pelo contrário, sua
própria prática de escrever, como sempre original, vem desmentir, quando se apresenta 3 GOMES.
Apresentação. Errâncias, labirintos, mistérios.
fragmentária e com recortes profundos em sua construção/fundação, o que acaba
refletindo um Livro que se constrói por "destroços de livros", tal qual uma nação que se
construiria, porque só pode se construir, por meio de seus próprios destroços históricos
(nem que seja para serem apagados/esquecidos logo a seguir).
É desse lugar de texto e de contexto que Clarice escreve suas crônicas —
notas, anotações, fragmentos, depoimentos, "crítica leve" e "crítica pesada", enfim,
verdadeiros minitextos "pessoais" que vão compor, no decorrer de sua história, o grande
texto inacabado da ficção — e, sobretudo, os livros Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres e Água Viva. Tais livros somam-se entre si quando refletem uma prática
fragmentária e descontínua, e mais ainda por assinalarem, ao mesmo tempo, uma certa
vontade de encontrar, por parte da autora, um "novo modo de escrever" e um certo
"fracasso" nessa busca.4
Nessa época, mais precisamente o tempo em que Clarice escreveu crônicas
para o Jornal do Brasil — de 19 de agosto de 1967 a 29 de dezembro de 1973 —, sua
produção traz inserta na própria arquitetura a preocupação com o problema histórico
social que assolava o País. Se sua produção anterior, como A Paixão Segundo G.H.,
publicado exatamente em 1964, tocava de leve na problemática social, o mesmo não vai
acontecer com sua produção a partir dessa data. Além de ser a época de produção intensa
4 A respeito do livro Uma aprendizagem, Nádia Gotlib observa que "Clarice considerava-o um romance falhado". GOTLIB.
Clarice: uma vida que se conta, p.394. Quanto ao livro Água viva, Olga Borelli vai considerá-lo como o "prenúncio do fim" ou "a ante-
sala da desagregação absoluta". Ibidem. p.412. E, ainda, José Américo Pessanha sugere à autora um subtítulo, para que o leitor possa
identificá-lo "como não-ficção, como apontamentos, como um certo tipo de diário, (...). Ibidem. p.405.
na vida de Clarice, seus textos circulam agora livremente do jornal para o livro,
confundindo realidade e ficção, relendo o tecido social em sua construção descontínua e
fragmentária. Daí querermos dizer que a preocupação de Clarice, com a questão social, a
partir dessa época, aparece nos interstícios mesmo de sua prática escritural, tramada ora
em seu compromisso com o ato de escrever, ora no discurso dramático da escritura.
Quando não, as entrelinhas mesmo dessa escritura de então, que se quer fragmentária e
descontínua, certifica o compromisso da autora com o contexto e sua época. É nas
entrelinhas do discurso da escritura que o saber se diz, diz a época em que está sendo
pensado, funda a escritura e acaba dizendo o seu sujeito enquanto tal.
Talvez não fosse mesmo uma preocupação explícita de Clarice tocar no
"social" da época, o que a destoava da literatura brasileira dos anos 70, mantendo-se,
conforme observou Gomes, "coerente com sua produção, Clarice recusa a literatura
mimética, jornalista, de base naturalista".5 Parece que, antes de demonstrar tal interesse
em dizer alguma coisa (conscientemente) nesse sentido, sua literatura de então, à revelia
da autora, acabou dizendo (inconscientemente) tal problemática.
Benedito Nunes, a respeito do livro Uma Aprendizagem (1969), comenta que
"pela primeira vez, ainda que de maneira canhestra, abstrata e pedante, a vida social como
tema ingressa no romance de Clarice Lispector".6 De acordo com o raciocínio que vimos
explanando até então, pensamos na possibilidade de discordar de Nunes, uma vez que tal 5 GOMES.
LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.130-131. 55 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, p.77-78.
por Clarice: ao praticar tal processo, Clarice cria blocos (parágrafos) que não existiam no
texto-crônica-fragmento, acrescenta "fatos" com relação à história do romance, altera o
tempo verbal e chama a mulher pelo nome: Lóri. Enfim, o processo de reescrever, no
romance, funciona sempre como uma forma de ajustar o texto do Jornal ao texto do
romance. É exatamente nesse ajustamento de "textos" reescritos e colados que o romance
se deixa ler em suas "falhas", não visando, unicamente, à totalidade do conjunto
organizado. Ou melhor, o romance existe, existe a história romanesca, o livro fecha-se em
sua materialidade, mas, nesse entremeio, a escrita apresenta seu jogo, revela "falhas"
arquiteturais, demonstrando a prática imperfeita do reescrever-colar do/no papel — o
texto é esse trabalho —, convidando, assim, o leitor para participar do jogo inacabado da
escritura.
O fragmento, que no livro compõe um capítulo, antes de ser a prova perfeita do
processo de reescrever-colar praticado por Clarice, testemunha a apropriação que a autora
faz de si mesma, movendo seus textos-fragmentos por toda sua obra. Não é por acaso que
Nádia Gotlib vai observar que é a partir de 1964 "que se inicia um período de movimento
dos textos de Clarice entre as várias publicações suas em jornais, revistas e livros: estes
textos circulam, aparecem e reaparecem, por vezes sem qualquer alteração de construção,
realizando, assim, uma verdadeira ciranda de textos".57 Desse modo, vejamos porque o
56 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.30. A crônica "Medo do desconhecido" foi publicada no Jornal do Brasil, em 7 de
outubro de 1969. O mesmo fragmento, com alterações, foi republicado com o título de "Por medo do desconhecido (trecho)", em 3 de
junho de 1972.
57 GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.189.
a palavra —, escreve com sua própria voz ao leitor100 para que este a acompanhe em
silêncio.
Podemos dizer que com a produção escritural de Água Viva, Clarice parece ter
chegado ao seu limite de escritora: ao justapor, nele, "trechos de diversos níveis e sem
temer o trivial",101 denuncia que seu processo de escrever se encaminhou para esse lugar
impossível, ou melhor, para essa escritura sem texto e que, por esse motivo, rasura a si
mesma o tempo inteiro. Água Viva pode ser tomado como um "resumo" do que até então
tinha escrito a autora e, ao mesmo tempo, um "rascunho" já dos textos que estavam por
vir. Tal livro, por sua própria construção, destrói toda e qualquer noção de gênero, o que
só vem reforçar o "estilo" buscado pela autora desde o seu primeiro livro. José Américo
Pessanha, em carta a Clarice, sobre o livro, sugere que ela lhe dê um subtítulo para que o
leitor possa identificar a obra "como não-ficção, como apontamentos, como um certo tipo
de diário, enfim, como você considere melhor qualificá-la sem traí-la em excesso".102
Recorremos a uma passagem do livro:
Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais.
Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de
não poder pintá-lo ou escrevê-lo.103
100 Ibidem. p.41.
101 PESSANHA, citado por GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.405. De fato Clarice não escreve o livro; antes,
deixa-se ser escrito por ele. A escritura de Água
Viva escreve-se a si mesma. O processo de escrever aí tornou-se imanente ao vivido
pessoal de sua autora. Clarice foi tragada para dentro do livro pelo processo de escrever e
tornou-se o seu próprio tema.104 Por mais que ela tenha tentado apagar o "eu" pessoal/
ficcional, retirando as crônicas justapostas ao texto, muitas outras subsistiram à revelia da
autora para confirmar suas "marcas" pessoais, além de que a própria tessitura escritural se
dá pelo despojamento de um corpo autoral inscrito no texto.
Podemos dizer, no sentido que aqui nos interessa, que não há texto em Água
Viva, mas apenas relações "entre" textos: um texto menor — um fragmento — relaciona
se com outro texto menor — outro fragmento —, e, assim, encaminham-se todos os
fragmentos para a construção da escritura do livro que não se quer escrita nem concluída:
"O que te escrevo não tem começo: é uma continuação."105 No processo intertextual e
intratextual de que Clarice se vale para a construção da escritura ocorre, por parte da
própria autora, uma busca desesperada em apagar a "origem" (os textos-crônicas
fragmentos) dessa mesma escritura: a autora tenta apagar-se a si própria, uma vez que ela
é a própria origem. Retoma seus textos-fragmentos armazenados no "fundo de gaveta" e
recortando-os e colando-os, monta a escritura de Água Viva. Nesse caso, mesmo quando
ela copia o fragmento tal qual aparece inicialmente, ele não tem mais a mesma signifi
cação, porque só o deslocamento da "origem" para o texto "sem origem" (Água Viva) já re-cria outro
texto e, conseqüentemente, nova leitura. Daí dizermos que Clarice é sua própria
origem: é a si que ela se reporta, pela prática intratextual, lendo e relendo-a a partir de uma
leitura que é sempre outra. Desse modo, a escritura do livro tem origem na leitura que sua
própria autora faz de si mesma; às vezes, mesmo que inconsciente.
Não muito diferente da relação entre autor e texto, se dá a relação entre texto e
leitor. Este que não trate de se envolver pelo texto que está sendo lido, que não se
apaixone e se deixe "misturar" a ele porque, caso contrário, não vai recriá-lo em sua
leitura. Sem o trabalho da reinvenção (releitura) não há fundação; logo, não há leitura
possível. Para que a leitura exista, é preciso que o leitor, assim como o autor, deixe suas
marcas no "texto" apropriado. Não é por acaso que o texto de Água Viva parece chamar
por um leitor especial: um leitor obcecado pelo desejo de reescrever por completo toda a
escritura fragmentária que o constitui. Mesmo o leitor sabendo que isso é da ordem do
impossível, é nessa tarefa que tem de se aventurar, na tentativa obstinada de reescrever a
escritura na leitura empreendida. A isso chamaríamos de ler o texto literário: uma leitura
fundadora do texto. Através da leitura, a relação do leitor com o autor do texto não é tão
apaziguadora como se pensa, uma vez que aquele luta pelo poder autoral de estabelecer
significados e, com isso, assinar o texto definitivamente. De acordo com Rosemary
Arroyo, "a relação entre leitura e escritura, ou entre leitor e texto, é, sempre, em algum
nível, permeada por um conflito decorrente de uma luta pelo poder de decidir sobre o
significado".106 Por outro lado, o significado seria o resultado de uma colaboração entre
escritura e leitura, entre autor e leitor.
A escritura do livro Água Viva parece estar, desde a "origem" e por sua
construção, prestes a se escrever: dizer-se. Daí postularmos que o leitor a escreve com sua
leitura, ou melhor, sua escrita-leitura. É um texto que vem se dizer na leitura do leitor.
Sua autora, nele mesmo anunciou: "Gênero não me pega mais."107 É um texto sem texto,
um texto "escrevível" para dizer com Barthes: "É o romanesco sem o romance, a poesia
sem o poema, o ensaio sem a dissertação, a escrita sem o estilo, a produção sem o
produto, a estruturação sem a estrutura."108O texto Água Viva é isso. É um texto sem
ordem de entrada, sem começo nem fim, um texto que continua ("o que te escrevo
continua e estou enfeitiçada",109 nos adverte a narradora-feiticeira ao concluí-lo); é um
texto que se dá sob uma movença espiralada de fragmentos e, conseqüentemente, de
sentidos, enfim, uma "galáxia de significantes". Para que o leitor possa ler tal texto é
preciso que ele rearticule os fragmentos que o compõem (fragmento aqui poderia ser lido
como citação, já que a escrita acaba citando a si mesma, disfarçadamente). No rearranjo, o
leitor faz sempre um recorte — porque é impossível ler toda a escritura numa leitura, uma
vez que tal leitura vai ser sempre, como qualquer leitura, da ordem do desejo do leitor —
e, ao recortar, desvia sem olhar, "esquece" de um sentido (de um fragmento) e funda a
106 ARROYO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.179.
107 LISPECTOR. Água viva, p.13.
108 BARTHES. S/Z, p.12.
leitura: "Ler é encontrar sentidos, e encontrar sentidos é nomeá-los."110 Tal leitura, longe
de querer fundar uma verdade — porque ela é em si a verdade — se pluraliza ainda mais,
já que o texto Água Viva é um texto plural em todos os sentidos. O esquecimento dos
sentidos, disse Barthes, não é motivo para desculpas, mas é um valor afirmativo, uma
forma de afirmar a irresponsabilidade do texto.111
Ler o texto Água Viva como um texto em fragmentos (citação intratextual
infinita) é querer — desejar mesmo — sua não construção, porque nele "tudo significa
sem cessar e várias vezes". Cada fragmento existe por si só, em sua uni(ci)dade, sem
preocupação excessiva de se encaminhar para um conjunto escritural maior, que acabaria
reduzindo os sentidos emanados por eles num sentido único, logo reducionista de
significação. A leitura aqui buscada, antes de ser única, é, como o texto, também plural,
que chama por uma re-leitura que deslize sobre o texto que só existe no deslizar escritural.
O sentido (ou sentidos) do livro Água Viva se dá por deslizamento, uma vez que os
fragmentos que o compõem também não param de deslizar, encaminhando-se — todos
tão uníssonos quanto díspares — para uma possível construção do desenho escritural do
livro. É exatamente aí neste movimento deslizante de sentidos, que a escritura se dá a ler
enquanto tal e o texto se constrói.
Alain Robbe-Grillet, no livro Por Que Amo Barthes, ao se referir a Barthes
como um "romancista moderno", diz que "o romance moderno, em lugar de apresentar 110 BARTHES.
S/Z, p.16. 111 Ibidem. (Grifo nosso)
um texto como o romance balzaquiano, bem juntado, todo redondo em torno do seu
núcleo sólido de sentido e de verdade, apresenta apenas fragmentos que, além do mais,
descrevem sempre a mesma coisa, sendo quase nada esta mesma coisa." E acrescenta que
"o movi-mento da literatura é o deslizamento de uma cena à mesma cena, que se repete
sob uma forma relativamente desencaminhada, um pouco contornada, um pouco
invertida...".112 Também assim se constrói o texto clariceano. Em sua prática escritural, a
autora faz, com muita freqüência, uma apropriação disfarçada, levando um texto, ou um
fragmento, de um lugar para outro lugar, para outro texto; às vezes, reescrevendo-o,
outras vezes, recopiando-o e, quando não, pondo-o na "fala" e/ou "escrita" de uma outra
personagem, como é o caso de Lóri do livro Uma Aprendizagem que, não
coincidentemente, escreve a Ulisses "entre aspas".
O texto de Água Viva vem se construir no momento mesmo de sua escrita —
de sua leitura — trazendo, em sua fragmentação escritural, traços que lembram os
pequenos textos reminiscentes (as crônicas, por exemplo) da autora. Nesse sentido, vozes
"passadas" e "presentes" se entrecruzam, superpostas, de modo a escamotearem a
"origem" do texto tutor (Água Viva). Nele, sua narradora-feiticeira, enfeitiçada pela trama
escritural, acaba adiando o seu contar, e a "linguagem fala, é tudo".113 Por isso, podemos
dizer que para o escritor não há outra origem senão a própria linguagem literária. Livro de
escritura "autodilacerada", chamado de ficção, traz um texto em fragmentos — prestes a 112 ROBBE-
GRILLET. Por que amo Barthes, p.34-35.
se construir — que, segundo Benedito Nunes, "está no limite entre literatura e experiência
vivida".114 Talvez aqui esteja a grandeza desse tecido escritural que se quer sempre
tecendo no presente da escritura-leitura: ao mesmo tempo em que se lê, nele, uma
escritura que flui incessantemente e a ele reflui, lê-se também uma "história" pessoal que
se conta nas entrelinhas, ou nos interstícios dos fragmentos, à revelia da própria autora.
Tais fragmentos, colados e justapostos, além de assinarem o livro enquanto
ficção e encenarem sua própria teoria, testemunham que só a escritura — nesse mundo
fragmentário e descontínuo, que constitui o seu próprio texto — pode dividir-se sem
deixar de ser total: um fragmento de escritura é sempre uma essência de escritura .115
Isto nos faz perceber que tais fragmentos são, ao mesmo tempo, estilhaços do "eu" que os
praticou, como também estilhaços de linguagem que compõem a escritura do livro Água
Viva. Livro esse que apresenta um texto composto por fragmentos, ou melhor, "citações"
sem origem, que "não conta uma história" e "contenta-se em evocar os reinos
incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna
existência", lembrando a imagem do céu/"texto estelado" de Barthes:
O texto, no seu conjunto, é comparável a um céu simultaneamente plano e profundo, liso, sem
margens nem pontos de referência; tal como o áugure que, com a ponta do seu cajado, corta um
tectângulo fictício do céu, para nele interrogar, segundo certos princípios, o vôo dos pássaros, assim
o comentador traça, ao longo do texto, zonas de leitura, para nelas observar a migração dos sentidos,
o aflorar dos códigos, a passagem das citações.116
114 NUNES. O drama da linguagem, p.157.
115 Ver BARTHES. O rumor da língua, p. 235. (Grifo nosso) Fragmentos
achados e perdidos
Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos. Clarice
Lispector
Após trabalhar durante três anos seguidos, "cortando" e "torturando" os
fragmentos dispersos que representavam a fragmentação de seu próprio pensamento,
Clarice Lispector, depois de retirar cem páginas aproximadamente e alterar o título pela
terceira vez, chega ao final dessa mais nova empreitada escritural (citacional), publicando
o livro com apenas 97 páginas e com o título de Água Viva. Com tal corte textual, a
autora procurou eliminar os "fragmentos" que revelavam traços mais pessoais, sobretudo
as crônicas publicadas no Jornal do Brasil.117 Mesmo assim, muitos outros fragmentos —
além do próprio "estilo" fragmentário que caracteriza a escritura — permaneceram na
construção do livro confirmando, mais do que as impressões pessoais e as reminiscências,
a prática de escrita como montagem empregada por Clarice. Mais adiante, procuraremos
elencar tais fragmentos como aparecem no livro e em seu lugar de origem, com a
finalidade de observar como se dá o trabalho intertextual/intratextual operado pela autora.
Antes, porém, nos parece interessante observar que — ainda com relação aos traços da
autora —, mesmo que ela tenha tentado "cortar", "rasurar" as crônicas que denunciavam
seus traços pessoais, outras marcas permaneceram na construção textual, como nos 117 GOTLIB. Clarice:
uma vida que se conta, p. 410.
denuncia a primeira página da versão original do texto.118 Nessa página, na qual já se lê
"Água Viva" escrito a mão, sem acento e entre parênteses, substituindo o título anterior
"Objeto Gritante", datilografado no centro da página, encontramos uma pista da autora
para a leitura do livro: "Comece a ler pelas páginas soltas e emende a leitura na página
48." O que vem confirmar, por sua vez, o tom fragmentário e descontínuo da escritura
percebido na leitura do leitor, que percorrerá o caminho paralelo ao da escritura, na
tentativa de construir uma leitura possível. Ao seguir o "conselho" dado por Clarice,
observamos que aí — principalmente pelo que lemos à página 48 — "traços pessoais" são
tecidos no ficcional: "Estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova
para mim que ainda não tem pensamentos correspondentes e muito menos ainda alguma
palavra que a signifique: é uma sensação atrás do pensamento." A expressão "atrás do
pensamento" que encontramos à página 48, em que a autora sugere que ali se emende a
leitura, remete o leitor clariceano ao primeiro título dado ao livro que era Atrás do
Pensamento: Monólogo com a Vida,119 que trazia as crônicas pessoais tecidas nas páginas
que foram retiradas antes do livro receber o título de Água Viva e ser publicado com o
número de páginas inferior ao retirado. Isso reforça, por sua vez, que, se a autora retirou
as crônicas mais pessoais pensando que assim sairia da cena escritural, outros traços,
como o que acabamos de mostrar, que nos remetem para a "origem" textual, subsistiram
118 Ibidem. p. 40.
119 À página 45 desse livro lê-se: "Meu número é 9. É 7. É 8. Tudo atrás do pensamento." Tais enunciados podem ser decifrados
assim: 9, o número de letras da palavra LISPECTOR; 7, o número de letras do nome CLARICE; e 8, o número de palavras do último
título dado ao livro: Água viva. Tudo – pessoal e ficcional – tecido "atrás do
tecidos no ficcional. Desse modo, o livro Água Viva, fragmentado desde sua origem, é
considerado por Olga Borelli como "o prenúncio do fim" ou "a ante-sala da desagregação
absoluta", que segundo Gotlib "viria dali a alguns anos, com seus [da autora] últimos
manuscritos".120
Na fragmentação escritural que constitui o texto Água Viva encontramos, além
de textos-crônicas, fragmentos de outros livros como os da segunda parte de A Legião
Estrangeira, mais tarde republicada com o título de Para Não Esquecer, e também do
livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres.121 Desses fragmentos, procuraremos
apontar aqui somente os que se encontram no livro de crônicas A Descoberta do Mundo e,
mais adiante, destacaremos, ainda, os fragmentos que se deslocaram do texto de Uma
Aprendizagem (1969) para o texto de Água Viva (1973). Com isso, mostraremos que em
Clarice Lispector a troca intertextual/intratextual é tão comum que, às vezes, nessa
apropriação desenfreada, uma palavra é substituída por outra à revelia de quem pratica tal
ato. Porém, antes de destacar tais fragmentos, que se articulam entre si na construção da
escritura fragmentária de Água Viva, reiteramos, como quer Walter Benjamin, que devem
ser lidos
Como os cacos de uma ânfora, para que, nos mínimos detalhes, se possam recompor, mas nem
por isso se assemelhar, assim também a tradução, ao invés de se fazer semelhante ao sentido do
original, deve, em seu movimento amoroso que chega ao nível de detalhe, fazer passar em sua
própria língua o modo de significar do original. Do mesmo modo que os cacos tornam-se
reconhecíveis como fragmentos de uma mesma ânfora, assim também original e traduções tornam-se
reconhecíveis como fragmentos de uma linguagem maior.122
pensamento: monólogo com a vida" na escritura fragmentária de Água viva. A esse respeito, ver ainda LUCCHESI. Crise e escritura,
p.26.
120 GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.412.
121 Ibidem. p.410.
Homi K.Bhabha, em nota ao texto, reforça que Benjamin "não está dizendo que os
fragmentos constituem uma totalidade, ele diz que fragmentos são fragmentos, e que
permanecem essencialmente fragmentário. Sucedem um ao outro, metonimicamente e
nunca constituem uma totalidade."123 Assim também os fragmentos na escritura de Água
Viva: eles não se justapõem buscando uma totalidade porque a escritura continua
inacabada; ao contrário, e melhor, se constituem e significam enquanto fragmento, o que
só reforça o brilho e a razão de ser da escritura que se quer fragmentária e relampejante
(borbulhante) o tempo inteiro.
Em Água Viva, o primeiro fragmento que aparece para justificar o processo de
montagem da escritura, reforçando sua fragmentação, constitui o último parágrafo da
página 21:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é
palavra. Quando essa não-palavra — a entrelinha — morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma
vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia:
a nãopalavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.124
Esse mesmo fragmento (citação) apareceu, primeiramente, na parte "Fundo de Gaveta" de
A Legião Estrangeira (1964) com o título de "A pesca milagrosa" e foi publicado também
122 BENJAMIN, citado por BHABHA. DissemiNação: tempo, narrativa e as margens da nação moderna, p.57.
123 Ver "nota" 68 do texto de BHABHA. DissemiNação, p.61.
124 LISPECTOR. Água viva, p.21.
1971. A crônica "Bichos (conclusão)" foi publicada no dia 20 de março de 1971. 128 Cf. "Cenas de uma marcha escritural", neste
trabalho, p.91.
(...)
Agora vou acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui mesmo para sempre.
Eu, que nunca sou adequada.
Voltei. Estou pensando em tartarugas. Uma vez eu disse por pura intuição que a tartaruga era um
animal dinossáurico. Depois é que vim ler que é mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou livro): é que
não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com
ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a verdade. E, para sofrer menos, embotar-me um
pouco. Pois não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer, se sinto totalmente o que as
outras pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais força. Vou viver um pouco na
minha. Vou me impermeabilizar um pouco mais. — Há coisas que jamais direi: nem em livros e
muito menos em jornal. E não direi a ninguém no mundo. Um homem me disse que no Talmude falam
de coisas que a gente não pode contar a muitos, há outras a poucos, e outras a ninguém. Acrescento:
não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Sinto que sei de umas verdades. Mas não sei se
as entenderia mentalmente. E preciso amadurecer um pouco mais para me achegar a essas verdades.
Que já pressinto. Mas as verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não, nem pensem que
vou falar em Deus: é um segredo meu.
Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de uma
liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso aprender a não
precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar estava
calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa calma não pudesse durar. Algo está
sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.
Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como
explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra
pintar tartarugas. Elas me interessam muito. Todos os seres vivos, que não o homem, são um
escândalo de maravilhamento: fomos modelados e sobrou muita matéria-prima — it — e formaram-
se então os bichos. Para que uma tartaruga? Talvez o título do que estou te escrevendo devesse ser
um pouco assim e em forma interrogativa: "E as tartarugas?" Você que me lê diria: é verdade que há
muito tempo não penso em tartarugas.129
pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão
silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É dificílimo contar:
nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses
momentos são o meu segredo. Houve o que se chama da comunhão perfeita. Eu chamo isso de:
estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano
mais alto de humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais tive. Só que depois ... Depois
eu percebi que para essas pessoas esses momentos de nada valiam, elas estavam ocupadas com
outras. Eu estivera só, toda só. É uma dor sem palavra, de tão funda. Agora vou interromper um
pouco para atender o homem que veio consertar o tocadiscos. Não sei com que disposição voltarei à
máquina. Música não ouço há bastante tempo pois estou procurando me dessensibilizar. Mas um dia
desses fui pegada desprevenida, ao ver o filme Cada um vive como quer. Tinha música e eu chorei.
Não é vergonha chorar. É vergonha eu contar em público que chorei. Pagam-me para eu escrever. Eu
escrevo, então.
Pronto, já voltei. O dia continua muito bonito. Mas a vida está muito cara (isso por causa do
preço que o homem pediu pelo conserto). Preciso trabalhar muito para ter as coisas que quero ou de
que preciso. Acho que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou escrever para este jornal. Eu
queria um emprego de poucas horas por dia, digamos duas ou três horas, e que me fizesse (o
emprego) lidar com pessoas. Tenho jeito para isso, embora pareça um pouco ausente às vezes. Mas,
quando estou com uma pessoa verdadeira, fico verdadeira também. Se vocês pensam que vou
recopiar o que estou escrevendo ou corrigir este texto, estão enganados. Vai é assim mesmo. Só que
lerei para corrigir erros datilográficos.
129 LISPECTOR. Água viva, p.54-55.
A propósito de uma pessoa de quem estou me lembrando agora e que usa uma pontuação
completamente diferente da minha, digo que a pontuação é a respiração da frase. Acho que já disse
uma vez. Escrevo à medida de meu fôlego. Estarei sendo hermética? Porque parece que em jornal se
tem de ser terrivelmente explícito. Sou explícita? Pouco se me dá.
Agora vou interromper para acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por
aqui mesmo.
Voltei. Estou agora pensando em tartarugas. Quando escrevi sobre bichos, disse, de pura
intuição, que a tartaruga era um animal dinossáurico. Depois é que vim a ler que é mesmo. Tenho
cada uma. Um dia vou escrever sobre tartarugas. Elas me interessam muito. Aliás, todos os seres
vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento. Parece que, se fomos modelados,
sobrou muita matéria energética e formaram-se os bichos. Para que serve, meu Deus, uma
tartaruga? O
título do que estou escrevendo agora não devia ser Ao correr da máquina. Devia ser mais ou
menos assim, em forma interrogativa: E as tartarugas? E quem me lê se diria: é verdade, há muito
tempo que não penso em tartarugas. Agora vou acabar mesmo. Adeus. Até sábado que vem.130
Clarice recorta a crônica e cola somente algumas partes na escritura fragmentária do livro.
Tais fragmentos, que na origem compunham a crônica "Ao correr da máquina", publicada
no dia 17 de abril de 1971, não continham o tom fragmentário que recebem no livro. Um
dos motivos da fragmentação advém do fato de que a autora, ao recortar e reescrever
antes de colar na escritura, acrescenta novos fragmentos no lugar daqueles retirados, por
serem de tom mais pessoal. Na crônica, Clarice, ao comentar o seu trabalho de escrever
para o Jornal, disse: "Se vocês pensam que vou recopiar o que estou escrevendo ou
corrigir este texto, estão enganados." Se assim ela agiu para publicar a crônica no Jornal,
o mesmo não se deu ao transpor a crônica para dentro do texto do livro. Aqui, ela não só
recopiou a crônica, como ainda reescreveu-a, de forma que a mesma resultasse num novo
texto: um fragmento de escritura.
Outra crônica que aparece reescrita, compondo a fragmentação escritural do
livro, é o texto-citação "De natura florum", que traz como subtítulo "Dicionário":
Agora vou falar da dolência das flores para sentir mais a ordem do que existe. Antes te dou com
prazer o néctar, suco doce que muitas flores contêm e que os insetos buscam com avidez. Pistilo é
órgão feminino da flor que geralmente ocupa o centro e contém o rudimento da semente. Pólem é pó
fecundante produzido nos estames e
“E plantou Javé Deus um jardim no Éden, que fica no Oriente, e colocou nele o homem que
formara.” (Gen, II, 8)
DICIONÁRIO
Néctar — Suco doce que muitas flores contêm e que os insetos buscam com avidez.
Pistilo — Órgão feminino da flor, que geralmente ocupa seu centro e
130 LISPECTOR. Adescoberta do mundo, p. 529-532. A crônica "Ao correr da máquina" foi publicada no Jornal do Brasil, em 17 de
abril de 1971.
contido nas anteras. Estame é o órgão masculino da flor. É composto por estilete e pela antera
na parte inferior contornando o pistilo. Fecundação é a união de dois elementos de geração —
masculino e feminino — da qual resulta o fruto fértil. "E plantou Javé Deus um jardim no Éden que
fica no Oriente e colocou nele o homem que formara" (Gen. 11, 8).
Quero pintar uma rosa.
Rosa é a flor feminina que se dá toda e tanto que para ela só resta a alegria de se ter dado. Seu
perfume é mistério doido. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o
interior do corpo inteiro perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. As pétalas têm
gosto bom na boca — é só experimentar. Mas rosa não é it. É ela. As encarnadas são de grande
sensualidade. As brancas são a paz do Deus. É muito raro encontrar na casa de flores rosas brancas.
As amarelas são de um alarme alegre. As cor-de-rosa são em geral mais carnudas e têm a cor por
excelência. As alaranjadas são produto de enxerto e são sexualmente atraentes.
Preste atenção e é um favor: estou convidando você para mudar-se para reino novo.
Já o cravo tem uma agressividade que vem de certa irritação. São ásperas e arrebitadas as pontas de
suas pétalas. O perfume do cravo é de algum modo mortal. Os cravos vermelhos berram em violenta
beleza. Os brancos lembram o pequeno caixão de criança defunta: o cheiro então se torna pungente e
a gente desvia a cabeça para o lado com horror. Como transplantar o cravo para a tela?
O girassol é o grande filho do sol. Tanto que sabe virar sua enorme corola para o lado de quem o
criou. Não importa se é pai ou mãe. Não sei. Será o
contém o rudimento da semente.
Pólen — Pó fecundante, produzido nos estames e contido nas anteras.
Estame — Órgão masculino da flor, composto pelo estilete e pela antera na sua parte inferior em
torno do pistilo que, como acima foi dito, é o órgão feminino da flor.
Fecundação — União de dois elementos de geração (masculino e feminino), da qual resulta o fruto
fértil.
Rosa — É a flor feminina, dá-se toda e tanto que para ela própria só resta a alegria de se ter dado.
Seu perfume é de um mistério feminino, se profundamente aspirada, toca no fundo do coração e deixa
o corpo todo perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. Suas pétalas têm um gosto
bom na boca, é só experimentar. As vermelhas ou as príncipe negro são de grande sensualidade. As
amarelas dão um alarme alegre. As brancas são a paz. As cor-de-rosa são em geral mais carnudas e
têm a cor por excelência. As alaranjadas são sexualmente atraentes.
Cravo — Tem uma agressividade que vem de certa irritação. São ásperas e arrebitadas as pontas de
suas pétalas. O perfume do cravo é de algum modo mortal. Os cravos vermelhos berram em violenta
beleza. Os brancos lembram o pequeno caixão de criança defunta; seu cheiro então se torna pungente.
Girassol — É o grande filho do Sol. tanto que já nasce com o instinto de virar sua enorme corola
para o lado de sua mãe. Não importa se o Sol é pai ou mãe, não sei. Será o girassol flor feminina ou
masculina? Acho masculina. Mas uma coisa é certa; o girassol é russo, provavelmente ucraniano.
Violeta — É introvertida, sua introspecção é profunda. Ela não se esconde, como dizem, por
modéstia. Ela se esconde para poder entender o seu
girassol flor feminina ou masculina? Acho que masculina.
A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não
é. Escondese para poder captar o próprio segredo. Seu quase-não-perfume é glória abafada mas
exige da gente que o busque. Não grita nunca o seu perfume. Violeta diz levezas que não se podem
dizer.
A sempre-viva é sempre morta. Sua secura tende à eternidade. O nome em grego quer dizer: sol
de ouro. A margarida é florzinha alegre. É simples e à tona da pele. Só tem uma camada de pétalas. O
centro é uma brincadeira infantil.
A formosa orquídea é exquise e antipática. Não é espontânea. Requer redoma. Mas é mulher
esplendorosa e isto não se pode negar. Também não se pode negar que é nobre porque é epífita.
Epífitas nascem sobre outras plantas sem contudo tirar delas a nutrição. Estava mentindo quando
disse que era antipática. Adoro orquídeas. Já nascem artificiais, já nascem arte.
Tulipa só é tulipa na Holanda. Uma única tulipa simplesmente não é. Precisa de campo aberto
para ser.
Flor dos trigais só dá no meio do trigo. Na sua humildade tem a ousadia de aparecer em
diversas formas e cores. A flor do trigal é bíblica. Nos presépios da Espanha não se separa dos
ramos de trigo. É um pequeno coração batendo.
Mas a angélica é perigosa. Tem perfume de capela. Traz êxtase. Lembra a hóstia. Muitos têm
vontade de comê-la e encher a boca com o intenso cheiro sagrado.
O jasmim é dos namorados. Dá vontade de pôr reticências agora. Eles andam de mãos dadas,
balançando os braços e se dão beijos suaves ao quase som odorante do jasmim.
próprio segredo. O seu perfume é uma glória mas que exige da pessoa uma busca: seu
perfume diz o que não se pode dizer. Um ramo de violeta equivale a "ama os outros como a ti
mesmo".
Sempre-viva — É uma sempre morta. Sua secura tende à eternidade. Seu nome em grego quer
dizer sol de ouro.
Margarida — É uma flor alegrezinha. É simples: só tem uma camada de pétalas. Seu centro
amarelo é uma brincadeira infantil.
Palma — Não tem perfume. Ela se dá altivamente — pois é altiva — em forma e cor. É
francamente masculina.
Orquídea — É formosa, é exquise e antipática. Não é espontânea. Ela quer redoma. Mas é
uma mulher esplendorosa, isto não se pode negar. Também não se pode negar que é nobre; é
epífita, isto é, nasce sobre outra planta sem contudo tirar dela a sua nutrição. Minto: adoro
orquídeas.
Tulipa — Só é tulipa quando em largo campo coberto delas, como na Holanda. Uma única tulipa
simplesmente não é.
Florzinha dos trigais — Só dá no meio do trigo. Tem na sua humildade a ousadia de se mostrar
em diversas formas e cores. A flor do trigal é bíblica. Na Espanha é usada para enfeitar os presépios,
junto a ramos de trigo, do qual jamais se separa.
Angélica — Tem um perfumne de capela. Traz êxtase místico. Lembra a hóstia. Muitos têm
vontade de comê-la e encher a boca com o seu perfume intenso e sagrado.
Jasmim — É dos namorados: eles andam de mãos dadas balançando os braços, e se dão
beijinhos suaves, eu diria ao som odorante do jasmim.
Estrelícia — É masculina por excelência. Tem uma agressividade de
Estrelícia é masculina por excelência. Tem uma agressividade de amor e de sadio orgulho.
Parece ter crista de galo e o seu canto. Só que não espera pela aurora. A violência de tua beleza.
Dama-da-noite tem perfume de lua cheia. É fantasmagórica e um pouco assustadora e é para
quem ama o perigo. Só sai de noite com o seu cheiro tonteador. Dama-da-noite é silene. E também da
esquina deserta e em trevas e dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas. É
perigosíssima: é um assobio no escuro, o que ninguem aguenta. Mas eu aguento porque amo o perigo.
Quanto à suculenta flor de cáctus, é grande e cheirosa e de cor brilhante. É a vingança sumarenta que
faz a planta desértica. É o esplendor nascendo da esterilidade despótica.
Estou com preguiça de falar da edelvais. É que se encontra à altura de três mil e quatrocentos
metros de altitude. É branca e lanosa. Raramente alcançável: é a aspiração.
Gerânio é flor de canteiro de janela. Encontra-se em São Paulo, no bairro de Grajaú e na Suiça.
Vitória-régia está no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Enorme e até quase dois metros de
diâmetro. Aquáticas, é de se morrer delas. Elas são o amazônico: o dinossauro das flores. Espalham
grande tranqüilidade. A um tempo majestosas e simples. E apesar de viverem no nível das águas elas
dão
sombra. Isto que estou te escrevendo é em latim: de natura florum. Depois te mostrarei o meu estudo
já transformado em desenho linear.131
amor e de sadio orgulho. Parece ter crista de galo, tem o seu canto, só que não espera pela
aurora — quando se a vê realmente, ela dá o seu grito visual de saudação ao mundo, que este é
sempre nascido.
Azaléia — Há quem a chame de azálea, mas prefiro mesmo azaléia. É espiritual e leve; é uma
flor feliz e que dá felicidade. Ela é humildemente bela. As pessoas que se chamam Azaléia — como
minha amiga Azaléia — adquirem as qualidades da flor: é uma alegria pura lidar com elas. Recebi
de Azaléia muitas azaléias brancas que perfumaram a sala toda.
Dama-da-noite — Tem perfume de lua cheia. É fantasmagórica e um pouco assustadora: só
sai à noite, com seu cheiro embriagador, misterioso, silente. É também das esquinas desertas e em
trevas, dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas. É perigosa.
Flor de cactos — A flor de cactos é suculenta, às vezes grande, cheirosa e de cor brilhante:
vermelha, amarela e branca. É a vingança sumarenta que ela faz para a planta desértica: é o
esplendor nascendo da esterilidade despótica.
Edelvais — Encontra-se apenas nas grandes alturas, embora nunca acima de 3.400 metros de
altitude. Essa Rainha dos Alpes, como também é chamada, é o símbolo da conquista do homem. É
branca e lanosa. Raramente atingível: é
uma aspiração humana.
Gerânio — Flor de canteiro de janela na Suiça, em São Paulo, no Grajaú. Tem o sarcófilo, isto
é, folha suculenta, muito cheiroso.
Vitória-régia — No Jardim Botânico do Rio há enormes, até quase dois metros de diâmetro.
Aquáticas, lindas de morrer. Elas são o Brasil grande. Evoluentes: no primeiro dia brancas, depois
rosadas ou mesmo avermelhadas. Espalham grande tranqüilidade. A um tempo majestosas e simples.
Apesar de viverem no nível das águas, elas dão sombra.132
131 LISPECTOR. Água viva, p. 57-61.
Clarice se apropria da crônica-citação e, mesmo copiando palavra por palavra, altera a
pontuação e apaga o itálico que existia na crônica, reforçando sua suposta autoria duas
vezes, não fossem as aspas que permanecem e que, por isso mesmo, designam uma
renúncia a um direito de autor (conferir, no fragmento, o texto do Gênesis). Nesse caso, o
texto da crônica "De natura florum" aparece com o título de "Dicionário", sendo, por isso,
uma "citação por excelência", como disse Compagnon.133 No livro, diferentemente, a
crônica "De natura florum" não passa de mais uma "citação"/fragmento que compõe a
escritura, mesmo vindo entre aspas e denominando seu lugar de origem. Os demais
fragmentos não vêm entre aspas mas trazem encimando no texto o dia, o mês e o ano da
publicação. Quer seja com aspas ou sem, com itálico ou não, sendo epígrafe ou citação, o
importante é o trabalho de recortar e colar, de reescrever, ou melhor, o trabalho de
reaproveitar fragmentos os mais diversos possíveis na montagem da escritura
fragmentária que constitui o livro. O processo mesmo de Clarice recopiar o fragmento
"bíblico" da crônica para dentro do livro, apropriando-se como lhe convém, apaga 132 LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p. 525-528. A crônica "De natura florum" foi publicada no Jornal do Brasil, em 3 de abril de 1971.
133 COMPAGNON. O trabalho da citação, p. 27.
radicalmente a origem bíblica do texto. Tal processo pode ser tomado como o exemplo da
própria prática intratextual buscada por Clarice para a "composição" da escritura. Copiar,
aleatoriamente, algumas palavras e seus significados da crônica "Dicionário" também
reforça a prática fragmentária de montar a escritura do livro. Reescrevendo o que lhe
convém, os fragmentos vão sendo justapostos e colados no corpo da escritura que
"borbulha na fonte" mesma do ato de criar.
Os fragmentos que aparecem recortados, reescritos e colados às páginas 61, 62
e 63 do livro Água Viva, remetem o leitor clariceano, imediatamente, para a crônica ali
disseminada "Eu tomo conta do mundo":
Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta
do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar e vejo as espessas
espumas mais brancas e que durante a noite as águas avançaram inquietas. Vejo isto pela marca que
as ondas deixam na areia. Olho as amendoeiras da rua onde moro. Antes de dormir tomo conta do
mundo e vejo se o céu da noite está estrelado e azul-marinho porque em certas noites em vez de
negro o céu parece azul-marinho intenso, cor que já pintei em vitral. Gosto de intensidades. Tomo
conta do menino que tem nove anos de idade e que está vestido de trapos e magérrimo. Terá
tuberculose, se é que já não a tem. No Jardim Botânico, então, fico exaurida. Tenho que tomar conta
com o olhar de milhares de plantas e árvores e sobretudo da vitória-régia. Ela está lá. E eu a olho.
Repare que não menciono minhas
Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o
pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as espumas parecem mais brancas e que às vezes
durante a noite as águas avançaram inquietas, vejo isso pela marca que as ondas deixaram na
areia. Olho as amendoeiras de minha rua. Presto atenção se o céu da noite, antes de eu dormir e
tomar conta do mundo em forma de sonho, se o céu de noite está estrelado e azul-marinho, porque
em certas noites em vez de negro parece azul-marinho. O cosmos me dá muito trabalho, sobretudo
porque vejo que Deus é o cosmos. Disso eu tomo conta com alguma relutância.
Observo o menino de uns dez anos, vestido de trapos e magérrimo. Terá futura tuberculose, se
é que já não a tem.
No Jardim Botânico, então, fico
exaurida, tenho que tomar conta com o
impressões emotivas: lucidamente falo de algumas das milhares de coisas e pessoas das quais
tomo conta. Também não se trata de emprego pois dinheiro não ganho por isto. Fico apenas sabendo
como é o mundo.
Se tomar conta do mundo dá muito trabalho? Sim. Por exemplo: obriga-me a me lembrar do
rosto inexpressivo e por isso assustador da mulher que vi na rua. Com os olhos tomo conta da
miséria dos que vivem encosta acima.
Você há de me perguntar por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida.
Tomei em criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando um
mínimo de folha. O que não impede que cada uma comunique alguma coisa à que vier em direção
oposta. Formiga e abelha já não são it. São elas.
Li o livro sobre as abelhas e desde então tomo conta sobretudo da rainhamãe. As abelhas voam
e lidam com flores. É banal? Isto eu mesma constatei. Faz parte do trabalho registrar o óbvio. Na
pequena formiga cabe todo o mundo que me escapa se eu não tomar cuidado. Por exemplo: cabe
senso instintivo de organização, linguagem para além do supersônico e sentimentos de sexo. Agora
não encontro uma só formiga para olhar. Que não houve matança eu sei porque senão já teria sabido.
Tomar conta do mundo exige também muita paciência: tenho que esperar pelo dia em que me
apareça uma formiga.
Só não encontrei ainda a quem prestar contas.134
olhar das mil de plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias.
Que se repare que não menciono nenhuma vez as minhas impressões emotivas: lucidamente
apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de quem eu tomo conta. Também não se
trata de um emprego pois dinheiro não ganho por isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.
Se tomar conta do mundo dá trabalho? Sim. E lembro-me de um rosto terrivelmente
inexpressível de uma mulher que vi na rua. Tomo conta dos milhares de favelados pelas encostas
acima. Observo em mim mesma as mudanças de estação: eu claramente mudo com elas.
Hão de me perguntar por que tomo conta do mundo: é que nasci incumbida. E sou
responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras, e pelos crimes de leso-corpo e lesa-alma.
Sou inclusive responsável pelo Deus que está em constante cósmica evolução para melhor.
Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando
um pedacinho e folha, o que não impede que cada uma, encontrando uma fila de formigas que
venha de direção oposta, pare para dizer alguma coisa às outras.
Li o livro célebre sobre as abelhas, e tomei desde então conta das abelhas, sobretudo da
rainha-mãe. As abelhas voam e lidam com flores: isto eu constatei.
Mas as formigas têm uma cintura muito fininha. Nela, pequena como é,
cabe todo o mundo que, se não tomar cuidado, me escapa: senso instintivo de organização,
linguagem para além do supersônico aos nossos ouvidos, e provavelmente para sentimentos
instintivos de amor-sentimento, já que falam. Tomei muito conta de formiga quando era pequena, e
agora, que eu queria tanto poder revê-las, não encontro uma. Que não houve matança delas, eu sei
porque se tivesse havido eu já teria sabido. Tomar conta do mundo exige também muita paciência:
tenho que esperar pelo dia em que me apareça uma formiga. Paciência: observar as flores
impercepti-velmente e lentamente se abrindo.
Só não encontrei ainda a quem prestar contas.135
Se lermos atentamente a parte do livro e o texto-crônica perceberemos que a autora corta
e recorta, emenda e reescreve, naturalmente, dentro de uma prática comum, onde "registra
o óbvio", misturando não só os fragmentos, como os temas que são os mais diversos
possíveis. O tema do fragmento aqui descrito já abre o novo parágrafo do livro,
interligando um novo fragmento (crônica) que trata de um "assunto", e que a princípio
não tem nada a ver com o anterior:
Ou não? Pois estou te prestando contas aqui mesmo. Vou agora mesmo prestarte contas daquela
primavera que foi bem seca. O rádio estalava ao captar-lhe a estática. A roupa eriçava-se ao largar a
eletricidade do corpo e o pente erguia os cabelos imantados — esta era uma dura primavera. Ela
estava exausta do inverno e brotava toda elétrica. De qualquer ponto em que se estava partia-se para
o
Essa primavera era bem seca, e o rádio estalava captando sua estática, a roupa eriçava ao
largar a eletricidade do corpo, o pente levantava os cabelos imantados, era uma dura primavera.
E muito vazia. De qualquer ponto em que se estava partia-se para o longe: nunca se viu tanto
caminho. Falava-se pouco; o corpo pesava como seu sono; os olhos estavam grandes e
inexpressivos. No ter-
135 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.420-422. A crônica "Eu tomo conta do mundo" foi publicada no Jornal do Brasil, em 4
de março de 1970.
longe. Nunca se viu tanto caminho. Falamos pouco, tu e eu. Ignoro por que todo o mundo estava
tão zangado e eletronicamente apto. Mas apto a quê? O corpo pesava de sono. E os nossos grandes
olhos inexpressivos como olhos de cego quando estão bem abertos. No terraço estava o peixe no
aquário e tomamos refresco naquele bar de hotel olhando para o campo. Com o vento vinha o sonho
das cabras: na outra mesa um fauno solitário. Olhávamos o copo de refresco gelado e sonhávamos
estáticos dentro do copo transparente. "O que é mesmo o que você disse?", você perguntava. "Eu não
disse nada". Passavam-se dias e mais dias e tudo naquele perigo e os gerânios tão encarnados.
Bastava um instante de sintonização e de novo captava-se a estática farpada da primavera ao vento: o
sonho imprudente das cabras e o peixe todo vazio e nossa súbita tendência ao roubo de frutas. O
fauno agora coroado em saltos solitários. "O que?" "Eu não disse nada". Mas eu percebia um
primeiro rumor como o de um coração batendo debaixo da terra. Colocava quietamente o ouvido no
chão e ouvia o verão abrir
caminho por dentro e o meu coração embaixo da terra — "nada! eu não disse nada!" — e sentia a
paciente brutalidade com que a terra fechada se abria por dentro em parto, e sabia com que peso de
douçura o verão amadurecia cem mil laranjas e sabia que as laranjas eram minhas. Porque eu
queria.137
raço estava o peixe no aquário, tomamos refresco olhando para o campo. Com o vento, vem
do campo o sonho das cabras. Na outra mesa do terraço, um fauno solitário. Olhamos o copo de
refresco e sonhamos estáticos dentro do copo. "O que é que você disse?" "Eu não disse nada".
Passavam-se dias e mais dias. Mas bastava um instante de sintonização e de novo captava-se a
estática farpada da primavera: o sonho imprudente das cabras, o peixe todo vazio e uma súbita
tendência ao roubo de frutas, o fauno coroado em saltos solitários. "O que?" "Nada, eu não disse
nada". Mas eu percebia um primeiro rumor como um coração batendo debaixo da terra. Quieta,
colava meu ouvido na terra e ouvia o verão abrir caminho por dentro, e meu coração embaixo da
terra, oh nada! — eu não disse nada! — e sentia a paciente brutalidade com que a terra fechada
se abria por dentro em parto, e sabia com que peso de douçura o verão amadurecia 100 mil
laranjas, e sabia que as laranjas eram minhas — só porque assim queria.136
136 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 490-491. A crônica "Lembrança de uma primavera suíça" foi publicada no Jornal do
Brasil, em 10 de outubro de 1970.
Depois de ler "o livro sobre as abelhas" e de cuidar de formigas, porque faz parte do
trabalho "registrar o óbvio", e por não ter ninguém a quem prestar contas, a narradora
personagem se põe a prestar conta ali mesmo, ao seu leitor imaginário e a si mesma, para
que a narrativa não se esvaia, falando da "lembrança de uma primavera suíça". Como se
vê, fragmentos tão desconexos, temas tão díspares, são colados e justapostos para que o
quebra-cabeça escritural não pare, não destoe, mantendo aquele fio (tom) fragmentário
que o sustém. Há um diálogo no fragmento disfarçando o grande monólogo que constitui
a escritura do livro e denunciando, por conseguinte, a exatidão da cópia, ou melhor, a
transcrição perfeita que a autora faz da crônica para o livro. Se a narradora-personagem
dialoga com seu leitor imaginário, o sujeito-leitor, por sua vez, sabe que é com esse
grande monólogo fragmentado que terá que ensaiar uma escrita e improvisar uma leitura
para que nas "entrelinhas" dos fragmentos o não-dito se apresente: aquilo que não é ainda
da ordem do sentido, mas da ordem do fazer, o texto é a prática do papel. É nesse
trabalho por fazer que o leitor deve investir-se, incansavelmente, como num jogo,
querendo montar as peças desse quebra-cabeça improvisado e inacabado, no qual ele sabe
que nada mais é senão uma "mão-de-obra" que pratica a ação de trabalhar fragmento por
fragmento, fazendo o processo textual interminável de Água Viva. Como disse
Compagnon: "O working paper é o trabalho em processo, o texto se construindo (...). É o
papel em trabalho."138 Ler o livro Água Viva é meio isto: não basta detectar os fragmentos
ali colados, nem muito menos saber que sua escritura é fragmentária do começo ao fim; 138
COMPAGNON. O trabalho da citação, p.33.
antes, ler Água Viva é querer, desejar mesmo, o trabalho de descolar tais fragmentos para
colá-los em outro lugar, enfim, construir outro texto — não mais "borbulhante" mas
flutuante — através de uma leitura que não vise à totalidade, porque ela também é
fragmentária, cortada, intervalada, "esquecida" como o sujeito que a pôs em prática.
Nesse caso, ler já seria o trabalho de cortar e recortar, mais do que um sentido por outro,
mas um fragmento por outro, pelo simples prazer de pôr em movimento tudo o que viria a
ser chamado texto.
Reescrevendo, recortando e colando, os fragmentos deslizam por sobre o corpo
escritural não menos deslizante que não pára de emanar sentidos, os quais também
deslizam de um fragmento para outro, não se fixando em nenhum texto que não se quer
acabado, como mostra o seguinte fragmento:
... eu o vi de repente e era um homem tão extraordinariamente bonito e viril que eu senti uma
alegria de criação. Não é que eu o quisesse para mim assim como não quero para mim o menino que
vi com cabelos de arcanjo correndo atrás da bola. Eu queria somente olhar. O homem olhou um
instante para mim e sorriu calmo: ele sabia quanto era belo e sei que sabia que eu não o queria para
mim. Sorriu porque não sentiu ameaça alguma. É que os seres excepcionais em qualquer sentido
estão sujeitos a mais
perigos do que o comum das pessoas. Atravessei a rua e tomei um táxi. A brisa arrepiava-me os
cabelos da nuca. E eu estava tão feliz que me encolhi no canto do táxi de medo porque a felicidade
dói. E isto tudo causado pela
... eu o vi de repente e era um homem tão extraordinariamente bonito e viril que eu senti uma
alegria de criação. Não é que eu o quisesse para mim assim como não quero a Lua nas suas noites
em que ela se torna leve e frígida como uma pérola. Assim como não quero para mim um menino de
nove anos que vi, com cabelos de arcanjo, correndo atrás da bola. Eu queria em tudo somente
olhar. O homem olhou um instante para mim e sorriu calmo: ele sabia quanto era belo, e sei que
sabia
que eu não o queria para mim, ele sorriu porque não sentiu nenhuma ameaça. (Os seres
excepcionais estão mais sujeitos a perigos do que o comum das pessoas). Atravessei a rua e
apanhei um táxi. A brisa me arrepiava os cabelos da
visão do homem bonito. Eu continuava a não querê-lo para mim — gosto é das pessoas um
pouco feias e ao mesmo tempo harmo-niosas, mas ele de certo modo dera-me muito com o sorriso de
camaradagem entre pessoas que se entendem. Tudo isso eu não entendia.139nuca e era outono mas
parecia prenunciar uma nova primavera como se o verão estafante merecesse a frescura do
nascimento de flores. Era no entanto outono e as folhas amarelavam nas amendoeiras. Eu estava tão
feliz que me encolhi num canto do táxi de medo pois a felicidade também dói. E tudo isso causado
pela visão de um homem bonito. Eu continuava a não querê-lo para mim mas ele de algum modo
me dera muito com o seu sorriso de camaradagem entre pessoas que se entendem. A essa altura,
perto do Viaduto do Museu de Arte Moderna, eu já não me sentia feliz, e o outono me pareceu uma
ameaça dirigida contra mim. Tive então vontade de chorar de manso.140
A crônica "Chorando de manso" é simplesmente recortada, reescrita em algumas partes, e
colada no corpo da escritura: o seu modo original de começar por reticências e letra
minúscula permanece, inclusive, na escritura, reforçando o trabalho simples de colagem
operado pela autora. Quer seja na crônica, quer seja no livro, tem-se um fragmento que já
começa pelo meio, destoando de tudo o que viria antes ou depois, e reforçando, com isso,
o porquê de ser um objeto (texto) fragmentado. Um fragmento vai ser sempre um
fragmento, não importando o lugar e contexto em que aparecer, porque ele existe em sua
uni(ci)dade e porque só nela ele pode se configurar enquanto tal. O máximo que podemos
fazer é contornar o seu contorno, o seu desenho que, quase sempre, é informe e disforme
ao mesmo tempo. É no trabalho com o papel, recortando e colando, até que o fragmento 139
LISPECTOR. Água viva, p.65-66.
140 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.427-428. A crônica "Chorando de manso" foi publicada no Jornal do Brasil, em 14 de
março de 1970.
chegue a um estado de alto-relevo, que podemos entrar no jogo e alterá-lo a nosso bel
prazer. Caso contrário, todos os fragmentos permaneceriam no corpo amorfo de uma
suposta escritura emanando um sentido arcaico para um sujeito-leitor parasitário, não
podendo haver cena mais deprimente e totalidade de criação mais perfeita. O bom
trabalho acontece justamente quando, como disse Clarice: "A criação me escapa."141 Ou
só como ela mesma poderia concluir: "Eu, que fabrico o futuro como uma aranha
diligente. E o melhor de mim é quando nada sei e fabrico não sei o quê."142 Assim como a
autora que se lança no traço de seu desenho sem forma e imprevisto, também o leitor,
através de seu ofício, deve aventurar-se no trabalho de compreender os fragmentos
esgarçados da composição ficcional. Compreender tais fragmentos não quer dizer dar-lhes
o último sentido, mas, pelo contrário, que eles resultem de uma "experiência de uma falta
de construção". Embora a autora afirme que seu texto é "atravessado de ponta a ponta por
um frágil fio condutor", percebemos que o tempo do ato de escrever é o mesmo tempo do
ato de ler, independentemente de quem os pratica. O tempo da escritura é um tempo sem
tempo, atemporal, "é uma sensação atrás do pensamento". É o momento em que o
"objeto" é visto e eminentemente esquecido, semelhante àquele momento em que, no rio,
a água viva passa e já não é mais. Enfim, o tempo da escritura é o tempo da voz que a
atravessa, do começo ao fim, sendo a leitura o timbre dessa voz que quase não se diz.
Vale lembrar que no livro não se conta uma história, senão apenas palavras que vivem de "som", ou
melhor, são esse som, que dura um instante: "Estas minhas frases balbuciadas
são feitas na hora mesma em que estão sendo escritas e crepitam de tão novas e ainda
verdes."143
Nesse mundo minado chamado texto, sem tempo de escrita e de leitura, em que
um fragmento reclama por outro fragmento, unidos por um fio de voz esgarçada,
encontramos, em meio à colagem, uma "conversa puxando outra conversa", mais pessoal,
mais ligada ao "eu" que subjaz na trama ou entrelinhas dos fragmentos justapostos:
Ontem eu estava tomando café e ouvi a empregada na área de serviço a pendurar roupa na corda
e a cantar uma melodia sem palavras. Espécie de cantilena extremamente plangente. Perguntei-lhe de
quem era a canção, e ela respon-deu: é bobagem minha mesmo, não é de ninguém.144
Eu estava na copa tomando um café e ouvi a cozinheira na área de serviço cantando uma
melodia sem palavras, uma espécie de cantilena extremamente harmoniosa. Pergunteilhe de quem
era a canção. Respondeu: é bobagem minha mesmo.
Ela não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo. Parei de tomar o café,
meditei: o mundo ainda será muito mais criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão
atrasados em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa não será usada como palavra, nem
mesmo vai se falar nela: apenas tudo se criará. Não é culpa nossa — continuei com meu café — se
estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em "milhares de anos à nossa frente", deu-me
quase uma vertigem pois não consigo contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e
esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos, é possível que voltemos às
cavernas e que tudo se repita de novo? Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o
mundo será
daqui a lado, continuei, nós estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai
dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto estamos secos como um figo
seco onde ainda há um pouco de umidade.
Enquanto isso a empregada estende roupa na corda e continua sua melopéia sem palavras.
Banho-me nela. A empre-gada é magra e morena, e nela se aloja um "eu". Um corpo separado dos
outros,
e a isso se chama de "eu"? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado
corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado. Ela é um
"eu".145
Clarice reaproveita, na montagem do livro, somente o primeiro parágrafo da crônica. A
cópia do "pedaço" é perfeita e mostra, por conseguinte, a prática usada pela autora na
construção do livro que é, como estamos frisando, a de recortar e colar, a bel-prazer, os
fragmentos encontrados no "fundo de gaveta" no qual se armazena de tudo, e há anos,
resumindo, de certa forma, o próprio pensamento fragmentário da escritora Clarice
Lispector. Tal fragmento vai servir de "gancho" para a abertura do próximo parágrafo do
livro, em que ela diz: "Sim, o que te escrevo não é de ninguém."146 O que demonstra, por
seu lado, que a escrita é remetida à própria escrita, para o próprio ato de escrever, uma 145
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.444-445. A crônica "Conversa puxa conversa à-toa" foi publicada no Jornal do Brasil, em
16 de maio de 1970.
escrita que não é "corrigida" pelo seu autor, sem revisão, e que acontece no tempo mesmo
do trabalho de escrever. No entanto, uma escrita com "autor verdadeiro", que confirma:
"E não escrevo para te agradar."147 E que diria, sem se contradizer, porque chegou a tal
"liberdade" de pensar-sentir-escrever que "o verdadeiro pensamento parece sem autor".148
Resumindo, diríamos que a montagem dos fragmentos é a forma como dessa vez,
sobretudo, acontece o livro (Água Viva) para Clarice. O livro só, não, mas a própria
escrita. Os fragmentos, nesse caso, são o material que o escritor tem às mãos. Aliás, como
muito bem observou Calabrese, "o fragmento como material criativo corresponde também
a uma exigência formal e de conteúdo. Formal: exprimir o caos, a casualidade, o ritmo, o
intervalo da escrita. De conteúdo: evitar a ordem das conexões, afastar para longe 'o
monstro da totalidade'."149
O fragmento do livro que se segue, em sua origem intitula-se, oportunamente,
"Brain Storm" e sintetiza a exigência do fragmento com relação à forma e ao conteúdo de
que fala Calabrese. Numa verdadeira "tempestade cerebral", e cada vez mais longe do que
poderia chamar-se texto, ou contar-se uma história, tem-se um fluxo contínuo do que vem
à mente, quer sejam palavras, pensamentos-palavras, frases desconexas como um "objeto"
solto na página, enfim, nada mais do que verdadeiros fragmentos "quebrados", reforçando
que o inteiro (no caso o texto de Água Viva) está in absentia. Tal fragmento, de certa
146 LISPECTOR. Água viva, p.84.
147 Ibidem. p.85.
148 Ibidem. p.91.
149 CALABRESE. A idade neobarroca, p.101.
forma, resume o ser do livro como um todo. Pela reescrita, a autora escreve no livro: "É
preciso coragem para escrever o que me vem: nunca se sabe o que pode vir e assustar";
enquanto na crônica, lia-se: "É preciso ter coragem para fazer um brain storm: nunca se
sabe o que pode vir e nos assustar". Quer seja na coragem para "escrever", quer seja na
coragem para "fazer", o que constatamos é que "o monstro sagrado [da totalidade do que
quer que seja] morreu".150 Não há mais texto — como tão comumente se diz — mas tão
somente fragmentos de fragmentos que foram para sempre "desarqueologizados",
perdendo definitivamente a origem, evitando o centro (do texto) e a ordem do discurso,
mas mantendo sua forma "quebrada" que, dessa vez, se aproxima do "não-livro" ou, para
usar uma definição da própria autora com relação ao livro, "fac-símile de livro".151
Vejamos tal fragmento:
150 LISPECTOR. Água viva, p.87. 151 Ibidem. p.55.
Ah se eu sei que era assim eu não nascia. Ah se eu sei eu não nascia. A loucura é vizinha da
mais cruel sensatez. Isto é uma tempestade de cérebro e uma frase mal tem a ver com outra. Engulo a
loucura que não é loucura — é outra coisa. Você me entende? Mas vou ter que parar porque estou tão
e tão cansada que só morrer me tiraria deste cansaço. Vou embora.
Voltei. Agora tentarei me atualizar de novo com o que no momento me ocorre — e assim criarei
a mim mesma. É assim:
O anel que tu me destes era de vidro e se quebrou e o amor acabou. Mas às vezes em seu lugar
vem o ódio dos que amaram e se entredevorararam.. A cadeira que está aí em frente me é um objeto.
Inútil enquanto eu a olho. Digame por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta
hora. Estou me encontrando comigo mesma: é mortal porque só a morte me conclui. Mas eu
agüento até o fim. Vou lhe contar um segredo: a vida é mortal. Vou ter que interromper tudo para te
dizer o seguinte: a morte é o impossível e o intangível. De tal forma a morte é apenas futura e há
quem não a agüente e se suicide. É como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não houvesse
o seguinte. Só os dois pontos à espera. Nós mantemos este segredo em mutismo para esconder que
cada instante é mortal. O objeto cadeira me interessa. Eu amo os objetos na medida em que eles não
me amam. Mas se não compreendo o que escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar porque falar
salva. Mas não tenho nenhuma palavra a dizer. O que é que na loucura da franqueza uma pessoa diria
a si mesma? Mas seria a salvação. Embora o terror
Ah, se eu sei, não nascia, ah se eu sei, não nascia. A loucura é vizinha da mais cruel sensatez.
Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente. O anel que tu me destes era de vidro e se
quebrou e o amor não acabou, mas em lugar de, o ódio dos que amam. A cadeira me é um objeto.
Inútil enquanto a olho. Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta
hora. A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse germe mas tenho
incipiente a loucu-ra que em si mesma é criação válida. Nada mais tenho a ver com a validez das
coisas. Estou liberta ou perdida. Vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse
segredo em mutismo cda um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante
mortal. Ibrahim Sued disse que era um imortal sem fardão. O objeto cadeira sempre me interessou.
Olho esta que é antiga, comprada num antiquário
em Berna, e estilo império: não se poderia imaginar maior simplicidade de linhas, contrastando
com o assento de feltro vermelho. Eu amo os objetos na medida em que eles não me amam. Mas se
não compreendo o que escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar pois falar salva. Mas não
tenho uma só palavra a dizer. As palavras já ditas me amorda-çaram a boca. O que é que uma
pessoa diz a outra? Fora "como vai?"Se desse a loucura da franqueza, que diriam as pessoas às
outras? E o pior é o que se diria uma pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a
franqueza seja determinada no nível consciente, e o terror da franqueza vem da parte que tem no
vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criadora inconsciên-cia do mundo. Hoje
da franqueza venha da parte das trevas que me ligam ao mundo e à criadora inconsciência do
mundo. Hoje é noite de muita estrela no céu. Parou de chover. Eu estou cega. Abro bem os olhos e
apenas vejo. Mas o segredo — este não vejo nem sinto. Estarei fazendo aqui verdadeira orgia de
detrás do pensa-mento? orgia de palavras? A eletrola está quebrada. Olho a cadeira e desta vez foi
como se ela também tivesse olhado e visto. O futuro é meu — enquanto eu viver. Vejo as flores na
jarra. São flores do campo e que nasceram sem se plantar. São amarelas. Mas minha cozinheira
disse: que flores feias. Só porque é difícil amar o que é franciscano. No atrás do meu pensamento
está a verdade que é a do mundo. A ilogicidade da natureza. Que silêncio. "Deus" é de um tal enorme
silêncio que me aterroriza. Quem terá inventado a cadeira? É preciso coragem para escrever
o que me vem: nunca se sabe o que pode vir e assustar. O monstro sagrado morreu. Em seu lugar
nasceu uma menina que era órfã de mãe. Bem sei que terei que parar. Não por falta de palavras mas
porque estas coisas e sobretudo as que só penso e não escrevi — não se dizem.152
é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim pro-mete esta tarde triste que uma palavra
humama salvaria. A pior cegueira é a dos que não sabem que estão cegos. Abro bem os olhos, e
não adianta: apenas vejo. Mas o segredo, este não vejo nem sinto. A eletrola está quebrada, o
conserto é muito caro, e não viver com música é trair a condição humana que é cercada de música.
Aliás música é uma abstração do pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel. Aquele abraço,
eu já não agüento mais essa canção que no entanto é toda fraternal. Só posso escrever se estiver
livre, e livre de censura, senão sucumbo. Olho a cadeira estilo império e dessa vez foi como se ela
também me tivesse olhado e visto. O futuro é meu enquanto eu viver. No futuro vai-se ter mais
tempo de viver, e, de cambulhada, escrever. No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia. Marly de
Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima. Aliás eu só sei em todas as
circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada. Tudo o que nunca se fez, far-se-á um dia? O
futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a
loucura: e nela então o humano do homem se refugia. Vejo as flores na jarra: são flores do campo,
nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas minha cozinheira disse: mas que flores feias.
Só porque é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é
vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana. Quantas
mentiras sou obrigada a mentir. Senão, o que me resta? A verdade é o resíduo final de todas as coisas
e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo. A Lua é, como diria Paul Eluard,
éclatante de silence. Hoje não sei se vamos ter Lua visível pos já se torna tarde e não a vejo no céu.
Uma vez numa estação de águas em Minas, para onde acompanhei meu pai, eu olhei de noite para o
céu, circunscrevendo-o com a cabeça deitada para trás, e fiquei tonta de tantas estrelas que se vêem
no campo, pois, o céu do campo é limpo. Não há lógica, se se for pensar um pouco, na ilogicidade
perfei-tamente equilibrada da natureza. Da natureza humana também. O que seria do mundo, do
cosmos, se o homem não existisse. Se eu pudesse escrever sempre assim como estou escrevendo
agora eu estaria em plena tempestade de cérebro que significa brain storm. Quem terá inventado a
cadeira? Alguém com amor por si mesmo. Inventou então um maior conforto para o seu corpo.
Depois os séculos se seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira, pois
usá-la é apenas automático. É preciso ter coragem para fazer um brain storm: nunca se sabe o que
pode vir e nos assustar. O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era órfã
de mãe. Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas e
sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.153
152 LISPECTOR. Água viva, p.85-87.
153 LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.374-376. A crônica "Brain storm" foi publicada no Jornal do Brasil, em
22 de novembro de 1969. O mesmo fragmento, agora intitulado "Tempestade de almas", aparece em Onde estivestes de noite.
Tais fragmentos não nos possibilitam quaisquer tipos de comparação entre si, por
existirem em sua própria uni(ci)dade textual, independente do lugar ou conjunto em que
aparecem, são textos de textos, textos. Somente pela leitura, enquanto trabalho de citar
que, pela sua natureza, se aproxima do ato de escrever, podemos grifar no texto do
"instante" a lembrança do outro texto ali subjacente. A leitura grifada que fizemos,
sobretudo nos finais dos fragmentos, demonstra, mais do que uma síntese do processo de
reescrever operado pela autora, um possível conceito da poética do inacabado que molda
a sua produção e, ao mesmo tempo, sua consciência dilacerante com relação à tal prática.
A respeito ainda do que aqui estamos querendo dizer, Clarice tenta explicar, no livro, "o
ar despojado dos portais", na pintura, e, dos fragmentos, na escritura, quando diz:
A simetria foi a coisa mais conseguida que fiz. Perdi o medo da simetria, depois da desordem
da inspiração. É preciso experiência ou coragem para revalorizar a simetria, quando facilmente se
pode imitar o falso assimétrico, uma das originalidades mais comuns. Minha simetria nos portais da
igreja é concentrada, conseguida, mas não dogmática. É perpassada pela esperança de que duas
assimetrias encontrar-se-ão na simetria. Esta como solução terceira: a síntese.154
Dessa forma, imitando o "falso assimétrico", e fazendo desse sua maior
originalidade, Clarice monta sua "simetria arquitetural" que resume o livro-ficção Água
Viva enquanto fragmentos dispostos por uma simetria assimétrica: "Daí talvez o ar
despojado dos portais, a delicadeza de coisa vivida e depois revivida, e não um certo
arrojo inconseqüente dos que não sabem."155154 LISPECTOR. Água viva, p.77. (Grifo nosso) 155 Ibidem. p.77.
Na "dura escritura" que constitui o escrever para Clarice em Água Viva, há,
como ela mesma diz, "uma dura luta pela coisa que apesar de corroída se mantém de
pé".156 E continua a autora mais adiante: "Minhas cruzes são entortadas por séculos de
mortificação. Os portais já são um prenúncio de altares? O silêncio dos portais. O
esverdeamento deles toma um tom do que estivesse entre vida e morte, uma intensidade
de crepúsculo."157 Se os portais, em tal imagem, já são o prenúncio de seu próprio
silêncio, o livro Água Viva é, conseqüentemente, como considerou Olga Borelli, "o
prenúncio do fim" ou "a ante-sala da desagregação absoluta".158 Entretanto, se nos
reportarmos para a penúltima página do livro, ali encontramos a preocupação maior que
permeia a vida da escritora a partir dessa época, sobretudo o período em que escreveu
para o Jornal do Brasil. Em tal página, vamos encontrar, reescrita, a crônica intitulada
"Mistério", publicada no Jornal do Brasil em 7 de setembro de 1968. Por volta desse ano,
Clarice escrevia o livro Uma Aprendizagem e recolhia material para o livro Água Viva.
Nesse período, o mistério que rondava o trabalho da autora era, antes de tudo, uma nova
prática de escrever, como a crônica reescrita vai rememorar no livro:
O que quero agora escrever? Quero alguma coisa tranqüila e sem modas. Alguma coisa como a
lembrança de um monumento alto que parece mais alto porque é lembrança. Mas quero de passagem
ter realmente tocado no monumento.159
156 Idem.
157 LISPECTOR. Água viva, p.77-78.
158 Ver GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.412.
159 LISPECTOR. Água viva, p.70. O texto-crônica diz o seguinte: "Quando comecei a escrever, que desejava eu atingir? Queria
escrever alguma coisa que fosse tranqüila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto Sem saber o que
simbolizava a palavra monumento, Clarice terminou escrevendo coisas
inteiramente diferentes, a partir de então, como o livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres e sobretudo o livro Água Viva, que pode ser lido como síntese da poética da
autora.
Além das crônicas aqui citadas, outras de origem mais remota, como "A pesca
milagrosa",160 vão aparecer tecendo a fragmentação escritural do livro. Tais crônicas,
intituladas "Os espelhos de Vera Mindlin" e "Esboço de um guarda-roupa" têm como
origem a segunda parte do livro A Legião Estrangeira que se intitulava, precisamente,
"Fundo de gaveta". Mais tarde, essa segunda parte é publicada separadamente dos contos
com o título de Para não Esquecer. Em nota explicativa a "Fundo de gaveta" (1964),
Clarice se perguntava: "Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também
não presta. Além do mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito.
Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente
tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão."161 Tal afirmativa, por sua vez, reforça a
prática que vai moldar a escritura do livro que se constitui, basicamente, em "amontoar"
os fragmentos dispersos pelo caminho da produção da autora. De anotação em anotação,
de fragmento em fragmento, valendo-se do que presta e do que não presta, tudo vem a
público, ou melhor, inscreve-se e se apresenta formando o corpo escritural fragmentário
monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente
não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes." LISPECTOR. A
descoberta do mundo, p.190.
160 Cf. p.196 deste trabalho.
161 LISPECTOR. A legião estrangeira, p.127.
de Água Viva. E formando também, de certa forma, já que os fragmentos representam o
próprio modo de pensar da autora, a inscrição do corpo e da voz do escritor no papel:
"Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus corpos pelos
caminhos."162
Das duas crônicas de "Fundo de gaveta", a primeira que aparece reescrita
dentro do livro é "Os espelhos de Vera Mindlin", compondo um grande texto-fragmento
colado às páginas 78, 79, 80 e 81 do livro Água Viva. Ao reescrevê-la, Clarice,
obviamente, retira o nome "Vera Mindlin", o que daria um tom pessoal, e subdivide a
crônica em outros blocos (parágrafos) que não existiam na origem. O que, na crônica, era
praticado por Vera Mindlin, no livro, diferentemente, há uma troca de papéis autorais, e a
narradora-escritora é quem "pinta", descreve o espelho. Sem conseguir des/escrever um
espelho, apesar de sua materialidade natural, Clarice acrescenta algo importante ao
fragmento colado no livro: "Não, eu não descrevi o espelho — eu fui ele. E as palavras
são elas mesmas, sem tom de discurso."163 Comparemos tais fragmentos:
Mas agora estou interessada pelo mistério do espelho. Procuro um meio de pintá-lo ou falar
dele com a palavra. Mas o que é um espelho? Não existe a palavra espelho, só existem espelhos,
pois um único é uma infinidade de espelhos. Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de
espelhos? Espelho não é coisa criada e sim nascida. Não são precisos muitos para
O que é um espelho? Não existe a palavra espelho — só espelhos, pois um único é uma
infinidade de espelhos. — Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são
precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do
que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente ad
162 LISPECTOR. Água viva, p.75. 163 Ibidem. p.81.
se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro
refletiu, num tremor que se transmite em mensagem telegráfica intensa e muda, insistente, liquidez em
que se pode mergular a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos dessa dura água que é o
espelho. Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que para o vidente é o seu
campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. E mal posso falar, de tanto silêncio
desdobrado em outros.
Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir pra sempre em frente
sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço
quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é extraordinário. Como um
gato de dorso arrrepiado, arrepio-me diante de mim. Do deserto também voltaria vazia, iluminada e
translúcida, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho.
A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-la e alterálo. Espelho é luz. Um
pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo.
Tire-se a sua moldura ou a linha de seu recortado, e ele cresce assim como água se derrama.
O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem
consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem
caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem —
esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa. Para isso há de se surpreendê-lo quando está
sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele
poderia
infinitum, liquidez em que se pode mergular a mão fascinada e retirá-la escorrendo de
reflexos, os reflexos dessa dura água. — O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes,
ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de
silêncios e silêncios. — Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre
em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. — E é coisa mágica: quem
tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria
vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. — A sua forma
não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho
quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tire-se a sua moldura e ele
cresce assim como água se derrama. — O que é um espelho? é o único material inventado que é
natural.
Quem , como Vera, olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem
consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha
para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem — então
percebeu o seu mistério. Para isso há de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto
vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformálo em simples imagem
de uma agulha.
Vera deve ter precisado de sua própria delicadeza para não atravessálo com a própria
imagem, pois espelho em que eu me veja sou eu, mas espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma
pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio,
transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de
reflexão levíssima, só imagem e não o corpo. Corpo da coisa.
Ao pintá-lo precisei de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem,
pois espelho em que eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa
muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal
ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então
penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: viu o espelho propriamente dito.
E descobriu os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou
outro bloco de gelo. Espelho é frio e gelo. Mas há a sucessão e escuridões dentro dele — perceber
isto é instante muito raro — e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para
poder captar e surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Com cores de preto e
branco recapturei na tela sua lumino-sidade trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturo também,
num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso
entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo assim como se recriasse a
violenta ausência de gosto da água.
Não, eu não descrevi o espelho — eu fui ele. E as palavras são elas mesmas, sem tom de
discurso.165
164 LISPECTOR. A legião estrangeira, p.129-131. 165 LISPECTOR. Água viva, p.78-80.
e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa
pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vera viu o espelho
propriamente dito.
E descobriu os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou
outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro — e é preciso ficar de espreita dias e
noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante — nesse instante ela conseguiu
surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco,
recapturou sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturou
também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É
preciso entender a violenta au
sência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta
ausência de gosto da água.164
A outra crônica que se desloca de "Fundo de gaveta" para ser colada na
composição de Água Viva é "Esboço de um guarda-roupa", que aparece reescrita às
páginas 83 e 84 do livro. Essa crônica acaba esboçando o próprio processo de reescrever e
de colar que a autora pratica, ao apropriar-se de seus textos no decorrer de sua produção
textual. Ao estudar o guarda-roupa, com o intuito de pintar o tema e criar o objeto, a
autora esboça não só a sua prática de escrita, como também a realiza na prática com o
papel:
Mas eu também quero pintar um tema, quero criar um objeto. E esse objeto será — um guarda-
roupa, pois que há de mais concreto? Tenho que estudar o guarda-roupa antes de pintálo. Que vejo?
Vejo que o guarda-roupa parece penetrável porque tem uma porta. Mas ao abri-la, vê-se que se adiou
o penetrar: pois por dentro é também uma superfície de madeira, como uma porta fechada. Função do
guarda-roupa: conservar no escuro os travestis. Natureza: a da inviolabilidade das coisas. Relação
com pessoas: a gente se olha ao espelho da parte de dentro de sua porta, a gente se olha sempre em
luz inconveniente porque o guarda-roupa nunca está em lugar adequado: desajeitado, fica de pé onde
couber, sempre descomunal, corcunda, tímido e desastrado, sem saber como ser mais discreto, pois
tem presença demais. Guarda-roupa é enorme, intruso, triste, bondoso.
Mas eis que se abre a portaespelho — e eis que, ao movimento que
166 LISPECTOR. Água viva, p.83-84. 167 LISPECTOR. A legião estrangeira, p.148.
Parece penetrável porque tem uma porta. Ao abri-la, vê-se que se adiou o penetrar: pois por
dentro é também uma superfície de madeira, como uma porta fechada. Função: conservar no
escuro os travestis. Natureza: a da inviolabilidade das coisas. Relação com pessoas: a gente se
olha ao seu espelho sempre em luz inconveniente porque o guardaroupa nunca está em lugar
adequado: fica de pé onde couber, sempre descomunal, corcunda, tímido, sem saber como ser mais
discreto. Guarda-roupa é enorme, intruso, triste, bondoso. Cerrase, porém, a porta-espelho — e,
ao movimento, na nova composição do quarto em sombra, entram frascos e frascos de vidro.
(Rápida esperteza, contribuição ao quarto, indício de vida dupla, influência no mundo, eminência
parda, o verdadeiro poder nos bastidores.)167
a porta faz, e na nova composição do quarto em sombra, nessa composição entram frascos e frascos
de vidro de claridade fugitiva.166
Como exemplificam os fragmentos textuais acima, a prática da autora só se deixa ser
reconhecida como "o figurativo do inominável", isto é, lugar onde os fragmentos,
trabalhados e retrabalhados, colados e descolados, podem ser reconhecíveis no cenário
escritural mas não podem mais receber um nome senão o de Texto. Comprova-se tal
constatação quando percebe-se que o mesmo fragmento aqui descrito — mas já figurando
um outro texto — aparece como crônica intitulada "Estudo de um guarda-roupa",
publicada no Jornal do Brasil, em 18 de dezembro de 1971:
Parece penetrável porque tem uma porta. Ao abri-la, vê-se que se adiou o penetrar: pois por
dentro é também uma superfície de madeira, como uma porta fechada. Função: conservar no escuro
os travestis. Natureza: a da inviolabilidade das coisas. Relação com pessoas: a gente se olha ao seu
espelho sempre em luz inconveniente porque o guarda-roupa nunca está em lugar adequado: gauche,
fica de pé onde couber, sempre descomunal, corcunda, tímido, sem saber como ser mais discreto.
Guarda-roupa é enorme, intruso, triste, bondoso. Cerra-se, porém, a porta-espelho — e eis que, ao
movimento, na nova composição do quarto em sombra, entram frascos e frascos de vidro de
claridade fugitiva. (Rápida esperteza do guarda-roupa, contribuição ao quarto, indício de vida dupla,
influência no mundo, eminência parda, o verdadeiro poder nos bastidores.)168
Comparando os três textos-fragmentos, diríamos que são tão iguais quanto diferentes.
Iguais, porque partem da primeira escrita-origem, do primeiro rascunho, da primeira
cópia, da primeira grafia, enfim, do primeiro trabalho com a prática com o papel em torno
da primeira escrita do fragmento enquanto texto original. Diferentes, porque são a própria escrita e,
enquanto escrita, são reescrita. Enquanto tal, a escrita é trabalhada de forma que
não seja apenas cópia, mas uma tradução, uma citação, e não só do texto-fragmento
anterior, como também do posterior, por um processo circular de lembrar-escrever
esquecer do autor na prática com o papel. Diferentes ainda porque cada um é sua própria
origem, seu próprio rascunho e sua própria cópia, mesmo que apresentem traços arcaicos
de uma grafia posterior — o que não é problema, porque a cópia, a mais verdadeira, seria
sempre uma reescrita. Diferentes, também, porque a enunciação produzida é sempre
outra, é sempre aquela que convém ao leitor (citante). Diferentes, sobretudo, porque é nas
entrelinhas dos fragmentos que se produz uma rede de citações que, por conseguinte,
produz outros textos que, por sua vez, produzem outras leituras até o infinito do trabalho
da leitura e da escrita, que nada mais são que recortes e colagens, reescritas e releituras.
Nunca lerás o que escrevo
Sei que depois de me leres é difícil reproduzir de ouvido a minha música, não é possível cantá-
la sem tê-la decorado. E como decorar uma coisa que não tem história?
Clarice Lispector
A escritura clariceana é uma escritura que se escreve: cada novo livro seu é
uma busca desesperada, pela linguagem, para alcançar a última escritura impossível. Por
outro lado, cada escritura de cada um dos livros — por ser uma construção de linguagem 168
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.617.
— representa uma (des)construção da escritura impossível buscada. De uma forma ou de
outra, o que aí deparamos é com uma escritura que se constrói pela sua desconstrução.
Afinal, segundo a própria autora: "O indizível só me poderá ser dado através do fracasso
de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não
conseguiu."169 Como grande escritora que sempre foi, Clarice soube "desistir" no
momento final — desistir que não é da ordem do fracasso mas da ordem da "revelação"
— deixando que o silêncio da linguagem falasse, significasse, fosse, enfim, fundador de
toda significação.
Desse modo, cada escritura busca outra escritura, cada página lembra outra
página, cada fragmento reescreve outro fragmento, cada construção reescreve a mesma
escritura que se escreve porque, nessa prática escritural, "não há fim e tampouco há
princípio: tudo é centro".170 O livro Água Viva representa esse centro: lugar em que a
escritura fragmentária se inscreve e busca, ao mesmo tempo, um sentido que ela não quer
e que o adia para frente, para sua incompletude, para o seu fim sem fim porque, assim
como ela não começou, não terminará e continuará inacabada. Sua narradora
personagem-feiticeira que foi seduzida pela escritura, e que acaba seduzindo o leitor,
assim se despede fechando a narrativa: "O que te escrevo continua e estou enfeitiçada".171169
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p.172. Lê-se em Água viva: "Quero a experiência de uma falta de construção". LISPECTOR.
Água viva, p.27.
170 PAZ. O mono gramático, p.140.
171 LISPECTOR. Água viva, p.97
A escritura fragmentária de Água Viva traz, além dos fragmentos já apontados,
outros que apareceram antes citados na escritura do livro Uma Aprendizagem ou o Livro
dos Prazeres. Tais fragmentos, no entanto, também vão compor duas crônicas intituladas
"Uma experiência" e "Estado de graça — trecho". Entretanto, o que nos interessa
observar no momento é que em livros aparentemente tão díspares, fragmentos comuns
sejam inseri-dos na construção de ambas as escrituras. Diante disso, exemplifiquemos
com o primeiro fragmento (a crônica "Uma experiência") que se repete na construção dos
dois livros:
Vou falar do que se chama a experiência. É a experiência de pedir socorro e o socorro ser dado.
Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu
pedi socorro e não me foi negado. Sentime então como se eu fosse um tigre com flecha mortal
cravada na carne e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem teria
coragem de aproximar-se e tirar-lhe a dor. E então há a pessoa que sabe que tigre ferido é apenas tão
perigoso como criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, arranca a flecha fincada.
E o tigre? Não se pode agradecer. Então eu dou umas voltas vagarosas em frente à pessoa e
hesito. Lambo uma das patas e depois, como não é a palavra que tem então importância, afasto-me
silen-ciosamente.172
E Lóri pensou que talvez essa fosse uma das experiências humanas e animais mais
importantes: a de pedir mudamente socorro e mudamente esse socorro ser dado. Pois, apesar das
palavras trocadas, fora mudamente que ele a havia ajudado. Lóri se sentia como se fosse um tigre
perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas
medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que
um tigre ferido não é perigoso. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado
com cuidado a flecha fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podiam agradecer. Então ela, o tigre,
dera umas voltas vagarosas em frente ao homem, hesitara, lambera uma das patas e depois, como
não era a palavra ou o grunhido o que tinha importância, afastara-se silencio-samente. Lóri nunca
esqueceria a ajuda que recebera quando ela só conseguiria gaguejar de medo.173
A comparação entre os fragmentos escriturais reforça que o entretexto na produção de
Clarice Lispector é a fundação do texto que ali se erige, podendo-se dizer, inclusive, que
antes do Texto que está sempre prestes a se concluir, o que ocorre é uma verdadeira
relação entre textos na escritura que se escreve. Ou melhor: contradizendo Clarice, no
final dos fragmentos, que afirma não ser a palavra que tem importância, diríamos que no 172
LISPECTOR. Água viva, p.87.
trabalho com a escrita, no seu trabalho, o que realmente conta é a palavra, o trabalho com
a palavra, a construção e a desconstrução da palavra, porque essa é a prática que resume e
diz não só o que é literário, mas o que move toda e qualquer criação literária. Tal prática,
antes de se ater à busca do sentido, qualquer sentido, procuraria, tal como disse Clarice na
crônica "Mistério" aqui antes mencionada, tocar no monumento, mesmo que esse fosse
apenas a palavra monumento. Porque aí reside o trabalho com o papel, lugar onde o texto
em processo se constrói, e o autor, recortando palavra por palavra, cola sua leitura em
escrita que produz o texto. É esse trabalho material com o papel de armazenar e
desarmazenar palavras, e organizá-las canonicamente, que diz a responsabilidade do
escritor e conceitua a própria literatura enquanto projeto.
Mas é o segundo fragmento, a crônica "Estado de graça — trecho", publicada
em 6 de abril de 1968, que melhor vai exemplificar a relação entre os textos fragmentados
e inacabados que constituem a produção literária de Clarice Lispector a partir dessa
época. Tal crônica aparecerá reescrita na escritura do livro Uma Aprendizagem (1969),
como já mostramos anteriormente, e aparecerá depois reescrita na escritura de Água Viva
(1973). É essa relação textual de um mesmo fragmento (a crônica como origem) tecido
nas escrituras dos livros que aqui nos interessa.
Se a "origem" dos dois fragmentos que compõem partes das escrituras é a
crônica "Estado de graça — trecho", constatamos que o trabalho operado pela autora — o
de voltar ao texto "origem" — acaba alterando o texto original. Tal mudança se daria não 173
LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.135. A crônica "Uma experiência" já foi citada na
só pelo trabalho de reescrever, mas também, e principalmente, porque, na re-leitura, uma
palavra pode ser lida por outra, pode ser trocada por outra, consciente ou inconscien
temente, na "prática dissolvente" levada ao extremo por Clarice Lispector, como muito
bem exemplifica o mesmo "pedaço" de textos nos dois livros:
Tudo ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação
matemática das coisas e da lembrança de pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe respira e
exala um finíssimo resplendor de energia. A verdade do mundo, porém, é impalpável.174 No estado
de graça, via-se a profunda beleza, antes inatingível, de outra pes-soa. Tudo, aliás, ganhava uma
espécie de ninho que não era imaginário: vinha do esplendor da irradiação quase mate-mática
das coisas e das pessoas. Passa-va-se a sentir que tudo o que existe — pessoa ou coisa —
respirava e exalava
uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Esta energia é a maior verdade do mundo e é
impalpável.175
Tal processo nos diz que o trabalho da autora não se resume simplesmente em reescrever
um fragmento tornando-o outro, porque diz muito mais: revela o compromisso do escritor
com o próprio fazer literário, seu trabalho com o texto enquanto criação. Não seria mais o
caso de reescrever um fragmento por outro, um sentido por outro, enfim, um texto por
outro texto. No caso das palavras ninho/limbo, não teríamos mais onde recorrer, porque a
origem foi para sempre extraviada, deixando dúvidas quanto à sua existência mas confir
mando cada palavra em sua originalidade. A fundação da palavra estaria em sua própria
materialidade, como a escrita de Água Viva que não se identifica com nenhum objeto — a íntegra neste
trabalho à página 167.
174 LISPECTOR. Água viva, p.89.
175 LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.147
não ser o objeto literário. Como nos diz Barthes: "A escritura é uma criação; e, nessa
medida, é também uma prática de procriação."176 Nessa prática, já nos é impossível falar
de começos, de origem, porque o texto literário — tendo aqui o livro Água Viva, como
exemplo — abre-se em rede, ou melhor, em fragmentos, e por fragmentos se cria,
partindo de uma voz que começa por dizer o próprio texto (Água Viva), se multiplica e
acaba dizendo o texto maior da literatura. É no trabalho dessa prática enquanto criação
literária que o autor se sacraliza e sua obra se confirma no tempo, testemunhando que a
literatura se faz de palavras que são ditas para serem reditas, às vezes mal ditas e malditas,
no trabalho material com o papel, por onde elas deslizam como pura matéria significante.
Ainda não há sentido, porque há o trabalho com as palavras, que se trabalham, há o tra
balho com o papel — que é o texto — que resulta em "livros ilegíveis, mas completos. Tão
longe de todas as palavras quanto o desconhecido se encontra de um amor sem objeto."177
Assim retomaríamos o começo, a epígrafe, reescrevendo-a e recopiando-a, melhor, rein
ventando a cópia, para dizer que tinha que existir uma escritura totalmente livre da depen
dência do objeto. Escritura essa que não ilustrasse coisa alguma, a não ser a si mesma, que não
contasse uma história senão a sua que é, por extensão, a da própria criação literária (literatura),
e que se contentasse "em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna
pensamento, onde o traço se torna existência".178 Essa escritura tem nome: Água Viva. 176 BARTHES. O
grão da voz, p.398.
177 DURAS. Escrever, p.18.
178A epígrafe do livro é a seguinte: "Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a
música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I - Do "corpus" literário básico
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. 9.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982. 174 p.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 97 p. LISPECTOR,
Clarice. A descoberta do mundo. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 791 p.
II - Da autora
LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. 7.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. 169 p.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 7.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. 175 p.
LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, 128 p.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1974. LISPECTOR,
Clarice. A hora da estrela. 7.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 98 p.
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. 162 p.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. 4.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 167 p.
LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Contos e crônicas. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Florianópolis: Editora da UFSC, 1988. p.3-115.
Edição crítica - Benedito Nunes - Coordenador (Coleção Arquivos).
III - Sobre a autora
ARÊAS, Vilma. A moralidade da forma. Minas Gerais, Belo Horizonte, n.1091, 19 dez. 1987.
Suplemento Literário. Número especial: Lembrando Clarice, p.12-14. (Org. por Nádia Battella
Gotlib).
BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981. 147 p.
GOMES, Renato Cordeiro. Apresentação. Errâncias, labirintos, mistérios. In: LISPECTOR,
Clarice. Onde estivestes de noite. 7.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. p.1-7.
GOTLIB, Nádia Battella. Às vezes a vida volta. O Eixo e a Roda - Memorialismo e Autobiografia,
Belo Horizonte, v. 6, p. 219-227, jul. 1988.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995. 493 p.
GOTLIB, Nádia Battella. Um fio de voz: histórias de Clarice. In: LISPECTOR, Clarice. A
paixão segundo G. H. Florianópolis: Editora da UFSC, 1988. p.161-195. Edição crítica - Benedito
Nunes - Coordenador. (Coleção Arquivos).
HELENA, Lúcia. Clarice Lispector - um exercício de decifração. Minas Gerais, Belo
Horizonte, n.1091, 19 dez. 1987. Suplemento literário. Número especial: Lembrando Clarice, p.10-
11. (Org. por Nádia Battella Gotlib).
LUCCHESI, Ivo. Crise e escritura. Rio de Janeiro: Forense - Universitária, 1987. 145 p.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Entre o silêncio e a vertigem. In: GALVÃO, Walnice Nogueira
(Org.). Os melhores contos de Clarice Lispector. São Paulo: Global, 1996. p.7-11. (Coleção Os
Melhores Contos de Clarice Lispector).
NUNES, Benedito. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. 2.ed. São Paulo: Ática,
1995. 175 p. p.77-82: Do monólogo ao diálogo.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores na escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
p.159-177: A fantástica verdade de Clarice.
IV - Geral
ANDRADE, Vera Lúcia. Uma nota de memória. In: CONGRESSO ABRALIC - Associação
Brasileira de Literatura Comparada, 2, 1990, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: [s.n.]. v.1.
p.494-499.
ARRIGUCCI Jr. Davi. Achados e perdidos: ensaios de crítica. São Paulo: Editora Polis, 1979. 171
p. (Coleção Estética).
ARROYO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 212 p.
(Biblioteca Pierre Menard).
ARROYO, Rosemary (Org.). O signo desconstruído: implicações para o trabalho, a leitura e o
ensino. Campinas - São Paulo: Pontes, 1992. 121 p. (Linguagem - Ensino). BARBOSA, João
Alexandre. A leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990. 141 p. Capítulo IV: A modernidade
do romance, p.119-131.
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1982.
p.231.
BARTHES, Roland. Aula. Trad. e posfácio Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1980. 89 p.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. 372
p.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1990.
171 p.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977. 86 p.
(Coleção Elos).
BARTHES, Roland. S/Z. Trad. Maria de Santa Cruz e Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70, 1980.
199 p.
BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos / O grau zero da escritura. Trad. Heloysa de Lima
Dantas, Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. 2.ed. São Paulo: Cultrix, [s.d.]. 167 p.
BARTHES, Roland. O grão da voz. Trad. Teresa Meneses e Alexandre Melo. Lisboa: Edições 70,
1981.
BHABHA, Homi K. DissemiNação: tempo, narrativa e as margens da nação moderna. Trad.
Maria Luiza Cyrino Valle. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 1º sem. de 1995. (xerox).
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 278
p.
BUTOR, Michel. Repertório. Trad. e org. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1974. 245
p.
CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Trad. Carmen de Carvalho e Artur Morão. Lisboa:
Edições 70, 1987. 209 p.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990. 141 p.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 2.ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977. 188 p. Capítulo
6: No raiar de Clarice Lispector, p.123-131.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1996. 114 p.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. Cleonice P. B. Mourão,
Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. 139 p.
COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos. Trad. Beatriz Borges. São Paulo: Perspectiva, 1991.
COSTA LIMA, Luís. Persona e sujeito ficcional. In: CONGRESSO ABRALIC - Associação
Brasileira de Literatura Comparada, 2, 1990, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: [s.n.], 1991.
v. 1. p.114-133.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991.
125 p. (Biblioteca Pólen).
DURAS, Marguérite. Escrever. Trad. Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 115 p.
HELENA, Lúcia. Escrita e poder. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1985. 206 p. p. 85-
90: A narrativa dinâmica de Clarice; p.91-99: Clarice Lispector: a função desalienante de sua
criação literária.
HELENA, Lúcia. Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector. Niterói:
EDUFF, 1997. 124 p. (Coleção Ensaios; 6).
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio
de Janeiro: Imago, 1991. 330 p.
JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. 448 p. JOSEF,
Bella. O jogo mágico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. 197 p.
KRISTEVA, Júlia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo:
Perspectiva, 1974. 199 p.
MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992. 174 p. Parte II: O
texto da memória, p.119-132; O texto do leitor, p.133-144.
MIRANDA, Wander Melo. Água viva: auto-retrato (im)possível. Ensaios de Semiótica, Belo
Horizonte, n.10, p.219-234, dez. 1983.
NAVA, Luís Miguel. Roland Barthes, romancista. Leituras de Roland Barthes. Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 1982. p.189-203. (Coleção Universidade Moderna, n.75.)
NOLASCO, Paulo Sérgio. Clarice Lispector e Virgínia Woolf: a escritura depondo a
romancista. In: CONGRESSO ABRALIC - Associação Brasileira de Literatura Comparada, 1, 1988,
Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: [s.n.], [s.d.]. v. II. p.49-55.
NOLASCO, Paulo Sérgio. Nas malhas da rede. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG,
1993, 279 p. (Tese, Doutorado em Letras - Literatura Comparada) (No prelo).
NOVELO, Nicolino. O ato criador de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Presença, 1987. 142 p.
NUNES, Benedito. A paixão de Clarice Lispector. In: NOVAES, Adauto (Org.). Os sentidos da
paixão. São Paulo: Funarte/Companhia das Letras / Ed. Schwarcz, 1987. p.269-281.
NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1976. Capítulo II: O mundo imaginário
de Clarice Lispector, p.89-139.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. A barata e a crisálida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. 106 p.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 2. ed. Campinas - São
Paulo: Editora da UNICAMP, 1993. 189 p. (Coleção Repertórios). PAZ, Octávio. O mono
gramático. Trad. Lenora de Barros e José Simão. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. 153 p.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978. 158 p. PERRONE-
MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 190 p.
POULET, Georges. O espaço proustiano. Trad. Ana Luiza Borralho Martins Costa. Rio de Janeiro:
Imago, 1992. 143 p. (Coleção Pierre Menard).
ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Trad. Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 1995. 60 p.
REVISTA TEMPO BRASILEIRO. Rio de Janeiro, n.104. jan./mar. 1991. SANTIAGO, Silviano. Nas
malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 235 p.
SANTOS, Roberto Corrêa dos. Para uma teoria da interpretação: semiologia, literatura e
interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989. 147 p. SCHNEIDER, Michel.
Ladrões de palavras. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso: jogo e linguagem em Macunaíma. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1988. 156 p.
SOUZA, Eneida Maria de. Traço crítico: ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1992. 171 p.
SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica. Caderno de Pesquisas, Belo Horizonte,
NAPq/FALE/UFMG, n.20, nov. 1994.
ABSTRACT
This essay investigates the process employed by Clarice Lispector in writing
the books Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres and Água viva. Through the
appropriation of her own textual fragments (chronicles), using a process of selection and
assembly, the author pushed her literary project to the textual limit. That project is not
only analysed, but dis-assembled, with the purpose of revealing, in its original state, the
essence of Lispector's criative process.