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HÉDIO SILVA JR.

A LIBERDADE DE CRENÇA OMO LIMITE À


REGULAMENTAÇÃO DO ENSINO RELIGIOSO

DOUTORADO EM DIREITO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

SÃO PAULO – 2003


HÉDIO SILVA JR.

A LIBERDADE DE CRENÇA COMO LIMITE À

REGULAMENTAÇÃO DO ENSINO RELIGIOSO

Tese apresentada à banca examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Direito (Direito do Estado), sob
orientação da Professora Doutora Maria Garcia.

SÃO PAULO

2003
RESUMO

O presente trabalho tem como escopo principal investigar os contornos


constitucionais da liberdade de crença no Brasil, patenteando a relação de
implicação existente entre o princípio da liberdade de crença e a regra do ensino
religioso nas escolas públicas do ensino fundamental.
Considerando-se que o princípio da liberdade de crença veda qualquer forma
de vinculação e subvenção as atividades de natureza religiosa, buscamos promover
uma reflexão sobre os limites constitucionais impostos à disciplina jurídica do ensino
religioso, com ênfase na atividade regulamentadora.
Do cânone constitucional da liberdade de crença decorrem dois princípios

organizativos indispensáveis para a descrição e a regulação da matéria, quais sejam


a laicidade estatal e a separação do Estado da religião.
Irradiando-se por todo o sistema normativo, e cimentando o regime jurídico da
liberdade de crença, a laicidade enlaça as várias normas constitucionais pertinentes
e incide sobre toda a matéria infraconstitucional, fixando fronteiras e cometendo
obrigações positivas e negativas ao Estado e aos particulares.
Verificar-se-á, assim, que a norma do ensino religioso deve guardar rigorosa
obediência e sintonia com os limites e termos da laicidade estatal, pelo que a

adoção de norma infraconstitucional, que permitiu o financiamento público do ensino


religioso, bem como a ingerência estatal nesta seara (Lei n. 9.475/1997), afigura-se
irremediavelmente inconstitucional.
ABSTRACT

The main target of this work is to investigate the constitutional profile for
freedom of belief in Brazil, confirming the relation of the existing implication between
the principle of freedom of belief and the ruling for religious teaching in basic
education at public schools.
Considering that the principle of freedom of belief forbids any kind of bond and
subsidy to religious activities, we are trying to promote a contemplation on the
constitutional limits imposed on the legal discipline of religious teaching, with
emphasis on the regulating activity.
The constitutional decree for freedom of belief results in two organizing

principles, indispensable for the description and regulation of the issue, namely, state
laicity and the separation of the State from religion.
Spreading throughout the entire ruling system and consolidating the legal
regime for freedom of belief, laicity interlaces the different pertinent constitutional
rules and reflects on all the infra-constitutional material, setting frontiers and charging
positive and negative obligations to the State and to private people.
Thus it is proved that the rules for religious teaching must remain rigorously
obedient and harmonious with the limits and terms of state laicity. Therefore adoption

of the infra-constitutional rule that allowed public financing for religious teaching, as
well as state interference in this association (Law n. 9.475/1997), appears inevitably
unconstitutional.
RÉSUMÉ

La cible principale du présent travail est basée sur l´investigation des contours
constitutionnels de la liberté de croyance au Brésil, ce qui rend évident la relation de
l´implication existante entre le principe de liberté de croyance et l´observance de
l´enseignement religieux dans les écoles publiques de l´enseignement fondamental.
Si nous estimons que le principe de liberté et croyance défend toute forme
d´attache et de subvention aux activités de nature religieuse, nous recherchons à
favoriser une réflexion sur les limites constitutionnelles imposées à la discipline
juridique de l´enseignement religieux tout en insistant sur l´importance de l´activité
réglementaire.

Du canon constitutionnel de liberté de croyance découle deux principes


organisationnels indispensables à la description et à la régularisation de la matière,
quel que soit la laïcité étatique et la séparation de l´Etat de la religion.
Se disséminant au travers de tout le système normatif, et consolidant le
régime juridique de liberté de croyance, la laïcité enlace les diverses normes
constitutionnelles pertinentes et survient sur toute la matière infra constitutionnelle,
fixant des frontières et commettant des obligations positives et négatives à l´Etat et
aux particuliers.

On vérifie, ainsi donc, que la norme de l´enseignement religieux doit garder


une rigoureuse soumission et syntonie envers les limites et termes de la laïcité
étatique, pour laquelle l´adoption d´une norme infra constitutionnelle qui a permit le
financement publique de l´enseignement religieux, aussi bien que l´ingérence
étatique dans ce domaine (Loi n. 9.475/1997), représente une inévitable
inconstitutionnalité.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 2

CAPÍTULO 1
A IGUALDADE DE TODAS AS RELIGIÕES E CRENÇAS PERANTE A LEI
5

1.1 Estado e religião nas constituições brasileiras. 5


1.2 Intolerânciareligiosanalegislação 18
1.3 Estado Confessional. Estado Laico. Estado Leigo 21
1.4 Religião: a inexigibilidade do reconhecimento estatal 32
1.5 A igualdade de todas as religiões e crenças perante a lei 39
1.6 A igualdade considerada como não-discriminação 42

CAPÍTULO 2
LIBERDADE DE CRENÇA
50

2.1 A liberdade de crença como direito fundamental ...............................................51


2.2 Liberdade de crença............................................................................... ............55
2.3 Crença....................................... ................................................................... ......58
2.4 Normas de Direito Comparado...........................................................................62
2.5 Liberdade de crença nos tratados intern acionais ...............................................68
2.6 Objeção de consciência .............................................. .......................................74
2.6.1 Objeção de consciência: registro de um caso aprecia do pelo Ministério da
Educação e de um pedido de ausência justificada deferido pela Justiça Eleitoral do Rio
de Janeiro ......................... ................................. ...................... .................................. ... 80

CAPÍTULO 3 LIBERDADE DE CULTO, DE LITURGIA. E DE ORGANIZAÇÃO


RELIGIOSA 82

3.1 Notas sobre a liberdade de reunião, de manifestação do pensamento e de


circulação ..................................................................................................................82
3.2 Liberdade de culto e de litur gia ............................................... ...........................86
3.3 Ministro Religioso: uma proposta de definição jurídica ....................................101
3.4 Escolas confessionais e institutos teológicos ...................................................108
3.5 Liberdade de organização religiosa..................................................................118
CAPÍTULO 4 DEFESA DA LIBERDADE DE CRENÇA, DE CULTO, DE LITURGIA
E DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA 130

4.1 O bem jurídico tutelado .............................................................................. ......130


4.2 Tolerância religiosa ..........................................................................................135
4.3 Tutela civil da liberdade de crença, de culto, de liturgia e de organização
religiosa .............................................................................. .....................................137
4.4 Tutela penal da liberdade de crença, de culto, de liturgia e de organização
religiosa .............................................................................. .....................................143
4.5 A qualificação da discriminação religiosa como espécie de prática do
racismo...................................................................................................................143

CAPÍTULO 5 O PRINCÍPIO DA LAICIDADE ESTATAL 165

5.1 . A menção a Deus no preâmbulo da Constituição Federal ...............................167


.
5.2
5.3 . A
A previsão
fixação dodeusocrucifixos
da Bíblia nos ou regimentos
outros símbolos de casasreligiosos
legislativasem..................172
edificações
públicas ...................................................................................................................176
5.4 . A mensagem religiosa nas cédulas da moeda nacional...................................179
5.5 . A questão dos feriados religiosos.....................................................................181

CAPÍTULO 6 EDUCAÇÃO E ENSINO RELIGIOSO 187

6.1 O princípio constitucional da liberdade de crença e a regra do ensino


religioso .............................................................................. .....................................187
6.2 Aspectos constitucionais do direito à educação .............................................. .192
6.3 Notas preliminares sobre o art. 210, § 1º, da Constituição Federal .................199
6.3.1 Conteúdo jurídico do ensino religioso ......................... ...................... ................ 201
6.3.2 Aplicabilidade da norma do ensino religioso ......................... ...................... ...... 205
6.4 A inconstitucionalidade da Lei n. 9.475, de 22 de julho de 1997....... ...............213
6.5 Notas sobre a implementação do ensino religioso nos Estados de São Paulo e
Rio de Janeiro .............................................. .......................................................... .217
CONCLUSÕES .................................... ...................................... ...................... .......223
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................232
INTRODUÇÃO

O principal objetivo deste trabalho consiste na investigação dos contornos

constitucionais da liberdade de crença, compreendendo, de um lado, a explicitação


do regime jurídico que dela decorre, e, de outro, a demonstração do liame que

subordina a regra do ensino religioso ao princípio da liberdade de crença.

Considerando-se que o cânone constitucional da liberdade de crença, do qual


derivam os princípios organizativos da laicidade e da separação do Estado da

religião, veda qualquer forma de vinculação e subvenção pública ao

empreendimento religioso, pareceu-nos válido supor que a disciplina jurídica do


ensino religioso deve guardar rigorosa obediência e sintonia com os limites e termos
daquele cânone.

Irradiando-se por todo o sistema normativo, e cimentando o regime jurídico da


liberdade de crença, a laicidade enlaça as várias normas constitucionais e incide
sobre toda a matéria infraconstitucional pertinente, fixando fronteiras e cometendo

obrigações positivas e negativas ao Estado e aos particulares.

Nossa hipótese, inspirada, inclusive, em raros mas fecundos estudos levados


a efeito por juristas brasilei ros, é que o regime constitucional da liberdade de crença

proíbe expressamente a vinculação e o financiamento público do ensino religioso.

Para o enfrentamento desta temática, buscamos conferir ao projeto uma

perspectiva interdisciplinar, combinando, precipuamente, postulados e categorias


teóricas do direito constitucional, direito internacional público, administrativo,

2
tributário, previdenciário, civil, penal, além do aporte teórico da hermenêutica, da

história, filosofia e da ciência política.

Procuramos assegurar à pesquisa um enfoque de natureza


fundamentalmente teórica, tendo como ponto de partida uma revisão bibliográfica do

tema, bem como uma descrição minuciosa do conteúdo jurídico da liberdade de


crença, em suas várias facetas e dimensões.

Para demonstrar a plausibilidade de nossa tese, empenhamo-nos na


exploração de uma série o mais possível coerente e coesa de procedimentos,
partindo da dogmática, demarcando tendências e regularidades históricas,

acentuando significados e conceitos, assumindo definições, traçando possibilidades


de analogias e deduções, até o ponto em que os resultados da pesquisa permitiram,

numa projeção dedutiva, patentear a delimitação constitucional do ensino religioso e


a inconstitucionalidade da Lei n. 9.475/1997, que permitiu o financiamento público do
ensino religioso, bem como a ingerência estatal nessa seara.

Seis capítulos conformam o presente trabalho, secundados por um espaço


dedicado às conclusões, no qual registramos uma síntese pessoal e a indicação de

propostas – de lege ferenda – visando oferecer subsídios para o aperfeiçoamento do

regime jurídico da liberdade de crença.

No Capítulo I, perscrutamos a trajetória histórica da norma constitucional

referente à matéria, demarcamos os modelos de relação entre Estado e religião, e

acentuamos o impacto do princípio da igualdade na fruição e no gozo da liberdade


de crença.

3
Dedicamos o Capítulo II para um exame da liberdade de crença como direito

fundamental, destacando o fenômeno da crença, sumariando normas de direito

comparado, explorando tratados internacionais pertinentes, e pondo em realce a

garantia da objeção de consciência.

A liberdade de culto, de liturgia e de organização religiosa foi divisada no


Capítulo III, no qual registramos e comentamos a normativa infraconstitucional,

propondo definições, e delimitando as fronteiras da liberdade de culto.

A defesa da liberdade de crença foi posta em relevo no Capítulo IV, com


ênfase para a noção de bem jurídico, e para a tutela civil e penal da liberdade de

crença.

No capítulo V indagamos da eficácia da laicidade estatal, valendo-nos de

estudos tópicos para demonstrar a tensão existente entre norma jurídica e fato social.

Finalmente, no capítulo VI, debruçamo-nos sobre a noção de sistema


constitucional, explicitando a relação de implicação entre princípios e regras

constitucionais, inventariando o direito à educação, ressaltando o conteúdo jurídico


do ensino religioso e patenteando a inconstitucionalidade da aludida Lei n.

9.475/1997.

4
CAPÍTULO 1

A IGUALDADE DE TODAS AS RELIGIÕES E CRENÇAS PERANTE A


LEI

1.1 Estado e religião nas constituições brasileiras.

A história do ocidente registra o Renascentismo como um movimento que


redefiniu a literatura e as artes por meio da redescoberta de obras e autores da

Antigüidade, mas que notabilizou-se também porque, ao conferir novo valor às


ciências naturais e às atividades terrenas, pôs em questão o discurso teológico,
deslocando o teocentrismo da Idade Média em favor do antropocentrismo da Idade

Moderna, instaurando, assim, um vigoroso debate acerca da delimitação do espaço


religioso.

Fundando alguns dos pilares que viriam dar sustentação ao movimento

Iluminista 1 , o Renascentismo provocou, a partir do século XVII, uma gradual


separação entre o pensamento político e o raciocínio religioso, favorecendo a

difusão de uma mentalidade leiga – que alcançou sua plena afirmação no séc. XVIII,
reivindicando a primazia da razão sobre o mistério, e postulando uma concepção

materialista dos seres humanos.

1 Na sua obra clássica sobre o movimento Iluminista, o filósofo Ernest Cassirer demonstra a profunda
renovação que a idéia de religião logrou nas filosofias da época: a filosofia transcendental de I. Kant
refuta a explicação teológico-metafísica, e toma a investigação a partir da análise das faculdades do
conhecimento, isto é, trata a religião nos limites da simples razão; enquanto a filosofia de Rosseau
transpõe a religião para a análise da sociedade e a crítica das insti tuições políticas. v. Ernst
CASSIRER. A Filosofia do Iluminismo. Campinas: Editora da Unicamp, 1997, p. 189.
5
A busca por uma teoria racional do Estado colocou em xeque os postulados

absolutistas então em voga, segundo os quais o monarca receberia o poder das

mãos de Deus e, como tal, seria o seu representante na terra, conforme

questionavam os enciclopedistas 2, entre os quais Denis Diderot:

Na sociedade do Antigo Regime, a Igreja Católica está


intimamente ligada ao Estado. A monarquia refere-se à essência divina: o
rei é o representante de Deus na terra; o clero é a primeira ordem do
Estado e goza de imensos privilégios. A Igreja serviu-se sempre, no século
XVIII, do apoio do poder do Estado para impor seus dogmas. Protestantes
e judeus não têm nenhum direito, nem mesmo no Estado Civil. 3

Instala-se uma tensão entre norma jurídica e norma divina – a lei não mais
tomada como vontade de Deus, mas como construção humana, expressão da
vontade geral.

Estado e religião deixam de ser sinônimos. Emerge a distinção entre homo


politicus e homo religiosus, entre cidadão e fiel, polis e communitas fidelium ,

sociedade civil e sociedade religiosa, ordenamento jurídico e ordenamento religioso.

Tem início um prolongado, complexo e acidentado processo de separação

entre Estado e religião, denominado pela sociologia de Max Weber como separação
das esferas de valor . 4 Debruçando-se sobre esse fenômeno, assim se manifesta

Norberto Bobbio:

2
Considerada o marco intelectual do Iluminismo, a Enciclopédia foi planejada como uma descrição
dos vários ramos do conhecimento humano, e teve como principais protagonistas Diderot e
D’Alambert. Rousseau, Montesquieu e Voltaire, entre outros, figuraram como seus colaboradores. v.
Simon BLACKBURN. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 116.
3
Denis DIDEROT. Textes Choisis de L’Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des
Arts et des Métiers . Introduction et Notes par Albert Soboul. Paris: Éditions Sociales, s.d., p. 249.
4
Max Weber designa o processo de modernização/secularização empregando o conceito de
separação das esferas de valor, seja a de valor religioso, político ou estético, passa a ser regida por
6
A história do relacionamento entre Estado e Igreja (do cristianismo
em diante) é rica em conflitos. Durante séculos foram propostos vários
tipos de soluções, classificadas das maneiras mais variadas. A
classificação que mais sintética nos parece a seguinte: 1) reductio ad unun.
Distingue-se conforme se trate da redução do Estado à Igreja (teocracia)
ou da Igreja ao Estado (cesaropapismo na época imperial, erastianismo
nos modernos Estados nacionais protestantes; 2) subordinação. Aqui
também
pretendaéquenecessário
o Estadodistinguir duas teorias
seja subordinado ou sistemas,
à Igreja conforme se
(teoria prevalentemente
seguida pela Igreja Católica, da potestas indirecta ou da potestas directiva
da Igreja sobre o Estado) ou que a Igreja seja subordinada ao Estado
(jurisdicionalismo e territorialismo, durante o período das monarquias
absolutistas); 3) coordenação. É o sistema fundado sobre relacionamentos
concordatários, que pressupõem o reconhecimento recíproco dos dois
poderes como ‘cada um, na própria ordem, independentes e soberanos’
(art. 7º da Constituição); 4) separação. Segundo o sistema do separatismo,
em voga, por exemplo, nos Estados Unidos, as igrejas são consideradas a
nível de associações privadas, às quais o Estado reconhece liberdade de
desenvolver a sua missão dentro dos limites da lei. 5

Na trilha da demarcação das áreas de domínio do Estado e da religião,

surgem as reivindicações por liberdades públicas, no bojo da primeira geração de


direitos, dos direitos individuais, que derivaram da Bill of Rights inglesa, da
Declaração Francesa dos Direitos do Homem e Cidadão, e das primeiras

Amendments à Constituição dos Estados Unidos.

Já a primeira emenda à Constituição norte-americana determinava que

O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião,


ou proibirá o livre exercício dos cultos, ou cerceará a liberdade de palavra,
ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de
dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos.

“Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo as suas opiniões
religiosas, desde que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida

uma normatização própria. v. Max WEBER. Economia e Sociedade. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2000, p. 279.
5
Norberto BOBBIO. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999,
p. 181.
7
pela lei”, acentuava o décimo artigo da Declaração Francesa dos Direitos do Homem

e do Cidadão.6

Neutralidade religiosa do Estado, por um lado, e liberdade de crença, por


outro, passam a ser normatizadas, consagrando os postulados de um dos mais

eminentes puritanos 7 ingleses, John Locke, que, já no século XVII, oferecia os


primeiros delineamentos teóricos pertinentes à aludida equação:

Considero acima de tudo necessário distinguir exatamente a


função do governo civil em relação à da religião, estabelecendo justos
limites entre uma e outra.(...) Estas considerações, parecem-me
suficientes para concluir que todo o poder do governo civil diz respeito tão-
só aos interesses civis dos homens (...) tudo quanto a lei deixa livre em
ocasiões comuns da vida, que fique livre para qualquer igreja no culto
divino.8

Mais de um século depois, em meados do século XIX, o filósofo Alexis de


Tocqueville, na obra Democracia na América, advogava que a natureza dos

sistemas baseados na democracia implica a distinção dos respectivos espaços de

domínio:

Não tenho direito nem a intenção de examinar os meios


sobrenaturais que Deus
coração do homem. emprega
Considero nestepara infundir
momento as areligiões
crença sob
religiosa no
um ponto
de vista puramente humano; meu objetivo é investigar os meios pelos
quais elas podem mais facilmente reter o seu controle na era democrática
em que estamos entrando. Já se tem demonstrado que, em tempos de
cultura geral e igualdade, o espírito humano somente com relutância adota
opiniões dogmáticas, cuja necessidade só reconhece em questões
espirituais. Isso prova, em primeiro lugar, que nessas épocas as religiões

6
Promulgada em 26 de Agosto de 1789, encontra-se em vigor, por força do Preâmbulo da
Constituição Francesa de 1958.
7
O termo puritanismo designa uma corrente do protestantismo inglês que atacava vigorosamente
e gestuália
certas facetas
religiosa.
da Igreja
v. George
Anglicana,
A. MATHER
exigindo base
e Larry
bíblica
A. NICHOLS.
para vestuário, uso de
Dicionário deinstrumentos de some
Religiões, Crenças
Ocultismo. São Paulo: Vida, 2000, p. 369.
8
A argumentação de John Locke progride no sentido de provar a noção de tolerância religiosa no
âmbito do governo civil. v. John LOCKE. Carta a Respeito da Tolerância. São Paulo: Instituição
Brasileira de Difusão Cultural, 1964, p. 48.
8
deveriam mais cautelosamente do que quaisquer outras conter-se dentro
de sua própria esfera. Porque, ao tentarem estender seu poder além das
questões religiosas, incorrem no risco de deixarem completamente de ser
acreditadas.9

Perfilhando o mesmo entendimento, Hans Kelsen assegura que a tendência


para a tolerância, típica das formas laicas de sociedade, pode ser assim

caracterizada:

“A tolerância, antes, é a virtude daqueles cuja convicção religiosa não é forte

o suficiente para superar sua inclinação política e impedir-lhes a incoerência de

reconhecer a possibilidade e a legitimidade de outras convicções religiosas”.10

Permeada por esta nova concepção da relação Estado/religião, a experiência


jurídica passa a positivar regras preocupadas com o detalhamento dos termos de tal
relação, ao mesmo tempo em que busca assegurar ao indivíduo ampla liberdade

diante da seara religiosa. Surgem as legislações separatistas.

Marco jurídico-histórico da distinção Estado/religião no Brasil, o famoso


Decreto n. 119-A, de 07 de janeiro de 1890, assinado por Deodoro da Fonseca,

“ Prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria


religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece

outras providencias”:

art. 1º É prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados


federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos,
estabelecendo alguma religião, vedando-a, e crear differenças entre
habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por
motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.

9
Alexander de TOCQUEVILLE. Democracia na América. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Ed.
da Universidade de São Paulo, 1969, p. 272.
10
Hans KELSEN. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 242.
9
art. 2 º . A todas as confissões religiosas pertence por igual a
faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não
serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem ao
exercício deste decreto.

Passada mais de uma década da edição do decreto brasileiro, mais


precisamente em 05 de Dezembro de 1905, é editada, na França, a Lei de

Separação.

Anos depois é a vez de Portugal aprovar um Decreto-Lei regulamentando a

separação do Estado e da Igreja, em 21 de Dezembro de 1911.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, exorta em seu artigo

18:

Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e


religião; este direito inclui à liberdade de mudar de religião ou crença e a
liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática,
pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em
particular.

Um olhar sobre as constituições brasileiras descortina o impacto que a

controvérsia acerca dos domínios Estado/religião exerceu na experiência jurídica

brasileira, nomeadamente na trajetória do direito constitucional.

Constituição de 25 de Março de 1824

Extratos do preâmbulo: “(...) Dom Pedro Primeiro, por graça de Deos (...) Em
nome da Santíssima Trindade.”

Art. 5 o . A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as
outras Religiões serão permitidas com o seu culto doméstico, ou particular em casas para isso
destinadas, sem forma alguma exterior de Templo”.
Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado.
São suas principaes atribuições:

10
II. Nomear Bispos, e prover os Benefícios Eclesiásticos.

XIV. Conceder, ou negar Beneplacito aos Decretos dos Concilios, e Letras Apostolicas, e quaesquer
outras Constituições Ecclesiasticas, que se não oppozerem á Constituição; e precedendo approvação
da Assembléa, se contiverem disposição geral.

Art. 103. O Imperador antes de ser acclamado prestará nas mãos do Presidente do Senado, reunidas
as duas Camaras,
integridade, o seguinte do
e indivisibilidade Juramento
Imperio; –observar,
Juro manter a Religião
e fazer Catholica
observar Apostolica
a Constituição Romana,
Politica a
da Nação
Brazileira, e mais Leis do Imperio, e prover ao bem geral do Brazil, quanto em mim couber.

Art. 141. Os conselheiros de Estado, antes de tomarem posse, prestarão juramento nas mãos do
Imperador de – manter a Religião Catholica Apostolica Romana; observar a Constituição, e as Leis;
ser fieis ao Imperador; aconselhal-O segundo suas consciencias, attendendo sómente ao bem da
Nação.

Art. 179. V. Ninguém póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado,
e não offenda a Moral Pública.

Constituição de 24 de fevereiro de 1891

O preâmbulo não invoca nem faz referência a qualquer divindade.

Art. 11. É vedado aos Estados, como à União:

§ 2º. Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;

Art. 72, § 3º. Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu
culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum.

§ 4º. A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.

§ 5º. Os cemiterios terão caracter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando
livre a todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos em relação aos seus crente s, desde
que não offendam a moral publica e as leis. 11
§ 6º. Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos publicos.

§ 7º. Nenhum culto ou igreja go zará de subvenção official, nem terá relações de dependencia ou
alliança com o Governo da União, ou o do Estados.

§ 28º. Por motivo de crença ou funcção religiosa, nenhum cidadão brazileiro poderá ser privado de
seus direitos civis e políticos nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever civico.

§ 29º. Os que allegaram motivo de crença religiosa com o fim de se isentarem de qualquer onus que
as leis da Republica imponham aos cidadãos, e os que acceitarem condecorações ou titulos
nobiliarchicos estrangeiros perderão todos os direitos políticos.

11
Trata-se de norma que revogou a Lei de 1º de outubro de 1828, denominada Regimento das
Câmaras Municipais do Império (uma espécie de lei orgânica de todos os municípios, que vigeu até o
advento da Constituição de 1891). Por força do art. 66, § 2º, desta lei, a administração dos cemitérios
cabia à autoridade religiosa local.
11
Constituição de 16 de Julho de 1934

Extratos do preâmbulo: “(...) Nós, os representantes do Povo Brasileiro, pondo

a nossa confiança em Deus (...)”

Art. 17. É vedado á União, aos Estados, ao Districto Federal a os M unicipios:

II. estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;

III. ter relação de alliança ou dependencia com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da collaboração
reciproca em prol do interesse colletivo;

Art. 113. 4) Por motivo de convicções philosophicas, politicas ou religiosas, ninguém será privado de
qualquer dos seus direitos, salvo o caso do art.111, letra b.

5) É inviolável a liberdade de consciencia e de crença, e garantido o livre exercício dos cultos


religiosos, desde que não contravenham á ordem pública a aos bons costumes. As associações
religiosas adquirem personalidade juridica nos termos da lei civil.

6) Sempre que solicitada, será permitida a assistencia religiosa nas expedições militares, nos
hospitaes, nas penitenciarias e em outros estabelecimentos officiaes, sem onus para os cofres
publicos, nem constrangimento ou coacção dos assistidos. Nas expedições militares a assistencia
religiosa só poderá ser exercida por sacerdotes brasileiros natos.

7) Os cemitérios terão caracter secular e serão administradas pela autoridade municipal, sendo livre a
todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos em relação aos seus crentes. As associações
religiosas poderão manter cemitérios particulares, sujeitos, porém, á fiscalização das autoridades
competentes. É-lhes prohibida a recusa de sepultura onde não houver cemiterio secular.

Art. 111. Perdem-se os direitos politicos: b) pela isenção de onus ou serviço que a lei imponha aos
brasileiros, quando obtida por motivo de convicção religiosa, philosophica ou politica.

Art. 113, 1. Todos são iguaes perante a lei. Não haverá privilégios, nem distincções, por motivo de
nascimento, sexo, raça, profissões proprias ou dos paes, classe social, riqueza, crenças religiosas ou
ideas politicas.

Art. 146. O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante ministro de
qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem publica ou os bons costumes, produzirá,
todavia, os mesmos effeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na
habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo de opposição, sejam
observadas as disposições da lei civil e seja elle inscripto no Registro Civil. O registro será gratuito e
obrigatório. A lei estabelecerá penalidades para a transgressão dos preceitos legaes attinentes á
celebração do casamento.

Art. 153. O ensino religioso será de frequencia facultativa e ministrado de acôrdo com os principios da
confissão religiosa do alumno, manifestada pelos paes ou responsaveis, e constituirá materia dos
horarios nas escolas publicas primarias, secundarias, profissionaes e normaes.

12
Constituição de 10 de Novembro de 1937

O preâmbulo não invoca nem faz referência a qualquer divindade.

Art. 32. É vedado à União, aos Estados e aos Municípios:


b) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;

Art. 122, item 4 - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o
seu culto, associando-se para êsse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito
comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes.

Item 5 - Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal.

Art.133. O ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso ordinário das escolas
públicas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos
mestres ou professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos.

Constituição de 18 de Setembro de 1946

Extratos do preâmbulo: “Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos,

sob a proteção de Deus (...)”

Art.31. À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:

II - estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-lhes o exercício;

III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da colaboração
recíproca em prol do interêsse coletivo.

V - lançar impôsto sobre:

b) templos de qualquer culto, bens e serviços de partidos políticos, instituições de educação e de


assistência social, desde que as suas rendas sejam aplicadas integralmente no país para os seus
respectivos fins; (Emenda Constitucional n. 18/1965, publicada no DOU de 06 de Dezembro de 1965).

Art. 141, § 7º. É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações
religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.

§ 8º. Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum dos
seus direitos, salvo se a invocar para se eximir de obrigação, encargo ou serviço impostos pela lei
aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituição d aqueles deveres, a fim
de atender escusa de consciência.

§ 9º. Sem const rangimento dos favor ecidos, será prestada por brasileiro (art. 129, nos I e II)
assistência religiosa às fôrças armadas e, quando solicitada pelos interessados ou seus
representantes legais, também nos estabelecimentos de internação coletiva.

13
§ 10º. Os cemitérios terão caráte r secular e serão administrados pela autoridade municipal. É
permitido a tôdas as confissões religiosas praticar nêles os seus ritos. As associações religiosas
poderão, na forma da lei, manter cemitérios particulares.

Art. 163, § 1º. O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá
ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou
qualquer interessado, contando que seja o ato inscrito no registro público.

§ 2º. O casamento religioso, celebrado sem as formalidades dêste artigo, terá efeitos civis, se a
requerimento do casal, fôr inscrito no registro público, mediante prévia habilitaçã o perante a
autoridade competente.

Art. 168, V - o ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula
facultativa e será ministrado de acôrdo com a confissão religiosa do aluno, manifesta por êle, se fôr
capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável.

Constituição de 18 de Setembro de 1967

Extratos do preâmbulo: “O Congresso Nacional, invocando a proteção de

Deus (...)”

Art 9º. À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:

II- estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los; embaraçar-lhes o exercício; ou manter


com êles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de
interesse público, notadamente nos setores educacional, assistencial e hospitalar.

Art. 20. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

III- criar impostos sôbre:

b) templos de qualquer culto;

Art.150, § 1º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e
convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei.

§ 5º. É plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos
religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes.

§ 6º. Por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou política, ninguém será privado de
qualquer dos seus direitos, salvo se a invocar para eximir-se de obrigação legal imposta a todos, caso
em que a lei poderá determinar a perda dos direitos incompatíveis com a escusa de consciência.

§ 7º. Sem constrangimento dos favorecidos, será prestada por brasileiros, nos têrmos da lei,
assistência religiosa às forças armadas e auxiliares e, quando solicitada pelos interessados ou seus
representantes legais, também nos estabelecimentos de internação coletiva.

Art.civil
ao 167,se§observados
2º. O casamento será civil e gratuita
os impedimentos a sua celebração.
e as prescrições O casamento
da lei, assim o requererreligioso equivalerá
o celebrante ou
qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no registro público.

§ 3º. O casamento religioso celebrado sem as formalidades dêste artigo terá efeitos civis se, o

14
requerimento do casal, fôr inscrito no registro público, mediante prévia habilitação perante a
autoridade competente.

Art. 168, § 3º, IV- o ensino religioso, de matrícula facultativa, const ituirá disci plina dos horári os
normais das escolas oficias de grau primário e médio.

Constituição de 17 de Outubro de 1969

Extratos do preâmbulo: “O Congresso Nacional, invocando a proteção de

Deus (...)”

Art. 9º. À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:

II. estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los; embaraçar-lhes o exercício ou manter


com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de
interesse público, na forma e nos limites da lei feder al, notadamente no setor educacional, no
assistencial e no hospitalar.

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

III- instituir imposto sobre:

b) os templos de qualquer culto;

Art. 153, § 1º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e
convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça.

§ 5º. É plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos
religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes.

§ 6º. Por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou política, ninguém será privado de
qualquer dos seus direitos, salvo se o invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta, caso
em que a lei poderá determinar a perda dos direitos incompatíveis com a escusa de consciência.
§ 7º. Sem caráter de obrigatoriedade, será prestada por brasileiros, nos termos da lei, assistência
religiosa às forças armadas e auxiliares e, nos estabelecimentos de internação coletiva, aos
interessados que a solicitarem, diretamente ou por intermédio de seus representantes legais.

Art. 175, § 2º. O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá
ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, o ato for inscrito no registro público,
a requerimento do celebrante ou de qualquer interessado.

§ 3º. O casamento religioso celebrado sem as formalidades do parágrafo anterior terá efeitos civis, se,
a requerimento do casal, for inscrito no registro publico, mediante prévia habilitação perante a
autoridade competente.

Art. 176, § 3º, V – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários
normais das escolas oficiais de grau primário e médio.
Cabe consignar algumas observações, ainda que esquemáticas e breves.

15
Dispensável realçar que a Constituição do Império conferia ao Estado um

caráter eminentemente confessional, não apenas porque operava com a noção de

religião oficial, religião de Estado, como também porque limitava o culto das

confissões dissidentes ao espaço privado, doméstico, vedando inclusive a edificação


de templos não-católicos.

Investido de atribuições próprias de autoridade religiosa, além das

prerrogativas de chefe de governo, o Imperador detinha poderes para nomear bispos,


abastecer a Igreja Católica com recursos do erário e homologar normativas
internacionais deliberadas pela hierarquia católica.

Ícone robusto da simbiose entre Estado e religião, o juramento de posse do


Imperador apresentava termos que atribuíam primazia à defesa da Igreja Católica,

dispondo num lugar secundário a integridade e a indivisibilidade do Império.

Eloqüente e inequívoca nesta matéria, a Constituição de 1891, elaborada por


uma Assembléia Constituinte, instituiu o mais rigoroso arcabouço separatista no que
diz respeito à relação entre Estado e Religião, assegurando ampla liberdade de culto,
reconhecendo tão somente o casamento de natureza civil, secularizando 12 os

cemitérios e fixando expressamente o caráter laico do ensino público.

A Constituição de 1891 também foi expressa ao proibir o financiamento


público da atividade religiosa, ao assegurar ampla liberdade de culto, e ao introduzir

o instituto da objeção de consciência (art. 72, § 29º, primeira parte), ressalvado que

o objetor sujeitava-se à perda dos direitos políticos.

12
Expressão que em sua acepção jurídica designa objetos ou condutas das quais a lei retirou o
caráter religioso, passando a ser qualificadas como civis (não-religiosas).
16
A Constituição de 1934 inaugurou a previsão de assistência religiosa nas

unidades e expedições militares, e nos hospitais e penitenciárias, sem ônus para os

cofres públicos. Mantendo como regra a secularização dos cemitérios, aquela Carta

passou a prever, também, a existência de cemitérios particulares mantidos por


associações religiosas. A validação civil do casamento religioso, bem como a
adoção do ensino religioso, de freqüência facultativa, passaram a constar no direito

constitucional.

De seu turno, a Carta de 1937 manteve-se silente em relação ao casamento


religioso, à assistência religiosa nas instituições de internação coletiva e à objeção

de consciência. Ao referir-se ao ensino religioso, aquela Constituição facultava a


inclusão de tal disciplina como matéria do curso regular das escolas públicas,

proibindo, porém, o engajamento compulsório dos professores ou a freqüência


obrigatória dos alunos.

A Carta de 1946 apresenta dois traços peculiares: 1. a introdução da


imunidade tributária do templo, decerto visando impedir a obstrução, por meio de
impostos, do funcionamento das confissões religiosas; 2. o aperfeiçoamento do

instituto da objeção de consciência, proibindo a perda de quaisquer direitos, desde

que o objetor cumprisse prestação alternativa fixada em lei.

A Constituição de 1967 notabilizou-se por associar o princípio da igualdade à

proibição de discriminação em razão de credo religioso, entre outros, como já o


fizera o Texto de 1934. O enunciado “Todos são iguais perante a lei” passou a ser

acompanhado de vedações que apuram e decompõem seu significado, acentuando-

17
o: “sem distinção de (...) credo religioso (...)”.

A Constituição de 1969 aboliu a obrigatoriedade da assistência religiosa às

forças armadas. Vale notar ainda que, na trilha de suas antecessoras, excetuando-
se a primeira Constituição republicana, referida Carta assegurava ampla liberdade

de crença, mas condicionava o culto religioso à observância da ordem pública e dos


bons costumes, previsão esta abolida do Texto Constitucional de 1988.

1.2 Intolerância religiosa na legislação

Conforme salientado, a Constituição de 1891 adotou a mais rígida

demarcação das áreas de domínio do Estado e da religião.

Fosse necessário referir algo para encarecer o relevo deste atributo da


primeira Constituição republicana, bastaria mencionar a ruptura com a legislação

colonial e, conseqüentemente, com a intolerância religiosa que imperava até então.

Com efeito, até a outorga da Constituição do Império, seguida da edição do


Código Criminal do Império do Brasil , de 1830, o Brasil esteve sob a égide das

chamadas Ordenações do Reino: as Ordenações Afonsinas (1446-1521), as


Manoelinas (1521-1603) e as Filipinas (1603-1830), assinaladas as influências do
Direito Canônico e especialmente, do Direito Romano. 13

Segundo anotações de Ruy Rebello Pinho,

Ordenações Afonsinas foram lei no Brasil logo após a descoberta


de Cabral e já tinham quase sessenta anos de vida quando aqui chegaram.

13
A Lei da Boa Razão, de agosto de 1769, prescrevia a adoção do Direito Romano como fonte
normativa subsidiária das Ordenações.
18
As Manoelinas dirigiram nosso direito cerca de noventa anos. E de mais
de dois séculos foi a vida do Código Filipino. Durante trezentos e trinta
anos, de 1500 a 1830, o combate ao crime e ao criminoso se fez, em
nossa terra, através das velhas leis de Portugal. 14

Entre os três, o Código Filipino foi o mais amplamente empregado no Brasil.


Um exame exploratório do famoso Livro V das Ordenações Filipinas aponta as

seguintes regras:

. criminalizava a heresia, punindo-a com penas corporais. (Título I);

. criminalizava a negação ou blasfêmia de Deus ou dos Santos. (Título II);

. criminalizava a feitiçaria, punindo o feiticeiro com pena capital. (Título III).

Modificações neste quadro foram introduzidas pela Constituição Política do

Império, e pelo Código Criminal editado seis anos depois.

Leis, avisos e posturas municipais asseguravam à Religião Católica o

privilégio de religião oficial, merecendo destaque, entre outros, o decreto de 21 de


fevereiro de 1832, que tratou do trabalho escravo no Arsenal de Guerra da Corte e

que previa a atuação de um Capelão que, “além de celebrar a missa aos domingos e
dias santos, instruíra a escravatura nos princípios da religião cristã”. 15

O Código Criminal do Império, editado em 16 de Dezembro de 1830, punia a

celebração ou culto de confissão religiosa que não fosse o oficial (art. 276); proibia a

14
Ruy Rebello PINHO. História do Direito Penal Brasileiro - Período Colonial . São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1973, p. 19.
15
BAHIA. Secretaria da Cultura. Documentação Jurídica sobre o Negro no Brasil, 1800 – 1888 .
Francisco Sergio Mota Soares et. al . (org). Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1989, p. 36.
19
zombaria contra o culto estabelecido pelo Império (art. 277) e criminalizava a

manifestação de idéias contrárias à existência de Deus (art. 278).

Proclamada a República, o Governo Provisório encomenda a organização de


um projeto de Código Penal, convertido em lei em 11 de outubro de 1890. Dentre

seus artigos convém destacar o tipo penal de curandeirismo (art. 156) e o delito de
espiritismo (art. 157).

Sobre o delito de espiritismo, Antonio Bento Faria atribui ao aludido termo o


significado de “feitiçaria, evocação de espíritos, bruxaria”. 16

O Código Penal vigente, de 1940, manteve os delitos de charlatanismo (art.


283) e curandeirismo (art. 284).

Pesquisando julgamentos de charlatanismo e curandeirismo no Brasil, desde

o inicio do século passado, Ana Lucia Pastore Schirtzmeyr observa a freqüente


associação entre tais delitos e práticas religiosas de srcem africana, vistas como
bárbaras e primitivas.17

Devemos assinalar, ainda, no campo do direito estadual, que no Estado da


Bahia a Lei n. 3.097, de 29 de dezembro de 1972, obrigou, até o ano de 1976, as
sociedades de culto afro-brasileiro a se registrarem na Delegacia de Polícia da

circunscrição. No Estado da Paraíba, a Lei n. 3.443, de 06 de novembro de 1966,

16

Antonio
Janeiro: Ed.Bento RibeiroAnnotações
FARIA.
Jacinto dos Santos, Theorico-Praticas ao Código Civil Penal do Brasil. Rio de
v.I, 1929, pp. 307-310.
17
Ana Lúcia Pastore SCHRITZMEYR. Direito e Antropologia: Uma Historia de Encontros e
Desencontros – Julgamentos de Curandeirismo e Charlatarismo – (Brasil – 1900/1990) in Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revis tas dos Tribunais, n. 18, abr/jun, 1997, pp. 135 –
145.
20
subordinava o funcionamento dos “cultos africanos” à autorização concedida pela

Secretaria de Segurança Pública, bem como à apresentação de prova de sanidade

mental do responsável pelo culto, mediante realização de exame psiquiátrico.

Tendo em conta esta breve digressão histórica, poderíamos afirmar a

existência de uma tumultuada trajetória histórica do Estado brasileiro no que diz


respeito à liberdade de crença, do que deriva um acidentado movimento de

passagem do Estado confessional, intransigente, para um Estado laico, ou leigo,


conforme veremos adiante.

1.3 Estado Confessional. Estado Laico. Estado Leigo.

Em obséquio à taxinomia, poderá ser útil, neste ponto, adotarmos uma


posição no que diz respeito à definição de Estado e de religião.

Geraldo Ataliba conceitua Estado nos seguintes termos: “Estado é a


sociedade soberana, surgida com a ordenação jurídica, cuja finalidade é regular
globalmente as relações sociais de determina do povo fixo em dado te rritório sob um

poder”. 18 Quanto à finalidade, Dalmo de Abreu Dallari acrescenta ainda que “este
busca o bem comum de um certo povo, situado em determinado território”. 19

No dizer de Émile Durkheim, “Uma religião é um sistema solidário de crenças

e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e

18
Geraldo ATALIBA. Lições de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Instituto de Direito Público, 1976,
p. 67.
19
Dalmo de Abreu DALLARI. Elementos de Teoria Geral do Estado . 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1991,
p. 91.
21
práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos

aqueles que a ela aderem”. 20

Estabelecida a classificação das duas entidades cuja interseção nos interessa


mais diretamente nesta parte, podemos retomar a noção de Estado confessional,

que, de acordo com Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino,


apresenta os seguintes atributos:

O termo confessionalismo indica uma atitude específica do Estado


em matéria religiosa, que se manifesta privilegiando um grupo ou uma
confissão religiosa, assumindo seus princípios e sua doutrina e
incorporando na própria legislação ou nos próprios comportamentos
aspectos doutrinais decorrentes diretamente daquela doutrina, superando
também qualquer mediação das consciências individuais. 21

A Dinamarca, país de maioria luterana, oferece um exemplo interessante de


Estado confessional. Segundo a Constituição dinamarqueza,

Os cidadãos têm o direito de se reunir em comunidades para o


culto de Deus segundo as suas convicções, desde que eles não ensinem
nem pratiquem nada que seja contrário aos bons costumes ou à ordem
pública. (art. 67)
Ninguém é obrigado a dar contribuições pessoais a um culto que
não seja o seu. (art. 68)
A situação das Igrejas dissidentes é fixada em lei. (art. 69)

Seguindo uma linha intermediária entre o confessionalismo e o laicismo, a


Constituição italiana defere nítida primazia à Igreja Católica, embora preceitue:

O Estado e a Igreja Católica são, cad a um na própria esfera,


independentes e soberanos. Suas relações são regulamentadas por
pactos Lateranenses, e as modificações dos pactos, aceitas pelas duas
partes, não requerem procedimento de revisão constituicional. (art. 7o )

20
Émile DURKHEIM. As Formas Elementares da Vida Religiosa . São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
32.
21
Norberto BOBBIO, Nicola MATTEUCI e Gianfranco PASQUINO. Dicionário de Política . Brasília:
Universidade de Brasília, 1986, p. 121.
22
Todas as confissões religiosas são igualmente livres perante a lei.
As confissões religiosas diversas da Católica têm direito de organizarem-
se conforme os próprios estatutos, desde que não conflitem com o
ordenamento jurídico italiano. As suas relações com o Estado são
regulamentadas por lei na base de um entendimento com as respectivas
representações. (art. 8o )

A respeito do laicismo, José Joaquim Gomes Canotilho leciona que

O laicismo, produto ainda de uma visão individualista e racionalista,


desdobrava-se em vários postulados republicanos: a separação do Estado
e da Igreja, igualdade de cultos, liberdade de cultos, laicização do ensino,
manutenção da legislação referente à extinção das ordens religiosas (...)
Relativamente à autoridade política, a religião deixa de ser um tema
público para se enquadrar na esfera dos assuntos privados, a não ser
quanto à vigilância da própria liberdade religiosa. (...) uma sociedade
politicamente democrática, assente no relativismo político, postula também
uma sociedade religiosamente liberal, tolerante para com todos os credos,
aceites e praticados pelos cidadãos. O equilíbrio religioso srcina como
conseqüência inevitável a secularização da educação, dado que o estado
laico não22 pode tolerar um monopólio de uma orientação a favor de uma
religião.

Do ponto de tensão entre confessionalismo e laicismo brotou o aludido


movimento separatista, cuja concepção técnico-jurídica e política é assim definida

por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino:

Um sistema de separação entre as duas instituições, sistema que


envolve, em sua extrema configuração e com interferências inevitáveis,
não só a indiferença do Estado pelas várias dogmáticas religiosas, como
também o seu desinteresse pelas manifestações sociais de qualquer das
confissões: nada de regulamentações especiais, nem favoráveis, nem
limitativas, das organizações eclesiásticas. 23

Ainda segundo os autores, trata-se de

Um conceito limite, em virtude do qual se tende , enquanto


possível, a subtrair ao Estado toda a ingerência em matéria de culto e de
doutrina eclesiástica e se exclui, reciprocamente, toda a concorrência da

22
Jose Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra:
Ed. Livraria Almedina, 1998, p. 159.
23
N. BOBBIO, N. MATTEUCCI e G. PASQUINO, Dicionário de Política, p.1.146.
23
Igreja no desempenho de tarefas que pertencem ao Estado, conforme seu
ordenamento interno. 24

Por este ângulo, confessionalismo e laicismo se afiguram como conceitos


antagônicos, antitéticos.

Não obstante, estado leigo, antítese de estado confessional, pode ser


distinguido de Estado laico, se com o termo laicismo pretende-se significar uma

profissão irreligiosa, ou anti-religiosa.

Na trilha dos postulados bobbianos já poderíamos, esquematicamente,


esboçar as três configurações estatais aludidas no título deste item:

Estado confessional: regido pelo amálgama, pela sobreposição entre


ordenamento jurídico e ordenamento religioso, no qual inexiste distinção entre
cidadão e fiel; Estado laico: que se caracteriza pela neutralidade estatal em face do

discurso religioso, bem como pela separação das esferas de domínio do Estado e da
religião, de modo que ordenamento jurídico e ordenamento religioso mantém uma

relação de independência, cada qual incidindo em dimensões diferentes da


existência humana: o primeiro, sobre o cidadão; o segundo, sobre o fiel;

Estado leigo: de natureza anti-religiosa, no qual o ordenamento jurídico rejeita

quaisquer preceitos de ordenamentos do tipo religioso; a esta modalidade de Estado


interessam tão somente os assuntos concernentes ao cidadão, pelo que são

desprezados ou mesmo repudiados os temas referentes à condição de fiel.

24
Ibidem, mesma página.
24
O princípio laico consistir ia, assim, em uma importante regra, a saber: não ter

a pretensão de possuir a verdade mais do que qualquer outro possa ter a pretensão

de possuí-la, tal como sintetizado por Hans Kelsen.25

No caso do sistema jurídico brasileiro, merece realce que o Texto

Constitucional não imprime à República um caráter anti-religioso, tanto que o art. 5 o,


inciso VII, assegura a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e

militares de internação coletiva; o art. 150, inciso VI, alínea “b”, prescreve a
imunidade tributária de templos de qualquer culto, e o art. 226, § 2º, confere efeitos
civis ao casamento religioso.

Ademais, o Código Penal contém um capítulo especialmente destinado à


proteção do sentimento religioso (art. 208 e ss.).

Tais normas encerram determinadas condições de possibilidade por meio das


quais o sistema jurídico assegura o exercício livre e desembaraçado da liberdade de
crença, seja protegendo os cultos (tutela penal do sentimento religioso), garantindo o
culto em instituições de internação coletiva, ou impedindo que o Estado possa
estorvar, por meio de tributos, o funcionamento dos templos religiosos.

Não há dúvida de que é da natureza da ética religiosa, da normativa religiosa,

posicionar- se a respeito de temas como aborto, casamento, divórcio, eutanásia,


suicídio, transplante de órgãos, inseminação artificial, fertilização in vitro , doação de

órgãos, cremação, transfusão de sangue, entre outros. Não obstante, ao menos no

25
Hans KELSEN, A Democracia, p. 242.
25
plano formal, a disciplina jurídica dessas matérias revela a preservação de um amplo

espaço de independência do Estado e dos indivíduos em face do discurso religioso.

No caso da transfusão de sangue, por exemplo, a jurisprudência registra


eloqüentes construções:

1.Indenizatória. Reparação de danos. Testemunha de Jeová.


Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação.
Convicções religiosas que não podem prevalecer perante o bem maior
tutelado pela Constituição Federal que é a vida. Conduta dos médicos, por
outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que
somente efetuaram as transfusões sangüíneas após esgotados todos os
tratamentos alternativos. Inexistência, ademais, de recusa expressa a
receber transfusão de sangue quando da internação da autora.
Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuadas com exames
médicos, entre outras, que não merece acolhida, posto não terem sido os
valores despendidos pela apelante (TJ/SP – Apelação Cível nº 123.430-4
– 3ª Câmara de Direito Privado – Rel. Flávio Pinheiro – j. 07/05/02);
2.Omissão de socorro e periclitação de vida. Negativa de
autorização para transfusão de sangue por motivos religiosos. Crime
impossível. Inocorrência. Inteligência: art. 132 do Código Penal, art. 135 do
Código Penal, art. 17 do Código Penal, art. 146, § 3º, I do Código Penal
162(b). Acusadas que em nome de seita religiosa e das orientações nela
recebidas deixam de permitir transfusão de sangue em menor,
possibilitando a consumação da omissão de socorro e da periclitação de
vida, praticam em tese os delitos dos arts. 132 e 135 do CP, não havendo
falar em expor a perigo a vida de pessoa morta (impropriedade absoluta
do objeto) ou em ministração de substância inócua à guisa de veneno
(ineficácia absoluta do meio), ou em deixar sem socorro pessoa que dele
não necessitasse, hipótese em que se poderia cogitar de crime impossível
(TJ/SP – Habeas Corpus nº 184.642/5 – 9ª Câmara – Rel. Marrey Neto – j.
30/08/89 – RJDTACRIM 7/175);
3.Pretendido trancamento de ação penal. Homicídio. Paciente que
influenciou para que a vítima fatal, testemunha de Jeová, não recebesse
transfusão de sangue. Alegando os motivos espirituais e de religião. Fato
típico. Ausente a falta de justa causa (TJ/SP - Habeas Corpus nº 253.458-
3 – 3ª Câmara Criminal – Rel. Pereira Silva - j. 05/05/98).

Interessante observar que nos três julgados aduzidos, o ponto de tangência


entre norma jurídica e norma religiosa assumiu aparência de conflito somente até o
momento em que o Poder Judiciário manifestou-se, visto que foi inequívoca a
afirmação de que sob nenhuma hipótese a norma religiosa pode equiparar-se ou

sobrepor-se à norma jurídica.

26
O procedimento de análise deste tipo de conflito encontra na obra de Norberto

Bobbio um interessante instrumental. Diferenciando certas escolas teóricas do direito,

entre as quais o historicismo e o positivismo jurídico, ensina o autor:

A segunda fase do pluralismo jurídico é aquela que podemos


chamar de institucional (para distingui-la da primeira, que podemos
chamar de estatal ou nacional). Aqui ‘pluralismo’ tem um significado mais
pleno (tanto que, se se fala em pluralismo sem maiores especificações,
nos referimos a esta corrente e não à precedente): significa não somente
que há muitos ordenamentos jurídicos (mas todos do mesmo tipo), em
contraposição ao Direito universal único, mas que há ordenamentos
jurídicos de muitos e variados tipos. Chamamo-lo de ‘institucional’ porque
a sua tese principal é a de que existe um ordenamento jurídico onde exista
uma instituição, ou seja, um grupo social organizado.26

Aderindo à teoria pluralista institucional, o jusfilósofo italiano admite, assim, a

idéia de um ordenamento religioso 27, evidentemente não-estatal e que figuraria ao


lado do Estado. 28

Perscrutando a interseção entre tais ordenamentos, afirma Norberto Bobbio


que

Podem-se distinguir três tipos de relacionamento entre


ordenamentos, conforme o âmbito diferente seja temporal, espacial ou
material: (...) dois ordenamentos têm em comum o âmbito temporal e
espacial,
entre um mas não o material.
ordenamento estatalTrata-se do relacionamento
e ordenamento característico
da Igreja com particular
atenção às igrejas cristãs, sobretudo a Igreja Católica: Estado e Igreja
estendem sua jurisdição no mesmo território e ao mesmo tempo, mas as
matérias reguladas por um e por outro são diferentes.29

26
Norberto BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 163.
27Bobbio divisa ordenamento como um contexto de normas hierarquizadas e articuladas entre si. O
autor considera ordenamento jurídico e sistema normativo como sinônimos. Norberto BOBBIO, Teoria
do Ordenamento Jurídico, pp. 20/75.
28
Ibidem, p. 164.
29
Ibidem, pp. 174-5.
27
Vale anotar que, no caso específico do sistema jurídico brasileiro, há apenas

uma hipótese, salvo melhor juízo, de um ato cuja ocorrência na seara estritamente

religiosa é reconhecida pelo sistema: o casamento religioso, o qual, observadas

certas prescrições legais, equipara-se ao casamento civil.

Consignada a exceção, podemos afirmar, valendo-nos do instrumental


bobbiano, que, no sistema jurídico brasileiro, a relação entre ordenamento jurídico e

ordenamento religioso apresenta traços de induvidosa independência e autonomia


recíproca, sem olvidarmos, por certo, do princípio constitucional da legalidade, do
qual nenhum ordenamento religioso estará imune.

Retomando, o enunciado do artigo 19, inciso I, da Carta da República,


encerra a fórmula nuclear encontrada pelo constituinte para fixar as balizas da

relação entre Estado e religião, qual seja:

É vedado à União, aos Estados, e ao Distrito Federal e aos


Municípios: I - Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma
da lei, a colaboração de interesse público.

A norma proibitiva comete ao Estado uma obrigação de não-fazer, uma

abstenção, perfazendo uma área de abrangência na qual estão localizadas


textualmente:

. a proibição de criar, instituir, fundar, firmar ou celebrar qualquer culto ou igreja;

. a proibição de destinar auxílio ou contribuição financeira, permanente ou eventual,

para suportar quaisquer tipos de despesas de quaisquer cultos ou igrejas;

28
. a proibição de obstruir, impedir, tolher, perturbar ou estorvar o funcionamento de

qualquer culto ou igreja;

. a proibição de manter, com quaisquer cultos, igrejas, ou representantes destas,


relação de sujeição, subordinação ou anexação;

. a proibição de realizar qualquer pacto, acordo ou união a qualquer título com culto
ou igreja.

No que se refere a estes dois últimos aspectos, a saber, a relação de

dependência ou aliança, esta é admissível em caráter excepcional, visando

satisfazer interesse público, lembrando que interesse público é conceito jurídico


fixado em regra de direito positivo, de modo que apenas e tão somente a lei possui
autoridade para determinar os casos em que o interesse público justifica relação de

aliança entre Estado e culto ou igreja.

“Não há negar-se que uma certa colaboração é possível, como reza o mesmo
dispositivo. Contudo, cabe à lei definir as modalidades desta cooperação”, dirão

Celso Ribeiro Bastos e Samantha Meyer-Pflug.30

Temos assim que o enunciado em tela aponta a inscrição de dois princípios


organizativos31 de alta relevância para a questão da liberdade de crença: o princípio

30

Consciência
Celso Ribeiro
e deBASTOS
Crença ineRevista
Samantha MEYER-PFLUG.
de Direito DoeDireito
Constitucional Fundamental
Internacional . São Paulo:
à Liberdade
Revistasdedos
Tribunais, v. 36, jul/set, 2001, pp. 112-113.
31
“Normas que contêm esquemas gerais, um como que início de estruturação de instituições, órgãos
ou entidades”. v. José AFONSO DA SILVA. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 1998, p. 123.
29
da separação Estado/religião e o princípio da laicidade estatal, sobre os quais já

discorremos e aos quais retornaremos em várias oportunidades neste trabalho.

Nota deve ser dedicada a uma possível impropriedade semântica: o Texto


Constitucional emprega o vocábulo igreja, equiparando-o a culto religioso.

Igreja, do hebraico qahal – assembléia do povo de Deus – e do grego ekklesia


( assembléia pública), aparece no Novo Testamento designando um ajuntamento de

fiéis, num determinado lugar, para adorar a Deus, fortalecer a comunhão cristã e
desenvolver o serviço cristão ( Epístola aos Efésios, 5, 30-33). Na linguagem comum,
além de significar templo, o termo também é empregado para designar uma

diversidade de confissões religiosas, sobretudo cristãs, o que evidencia a


associação daquele vocábulo a uma específica religião - o cristianismo.

Mais apropriado seria, tendo em conta o caráter laico do Estado brasileiro, o


uso do termo religião, gênero do qual são espécies as diversas denominações
religiosas professadas pelo povo brasileiro.

Parêntese deve ser aberto para um comentário a respeito do uso da


expressão seita religiosa, não-referida no direito positivo, mas não raro presente na

jurisprudência.

Examinando o fenômeno dos movimentos religiosos minoritários, na ótica do


direito, assevera Jónatas Machado:

Em primeiro lugar, entendemos que a expressão seita transporta


um sentido pejorativo, traduzindo muitas vezes uma arrogância pré-
conceitual, mais ou menos explícita e autoconsciente, por parte dos
membros da confissão religiosa dominante ou das confissões mais
tradicionais. (...) Assim, a sua utilização conduz a que sejam tratadas
como ‘meras seitas’ certas confissões religiosas que, embora possam ser
minoritárias num certo local, gozam, noutros, de significativa
30
credibilidade histórica e elevado nível de institucionalização. Além disso, a
utilização de tal expressão parece querer ignorar a realidade óbvia de que
mesmo as grandes religiões tradicionais começaram por ser ‘meras seitas’,
no sentido comum da expressão, susceptíveis de ser ainda consideradas
como tais em sítios em que a sua presença é praticamente nula. 32

Dispensando quaisquer comentários complementares, conclui o autor


português:

Por outro lado, como anteriormente se disse, a expressão ‘seita’


não deve ser considerada um conceito juridicamente relevante,
mostrando-se frequentemente indeterminado, destituido de objectividade e
passível de manipulações arbitrárias ao serviço dos interesses e das
aspirações de domínio da confissão religiosa dominante.33

Nesta ordem de idéias, uma outra consideração de natureza aparentemente

semântica faz-se necessária. A Constituição Federal menciona o vocábulo


eclesiástico, verbis: “As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar
obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes

atribuir” (art. 143, § 2°).

Uma vez mais deparamo-nos com a utilização de uma palavra que


certamente pretendeu designar autoridade e/ou ministro religioso de quaisquer

religiões, mas que terminou assumindo uma denotação circunscrita aos sacerdotes
do catolicismo.

No Dicionário Aurélio, por exemplo, o verbete eclesiástico ostenta os

seguintes significados: “pertencente ou relativo à Igreja; eclesial; membro do clero,

32
Jónatas MACHADO. A Constituição e os Movimentos Religiosos Minoritários in Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra . Coimbra: Faculdade de Direito. v. LXXII, 1996, p.
218.
33
Ibidem, p. 265.
31
sacerdote, clérigo, padre”. 34 Se ainda assim pairassem dúvidas sobre a gênese

católica do vocábulo em exame, restar-nos-ia lembrar a existência dos Tribunais

Eclesiásticos que figuram na estrutura de todas as dioceses do país.

À evidência, estamos diante de uma incorreção semântica do Constituinte de

88, que poderia ter sido evitada, entre outros, com o empréstimo dos termos
empregados pela Lei dos Registros Públicos, a Lei 6.015/73, verbis:

Os nubentes habilitados para o casamento poderão pedir ao oficial


que lhes forneça a respectiva certidão, para se casarem perante
autoridade ou ministro religioso, nela mencionando o prazo legal de
validade da habilitação (art. 71).

Admitindo-se, insistimos, o caráter laico do Estado brasileiro, a expressão


eclesiástico há que ser entendida como autoridade ou ministro religioso de
quaisquer profissões religiosas.

Tomadas estas considerações em conjunto evidencia-se o fato de que, no

que diz respeito à relação entre Estado e religião, a Constituição brasileira atribui à
República um estatuto jurídico inequívoco, induvidoso: uma República laica.

1.4 Religião: a inexigibilidade do reconhecimento estatal

Do ponto de vista da disciplina jurídica das confissões religiosas, há os

estados que exigem reconhecimento oficial para que uma determinada confissão

adquira estatuto jurídico de religião; e os que se abstém de qualificá-las


juridicamente, ou de fixar os contornos legais de seu funcionamento, baseado no

pressuposto de que trata-se de matéria de caráter eminentemente privado.

34
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA. Aurélio Século XXI – O Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 714.
32
O Brasil alinha-se a esta segunda corrente, de sorte que inexiste, no sistema

jurídico brasileiro, uma definição legal de religião, tampouco o estabelecimento de

religião oficial ou reconhecida, pelo que religião encerra menos um conceito, um

conteúdo essencial, um núcleo qualificado, e muito mais uma manifestação cultural


alçada pela Constituição à categoria de bem jurídico, a partir do que são reguladas
as condições de possibilidade para o seu exercício, bem como as obrigações

positivas e negativas cometidas ao Estado e aos particulares.

Note-se que mesmo aqueles países como Dinamarca ou Itália, que deferem
privilégios a religiões oficiais, ou Irã, que toma os preceitos islâmicos como fonte

para a formulação de direitos, se abstêm de definir a dimensão jurídica do


funcionamento das confissões religiosas.

Com efeito, a questão da liberdade de crença situa-se numa esfera da


existência humana, individual e coletivamente, que refoge ao imperium do Estado,
sujeitando-se à leis infensas ao domínio jurídico, pois que, no limite, remontam à
metafísica, ao transcendental.

Pertence ao foro íntimo da pessoa, à liberdade interna do indivíduo, a

complexa correlação entre realidade terrena e prospecção ultraterrena.

Crença religiosa diz respeito a leituras e interpretações de uma dimensão


metafísica, de uma realidade não demonstrável, no mais das vezes expressas em

categorias abstratas, espirituais, temporais. Deste modo, delas não se pode exigir

que sejam aceitáveis, racionais, lógicas, consistentes ou compreensíveis, seja para


ateus, tanto menos para adeptos de religiões distintas daquela posta eventualmente

33
em exame.

Consoante lição magistral de John Locke,

Porque ou
outras, errônea cada igrejaEéainda:
herege. ortodoxa
(...) para
todo osi poder
consigo
do mesma;
governo para as
civil diz
respeito tão só aos interesses civis dos homens, limitando-se ao cuidado
enquanto pertence a este mundo, nada tendo a ver com o mundo a vir. 35

Veja-se o postulado de Cristobal Orrego Sanchez e Javier Saldaña Serrano:


“O Estado não pode determinar a verdade ou falsidade de qualquer credo religioso.

Logo, não poderá discriminar nenhuma confissão com base na verdade ou falsidade
religiosa”. 36

Deste entendimento não se aparta Jónatas Machado:

O Estado encontra-se, pois, obrigado a uma neutralidade e não


identificação em matéria religiosa. Significa isso, desde logo, que o
exercício do direito à liberdade religiosa não pressupõe, antes proscreve,
qualquer assentimento estadual prévio, ou juízo de racionalidade ou
plausibilidade, relativamente ao conteúdo das diferentes crenças em
presença.37

Daí advém, acrescentaríamos, a inviabilidade de uma definição legal de

religião, ou, no Estado Democrático de Direito, a impropriedade da qualificação de


uma dada religião como religião oficial, ou, reconhecida. Por evidente, isto não quer
significar que as confissões religiosas e as práticas que dela decorrem possam
escapar ao controle da legalidade. Contudo, uma vez observada a fronteira da

licitude, quaisquer agrupamentos de pessoas, instituídos segundo as leis do país,

35
John LOCKE, Carta a Respeito da Tolerância, pp. 12-20.
36
Cristobal Orrego SANCHEZ e Javier Saldaña SERRANO. Principios del Derecho y Libertad
Religiosa in Revista de Derecho da Universidad de Concepcion. Chile: Facultad de Ciencias Jurídicas
y Sociales, Ano LXVII, 1999, passim.
37
Jónatas MACHADO, A Constituição e os Movimentos Religiosos Minoritários, p. 229.
34
que reivindiquem a condição de associação religiosa, deverão ser considerados

como tal pelo Estado e pelos particulares, sem quaisquer restrições ao exercício e

gozo dos direitos e prerrogativas deferidos aos fiéis, ministros religiosos,

associações, cultos e templos religiosos.

A esse respeito, é nítida a disposição do artigo 150, inciso VI, alínea b, da


Constituição Federal, segundo o qual é vedado à União, aos Estados e ao Distrito

Federal e aos municípios, instituir impostos sobre “templos de qualquer culto”.

O emprego do pronome indefinido qualquer desautoriza especulações a


respeito de qual seja o culto salvaguardado de ingerências estatais, inclusive as que

poderiam manifestar-se por meio de tributos: todo e qualquer culto encontra-se no


campo de incidência dessa norma constitucional.

Trata-se de preceito que deve ser examinado em concordância prática com a


prescrição constitucional do pluralismo de idéias (Constituição Federal, art.1º, inciso
V; artigo 206, inciso III) e, especialmente com a regra esculpida no art. 5º, inciso VIII,
do Texto Constitucional: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença
religiosa (...)”. Aqui, uma vez mais deparando-nos com a utilização de um pronome

indefinido, ninguém, realçando a vontade do Constituinte de 1988 de indivisar

pessoas em razão do seu credo religioso, assegurando a todos os fiéis,


independentemente da fé que professem, igualdade de tratamento e de

oportunidades.

Em última instância, a Carta da República assegura a inviolabilidade da


liberdade de crença (art. 5 o, inciso VI) sem adjetivar tal crença, e outorga o livre

35
exercício dos cultos (no plural), além de garantir a proteção dos locais de culto e

suas liturgias – sempre empregado no plural – pelo que quaisquer tergiversações

acerca da classificação e/ou hierarquização de confissão religiosa no Brasil

configuram ofensa frontal e direta à Constituição vigente.

Tomemos emprestado o juízo de Paulo de Barros Carvalho:

Estão imunes templos de qualquer culto. Trata-se de reafirmação


do princípio da liberdade de crença e prática religiosa, que a Constituição
prestigia no artigo 5º, incisos de VI a VII. Nenhum óbice há de ser criado
para impedir ou dificultar esse direito de todo o cidadão. E entendeu o
constituinte de eximi-lo também do ônus representado pela exigência de
impostos (art. 150, VI, b). Dúvidas surgiram sobre a amplitude semântica
do vocabulário culto, pois, na conformidade da acepção que tomamos, a
outra palavra - templo - ficará prejudicada. Somos por uma interpretação
extremamente lassa da locução
irradiação semântica, cultoformas
todas as religioso. Cabem no campo
racionalmente de suade
possíveis
manifestação organizada de religiosidade, por mais estrambóticas,
extravagantes ou exóticas que sejam. E as edificações onde se realizam
esses rituais haverão de ser consideradas templos.38

Interessante observar que já nos idos dos anos sessenta do século passado,

Aliomar Baleeiro realçava a transigência, a maleabilidade com que o sistema jurídico


tratou a matéria da liberdade de crença, de tal modo que advertia: “Mas existe o

perigo remoto de intolerância para com o culto das minorias, sobretudo se estas se
formam de elementos étnicos diversos”. 39

A sabedoria de Aliomar Baleeiro prossegue ecoando, mas não o bastante

para impedir a produção de uma certa doutrina, e mesmo de atos normativos


obstinados em subordinar a norma jurídica às preferências religiosas pessoais.

38
Paulo de Barros CARVALHO. Curso de Direito Tributário. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.183.
39
Aliomar BALEEIRO. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Rio de Janeiro: Forense,
1980, p. 182.
36
Não se deve ter dúvida quanto ao fato de que o sistema jurídico brasileiro

repudia veementemente tal ordem de especulações e de intransigência. É

desnecessário lembrar que a história da humanidade é repleta de tragédias

decorrentes do monolitismo religioso e da manipulação político-ideológica do


sentimento religioso: guerras, genocídios, massacres, estupros em massa e outras
iniqüidades, no passado e mesmo no presente, continuam brotando da

intransigência religiosa, agredindo a consciência democrática e vulnerando os mais


elementares direitos da pessoa humana.

40
A tristemente famosa inquisição, o caso Jean Calas , o caso Dreyfus 41, o

nazismo, a questão Palestina, os conflitos no Reino Unido, no Oriente Médio, a


guerra na Bósnia, os massacres praticados na Índia, ou em certas regiões do

continente africano, são apenas alguns exemplos dos frutos produzidos pelo germe
da intransigência religiosa.

Não por mera casualidade, portanto, o Estado Democrático de Direito está


terminantemente desautorizado, sob qualquer pretexto, a permitir a superposição de
papéis entre Estado e religião, tampouco a transigir na proteção da liberdade de

crença e de culto.

40
Ocorrido em Toulouse em 1762, no qual o ancião Jean Calas, protestante, foi condenado à morte,
acusado de parricídio. O julgamento foi fortemente influenciado por católicos, com o argumento de
que os protestantes tinham o hábito de sacrificar os próprios filhos. O filho morto, Marc-Antonie, havia
cometido suicídio, conforme terminou comprovado. Jean Calas foi executado no dia 9 de julho de
1762. v. VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1993, passim.
41 Fato célebre ocorrido entre 1894 e 1914, na França, que decorreu da prisão de um militar francês,
judeu, Alfred Dreyfus, condenado e degregado injustamente sob a acusação de traição e venda de
segredos militares. O caso deu ensejo a manifestações anti-semitas na França, sendo que anos
depois o verdadeiro culpado acabou identificado, resultando na reabilitação de Dreyfus. v. Antonio
Carlos do Amaral AZEVEDO. Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos . 2. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 152.
37
Um caso emblemático, julgado pela Suprema Corte norte-americana, Church
42
of The Lukumi Babalu Aye versus City of Hialeah , ilustra a transigência exigível do

Estado e dos particulares no que se refere à liberdade religiosa.

A Church of the Lukumi Babalu Aye, pertencente à confissão religiosa

denominada Santería (levada para os Estados Unidos no século XIX, por negros
cubanos), atribuiu ao sacrifício de animais um lugar destacado entre os seus ritos, a

despeito de tratar-se de uma prática formalmente proibida por norma da comunidade


de Hieleah (Flórida).

Invocando a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, a

Suprema Corte entendeu que os funcionários públicos deveriam ater-se aos


princípios maiores da Constituição, entre os quais a tolerância religiosa, e lembrou

que as mesmas normas municipais conviviam com a matança de animais praticada


pelos judeus - uma regra da dieta alimentar judaica - sem que tais matanças fossem
condenadas, pelo que a hostilidade em relação à Church of the Lukumi configurava
uma indisfarçável discriminação por parte dos reclamantes.

No contexto brasileiro, Celso Bastos também pronuncia-se a respeito do

princípio da não-discriminação de natureza religiosa: “Outro princípio fundamental é

que o Estado deve manter-se absolutamente neutro, não podendo discriminar entre
as diversas igrejas, quer para beneficiá-las, quer para prejudicá-las”.43

42
Church of the Lukumi Babalu Aye versus City of Hialeah/Florida (113 S. Ct. 2217, 1993), publicado
em JÀ, 1995-I-320.
43
Celso Ribeiro BASTOS. Curso de Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.192.
38
Comentando a possibilidade de colaboração entre Estado e religião, o autor

sublinha que, “No entanto, esta colaboração será sempre difícil, uma vez que deverá

estar adstrita ao princípio de uma absoluta igualdade entre todas as igrejas”. 44

Interessante constatar que Celso Bastos aplica o pronome indefinido todas,

decerto com o objetivo de salientar o imperativo da igualdade que o sistema jurídico


outorga a todas e quaisquer crenças e religiões.

Façamos então uma breve digressão sobre a aplicação do princípio da


igualdade às profissões religiosas, mesmo porque, diria José Afonso da Silva que:

especialEmbora seja uma


essa primazia decla ração
ao direito formal, que,
de igualdade, não deixa de servirá
por isso, ter sentido
de
orientação ao intérprete, que necessitará de ter sempre presente o
princípio da igualdade na consideração dos direitos fundamentais do
homem.45

1.5 A igualdade de todas as religiões e crenças perante a lei

Síntese dicionarizada de autoria de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira


atribui ao substantivo igualdade, derivado do latim aequalitate, o significado de

“qualidade ou estado de igual; paridade; uniformidade; identidade; justiça;


propriedade de ser igual”.46

44
Ibidem, p.192.
45
José AFONSO DA SILVA. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros,
1992, p. 174.
46
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 915.
39
Recepcionando o sentido operado pelo vocabulário comum, a doutrina e a

jurisprudência estendem para o vocábulo isonomia o mesmo conteúdo de significado

atribuído à igualdade, tratando-os como sinônimos.47

Tratada vez por outra como sinônimo de igualdade e isonomia, a noção de

eqüidade também demanda especial atenção. Derivada do francês équité, cujas

raízes remontam à expressão latina aequitate, eqüidade quer significar “igualdade,

igualdade da alma, calma, equilíbrio moral; eqüidade, espírito de justiça, enfim, justa
proporção”.48

A despeito de sua dimensão etimológica e semântica, o vocábulo eqüidade

admite acepção plurívoca no sistema jurídico brasileiro. Com efeito, ao relacionar os


objetivos que orientam a seguridade social, a Constituição da República refere

“eqüidade na forma de participação no custeio” (art. 194, inciso V). Neste plano, o
vocábulo eqüidade assume a significação de justa proporção, de proporcionalidade,
lembrando o princípio constitucional da capacidade contributiva, segundo o qual,
“Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados
segundo a capacidade econômica do contribuinte (...)” (art. 145, § 1º).

Trata-se, por evidente, de comando nitidamente endereçado ao legislador

ordinário, que deverá observá-lo sempre que disciplinar o custeio da previdência


social.

47
v.g., José AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo , p. 195; Celso Antonio

Bandeira
p. 15; Antonio Carlos Conteúdo
de MELLO. de AraújoJurídico
CINTRA, doAda
Princípio da Igualdade
Pellegrini . 3. ed.
GRINOVER São Paulo:
e Cândido Malheiros, 1993,
R. DINAMARCO.
Teoria Geral do Processo . 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 52; STF Recurso Extraordinário n.
82.520 – Rel. Cunha Peixoto - j. 04.11.75.
48
José Pedro MACHADO. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa . 6. ed. Lisboa: Livros
Horizonte, v. 2, 1990, p 521.
40
Não obstante esta especificidade, a eqüidade, a par da analogia e da

interpretação extensiva, designa, via de regra, uma técnica de integração, um

instrumento posto à disposição do intérprete, notadamente o Juiz, para densificar a

lacuna legal.

Tal procedimento encontrava previsão, entre outros, no art. 1.456 do Código


Civil de 1916, verbis: “No aplicar a pena do art. 1.454, procederá o juiz com

eqüidade, atentando nas circunstâncias reais, e não em probabilidades infundadas,


quanto à agravação dos riscos”.

Ancoram-se neste anunciado as construções doutrinárias, a exemplo da

assertiva de Tércio Sampaio Ferraz Jr.: “O juízo por eqüidade, na falta de norma
positiva, é o recurso a uma espécie de intuição, no concreto, das exigências da

justiça enquanto igualmente proporcional”. 49

O mesmo entendimento é perfilhado por André Franco Montoro, segundo o


qual,

Eqüidade (epiekeia), que Aristóteles definiu como uma adaptação


da lei quando ela é deficiente por causa da sua universalidade, implica
sempre uma moderação das palavras da lei, em casos particulares, para
atender melhor à sua finalidade e ao seu espírito; por isso, ela não pode
ser exigida e constitui, como diz S. Tomás, uma virtude anexa à justiça
legal.50

Assinale-se, contudo, que o emprego da eqüidade refoge do poder

discricionário do juiz, visto que o art. 127, do Código de Processo Civil, determina
que “O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei”.

49
Tercio Sampaio FERRAZ JR. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 1991, p. 277.
50
André Franco MONTORO. Introdução à Ciência do Direito. 24. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997, p. 143.
41
Demarcada a semântica dos vocábulos igualdade, isonomia e eqüidade, cabe

notar que, debruçando-se sobre o princípio constitucional da igualdade, Manoel

Gonçalves Ferreira Filho distingue as noções de igualdade na lei e igualdade

perante a lei. 51

A respeito dessa matéria, leciona Norberto Bobbio:

A igualdade nos direitos (ou dos direitos) significa algo mais do


que a simples igualdade perante a lei enquanto exclusão de qualquer
discriminação não justificada: significa o igual gozo, por parte dos cidadãos,
de alguns direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, como
resulta de algumas formulações célebres. 52

Prossegue o jusfilósofo italiano

A igualdade perante a lei é apenas uma forma específica e


historicamente determinada de igualdade de direito ou dos direitos, por
exemplo, do direito de todos de terem acesso à jurisdição comum, ou aos
principais cargos civis e militares, independentemente do nascimento. 53

1.6 A igualdade considerada como não-discriminação

Remonta aos anos setenta uma elucidativa diferenciação entre concepção

negativa e concepção positiva da igualdade. Anacleto de Oliveira Faria denomina


concepção negativa da igualdade:

Aquela concepção que não tinha por escopo a adoção de


quaisquer medidas tendentes a diminuir as diversidades sociais e

51
Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO. Curso de Direito Constitucional – de Acordo com a
Constituição de 1988. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 276.
52
Norberto BOBBIO. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 29.
53
Ibidem, mesma página.
42
econômicas entre os homens, porém, que se limitava a acentuar a regra
de plena nivelação de todos perante a lei (...) 54.

Tratava-se de concepção da igualdade jurídica em sentido subjetivo, pessoal,


cabendo ao Governo apenas fiscalizar o rigoroso cumprimento do preceito,

considerado de forma negativa e abstrata. Já no que concerne à concepção positiva


da igualdade, assevera o autor:

Até alguns anos atrás, a esse aspecto negativo se limitava o dever


do executivo em face do preceito da igualdade. Entretanto, após a primeira
grande guerra, passou a prevalecer a tese de que o Estado não podia
permanecer num plano meramente jurídico, devendo, além de manter a
ordem, promover o que hoje se convencionou chama r de ‘bem-estar
social’. Por isso, ao lado da ação jurídica e negativa do Estado, impõe-se
também a ação social e positiva. O Poder Público deixa de ser simples
policial para adotar medidas tendentes a fomentar o bem comum. (...)
Assim, no que tange a esse princípio, a Administração tem obrigações
positivas, a par das negativas, acima referidas.55

Vista, grosso modo, a distinção entre dimensão positiva e negativa da


igualdade, já poderíamos afirmar que a proclamação da igualdade de todos perante

a lei, insculpida na primeira parte do caput do art. 5 o da Carta de 88, sintetiza a

dimensão negativa do princípio da igualdade, desdobrando-se em um amplo leque


de regras constitucionais que, no limite, visam coibir a ocorrência de discriminação
injusta.

Discriminação, palavra derivada do latim discriminatione, designa, segundo

síntese dicionarizada de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, “ato ou efeito de

54
Anacleto de Oliveira FARIA. Do Princípio da Igualdade Jurídica . São Paulo: Revista dos Tribunais e
Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, pp. 48/98.
55
Ibidem, mesma página.
43
discriminar; faculdade de distinguir ou discernir; discernimento; separação,

apartação, segregação: discriminação racial”. 56

O vocábulo, grafado quatro vezes no texto de 88 (duas vezes na acepção


genérica e duas com sentido específico), não é, todavia, o único empregado pelo

constituinte para indicar violação de direitos motivada por atributos da pessoa, seja a
srcem (art. 3°, IV); cor ou raça (arts. 3°, IV, 4°, VIII, 5°, XLII, e 7°, XXX); sexo (arts.

3°, IV, 5°, I, e 7°, XXX); idade (arts. 3°, IV, e 7°, XXX); estado civil (art. 7°, XXX),
porte de deficiência (arts. 7°, XXXI, 227, II); credo religioso (art. 5°, VIII); convicções
filosóficas ou políticas (art. 5°, VIII); tipo de trabalho (art. 7°, XXXII) ou natureza da

filiação (art. 227, § 6°), entre outros recolhidos na realidade social e reputados como
fontes de desigualação.

Um exame perfunctório da Constituição Federal permite captar a aparente


sinonímia com que as expressões discriminação lato sensu (arts. 3°, IV e 227),
discriminação stricto sensu (arts. 5°, XLI, e 7°, XXXI), distinção entre pessoas (arts.
5°, caput, 7°, XXXII, e 12, § 2°), diferença de tratamento (art. 7°, XXX), tratamento
desigual (art. 150, II) e prática do racismo (art. 5°, XLII) são utilizadas, resguardada a

ênfase conferida pelo constituinte à prática do racismo comparativamente a outras

possíveis modalidades de discriminação, senão porque a criminaliza, atribuindo-lhe


os gravosos estatutos da inafiançabilidade e da imprescritibilidade, também porque

sujeita o infrator à mais severa das penas privativas de liberdade – a reclusão.

56
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 596.
44
Assim, o preâmbulo da Constituição Federal consigna o repúdio ao

preconceito 57 ; o art. 3º, IV, proíbe o preconceito e qualquer outra forma de

discriminação (de onde se poderia inferir que preconceito seria espécie do gênero

discriminação); o art. 4º, VIII, assinala a repulsa ao racismo no âmbito das relações
internacionais; o art. 5º, XLI, prescreve que a lei punirá qualquer forma de
discriminação atentatória dos direitos e garantias fundamentais; o mesmo art. 5º,

XLII, criminaliza a prática do racismo; o art. 7º, XXX, proíbe diferença de salários e
de critério de admissão por motivo de cor, entre outras motivações, e, finalmente, o
art. 227, que atribui ao Estado o dever de colocar a criança a salvo de toda forma de
discriminação e repudia o preconceito contra portadores de deficiência.

Note-se que em sua acepção jurídica, formal, negativa, o princípio da

igualdade aparece como um direito fundamental da cidadania, contrapondo-se a um


dever negativo cometido ao Estado e aos particulares, qual seja, a obrigação de
não-discriminar. Trata-se de uma obrigação negativa, a partir do que ficam
vedadas:58

. elaboração de leis que estabeleçam privilégios;

. discriminação no exercício dos direitos e garantias fundamentais;

. discriminação na aplicação das leis.

57
Trata-se de uma evidente impropriedade semântica, uma vez que o preconceito, uma categoria
psicológica, designa elementos volitivos e/ou afetivos situados na esfera da liberdade interior do
indivíduo,de
portanto, no regramento
terreno da subjetividade, da liberdade
jurídico - ao menos de opinião
no Estado e de pensamento,
Democrático sendobase
de Direito. Com insuscetível,
nesse
entendimento arriscamos afirmar que, ao empregar o termo preconceito, a voluntas legislatoris, a
vontade do legislador pretendeu significar discriminação, esta sim, uma conduta passível de sanção
estatal.
58
v. Celso Antonio Bandeira de MELLO, Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, passim.
45
Especificamente no tocante à proibição de discriminação fundada em credo
o
religioso, a Constituição Federal estatui no art. 5 , inciso VIII, que “ninguém será

privado de direitos por motivo de crença ou confissão religiosa”, prevendo, ademais,

que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades


fundamentais” (art. 5º, XLI). Tais preceitos encontram regulamentação, no plano
infraconstitucional, na Lei 7.716/89, sobre a qual discorreremos no capítulo IV.

Registre-se também a existência de uma declaração adotada pela


Organização das Nações Unidas, da qual consta uma interessante definição de
discriminação religiosa. Convém recordar que declaração, espécie do gênero ato

internacional, não possui a força normativa dos tratados internacionais, mas nem por
isso ocupa lugar desimportante na galeria dos princípios que regem o direito

internacional. A este respeito anota, por exemplo, Saulo José Casali Bahia

O termo ‘declaração’, embora existam exceções, é reservado ao


tratado que signifique manifestação de acordo sobre certas questões.
Enumerando muitas vezes princípios, é bastante discutível o valor jurídico
desses tratados. Pode também servir para o fim de interpretar algum
tratado anteriormente celebrado, notificar um acontecimento ou certas
circunstâncias ou servir de um anexo a um tratado.59

Esse mesmo ponto de vista é compartilhado por Hildebrando Accioly,


segundo o qual,

A declaração, como ajuste internacional, é usada em mais de um


sentido. Assim, ou serve para proclamar certas regras ou princípios de
direito internacional; ou para esclarecer ou interpretar algum ato
internacional anterior; ou para outros efeitos restritos.60

59
Saulo José Casali BAHIA. Tratados Internacionais no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense,
2000, p. 09.
60
Hildebrando ACCIOLY. Manual de Direito Internacional Público. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1995,
p.121.
46
Examinemos então o enunciado da Declaração para Eliminação de Todas as

Formas de Intolerância e de Discriminação baseada em Religião ou Crença:

Para o fim desta Declaração, a expressão ‘intolerância e


discriminação
exclusão, baseada
restrição em religiãobaseada
ou preferência ou crença’
emsignifica qualquer
religião ou crença,distinção,
tendo
como propósito ou efeito a anulação ou prejuízo do reconhecimento,
desfrute ou exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais em
bases iguais (art. 2o , item 2).

Distinguir denota diferençar, discriminar, dividir, separar, divisar, especificar.

Excluir tem o sentido de incompatibilizar, afastar, desviar, eliminar, recusar,

não admitir, omitir, pôr fora, expulsar, privar, despojar.

Restringir quer dizer estreitar, limitar, delimitar, conter dentro de certos limites,
reduzir.

Preferir exprime dar primazia, prepor, antepor, priorizar, privilegiar.

Note-se que o resultado de qualquer uma das condutas configura-se com a

anulação ou prejuízo do direito de igualdade. Anular tem o sentido de invalidar,

destruir, eliminar, aniquilar, destruir. Prejudicar, como supramencionado, denota


“danificar, lesar, depreciar, rebaixar”61, de sorte que não é imprescindível a violação
cabal da igualdade, bastando a mera limitação do exercício do direito de igualdade.

Quanto à amplitude do objeto jurídico, nele estão resguardados o “exercício

dos direitos humanos e liberdades fundamentais em bases iguais”.

Com a palavra, J. J. Gomes Canotilho:

61
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 1.628.
47
Os direitos consagrados e reconhecidos pela constituição
designam-se, por vezes, direitos fundamentais formalmente constitucionais,
porque eles são enunciados e protegidos por normas com valor
constitucional formal (normas que têm a forma constitucional). A
Constituição admite, porém, outros direitos fundamentais constantes das
leis e das regras aplicáveis de direito internacional. Em virtude de as
normas que os reconhecem e protegem não terem forma constitucional,
62
estes direitos são chamados direitos materialmente fundamentais.
o
De resto, o art. 6 da Declaração em comento enumera um catálogo de
direitos tutelados, muitos dos quais previstos na Constituição e na legislação

esparsa, conforme aduzido adiante.

Nesta linha de idéias, a violação de direitos fundada em credo religioso


instaura uma relação assimétrica entre igualdade formal e igualdade substancial,

entre norma da igualdade e fato da discriminação, entre igualdade perante a lei e


igualdade nos direitos, entre titularidade e fruição/gozo de direitos, entre norma

constitucional e experiência social.

Precisamente por isto, a norma antidiscriminação (que se distingue da norma

igualitária propriamente dita) visa dissuadir, por meio da cominação de sanção, a

tomada do credo religioso como fator de discrímen.

Registre-se em conclusão que, referindo-se aos destinatários da norma


igualitária, Anacleto de Oliveira Faria realça:

O preceito da igualdade, que logo após as primeiras Constituições


escritas se dirigia aos Poderes Executivo e Judiciário, deve ser objeto de
aplicação não só a todos os Poderes do Estado, inclusive e principalmente
ao Legislativo, como, ainda aos homens em geral. Nesse sentido, pode e
deve o Estado editar leis proibindo segregação racial.63

62
J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 369.
63
Anacleto de Oliveira FARIA, op. cit ., p. 266.
48
Note-se que o reconhecimento deste dado da realidade, justifica a

compreensão de que o catálogo constitucional dos fatores de desigualação, entre os

quais figura o credo religioso, sob nenhum pretexto pode ser tomado como um plexo

caótico de admoestações, destituído de valor jurídico, mas como previsão normativa


de fatores arbitrários capazes de embaraçar, limitar, quando não, pura e
simplesmente, frustrar o pleno exercício e gozo de direitos. Tomadas em conjunto

estas observações, poderíamos sintetizar dois registros do conteúdo jurídico da


igualdade de todas as religiões e crenças perante a lei: 1. a igualdade em matéria
religiosa, isto é, a proteção e garantias contra qualquer forma de discriminação
injusta, seja de natureza legal, judicial, administrativa ou promovida por particulares;
2. a igual liberdade religiosa, ou seja, a garantia do pleno exercício, fruição e gozo

de todos os direitos e prerrogativas deferidos às confissões, associações, ministros,


fiéis e templos religiosos.

49
CAPÍTULO 2

LIBERDADE DE CRENÇA

Examinando o conceito de liberdade de crença, Celso Bastos assinala que


“Este princípio é decorrente do princípio da liberdade de pensamento”.64

No entanto, advertem Celso Bastos e Samantha Meyer-Pflug

A liberdade de consciência não se confunde com a liberdade de


crença, uma vez que a primeira encontra-se relacionada com as
convicções íntimas de cada um, não estando, necessariamente, vinculada
ao aspecto religioso, podendo até mesmo negá-lo (ateísmo). Ela se
encontra relacionada com as convicções ideológicas e políticas de cada
um. Já a liberdade de crença diz respeito ao aspecto religioso, ou melhor
dizendo, à escolha de uma determinada religião ou crença que se coadune
com os anseios espirituais de cada pessoa. 65

Inserta no catálogo constitucional das liberdades públicas, a liberdade de


crença, da qual deriva a liberdade de culto, de liturgia e de organização religiosa,
encerra um conteúdo jurídico que implica a consideração de pelo menos três

aspectos essenciais:

o primeiro diz respeito à liberdade de não crer, de ser indiferente, agnóstico, ateu,
donde decorre o direito de não-adesão a qualquer confissão religiosa;

o segundo relaciona-se com o direito de escolher e aderir, segundo o livre arbítrio, a

uma crença, engajando-se e associando-se ou não a uma confissão ou associação

religiosa, assegurada a confissão teísta, monoteísta, politeísta, panteísta, henoteísta,


ou de qualquer outra natureza, sem quaisquer ingerências estatais;

64
Celso Ribeiro BASTOS. Dicionário de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 104.
65
Celso Ribeiro BASTOS e Samantha MEYER-PFLUG, Do Direito Fundamental à Liberdade de
Consciência e de Crença, p. 114.
50
o terceiro atina às medidas de proteção da liberdade de crença, de culto, de liturgia

e de organização religiosa, incluindo a prerrogativa assegurada pelo instituto da

objeção de consciência, que se traduz na possibilidade de o indivíduo invocar sua

crença religiosa para eximir-se de certas obrigações a todos impostas, sob a


condição de cumprimento de prestação alternativa.

2.1 A liberdade de crença como direito fundamental

Lorenzo Martín-Retortillo Baquer e Ignacio de Otto y Pardo desenvolvem


interessantes considerações acerca do conceito de direitos fundamentais, realçando
cinco importantes pressupostos:

1. a negligência semântica com que o tema é tratado, do que resulta uma


multiplicidade de denominações e termos invariavelmente vagos;

2. o processo multiforme, de diferentes gradações, cambiante, com que os direitos


são enunciados no Texto Constitucional, do que deriva a complexificação do
trabalho de distinção dos direitos fundamentais;

3. a consideração de que ao legislador não compete classificar – tarefa esta de que


deve cuidar o jurista – mas sim regular e impor;

4. a necessária implicação entre a dimensão conceitual e a dimensão política de

qualquer processo de fixação de critérios de distinção dos direitos fundamentais, em


termos de que a menor ou maior flexibilidade ou rigidez do sistema classificatório

apresenta inevitáveis conseqüências, seja no plano jurídico, seja no plano político;

5. a relevância da fixação de um regime jurídico próprio dos direitos fundamentais,

51
advertindo para a característica de excepcionalidade das regras de direitos

fundamentais, conquanto encerram rigorosas obrigações positivas e ou negativas

em face do indivíduo, vinculando, seja o Estado, sejam os particulares, visto como

as violações de direitos fundamentais perpetradas por particulares não ocupam lugar


menos importante do que aquelas levadas a cabo pelo Estado.

Há de se ressaltar que os autores enfrentam o tema da conceituação dos

direitos fundamentais associando-a, confrontando-a com a regulação desses direitos,


de modo que o exercício conceitual intersecciona permanentemente os instrumentos
por meio dos quais se protege o bem jurídico anunciado pelo direito. Em suma, em

boa medida, a conceituação dos direitos fundamentais pode ser revelada pela
atividade legislativa de regulação desses direitos, no dizer dos autores:

Dado que a regulação do exercício é concebida como atividade


que envolve também a limitação, a garantia do conteúdo essencial que se
formula para aquela, entende-se igualmente estabelecida como limite para
a atividade limitadora dos direitos, como ‘limite dos limites. 66

Arrematam os autores,

A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais é


limite do limite porque limita a possibilidade de limitar, porque assinala um
limite além do qual não é possível a atividade limitadora dos direitos
fundamentais e das liberdades públicas. 67

Baquer e Pardo observam, no entanto, que a caracterização do conteúdo


essencial como “limite dos limites” não os diferencia das demais normas
constitucionais, visto que a todas elas é assegurada igual fronteirização da atividade

66
Lorenzo Martín-Retortillo BAQUER e Ignacio De Otto y PARDO. Derechos Fundamentales y
Constitución. Madri: Editorial Civitas, 1983, p. 125.
67
Ibidem, p. 126.
52
reguladora, isto é, qualquer direito constitucional possui o atributo do

condicionamento da atividade reguladora, vale dizer, da atividade legislativa.

Por este ângulo, portanto, da definição de um conteúdo essencial sob a ótica


da limitação da atividade reguladora, os direitos fundamentais não seriam portadores

de um atributo que os singularizasse em face dos demais direitos constitucionais.

Assim, Baquer e Pardo refutam a idoneidade desse método para a

classificação a que se propõem.

Com base nessas premissas, os autores descrevem duas correntes de

pensamento e os respectivos critérios por elas adotados para a nomeação de um


conteúdo essencial, um núcleo qualificado e a construção de um regime jurídico para
os direitos fundamentais.

Na teoria relativa, os autores identificam total ausência de autonomia


conceitual dos direitos fundamentais, porquanto, nela, eles são enunciados menos
por sua substância e mais pela justificação construída para sua defesa, no mais das

vezes, identificada como juízo de razoabilidade posto a serviço da proteção de um


bem.

Aqui, inexiste a formulação para os direitos fundamentais, e sim um recurso

argumentativo que divisa os direitos fundamentais pela necessidade de sua proteção.

Já a teoria denominada absoluta põe em relevo um possível conteúdo

essencial dos direitos fundamentais, um núcleo hermético, intocável e indiscutível.

Baquer e Pardo advertem, no entanto, para o fato de que a teoria absoluta

53
descuida do anel que circunda o referido núcleo hermético, em termos de que a

rigidez do núcleo essencial não pode ser de tal forma entendida como proibição da

atividade reguladora, citando como exemplo o direito de greve, o qual encerra sim

um conteúdo essencial, mas não pode dispensar a regulação das condições de


possibilidade nas quais o direito pode ser exercido.

Para Baquer e Pardo, portanto, a distinção dos direitos fundamentais resulta

da operação de justaposição do elemento argumentativo de justificação a um


conteúdo essencial denotado pela Constituição, solução que, embora indique uma
direção segura, não diminui a complexidade do referido exercício de distinção.

Na esteira dos postulados de Baquer e Pardo, poderíamos afirmar que não


existem maiores dificuldades para a construção de um argumento justificador da

liberdade de crença como direito fundamental – um exercício que, malgrada a


impertinência, pensamos ter enfrentado no capítulo anterior.

Tal afirmação, da inexistência de maiores dificuldades, já não poderia ser feita


no tocante à identificação do conteúdo essencial daquele direito, de modo que uma
possível descrição, um núcleo duro, qualificado, poderá ser melhor desvendado por

meio do exame da atividade reguladora. Numa palavra, no caso da liberdade de

crença, o exercício regulador se afigura como importante microscópio, a partir do


qual pode-se vislumbrar com alguma nitidez os caracteres que plasmam o seu

conteúdo.

Este será, de certo modo, o desafio permanente do presente trabalho. Vamos


por partes.

54
2.2 Liberdade de crença

Celso Ribeiro Bastos leciona que

O vocábuloNum
plurissignificativo. liberdade não comporta
primeiro momentouma única conceituação,
pode-se definir como é a
faculdade que cada pessoa possui de decidir ou agir segundo a sua
própria determinação. Sob o prisma social e jurídico, de outra parte, pode-
se conceituar como o poder de agir de cada pessoa dentro de uma
sociedade, segundo a sua própria determinação, desde que respeitados
os limites impostos pela lei. Também é possível concebê-la como a
faculdade de fazer tudo aquilo que não é proibido por lei. 68

Contrastando o direito de liberdade com o direito de igualdade, ensina


Norberto Bobbio que o primeiro indica um estado da pessoa, ao passo que o

segundo refere-se a uma relação, de sorte que a afirmação “João é livre” é


plenamente inteligível, ao passo que a asserção “João é igual” implica
necessariamente a identificação do critério utilizado para a aferição da igualdade

(igual em quê?), bem como dos demais sujeitos da relação (igual a quem?). 69

Mas o que seria o estado de liberdade, ou, no caso específico, a condição de

ser livre para crer ou não crer?

Vale lembrar que, a despeito da controvérsia que caracteriza a descrição


histórica do surgimento dos direitos, é possível agruparmos as várias classificações

em três grandes blocos70:

68
Celso Ribeiro BASTOS. Direito de Recusa de Pacientes Submetidos a Tratamento Terapêutico às
Transfusões de Sangue, por Razões Científicas e Convicções Religiosas in Revista dos Tribunais .
São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 90, v. 787, 2001, p. 501.
69
Norberto BOBBIO, Igualdade e Liberdade, pp.7-12.
70
Sobre ser controversa, vale assinalar que há autores que postulam a existência de uma quarta
geração de direitos, a exemplo de Paulo Bonavides, que refere “o direito à democracia, o direito à
informação e o direito ao pluralismo”. Paulo BONAVIDES. Curso de Direito Constitucional . 9. ed. São
Paulo: Malheiros, 2000, p. 525.
55
a primeira geração de direitos, dos direitos individuais, que derivou da Bill of Rigths

inglesa, da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa e dos

primeiros Amendments à Constituição dos Estados Unidos, que, tradicionalmente,

cataloga o direito à vida, à segurança, o direito de liberdade, de igualdade, de


propriedade, de ir e vir, de expressão, de reunião, e de associação, bem como os
direitos políticos;

a segunda geração de direitos, dos direitos econômicos e sociais, derivada da


Constituição Mexicana de 1917, da Declaração Soviética dos Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado e da Constituição de Weimar, de 1919, que insere em seu

rol os direitos ao bem-estar, ao trabalho, à seguridade, à saúde, à educação, ao


lazer, à vida cultural;

a terceira geração de direitos, surgida no último quartel do séc. XX, que


compreende o direito a um meio ambiente equilibrado, direitos de solidariedade e de
fraternidade. 71

Pronunciando-se sobre a natureza dos direitos, assevera Norberto Bobbio


que:

Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do


Estado – e, portanto, com o objetivo de limitar o poder –, os direitos sociais
exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da
declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o
contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado. 72

71
v. Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva,
1995, pp. 53-60.
72
Norberto BOBBIO. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.72.
56
Há mais, demarcando os conceitos de liberdade negativa e liberdade positiva,

anota o jusfilósofo italiano:

Liberdade positiva , entende-se – na linguagem política – a


situaçãono
querer na sentido
qual um de
sujeito
umatem a possibilidade
finalidade, de orientar
de tomar seu sem
decisões, próprio
ser
determinado pelo querer de outros. Essa forma de liberdade é também
chamada de autodeterminação ou, ainda mais propriamente, de
autonomia.73

Já a Liberdade negativa – consiste em fazer (ou não fazer) tudo o que as leis,
entendidas em sentido lato e não só em sentido técnico-jurídico, permitem ou não
proíbem (e, enquanto tal, permitem não fazer). 74

Ora, tomada sob a ótica do indivíduo, ou de uma coletividade, a liberdade


positiva impõe ao Estado e aos particulares uma obrigação negativa, uma abstenção,
75
um papel passivo, uma obrigação de não-fazer: não coagir , não impor nenhuma
religião, não discriminar.

No direito positivo, a liberdade de crença, de não ser coagido, encontra uma


interessante definição no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos 76 :

“Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua
liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crenças de sua escolha” (art. 18, item
2).

73
Norbeto BOBBIO, Igualdade e Liberdade, p. 51.
74
Ibidem, p. 49.
75
“a liberdade consiste na ausência de toda coação anormal, ilegítima e imoral”. v. José AFONSO DA
SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 211.
76
Promulgado pelo Decreto n. 592, de 06.07.1992.
57
A respeito do conteúdo descritivo do vocábulo coação, observa Miguel Reale

que

Coação é um termo técnico, empregado pelos juristas, em duas


acepções
apenas a bastante
violência diferentes. Em um primeiro
física ou psíquica, sentido,
que pode coação
ser feita contrasignifica
uma
pessoa ou grupo de pessoas. (...) Nesta acepção genérica, a palavra
coação é, de certa maneira, sinônimo de violência praticada contra alguém.
(...) Não é, entretanto, nesse sentido que empregamos a palavra coação,
quando dizemos que o Direito se distingue da moral pela possibilidade da
interferência da coação. Neste caso, é esta entendida como força
organizada para fins do Direito mesmo. 77

Por seu turno, do ângulo da liberdade negativa, a obrigação imposta ao

Estado assume um conteúdo positivo, uma obrigação de fazer: assegurar e proteger


o exercício livre e desembaraço do direito de crença, de organização e de
associação religiosas, de culto, e de liturgia.

2.3 Crença

Síntese dicionarizada de autoria de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira

atribui ao vocábulo crença, procedente do latim medieval credentia


Ato ou efeito de crer. Fé religiosa. Aquilo em que se crê, que é
objeto de crença. Convicção íntima. Opinião adotada com fé e convicção.
Forma de assentimento que se dá às verdades de fé, que é objetivamente
insuficiente, embora subjetivamente se imponha com grande convicção.78

77
Miguel REALE. Lições Preliminares de Direito . 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, pp. 69-71.
78
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 576.
58
Tomado como constructo mental/afetivo, o fenômeno da crença inscreve-se

naquela seara denominada por José Afonso da Silva como

Liberdade interna (chamada também liberdade subjetiva, liberdade


psicológica
arbítrio ou moral
, como simplese especialmente liberdade
manifestação da dedo
vontade indiferença) é o livre
mundo interior do
homem. Por isso é chamada igualmente liberdade do querer. Significa que
a decisão entre duas possibilidades opostas pertence, exclusivamente, à
vontade do indivíduo; vale dizer, é poder de escolha , de opção , entre fins
contrários.79

Liberdade-autonomia80, sentença lapidar empregada por José Afonso da Silva

para descrever o estado individual de liberdade, perfeitamente aplicável à liberdade

de crença, deve ser conjugada ainda com a asserção sociedade pluralista, inscrita

no preâmbulo da Carta da República, bem como com o princípio do pluralismo


político (art. 1 o, inciso V) e com a regra constitucional do pluralismo de idéias (art.
206, inciso III).

No dicionário Oxford de Filosofia, o verbete pluralismo assume o seguinte

significado:

A tolerância generalizada para com diferentes tipos de coisas, ou,


mais especificamente,
incomensuráveis, parasecom
sem que descrições
considere do mundo
nenhuma delasdiferentes e talvez
mais fundamental
81
que qualquer das outras.

No dizer de Cristobal Orrego Sanchez e Javier Saldaña Serrano,

O igualitarismo, em termos gerais, reconhece a existência de um


pluralismo religioso, manifestado fundamentalmente pela diversidade de
confissões e grupos religiosos que atuam na sociedade e que exigem igual

79
José AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo , p. 210.
80
Ibidem, p. 163.
81
Simon BLACKBURN. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1997,
p. 301.
59
consideração por parte do Estado, de modo uniforme, sem fazer nenhuma
distinção entre eles. 82

Interessante notar que, no caso da população indígena, o constituinte de 88


fez questão de anunciar o reconhecimento de suas crenças:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,


línguas, crenças e tradições, e os direitos srcinários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens (CF, art. 231).

Vale anotar também uma construção pretoriana dos anos sessenta do século
passado, na qual o Supremo Tribunal Federal afasta a possibilidade de associação

entre crença religiosa e atributos morais:

A crença religiosa da pessoa não constitui qualidade essencial da


mesma. Quando não atentatória das normas da moral social dominante,
quaisquer crenças e práticas religiosas não constituem defeito de honra e
boa fama de quem as segue. Se o cônjuge não consentiu no casamento
por erro essencial sobre a pessoa do outro, descabe pedir sua anulação.
Não se conhece do extraordinário (STF – 2a T. – Recurso Extraordinário n o
24624 – Rel. Ribeiro da Costa – j. 05.04.1954 – DOU de 05.08.1954).

Tomado do ângulo factual, cotidiano, o fenômeno da crença, é dizer, o fato

religioso afigura-se como uma vigorosa marca característica das sociedades


contemporâneas.

Mircea Eliade, renomado filósofo da religião, cataloga no seu Dicionário das


Religiões, escrito em parceria com Ioan P. Couliano, centenas de confissões

religiosas espalhadas pelos cinco continentes.83

82
Cristobal Orrego SANCHEZ e Javier Saldaña SERRANO, Principios del Derecho y Libertad
Religiosa, p.110.
83
Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANO. Dicionário das Religiões . São Paulo: Martins Fontes, 1999,
passim.
60
No Brasil, para uma população estimada em 169.872.856 (cento e sessenta e

nove milhões, oitocentas e setenta e duas mil e oitocentas e cinqüenta e seis)

pessoas, o Censo de 2.000 identificou 12.492.403 (doze milhões, quatrocentas e

noventa e duas mil e quatrocentas e três) pessoas que declararam não possuir
religião, além de catalogar 25 diferentes denominações religiosas, assinalado que o
IBGE incluiu categorias genéricas, a exemplo de “outras religiões evangélicas”,

“outras religiões orientais”, “outras religiosidades”, etc.84

Dentre as denominações catalogadas, pode-se identificar: Católica Apostólica


Romana, Evangélica de Missão, Evangélica Adventista do Sétimo Dia, Evangélica

de Confissão Luterana, Evangélica Batista, Presbiteriana, Pentecostal, Evangelho


Quadrangular, Universal do Reino de Deus, Congregacional Cristã do Brasil,

Testemunha de Jeová, Espírita, Espiritualista, Umbanda, Candomblé, Judaica,


Budista, Islâmica, Hinduista, Tradições Esotéricas, Tradições Indígenas.

Tomada como um dado do mundo empírico, a crença religiosa, o fato


religioso é protegido pelo sistema jurídico, seja na sua dimensão de autonomia, seja
na dimensão externa, pela manifestação do culto, da liturgia, e da organização

religiosa.

Trata–se de fenômeno que caracteriza as sociedades contemporâneas de


todo o mundo, pelo que vale a pena uma excursão pelas normas estrangeiras.

84
http: // www.ibge.gov.br. Acesso: 20 ago 2003. v. também Rubem César FERNANDES, Roberto da
MATTA et al. Brasil & EUA: Religião e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 40.
61
2.4 Normas de Direito Comparado

Um olhar panorâmico sobre alguns Textos Constitucionais estrangeiros

permite captar as distintas orientações e formulações que marcam a relação entre


Estado e religião em diferentes quadrantes.

Vejamos, esquematicamente, algumas formulações indexadas por temas.

Estados confessionais

Constituição da República Islâmica do Irã

art. 20. Todos os cidadãos na Nação, tanto homens como


mulheres, terão igual proteção perante a lei e todos os direitos humanos,
políticos, econômicos, sociais e culturais serão baseados nos princípios
islâmicos.

Constituição do Reino da Dinamarca

art. 66. O Estatuto da Igreja Nacional será dado por lei.


art. 67. Os cidadãos têm direito de se reunir em comunidade para
o culto de Deus segundo suas convicções, desde que eles não ensinem
nem pratiquem nada que seja contrário aos bons costumes ou à ordem
pública.
art. 69. A situação das Igrejas dissidentes é fixada em lei.

Constituição Política da República de El Salvador:

“art. 26. Fica reconhecida a personalidade jurídica da Igreja Católica. As demais


igrejas poderão obter, conforme a lei, o reconhecimento de sua personalidade”.

À evidência, o caso do Irã se afigura como exemplo emblemático de

superposição entre ordenamento religioso e ordenamento jurídico, a começar pela


denominação do país.

62
A palavra islã “deriva da raiz slm:aslama (submeter-se), significando

‘submissão (a Deus)’; muslim, muçulmano, é seu particípio presente: ‘(aquele) que

se submete (a Deus)”.85

O Alcorão, livro sagrado do Islamismo, é composto por 114 capítulos, ou

suratas (palavra árabe que significa “o que abre ou inicia”), e é creditado a uma

revelação de Alá para o profeta Maomé. 86

Segundo Mircea Eliade e Iolan P. Couliano,

Sendo uma das mais importantes religiões da humanidade, o


islamismo está hoje presente em todos os continentes. É predominante no
Oriente Médio,indiano,
subcontinente na Ásiano Menor, na eregião
sul da Ásia caucasiana
na Indonésia, e no do
na África norte doe
Norte
do Leste. 87

Na Dinamarca, o tratamento privilegiado concedido à Igreja Nacional

(protestante) manifesta-se, não apenas pela tutela constitucional dos seus estatutos,
mas também, pelo emprego do termo dissidentes para classificar as demais
doutrinas religiosas, pelo que estas são consideradas “opositoras, discordantes,

divergentes”.88

Um outro caso de deferência constitucional a uma confissão religiosa nos é

oferecido pela aludida Constituição salvadorenha.

Estados laicos

85 Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANO, Dicionário das Religiões, p. 191.


86
George A. MATHER e Larry A. NICHOLS, Dicionário de Religiões, Crenças e Ocultismo , p. 5.
87
Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANO, op. cit ., p. 191.
88
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 693.
63
Constituição dos Estados Unidos da América:

Emenda n. I. O Congresso não legislará no sentido de estabelecer


uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos, ou cerceando a
liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir
pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus
agravos.

Constituição da República Popular da China:

art. 36. Os cidadãos da República Popular da China são livres


para professar crenças religiosas. Nenhum organismo estatal, organização
social ou indivíduo pode obrigar um cidadão a professar tal ou qual religião
ou deixar de professá-la, nem tampouco discriminar os cidadãos crentes
nem os descrentes. O Estado protege as atividades religiosas normais.
Nenhuma pessoa pode realizar, sob amparo da religião, atividades que
atentem contra a ordem pública, que causem dano à saúde dos cidadãos
ou perturbem o sistema educacional do Estado. As organizações e
assuntos
estrangeiro.religiosos devem manter-se livres de qualquer controle

Constituição da República da Coréia do Sul: “art. 20. Todos os cidadãos

desfrutarão da liberdade de religião. Nenhuma religião será tida como oficial, e Igreja
e Estado manter-se-ão separados”.

Exemplos de demarcação jurídico-institucional entre Estado e religião, as


constituições dos Estados Unidos e da China proíbem o estabelecimento de religião
oficial, ou estatal, ao passo que a Carta da Coréia do Sul fixa expressamente o

regime de separação entre ambos.

Casos híbridos

Constituição Espanhola: art. 16, item 3. Nenhuma confissão terá caráter

estatal. Os poderes públicos terão em conta as crenças religiosas da sociedade


espanhola e manterão relações de cooperação com a Igreja Católica e as demais

64
confissões.

Constituição da República Italiana:

º
art. 7 . O
independentes Estado e a Igreja
e soberanos. Católica são
suas relações são,regulamentadas
cada um na própria esfera,
por pactos
Lateranenses, e as modificações dos pactos, aceitas pelas duas partes,
não requerem procedimento de revisão constitucional.
art. 8º. Todas as confissões religiosas são igualmente livres
perante a lei. As confissões religiosas diversas da Católica têm direito de
organizarem-se conforme os próprios estatutos, desde que não conflitem
com o ordenamento jurídico italiano. As suas relações com o Estado são
regulamentadas por lei na base de entendimentos com as respectivas
representações.

Trata-se de dois exemplos de regimes híbridos.

No caso da Espanha, proíbe-se a adoção de religião estatal, mas o Texto faz


menção expressa à possibilidade de cooperação com a Igreja Católica e demais
confissões, pelo que confere indisfarçável lugar de proeminência àquela doutrina.

De seu lado, a Constituição italiana é silente em relação ao estabelecimento

de uma religião estatal e também no que se refere à separação entre Estado e


religião. A relação entre o Estado e a Igreja Católica é permitida por meio de pactos,

denominados Lateranenses, ao mesmo tempo em que se atribui poderes à lei para


estabelecer os termos da relação entre Estado e as demais confissões religiosas.

Decerto, a citação nominal da Igreja Católica e a previsão de um instrumento

especial de vinculação entre aquela e o Estado, diferente do instrumento previsto


para as demais confissões religiosas, confere à Igreja Católica uma posição de

privilégio comparativamente às demais confissões religiosas.

Vejamos ainda dois exemplos de Cartas Constitucionais híbridas.

65
Constituição Federal Austríaca:

art. 15. Toda igreja e sociedade religiosa legalmente reconhecida


terá direito ao exercício público de seu culto, e dirigirão e administrarão
seus assuntos internos com independência, com direito a posse e desfrute
das instituições, fundações e fundos de sua propriedade destinados a
finalidades de culto, ensino e beneficência, estando sujeitas, porém, como
toda sociedade, às leis gerais do Estado.
art. 16. Será permitido aos membros de toda confissão religiosa
não-reconhecida o exercício do culto em seu domicílio, na medida em que
não seja ilícito nem contrário aos bons costumes.

Constituição da República da Bulgária: “art. 13, item 3. A religião tradicional


da República da Bulgária é o culto Cristianismo Ortodoxo”.

No exemplo austríaco, embora não seja mencionada a hipótese de religião

estatal, ou religião oficial, opera-se com a noção de religião reconhecida, sendo que
as não-reconhecidas são obrigadas a realizar seus cultos em espaços privados,
domiciliares.

Igualmente interessante é o caso da Bulgária, cuja Constituição não emprega

os termos religião estatal, oficial ou reconhecida, mas nomeia o Cristianismo


Ortodoxo como religião tradicional.

Ensino religioso

Constituição Federal Austríaca:

art. 17. Será garantido o ensino religioso nas escolas públicas,


ministrado pela Igreja ou comunidade religiosa competente, em
consonância com os objetivos do ensino e da educação, sob direção e
supervisão do Estado.

É interessante observar que, além de permitir o ensino religioso nas escolas


públicas, a constituição austríaca delega às confissões religiosas poderes para

66
ministrar aquela disciplina.

Ensino laico

Constituição de Portugal: “art. 43, item 2. O Estado não pode atribuir-se o


direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas,

estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

Constituição Federal da Confederação Suíça:

art. 27. As escolas públicas poderão ser freqüentadas por adeptos


de todas as confissões, sem que estes venham a sofrer restrições de
maneira alguma na sua liberdade de consciência ou de credo.

Constituição do Japão: “art. 20. O Estado e seus órgãos abster-se-ão da


educação religiosa e de qualquer outra atividade religiosa”.

Note-se que as Constituições de Portugal e do Japão proíbem expressamente


o Estado de promover a educação religiosa, ao passo que a Carta da Suíça veda a

ocorrência de quaisquer restrições à liberdade de consciência e de credo do alunado.

Proibição de contribuição compulsória para o financiamento de atividade religiosa

Constituição da Dinamarca: “art. 68. Ninguém é obrigado a dar contribuições

pessoais a um culto que não seja o seu”.

Constituição Federal da Confederação Suíça: “art. 49. Ninguém é obrigado a

pagar impostos cujo produto seja especialmente aplicado às despesas de culto de

uma comunidade religiosa à qual não pertença”.

67
Vale registrar, por fim, que a Carta dinamarqueza proíbe textualmente que um

indivíduo seja compelido a despender recursos para financiar atividades de

confissão religiosa diversa da sua.

No exemplo suíço, a norma exime o indivíduo de pagar impostos na hipótese

em que estes sejam utilizados para suportar despesas de doutrina religiosa diversa
daquela do contribuinte.

2.5 Liberdade de crença nos tratados internacionais

Os tratados internacionais mereceram especial cuidado por parte do

constituinte de 1988. Segundo norma do art. 5o , § 2º,

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição, não excluem


outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

A garantia da vigência dos tratados internacionais também foi textualmente

prestigiada na Constituição, de modo que o controle jurisdicional da força normativa


dos direitos neles elencados, está previsto em duas regras processuais
constitucionais, a saber:

. ao Supremo Tribunal Federal compete processar e julgar, mediante Recurso


Extraordinário, causas decididas em única ou última instância, quando a decisão
declarar a inconstitucionalidade dos tratados internacionais, ou das leis federais (CF,

art. 102, III, “b”);

. ao Superior Tribunal de Justiça compete processar e julgar, mediante Recurso


Especial, causas decididas em única ou última instância, quando a decisão

68
contrariar ou negar vigência aos tratados internacionais, ou à lei federal (art. 105, III,

“a”).

Note-se ainda que o dispositivo do art. 109, inciso III, da Lei Fundamental,
atribui à Justiça Federal a competência para processar e julgar “as causas fundadas

em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional”.

Já na seara infraconstitucional, a inércia ou a omissão do Presidente da

República, em face das providências necessárias à execução e ao cumprimento dos


tratados internacionais, configura crime de responsabilidade, sujeitando-o ao
Impeachment, conforme disposto no art. 8o, item 8, da Lei n o 1.079/50.

De outra parte, do ângulo procedimental, a inclusão do tratado internacional


ao direito interno resulta da confluência de dois atos prescritos no Texto

Constitucional: a aprovação, pelo Congresso Nacional, por meio de Decreto


Legislativo (CF, art. 49, I), a ratificação pelo Presidente da República (art. 84, VIII),
seguida do depósito do instrumento de ratificação, junto ao órgão que o deliberou.

Segundo Flávia Piovesan,

Consagra-se, assim, a colaboração entre Executivo e Legislativo


na conclusão dos tratados internacionais, que não se aperfeiçoa enquanto
a vontade do Poder Executivo, manifestada pelo Presidente da República,
não se somar à vontade do Congresso Nacional.89

A questão da posição hierárquica ocupada pelos tratados internacionais vem


ensejando intensa controvérsia.

89
Flávia PIOVESAN. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3. ed. São Paulo: Max
Limonad, 1997, p. 79.
69
Invocando o princípio da máxima efetividade da norma constitucional, e,

ancorada em prestigiosa doutrina, Flávia Piovesan adverte para a necessária

distinção entre tratados de direitos humanos e tratados de natureza diversa

daqueles, concluindo que a Constituição conferiu aos primeiros o status de norma


constitucional:

A Constituição de 88 recepciona os direitos enunciados em


tratados internacionais de que o Brasil é parte, conferindo-lhes natureza de
norma constitucional. Isto é, os direitos constantes nos tratados
internacionais, integram e complementam o catálogo de direitos
constitucionalmente previsto, o que justifica estender a estes direitos, o
regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias
fundamentais.90

Divergindo desse entendimento, assim tem se manifestado o Supremo


Tribunal Federal a respeito da matéria:

1. Os tratados se baseiam em plano de igualdade com atos do


Congresso (Recurso Extraordinário n o 80.004 – Rel. Xavier de
Albuquerque – j. 1.06.77);
2. Os tratados concluídos pelo Estado Federal têm o mesmo grau
de autoridade e de eficácia das leis nacionais (Ação Direta de
Inconstitucionalidade n o 1347 – Rel. Celso de Mello – DJU 01.12.95, p.
41685);
3. Tratados e convenções internacionais – tendo-se presente o
sistema jurídico existente no Brasil (RTJ 83/809) guardam estrita relação
de paridade normativa com as leis ordinárias editadas pelo Estado
brasileiro. A normatividade emergente dos tratados internacionais, dentro
do sistema jurídico brasileiro, permite situar esses atos de direito
internacional público, no que concerne a hierarquia das fontes, no mesmo
plano e no mesmo grau de eficácia em que se posicionam as leis internas
do Brasil. A eventual precedência dos atos internacionais sobre as normas
infraconstitucionais de direito interno brasileiro somente ocorrerá –
presente o contexto de eventual situação de antinomia com o
ordenamento doméstico –, não em virtude de uma inexistente primazia
hierárquica, mas, sempre, em face da aplicação do critério da
especialidade (STF – Extradição n o 662 – Rel. Celso de Mello – DJU de
30.05.97, p. 23176).

90
Ibidem, p. 89.
70
Não padece dúvida, portanto, de que os tratados internacionais estão

situados, quando menos, no mesmo grau de hierarquia das leis de direito interno.

Merecem destaque, entre outros:

• Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos91:

art. 18. 1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de


consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou
adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de
professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública
como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas
e do ensino.
2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que
possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença
de sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará
sujeita apenas a limitações previstas em lei e que se façam necessárias
para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os
direitos e as liberdades das demais pessoas.
4. Os Estados Parte s do presente Pacto comprometem-se a
respeitar a liberdade dos pais - e, quando for o caso, dos tutores legais -
de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo
com suas próprias convicções.

• Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José

da Costa Rica92:

art. 12. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de


religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas
crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de
professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou
coletivamente, tanto em público como em privado.
2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam
limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de
mudar de religião ou de crenças.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias
crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que
sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a
moral pública ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.

91
Promulgado pelo Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992.
92
Promulgado pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992.
71
4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus
filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde
com suas próprias convicções.

• Convenção Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial 93:

art. 5º , caput e alínea d , item VII. De conformidade com as


obrigações fundamentais enunciadas no art. 2 o , os Estados partes
comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas as
suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei
sem distinção de raça, cor ou de srcem nacional ou étnica, principalmente
no gozo dos seguintes direitos: b) direito à liberdade de pensamento, de
consciência e de religião.

Temos assim que os tratados internacionais constituem fonte primária do

direito de liberdade de crença, disponibilizando um conjunto de definições e


preceitos de observação obrigatória. Além destes, devemos realçar ainda a aludida
“Declaração para Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de
o
Discriminação baseada em Religião ou Crença”, cujo art. 1 apresenta a seguinte

redação:

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento,


consciência e religião. Este direito inclui a liberdade de ter uma religião ou
crença de sua escolha,
em reverência, e a liberdade
observância, deensino,
prática ou manifestar sua religião
individual ou em ou crença
comum
com outras pessoas, em público ou privadamente.
2. Ninguém deve ser submetido à coerção que possa prejudicar
sua liberdade de ter uma religião ou crença de sua escolha.
3. A liberdade de manifestar religião ou crença sujeitar-se-á
somente ao que for determinado por lei e se necessário à proteção da
segurança pública, da ordem, saúde, moral ou direitos e liberdades
fundamentais de outrem.

Retomando, mesmo um superficial exame da disciplina constitucional da


liberdade de crença, incluindo as normas derivadas do direito internacional,

93
Promulgada pelo Decreto n. 65.810, de 8 de dezembro de 1969.
72
evidencia os principais contornos jurídicos da liberdade de crença, merecendo

destaque cinco propriedades:

 defluem da liberdade de crença o princípio da separação Estado/religião e o

da laicidade estatal;

 a liberdade de crença encerra um princípio organizativo do Estado, por meio

do qual devem ser estabelecidas as condições de possibilidade para o exercício


94 95
pleno e desembaraçado dos interesses , direitos e garantias deferidos às
confissões, aos ministros religiosos, às associações, aos templos, aos fiéis e aos
cidadãos (não-fiéis);

 a liberdade de crença conforma um direito da pessoa, de caráter

exclusivamente privado, de sorte que o princípio da laicidade estatal implica o

reconhecimento da absoluta incompetência do Estado para disciplinar a matéria


religiosa. Parafraseando John Rawls:

Portanto, a noção de Estado leigo com competências ilimitadas é


também negada, uma vez que decorre dos princípios de justiça que o
governo não tem nem direito nem dever de fazer o que ele ou uma maioria
(ou qualquer outro grupo) quiser fazer nas questões de religião ou de

94
“No direito subjetivo há sempre um bem e interesse, mas o direito não é esse bem ou interesse;
não se confunde com ele. No direito à vida, no direito de propriedade, no direito de legislar, o direito
não consiste propriamente na vida, na propriedade ou na legislação, objetivamente considerados,
mas numa relação entre esses bens e a pessoa. O bem ou interesse – isto é a vida, as coisas ou o
ato de legislar – são o ‘objeto’ do direito subjetivo”. v. André Franco MONTORO, Introdução à Ciência
do Direito, p. 448.
95 Convém assinalar a demarcação feita por José Afonso da Silva entre direitos e garantias: os
primeiros conformam disposições declaratórias que conferem existência legal aos direitos
reconhecidos, ao passo que as segundas contém disposições assecuratórias, em termos de que
limitam o poder estatal em favor dos interesses dos indivíduos, além de disponibilizarem medidas
administrativas e/ou judiciais para as hipóteses de violação ou ameaça de violação de direitos. v.
José AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 360.
73
moral. Seu dever se limita a garantir as condições de igual liberdade
religiosa e moral. 96

 da liberdade de crença emanam as garantias da imunidade de coação e da

objeção de consciência, para citarmos apenas estas duas;

 o princípio da laicidade presume a não-concorrência estatal em atos de fé,

no sentido de que pressupõe a neutralidade e abstenção voluntária do Estado em

face da promoção do fato religioso, o que não o impede de proteger o fato religioso.

2.6 Objeção de consciência

Elaboração doutrinária assinada por Celso Bastos oferece uma interessante


definição do instituto da objeção de consciência:

É a chamada liberdade de opinião sob a modalidade do valor


exigência. Isto significa que ao indivíduo é dado, em certas hipóteses,
exigir do Estado que leve em consideração a sua consciência ou o seu
pensamento, para o efeito de eximi-lo de alguma obrigação.97

No Texto Constitucional, referido instituto apresenta três registros:

confissãoart.religiosa
5 , VIII ou
– ninguém será privado
de convicção filosóficadeoudireitos
política,porsalvo
moti vo
se de
as
invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a
cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou
suspensão só se dará nos casos de: IV – recusa de cumprir obrigação a
todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5 o, VIII.
art. 143 - O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.
§ 1º. Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço
alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo
de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e
de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de
caráter essencialmente militar.

96
John RAWLS. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 231.
97
Celso Ribeiro BASTOS, Dicionário de Direito Constitucional, p. 104.
74
§ 2º. As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço
militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos
que a lei lhes atribuir.

Em homenagem aos tratados internacionais, vale lembrar que duas

convenções fazem menção expressa à objeção de consciência:

. a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).

art. 6 º , item 3, alínea b. Não constituem trabalhos forçados ou


obrigatórios para os efeitos deste artigo: serviço militar e, nos países em
que se admite a isenção por motivo de consciência, qualquer serviço
nacional que a lei estabelecer em lugar daquele.

. o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos:

art. 8o , alínea c, item II. Para os efeitos do presente parágrafo, não


serão considerados ‘trabalhos forçados ou obrigatórios’: qualquer serviço
de caráter militar e, nos países em que se admite a isenção por motivo de
consciência, qualquer serviço nacional que a lei venha a exigir daqueles
que se oponham ao serviço militar por motivo de consciência.

No plano infraconstitucional, a Lei 8.239, de 04 de outubro de 1991,


regulamentou o aludido art. 143, dispondo sobre a “Prestação de Serviço Alternativo

o Serviço Militar Obrigatório”.

Vejamos a dicção do art. 3 o do aludido diploma normativo:

art. 3 o O Serviço Militar inicial é obrigatório a todos os brasileiros,


nos termos da lei.
§ 1º Ao Estado-Maior das Forças Armadas compete, na forma da
lei e em coordenação com os Ministérios Militares, atribuir Serviço
Alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem
imperativo de consciência decorrente de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter
essencialmente militar.
§ 2º Entende-se por Serviço Alternativo o exercício de atividades
de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, em
substituição às atividades de caráter essencialmente militar.
§ 3º O Serviço Alternativo será prestado em organizações militares
da ativa e em órgãos de formação de reservas das Forças Armadas ou em
órgãos subordinados aos Ministérios Civis, mediante convênios entre
estes e os Ministérios Militares, desde que haja interesse recíproco e,

75
também, sejam atendidas as aptidões do convocado.

Importa destacar que os tratadistas apontam duas modalidades de objeção


de consciência – a total e a particular. Objeção de consciência total refere-se àquela
modalidade que admite qualquer gênero de motivos, sejam religiosos, éticos ou

políticos; objeção de consciência parcial atina àquela modalidade que reconhece tão
somente a motivação de natureza religiosa.98

Noruega (Lei de 19 de março de 1965), Alemanha e Comunidade Européia

(Resolução n o 337, do Conselho da Europa) são exemplos de objeção de


consciência total. Por seu turno, a objeção de consciência parcial é adotada pelo

Canadá (National Defense Act, 1952) e pelos Estados Unidos (Selective Service
Act, 24 de junho de 1948).

Leitura do art. 5 o, inciso VIII, da Carta da República, permite constatar que o

sistema jurídico brasileiro adota a objeção de consciência do tipo total, visto que
admite a invocação de motivações de natureza religiosa, filosófica ou política. Por

evidente, o preceptivo constitucional em comento utiliza a locução “eximir-se de


obrigação legal a todos imposta”, sem adjetivar tal obrigação, pelo que contempla

não apenas a recusa ao serviço militar obrigatório (exemplo freqüentemente


lembrado pela doutrina), mas protege, ainda, ao menos teoricamente, a recusa ao
cumprimento de toda e qualquer obrigação legal a todos imposta.

A tradução da liberdade de crença em uma espécie de garantia,


nomeadamente a garantia da objeção de consciência, dá ensejo à transmutação, à

98
Alberto R. DALLA VIA. La Consciencia y el Derecho . Belgrano/Argentina: Fundación Editorial de
Belgrano, 1998, p. 184.
76
passagem de um constructo mental, uma atitude (na acepção da psicologia) para

uma conduta, uma ação.

Vale lembrar que a consciência situa-se numa esfera imune à incidência da


norma jurídica, ao menos em sua dimensão sancionatória. Estamos nos referindo a

uma situação não-juridicizável, a um âmbito do não-jurídico, usualmente


denominado como campo da autonomia privada.

Dispendioso ressaltar que um dos desafios do Estado constitucional moderno,


em oposição ao Estado absoluto, consiste na limitação do poder estatal, do que
deriva a não-jurisdição da consciência, campo no qual se inscreve o fenômeno da

crença.

Estamos lidando com o problema da interioridade e da exterioridade, do forum


99
internum e do forum externum , da legislação moral e da legislação jurídica , da
ação moral e da ação jurídica, enfim, do clássico problema da distinção entre moral
e direito, também descrito por Imannuel Kant como distinção entre liberdade interna
e liberdade externa, entre autonomia e heteronomia, entre imperativo categórico e
imperativo hipotético.

Em referência ao pensamento de Kant, sintetiza Norberto Bobbio com a

habitual maestria:

o dever jurídico pode ser dito externo, porque legalmente eu sou


obrigado somente a conformar a ação, e não também a intenção com a
qual eu cumpro a ação, segundo a lei; enquanto o dever moral é dito

99
Assinalada a devida ressalva de que o sistema constitucional brasileiro faz menção textual à
moralidade (arts. 5 o, LXIII; 14, § 9°e 37, caput), notadamente ao tratar dos princípios que norteiam a
administração pública.
77
interno porque moralmente eu sou obrigado não somente a conformar a
ação mas também a agir com pureza de intenção. 100

Ora, dispensa maior esforço a percepção de que, na seara da objeção de


consciência, um dever moral, religioso, sobrepõe-se a um dever jurídico, de modo

que um imperativo categórico prevalece sobre um imperativo hipotético, a moral


prepondera sobre o direito.

Trata-se de uma regra de exceção ao princípio da legalidade, que visa

assegurar ao indivíduo uma reserva de afirmação de seu dever religioso, filosófico


ou político, limitando o poder estatal, concretizando a imunidade de não-coação,

impedindo a ocorrência de uma violência moral e descortinando a possibilidade de


cumprimento de uma prestação alternativa àquela que ofenderia a consciência do

objetor.

Neste ponto, sentimo-nos tentados a dedicar uma palavra, ainda que


exploratória e superficial, a uma interessante questão engendrada pelo instituto da

objeção de consciência – a previsão constitucional da desobediência, lembrando

que “o dever fundamental de cada pessoa obrigada a um ordenamento jurídico é o


dever de obedecer às leis”.101

Ensina John Rawls que “A objeção de consciência é a desobediência a uma


injunção legal ou a uma ordem administrativa mais ou menos direta”.102

100
Norberto BOBBIO. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant 3. ed. Brasília : Editora
Universidade de Brasília, 1995 , p. 57.
101
Norberto BOBBIO, Nicola MATTEUCI e Gianfranco PASQUINO, Dicionário de Política, p 335.
102
John RAWLS, Uma Teoria da Justiça, p. 408.
78
Prestigioso magistério de Maria Garcia divisa a desobediência civil nos

seguintes termos:

A desobediência civil pode-se conceituar como a forma particular


de resistência
autoridade,ouobjetivando
contraposição, ativa ou passiva
a proteção do cidadão,inerentes
das prerrogativas à lei ou ato
à
cidadania, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos direitos e
garantias fundamentais.103

No que respeita à justificativa da desobediência civil, escólio de Norberto

Bobbio acrescenta ainda:

As circunstâncias defendidas pelos faustores da desobediência


civil e que favorecem mais a obrigação da desobediência do que a da
obediência são substancialmente três: o caso da lei injusta, o caso da lei
ilegítima (isto é, emanada de quem não tem o direito de legislar) e o caso
da lei inválida (ou inconstitucional). 104

Configurando uma modalidade de desobediência ao direito, a objeção de


consciência, ao contrário de certas modalidades de desobediência civil, não

pretende transformar a ordem jurídica, denunciar a existência de uma lei injusta ou

defender as prerrogativas inerentes à cidadania, mas tão somente evitar que o


objetor seja forçado a cumprir uma obrigação cujo objeto lhe aviltaria a consciência.

Ainda que esteja situada além do território no qual o presente trabalho almeja
transitar, cumpre dizer que a questão da objeção de consciência redefine e recoloca

os termos da antiga controvérsia entre direito natural e direito positivo, entre lei e

moral, para ficarmos apenas nestes.

103
Maria GARCIA. Desobediência Civil – Direito Fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1994, p. 257.
104
Norberto BOBBIO, Nicola MATTEUCI e Gianfranco PASQUINO, op. cit., p 335.
79
2.6.1 Objeção de consciência: registro de um caso apreciad o pelo Ministér io
da Educação e de um pedido de ausência justificada deferido pela
Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro

A Câmara de Educação Básica, do Ministério da Educação, enfrentou um


interessante caso envolvendo pedido de objeção de consciência encaminhado por

um aluno, fiel à Igreja Adventista do Sétimo Dia, que se recusava a comparecer às


aulas após as 18:00 horas das sextas-feiras, invocando motivos de crença religiosa

e obediência à determinação do Pastor da Igreja.

Trata-se do Processo n. 23.123.003.368/99-98, oriundo da Secretaria de

Educação do Estado de Minas Gerais, relatado pelo Conselheiro Carlos Roberto


Jamil Cury, cujo parecer, de n. 15/99, foi aprovado por unanimidade no dia 4 de
outubro de 1999.

O relatório desenvolve prolongadas considerações a respeito da invenção do

calendário, dos fusos horários, do meridiano de Greenwich, e da convenção sobre


fusos horários da qual o Brasil é signatário. Anotações são dedicadas também para

realçar a importância do calendário escolar. Preceitos constitucionais e


infraconstitucionais são referidos e comentados, terminando com a conclusão do

Relator:

Diante do exposto, considerando-se a relatividade do tempo e a


convencionalidade das horas sob a forma de construção sócio-histórica e
a necessidade de marcadores do tempo, comuns a todos e facilitadores da
vida social, considerando-se a clareza dos textos legais, não há amparo
legal ou normativo para o abono de faltas a estudantes que se ausentem
regularmente dos horários de aulas devido às convicções religiosas.

Posicionando-se em sentido contrário, a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro


concedeu justificação para ausência do pleito de 15 de novembro de 1986,
80
requerida por milhares de membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia e por judeus

ortodoxos.

Dado o fato de que naquele ano as eleições realizaram-se em dia de sábado,


os integrantes daqueles segmentos religiosos invocaram a crença religiosa para

objetar o cumprimento da obrigação de votar, bem como do pagamento da multa


prevista para a ausência não-justificada (art. 7º do Código Eleitoral).

O juiz da causa acolheu a justificativa da relevância religiosa para o


descumprimento da obrigação, e determinou a expedição da certidão de justificação:

eleitoral De
de todo o exposto,
15 de novembrotenho por justificável
de 1986, em razão adaausência do pleito
fé religiosa que
professam os adventistas do sétimo dia e judeus ortodoxos, cabendo que
se lhes expeça a competente certidão. 105

105
José Torres PEREI RA JUNIOR. A Liberdade de Culto no Pleito de 15.11.86 in Revista de
Informação Legislativa. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, ano 24, n. 94,
abr/jun 1987, pp. 253-262.
81
CAPÍTULO 3

LIBERDADE DE CULTO, DE LITURGIA. E DE ORGANIZAÇÃO


RELIGIOSA

3.1 Notas sobre a liberdade de reunião, de manifestação do pensamento e de

circulação

Neste estágio do presente trabalho, um aspecto nos interessa mais

diretamente: a liberdade de culto e de liturgia, compreendida como manifestação,


exteriorização, concretização da liberdade de crença.

O art. 5 o, inciso VI, da Carta Magna, encerra a seguinte redação: “é inviolável

a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos


cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas

liturgias”.

Merece distinção o fato de que o fenômeno religioso não concerne apenas à

esfera interior da pessoa, mas determina também identidades, comportamentos


(individuais e coletivos) externamente relevantes, normas religiosas (ordenamento
confessional), dogmas, modos de pensar, vestuários, costumes, ritos, cosmogonia,

enfim, uma identidade religiosa, como também uma ética religiosa.

Pelo ângulo da disciplina constitucional, a liberdade de culto e de liturgia


relaciona-se com três modalidades de liberdade arroladas no capítulo dos “Direitos e

Garantias Fundamentais”: a liberdade de reunião , a liberdade de manifestação do


pensamento e a liberdade de circulação.

82
Veja-se o Texto Constitucional:

art. 5 o , inciso XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem


armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização,
desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o
mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
art. 5 o , inciso IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo
vedado o anonimato;
art. 5 o , inciso XV – é livre a locomoção no território nacional em
tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar,
permanecer ou dele sair com seus bens.

Examinando a problemática da eficácia das normas constitucionais sobre as


liberdades, observa José Afonso da Silva que:

As normas constitucionais que definem as liberdades neste


capítulo são, via de regra, daquelas que denominamos de eficácia plena e
aplicabilidade
normatividade direta e imediata,
suficiente porque vinculados
aos interesses o legisladorà constituinte
matéria de deu
que
cogitam. Vale dizer, não dependem de legislação nem de providência do
Poder Público para serem aplicadas. 106

O tratamento da liberdade de reunião no plano infraconstitucional é


assegurado pela Lei n. 1.207, de 25 de outubro de 1950, que “Dispõe sobre o Direito

de Reunião”:

art. 1º. Sob nenhum pretexto poderá qualquer agente do Poder


Executivo intervir em reunião, pacífica e sem armas, convocada para casa
particular ou recinto fechado de associação, salvo no caso do § 15 do art.
141 da Constituição Federal, ou quando a convocação se fizer para prática
de ato proibido por lei.
§ 1º No caso da convocação para prática de ato proibido, a
autoridade policial poderá impedi-la, e, dentro de dois dias, exporá ao Juiz
competente os motivos por que a reunião foi impedida ou suspensa. O
Juiz ouvirá o promotor da reunião, ao qual dará o prazo de dois dias para
defesa. Dentro de dois dias o Juiz proferirá sentença da qual caberá
apelação que será recebida somente no efeito devolutivo.
§ 2º Se a autoridade não fizer no prazo legal a exposição
determinada no § 1º, poderá o promotor da reunião impetrar mandado de
segurança.
art. 3º, § 2º A celebração do comício, em praça fixada para tal fim,
independe de licença da polícia; mas o promotor do mesmo, pelo menos
vinte e quatro horas antes da sua reali zação, deverá fazer a devida

106
José AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 242.
83
comunicação à autoridade policial, a fim de que esta lhe garanta, segundo
a prioridade do aviso, o direito contra qualquer que no mesmo dia, hora e
lugar, pretenda celebrar outro comício.

Note-se que a lei em tela assegura o direito de reunião em recinto fechado,

acessível ou não ao público (casa particular e recinto fechado de associação) ou em


local público, mencionando especificamente praça pública, mas cuja interpretação

deve comportar também vias e logradouros públicos, ou quaisquer outros espaços


de uso público ou de acesso não-restrito.

Inteligência do aludido art. 5 o, inciso XVI, da Constituição da República, como


também do art. 1 o, caput e § 1º, da lei em comento, aponta a fixação de três ordens
de restrição ao direito de reunião: a determinação de que possua caráter pacífico, a

proibição do uso de armas e a interdição de prática de ato proibido – por lei,


naturalmente.

Fernando Dias Menezes de Almeida, autor de um percuciente e


pormenorizado estudo sobre a liberdade de reunião, conclui que “A finalidade
religiosa não é incompatível com o elemento teleológico das reuniões, o que é

admitido por grande parte dos autores”.107

O autor cita ainda as conferências religiosas, procissões pelas vias públicas


bem como as pregações feitas nas vias públicas, com adesão de transeuntes.108

A propósito da liberdade de manifestação do pensamento, adverte José


Afonso da Silva que:

107
Fernando Dias Menezes de ALMEIDA. Liberdade de Reunião. São Paulo: Max Limonad, 2001, p.
166.
108
Ibidem, p. 167.
84
A liberdade de manifestação de pensamento tem seus ônus, tal
como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do
produto do pensamento manifestado, para sendo o caso, responder por
eventuais danos a terceiros. 109

A proibição de censura prévia à manifestação do pensamento encontra abrigo


na norma do art. 220, § 2º, da Lei Magna, segundo o qual “É vedada toda e qualquer

censura de natureza política, ideológica e artística”.

Convém sublinhar, entretanto, que o exercício da liberdade de expressão não

encerra um direito ilimitado, absoluto, infenso ao princípio da legalidade: a liberdade

de expressão encontra limites na própria lei e é a Carta da República que tutela a


dignidade da pessoa humana e proíbe o tratamento degradante, Constituição que, a
propósito, comete ao Judiciário o poder de controlar os abusos da liberdade de
expressão:

Não há que confundir tal poder, que é constitucional e democrático,


com censura. O Poder Judiciário, que detém o monopólio constitucional do
controle da jurisdição, que tem o dever, segundo essa mesma Carta
Política, de tutelar os direitos lesados e ameaçados, pode e deve,
exclusivamente no exercício de sua atividade, quando provocado pelo
interessado, quando juridicamente necessário, dentro dos limites legais e
de acordo com as normas processuais aplicáveis, impor restrições e
proibições à imprensa, para compor conflito de interesses, sem que isso
represente ‘censura’ e sem que tal atuação constitua qualquer violação à
ordem democrática ou ao Estado de Direito. (José Henrique Rodrigues
TORRES. A Censura à imprensa e o controle constitucional de legalidade
in RT 705/24).

Por último, mas não em último, cumpre registrar uma nota sobre o direito de
circulação, valendo-nos do magistério de José Afonso da Silva: “Direito à circulação

109
José AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 222.
85
é manifestação característica da liberdade de locomoção: direito de ir, vir, ficar, parar,

estacionar”.110

3.2 Liberdade de culto e de liturgia

Ao menos, dois tratados, além de uma declaração internacional, traçam

balizas jurídicas da liberdade de culto e de liturgia:

• o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos:

art. 18, item 1. Toda pessoa terá direito à liberdade de


pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a
liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a
liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente,
tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de
ritos, de práticas e do ensino.
Item. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença
estará sujeita apenas a limitações previstas em lei e que se façam
necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral
públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

• a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da

Costa Rica:

art. 12, item. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência


e de religião.
Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas
crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de
professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou
coletivamente, tanto em público como em privado.
Item. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias
crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que
sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a
moral pública ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.

• a Declaração para Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de

Discriminação baseada em Religião ou Crença:

110
Ibidem, p. 217.
86
art. 6 º. De acordo com o art. 1 o da presente Declaração, e sujeito
às disposições do § 3 o , do mesmo art. 1 o , o direito à liberdade de
pensamento, consciência, religião ou crença deve incluir, inter alia , as
seguintes liberdades: (a) Cultuar e reunir-se por motivos relacionados à
religião ou crença, e estabelecer e manter locais para estas finalidades; (b)
Estabelecer e manter apropriadas instituições de caridade ou humanitárias;
(c) Fazer adquirir ou utilizar na medida adequada os artigos e materiais
necessários relacionados
Escrever, emitir aos ritos
ou disseminar e costumes
publicações de religião
relevantes ou crença;
nestas áreas; (d)
(e)
Ensinar uma religião ou crença em locais apropriados; (f) Solicitar e
receber financiamentos voluntários e outras contribuições de indivíduos ou
instituições; (g) Treinar, apontar, eleger ou designar por sucessão líderes
apropriados de acordo com as exigências e padrões de cada religião ou
crença; (h) Observar dias de descanso e celebrar festas e cerimônias de
acordo com os preceitos de religião ou crença; (i) Estabelecer ou manter
comunicações com indivíduos ou comunidades sobre o tema de religião ou
crença a níveis nacional e internacional.

Culto, do latim cultus , significa veneração, devoção, uma tributação voluntária

de reverências e honras a uma divindade. Via de regra o culto tem dois objetivos: o
primeiro refere-se à veneração a um ser sobrenatural, e o segundo relaciona-se com

o enlevo espiritual do cultor.

Liturgia, do grego leiturgia, designa a ordenação de linguagens, símbolos,

rituais, cerimônias, gestualidades, paramentos, músicas ou cantigas, enfim, os ritos

empregados em um culto religioso, o que nos permite afirmar que a liturgia configura

a expressão, a concretização do culto.


O direito de professar a religião ou crença, individual ou coletivamente, em
espaço público ou privado, está previsto expressamente no Pacto de San José da

Costa Rica, corroborando a orientação da normativa referida no subtítulo anterior.

Cabe lembrar que o Código Penal pune o ultraje a culto e impedimento ou


o
perturbação de ato a ele relativo (art. 208), e que a Lei n 4.898/65 pune o abuso de
autoridade decorrente de atentado à liberdade de associação, à liberdade de

87
o
consciência e de crença e ao livre exercício do culto religioso (art. 4 , alíneas “d” e

“e”), matéria de que trataremos no próximo capítulo.

Atenção deve ser dedicada também à norma do art. 217, inciso I, do Código
de Processo Civil, cuja dicção é a seguinte: “Não se fará, porém, a citação, salvo

para evitar o perecimento do direito: a quem estiver assistindo a qualquer ato de


culto religioso”.

Leitura da norma penal ou da norma processual civil torna patente o respeito,


o recato, a prudência que o sistema jurídico impõe sejam observados pelo Estado e
pelos particulares, ateus ou fiéis, face ao culto religioso.

Decerto, a regulamentação da proteção aos locais do culto e as suas liturgias,


prevista na parte final do art. 5 o, inciso VI, da Constituição Federal, irá detalhar e

ampliar ainda mais os instrumentos de que o Estado pode dispor para manter os
cultos de quaisquer religiões ou crenças salvaguardados de investidas e violações
de direitos.

Nesta quadra convém dedicar algumas linhas para reforçar nosso


entendimento de que a liberdade de crença, mas, sobretudo, a liberdade de culto e

de liturgia, admite uma decomposição jurídica, menos com base em uma tipologia

que dela possa ser feita, e mais pela apreciação da normativa que a delimita,
protege e assegura as condições de possibilidade para sua manifestação.

No capítulo anterior, apoiando-nos no instrumental teórico de Lorenzo


Martín-Retortillo Baquer e Ignacio de Otto y Pardo, advogamos a existência de
facilidades para a construção de um argumento justificador da liberdade

88
de crença como direito fundamental, mas advertíamos para a dificuldade da

definição de um núcleo qualificado, um conteúdo descritivo, por razões que a esta

altura esperamos ter evidenciado.

Insistimos: pertence ao foro íntimo da pessoa, à liberdade interna do indivíduo,

a complexa correlação entre realidade terrena e a prospecção ultraterrena.

Ao sistema jurídico compete, portanto, tão somente anunciar o direito, fixar as

balizas legais, proteger e disponibilizar medidas assecuratórias, viabilizando as


condições para que o direito de crença, de culto e de liturgia possa ser exercido
livremente por todos aqueles que, movidos unicamente pelo alvedrio, elejam a

religiosidade como um valor relevante para sua existência.

A vinculação do culto e da liturgia ao princípio da legalidade

A Carta de 1969 assegurava a liberdade de crença, ao tempo em que

condicionava a prática do culto religioso à conformidade com a ordem pública e os


bons costumes: “art. 153, § 5º. É plena a liberdade de consciência e fica assegurado

aos crentes o exercício dos cultos religiosos que não contrariem a ordem pública e
os bons costumes”.

Merece elogios a preocupação do constituinte de 1988 de suprimir tal

exigência, notadamente no que atina ao indeterminado conceito de bons costumes.

Segundo Marcos Cláudio Acquaviva, “bons costumes” designa um

Conjunto de preceitos morais acatados pela sociedade em cada


momento histórico. A expressão é empregada, via de regra, para
denominar moralidade sexual. Todavia, em sentido genérico, refere-se
mais propriamente à honestidade, ao recato, à dignidade e decoro

89
social. 111

É digno de reflexão o fato de que a adoção do critério dos “bons costumes”


colocava o problema de que dito conceito não expressa um conteúdo descritivo, mas
sim uma apreciação axiológica, um senso de razoabilidade, de plausibilidade, enfim,

um juízo de valor, que, não bastasse permitir a apropriação arbitrária de sua


semântica, entregava a solução do problema às conveniências, aos preconceitos ou

aos caprichos do grupo de poder capaz de impor sua interpretação do que fosse
“bons costumes”.

Ocioso destacar que a noção de Estado de Direito, mais precisamente de

Estado Democrático de Direito, e o princípio da legalidade, plasmados


respectivamente nos arts. 1 o, caput, e 5 o, inciso II, da Constituição vigente, conferem

à lei, tomada como expressão da soberania popular, uma imperatividade sem a qual

os indivíduos vêem seus direitos e liberdades entregues ao arbítrio e aos caprichos


do poder despótico. No dizer de José Afonso da Silva,

A lei é efetivamente o ato oficial de maior realce na vida política.


Ato de decisão
emanada política
da atuação por excelência,
da vontade é por
popular, que meioestatal
o poder dela, propicia
enquantoao
viver social modos predeterminados de conduta, de maneira que os
membros da sociedade saibam, de antemão, como guiar-se na realização
de seus interesses. 112

o
Note-se que a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 2 , caput, fixa
uma regra elementar do princípio da legalidade (Constituição Federal, art. 5 o, XXXIX

111
Marcos Cláudio ACQUAVIVA. Dicionário Jurídico Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Jurídica Brasileira,
1993, p. 245.
112
José AFONSO DA SILVA, op. cit., p. 110.
90
e XL): “a rt. 2 º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra

a modifique ou revogue”.

Corolário deste preceito, da lex scripta , exsurge a inidoneidade dos decretos,


portarias e, nomeadamente, do costume, para revogar lei. Lei só pode ser revogada

por outra lei.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça registram os

seguintes julgados referentes ao costume como fonte do direito:

1. Não é possível a formação de uma regra jurídica baseada no


costume, se há lei em vigor que prescreva em sentido contrário (STF –
o

Recurso Extraordinário
(convocado) n . 20829
– DJU de 29.01.53, – Rel. Abner de Vasconcelos
p. 01196);
2. O costume contra legem não pode ser fundamento de decisão
judicial, porque a lei só se revoga por outra lei. Recurso Extraordinário
conhecido e provido (STF - Recurso Extraordinário n o 58414 – Rel.
Evandro Lins – DJU de 02.03.66, p. 00534);
3. Jogo do bicho. Impos sibilidade de absolvição em razão do
costume. I - o sistema jurídico brasileiro não admite possa uma lei perecer
pelo desuso, porquanto, assentado no princípio da supremacia da lei
escrita (fonte principal do direito), sua obrigatoriedade só termina com sua
revogação por outra lei. Noutros termos, significa que não pode ter
existência jurídica o costume " contra legem ". II - Recurso provido por
ambas alíneas (STJ - Recurso Especial no 30705 – Rel. Adhemar Maciel –
DJU de 03.04.95, p. 08150).

Por evidente, decisões administrativas, e, mais especificamente, decisões


judiciais fundamentadas em costume, negam vigência a preceito legal, o que as

tornam passíveis de ataque pela via do Recurso Especial (CF, art. 105, inciso III,

alínea “a”), quando não do Recurso Extraordinário (CF, art. 102, inciso III).

Com estas considerações pretendemos pôr em realce o fato de que, uma vez

respeitadas as fronteiras da legalidade, inexistem quaisquer embaraços para a


prática do culto e suas liturgias.

91
A vinculação do culto e da liturgia ao poder de polícia administrativa

O regime jurídico das liberdades conforma enunciados de direitos, mas inclui

também cláusulas de restrição. No caso da liberdade de reunião, por exemplo,


proíbe-se o uso de armas, impõe-se um caráter pacífico, exige-se o aviso prévio à

autoridade competente e veda-se a realização de reunião que frustre outra


anteriormente marcada para o mesmo local.

A liberdade de expressão impõe a identificação do emissor e o sujeita à

reparação do dano decorrente de abusos. Ademais, o Código Penal pune os

chamados crimes de palavra, como a injúria, a calúnia e a difamação.


Além de tais espécies de restrições, o direito de liberdade, como também o de
propriedade, está sujeito a certos condicionamentos, previstos em lei federal,

estadual ou municipal, que visam compatibilizar a liberdade individual com o bem

estar coletivo.

Estamos na seara denominada poder de polícia administrativa.

Celso Antônio Bandeira de Mello principia suas investigações sobre a matéria,


advertindo para a impropriedade e o equívoco da expressão poder de polícia:

Trata-se de designativo manifestamente infeliz. Engloba, sob um


único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas a regimes de
inconciliável diversidade: leis e atos administrativos. (...) Além disto, a
expressão ‘poder de polícia’ traz consigo a evocação de uma época
pretérita, a do ‘Estado de Polícia’, que precedeu ao Estado de Direito. (...)
Atualmente, na maioria dos países europeus (de que a França é marcante
exceção), em geral, o tema é tratado sob a titulação ‘limitações

92
administrativas à liberdade e à propriedade’, e não mais sob o rótulo de
‘poder de polícia’. 113

Poder de política administrativa, dirá o autor, constitui-se de “Leis


condicionadoras da liberdade e da propriedade em proveito de bem estar

coletivo”.114

Examinando a matéria no âmbito do município, assinala Hely Lopes Meirelles

que o “Poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para

condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em


benefício da coletividade ou do próprio Estado”. 115

Como exemplo de modalidades de polícia administrativa, os tratadistas citam


a polícia sanitária, via de regra desincumbida pela União, pelo Estado e pelo
Município, à qual compete zelar pelas normas gerais de defesa e proteção da saúde;

a polícia da atmosfera, que cuida da preservação do estado natural do ar respirável


e limita a emissão de sons e ruídos; a polícia das águas, a polícia das plantas e

animais nocivos, a polícia do tráfego e das vias públicas, entre outras.

À evidência, a liberdade de culto e de liturgia não escapa do controle da

legalidade, incluindo as normas, regulamentos, decretos e regime de fiscalização da

polícia administrativa, mormente dos municípios, cujas leis e posturas devem ser
rigorosamente observados, sob pena da imposição de sanções passíveis de

113
Celso Antonio Bandeira de MELLO. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 687.
114
Ibidem, p. 696.
115
Hely Lopes MEIRELLES. Direito Municipal Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 393.
93
restringir não o direito de liberdade de culto ou de liturgia, mas o exercício daquele

direito.

Embora dispensável, convém lembrar que, sob nenhuma hipótese, o poder de


polícia pode se imiscuir em área reservada à competência da lei, colocando-se

acima ou ao largo desta, mesmo porque, como diria Hely Lopes Meirelles, “Como
todo ato administrativo, o ato de polícia subordina-se ao ordenamento jurídico que

rege as demais atividades da Administração, sujeitando-se, inclusive, ao controle da


legalidade pelo Poder Judiciário”.116

Assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva

Consoante disposto na norma do art. 5 º, inciso VII, da Lei Maior, “é


assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades

civis e militares de internação coletiva”.

Trata-se de norma que descortina a preocupação do menor Constituinte de


1988 em garantir que os enfermos, os adolescentes privados de liberdade, os

encarcerados e os militares não sejam destituídos da assistência religiosa e do


acesso ao culto em razão de hospitalização, aprisionamento ou do aquartelamento,

respectivamente.

Certamente, estivessem essas pessoas em pleno gozo de sua liberdade e/ou


livres de enfermidades, o preceptivo em questão perderia sentido, visto que por seus

116
Hely Lopes MEIRELLES. Direito Administrativo Brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p.
114.
94
próprios meios esses indivíduos acessariam ou não o culto e procurariam ou não a

assistência religiosa.

De outra parte, cumpre realçar que, em regra, a norma jurídica obriga o


Estado a tão somente abster-se de impedir o contato entre o assistido e o assistente,

isto é, entre o fiel e o Ministro Religioso, de modo que prevalece a dimensão de


Estado “protetor” e não de Estado “promotor” do fato religioso.

Nessa quadra emerge uma interessante aproximação entre esse direito


público subjetivo e o instituto da objeção de consciência, visto como, na objeção de
consciência a norma figura como instrumento de contenção do poder estatal,

impedindo-o de constranger alguém a fazer alguma coisa que vulnere seus valores
religiosos, políticos ou ideológicos.

Prestigia-se o valor religioso individual em detrimento inclusive da obrigação


legal a todos imposta. Já o direito de acesso à assistência religiosa, igualmente,
impede o Estado ou particulares de destituírem, forçosamente, o indivíduo do acesso
ao culto religioso, a despeito de encontrar-se em situação de convalescença,
custodiado pelo Estado ou aquartelado. Aqui prestigia-se o valor religioso individual

ainda que o indivíduo se encontre sob custódia do Estado, sob cuidados médicos ou

recolhido numa unidade militar.

Em ambos os institutos avulta a primazia concedida à liberdade-autonomia,

ao livre arbítrio, à autodeterminação, no caso específico, dos fiéis.

Se fosse possível estabelecer uma comparação que nos permitisse aquilatar


a magnitude atribuída pela Constituição ao direito dos fiéis, incluindo o

95
acesso à assistência religiosa e ao culto, poderíamos recordar que, por força do

dispositivo do art. 15, inciso III, da Lei Fundamental, a sentença penal condenatória

transitada em julgado suspende os direitos políticos do sentenciado, de modo que

este se vê impedido de votar enquanto perdurarem os efeitos daquela.

Temos pois que a sentença penal condenatória priva o indivíduo do status de


cidadão ao tempo em que mantém intocados seus direitos de fiel.

Antes de procedermos á transcrição de extratos da legislação referente à


matéria em exame, cumpre salientar que a prestação de assistência religiosa
subsume-se nas funções típicas de Ministro Religioso, conforme veremos adiante.

Examinemos agora as normas pertinentes:

 Lei n. 9.982, de 14 de julho de 2000, que: “Dispõe sobre a prestação de

assistência religiosa nas entidades hospitalares públicas e privadas, bem como nos
estabelecimentos prisionais civis e militares”:

art. 1º Aos religiosos de todas as confissões religiosas assegura-se


o acesso aos hospitais da rede pública ou privada, bem como aos
estabelecimentos prisionais civis e militares, para dar atendimento
religioso aos internados, desde que em comum acordo com estes, ou com
familiares em caso de doentes que não mais estejam no gozo de suas
faculdades mentais.

 Lei n. 6.923, de 29 de junho de 1981, que: “Dispõe sobre o Serviço de Assistência

Religiosa nas Forças Armadas”:

art. 2º. O serviço de assistência religiosa tem por finalidade prestar


assistência Religiosa e espiritual aos militares, aos civis das organizações
militares e às suas famílias, bem como atender a encargos relacionados
com as atividades de educação moral realizadas nas Forças Armadas.
art. 4 º O Serviço de Assistência Religiosa será constituído por
Capelães Militares, selecionados entre sacerdotes, ministros religiosos ou
pastores, pertencentes a qualquer religião que não atente contra a
disciplina, a moral e as leis em vigor.
96
Parágrafo único: Em cada Força Singular será instituído um
Quadro de Capelães Militares, observado o efetivo de que trata o art. 8 o
desta Lei.
art. 11. Os Capelães Militares prestarão serviços nas Forças
Armadas, como oficiais da ativa e da reserva remunerada.
Parágrafo único – A designação dos Capelães da reserva
remunerada será regulamentada pelo Poder Executivo.
condiçãoart. 18. Para no
o prescrito o ingresso no Quadro
art. 4 o desta decomo:
Lei, bem Capelães Militares
I – ser será
brasileiro nato;
II – ser voluntário; III – ter entre 30 (trinta) e 40 (quarenta) anos de idade;
IV – ter uso de formação teológica de nível universitário, reconhecido pela
autoridade eclesiástica de sua religião; V – possuir pelo menos 3 (três)
anos de atividades pastorais; VI – ter consentimento expresso da
autoridade eclesiástica da respectiva religião; VII – ser julgado apto em
inspeção de saúde; VIII – receber conceito favorável, atestado por 2 (dois)
oficiais superiores da ativa das Forças Armadas.

 Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente –


ECA.

art. 94 - As entidades que desenvolvem programas de internação


têm as seguintes obrigações, entre outras:
XII - propiciar assistência religiosa àqueles que desejarem, de
acordo com suas crenças;
art. 124 - São direitos do adolescente privado de liberdade, entre
outros, os seguintes:
XIV - receber assistência religiosa, segundo a sua crença, e desde
que assim o deseje;

 Lei n. 7.210/84 - Lei de Execução Penal:

art. 24. A assistência religiosa, com liberdade de culto, será


prestada aos presos e internados, permitindo-se-lhes a participação nos
serviços organizados no estabelecimento penal, bem como posse de livros
de instrução religiosa.
§ 1º No estabelecimento haverá local apropriado para os cultos
religiosos.
§ 2º Nenhum preso ou internado poderá ser obrigado a participar
de atividade religiosa.

 Lei n. 5.027, de 14 de junho de 1966, que “Institui o Código Sanitário do Distrito

Federal”:

art. 83. É vedada, quer nos estabelecimentos destinados à


assistência a psicopatas, quer fora deles, a prática de quaisquer atos de
religião, culto ou seita com finalidade terapêutica, ainda que a título

97
filantrópico e exercida gratuitamente.

Impõe-se tecer algumas considerações: a primeira é que, excetuando-se a Lei


da Capelania Militar e o Código Sanitário do Distrito Federal (mesmo porque este
proíbe a prestação de assistência religiosa nos manicômios), os demais diplomas

condicionam a prestação de assistência religiosa à manifestação de vontade, ao


aceite ou à aquiescência do enfermo, do infrator ou do encarcerado civil ou militar.

Será útil relembrar que a Constituição de 1934, pioneira no tratamento do

tema, permitia a assistência religiosa nas expedições militares mediante solicitação e


sem ônus para os cofres públicos (art. 113, item 4). Precisando ainda mais a

cláusula de tutela da escolha individual, a Carta de 1946 proibia a imposição de


constrangimento aos favorecidos no que dizia respeito à prestação de assistência

religiosa às Forças Armadas (art. 141, § 9º), orientação esta acolhida ipsis literis pela

Constituição de Constituição de 1967 (art. 150, § 7º), e por sua sucessora, de 1969
(art. 150 § 7º).

Não obstante, ignorando o prestígio com que a disciplina constitucional trata a


autonomia da vontade em matéria de liberdade de crença, a Lei da Capelania Militar

dispensa a manifestação de vontade do militar para a prestação de assistência


religiosa, tampouco contém cláusula de resguardo da opção individual, como o faz a
Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84, art. 24, § 2º). Tal característica merece toda

a atenção, sobretudo se considerarmos que, conforme enunciado constitucional, as


Forças Armadas são “organizadas com base na hierarquia e na disciplina”

(Constituição Federal, art. 142, caput).

98
A mesma Constituição fixa os objetivos a que se destinam as Forças Armadas,

a saber, “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais, e, por iniciativa

de qualquer destes, da lei e da ordem” (art. 142, caput).

Malgrado engano, quer nos parecer que a devoção religiosa, a conversão ou

a assiduidade aos cultos religiosos impostas pela Lei da Capelania Militar,


guardariam minguada ou nenhuma relação de pertinência com uma atividade que

implica adestramento e habilidade no manuseio de armas de fogo, guerra simulada,


bombardeios, detonação de bombas e lançamento de mísseis, para ficarmos apenas
nas ilustrações mais simplórias do empreendimento militar. A nosso ver, a defesa da

Pátria, dos poderes constitucionais, da lei e da ordem pressupõem a manutenção de


uma tropa profissionalizada, qualificada, bem remunerada, bem equipada e

composta por cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres, pelo que não
vislumbramos plausibilidade na previsão legal do engajamento religioso como
requisito para a atividade militar.

Seria tedioso pôr em realce o princípio da finalidade, ao qual a administração


pública está inapelavelmente obrigada, conforme disposto na Lei n. 4.717, de 29 de

junho de 1965, que regula a Ação Popular:

art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades


mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício
de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de
finalidade.
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade
observar-se-ão as seguintes normas: a) a incompetência fica caracterizada
quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou;
b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou
irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato;
c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em
violação de lei, regulamento ou outro ato normativo; d) a inexistência dos
motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se
fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente
inadequada ao resultado obtido; e) o desvio da finalidade se
verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso
99
daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.

Leciona Hely Lopes Meirelles que

O princípio da impessoalidade, referido na Constituição de 1988


(art. 37, caput) nada mais é que o clássico princípio da finalidade, o qual
impõe ao administrador público que só pratique o ato para o seu fim legal.
(...) E a finalidade terá sempre um objetivo certo e inafastável de qualquer
ato administrativo: o interesse público. (...) O que o princípio da finalidade
veda é a prática de ato administrativo sem interesse público ou
conveniência para a Administração, visando unicamente satisfazer
interesses privados, por favoritismo ou perseguição dos agentes
governamentais, sob a forma de desvio de finalidade.117

Há ainda um outro aspecto a ser destacado na Lei da Capelania Militar.

O Capelão Militar, agraciado com a patente de Capitão de Mar e Guerra,


Coronel Capelão ou Tenente-Coronel Capelão, a depender do caso (Lei 6.923/1981,

art. 8 o), é um servidor militar remunerado pelo erário para fazer pregação religiosa
no seio da tropa.

Estamos lidando com uma forma de financiamento direto a confissões

religiosas formadas por sacerdotes, ministros religiosos ou pastores,


especificamente aquelas que, nas palavras da lei, não tenham como objetivo atentar
o
“contra a disciplina, a moral e as leis em vigor” (Lei 6.923/1981, art. 4 ). Salta aos
olhos a ofensa frontal e direta à Constituição vigente, notadamente ao preceito que

proíbe a subvenção ou aliança entre Estado e religião (Constituição Federal, art. 19,

inciso I).

Não fosse o bastante, a Lei da Capelania Militar ambiciona, ao arrepio do

sistema jurídico, regulamentar minuciosamente o ofício de Ministro Religioso, fixando

117
Hely Lopes MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, pp. 85-86.
100
exigências estranhas inclusive aos preceitos de direito internacional, conforme

aduzido adiante.

3.3 Ministro Religioso: uma proposta de definição jurídica

Dissemos no primeiro capítulo deste trabalho que a Constituição Federal

menciona o vocábulo eclesiásticos (art. 143, § 2°), o qual exibe uma denotação
focalizada nos sacerdotes do catolicismo, pelo que, tendo em mente o caráter laico

do Estado brasileiro, pleiteamos o empréstimo da terminologia empregada pela Lei


dos Registros Públicos, a Lei n. 6.015/73, cujo art. 73 utiliza a expressão “autoridade
ou ministro religioso”.

Na linguagem comum, não raro, tratam-se ministro religioso e sacerdote como


sinônimos, assinalando-se que no Dicionário Aurélio, sacerdote significa: “Entre os

antigos, aquele que tratava dos assuntos religiosos e tinha o poder de oferecer
vitimas à divindade; aquele que distribui os dons sagrados ou divinos; ministros do
culto divino, da instrução religiosa e dos sacrifícios”.118

Um esforço de definição de Ministro Religioso pode ser encontrado nos


termos da Portaria n. 1.984, de 11 de janeiro de 1980, assinada pelo Ministro do

Trabalho e Assistência Social, cuja contrariedade à Carta Política de 1988 é

manifesta:

art. 2º , inciso IV. Para os efeitos da legislação citada, consideram-


se: Ministros de Confissão Religiosa, aqueles que consagram sua vida ao
serviço de Deus e do próximo, com ou sem ordenação, dedicando-se ao
anúncio de suas respectivas doutrinas e crenças, à celebração dos cultos
próprios, à organização das comunidades e à observância das normas

118
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 1.795.
101
estabelecidas, desde que devidamente aprovados para o exercício de
suas funções pela autoridade religiosa competente.

Importa ressaltar que portaria designa um ato administrativo ordinatório, assim


descrito por Hely Lopes Meirelles: “Portarias são atos administrativos internos pelos

quais os chefes de órgãos, repartições ou serviços expedem determinações gerais


ou especiais a seus subordinados, ou designam servidores para funções e cargos

secundários”.119

Em regra, portaria não atinge nem obriga aos particulares, conforme inclusive
já decidiu o Supremo Tribunal Federal, como também deve estar circunscrita aos

contornos da legalidade.

Não obstante, no silêncio da lei, fato é que indigitada portaria prossegue


vigendo, assumindo estampa de ato normativo, fixando parâmetros aparentemente

legais e, por decorrência, definindo as condições nas quais o direito pode ser
exercido.

A esse respeito, devemos atentar para a dicção do art. 5 o, inciso XIII, da Lei
Fundamental, segundo o qual, “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou

profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

Síntese dicionarizada indica que trabalho diz respeito a uma atividade


remunerada ou assalariada; profissão indica uma atividade ou ocupação

especializada, a qual pressupõe certo preparo, e ofício designa ocupação

119
Hely Lopes MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p. 167.
102
permanente, de ordem intelectual ou não, a qual envolve certos encargos ou

deveres, ou um pendor natural.

Do ângulo jurisprudencial, é pacífica a orientação dos tribunais no sentido de


qualificar juridicamente o ministério religioso como ofício, e não como trabalho ou

profissão, senão vejamos:

O labor religioso não configura contrato de emprego, sobretudo


porque sua finalidade é de ordem espiritual. Está declarado pelas partes
que, nem o reclamante varão, como pastor, nem a sua esposa, como
zeladora de templo, receberam qualquer remuneração da sua igreja. A
manutenção do pastor se faz com a contribuição dos fiéis. Não é
remuneração pelo serviço prestado, mas para a manutenção do culto, da
fé religiosa. Ora, é cediço na doutrina que os serviços executados com
intenção piedosa ou de pastoreio de almas, não têm a proteção laborista.
Os ministros
autônomo deefeito
para confissão religiosa, peloDesnudam-se
de aposentadoria. próprio INPS, na
equiparam-se
espécie duasa
situações bem definidas. Primeiro, os autores não recebiam salários, mas
eram mantidos pela contribuição dos fiéis. Não houve remuneração do
serviço prestado, mas a manutenção da propagação da fé. E, para a
permanência do culto, impõe-se a manutenção do pastor e sua esposa,
através de donativos dos fiéis. É o que fazem todas as igrejas. Inexiste,
portanto, salário, no sentido técnico do termo. Segundo, é cediço na
jurisprudência e na doutrina que o trabalho religioso não configura um
contrato de emprego, porque não é considerado profissional, no sentido
técnico do termo; seus propósitos e ideais são de ordem espiritual
(AMAURI MASCARO). O pregador de uma comunidade religiosa, segundo
KROTOSCHIM, trabalha para servir a uma idéia e a um ideal religioso.
Seu engajamento se faz voluntariamente por uma crença, uma
necessidade espiritual e vocacional de propagação da fé (Tribunal
a a o

Regional
3.954/91 –doRel.
Trabalho da 3 Caldeira
José Maria Região––DJMG
2 Turma – Recurso Ordinário n
de 13.06.1992);
Não configura relação de emprego tutelada pela legislação
trabalhista o vínculo existente entre o autor, enquanto membro de
congregação religiosa, e o instituto reclamado, personificação civil e
jurídica daquela, eis que ausentes os elementos configuradores desta
relação, estando sujeitos aos ditames do Direito Canônico (Tribunal
Regional do Trabalho da 4 a Região – 5 a Turma – Recurso Ordinário n o
4.636/90 – Rel. Paulo José da Rocha – j. em 26.09.91)
Vínculo empregatício. Igreja. Falso sacerdócio. A Igreja, se e
enquanto organizada como pessoa jurídica de direito privado (Mitra, ou
sociedade civil análoga), em tese pode ser sujeito de contrato de emprego
quando beneficiária de trabalho humano produtivo, prestado sem ânimo
benevolente. É empregada a pessoa simples, que, sem qualquer formação
teológica e intitulada ‘obreiro cristão’, sob a máscara de um pseudo e
incipiente sacerdócio, trabalha exclusivamente para arrecadar donativos
em prol de Igreja (Tribunal Regional do Trabalho da 9a Região – 3 a Turma
– Recurso Ordinário no 1.329/92 – Rel. João Oreste Dalazen – j. 31.03.93
– DJPR de 30.07.93).

103
Postas as coisas nestes termos, inspirados nos termos primitivos da

mencionada portaria do Ministério do Trabalho, ousaríamos propor sua atualização e

compatibilização com o princípio da laicidade estatal e com a redação da referida

“Declaração para Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de


Discriminação baseada em Religião ou Crença”, de sorte que uma proposta de
definição do enunciado Ministro Religioso teria a seguinte estrutura:

Consideram-se Ministros de Confissão Religiosa os indivíduos que


dedicam sua vida ao ofício religioso, com ou sem habilitação conferida por
instituto religioso, dedicando-se à difusão, propaganda e ensinamento de
doutrinas e crenças, à celebração de cultos e cerimônias, à organização
das comunidades religiosas e à observância das normas estabelecidas,
desde que devidamente indicados para o exercício de suas funções pela
associação ou comunidade a que esteja vinculado, ou por superior
religioso.

Em homenagem aos princípios de direito internacional, e em abono à nossa

propositura, convém ressaltar que o art. 6 o, alínea “g”, da Declaração para


Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação baseada em

Religião ou Crença, inscreve no rol da liberdad e de religião ou crença , o direito de

“Treinar, apontar, eleger ou designar por sucessão líderes apropriados de acordo

com as exigências e padrões de cada religião ou crença”.

Confissão religiosa, Institutos de Vida Consagrada, Ordem ou Congregação


Religiosa: uma proposta de definição jurídica

A qualificação jurídica do ministério religioso como ofício, e não como

profissão ou trabalho, foi equacionada pelo Direito Previdenciário por meio da Lei n.

6.696, de 8 de outubro de 1979, que “Equipara, no Tocante à Previdência Social


Urbana, os Ministros de Confissão Religiosa e os Membros de Institutos de Vida

104
Consagrada, Congregação ou Ordem Religiosa aos Trabalhadores Autônomos e dá

outras Providências”.

Dois outros diplomas normativos referentes à matéria, além de um decreto,


fazem alusão às expressões Confissão Religiosa, Institutos de Vida Consagrada e

Congregação ou Ordem Religiosa :

 a Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991, que “Dispõe sobre a Organização da

Seguridade Social, Institui Plano de Custeio, e dá outras Providências”, cujo art. 12


apresenta a seguinte redação:

São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes


pessoas físicas:
V - como contribuinte individual:
c) o ministro de confissão religiosa e o membro de instituto de
vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, quando mantidos
pela entidade a que pertencem, salvo se filiados obrigatoriamente à
Previdência Social em razão de outra atividade ou a outro regime
previdenciário, militar ou civil, ainda que na condição de inativos;

 a Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, que “Dispõe sobre os Planos de Benefícios

da Previdência Social, e dá outras Providências”, em cujo art. 11 pode-se ler:

art. 11. São segurados obrigatórios da Previdência Social as


seguintes pessoas físicas:
V - como contribuinte individual:
c) o ministro de confissão religiosa e o membro de instituto de
vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, quando mantidos
pela entidade a que pertencem, salvo se filiados obrigatoriamente à
Previdência Social em razão de outra atividade ou a outro regime
previdenciário, militar ou civil, ainda que na condição de inativos;

 o Decreto n. 3.048, de 06 de maio de 1999, que “Aprova o Regulamento da

Previdência Social, e dá outras providências”, que dispõe em seu art. 9o :

São segurados obrigatórios da previdência social as seguintes


pessoas físicas:
V - como contribuinte individual:

105
c) o ministro de confissão religiosa e o membro de instituto de
vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, quando mantidos
pela entidade a que pertencem, salvo se filiados obrigatoriamente à
Previdência Social em razão de outra atividade ou a outro regime
previdenciário, militar ou civil, ainda que na condição de inativos;

Tomadas sob o aspecto de seu conteúdo jurídico, as expressões Confissão


Religiosa , Institutos de Vida Consagrada e Congregação ou Ordem Religiosa, teriam

sido decodificadas por intermédio da aludida Portaria n . 1.984/1980, de autoria do

Ministro do Trabalho e Assistência Social, apresentando um conteúdo inconciliável,


insistimos, com a Constituição vigente, senão vejamos:

art. 2. Para os efeitos da legislação citada, considera-se:


I – Confissão Religiosa, a instituição caracterizada por uma
comunidade
um conjunto dede indivíduos unidos por
normas expressas deum corpo adecumprir
conduta doutrina, obrigados
para consigo a
mesmo e para com os outros, exercidas por forma de cultos, traduzidas
em ritos, práticas e deveres para com o Ser Superior;
II – Instituto de Vida Consagrada, a sociedade aprovada por
legítima autoridade religiosa, na qual seus membros emitem votos públicos
ou assumem vínculos estáveis para servir à confissão religiosa adotada,
além do compromisso comunitário, independentemente de convivência
sob o mesmo teto;
III – Ordem ou Congregação Religiosa, a sociedade aprovada por
legítima autoridade religiosa, na qual os membros emitem os votos
públicos determinados, os quais poderão ser perpétuos ou temporários,
estes passíveis de renovação, e assumem o compromisso comunitário
regulamentar com convivência sob o mesmo teto;
V – membros de Instituto de Vida Consagrada, os que emitem voto
determinado, ou seu equivalente, devidamente aprovado pela autoridade
religiosa competente;
VI – membros de Ordem ou Congregação Religiosa, aqueles que
emitem ou professam, na mesma, os v otos adotados;

Parece-nos necessário, neste ponto, enfrenta r uma vez mais os riscos de um


exercício de definição, visto que, à evidência, o direito de inscrição do membro de
instituição religiosa no sistema de seguridade social encontra-se na dependência da
interpretação que se possa dar à portaria em comento.

Conforme aduzido no primeiro capítulo desta tese, a Constituição Federal

106
emprega o vocábulo igreja, pretendendo significar religião, equiparando-o a culto

religioso, nestes termos:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos


Municípios: estabelecer
embaraçar-lhes cultos religiosos
o funcionamento ou igrejas,
ou manter com subvencioná-los,
eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma
da lei, a colaboração de interesse público.

De outra parte, o art. 5 o, inciso VI, preceitua a liberdade de crença, de culto e

de liturgia.

Assim é que, seguindo uma trilha distinta da portaria em tela, a Carta Magna
não faz menção à doutrina religiosa, ou à religião legítima, tampouco à autoridade

religiosa legítima, além de ser indiferente à emissão de votos – independentemente


do sentido que se queira atribuir à tal expressão – como requisito para a indicação

ou nomeação de alguém como ministro religioso ou membro de instituição religiosa.

Ademais, a “Declaração para Eliminação de Todas as Formas de Intolerância


e de Discriminação baseada em Religião ou Crença” defere às confissões religiosas

o direito de estabelecerem exigências e padrões de acordo com cada religião ou


crença (art. 6 o, alínea “g”).

Ancorados, portanto, no sistema jurídico brasileiro e na normativa


internacional, delineamos a seguir uma proposta de definição para as expressões

Confissão Religiosa , Institutos de Vida Consagrada e Congregação ou Ordem

Religiosa :

Confissão Religiosa designa a instituição baseada em uma comunidade ou


associação de indivíduos unidos pela profissão de uma mesma crença ou

107
religião, vinculados por uma ética religiosa e cooperados para a consecução de

cultos, liturgias, cerimônias, ensinamentos, ritos, práticas, deveres religiosos e

angariamento de adeptos.

Consideram-se Institutos de Vida Consagrada e Ordem ou Congregação

Religiosa associação criada por confissão ou aprovada por autoridade ou ministro


religioso, na qual seus membros compartilhem atividades e serviços em favor da

religião ou crença adotada, em caráter permanente ou temporário.

3.4 Escolas confessionais e institutos teológicos

Na qualidade de serviço público, de natureza essencial, a prestação de


ensino pode ser oferecida diretamente pelo Estado, ou, por intermédio de terceiros,
tal como previsto no Texto Constitucional:

art. 209. O Ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as


seguintes condições:
I – cumprimento das normas gerais da educação nacional;
II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

No plano infraconstitucional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB

(Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) estabelece que:

art. 19. As instituições de ensino dos diferentes níveis classificam-


se nas seguintes categorias administrativas:
I - públicas, assim entendidas as criadas ou incorporadas,
mantidas e administradas pelo Poder Público;
II - privadas, assim entendidas as mantidas e administradas por
pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.
art. 20. As instituições privadas de ensino se enquadrarão nas
seguintes categorias:
I - particulares em sentido estrito, assim entendidas as que são
instituídas e mantidas por uma ou mais pessoas físicas ou jurídicas de
direito privado que não apresentem
II - comunitárias, as características
assim entendidas as que são dosinstituídas
incisos abaixo;
por
grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas, inclusive
cooperativas de professores e alunos que incluam na sua entidade
mantenedora representantes da comunidade.

108
III - confessionais, assim entendidas as que são instituídas por
grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que
atendem a orientação confessional e ideologia específicas e ao disposto
no inciso anterior;
IV - filantrópicas, na forma da lei.

Vale notar que ao lado das escolas particulares, comunitárias e filantrópicas,


figuram as confessionais, juridicamente qualificadas como privadas, mas
submetidas ao controle estatal.

Escólio de Nina Beatriz Ranieri assinala que:

Em síntese, ainda que se trate de uma função de natureza pública,


a atividade educacional privada, autorizada e controlada pelo Estado,
recebe o mesmo tratamento de qualquer outra atividade privada (o que
fica evidente em matéria fiscal e previdenciária).120

Trata-se, portanto, a escola confessional de uma instituição prestadora de


serviço educacional, cujos associados e/ou dirigentes compartilham uma
determinada confissão religiosa.

Note-se que o ingresso de um aluno em uma escola confessional, vinculada a

qualquer religião ou culto, pressupõe, por evidente, uma decisão prévia de

aprovação ou adesão dos responsáveis ou do próprio aluno aos dogmas e valores


adotados pela confissão religiosa que a mantém, pelo que pode-se inferir que a

escola confessional tem seu raio de influência circunscrito aos convertidos, aos fiéis,
ou, no mínimo, aos simpatizantes de uma dada religião.

Vale dizer, a prestação de serviço educacional não se confunde com


atividade religiosa propriamente dita, nem mesmo com instrução religiosa, sobretudo

120
Nina Beatriz RANIERI. Educação Superior, Direito e Estado – Na Lei de Diretrizes e Bases (Lei n.
9.394/96). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2000, p. 136.
109
se considerarmos o caso das universidades privadas confessionais cujos projetos

pedagógicos não impõem a adesão religiosa, nem exigem que os candidatos ou

alunos sejam filiados a quaisquer crenças ou religiões.

Neste ponto, convém lembrar que a Carta Suprema permite, admite a

possibilidade de destinação de recursos públicos para as escolas comunitárias,


filantrópicas ou confessionais, desde que comprovem atividade não-lucrativa e

apliquem os excedentes financeiros em educação.

Vejamos a disciplina constitucional da matéria:

públicas,art. 213. Os
podendo ser recursos
dirigidos apúblicos
escolas serão destinados
comunitárias, às escolas
confessionais ou
filantrópicas, definidas em lei, que:
I - comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus
excedentes financeiros em educação;
II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola
comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de
encerramento de suas atividades.
§ 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a
bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para
os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de
vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do
educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na
expansão de sua rede na localidade.
§ 2º As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão
receber apoio financeiro do Poder Público.

De seu turno, a Lei de Diretrizes e Bases dispõe que:

art. 77. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas,


podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou
filantrópicas que:
I - comprovem finalidade não-lucrativa e não distribuam resultados,
dividendos, bonificações, participações ou parcela de seu patrimônio sob
nenhuma forma ou pretexto;
II - apliquem seus excedentes financeiros em educação;
III - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola
comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de
encerramento de suas atividades;
IV - prestem contas ao Poder Público dos recursos recebidos.
§ 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a
bolsas de estudo para a educação básica, na forma da lei, para os que
demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e
cursos regulares de rede pública de domicílio do educando,
110
ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão
da sua rede local.
§ 2º As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão
receber apoio financeiro do Poder Público, inclusive mediante bolsas de
estudo.

Será útil recordar que a própria Carta Política determina que “a distribuição
dos recursos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino
obrigatório, nos termos do plano nacional de educação” (art. 212, § 2º).

Prescinde de maior esforço, portanto, a percepção de que escola confessional


não se confunde com confissão religiosa, consubstanciando uma prestação de
serviço e apresentando uma finalidade não-religiosa, de modo que sua previsão no

Texto Constitucional em nada contraria o princípio da laicidade nem a proibição de


financiamento público de atividade religiosa.

Um registro final deve ser dedicado aos institutos teológicos. Segundo


disposto no Decreto-Lei n. 1.051, de 21 de outubro de 1969:

art. 1 º Os portadores de diplomas de cursos realizados, com a


duração mínima de dois anos, em Seminários Maiores, Faculdades
Teológicas ou instituições equivalentes de qualquer confissão religiosa,
são autorizados
Ciências e Letras,a das
requerer e prestar
disciplinas que,exames, em Faculdade
constituindo de Filosofia,
parte do currículo de
curso de licenciatura, tenham sido estudadas para a obtenção dos
referidos diplomas.
art. 2 º. Em caso de aprovação nos exames preliminares, de que
trata o artigo anterior, os interessados poderão matricular-se na
Faculdade, desde que haja vaga, independentemente de concurso
vestibular, para concluir o curso, nas demais disciplinas do respectivo
currículo.

Como pode ser observado, a norma em exame autoriza as confissões


religiosas de qualquer matriz a criarem institutos teológicos com a finalidade de

iniciar, adestrar, capacitar ministros e/ou representantes, conferindo aos diplomados


vantagens no acesso a determinados cursos de nível superior.

111
Prosseguindo no exercício de taxinomia, passemos agora a enfrentar a noção

de ministro religioso, seguida da temática do casamento e do funeral religiosos.

Ministro Religioso: direitos e prerrogativas

Equiparado a trabalhador autônomo para efeito do direito previdenciário, o

Ministro Religioso contabiliza ainda um pequeno leque de direitos e prerrogativas


conferidos pelo sistema jurídico.

Preliminarmente cabe registrar entendimento fixado pelo Supremo Tribunal

Federal, segundo o qual compete exclusivamente ao Ministro Religioso deliberar


sobre as normas da confissão religiosa e da associação instituída para o respectivo
culto:

Compete exclusivamente à autoridade eclesiástica decidir a


questão sobre as normas da confissão religiosa, que devem ser
respeitadas por uma associação constituída para o culto (STF – 2 a Turma
– Recurso Extraordinário n. 31179/DF – Rel. Hahnemann Guimarães – j.
08.04.1958).

Ao Ministro Religioso é assegurado o direito de celebrar o casamento

religioso e emitir o certificado de realização da cerimônia, a prova do ato religioso,


nos termos do art. 4 o, da Lei n. 1.110, de 23 de maio de 1950, que “Regula o

Reconhecimento dos Efeitos Civis do Casamento Religioso”.

O direito de assistir ao fiel ou solicitante, e de acesso aos hospitais da rede

pública e privada, bem como aos estabelecimentos prisionais civis e militares,

também lhe é assegurado, nos termos da aludida Lei n. 9.982/2000.

O acesso às instituições de internação de adolescentes infratores é garantido

112
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Investido legalmente no estatuto de dignitário, o Ministro Religioso é tratado

pelo sistema jurídico com a mesma deferência dispensa da aos Ministros de Estado,
aos membros do Congresso Nacional, aos oficiais das forças armadas, aos

magistrados, advogados e promotores, ou aos diplomados por faculdade.

Assim é que o Código de Processo Penal (art. 295) e o Código de Processo

Penal Militar (art. 242) lhe asseguram o direito à prisão especial antes do trânsito em
julgado de sentença penal condenatória.

Veja-se decisão do Superior Tribunal de Justiça referente à matéria:

O Ministro de Confissão Religiosa faz jus à cela especial, quando


sujeito à prisão antes de condenação definitiva. Aplicação do art. 295, VIII,
CPP. Habeas Corpus parcialmente deferido (STJ – 5 a Turma – Habeas
Corpus n. 4.386/MG – Rel. Cid Flaquer Scartezzini – j. 16.04.1996).

Merece registro ainda que a norma processual penal outorga ao Ministro

Religioso o direito de ser isentado do serviço de jurado, mediante requerimento


apreciado pelo Juiz (Código de Processo Penal, art. 436).

Por último, devemos assinalar que ao Ministro Religioso estrangeiro é


garantido o direito de visto temporário, nos termos do Decreto n. 86.715, de 10 de

dezembro de 1981, que “Regulamenta a Lei n. 6.815, de 19 de Agosto de 1980, que

Define a Situação Jurídica do Estrangeiro no Brasil, Cria o Conselho Nacional de


Imigração e dá outras Providências”:

art. 22 - O visto temporário poderá ser concedido ao estrangeiro


que pretenda vir ao Brasil:
VII - na condição de ministro de confissão religiosa ou membro de

113
instituto de vida consagrada e de congregação ou ordem religiosa.

Casamento religioso

Será útil relembrar que no primeiro capítulo asseveramos que o Estado laico
caracteriza-se pela neutralidade estatal em face do fenômeno religioso, bem como

pela separação das esferas de domínio do Estado e da religião, de modo que


ordenamento jurídico e ordenamento religioso mantém uma relação de

independência – cada qual incidindo em dimensões diferentes da existência humana:


o primeiro, sobre o cidadão; o segundo, sobre o fiel.

Dissemos também que, no caso do sistema jurídico brasileiro, há apenas uma


hipótese, salvo engano, de um ato cuja ocorrência na seara estritamente religiosa é
reconhecida pelo sistema: o casamento religioso.

À exceção da Carta de 1891, que reconhecia tão somente o casamento civil


(art. 12, § 4°), e da Constituição de 1937, silente em relação à matéria, as demais
constituições cuidaram da previsão do casamento religioso, validando-o mediante

observação das prescrições legais.

A Carta de 1988 cuidou expressamente do casamento religioso:

“art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 2°. O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei”.

114
Walter Ceneviva leciona que “qualquer religião pode ser aceita desde que

autorizada ou não impedida de funcionar no País”. 121

O novo Código Civil disciplina o casamento religioso nos arts. 1.515 e 1.516.

A Lei n. 1.100, de 23 de maio de 1950, que “Regula o Reconhecimento dos

Efeitos Civis do Casamento Religioso”, lei especial, também normati za a matéria no


plano infraconstitucional, prevendo o casamento religioso realizado com habilitação

legal (art. 1 o) e sem habilitação prévia (art. 4o).

A inscrição do casamento religioso no registro civil é regulada pela Lei dos

Registros Públicos, a Lei n. 6.015/73, que contempla igualmente as duas


modalidades de casamento religioso: o casamento precedido de habilitação civil (art.
71), e aquele não-precedido de habilitação civil (art. 74).

Funeral religioso e sepultamento de Ministro Religioso

As resumidas considerações que pretendemos anotar a respeito do tema

anunciado no subtítulo devem ter início pelo resgate da Constituição de 1891, marco
jurídico na secularização dos cemitérios:

art. 72, § 5º. Os cemiterios terão caracter secular e serão


administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos
religiosos a pratica dos respectivos ritos em relação aos seus crentes,
desde que não offendam a moral publica e as leis.

De sua parte, a Constituição de 1934 introduziu no direito constitucional a


previsão de cemitérios particulares, mantidos por associações religiosas:

121
Walter CENEVIVA. Lei dos Registros Públicos Comentada. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1984, p.
138.
115
art. 113. item 7) Os cemiterios terão caracter secular e serão
administrados pela autoridade municipal, sendo livre a todos os cultos
religiosos a pratica dos respectivos ritos em relação aos seus crentes. As
associações religiosas poderão manter cemitérios particulares, sujeitos,
porém, a fiscalização das autoridades competentes. É-lhes prohibida a
recusa de sepultura onde não houver cemiterio secular.

Com a adoção da Carta de 1967, a temática dos cemitérios foi suprimida da

seara constitucional, de modo que a Lei Suprema é silente não somente em relação
a ela, como também no tocante à funerais ou sepultamentos.

Herança do aludido preceptivo do Texto de 1891, hodiernamente a matéria

dos cemitérios é disciplinada no âmbito do direito municipal, inserindo-se na esfera

da competência residual atribuída constitucionalmente aos municípios, sob a rubrica


de assunto de interesse local, tal como fixado na norma do art. 30, inciso I, da Lei
Maior: “Compete aos Municípios: legislar sobre assuntos de interesse local”.

No caso da capital de São Paulo, a matéria dos cemitérios é regulamentada

pelo Decreto n. 2.415, de 25 de fevereiro de 1954, sendo que os cemitérios


religiosos são disciplinados pelo Decreto n. 3.052, de 29 de dezembro de 1955, pela

Lei n. 5.082, de 19 de novembro de 1956 e pelo Decreto n. 8.979, de 4 de setembro


de 1970, além do primeiro citado.

À matéria federal coube estabelecer alguns parâmetros gerais, a saber:

 a Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a Lei dos Registros Públicos,

determina que:

Nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro


do lugar do falecimento, extraída após a lavratura do assento de óbito, em
vista do atestado de médico, se houver no lugar, ou, em caso contrário, de
duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte

116
(art. 77, caput).

 o Código Penal contém um capítulo denominado “Dos Crimes Contra o Respeito

aos Mortos”, criminalizando o impedimento ou perturbação de cerimônia funerária


(art. 209), a violação de sepultura (art. 210), a destruição, subtração e ocultação de

cadáver (art. 211), e o vilipêndio a cadáver (art. 212). De sua parte, a Lei das
Contravenções Penais incrimina a inumação ou exumação de cadáver (art. 67).

 a Lei n. 8.501, de 30 de novembro de 1992, prevê a possibilidade de destinação de

cadáver para fins de estudos e pesquisas nas faculdades de medicina, desde que a
família não o reclame no prazo de 30 dias;

 por fim, o Decreto n. 70.274, de 09 de março de 1972, que “Aprova as Normas do

Cerimonial Público e a Ordem Geral de Precedência”, disciplinando o luto oficial e


as cerimônias do funeral do Presidente da República e outras autoridades, com
sepultamento em cemitério comum mas acompanhado de rito complexo e

requintado.

Examinando o conceito de cerimônia funerária, Justino Adriano Farias da


Silva delimita:

De fato, cerimônia funerária, não é apenas enterro, mas o enterro,


é cerimônia funerária. Cerimônia funerária é conceito amplo que pode
encampar enterro, missa de corpo presente, salva de tiros, cortejo fúnebre,
encomendamento do corpo, etc. Funerais são as exéquias, as cerimônias
e honras fúnebres (...). 122

122
Justino Adriano FARIAS DA SILVA. Tratado de Direito Funerário . Tomo II. São Paulo: Método
Editora, 2000, p. 723.
117
Importa registrar que o direito municipal, baseando-nos no exemplo da capital

paulistana, outorga uma derradeira reverência aos ministros religiosos: o direito de

serem sepultados no interior dos templos.

Com efeito, a Lei Municipal n. 5.082, de 16 de dezembro de 1966, alterada

pela Lei n. 6.978/1966, apresenta a seguinte redação:

art. 2 º Mediante prévia autorização da Prefeitura, as organizações


religiosas, de notória tradição, podem construir criptas com jazigos
destinados ao sepultamento de seus altos dignitários e membros, ficando
a adequada manutenção daqueles locais a cargo das próprias
organizações, sob a fiscalização do órgão municipal competente.
Parágrafo único – Nas criptas a que se refere êste artigo, será
permitida, com a devida autorização da Prefeitura, a construção de
ossários e relicários, observadas a legislação vigente e normas que forem
aprovadas, atendendo, inclusive, aos aspectos arquitetônicos e higiênicos.

Em conclusão, caberia consignar que, do ângulo da matéria funerária, o


sistema jurídico brasileiro defere ao Ministro Religioso um tratamento singular,
exclusivo, incomparável com direito algum concedido a qualquer autoridade pública,
inclusive ao Presidente da República.

3.5 Liberdade de organização religiosa

Remonta ao período da Primeira República, mais especificamente ao governo

Deodoro da Fonseca, a edição do Decreto n. 119-A, de 07 de janeiro de 1890,


fixando o princípio da separação entre Estado e religião, deferindo às confissões

religiosas o direito de se organizarem segundo seu credo, e mantendo-as a salvo de


quaisquer ingerências estatais no tocante ao seu funcionamento.

Referido decreto apresenta a seguinte redação:

art. 2o A todas as confissões religiosas pertence por igual à


faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não

118
serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o
exercicio deste decreto.
art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os indivíduos nos
actos individuaes, sinão tambem as igrejas, associações e institutos em
que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se
constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua
disciplina, sem intervenção do poder publico.

Inspirada na parte final do preceito transcrito acima, a Constituição de 1988,

especificamente no art. 19, inciso I, proíbe a União, Estados, Distrito Federal e


Municípios de embaraçarem o funcionamento das confissões religiosas:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos


Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma
da lei, a colaboração de interesse público.

Segundo definição de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o verbo


123
embaraçar significa obstruir, impedir, tolher, perturbar ou estorvar , in casu , o
funcionamento dos cultos religiosos ou igrejas, ou, mais precisamente, das

confissões religiosas.

À evidência, a norma proibitiva comete ao Estado uma prestação negativa,

um papel passivo, uma obrigação de não-fazer, enfim, uma abstenção: não imiscuir-
se em matéria de organização religiosa, de sorte que ficam estendidos para o plano
da organização religiosa os mesmos efeitos da autonomia assegurada no plano

individual. A autonomia da liberdade de crença tomada como direito individual

projeta-se na autonomia da liberdade de crença considerada como direito coletivo,


expresso por meio da prática do culto, da associação, da instituição religiosa.

123
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 732.
119
Sob o aspecto de princípio organizativo, a separação Estado/religião obriga

aquele, entre outras prestações negativas, a abster-se de definir regras para

assuntos interna corporis da confissão ou da associação religiosa, conforme

inclusive já deliberou o Supremo Tribunal Federal:

Compete exclusivamente à autoridade eclesiástica decidir a


questão sobre as normas da confissão religiosa, que devem ser
respeitadas por uma associação constituída para o culto (STF – 2 a Turma
– Recurso Extraordinário n. 31179/DF – Rel. Hahnemann Guimarães – j.
08.04.1958).

Magistério de Celso Ribeiro Bastos e Samantha Meyer-Pflug, anota que

O nosso país, no tocante à organização religiosa, adotou o modelo


de separação entreIsto
não-confessional. Igreja e Estado.
significa O Estado
que ele brasileiro
se mantém é laico,àsoudiversas
indiferente seja,
igrejas que podem livremente constituir-se, para o que o Direito presta a
sua ajuda pelo conferimento do recurso à personalidade jurídica. Portanto,
as igrejas funcionam sob o manto da personalidade jurídica que lhes é
conferida nos termos da lei civil. 124

A título de ilustração, note-se que os contornos jurídicos da liberdade de


organização religiosa encontram interessante definição no art. 22 da Lei da
Liberdade Religiosa de Portugal (Dec. n. 66/VIII, de 06 de junho de 2001), nestes

termos:

1 – As igrejas e demais comunidade religiosas são livres na sua


organização, podendo dispor com autonomia sobre:
a) A formação, a composição, a competência e o funcionamento
dos seus órgãos;
b) A designação, funções e poderes dos seus representantes,
ministros, missionários e auxiliares religiosos;
c) Os direitos e deveres religiosos dos crentes, sem prejuízo da
liberdade religiosa de stes;
d) A adesão ou participação na fundação de federações ou
associações interconfessionais, com sede no País ou estrangeiro;
2 - São permitidas cláusulas de salvaguarda da identidade
religiosa e do carácter próprio da confissão professada;

124
Celso Ribeiro BASTOS e Samantha MEYER-PFLUG, Do Direito Fundamental à Liberdade de
Consciência e de Crença, p. 111.
120
As igrejas e demais comunidades religiosas inscritas podem com
autonomia fundar ou reconhecer igrejas ou comunidades religiosas de
âmbito regional ou local, institutos de vida consagrada e outros institutos
com a natureza de associações ou de fundações, para o exercício ou para
a manutenção das suas funções religiosas.

Em síntese, a liberdade de organização religiosa, decorrente do princípio da


separação do Estado da religião, implica o reconhecimento da autonomia, do poder
de autogoverno conferido às confissões religiosas, desde que, evidentemente, sejam

observadas as fronteiras da legalidade.

Autonomia da associação religiosa

Da experiência religiosa surgem organismos dotados de uma estrutura


jurídica própria, no nível institucional – a associação religiosa – pelo que pode-se
afirmar que a associação religiosa é a personificação civil e jurídica da confissão

religiosa.

A inscrição dos estatutos e atos constitutivos da associação religiosa no

registro das pessoas jurídicas implica o reconhecimento, por parte do Estado, de sua

existência legal, a partir do que lhe é atribuída uma personalidade civil e reconhecida
sua capacidade para ser titular de direitos.

Forçoso é reconhecer que sob o prisma da autonomia, aparentemente a


associação religiosa teria recebido o mesmo tratamento dispensado pela

Constituição Federal a toda e qualquer associação, conforme fixado no art. 5 o, inciso

XVIII: “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem

de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”.

121
Todavia, ao vedar a interposição de embaraços ao funcionamento dos cultos

religiosos ou igrejas, vale dizer, das confissões religiosas, endereçando-lhes um

preceito específico (art. 19, I), por certo pretendeu o constituinte robustecer o

comando constitucional destinado a refrear quaisquer ingerências estatais no seu


modus operandi.

No plano constitucional, a liberdade de associação vem disciplinada nos

seguintes preceptivos, todos arrolados no art. 5o da Lei Suprema:

é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de


caráter paramilitar (inciso XVII);
a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas
independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em sei
funcionamento (inciso XVIII);
as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou
ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no
primeiro caso, o trânsito em julgado (inciso XIX);
ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer
associado (inciso XX);
as entidades associativas, quando expressamente autorizadas,
têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou
extrajudicialmente (inciso XXI).

Indagando do conteúdo jurídico da liberdade de associação, José Afonso da

Silva destaca que

A liberdade de associação, de acordo com o dispositivo


constitucional em exame, contém quatro direitos: o de criar associação,
que não depende de autorização; o de aderir a qualquer associação, pois
ninguém poderá ser obrigado a associar-se; o de desligar-se de
associação, porque ninguém poderá ser compelido a permanecer
associado; e o de dissolver espontaneamente a associação, já que não se
pode compelir a associação de existir.
Duas garantias coletivas (correlatas ao direito coletivo de associar-
se) são estatuídas em favor da liberdade de associar-se: a) veda-se a
interferência estatal no funcionamento das associações, nem, nos termos
da lei, de cooperativa; b) as associações só poderão ser
compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por
decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, trânsito em julgado.125

125
José AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, pp. 241-242.
122
A liberdade de associação, como visto, subordina-se a duas restrições

constitucionais, quais sejam, a determinação de que o objetivo seja lícito e a

proibição de que tenha caráter paramilitar.

J. M. Othon Sidou divisa associação como uma “Reunião de pessoas

naturais que se obrigam a combinar esforços para fins comuns, dotada de


personalidade distinta da de seus componentes”. 126

Inovando a disciplina da matéria, o novo Código Civil distingue nitidamente


associação de sociedade, sendo que a primeira caracteriza-se pelo desenvolvimento
de atividades diversas da obtenção de lucro:

“Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para


fins não econômicos. Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e

obrigações recíprocos” (Código Civil, art. 53).

Comentando esta norma, informam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de


Andrade que “As associações não se formam por contrato, mas pela união de

pessoas, sem direitos e obrigações recíprocos. (...) A sociedade se forma por


contrato plurilateral. A associação não é sociedade e não visa lucro”. 127

Diploma datado da Primeira República, a Lei n. 173, de 10 de setembro de

1893, promulgada por Floriano Peixoto, foi o primeiro a tratar especificamente da


matéria da associação religiosa, em cujo art. 1 o pode-se ler:

126
J. M. Othon SIDOU. Dicionário Jurídico – Academia Brasile ira de Letras Jurídicas. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 55.
127
Nelson NERY JUNIOR e Rosa Maria de ANDRADE NERY. Novo Código Civil e Legislação
Extravagante Anotados . São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 36.
123
As associações que se fundarem para fins religiosos, moraes,
scientificos, artisticos, politicos, ou de simples recreio, poderão adquirir
individualidade jurídica, inscrevendo o contracto social no registro civil da
circumscripção onde estabelecerem sua sede.

A definição de associação religiosa prende-se, portanto, a um critério


teleológico, pelo que pode ser demarcada como a reunião de pessoas naturais

unidas pela profissão de uma mesma crença ou religião, vinculadas por uma ética
religiosa e cooperados para a consecução de cultos, liturgias, cerimônias, ritos,

práticas e deveres religiosos.

Neste sentido, os fins a que alude a supracitada Lei n. 173/1893, referem-se a


atividades e serviços empreendidos em favor da religião ou crença adotada –
finalidade religiosa – que não se confundem, por exemplo, com escolas
confessionais ou hospitais mantidos por associações religiosas, visto que, nestes

casos, a finalidade assume configuração típica de prestação de serviço.

Cabe pôr em realce que a Lei n. 9.790, de 23 de março de 1999, que estatuiu
as denominadas “Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP’s”,

proíbe “as instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos,


práticas e visões devocionais e confessionais” de se qualificarem como OSCIP’s,

ressaltando que as associações religiosas possuem caráter privado, de interesse


exclusivamente privado.

O registro da associação religiosa

A associação religiosa adquire personalidade civil com a inscrição dos


estatutos e atos constitutivos no registro das pessoas jurídicas.

124
O regime imposto pelo novo Código Civil ampliou os pré-requisitos para a

conformação dos estatutos, conforme estatuído no art. 54 usque 61 daquele diploma.

A Lei de Registros Públicos disciplina o registro civil das pessoas jurídicas no


seu art. 114 e seguintes.

Processado o assento, a confissão religiosa adquire o status de pessoa


jurídica de direito privado, projetando-se numa associação religiosa e exercendo, a

partir desta, os direitos e deveres que o sistema jurídico lhe confere.

É o registro, portanto, a única exigência fixada pelo sistema para autorizar o

funcionamento de uma associação religiosa, além, naturalmente, da vinculação à


legalidade e do cumprimento das exigências de polícia administrativa, entre as quais
o deferimento do alvará de funcionamento, inspeção do Corpo de Bombeiros e

observância das demais posturas municipais pertinentes.

Imunidade tributária do templo de qualquer culto

Leciona Mircea Eliade que


Nas grandes civilizações orientais – da Mesopotâmia e do Egito à
China e à Índia – o templo recebeu uma nova e importante valorização:
não é somente uma imago mundi, mas também a reprodução terrestre de
um modelo transcendente. O judaísmo herdou essa concepção
paleoriental do Templo como a cópia de um arquétipo celeste. 128

128
Mircea ELIADE. O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões . São Paulo: Martins Fontes,
1992, p. 55.
125
O templo é, por excelência, o espaço físico, a edificação especialmente

destinada ao culto religioso, no qual são realizadas as cerimônias, práticas, ritos,

deveres religiosos – o “espaço do sagrado”, diria Mircea Eliade.

Norma do art. 150, inciso VI, alínea “b”, da Carta Magna dispõe que:

“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à


União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: instituir impostos sobre:

templos de qualquer culto”.

Convém recordar que imunidade configura regra constitucional de

competência negativa, em razão da qual o Estado não exerce competência tributária,


distinguindo-se da isenção, regra de natureza infraconstitucional, pela qual a lei
exclui certas situações da incidência da obrigação tributária.

Segundo Aliomar Baleeiro, “Um edifício só é templo se o completam as


instalações ou pertenças adequadas àquele fim, ou se o utilizam efetivamente no
culto ou prática religiosa”.129

Dada a grandiloqüência da assertiva, valerá a pena repetirmos aqui uma


interessante formulação de Paulo de Barros Carvalho:

Estão imunes templos de qualquer culto. Trata-se de reafirmação


do princípio da liberdade de crença e prática religiosa, que a Constituição
prestigia no art. 5 o, VI a VIII. Nenhum óbice há de ser criado para impedir
ou dificultar esse direito de todo cidadão. E entendeu o constituinte de
eximi-lo também do ônus representado pela exigência de impostos (art.
150, VI, b ). Dúvidas surgiram sobre a amplitude semântica do vocábulo
culto , pois, na conformidade da acepção que tomamos, a outra palavra –
templo – ficará prejudicada. Somos por uma interpretação extremamente
lassa da locução culto religioso. Cabem no campo de sua irradiação

129
Aliomar BALEEIRO, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, p. 183.
126
semântica, todas as formas racionalmente possíveis de manifestação
organizada de religiosidade, por mais estrambóticas, extravagantes ou
exóticas que sejam. E as edificações onde se realizarem esses rituais
haverão de ser consideradas templos.130

No plano infraconstitucional, a matéria da imunidade tributária do templo é


disciplinada pela Lei n. 3.193, de 4 de julho de 1957, que “Dispõe sobre a Aplicação

do art. 31, V, b, da Constituição Federal, que Isenta de Imposto Templos de qualquer


Culto, Bens e Serviços de Partidos Políticos, Instituições de Educação e de

Assistência Social”.

Veja-se a jurisprudência sobre a matéria:

Imposto Predial. Templo Religioso. Necessidade de requerimento


administrativo para reconhecimento do direito de não pagar. Dentre os
valores protegidos contra a tributação encontram-se os espirituais, sendo
vedado cobrar ou criar impostos sobre templos religiosos até porque, em
caso contrário, a própria liberdade religiosa ficaria ao sabor de vicissitudes
temporárias e casuísticas. Entretanto, para livrar-se da exação fiscal, a
interessada deve obedecer ao que prescreve a lei, utilizando-se de
requerimento fundamentado, junto ao administrador, não bastando quedar-
se inerte e forrar-se com alvará de construção mesmo porque o alvará ou
o habite-se não significam necessariamente que o imóvel esteja sendo
usado para fins religiosos (TJ/DF – 2ª Turma Cível – Apelação Cível n.
104332 – Rel. Getúlio Moraes Oliveira – j. 09.03.98).
Direito Tributário. Entidade de assistência social vinculada à
entidade religiosa. Imunidade tributária. 1. As entidades de assistência
social gozam de imunidade tributária em relação aos impostos predial e
territorial urbano no que diz respeito aos prédios diretamente vinculados a
seus objetivos institucionais. 2. Em relação aos templos religiosos, a
Constituição Federal quis resguardar através da imunidade tributária
constante do art. 150, a ampla liberdade religiosa e de culto, tornando-a
livre da incidência de impostos em geral. Portanto, são insuscetíveis de
incidência tributária os locais destinados ao culto religioso, assim
entendidos aqueles onde se reúnem pessoas com a finalidade de
professar a fé religiosa (TJ/DF – 1ª Câmara Cível – Embargos Infringentes
n. 136909 – Rel. Ana Maria Duarte Amarante – j. 25.10.2000).
Imposto Predial e Territorial Urbano. Templo religioso. Lançamento
sobre casas, salões paroquiais e centros sociais. Consideração como
pertenças do templo, relacionados com a atividade do culto. Artigo 150,
par. 4 da Constituição Federal 1988 – imunidade. Recurso parcialmente
provido para anularem-se os lançamentos. Voto Vencido (1º TAC/SP – 5ª
Câmara – Apelação Civil n. 0473733.5 – Rel. Maurício Vidigal – j.
16.10.91).

130
Paulo de BARROS CARVALHO, Curso de Direito Tributário, p. 183.
127
Interessante registrar ainda que a Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991, a

Lei do Inquilinato, assegura a proteção locatícia dos imóveis utilizados por entidades

religiosas devidamente registradas, entre outras:

art. 53. Nas locações de imóveis utilizados por hospitais, unidades


sanitárias oficiais, asilos, estabelecimentos de saúde e de ensino
autorizados e fiscalizados pelo Poder Público, bem como por entidades
religiosas devidamente registradas, o contrato somente poderá ser
rescindido: I - nas hipóteses do art. 9º; II - se o proprietário, promissário-
comprador ou promissário cessionário, em caráter irrevogável e imitido na
posse, com título registrado, que haja quitado o preço da promessa ou
que, não o tendo feito, seja autorizado pelo proprietário, pedir o imóvel
para demolição, edificação licenciada ou reforma que venha a resultar em
aumento mínimo de cinqüenta por cento da área útil.

Trata-se de um benefício legal que visa a proteger a permanência daquelas

entidades, restringindo as hipóteses que autorizam o despejo e impondo limitações


ao direito de propriedade.

Convém pôr em realce ainda que, no caso do município de São Paulo, a Lei
Municipal n. 11.335, de 30 de dezembro de 1992, concede aos templos de qualquer
culto a isenção das taxas de conservação de vias e logradouros públicos, de

limpeza pública e de combate a sinistros:

Ficam isentos das Taxas de Conservação de Vias e Logradouros


Públicos, de Limpeza Pública e de Combate a Sinistros, os templos de
qualquer culto, os conventos, os seminários, as casas paroquiais e
pastorais e os imóveis integrantes do patrimônio das instituições de
assistência social (art. 1º).

Em conclusão, vale ressaltar que não contente em disciplinar

minudentemente a liberdade de culto, o sistema jurídico tratou também de assegurar


a máxima proteção ao templo religioso, seja impedindo o Estado de valer-se de

instrumentos tributários para imiscuir-se no seu funcionamento, seja estabelecendo

128
benefícios endereçados indistintamente a todas as confissões religiosas.

Explorado o conteúdo jurídico da liberdade de crença, de culto, de liturgia e

de organização religiosa, doravante cabe proceder a uma breve excursão pela


temática da defesa da liberdade de crença.

129
CAPÍTULO 4

DEFESA DA LIBERDADE DE CRENÇA, DE CULTO, DE LITURGIA E


DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA

Na qualidade de direito subjetivo, a liberdade de crença encontra um conjunto

de garantias no sistema jurídico, os quais se traduzem em medidas hábeis para


obstar ou reparar a violação do direito.

Seja na esfera do controle da constitucionalidade, da legalidade, na esfera


administrativa, ou na jurisdição civil ou criminal, o sistema defere aos indivíduos,
expressa ou implicitamente, um expressivo leque de procedimentos de defesa do

direito.

Deste modo, reputamos oportuno comentar algumas das medidas de defesa

dos interesses e direitos dos indivíduos na seara da liberdade de crença, iniciando

pela exposição esquemática de alguns dos bens jurídicos tutelados pela liberdade
de crença.

4.1 O bem jurídico tutelado

Derivado do latim bene, cujo significado remete à idéia de virtude, felicidade,


utilidade e riqueza, o termo bem, espécie do gênero coisa, refere-se a objetos,

materiais ou imateriais, aos quais se atribui especial valor, seja porque necessários
para a existência, o desenvolvimento e o bem-estar humano, seja porque dotados

de conteúdo ético imprescindível para a convivência em sociedade. Assim, o grau de


proeminência com que determinado bem é socialmente considerado, responde pela

130
sua inscrição ou não na galeria dos bens juridicamente protegidos.

Luiz Régis Prado assinala que

de que oAlegislador
conceituação
elevamaterial de bem
à categoria jurídico
de bem implica
jurídico o reconhecimento
o que já na realidade
social se mostra como um valor. Esta circunstância é intrínseca à norma
constitucional, cuja virtude não é outra que a de retratar o que constitui os
fundamentos e os valores de uma determinada época. Não cria os valores
a que se refere, mas se limita a proclamá-los e dar-lhes um especial
tratamento jurídico.131

Façamos então uma breve visita aos conceitos de laicismo, separação do

Estado da religião, igualdade (não-discriminação), liberdade, dignidade da pessoa

humana, honra e proibição de tratamento degradante, sublinhando algumas das


principais notas caracterizadoras destes bens juridicamente protegidos pelo princípio
constitucional da liberdade de crença.

Devemos lembrar que a função de não-discriminação já foi enfrentada no

primeiro capítulo, que uma definição de liberdade pode ser localizada no capítulo

segundo, e que a tolerância religiosa será comentada no próximo subtítulo.

Princípio da laicidade e princípio da separação do Estado da religião

O princípio da laicidade estatal, plasmado no art. 19, I, da Lei Fundamental,


proíbe o Estado de estabelecer, adotar, financiar ou mesmo estabelecer vínculos

com qualquer religião ou culto, ressalvada a hipótese de autorização definida em lei,

visando o interesse público.

131
Luiz Regis PRADO. Bem Jurídico-Penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribun ais,
1997, p. 76.
131
O princípio da separação, igualmente consignado no art. 19, I, da Constituição

vigente, impede o Estado, por um lado, de estabelecer vínculos com qualquer

religião ou culto e, por outro, de embaraçar-lhes o funcionamento, abstendo-se de

qualquer ingerência nos seus assuntos internos.

Igualdade e liberdade

Grosso modo podemos definir igualdade, no sentido de não-discriminação,

como a proibição de discriminação na elaboração normativa, na execução e na

aplicação da lei, sem olvidar que também os particulares são destinatários da norma

da igualdade, pelo que são proibidos de usar a crença religiosa como fator de
discrímen.

A liberdade pode ser definida como o direito de imunidade de coação, no

sentido de que ninguém é obrigado a adotar uma crença ou religião senão por

vontade própria; de outra parte, todos são livres para exercer plenamente a
liberdade de crença, de culto, de liturgia e de organização religiosa.

Dignidade da pessoa humana

Segundo enunciado do art. 1 o, inciso III, da Constituição Federal, a promoção

da dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos da República e do

Estado Democrático de Direito.

Na dicção do art. 1 o da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “Todos

as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e

132
consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

Immanuel Kant, arguto pensador das práticas virtuosas, assim se refere à

dignidade de que todos os humanos são portadores: “Age de tal maneira que trates
a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um

fim e nunca como um meio”. 132

Em referência à matéria, leciona Franco Montoro que:

a pessoa humana é o valor-fonte de todos os direitos. É ela a


razão de ser e o fim de todas as normas jurídicas. As exigências
fundamentais de sua natureza, como o direito à vida, à liberdade
responsável, à convivência social, à família, aos bens, etc. constituem
direitos subjetivos no plano da justiça, comutativa, distributiva ou social.133

Temos assim que dignidade da pessoa designa um atributo inalienável dos


seres humanos, uma essência ético-espiritual de que todos são portadores e que os

qualifica como sujeitos de direitos.

Honra

O direito à honra tem assento constitucional na norma do art. 5 , inciso V.


Segundo Celso Bastos, “a proteção à honra consiste no direito de não ser
ofendido ou lesado na sua dignidade ou consideração social”. 134

132
Immanuel KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, s. d. , p. 68.
133
André Franco MONTORO, Introdução à Ciência do Direito, p. 442.
134
Celso Ribeiro BASTOS, Curso de Direito Constitucional , p. 195
133
No dizer de José Afonso da Silva, “A honra é o conjunto de qualidades que

caracterizam a dignidade da pessoa, o respeito dos concidadãos, o bom nome, a

reputação. É direito fundamental da pessoa resguardar essas qualidades”.135

A dogmática penal refere-se ao conceito de honra objetiva, compreendida

como a imagem de que o indivíduo d esfruta perante a comunidade, a reputação, em


oposição à honra subjetiva, conceituada como a imagem que o indivíduo faz de si

próprio, a auto-estima.

Proibição de tratamento degradante

O inciso III, do art. 5 o, da Lei Fundamental, proíbe o tratamento degradante.

O verbete degradante, do Dicionário Aurélio, denota aquilo que degrada,


aviltante, infamante, degradador. 136

o
Vale lembrar que a parte final do aludido art. 1 da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, prescreve que a interação humana deve ser pautada pelo espírito

de fraternidade.
Convém assinalar também que o Código Penal incrimina o constrangimento
ilegal (CP, art. 146), consistente no ato que coage a vítima a não fazer o que a lei

permite, ou a fazer o que a lei não manda.

135
José AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 191.
136
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 616.
134
4.2 Tolerância religiosa

Denis Diderot demarca duas facetas distintas do fenômeno da tolerância:

A palavra
aquela paixão tolerância
intensa que movegeralmente
as pessoaséaocompreendida para contra
ódio e perseguição referir
aqueles tidos como errados. Mas para não misturar coisas diferentes, é
necessário distinguir os dois tipos de intolerância - a eclesiástica e a civil.
A intolerância eclesiástica consiste em considerar como falsa toda religião
que não seja a sua, e em proclamar esta religião como errática sem
quaisquer inibições ou medo, sem respeito para com os outros, e até
mesmo sem preocupação pela preservação da própria vida. (...) A
intolerância civil consiste em romper todas as relações, e perseguir, por
meios violentos, aqueles cujo modo de pensar acerca de Deus e sua
veneração seja diferente do seu próprio. 137

Para o enciclopedista francês, a intolerância eclesiástica seria algo como uma

atitude, uma construção mental, cuja manifestação por meio de atos, de conduta,
seria então denominada intolerância civil.

Como antítese da intolerância, o verbete tolerância assume o seguinte

significado no Dicionário Oxford de Filosofia: “Abstermo-nos de agir contra o que


reprovamos, contra o que nos é politicamente contrário, ou contra o que é diferente

de nós. A tolerância em matéria religiosa é um dos bastiões do Estado democrático

moderno”.138

Segundo Norberto Bobbio:

Quando se fala de tolerância nesse seu significado histórico


predominante, o que se tem em mente é o problema da convivência entre
crenças (primeiro religiosas, depois também políticas) diversas. Hoje, o
conceito de tolerância é generalizado para o problema da convivência das
minorias étnicas, linguísticas, raciais, para os que são chamados

137
Denis DIDEROT. Political Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 29.
138
Simon BLACKBURN, Dicionário Oxford de Filosofia, p. 390.
135
geralmente de ‘diferentes’, como, por exemplo, os homossexuais, os
loucos ou os deficientes.139

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira atribui ao termo pelo menos dois


significados de interesse mais imediato:

1. tendência a admitir modos de pensar, de agir e de sentir que


diferem das de um indivíduo ou de grupos deter minados políticos ou
religiosos; 2. Margem especificada como admissível para o erro em uma
medida ou discrepância em relação a um padrão.140

Do mesmo modo, o sentido legal, usualmente atribuído ao vocábulo, denota


sua carga negativa, indicando, no mais das vezes, conformismo, condescendência

com o mal, complacência, enfim, resignação em face da má sorte.

Exemplo ilustrativo é a norma do art. 189 da Consolidação da Legislação do


Trabalho, que trata das atividades insalubres e se refere a limites de tolerância para

os agentes nocivos à saúde.

Em suma, tolerância encerra o sentido básico de abstenção de hostilidades

para com algo censurável por princípio, o que pressupõe a existência, decerto

controversa, de um paradigma, in casu, religioso.

Note-se que o termo tolerância guarda manifesta analogia com os preceitos

constitucionais do pluralismo político (CF, art. 1 o, V) e do pluralismo de idéias (CF,


art. 206, VI).

A despeito de sua discutível aplicação para qualificar a interação humana,

não se pode olvidar que o sistema jurídico a ele se refere especificamente para

139
Norberto BOBBIO, A Era dos Direitos, p. 203.
140
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 1.686.
136
indicar abstenção de hostilidades em relação à diversidade, à alteridade. Deste teor
o
é a norma do art. 3 da Lei 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação: “O

ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: IV – respeito à liberdade

e apreço à tolerância”.

Acrescente-se ainda o uso do vocábulo no art. VII da Convenção


Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial 141, e

no art. V, alínea “a”, da Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no


Campo do Ensino.142

É possível pensar, contudo, que mais do que disseminar um possível

sentimento de tolerância, o sistema educacional pode e deve preparar os indivíduos


para a valorização da diversidade humana, tomando-a em sua devida dimensão –

um dos maiores patrimônios da humanidade – e vivenciando-a em sua


grandiosidade e plenitude.

4.3 Tutela civil da libe rdade de crença, de culto, de litu rgia e de organização

religiosa

Norma do art. 5 o, inciso V, da Constituição Federal, prescreve a garantia da

indenização por dano material, moral ou à imagem.

No plano infraconstitucional, o esquema básico da responsabilidade civil por


danos encontra previsão na norma do art. 927, parágrafo único, do Código Civil:

141
Promulgada pelo Decreto n. 65.810, de 8 de dezembro de 1969.
142
Promulgada pelo Decreto n. 63.223, de 6 de setembro de 1969.
137
Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo. Haverá obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a
atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, riscos para os direitos de outrem.

Conforme magistério de Maria Helena Diniz:

A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem


uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em
razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde,
por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal.143

A doutrina aponta quatro elementos constitutivos da responsabilidade civil lato


sensu , quais sejam: 1. conduta (ação ou omissão); 2. culpa (intenção/dolo,

imprudência, imperícia ou negligência); 3. nexo de causalidade; 4. resultado/dano.

Qualifica-se como subjetiva a responsabilidade, quando esta exige


demonstração de culpa, e objetiva, quando assentada na noção de culpa presumida.

Responsabilidade civil objetiva por discriminação religiosa na educação

O Decreto n. 63.223, de 06 de setembro de 1968, introduziu no sistema

jurídico brasileiro a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo


do Ensino:

art. 1 º. Para os fins da presente Convenção, o termo


“discriminação” abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou
preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
publica ou qualquer outra opinião, srcem nacional ou social, condição
econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a
igualdade de tratamento em matéria de ensino e, principalmente:
a) privar qualquer pessoa ou grupo de pess oas do acesso aos
diversos tipos ou graus de ensino; b) limitar a nível inferior a educação de
qualquer pessoa ou grupo; c) sob reserva do disposto no artigo 2 da
presente Convenção, instituir ou manter sistemas ou estabelecimentos de

143
Maria Helena DINIZ. Curso de Direito Civil Brasileiro – Responsabilidade Civil . v. 7, 8. ed. São
Paulo: Saraiva, 1994, p. 29.
138
ensino separados para pessoas ou grupos de pessoas; ou d) de impor a
qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições incompatíveis com a
dignidade do homem.

Maria Helena Diniz ressalta que naqueles casos previstos expressamente em

lei, o sistema jurídico brasileiro reconhece a responsabilidade objetiva, merecendo


destaque a responsabilidade objetiva do Estado (CF, art. 37, § 6º), atividades

nucleares (CF, art. 21, XXIII, “c”); Código Brasileiro do Ar, acidentes de trabalho (Lei
8.212/91) e o Código de Defesa do Consumidor.

Em referência à matéria, anota Guilherme Couto de Castro:

A responsabilidade objetiva é referida, normalmente, como a


responsabilidade sem culpa. Em termos de maior apuro técnico, o melhor
é defini-la como a ocorrente independente de culpa; ou seja, esta pode ou
não existir. Em vários casos, a opção legislativa será não a de pôr em
relevo a falha do comportamento, mas sim o dano, atento primordialmente
à necessidade reparatória. Em tais casos, pode o ato ser lícito ou ilícito,
pode ou não haver conduta culposa, porém, aferido o necessário liame
jurídico entre conduta e dano, existe obrigação de indenizar.144

Prescindível realçar que os preceptivos tratado em tela, emprega a conjunção


alternativa, o conectivo ou, entre objetivo e efeito, é dizer, entre a culpa e o dano.

Valendo-nos da Lógica Jurídica, temos que a regra em questão configura, em


notação simbólica, [c v d], cujo cálculo resulta em uma disjunção includente, isto é,

um enunciado cuja validade depende do valor de verdade de apenas um dos seus


componentes. Em suma, havendo dano, haverá o dever de indenizar, conforme
preconiza inclusive o art. VI da Convenção em exame.

144
Guilherme Couto de CASTRO. A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro – O Papel
da Culpa em seu Contexto. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 28.
139
Resta evidenciado, assim, que o referido Decreto n. 63.223/1968 introduziu

no ordenamento jurídico brasileiro a previsão legal expressa de responsabilidade

civil objetiva por discriminação religiosa na educação.

No dizer de Silvio Rodrigues,

As presunções de culpa, ou mesmo as chamadas presunções de


responsabilidade, têm por escopo precípuo a reversão do ônus da prova.
Em vez de a vítima ter que provar a culpa do agente causador do dano, é
este quem deverá provar a sua não-culpa ou a existência de uma
excludente de responsabilidade. (...) Nota-se, assim, que o mecanismo
das presunções visa facilitar a vítima na tarefa de obter ressarcimento,
alforriando-o do pesadíssimo ônus, que srcinalmente lhe incumbia, de
provar a culpa do agente causador do dano. 145

Acrescenta Maria Helena Diniz: “A vítima deverá apenas provar o nexo causal,
não se admitindo qualquer escusa subjetiva do imputado”. 146

Por evidente, a supressão do elemento subjetivo da culpa na aferição da

responsabilidade não exclui a verificação da conduta e do dano, bem como a


relação de causalidade entre ambos.

A Ação Civil Pública

A Ação Civil Pública, disciplinada pela Lei 7.347/85, encontra previsão


constitucional no dispositivo do art. 129, inciso III.

Cumpre dizer preliminarmente que, a rigor, a ação será denominada ação civil
pública se proposta pelo Ministério Público, ou, ação coletiva, se intentada por

145
Silvio RODRIGUES. Direito Civil - Responsabilidade Civil. v. IV, 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1993,
pp. 170-171.
146
Maria Helena DINIZ, Curso de Direito Civil Brasileiro – Responsabilidade Civil, p. 41.
140
qualquer das demais pessoas legitimadas, inclusive as associações civis (CF, art. 5 o,

XXI, e Lei 7.347/85, art. 5 o, II).

O art. 1 o da aludida Lei de Ação Civil Pública apresenta a seguinte


redação:as
popular, Regem-se
ações depelas disposições desta
responsabilidade Lei, sem
por danos prejuízo
morais da ação
e patrimoniais
causados: I - ao meio ambiente; II - ao consumidor; III - a bens e direitos
de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV - a qualquer
outro interesse difuso ou coletivo; V - por infração da ordem econômica e
da economia popular.

Note-se que a norma de extensão do inciso IV refere “qualquer outro

interesse difuso ou coletivo”.

Hugo Nigro Mazzilli anota que:

Entre o interesse público e o interesse privado, há interesses


metaindividuais ou coletivos, referentes a um grupo de pessoas (como os
condôminos de um edifício, os sócios de uma empresa, os membros de
uma equipe esportiva, os empregados do mesmo patrão). São interesses
que excedem o âmbito estritamente individual mas não chegam a
constituir interesse público. 147

Convém lembrar, parafraseando Rodolfo de Camargo Mancuso, que

individual é o interesse cuja fruição se esgota no círculo de atuação do seu


148
destinatário.

Quanto à classificação dos interesses metaindividuais, vale assinalar


demarcação usual na doutrina:

Interesses difusos: grupo indeterminável de pessoas, ligadas por situação de fato,

cujo objeto do interesse é indivisível;

147
Hugo Nigro MAZZILLI. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 10. ed. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 4.
148
Rodolfo de Camargo MANCUSO. Interesses Difusos – Conceito e Legitimação para Agir . 4. ed.
São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1997, p. 45.
141
Interesses coletivos: grupo determinável de pessoas, enlaçadas por relação jurídica,

cujo objeto do interesse é indivisível;

Interesses individuais homogêneos: grupo determinável de pessoas, ligadas por


situação de fato, cujo objeto do interesse é divisível.

Sobre ser controversa a conceituação de interesse, sobretudo interesse


jurídico, aduz Hans Kelsen:

Do ponto de vista de uma concepção que encare o Direito como


norma ou sistema de normas, porém, o direito subjetivo não pode ser um
interesse – protegido pelo Direito - , mas apenas a proteção ou tutela
deste interesse, por parte do Direito objetivo. E esta proteção consiste no
fato de a ordem jurídica ligar à ofensa desse interesse uma sanção, quer
dizer, no fato de ela estatuir o dever de não lesar esse interesse. 149

Em referência à matéria, ensina Franco Montoro que:

No direito subjetivo há sempre um bem e interesse, mas o direito


não é esse bem ou interesse; não se confunde com ele. No direito à vida,
no direito de propriedade, no direito de legislar, o direito não consiste
propriamente na vida, na propriedade ou na legislação, objetivamente
considerados, mas numa relação entre esses bens e a pessoa. O bem ou
interesse – isto é a vida, as coisas ou o ato de legislar – são o ‘objeto’ do
direito subjetivo.150

Temos pois que objeto do interesse coletivo poderá ser a igualdade, a não-

discriminação, a incolumidade, a proibição de tratamento degradante, etc., mesmo


porque, segundo Hugo Nigro Mazzilli, inexiste sistema de taxatividade para a defesa
de interesses difusos e coletivos, de sorte que, além das hipóteses expressamente

149
Hans KELSEN. Teoria Pura do Direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 149.
150
André Franco MONTORO, Introdução à Ciência do Direito, p. 448.
142
previstas em lei, a Ação Civil Pública presta-se à defesa de qualquer outro interesse

difuso, coletivo ou individual homogêneo. 151

Em conclusão devemos assinalar que também o Mandado de Segurança e a


Ação Popular figuram, entre outras, como medidas cabíveis para a defesa judicial da

liberdade de crença.

4.4 Tutela penal da lib erdade de crença, de culto, de liturgia e de organização

religiosa

Para além de configurar uma infração administrativa, ou um ilícito civil, a

violação ou ameaça de violação de direitos fundada em critério religioso configura,


em determinadas hipóteses, um ilícito penal.

Tanto o Código Penal quanto leis esparsas tratam da matéria, conforme

passamos a aduzir.

4.5 A qualificação da discriminação religiosa como espécie de prática do

racismo

No momento em que estamos concluindo este trabalho, o Supremo Tribunal


Federal tomou uma decisão cujo impacto na disciplina jurídica da liberdade de

crença será de não pouca monta.

Apreciando um Habeas Corpus impetrado por um editor de livros condenado


pela indução ao preconceito contra judeus (art. 20, da Lei 7.716/1989), o Excelso

151
Hugo Nigro MAZZILLI, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo , p. 42.
143
Pretório entendeu que a discriminação religiosa subsume-se na norma constitucional

que criminaliza a prática do racismo.

Interessante observar que Mary Pat Fisher postula a associação entre


discriminação religiosa e racismo, nestes termos: “O exclusivismo religioso pode

conter conotação racista e políticas”. 152

Embora o julgamento ainda não tenha sido concluído, trata-se de decisão

irreversível (HC n. 82424 – Rel. Moreira Alves), visto que 7 ministros já votaram
contrariamente à concessão do Habeas Corpus .

Vale transcrever a norma do art. 5o, inciso XLII, da Lei Fundamental: “a prática
do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da lei”.

Destacada das demais práticas discriminatórias violadoras de direitos (art. 5 o,


XLI), a prática do racismo mereceu atenção especial do constituinte de 88, o qual
diferenciou-a de suas congêneres, atribuindo-lhe o estatuto da inafiançabilidade, da

imprescritibilidade e a cominação da pena de reclusão.

Convém lembrar que a expressão “prática do racismo”, não requer que o


agente possua destreza ou domínio teórico ou retórico dos teoremas raciais,

engajamento político-ideológico às teorias raciais, tampouco que produza uma ação


movido por ódio racial e que esta seja dirigida ao grupo racial no seu todo, bastando

152
Marly Pat FISHER. A Religião no Século XXI. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 24.

144
que tal “prática” reflita o conteúdo nuclear da mencionada “ideologia racial”: uma

prática orientada por critério racial, ou étnico, que resulte em violação de direitos.

Além da norma constitucional em tela, dois outros preceitos constitucionais


referem-se ao instituto da fiança, quais sejam , os incisos XLIII e XLIV do aludido art.

5o, os quais, sob o aspecto da censurabilidade constitucional, equiparam a prática do


racismo à tortura, ao tráfico de entorpecentes, ao terrorismo, aos crimes hediondos e

à ação armada contra o Estado Democrático de Direito.

O Código de Processo Penal disciplina o instituto da liberdade provisória sem


fiança em seu art. 310 e ss., de sorte que, satisfeitos os requisitos legais, e dada a

inexistência de restrição legal à concessão da liberdade provisória nos crimes de


racismo, o acusado tem o direito de responder o processo em liberdade. É dizer,

inafiançabilidade não se confunde com proibição de concessão de liberdade


provisória.

Tal como a inafiançabilidade, a vedação constitucional da prescrição do crime


de racismo ilustra o grau de censura atribuído ao delito.

Ao qualificar juridicamente o anti-semitismo como racismo, o Supremo

Tribunal Federal agasalha a noção de que a identidade religiosa dá ensejo à

conformação de um grupo étnico, no sentido de que a discriminação religiosa possui


atributos de discriminação étnica, daí a pertinência da aplicação da norma

constitucional do crime de racismo.

Etnia, uma categoria antropológica, refere-se a um conjunto de dados


culturais – língua, religião, costumes alimentares, comportamentos sociais

145
– mantidos por grupos humanos não muito distantes em sua aparência, os quais

preservam e reproduzem seus aspectos culturais no interior do próprio grupo, sem

que estejam necessariamente vinculados por nacionalidade comum, ainda que

compartilhem um território comum e se organizem, em determinados casos, como


população geral deste território. É o caso, por exemplo, dos sérvios, croatas, e
húngaros minoritários, os quais, até bem pouco reunidos no território comum da

Iugoslávia, podiam se declarar iugoslavos, sem que seus fenótipos os divisassem


por cor. Entretanto, a herança cultural de cada um desses grupos os mantém
isolados enquanto etnias, secundarizando valores nacionais, especialmente quando
a etnia preponderante – ou politicamente mais poderosa – se impõe a outras.

Doravante, portanto, a discriminação religiosa sujeitará o agente aos rigores

constitucionais da inafiançabilidade e da imprescritibilidade.

146
A Lei de Abuso de Autoridade

A Lei n. 4.898, de 9 de dezembro de 1965, apresenta a seguinte redação no

seu art. 3º, incisos “d” e “e”:

“art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:


d) à liberdade de consciência e de crença;
e) ao livre exercício do culto religioso;”

Comentando esta normativa, Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos de


Freitas, registram que:

Preliminarmente, deve-se estabelecer a diferenciação entre um


direito de liberdade absoluto, consubstanciado no direito de liberdade de
consciência e de crença, inviolável e ilimitado, e um direito153de liberdade
relativo, o direito de liberdade exercido no respectivo culto.

Para os autores, “qualquer atentado por parte de autoridade civil ou militar


configurará o crime de abuso previsto nas letras d e e do art. 3º da Lei 4.898, de
09.12.1965”.154

Objeto jurídico

A liberdade de crença e de culto

153
Gilberto Passos de FREITAS e Vladimir Passos de FREITAS. Abuso de Autoridade. 9. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 48.
154
Ibidem, mesma página.
147
Sujeitos

Sujeito ativo é apenas a autoridade pública, definida no art. 5º da própria lei,

compreendendo “quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil,


ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração”.

Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, um fiel, ministro religioso, etc.

Tipo objetivo

Atentar tem o sentido de embaraçar, estorvar, interromper bruscamente,

cometer atentado.

Tipo subjetivo

Trata-se de figura penal que exige intenção, dolo, não sendo admitida a
modalidade culposa.

Consumação e tentativa

Como o nome já indica, a simples tentativa já materializa o tipo penal, pelo


que não há falar em crime tentado.

Vejamos a jurisprudência referente à matéria:

A pregação religiosa, expondo preceitos de ordem espiritual ou


normas de caráter moral, desde que genericamente feita a adeptos de
uma determinada religião, com o objetivo a conduta dos mesmos, não
constitui a figura delituosa da instigação à desobediência coletiva, prevista
no art. 3º,
O 20, do Decreto-Lei
Poder de polícia,431,
no de 18.05.1938.
assunto, (RT 170/758
compreende – STF). de
a faculdade
assegurar o livre exercício do culto de uma religião e obstar que esse culto
seja perturbado por quem não pertence à mesma religião (RT 177/464 –
parecer de Haroldo Valladão).

148
Liberdade de culto. Tenda Espírita de Umbanda. Fechamento por
autoridade policial, sob o fundamento de prática de atos irregulares de seu
chefe. Inadmissibilidade. Caso de processamento criminal deste.
Segurança concedida. (RT 376/339 – TACivSP).

O art. 208 do Código Penal – Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a


ele relativo

No capítulo intitulado “Dos Crimes Contra o Sentimento Religioso”, o Código


Penal consigna o art. 208:

Art. 208. Escarnecer de alguém publicamente, por motiv o de


crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de
culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa.
Parágrafo
de um terço, único. Sedahá
sem prejuízo emprego de violência,
correspondente a pena é aumentada
à violência.

Sujeitos

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, sendo que a vítima deve ser uma

pessoa determinada (na primeira conduta descrita) ou a coletividade religiosa (na

segunda parte do tipo).

Tipo objetivo

O tipo apresenta três modalidades de conduta.

Escarnecer quer dizer menoscabar, humilhar, achincalhar, ridicularizar.

Impedir ou perturbar significam obstruir, embaraçar, coibir, estorvar.

Vilipendiar quer significar desprezar, dispensar um tratamento vil, repelir.

149
Tipo subjetivo

Trata-se de figura penal que exige dolo, a vontade de escarnecer, zombar de

alguém em razão de crença religiosa.

Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com o escárnio, a paralisação ou suspensão


compulsória do culto ou o vilipêndio ao objeto religioso. Admite tentativa.

Vejamos a jurisprudência referente à matéria:

Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato ele relativo.


Escárnio dirigido a determinada pessoa Necessidade: Inteligência: art. 208
do Código Penal, art. 5º, VI da Constituição da República 206 – Para a
Configuração do crime do art. 208 do CP, é necessário que o escárnio seja
dirigido a determinada pessoa, sendo que, a assertiva de que
determinadas religiões traduzem “possessões demoníacas” ou “espíritos
imundos”, espelham tão-somente, posição ideológica, demográfica, de
crença religiosa, não tipificando o crime de vilipêndio ou ultraje a culto”
(TACrim/SP – 8ªCâmara – Apelação nº 845177.1 – Rel. Régio Barbosa – j.
09.06.94).
Perturbação de Culto Religioso. Agente que através de uma série
de artifícios perturba culto religioso realizado no interior de igreja. Ilícito
penal tipificado. Condenação mantida. Inteligência: art. 208 do Código
Penal.116. Incide no art. 208 do CP, porque animado por evidente dolo, o
artifíciosque,
agente direciona
agindopossantes
com intuito
alto-falantes
de perturbar
para
o culto
o prédio
religioso,
da igreja
entre
e liga
outros
os
aparelhos em altíssimo volume com músicas carnavalescas, em outras
oportunidades, faz uso de estampidos de bombas juninas, tudo para
impedir as orações e os cânticos dos fiéis (TACrim/SP – 2ª Câmara,
Apelação n. 560379.1 – Rel. Ribeiro Machado – j. 09.11.89).
Crime contra o sentimento religioso. Arts. 208 do CP E 5, VI, da
CF. Culto Espírita. Incorre nas penas cominadas no Art. 208 do CP aquele
que, em desrespeito ao sentimento religioso, assegurado em Art. 5, VI, da
Carta Magna, interfere em culto espírita, vilipendiando seus objetos. Crime
Contra a Religião. (TA/MG – 1ª Câmara Criminal – Apelação Criminal n.
0136189.1 – Rel. Schalcher Ventura – j. 06.10.92).

A injúria qualificada por preconceito religioso – art. 140, § 3°, do Código Penal

No capítulo dos crimes contra a honra, o Código Penal contempla a figura da

150
injúria, em sua forma simples e qualificada: a injúria decorrente de preconceito

religioso, entre outros.

art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:


§Pena
1°. O- detenção, de 1 (um)
juiz pode deixar a 6 (seis)
de aplicar meses, ou multa
a pena:
I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente
a injúria;
II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.
§ 2°. Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por
sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa, além da
pena correspondente à violência.
§ 3°. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a
raça, cor, etnia, religião ou srcem:
Pena - reclusão de um a três anos e multa.

Objeto jurídico

Dignidade, honra.

Sujeitos

Sujeito ativo é quem injuria valendo-se de atributos pessoais referentes à cor,

raça, etnia, religião ou srcem.

Sujeito passivo é a pessoa ofendida em sua honra subjetiva.

Tipo objetivo

O verbo nuclear do tipo é injuriar, que tem o sentido de insultar, ultrajar, aviltar,

vituperar, menoscabar, desestimar, desprezar.

Veja-se entendimento jurisprudencial sobre a matéria:

1. Injuriar é humilhar, achincalhar, ofender, ridicularizar, atentar


contra a honra. É o proposital, consciente e maldoso menosprezo à
pessoa do próximo, condenado pelo direito positivo de todas as nações
civilizadas e pela moral cristã, exteriorizado mediante os
151
pronunciamentos verbais de impropérios ultrajantes ou por escritos, gestos
ou qualquer outro meio malicioso. Por vezes a injúria velada, como no
caso em que além de expressões escritas ofensivas foram usados
símbolos, enigma e caricatura, é pior que a explícita, máxime quando
expõe a vítima ao escárnio público (TACRIM-SP – AC – Rel. Silva Pinto –
JUTACRIM 97/154).
2. O crime de injúria caracteriza-se pela ofensa à honra subjetiva
da pessoa,
físicos, quee constitui
morais o sentimento
intelectuais próprioAssim,
de cada pessoa. a respeito
injúriados
é aatributos
palavra
insultuosa o epíteto aviltante, o ‘xingamento’, o impropério, o gesto
ultrajante, todo e qualquer ato, enfim que exprima desprezo, escárnio ou
ludíbrio (TACRIM-SP – AC – Rel. Silva Rico – RJD 7/78)
3. A injúria consiste na opinião depreciativa em relação à vítima,
de sorte a atingir-lhe a honra subjetiva, através de sua dignidade ou
decoro. Representa opinião pessoal do agente, desacompanhada de fatos
concretos ou precisos (TACRIM-SP – AC – Rel. Marrey Neto – RJD 13/53).

Note-se que o presente dispositivo emprega o vocábulo srcem, que tem o


sentido de naturalidade (local de nascimento).

Heleno Cláudio Fragoso realça o fato de que “O propósito de pilheriar (animus


jocandi) pode concorrer com o de ofender, caso em que subsiste o crime. É muitas

vezes forma dissimulada e covarde de ofender”. 155

No mesmo sentido o entendimento acolhido pelo Tribunal de Alçada Criminal


de São Paulo:

Inocorre o delito de injúria na caricatura crítica estampada em


periódico, pois o exercício democrático permite que uma mensagem
jocosa e divertida circule livremente, desde que obedeça aos parâmetros
que a legalidade impõe. (RJDTACRIM 33/146).

Tipo subjetivo

Elemento subjetivo é o dolo genérico de ofender a honra alheia, conforme

definido pela jurisprudência: “A injúria que atinge a honra subjetiva da pessoa exige

como elemento subjetivo o dolo de dano direto ou eventual” (TACRIM-SP – Rec. –

155
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 185.
152
Rel. Ribeiro Machado – JUTACRIM 100/382. No mesmo sentido: JUTACRIM

86/138).

Consumação e tentativa

Magistério de Eduardo Magalhães Noronha, consigna que:

Consuma-se o delito quando o sujeito passivo ouve, vê ou lê a


ofensa proferida. Pouco importa, como já se disse, que a pessoa se sinta
ofendida, desde que haja idoneidade ofensiva. Não é configurável a
tentativa de injúria oral (ns. 76 e 341), pois a palavra ou é proferida ou não.
Trata-se de crime de único ato, insuscetível de fracionamento. Não assim
a injúria por escrito. Uma carta ultrajante que se extravia, indo parar às
mãos de terceiro, configura a tentativa: o escrever e o enviar a missiva são
atos de execução – há execução parcial do tipo – e a não-consumação
(falta de conhecimento por parte do ofendido) ocorre por circunstâncias
alheias à vontade
gestos, tal do agente
seja a hipótese, (o extravio).
pode A injúria 156
admitir a tentativa por. atos ou mesmo
• A utilização de palavras depreciativas referentes à raça, cor,
religião ou srcem, com o intuito de ofender a honra subjetiva da pessoa,
caracteriza o crime previsto no § 3º do art. 140 do CP, ou seja, injúria
qualificada, e não o crime previsto no art. 20 da Lei 7.716/89, que trata dos
o
crimes de preconceito de raça ou de cor (TJSP – HC n 249.792-3/0 – Rel.
Luiz Pantaleão – j. 17.02.98)

Em conclusão, registre-se que o Alto Comissariado das Nações Unidas para

os Direitos Humanos tem empregado o termo “difamação religiosa” para designar a

utilização de quaisquer meios de comunicação impressos, audiovisuais, eletrônicos


ou de qualquer outra natureza, com a finalidade de incitar a prática de atos de

violência, xenofobia, intolerância e discriminação em relação ao islamismo ou


qualquer outra religião. O Ato Comissariado lembra ainda a importância da proibição

e do combate ao estereótipo religioso negativo. 157

156
Eduardo Magalhães NORONHA. Direito Penal. v. I, 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1971, p. 124.
157
Resolución de la Comision de Derechos Humanos n. 1999/82

153
O art. 20, da Lei n. 7.716, de 05 de janeiro de 1989

O enfrentamento desta norma penal requer, antes, um exame dos vocábulos

preconceito e discriminação.

Preconceito

Síntese dicionarizada de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira atribui ao


vocábulo preconceito os seguintes significados:

1. Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior


ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia preconcebida; 2. julgamento
ou opinião formada sem se levar em conta o fato que as conteste; prejuízo;
3. superstição, crendice, prejuízo; 4. suspeita, 158
intolerância, ódio irracional
ou aversão a outra raças, credos, religiões, etc.

Categoria pertencente à psicologia, o preconceito religioso pode ser definido


como um fenômeno intergrupal, dirigido a pessoas, fieis, ministros religiosos, grupos
de pessoas ou instituições religiosas, implicando uma predisposição negativa, isto é,
tomado como um conceito científico, preconceito dirige-se invariavelmente contra
alguém.

Funcionando como uma espécie torpe de silogismo (todo judeu é sovina;


Tulio é judeu; Tulio é sovina), o preconceito tende a desconsiderar a individualidade,

atribuindo apriorísticamente aos membros de determinada confissão estigmatizada


características geralmente grosseiras com as quais o grupo, e não o indivíduo, é

caracterizado.

158
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 1.381.
154
159
Segundo Maria Aparecida Silva Bento , preconceito encerra sempre um
160
conteúdo negativo, ruim; preconceito é uma atitude , sendo certo que tal atitude

nega simultaneamente dois pressupostos da interação humana: o pressuposto da

racionalidade (dimensão cognitiva) e o pressuposto da afeição humana (dimensão


afetiva).

161
Maria Aparecida Silva Bento enumera as notas características do

preconceito:

. um sentimento de superioridade;

. percepção do grupo subalternizada como intrinsecamente diferente e


estrangeiro;

. uma pretensão à propriedade de certas áreas da convivência humana e

privilégios; e medo e suspeita de que o grupo subalternizado aspire às prerrogativas


sociais e/ou econômicas, etc., do grupo dominante.

Assim, os componentes básicos do preconceito pressupõem um sistema


social no qual a etiqueta religiosa possua relevância na distribuição dos lugares
sociais, da mesma forma que um tal sistema social pressupõe agentes que operem
as desigualdades religiosas do sistema.

159
Maria Aparecida Silva BENTO, Resgatanto Minha Bisavó: Discriminação no Trabalho nas Vozes
dos Trabalhadores Negros . Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
1992, p. 98.
160
Assinalado que, para a Psicologia, atitude (fenômeno mental e/ou afetivo) não se confunde com
conduta (ação).
161
Maria Aparecida Silva BENTO, op. cit ., p. 115.
155
Note-se que, embora seja condição suficiente, o preconceito não é condição

necessária da discriminação, vale dizer, nem sempre a discriminação guarda com o

preconceito uma relação necessária de causa e efeito.

Assinale-se, por fim, que o direito penal, via de regra, não pune a mera

cogitação, cogitationis poenam nemo patitur , de sorte que, a despeito de o


Preâmbulo da Constituição Federal consignar o repúdio ao preconceito, e da norma

do art. 3º, IV, proibi-lo formalmente, o preconceito, uma vez circunscrito à


consciência individual, ao foro íntimo, é fenômeno insuscetível de sanção penal ou
mesmo cível – ao menos no Estado Democrático de Direito. Não será mera

casualidade, assinale-se, o fato de que os tratados internacionais disciplinam


exaustivamente o fenômeno da discriminação, ao passo que apenas um deles, por

uma única vez, faz alusão ao preconceito (Convenção Internacional Sobre a


Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, art. VII), conforme
veremos adiante.

Discriminação religiosa

Diferentemente do preconceito, a discriminação, a ação que discrimina,


consiste em ato, em conduta (comissiva ou omissiva) que viola direitos com base em

critério religioso, independentemente da motivação que lhe deu causa.

Convém sublinhar que o sistema jurídico brasileiro disciplina a discriminação

religiosa, conforme exploramos no primeiro capítulo:

Artigo I, da Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do

156
Ensino:

Para os fins da presente Convenção, o termo “discriminação”


abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por
motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião publica ou qualquer
outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou
nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de
tratamento em matéria de ensino e, principalmente:
a) privar qualquer pessoa ou grupo de pess oas do acesso aos
diversos tipos ou graus de ensino;
b) limitar a nível inferior a educação de qualquer pessoa ou grupo;
c) sob reserva do disposto no artigo 2 da presente Convenção,
instituir ou manter sistemas ou estabelecimentos de ensino separados
para pessoas ou grupos de pessoas; ou
d) de impor a qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições
incompatíveis com a dignidade do homem.

Demarcada a dimensão semântica, vejamos agora a norma penal do aludido

art. 20, da Lei 7.716/89.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor,


etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

Objeto jurídico

A igualdade (princípio da não-discriminação) e a paz pública.

Sujeitos

Sujeito ativo é quem pratica, induz ou incita a discriminação ou preconceito,

respondendo por co-autoria ou participação o agente da indução ou da incitação, na


hipótese de o delito ser realizado em função destas.

Sujeito ativo será a pessoa diretamente discriminada, bem como o Estado e a

157
coletividade.

Tipo objetivo

Imperioso se faz observar, desde logo, que o presente dispositivo encerra tipo
penal aberto, cuja aplicação encontra-se na dependência da interpretação feita por

juristas, advogados e juízes, no sentido de indicarem as condutas idôneas para se


amoldar ao preceito.

Três são os verbos nucleares do tipo.

Praticar tem o sentido de levar a efeito, fazer, realizar, cometer, atuar,


exercer, exercitar, obrar, perfazer.

Induzir denota persuadir, convencer, fazer adquirir certeza, compelir.

Incitar é estimular, incentivar, instigar.

Entendimento acolhido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, oferece

elementos semânticos úteis para o manuseio dos vocábulos indução e incitação:

No conceito de instigação acham-se compreendidas tanto a


influência psíquica, representada pela determinação (induzimento) que se
concretiza em fazer surgir em terceiros um propósito criminoso antes
inexistente, quanto a instigação que é o reforçar propósito já existente.
Instigar, como é cediço, indica cogitar, fazer com que outros se decidam a
executar um ato, ou ao menos reforçar-lhes o propósito. Isto se faz
provocando motivos impelentes, quer os consolidando, quer anulando ou
reduzindo a rejeição. Além disso, sabe-se que a publicidade constitui
elemento essencial do tipo, sem a qual ele não se aperfeiçoa, sendo o
crime formal, ou seja, consuma-se com a incitação pública, desde que
percebida por um número indeterminado de pessoas. (TJSP – AC n o
147.301-3/8 – Rel. Jarbas Mazzoni – RT 718/378.).

A respeito da incitação vale recordar também que o art. 20, item 1, do Pacto

Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, prescreve que “Será proibida

158
por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua

incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência”. Norma análoga consta

também da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da

Costa Rica (art. 13, item 5).

Prosseguindo, discriminação religiosa consiste em conduta que lesiona ou


cria risco de lesão de direitos com base em critério religioso.

Preconceito designa conceitos prévios, idéias preconcebidas, juízos prévios


acerca de certos indivíduos e/ou grupos, associando-os com atributos ultrajantes,
depreciativos e estigmatizantes.

Quanto à religião como fator de discrímen, vale lembrar que norma insculpida
no art. 5 o, XII, da Constituição Federal, proíbe a privação de direitos com base em

confissão religiosa, sendo que o inciso VI do mesmo artigo assegura ampla e


irrestrita liberdade de crença e de culto, direito este também consignado no art. V,
item “d”, alínea “vii”, da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial.

Tipo subjetivo

O dolo genérico de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o

preconceito.

Consumação e tentativa

A prática da discriminação ou do preconceito, bem como a indução e a


incitação conformam crime de perigo abstrato, cujo resultado decorre da

159
própria conduta, no sentido de que a ação, em si mesma, materializa o delito, esgota

a realização do tipo, não reclamando, portanto, lesão efetiva, senão mera

potencialidade de lesão, a exemplo dos delitos capitulados nos arts. 147, 150, 233,

269, 288, 320, entre outros do Código Penal.

Adotando-se a doutrina tradicional, criticada com singular destreza e


didatismo por Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, o dispositivo
162
insere-se no rol dos crimes formais , de mera conduta, de pura atividade, não
exigindo, para sua materialização, o assim chamado resultado material, o resultado
naturalístico.

Trata-se, a propósito, de entendimento acolhido pelo Tribunal de Justiça de


São Paulo:

Caracterização. Artigo 20 da Lei 7.716/89. Condutas do réu que se


subsumem nos três núcleos do tipo em comento. Hipótese em que o réu
não só praticou a discriminação e o preconceito de religião, como induziu e
incitou terceiros a fazê-lo. Atitudes e palavras do réu que extrapolam os
limites da crítica e da pregação religiosa, resvalando na aversão a outros
credos. Irrelevante para a consumação do delito que tenham sido
despertados ou não nos telespectadores sentimentos discriminatórios ou
preconceituosos. Suficiente o perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.
Recurso não provido (TJ-SP – 2ª Câmara Criminal – Apelação Criminal n.
238.705-3 – Rel. Geraldo Xavier – j. 10.11.99).

A Lei da Tortura e a Lei do Genocídio

A Lei dos Crimes de Tortura (Lei n. 9.455, de 07 de abril de 1997) pune o


sofrimento físico e mental decorrente de discriminação religiosa, entre outras.

162
Trata-se de entendimento compartilhado por Fábio Medina Osório & Jairo Gilberto Schafer (RT
714/329); no mesmo sentido julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (Lex 202/312).
160
163
A Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio ,a
o
Lei do Genocídio (Lei n. 2.889, de 1 de outubro de 1956), bem como o Código

Penal Militar (art. 208), punem o assassinato de fiéis e a agressão física ou mental a

membros de grupo religioso, entre outros.

 Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio

art. 2o Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer


dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em
parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros
do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência
capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
grupo; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro
grupo.

 Lei n. 2.889, de 01/10/1956

art. 1 o Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte,


grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros
do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência
capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do
grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro
grupo.
art. 3 o Incitar, direta e publicamente, alguém a cometer qualquer
dos crimes de que trata o art. 1:
Pena - metade das penas ali cominadas.
§ 1º A pena pelo crime de incitacão será a mesma de crime
incitado, se este se consumar.
§ 2º A pena será aumentada de um terço, quando a incitação for
cometida pela imprensa.

 Código Penal Militar

163
Promulgada pelo Decreto n. 30.822, de 06 de maio de 1952.
161
art. 408. Matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou
pertencente a determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial
desse grupo:
Pena - reclusão, de quinze a trinta anos.
Parágrafo único. Será punido com reclusão, de quatro a quinze
anos, quem, com o mesmo fim:
I - inflige lesões graves a membros do grupo;
capazesIIde- submete o agrupo
ocasionar a condições
eliminação de existência,
de todos físicas ou
os seus membros oumorais,
parte
deles;
III - força o grupo à sua dispersão;
IV - impõe medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio
do grupo;
V - efetua coativamente a transferência de crianças do grupo para
outro grupo.

“Sofrimento mental”, “lesão grave à integridade mental”, são conceitos


empregados na legislação em tela, cujo enfrentamento está por ser feito no

Judiciário brasileiro.

Cabe registrar que a Constituição Federal tutela o direito à saúde (art. 196),
sendo que a Organização Mundial de Saúde conceitua saúde não apenas como

situação de inexistência de doença, mas também como situação de bem-estar.

De sua parte, consiste o dano psíquico em um transtorno mental, uma


164
disfunção, uma deterioração ou um distúrbio , demarcados impecavelmente por

Pereira et al : “O estudo da inter-relação entre as correntes do dano e do ofendido,


leva-nos a considerar que existem casos em que ocorreu o sofrimento, mas com

repercussões biológicas, psíquicas e sociais de pequena monta e aqueles casos em

que tal repercussão trouxe agravos significativos à saúde do ofendido podendo ser
de natureza biológica (úlcera gástrica, enfarte cardíaco, retocolite ulcerativa,

164
Enfermidade catalogada na Classificação Internacional de Doenças – CID-10, da Organização
Mundial de Saúde.
162
acidente vascular cerebral, etc.) ou sociais (perda de emprego, desestruturação

familiar, perda de clientela, de amizades, etc.)”. 165

166
Perscrutando o aspecto processual, Norma Griselda Miotto aduz os
seguintes procedimentos básicos:

. aferição das sequelas do fato sobre o psiquismo do ofendido;

. descrição das sequelas;

. grau e porcentagem de incapacidade emergente;

. necessidade e tipo de tratamento;

. custo do tratamento;

. prognóstico.

Trata-se, portanto, de indagações que reclamam conhecimentos específicos

de profissional qualificado e habilitado em lei, um perito, na dicção do art. 145 do

Código de Processo Civil, que tanto pode ser um Psiquiatra quanto um Psicólogo,
cujo laudo servirá de base para o dimensionamento e a conseqüente liquidação do

dano. Dispensável lembrar que o perito sujeita-se à argüição de impedimento e


suspeição (Código de Processo Civil, art. 138), e ainda que a lei processual defere

às partes o direito de indicar assistente técnico e oferecer quesitos (Código de

Processo Civil, art. 421), bem como juntar pareceres técnicos (inclusive referente à

165
Celeste Leite dos Santos Pereira GOMES; Maria Celeste Cordeiro Leite dos SANTOS e José
Américo dos SANTOS. Dano Psíquico. São Paulo: Ed. Oliveira Mendes, 1998, p. 15.
166
Norma Griselda MIOTTO, Daño Psiquico em el Fuero Civil in Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 20, 1997, p. 189-192.
163
matéria jurídica), os quais não possuem status de perícia, mas podem ser úteis na

formação do convencimento do Juiz (Código de Processo Civil, art. 427).

164
CAPÍTULO 5

O PRINCÍPIO DA LAICIDADE ESTATAL

Considerações Preliminares

Validade formal ou técnico-jurídica ( vigência), validade social ( eficácia ou


efetividade ) e validade ética ( fundamento) configuram, consoante magistério de

Miguel Reale, os três aspectos por meio dos quais a validade de uma norma jurídica
pode ser investigada.167

Discorrendo sobre a ciência do direito, Miguel Reale põe em realce a

“referibilidade imediata à experiência a nota caracterizadora de uma investigação


jurídica de natureza científico-positiva”.168

Tercio Sampaio Ferraz Jr., demarcando os enfoques teóricos por ele


denominados zetética e dogmática jurídicas, afirma que

Temos, portanto, duas possibilidades de proceder à investigação


de um problema: ou acentuando o aspecto pergunta, ou acentuando o
aspecto resposta
terminologia . Prossegue
de Viehweg, temoso um
autor: No primeiro
enfoque caso,
zetético usando uma
, no segundo, um
enfoque dogmático. Zetética vem de zetein, que significa perquirir,
dogmática vem de dokein que significa ensinar, doutrinar. Embora entre
ambas não haja uma linha divisória radical (toda investigação acentua
mais um enfoque que o outro, mas sempre tem os dois), a sua diferença é
importante.169

Com este intróito queremos anunciar nossa pretensão de que o presente


capítulo, nos marcos de uma pesquisa de natureza jurídica, problematize e aponte

167
Miguel REALE, Lições Preliminares de Direito, p. 105.
168
Ibidem, p. 17.
169
Tercio Sampaio FERRAZ JR., Introdução do Estudo do Direito , p. 42.
165
elementos que contribuam para a construção de uma resposta razoável e

obviamente não-conclusiva à seguinte indagação: é eficaz o princípio constitucional

da laicidade estatal?

Interessa-nos um olhar sobre a experiência, verificar a ocorrência e buscar

descrever, mesmo sucintamente, os contornos daquele fenômeno denominado por


Miguel Reale como uma tensão entre norma e situação normada, entre modelo e o

que é modelado 170, enfim, entre norma e fato. 171

Nos capítulos antecedentes, por meio da exploração de uma série de


procedimentos que a nós pareceu coerente e coesa, partimos da dogmática para

tentar demarcar tendências e regularidades históricas, acentuando significados e


conceitos, assumindo definições, traçando possibilidades de analogias e deduções,

sempre movidos pelo esforço de patentear o conteúdo jurídico da liberdade de


crença.

O enfrentamento da disciplina constitucional da matéria permitiu-nos isolar e


perscrutar dois princípios de organização do Estado, ambos extraídos da norma do
art. 19, inciso I, da Lei Suprema: o princípio da laicidade e o princípio da separação.

Muito embora para efeito propedêutico e, possivelmente, para o exercício de

regulação (legiferante), possamos falar em dois princípios, é certo que o princípio da


laicidade pressupõe o da separação, no sentido de que, inexistindo separação entre

Estado e religião, a laicidade estará irremediavelmente comprometida.

170
Ibidem, p. 34.
171
Miguel REALE. Fontes e Modelos do Direito – Para um Novo Paradigma Hermenêutico. São Paulo:
Saraiva, 1994, p. 32.
166
Deste modo iremos renunciar, nesta quadra, a fazer observações mais

minuciosas sobre a validade social do princípio organizativo da separação, detendo-

nos tão somente em apontamentos sobre a eficácia da laicidade.

Ainda com Miguel Reale aprendemos que

O primeiro dever do estudioso, ao aplicar o método


fenomenológico, é procurar afastar de si todos os preconceitos, todos os
prejuízos porventura formados a respeito do mesmo fenômeno,
notadamente quanto à sua transcendência, ou realidade fora da
consciência (‘ epoqué’ fenomenológica). Devemos colocar-nos em um
estado de disponibilidade perante o objeto, no sentido de procurar captá-lo,
na sua pureza, assim como é dado na consciência, sem refrações que
resultem de nosso coeficiente pessoal de preferências, para poder
descrevê-lo integralmente, com todas as suas qualidades e elementos,
recebendo-o ‘tal como se oferece srcinariamente na intuição’ ( descrição
objetiva).172

Em obséquio a esta magistral proposição da obra de Miguel Reale, passemos


então, esquematicamente, a examinar alguns dados de experiência, buscando

cotejá-los com o princípio constitucional da laicidade estatal.

5.1 A menção a Deus no preâmbulo da Constituição Federal

Em parecer publicado pela “Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e


Empresarial”, Ives Gandra da Silva Martins alega em favor da obrigatoriedade do

ensino religioso: “o certo é que invocou o Constituinte a proteção divina ao

promulgar a Constituição Federal”.173

Malgrado a impertinência, sentimo-nos no dever de divergir deste


entendimento.

172
Miguel REALE. Filosofia do Direito. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 362.
173
Ives Gandra da SILVA MARTINS. Educação Religiosa nas Escolas Públicas – Inteligência do art.
210 da Constituição Federal – Opinião legal in Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e
Empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 20, v. 75, jan/mar, 1996, p. 122.
167
Preâmbulo, vocábulo derivado do latim pre ambulare (vir antes), é instituto do

Processo Legislativo, mais propriamente da Técnica Legislativa, visto que configura

um dos elementos constitutivos de um diploma normativo.

Como é cediço, a estrutura de um texto de lei possui três elementos

essenciais: preâmbulo, articulado e fecho. Por seu turno, o preâmbulo é composto


da epígrafe, da ementa e dos considerandos.

Um olhar sobre os preâmbulos das Constituições brasileiras desvenda


diferentes modos de alusão a divindades, senão vejamos:

 a Constituição de 1824 consigna, no preâmbulo, a seguinte formulação:

“(...) Dom Pedro Primeiro, por graça de Deos (...) Em nome da Santíssima
Trindade.”

Dois registros merecem destaque:

1. o trabalho de elaboração e promulgação da Constituição teria sido feito

como um favor, concessão, benefício, enfim, mercê de Deus, pelo que o texto
sugere que a Constituição deve ser tomada como uma concessão divina;

2. os responsáveis pela elaboração e promulgação teriam operado com a

autorização, o consentimento, a permissão da Santíssima Trindade, atuando,

portanto, com delegação desta.

 o prefácio da Constituição de 1891, bem como o da Carta de 1937, não

invocam nem fazem qualquer referência a divindade alguma;

168
 o prólogo da Carta de 1934 aduz os seguintes termos: “(...) Nós, os

representantes do Povo Brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus (...)”;

À evidencia, o texto sugere uma atitude, um juízo de valor, uma declaração


que desvenda a convicção íntima, a crença, enfim, a esperança em Deus depositada

pelo constituinte de 1934;

 o texto preambular da Carta de 1946 exibe a seguinte redação: “Nós, os

representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus (...)”;

Enfático, categórico, o texto dispõe uma percepção, uma verificação, enfim, a

constatação de um fato – o trabalho de elaboração e promulgação da Constituição


terá sido feito sob a proteção divina.

 os prefácios das Cartas de 1967 e 1969 apresentam idêntico conteúdo no

que respeita à alusão à divindades: “O Congresso Nacional, invocando a proteção


de Deus (...)”.

Menos categórica do que a redação da Constituição de 1946, tal formulação


sugere uma atitude evocativa, a manifestação de uma expectativa alimentada pela

instituição Congresso Nacional, em nome próprio, e não em nome do conjunto dos


seus integrantes, em termos de acreditar que o trabalho de elaboração e
promulgação daquelas cartas políticas deve ter sido feito sob a proteção de Deus.

Vejamos agora, na íntegra, os termos do preâmbulo da Constituição de 1988:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia


Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade e a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
169
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, o seguinte:

Tal como o prefácio da Carta de 1946, o presente texto é enfático, categórico,

dispondo uma verificação, a constatação de um fato – o trabalho de elaboração e


promulgação da Constituição terá sido feito sob a proteção de Deus.

No dizer de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da Silva Martins:

Aqui voltou-se à fórmula soberba da Constituição de 1946. A de


1967, e a observação não é nossa – é de Manoel Gonçalves Ferreira Filho
– foi mais humilde, utilizando a expressão ‘sob a invocação de Deus’,
fórmula que parecia sem dúvida muito mais adequada, uma vez que não
se sabe a partir de que indícios os constituintes se consideraram certos de
estarem sob a proteção de Deus.174

Concordam os autores, não obstante, que a menção a Deus no preâmbulo da


Lei Suprema configura uma constatação, um juízo de fato.

Abstendo-nos de tecer quaisquer considerações acerca dos atributos, das


implicações ou da qualidade do aludido fato, convém recordar com Miguel Reale que:

O legislador não se limita a descrever um fato tal como ele é, à


maneira do sociólogo, mas, baseando-se naquilo que é, determina que
algo deva ser, com a previsão de diversas conseqüências, caso se
verifique a ação ou a omissão, a obediência à norma ou a sua violação. 175

Prossegue o autor, “Há, pois, em toda regra um juízo de valor, cuja estrutura
mister é esclarecer, mesmo porque ele está no cerne da atividade do juiz ou do
advogado”.176

174
Celso Ribeiro BASTOS e Ives Gandra da SILVA MARTINS. Comentários à Constituição do Brasil.
São Paulo: Saraiva, v. 1, 1988, p. 410.
175
Miguel REALE, Lições Preliminares de Direito, p. 35.
176
Ibidem, p. 34.
170
Ora, forçoso é reconhecer que não se pode admitir que de um juízo de fato

possa ser inferida qualquer regra, não apenas porque a estrutura da norma jurídica

encerra um dever ser , e não um ser, como também porque o preâmbulo de qualquer

diploma normativo não se confunde com o articulado, no sentido de que o


preâmbulo não contém norma jurídica propriamente dita.

Magistério de Celso Ribeiro Bastos dá conta de que o preâmbulo serve como

vetor, como diretriz para a atividade interpretativa, visto que “consagra declarações
principiológicas, de caráter geral (...) princípios de ordem material que informaram e
presidiram a todos os trabalhos constituintes”. 177

Consignados no preâmbulo da Constituição vigente, o exercício dos direitos


sociais e individuais, a liberdade e a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a

igualdade, a justiça, a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem


preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica
das controvérsias, indubitavelmente consubstanciam desideratos do constituinte de
88, declarações principiológicas às quais foi atribuído expressamente o status de

valores supremos.

Todavia, como é de meridiana nitidez, tais valores não se confundem nem

podem ser equiparados a um juízo de fato que o constituinte houve por bem grafar
no preâmbulo, visto que, por se tratar precisamente de um juízo de fato, não possui

mesmo remotamente atributos de regra jurídica, resultando daí sua absoluta

177
Celso Ribeiro BASTOS. Hermenêutica e Interpretação Constitucional . São Paulo: Celso Bastos
Editor, 1997, p. 81.
171
inidoneidade para elidir o caráter laico do Estado brasileiro – este sim direito positivo,

norma jurídica expressamente estatuída no articulado da Carta Política.

5.2 A previsão do uso da Bíblia nos regimentos de casas legislativas

O Regimento Interno da Câmara dos Deputados contém dois preceitos de

interesse imediato: 1. faculta o uso da Bíblia Sagrada pelos parlamentares,


estabelecendo que esta deverá estar sempre disponível na mesa da Casa; 2.

determina que no procedimento de abertura de cada sessão pública o Presidente da


Mesa invoque a proteção de Deus, nestes termos:

art.ocuparão
Deputados 79. À horaseus
do início da sessão, os Membros da Mesa e os
lugares.
§ 1º A Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo o tempo da
sessão, sobre a mesa, à disposição de quem dela quiser fazer uso.
§ 2º Achando-se presente na Casa pelo menos a décima parte do
número total de Deputados, desprezada a fração, o Presidente declarará
aberta a sessão, proferindo as seguintes palavras:
‘Sob a proteção de Deus e em nome do povo brasileiro,
iniciamos nossos trabalhos’.

De seu turno, o Regimento Interno do Senado também estabelece que na


abertura de cada sessão pública o Presidente evoque a proteção de Deus:

art. 155. A sessão terá início de segunda a quinta-feira, às 14


horas e 30 minutos, e, às sextas-feiras, às 9 horas, pelo relógio do plenário,
presentes no recinto pelo menos um vigésimo da composição do Senado,
e terá a duração máxima de quatro horas, salvo a prorrogação, ou no caso
do disposto nos arts. 178 e 179.
§ 1º Ao declarar aberta a sessão, o Presidente proferirá as
seguintes palavras: ‘Sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos’.

Em princípio, nenhuma objeção poderia ser feita à previsão regimental, no


caso da Câmara Federal, facultando aos parlamentares o uso da Bíblia Sagrada.

A própria Constituição prescreve a inviolabilidade parlamentar (art. 53),


consistente, segundo escólio de José Afonso da Silva, na “A
172
inviolabilidade é a exclusão do cometimento de crime por parte de Deputados e

Senadores por suas opiniões, palavras e votos”. 178

Também a liberdade de consciência e de manifestação do pensamento são


prestigiadas no Texto Constitucional.

179
Destarte, a Lei Suprema assegura aos parlamentares o uso da Tora , do
Talmude180, do Alcorão181, do Gohonzon182, da Bíblia, dos Brãhmanas 183, dos Textos

de Ifá 184, ou de qualquer outra literatura considerada sagrada ou profana, sem que
para isso tenha havido necessidade de disposição regimental sobre a matéria.

Por este ângulo, ao referir-se exclusivamente à Bíblia Sagrada, a regra


regimental não apenas desconsidera o princípio da laicidade, como também incorre
em flagrante discriminação contra todas as demais confissões religiosas professadas

pelo povo brasileiro, seja as que possuem um corpo doutrinário, uma codificação,
seja as não-codificadas.

De resto, o preceito regimental descura do fato de que o parlamentar é

detentor temporário de mandato político representativo, eleito pelo povo, mais

178
José AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 466.
179
Escritura sagrada dos judeus. v. Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANO, Dicionário das Religiões, p.
217.
180
Coletânea de comentários da literatura judaica. v. Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANO, op. cit., p.
219.
181
Livro sagrado dos muçulmanos. v. Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANO, op. cit., p. 193.
182
Texto sagrado dos budistas. v. George A. MATHER e Larry A. NICHOLS, Dicionário de Religiões
Crenças e Ocultismo, p. 66.
183
Textos sagrados dos hinduistas. v. Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANO, op. cit., p. 175.
184
Escritos sagrados dos candomblecistas. v. J. Omosade AWOLALU. Yorubá Belif and Sacrifices
Rites. Senior Lecture Thesis. University of Oxford, 1979, p. 231.
173
precisamente pelo cidadão, na condição de cidadão e não de fiel, de sorte que

também há de ser preservado o direito daquele eleitor que não professa religião

alguma, mas que crê, ao votar, que a atuação do congressista estará voltada para

os interesses gerais da cidadania, independentemente de qualquer tipo de clivagem


ou orientação religiosa.

Quando mais não seja, a investidura no cargo para o qual foram eleitos

pressupõe que os parlamentares prestem compromisso e tomem posse, donde não


o
se pode olvidar do conteúdo do referido compromisso, consignado no art. 4 do
Regimento Interno da Câmara dos Deputados:

art. 4o, § 3º Examinadas e decididas pelo Presidente as


reclamações atinentes à relação nominal dos Deputados, será tomado o
compromisso solene dos empossados. De pé todos os presentes, o
Presidente proferirá a seguinte declaração: ‘Prometo manter, defender e
cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do
brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil’.
Ato contínuo, feita a chamada, cada Deputado, de pé, a ratificará dizendo:
‘Assim o prometo’, permanecendo os demais Deputados sentados e em
silêncio.

Disposição análoga pode ser encontrada no Regimento Interno do Senado:

art. 4 o, § 1 º. Presente o diplomado, o Presidente designará três


Senadores para recebê-lo, introduzi-lo no plenário e conduzi-lo até a Mesa
onde, estando de pé, prestará o seguinte compromisso: Prometo guardar a
Constituição Federal e as leis do País, desempenhar fiel e lealmente o
mandato de Senador que o povo me conferiu e sustentar a união, a
integridade e a independência do país.
§ 3º . Quando forem diversos os Senadores a prestar o
compromisso a que se refere o parágrafo anterior, somente um o
pronunciará e os demais, ao serem chamados, dirão ‘Assim o prometo’.

Temos assim que as normas regimentais que prevêem o uso da Bíblia e a


invocação de Deus, não apenas contrariam os termos do compromisso prestado

pelos congressistas, igualmente estatuído em norma regimental, como também

174
representam ofensa frontal e direta ao inciso 19, I, da Carta Magna, nomeadamente

ao princípio da laicidade estatal.

A respeito da dignidade da norma jurídica, assinala Ronald Dworkin que:

Se não podemos exigir que o governo chegue a respostas corretas


sobre os direitos dos seus cidadãos, podemos ao menos exigir que o tente.
Podemos exigir que leve os direitos a sério, que siga uma teoria coerente
sobre a natureza desses direitos, e que aja de maneira consistente com
suas próprias convicções (Nota do tradutor: Neste texto, a expressão
‘governo’ traduz a palavra ‘government’, que se refere ao conjunto dos três
poderes – judiciário, legislativo e executivo).185

Se concordamos com Ronald Dworkin que os direitos humanos fundamentais

devem ser levados a sério, forçoso será reconhecer que as normas regimentais
questionadas derivam de interesses e regras estranhas ao ordenamento jurídico
brasileiro.

Ocioso assinalar que norma regimental do Congresso Nacional é ato

normativo sujeito ao controle de constitucionalidade referido no art. 102, inciso I,

alínea “a” da Constituição Federal.

A título de ilustração, vale transcrever normas similares previstas no


Regimento Interno da Assembléia Legislativa de São Paulo e no Regimento da
Câmara de Vereadores da capital paulista.

Regimento Interno da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo

art. 112. À hora do início das sessões, os membros da Mesa e os


Deputados ocuparão seus lugares.
§ 1º A presença dos Deputados, para o efeito de conhecimento de
número para a abertura dos trabalhos e para a votação, será verificada

185
Ronald DWORKIN. Levando os Direitos à Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 282-286.
175
pela listagem respectiva, organizada em ordem alfabética do nome dos
parlamentares e por eles próprios registrada, em Plenário, mediante
digitação em sistema eletrônico, ou, quando este não tiver condições de
funcionamento, mediante assinatura em lista especial.
§ 2º Verificada a presença de pelo menos um quarto dos membros
da Assembléia, o Presidente abrirá a sessão, declarando: ‘Sob proteção
de Deus iniciamos os nossos trabalhos.

Regimento Interno da Câmara de Vereadores de São Paulo

art. 137. Declarada aberta a sessão, o Presidente proferirá as


seguintes palavras: ‘Sob a proteção de Deus, iniciamos os nossos
trabalhos’.
Parágrafo único – A Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo o
tempo da sessão, sobre a Mesa, à disposição de quem dela quiser fazer
uso.

Os exemplos paulistas permitem supor que trata-se de norma regimental


possivelmente localizável nas dezenas de casas legislativas estaduais e nas
milhares de câmaras de vereadores espalhadas pelo país, suposição esta que
robustece a tensão existente entre norma da laicidade e indícios – para dizer o

mínimo – de confessionalismo.

5.3 A fixação de crucifixos ou outros símbolos religiosos em edificações

públicas

A Constituição da República, em seu art. 5 o, inciso LXXIII, refere a expressão


patrimônio público, sendo que o art. 23, inciso I, atribui à União, Estados, Distrito

Federal e Municípios, competência administrativa comum para conservação do

patrimônio público.

Público, segundo prescrição do novo Código Civil (arts. 65 e 66), é aquele

bem pertencente a uma pessoa jurídica de direito público, isto é, União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, do qual derivam os bens de uso comum do povo, os

176
bens de uso especial (entre os quais as repartições públicas), e, os dominiais.

Note-se que a Carta Política equipara ao patrimônio público: a) o patrimônio

de entidade de que o Estado participe; b) a moralidade administrativa, que, sendo


dever da administração pública (art. 37), constitui direito de todos; c) o meio

ambiente, que constitui direito de todos (art. 225); d) o patrimônio histórico e cultural.

Escólio do administrativista Toshio Mukai aponta como características do uso

comum dos bens públicos:

a) a generalidade de sua utilização; b) a não-denominação dos


usuários relativamente ao uso do bem; c) a adequação do uso aos fins
normaisaautilização.
permitir 186
que se destina; d) a inexistência de qualquer gravame para
No que pertine especificamente à administração pública, o
enunciado do art. 37, do Texto Constitucional, é cristalino: A administração
pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...).

Assim, por evidente, os poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, de

quaisquer níveis da federação, estão vinculados àqueles princípios nucleares que


regem a administração pública, tanto que são igualmente obrigados a licitar (Lei n.
8.666/93), a contratar pessoal mediante concurso público, etc.

Examinando o princípio constitucional da legalidade na administração pública,


Celso Antônio Bandeira de Mello realça:

O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração


nada pode fazer senão o que a lei determina. Ao contrário dos particulares,

186
Toshio MUKAI. Direito Administrativo Sistematizado. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 185.
177
os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode
fazer o que a lei antecipadamente autorize.187

Ainda segundo o autor, o princípio constitucional da impessoalidade, um dos


cânones da administração pública,

traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os


administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem
favoritismos nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades
pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação
administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos
de qualquer espécie.188

Note-se que o Texto Constitucional é taxativo ao arrolar os símbolos da


República, nestes termos: “São símbolos da República Federativa do Brasil a

bandeira, o hino, as armas e o selo nacional” (art. 14, § 1º).

No plano infraconstitucional, a matéria é disciplinada na Lei dos Símbolos


o
Nacionais, a Lei n. 5.700, de 1 de setembro de 1971, na qual são indicados os

seguintes símbolos: “art. 1º São Símbolos Nacionais: I - a Bandeira Nacional; II - o


Hino Nacional; III - as Armas Nacionais; e IV - o Selo Nacional”.

Postas as razões nestes termos, evidencia-se o fato de que a fixação de


crucifixos ou outros símbolos religiosos em edificações públicas não encontra
suporte em nenhuma norma do sistema jurídico brasileiro.

Trata-se de um ato vinculado a interesses metajurídicos, que desconsidera o


princípio organizativo da laicidade estatal, dispensa tratamento privilegiado a uma

determinada confissão religiosa em detrimento de outras, e, por conseguinte, torna

187
Celso Antônio Bandeira de MELLO, Curso de Direito Administrativo, p. 76.
188
Ibidem, p. 84.
178
possível a imposição de um gravame a todos os administrados que professem

religião diversa daquela contemplada no símbolo adotado, sem olvidar daqueles que

não professam religião alguma.

É lapidar, neste sentido um raro julgado do Tribunal de Justiça do Estado de

São Paulo:

Retirada de crucifixo da sala da Presidência da Assembléia, sem


aquiescência dos deputados - Alegação de violação ao disposto no artigo
5º, inciso VI da Constituição da República - Inadmissibilidade - Hipótese
em que a atitude do Presidente da Assembléia é inócua para violentar a
garantia constitucional, eis que a aludida sala não é local de culto religioso
- Carência decretada. Na hipótese, não ficou demonstrado que a presença
ou não de crucifixo na parede seja condição para o exercício de mandato
dos deputados ou restrição de qualquer prerrogativa. Ademais, a
colocação de enfeite, (Artigo
Mesa da Assembléia quadro14,
e outros
inciso objetos nas paredes
II, Regulamento é atribuição
Interno), ou seja,da
de âmbito estritamente administrativo, não ensejando violência a garantia
constitucional do artigo 5º, inciso VI da Constituição da República (TJ-SP –
Mandado de Segurança n. 13.405-0 – Rel. Rebouças de Carvalho – j.
02.10.91).

5.4 A mensagem religiosa nas cédulas da moeda nacional

Nas cédulas de 100, 50, 20, 10, 5 e 1 real, moeda corrente, pode-se ler a

seguinte inscrição: “Deus Seja Louvado”.

Nos termos do art. 2 o, da Lei n. 5.895, de 19 de junho de 1973, a fabricação

de papel-moeda, de moeda metálica e a impressão de selos postais e fiscais

federais, além dos títulos da dívida pública federal, é de competência exclusiva da


Casa da Moeda do Brasil, empresa pública vinculada ao Ministério da Fazenda.

Elaboração doutrinária de autoria de Hely Lopes Meirelles, assinala que

Empresas públicas são pessoas jurídicas de Direito Privado


criadas por lei específica, com capital exclusivamente público, para realizar
atividades de interesse da Administração instituidora nos moldes da
iniciativa particular, podendo revestir qualquer forma e organização

179
empresarial.189

O art. 3 o da aludida lei dispõe que o capital da Casa da Moeda do Brasil


pertence integralmente à União Federal.

Regulamentando este diploma normativo, o Decreto n. 2.122, de 13 de

janeiro de 1997, determina que

art. 5º A CMB tem por objeto, em caráter de exclusividade, a


fabricação de papel-moeda e da moeda metálica nacionais, a impressão
dos selos postais e fiscais federais e dos títulos da dívida pública federal.
§ 1º A CMB articular-se-á com os órgãos respo nsáveis pelas
encomendas dos produtos a que se refere este artigo, para os estudos e a
definição das respectivas características técnicas e artísticas e para o
atendimento quantitativo e qualitativo das encomendas formuladas.

Por seu turno, a despeito da negligência semântica com que a Constituição

Federal emprega o termo “publicidade dos atos dos órgãos públicos”, por certo
pretendendo significar propaganda 190, dicção do art. 37, § 1°, da Lei Magna, é nítida

no que se refere aos princípios que devem nortear a propaganda dos atos estatais.

Caráter educativo, informativo e de orientação social figuram como escopo

indeclinável da atividade publicitária financiada pelo erário:


art. 37, § 1°A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e
campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo
ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou
imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores
públicos.

189 Hely Lopes MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p. 324.


190
À luz do Código de Defesa do Consumidor, propaganda relaciona-se com atividade persuasória
voltada para o consumo de produtos e serviços, ao passo que publicidade atina à difusão de idéias.
Suzana Maria Pimenta Catta Preta FEDERIGHI. Publicidade Abusiva: Incitação à Violência. São
Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 69.
180
À evidência, a inscrição de propaganda religiosa nas cédulas da moeda

corrente é incompatível com o princípio da laicidade, consubstanciando ato

normativo perpetrado à margem do direito.

Será útil, para efeito ilustrativo, assinalar preceito consignado na Constituição

da Dinamarca: “Ninguém é obrigado a dar contribuições pessoais a um culto que


não seja o seu” (art. 68).

Também a Constituição Federal da Confederação Suíça registra um


interessante preceito: “Ninguém é obrigado a pagar impostos cujo produto seja
especialmente aplicado às despesas de culto de uma comunidade religiosa à qual

não pertença” (art. 49).

Ainda no terreno exemplificativo, convém transcrever dispositivo da Lei da

Liberdade Religiosa de Portugal, segundo o qual nenhum indivíduo será obrigado a


receber propaganda em matéria religiosa:

“art. 9o , inciso I, alínea “a”. ninguém pode: ser obrigado a professar


uma crença religiosa, a praticar ou a assistir a actos de culto, a receber
assistência religiosa ou propaganda em matéria religiosa;”.

5.5 A questão dos feriados religiosos

Segundo norma do art. 215, § 2º, da Constituição da República, “A lei disporá


sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes

segmentos étnicos nacionais”.

O Texto Constitucional emprega a palavra feriado uma única vez,


especificamente no art. 57, § 1º, segundo o qual na hipótese do dia 15 de fevereiro

181
(data designada para o início da sessão legislativa do Congresso Nacional) recair

em sábados, domingos ou feriados, a reunião anual de abertura dos trabalhos será

transferida para o primeiro dia útil subseqüente.

O vocábulo feriado, deriva do latim feriatu , e significa o dia em que há férias,

em que não se trabalha, consagrado ao lazer, livre.

O aspecto onomasiológico do adjetivo feriado, isto é, o significado atribuído

aquele termo pela linguagem comum, encontra plena correspondência com seu
aspecto semasiológico, sua significação normativa, visto que a Lei n. 662, de 06 de
abril de 1949, prevê que nos feriados nacionais serão permitidas apenas atividades

privadas e administrativas absolutamente indispensáveis. A exceção fica por conta


da Resolução n . 1.774, de 30 de junho de 1980, do Banco Central, que prevê a

possibilidade de decretação de feriado exclusivamente bancário, nas hipóteses de


calamidade pública, perturbação da ordem interna, casos de acentuada gravidade,
além de outros casos enumerados.

A Lei n . 9.093, de 12 de setembro, de 1995, que dispõe sobre Feriados, refere


os termos feriado civil e religioso, sendo que o Decreto n. 83.842, de 14 de agosto

de 1979, delega competência ao Ministro do Trabalho para autorizar o

funcionamento de empresas aos domingos e feriados civis e religiosos.

No ano civil de 2002, o país registrou onze feriados nacionais, a saber:

 1o de janeiro, Ano-novo

 12 de fevereiro, Carnaval

182
 29 de março, Sexta-Feira Santa

 21 de abril, Tiradentes

 1 o de maio, Dia do Trabalho

 30 de maio, Corpus Christi

 7 de Setembro, Dia Independência

 12 de Outubro, Nossa Senhora Aparecida

 2 de Novembro, Finados
 15 de Novembro, Proclamação da República

 25 de Dezembro, Natal

Além destes, registrem-se ainda os feriados bancários ou restrições no

horário de expediente bancário na quinta-feira da Semana Santa, Quarta-Feira de

Cinzas, e nos dias 24 de dezembro e 31 de janeiro, além de outras duas hipóteses,


conforme previsto na aludida Resolução n. 1.774, do Banco Central.

Assim, somadas todas as espécies (civis, religiosos e bancários, aqui


incluídas as restrições no expediente bancário), chegamos a 17 feriados, 10 dos

quais de natureza religiosa, sendo estes, na sua totalidade, de alta significação –


lembrando a locução constitucional – para um único segmento da população

brasileira.

183
Note-se que a indisfarçável predominância do ordenamento religioso nos

dados de experiência aqui aduzidos descortina um fenômeno denominado por

Jürgen Habermas como uma tensão existente entre normas e valores,

considerando-se estes últimos em sua mais simplória acepção.

Dissemos no primeiro capítulo que Max Weber emprega a expressão


“separação das esferas de valor” para designar a separação do Estado da religião.

Com Habermas aprendemos que “direitos não podem ser assimilados a


valores”. 191

Anota o filósofo alemão:

Princípios ou normas mais elevadas, em cuja luz outras normas


podem ser justificadas, possuem um sentido deontológico, ao passo que
os valores têm um sentido teleológico. Normas v álidas obrigam seus
destinatários, sem exceção e em igual medida, a um comportamento que
preenche expectativas generalizadas, ao passo que os valores devem ser
entendidos como compartilhados intersubjetivamente (...) no caso de
normas, ‘correto’ é quando partimos de um sistema de normas válidas, e a
ação é igualmente boa para todos ; ao passo que numa constelação de
valores, típica para uma cultura ou forma de vida, é ‘correto’ o
comportamento que, em sua total idade e a longo prazo, é bom para
nós .192

Tal postulado, vale notar, apenas reafirma a imprescindibilidade do princípio

interpretativo da inegabilidade dos pontos de partida, ou da imperatividade normativa,

pelo que o “ponto de partida”, a solução normativa, o “bom para todos”


habermasiano, a lei como expressão da vontade popular, traça as linhas que

delimitam as fronteiras da interpretação.

191
Jürgen HABERMAS. Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade . v. I Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 315.
192
Ibidem, pp. 316-317.
184
Por consideração à feliz metáfora da moldura, vale lembrar que Hans Kelsen

compara a interpretação à atividade do pintor, que pode e deve lançar mão de cores

e formas para compor seu trabalho, sem contudo extravasar a moldura:

O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura


dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é
conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou
moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. 193

Não será demais realçar que, por força de dispositivo da lei processual

brasileira, no julgamento da lide, cabe ao juiz aplicar as normas legais. 194

Criticando o fenômeno por ele denominado de jurisprudência sentimental,

assevera Carlos Maximiliano que:

Em geral, a função do juiz, quanto aos textos, é dilatar, completar


e compreender; porém não alterar, corrigir, substituir. Pode melhorar o
dispositivo, graças à interpretação larga e hábil; porém, não negar a lei,
decidir o contrário do que a mesma estabelece.195

Prossegue o autor:

Cumpre evitar, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos,


como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo
encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas
quais este se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas
existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por
ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos. 196

No dizer de Francesco Ferrara

193
Hans KELSEN, Teoria Pura do Direito, p. 390.
194
Código de Processo Civil, art. 126.
195
Carlos MAXIMILIANO. Hermenêutica e Interpretação do Direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2000, p. 79.
196
Ibidem, p. 103.
185
desviar-se conscientemente da lei, querer reformá-la ou inová-la
por pretendidas exigências de interesses, é atraiçoar a função do
magistrado. O juiz deve ficar pago com a sua nobre missão, e não ir mais
longe, passando a usurpar os domínios do legislador. Os dois poderes
estão divididos, e assim devem estar.197

Só com esta condição, diria Francesco Ferrara:

se pode alcançar aquela objectiva segurança jurídica que é o bem


mais alto da vida moderna, bem que deve preferir-se a uma hipotética
protecção de exigências sociais que mudam ao sabor do ponto de vista,
ou do carácter, ou das paixões do indivíduo. Esta á força da justiça, a qual
não é lícito perder, se não deve vacilar o fundamento do Estado; mas esta
é também a sua fraqueza, a qual nós devemos pagar, se queremos obter
a inestimável vantagem de o povo nutrir confi ança em que o direito
permaneça direito.198

197
Francesco FERRARA. Interpretação e Aplicação das Leis. Coimbra: Armênio Amado, 1978, p. 173.
198
Ibidem, p. 174.
186
CAPÍTULO 6

EDUCAÇÃO E ENSINO RELIGIOSO

6.1 O princípio constitucio nal da liberdade de crença e a regra do ensino


religioso

A liberdade de crença encontra suporte em um conjunto de princípios gerais,

subprincípios e regras plasmadas na Constituição da República, explorados nos


capítulos anteriores.

Embora seja ocioso, convém recordar que o art. 2 o, inciso I, da Lei Suprema,

situado no rol dos princípios fundamentais, insere entre os objetivos fundamentais


da República o dever de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

O capítulo dos direitos e garantias fundamentais consigna a intangibilidade do


direito à liberdade (art. 5 o, caput), a inviolabilidade da liberdade de consciência e de

crença (art. 5 o, VI) e a proibição da privação de direitos fundada em crença religiosa


(art. 5 o, VIII).

Dicção do art. 19, inciso I, da Carta Magna, estatui os princípios organizativos

da laicidade estatal e da separação das esferas de domínio do Estado e da religião,


proibindo o Estado de adotar uma religião ou crença, financiar atividade religiosa ou

embaraçar o funcionamento de qualquer culto ou confissão.

J. J. Gomes Canotilho propõe a consideração da Constituição como um


sistema normativo aberto formado por duas qualidades de norma - princípios e
regras -, ambas espécies do gênero norma constitucional, revestidas da

187
mesma dignidade e da mesma força de lei (o direito constitucional é direito positivo),

ambas possuidoras da mesma força normativa, porém, apresentando cada uma

delas diferentes graus de concretização (diferente densidade semântica). 199

Consistem os princípios, uma espécie de norma constitucional, em

enunciados de valores, standards jurídicos 200 , normas jurídicas impositivas de


otimização (liberdade, igualdade, dignidade, democracia), expressões das opções

políticas nucleares, dos valores políticos fundamentais, caracterizando-se pelo alto


grau de abstração e por duas funções essenciais por eles desempenhadas: a função
nomogenética, vez que se afiguram como fundamento das regras, e a função

sistêmica, visto como possuem “uma idoneidade irradiante, que lhes permite ‘ligar’
ou cimentar objectivamente todo o sistema constitucional”. 201

A teoria dos sistemas, anota Lambert,

trata do sistema como mecanismo, partes ligadas umas às outras,


independentes umas das outras, como organismo, um princípio comum
que liga partes com partes numa totalidade e como ordenação, ou seja,
intenção fundamental e geral capaz de ligar e configurar as partes num
todo. 202

Já Norberto Bobbio distingue sistema como

199
Sistema jurídico porque conforma um sistema dinâmico de normas; aberto porque suas normas
estão sempre abertas às concepções cambiantes de ‘verdade’ e de ‘justiça’; normativo porque sua
estruturação manifesta-se por meio de normas; regras e princípios porque suas normas se revelam
tanto por meio de princípios quanto de regras. v. J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição , op. cit ., p. 1.033.
200
FERRAZ JR. distingue standards jurídicos como “fórmulas interpretativas gerais que resultam de
valorações capazes de conferir certa uniformidade a conceitos vagos e ambíguos”; v. Tércio Sampaio
FERRAZ JR., op. cit ., p. 223.
201
J. J. Gomes CANOTILHO, op. cit ., p. 1.037.
202
H. Johann LAMBERT, Fragment einer Systematologie. In System und Klassifikation in
Wissenschat und Dokumentation. Meisenheim/Glan, A. Diemer, 1968, apud Tércio Sampaio FERRAZ
JR. op. cit ., p. 66.
188
uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais
existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é
necessário que os entes que a constituem não estej am somente em
relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de
coerência entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico
constitui um sistema, nos perguntamos se as normas que o compõem
estão num relacionamento de coerência entre si, e em que condições é
203
possível esta relação.

Em referência ao tema, inspirada nos estudos de Kerchove e Ost, Maria


Garcia assinala as notas distintivas do sistema autopoiético em contraposição ao

sistema alopoiético:

a máquina allopoétique, como um carro, o resultado do seu


funcionamento é diferente dele mesmo, ao contrário o resultado da
máquina autopoétique não é outra coisa senão ela mesma. (...) Um
sistema autopoiético é, antes de tudo, um sistema suficiente em si mesmo
clôturé). Em direito, esta suficiência é normativa. Somente as normas
(jurídicas podem decidir da pertinência ou da relevância de um elemento
qualquer em relação ao sistema jurídico.204

Adverte, contudo, a autora:

na crítica à autopoiesis do sistema jurídico, Kerchove e Ost


ressaltam o conservadorismo político implícito inerente a essa concepção
de um sistema jurídico hiper-autônomo e hiper-funcional, como se ele
pudesse operar independentemente da intervenção dos atores sociais e
ao abrigo de suas lutas de interesse. 205

Ao ressaltar tal crítica, Maria Garcia descortina sua adesão à teoria sistêmica
alopoiética, não fechada em si mesma, aberta ao meio ambiente, sujeita às
influências produzidas no exterior do sistema, capaz de administrar ordem e

desordem, dissensos, conflitos, enfim, capaz de gerenciar a tensão dialética entre


direito e fato, entre sistema jurídico e lutas sociais.

203
Norberto BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico , p. 71.
204
Maria GARCIA, Desobediência Civil – Direito Fundamental, p. 100.
205
Ibidem, p. 102.
189
Retomando J. J. Gomes Canotilho, este refere outra espécie de norma

constitucional, as regras constitucionais, consistentes em normas cujo grau de

abstração é relativamente reduzido, vez que se afiguram preceptivas de

comportamento, de exigências pragmáticas (impõem, permitem ou proíbem),


enunciando “fixações normativas”, regras de procedimento, porquanto devem ser
cumpridas “na exacta medida das suas prescrições, nem mais, nem menos”. 206

Tal rigidez, denominada por J. J. Gomes Canotilho como lógica do “tudo ou


nada”, é nota caracterizadora das regras constitucionais, vez que elas não deixam
espaço para mediações: são ou não são cumpridas; já os princípios, ao revés, são

standards jurídicos, normas impositivas de otimização, compatíveis, portanto, com


vários graus de concretização, a depender dos condicionantes fáticos e jurídicos.

Por isto mesmo, ainda em contraste com os princípios, os quais admitem


convivência conflituosa entre si, comportando concordância, ponderação,
compromissos e conflitos, e permitindo o balanceamento de valores e interesses, a
convivência de regras é essencialmente antinômica, de sorte que, sendo

contraditórias, elas se excluem.

Importa assinalar que entre princípios e regras (lembrando que aqueles

conformam fundamento destas) situam-se os subprincípios concretizadores, cujo


papel consiste em decompor o conteúdo semântico dos princípios, densificando-os

sucessivamente até que atinjam a forma de regras. Assim, como num vaso
comunicante com tráfego simultaneamente descendente e ascendente, temos:

206
J. J. Gomes CANOTILHO, op.cit., p. 1.037.
190
. princípios estruturantes – conformam os valores basilares;

. princípios constitucionais gerais – decompõem o sentido dos estruturantes;

. princípios constitucionais especiais – especificam o campo de incidência


dos gerais;

. regras constitucionais – prescrevem conduta.

A título de ilustração arriscaríamos conjeturar, tendo em mente o sistema


o
constitucional brasileiro, que o princípio fundamental da liberdade (art. 2 , inciso I),

possui status de princípio estruturante, sendo densificado pelo princípio geral da


intocabilidade do direito à liberdade (art. 5 o, caput), que por sua vez é densificado

pelo princípio especial da inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença


(art. 5 o, inciso VI), que por seu turno se traduz em regra de conduta, aquela que

proíbe a privação de direitos fundada em crença religiosa (art. 5 o, inciso VIII).

Trata-se, por evidente, de uma entre várias combinações possíveis,


considerando-se que, em face do princípio estruturante aludido, diversos outros
o
subprincípios e/ou regras poderiam ser invocados, a exemplo do pluralismo (art. 1 ,
V), da laicidade estatal (art. 19, I), da separação do Estado da religião (art. 19, I),
todos informados pelas regras da liberdade de manifestação do pensamento (art. 5 o,

IV), liberdade de associação (art. 5 o, XVII), para citar apenas algumas.

Valendo-nos deste referencial teórico da lavra de Gomes Canotilho,

poderíamos anotar inicialmente que a regra do ensino religioso, gravada no art. 210,
§ 1º, da Carta Magna, não existe isoladamente no sistema, desconectada de

191
quaisquer outra normas, autonômica.

Antes, contudo, encontra-se enlaçada com o princípio da liberdade de crença,

consoante veremos adiante, pelo que não se pode admitir seja interpretada sem a
consideração do conteúdo jurídico daquele.

À evidência, na medida em que encontra fundamento no princípio da


liberdade, a regra do ensino religioso deve guardar estrita relação de coerência,

sintonia e conformidade com aquele.

Há ainda uma outra consideração preliminar. A regra do ensino religioso

encontra-se inserta no Título VIII (Ordem Social) da Constituição vigente,


especificamente no Capítulo III (da Educação, da Cultura e do Desporto), na Seção
especialmente destinada à Educação, de modo que não apenas pelo lugar que

ocupa na topografia constitucional, mas também porque designa um conteúdo do


ensino, a análise dos seus contornos jurídicos implica um exame da temática
educacional.

6.2 Aspectos constitucionais do direito à educação

Dicção do art. 206 do Texto Constitucional consigna que

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será


promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Derivam deste enunciado as três matrizes de conteúdo expressamente

atribuídas pela Constituição à educação: 1. pleno desenvolvimento da pessoa; 2.


preparo para o exercício da cidadania; 3. qualificação para o trabalho.

192
Decompondo o primeiro objetivo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional – LDB (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) fixa um conceito para a

expressão desenvolvimento integral da criança, referindo o desenvolvimento dos

aspectos físico, psicológico, intelectual e social (art. 29).

Quanto ao enunciado formação básica do cidadão , a Lei de Diretrizes e


Bases lhe atribui os seguintes significados: 1. desenvolvimento da capacidade de

aprender; 2. compreensão dos ambiente natural e social, do sistema político, da


tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; 3.
desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de

conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; 4. fortalecimento


dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca

em que se assenta a vida social (art. 32).

Por fim, o preceptivo constitucional da qualificação para o trabalho, terceiro


objetivo imputado pela Lei Suprema ao sistema de ensino, encontra a seguinte
significação na Lei de Diretrizes e Bases: “A educação profissional, integrada às
diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao

permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva” (art. 39).

Prosseguindo, merece realce a norma do art. 23, inciso V, da Constituição


Federal, segundo a qual “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e


à ciência”.

Disciplinando esta regra de colaboração entre as entidades federativas, a Lei

193
de Diretrizes e Bases da Educação emprega a locução sistemas de ensino ,

compreendendo os sistemas de ensino de âmbito federal, estadual e municipal.

No que se refere aos níveis de ensino, a mesma Lei de Diretrizes e Bases


procede à seguinte demarcação:

. educação infantil, que contempla as crianças de 0 a 6 anos, atendidas em


creches e pré-escolas;

. educação básica, compreendendo os níveis fundamental (primário e

ginasial), de caráter obrigatório e gratuito, com duração mínima de oito anos; e

médio (colegial), com um ciclo de três anos;

. educação de jovens e adultos, destinada aos jovens e adultos privados do


acesso ao ensino na idade regular;

. educação profissional;

. educação superior;

. educação especial.

Vejamos ainda dois outros importantes preceitos constitucionais pertinentes:

art. 206 - O ensino será ministrado com base nos seguintes


princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola;
III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e
coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança
saúde, e ao adolescente,
à alimentação, com absoluta
à educação, ao lazer,prioridade, o direito à àvida,
à profissionalização, à
cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,

194
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Segundo magistério de José Afonso da Silva,

A educação, como processo de reconstrução da experiência, é um


atributo da pessoa humana e, por isso, tem que ser comum a todos. É
essa a concepção que a Constituição agasalha nos arts. 205 a 214,
quando declara que ela é um direito de todos e um dever do Estado. Tal
concepção importa, como já assinalamos, em elevar a educação à
categoria de serviço público essencial que ao Poder Público impende
possibilitar a todos(...).207

No plano das normas infraconstitucionais, três diplomas se destacam como


pilares jurídicos da política educacional no Brasil, quais sejam o Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990), a Lei de Diretrizes e Bases

e o Plano Nacional de Educação (Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001).

O Estatuto da Criança e do Adolescente

Enunciado do art. 208 da Lei n. 8.069/1990, registra a seguinte redação


(extratos):

o
art. 1 Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de
adolescente, referentes
responsabilidade por ofensa
ao não-oferecimento
aos direitos assegurados
ou oferta irregular:
à criançaI -edoao
ensino obrigatório; III - de atendimento em creche e pré-escola às crianças
de 0 (zero) a 6 (seis) anos de idade; V - de programas suplementares de
oferta de material didático escolar, transporte e assistência à saúde do
educando do ensino fundamental;
VI - de serviço de assistência social visando à proteção à família, à
maternidade, à infância e à adolescência, bem como ao amparo às
crianças e adolescentes que dele necessitem;
Parágrafo único. As hipóteses previstas neste artigo não excluem
da proteção judicial outros interesses individuais, difusos ou coletivos,
próprios da infância e da adolescência, protegidos pela Constituição e pela
Lei.
art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa
até 12 (doze) anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12
(doze) e 18 (dezoito) anos de idade.
art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:

207
José AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 397.
195
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários,
ressalvadas as restrições legais; II - opinião e expressão; III - crença e
culto religioso; IV - brincar, praticar esportes e divertir-se; V - participar da
vida familiar e comunitária, sem discriminação; VI - participar da vida
política, na forma da lei; VII - buscar refúgio, auxílio e orientação.

Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB

Da Lei de Diretrizes e Bases da Educação podemos destacar as seguintes


proposições:

3º - O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

Plano Nacional de Educação

O Plano Nacional de Educação indica os seguintes objetivos básicos: 1. a


elevação global do nível de escolaridade da população; 2. a melhoria da qualidade

do ensino em todos os níveis; 3. a redução das desigualdades sociais e regionais no


tocante ao acesso e à permanência, com sucesso, na educação pública; e, 4.

democratização da gestão do ensino público, nos estabelecimentos oficiais,


obedecendo aos princípios da participação dos profissionais da educação na
elaboração do projeto pedagógico da escola e a participação das comunidades

escolar e local em conselhos escolares ou eqüivalentes.

É interessante observar que o Anexo do Plano Nacional de Educação,

destaca que

No Brasil, desde o século XVI, a oferta de programas de educação


escolar às comunidades indígenas esteve pautada pela catequização,
civilização e integração forçada dos índios à sociedade nacional. Dos
missionários jesuítas aos positivistas do Serviço de Proteção aos Índios,
do ensino catequético ao ensino bilíngüe, a tônica foi uma só:
196
negar a diferença, assimilar os índios, fazer com que eles se
transformassem em algo diferente do que eram. Nesse processo, a
instituição da escola entre grupos indígenas serviu de instrumento de
imposição de valores alheios e negação de identidades e culturas
diferenciadas.

Nesta quadra, uma consideração merece destaque: o regime jurídico da


educação, no qual se insere o ensino religioso, encontra fundamento nos contornos
constitucionais da matéria, seja no que tange ao escopo e à concretização do direito

social, seja no que se refere ao respeito e proteção dos direitos fundamentais. A


propósito, a própria Lei de Diretrizes e Bases acentua que a educação deve estar
assentada nos princípios da liberdade (art. 2 o).

A respeito da relação entre educação e direitos fundamentais, assinala Nina


Beatriz Ranieri que

Se as cartas anteriores foram econômicas em relação ao dever do


Estado com a educação, a atual Constituição chega a ser minuciosa.
Fundamentalmente deve ser notada a garantia institucional consagrada no
art. 205. A educação, como tal, tem sujeito e objeto distinto do direito
individual e social à educação, e por isso é protegida como realidade
social. Esta proteção, é certo, expande-se indiretamente para a proteção
daqueles direitos fundamentais. 208

Bem por isso, a Lei de Diretrizes e Bases, o Estatuto da Criança e do


Adolescente e o Plano Nacional de Educação cuidaram de confinar seus desideratos
à disciplina constitucional, realçando o respeito e a proteção da liberdade, inclusive a

liberdade de crença.

208
Nina Beatriz RANIERI, Educação Superior, Direito e Estado – Na Lei de Diretrizes e Bases (Lei n.
9394/96), p. 75.
197
No tocante especificamente à liberdade de crença, convém lembrar a

existência de tratados internacionais que deferem aos pais ou responsáveis o direito

de escolherem a orientação religiosa a ser dada aos filhos:

 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar


a liberdade dos pais - e, quando for o caso, dos tutores legais - de
assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo
com suas próprias convicções (art. 18, item 4).

 Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar


a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais, de escolher
para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autoridades
públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos
ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a
receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas
próprias convicções (art. 13, item 3).

 Convenção sobre os Direitos da Criança209

Nos Estados Partes onde existam minorias étnicas, religiosas ou


lingüísticas, ou pessoas de srcem indígena, não será negado a uma
criança que pertença a tais minorias ou que seja indígena o direito de, em
comunidade com eospraticar
cultura, professar demaissua
membros
própria de seu ou
religião grupo, ter seu
utilizar suapróprio
própria
idioma (art. 30)

Temos assim que, ao disciplinar a matéria educacional, seja à luz do direito


interno, ou da normativa internacional, o sistema jurídico brasileiro ocupou-se de
conferir a máxima efetividade à liberdade de crença e à autonomia individual em
matéria religiosa, inclusive conferindo ao pátrio poder a prerrogativa de escolher a
orientação religiosa a ser dada aos filhos.

209
Promulgada pelo Decreto n. 99.710, de 21 de setembro de 1990.
198
6.3 Notas preliminares sobre o art. 210 , § 1º, da Constituição Federal

Vejamos dicção do art. 210 da Carta Política:

maneiraSerão fixados conteúdos


a assegurar mínimoscomum
formação básica para o eensino fundamental,
respeito de
aos v alores
culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental.
§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua
portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização
de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Parêntese deve ser aberto para uma breve digressão histórica.

A Constituição de 1891 fixava o caráter leigo do ensino público, vedando,


portanto, o proselitismo religioso (art. 72, § 6º).

A Carta de 1934 previa o ensino religioso, de freqüência facultativa, adaptado


à confissão religiosa do aluno e condicionado à manifestação de vontade dos pais
ou responsável (art. 153).

O Texto de 1937 facultava a adoção do ensino religioso nas escolas públicas

primárias, secundárias e normais, de freqüência optativa e sem vincular


compulsoriamente professores ou alunos (art. 133).

A Constituição de 1946 previa o ensino religioso nas escolas oficiais, de


matrícula facultativa, ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno,

indicada por ele, por representante legal ou responsável (art. 168, V).

Já as Cartas de 1967 e 1969 previam o ensino religioso nas escolas oficiais

de grau primário e médio, de matrícula facultativa, (art. 168, § 3º, IV) e (art. 176, § 3º,

199
V), respectivamente.

Uma vista panorâmica das constituições brasileiras revela, assim, o

movimento de transmutação que partiu da proibição do ensino religioso, sua


permissão, respeito à confissão religiosa do aluno, condicionamento à manifestação

de vontade do aluno ou dos pais ou responsáveis, até a matrícula facultativa


circunscrita ao ensino fundamental.

Devemos ressaltar que as Cartas de 1934 e 1937 faziam menção às escolas


públicas primárias, secundárias e normais; a Constituição de 1946 aludia as escolas
oficiais, sem discriminar os níveis de ensino, pelo que poderiam estar contempladas

tanto as creches (educação infantil) quanto as escolas de nível superior; já as Cartas


de 1967 e 1969 permitiam o ensino religioso nas escolas oficiais de grau primário e

médio.

Um outro fato histórico merece especial atenção. Examinando a relação entre


Estado e religião no primeiro período do governo Getúlio Vargas, assinala Boris
Fausto que

Uma importante base de apoio do governo foi a Igreja Católica. A


colaboração entre a Igreja e o Estado não era nova, datando dos anos 20.
Agora ela se tornava mais estreita. Marco simbólico da colaboração foi a
inauguração da estátua do Cristo Redentor no Corcovado, a 12 de outubro
de 1931 - data do descobrimento da América. (...) A igreja levou a massa
da população católica ao apoio do novo governo. Este, em troca, tomou
medidas importantes em seu favor, destacando-se um decreto de abril de
1931 que permitiu o ensino da religião nas escolas públicas. 210

210
Boris FAUSTO. Historia Concisa do Brasil .São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 186.
200
Prosseguindo, importa realçar que, na redação atual, o preceptivo

constitucional contemplou exclusivamente o ensino fundamental, de sorte que exclui

a educação infantil, bem como o ensino médio e a educação superior.

Tendo em mente que o Estatuto da Criança e do Adolescente considera

criança a pessoa menor de 12 anos, e, adolescente, aquela que possui entre 12 e


18 anos (art. 2 o), pode-se concluir que em princípio a regra em comento alcança

crianças (aquelas matriculadas até as 6 a séries) e adolescentes (matriculados na 7a


série e seguintes), presumindo-se que uma criança ingressa no ensino fundamental
aos 7 anos.

6.3.1 Conteúdo jurídico do ensino religioso

Segundo definição acolhida pelo Conselho Nacional de Educação, “Por


ensino religioso se entende o espaço que a escola pública abre para que

estudantes, facultativamente, se iniciem ou se aperfeiçoem numa determinada

religião”.

Anna Candida da Cunha Ferraz anota que “o ensino religioso há de ser


entendido como o ensino de uma religião, ou ensino de religião, de qualquer religião,
211
da religião de opção do aluno”. Arremata a autora: “sempre que a Constituição

utiliza o qualificativo ‘religioso’ ou religiosa, o faz no sentido de ‘relacionado à


religião’”.212

211
Anna Candida da Cunha FERRAZ. O Ensino Religioso nas Escolas Públicas: Exegese do § 1º do
art. 210 da CF de 05.10.1988 in Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política . São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 20, 1996, pp. 38-74.
212
Ibidem, p. 38.
201
Num primeiro exame, portanto, ensino religioso consubstancia uma função do

ensino, um conteúdo curricular.

Arnaldo Niskier assinala que “A formação básica comum é


constitucionalmente definida pelos conteúdos mínimos, cabendo aos subsistemas

sua complementação para imprimir aos currículos uma característica regional”. 213

Cabe relembrar que, no plano infraconstitucional, a Lei de Diretrizes e Bases

da Educação detalha os conteúdos da formação básica, juridicamente delineados à


luz das três matrizes de conteúdo para as quais deve estar voltado o sistema de
ensino, ou seja, pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da

cidadania e qualificação para o trabalho.

Assim, o conteúdo obrigatório da educação, vale dizer, o conteúdo da

formação básica, encontra previsão no enunciado do art. 205 da Lei Suprema,


decomposto pela norma supracitada do art. 32 da Lei de Diretrizes, a qual refere,
insistimos: desenvolvimento da capacidade de aprender; 2. compreensão dos
ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores
em que se fundamenta a sociedade; 3. desenvolvimento da capacidade de

aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a

formação de atitudes e valores; 4. fortalecimento dos vínculos de família, dos laços


de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

Não se pode olvidar também que o art. 208 da Norma Fundamental fixa os

deveres do Estado com a educação, nestes termos:

213
Arnaldo NISKIER. LDB – A Nova Lei da Educação: Tudo Sobre a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. São Paulo: Rio de Janeiro: Consultor, 1996, p. 10.
202
O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada,


inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso
na idade própria;
II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;
III - atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a
seis anos de idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da
criação artística, segundo a capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do
educando;
VII - atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de
programas suplementares de material didático-escolar, transporte,
alimentação e assistência à saúde.
§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público
subjetivo.
§ 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público,
ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade
competente.
§ 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no
ensino funda mental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou
responsáveis, pela freqüência à escola.

Ora, mesmo uma leitura superficial do art. 210, § 1º, da Constituição Federal,
permite captar que trata-se de conteúdo constitucionalmente qualificado como não-

obrigatório, excluído da formação básica, situado, portanto, num patamar inferior às


matrizes de conteúdo obrigatório, seja porque alocado em terreno distinto dos

conteúdos obrigatórios, seja pela razão perfeitamente simples de que a matrícula é

facultativa.

Interpretação meramente gramatical indica que se o conteúdo é opcional, de

livre escolha, facultativo, ele não pode ser simultaneamente basilar, essencial,
principal.

Em homenagem à lógica poderíamos afirmar que sendo opcional não pode


ser essencial, e, se essencial fosse, não poderia ser facultativo.

203
Em suma, sendo facultativo, não é obrigatório, e, não sendo obrigatório, está

excluído dos conteúdos mínimos da formação básica comum a que se refere o caput

do art. 210, bem como das matrizes de conteúdo aludidas no art. 205 da Lei

Suprema, lembrando que no nosso vernáculo o adjetivo básico quer dizer “que serve
de base, basilar, fundamental, principal, essencial”. 214

A respeito desta matéria, anota Anna Candida da Cunha Ferraz que “O

ensino religioso não é matéria curricular comum e obrigatória do ensino


fundamental”.215

Fosse necessário acrescer algo para encarecer a não-inclusão do ensino

religioso na formação básica do ensino fundamental, bastaria lembrar que sua


previsão está endereçada exclusivamente às escolas públicas, de modo que não

seria razoável supor que o constituinte teria arquitetado uma formação básica para o
ensino público distinta daquela projetada para o setor privado.

Conforme sintetiza Nina Beatriz Ranieri, “Em qualquer situação prevalece a


atuação controladora do Estado, para garantia das finalidades de desenvolvimento
da pessoa humana, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação

para o trabalho.216

Assim é que a regra do ensino religioso tal como insculpida no art. 210, § 1º,
da Carta Política, encontra-se em perfeita harmonia com o princípio da liberdade de

crença, vez que, a exemplo da assistência religiosa nas instituições de internação

214
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 276.
215
Anna Candida da Cunha FERRAZ, op. cit., p. 38.
216
Nina Beatriz RANIERI, op. cit., p. 130.
204
coletiva e nas forças armadas, embora com ela não se confunda, permite aos

alunos/fiéis terem acesso, ainda que no horário normal das escolas, à instrução

religiosa, tanto quanto confere aos alunos não-fiéis o direito de não serem coagidos

a aderir ou confessar qualquer religião ou crença.

Do ângulo teleológico, refere-se o ensino religioso, portanto, a uma disciplina


acessória, adicional, opcional, diversa dos conteúdos mínimos da formação básica

do ensino fundamental, do que resulta que seus predicados indubitavelmente


gravitam em torno do regime constitucional da educação, mas vinculam-se muito
mais à fruição e gozo da liberdade de crença, expressando a preocupação do

constituinte de proteger o exercício livre e desembaraçado da liberdade de crença


do alunado.

6.3.2 Aplicabilidade da norma do ensino religioso

Na escassa mas prestigiosa doutrina nacional atinente à matéria, podemos

localizar duas posições distintas acerca da aplicabilidade da regra do ensino


religioso.

Examinando a natureza do dispositivo, Ives Gandra da Silva Martins assevera:

Parece-me que a resposta pode ser apenas uma, apenas, na


medida em que não condicionou, o constituinte, a implementação do
preceito normativo ao surgimento de uma lei para explicitar o conteúdo do
comando superior e se utiliza do ‘vocábulo’ de conteúdo imperativo para
tornar auto-aplicável a norma.217

De outro lado, Anna Candida da Cunha Ferraz assinala que

217
Ives Gandra da SILVA MARTINS, Educação Religiosa nas Escolas Públicas – Inteligência do art.
210 da Constituição Federal – Opinião Legal, p. 117.
205
com efeito, o verbo ‘constituirá indica comando impositivo’, vale
dizer, na organização dos currículos mínimos do ensino fundamental,
deverá constar o ensino religioso. Destarte, no tocante a este conteúdo,
trata-se de norma auto-exeqüível.218

No entanto, na seqüência de seus estudos, adverte a autora que “Em suma, o


preceito contido no § 1º do art. 210 se enquadra naqueles que, embora de

cumprimento obrigatório, demandam regulamentação para sua afetiva aplicação”. 219

Vale notar que, perscrutando a problemática da aplicabilidade das normas

constitucionais, Celso Ribeiro Bastos refuta as teorias que admitem a existência de

diferentes graus de eficácia, uma tese argumentativa que, segundo o autor, permite
concluir que haveriam normas constitucionais desprovidas de sanção – do que
resultaria a existência de normas constitucionais ineficazes.

Para o autor, todas as normas constitucionais têm um mínimo de eficácia, de

modo que ao intérprete incumbe examinar tão somente os diferentes graus de

aplicabilidade. 220

Síntese apertada dos estudos de Celso Bastos sobre a temática da

aplicabilidade das normas constitucionais indica a existência de normas-princípios,


também denominadas principiológicas, que “encarnam autênticos princípios ou

diretrizes” 221 e, de outra parte, as normas-tarefas, ou programáticas, “que

enclausuram dentro de si programas a serem cumpridos”. 222

218
Anna Candida da Cunha FERRAZ, op. cit., p. 35.
219
Ibidem, p. 35.
220
Celso Ribeiro BASTOS, Curso de Direito Constitucional , p. 81.
221
Ibidem, mesma página.
222
Ibidem, mesma página.
206
Para Celso Bastos, “As normas-princípios são desde logo plenamente

aplicáveis e delas não se pode dizer que se espera um desenvolvimento por via de

legislação concretizadora”.223

o
Neste ponto, cumpre realçar que por força do dispositivo do art. 5 , § 1º, da

Constituição da República, “as normas definidoras dos direitos e garantias


fundamentais têm aplicação imediata”.

Prossegue o constitucionalista:

Os princípios não visam, nem atual nem potencialmente, conferir


ou exigir direitos subjetivos. Já no que diz respeito às normas
programáticas, as características
fundamentalmente, a outorga aos são exatamente
cidadãos opostas.
de direitos contraElas almejam,
o Estado, daí
a sua inserção natural nos capítulos referentes aos direitos fundamentais,
tanto os de ordem individual, quanto os de ordem política e social. 224

Apoiando-nos nos postulados de Celso Bastos, poderíamos afirmar que a


norma do art. 210, § 1º, subsume-se no princípio da liberdade de crença, ao tempo

em que confere ao fiel/aluno o direito subjetivo de exigir o acesso à instrução


religiosa, do mesmo modo que assegura ao aluno não-fiel o direito de não-coação

religiosa.

Conforme acentua Anna Candida da Cunha Ferraz, “nesse campo essa


liberdade significa o direito de o aluno ter ensino religioso, optar pelo ensino de uma

ou outra religião, de não freqüentar nenhum ensino de religião”.225

223
Ibidem, p. 92.
224
Ibidem, mesma página.
225
Anna Candida da Cunha FERRAZ, O Ensino Religioso nas Escolas Públicas: Exegese do § 1º do
art. 210 da CF de 05.10.1988, p. 35.
207
Estamos nos referindo, portanto, a uma norma eficaz desde a data da

promulgação da Constituição de 1988, cuja aplicabilidade terminou sendo imputada

pelo legislador ordinário à Lei de Diretrizes e Bases, conforme veremos adiante.

Sob o enfoque da aplicabilidade, duas questões preliminares demandam

especial atenção, a saber: 1. em se tratando de um conteúdo curricular, qual seria a


substância do ensino religioso? 2. quais as obrigações impostas ao Estado pela

norma em exame?

Instado a se manifestar sobre o conteúdo do ensino religioso, o Conselho


Nacional de Educação proferiu um emblemático parecer:

Nesta formulação, a matéria parece fugir à competência deste


Conselho, pois a questão da fixação de conteúdos e habilitação e
admissão dos professores fica a cargo dos diferentes sistemas de ensino.
Entretanto, a questão se recoloca para o Conselho e, especialmente, para
esta Câmara, no que diz respeito à formação de professores para o ensino
religioso, em nível superior, no Sistema Federal de Ensino. Têm chegado
ao Conselho solicitações de autorização e reconhecimento de cursos de
licenciatura em ensino religioso.
Considerando estas questões é preciso evitar que o Estado
interfira na vida religiosa da população e na autonomia dos sistemas de
ensino. Devemos considerar que, se o Governo Federal determinar o tipo
de formação que devem receber os futuros professores responsáveis pelo
ensino religioso, ou estabelecer diretrizes curriculares para curso
específico de licenciatura em ensino religioso, estará determinado, em
grande parte, o conteúdo do ensino religioso a ser ministrado. Esta parece
ser, realmente, a questão crucial: a imperiosa necessidade, por parte do
Estado, de não interferir e portanto não se manifestar sobre qual o
conteúdo ou a validade desta ou daquela posição religiosa e, muito menos,
de decidir sobre o caráter mais ou menos ecumênico de conteúdos
propostos. Menos ainda deve ser colocado na posição de arbitrar quando,
optando-se por uma posição ecumênica, diferentes seitas ou igrejas
contestem os referidos conteúdos da perspectiva de sua posição religiosa,
ou argumentem que elas não estão contempladas na programação. Por
estas razões, parece-nos impossível, sem ferir a necessária
independência entre Igreja e Estado, estabelecer uma orientação nacional
uniforme que seria necessária para a observância dos processos atuais de
autorização e reconhecimento.226

226
Conselho Nacional de Educação. Parecer n. 097/99, Conselheira Eunice R. Durham, aprovado em
06.04.1999.
208
Corroborando esse entendimento, Jónatas Machado assinala que o princípio

da laicidade proíbe o Estado de especular ou pretender adotar qualquer critério de

verdade ou falsidade em matéria religiosa:

O Estado não pode tomar como bom um qualquer padrão


teológico-institucional de ortodoxia ou eclesiologia para a partir daí avaliar
as crenças, normas e instituições das diversas confissões religiosas. Não
dispondo de qualquer critério de verdade ou erro em matéria de fé, ele não
pode pretender cristalizar no tempo e no espaço um determinado credo ou
rito. A religião, como todos os outros domínios da existência humana, está
sujeita às profundas transformações no conhecimento e na experiência,
encontrando-se permanentemente exposta a uma avaliação crítica ou à
substituição das antigas por novas formas de organização, vivência e de
espiritualidade.227

A esta altura já podemos vislumbrar que o princípio da laicidade estatal impõe

uma interdição insuperável à problemática da definição de um conteúdo para o


ensino religioso: estando obrigado a manter-se neutro em matéria religiosa, e sendo

vedada sua manifestação a respeito da verdade religiosa, inclusive em respeito à

liberdade de consciência e de crença, o Estado está absolutamente desautorizado a


deliberar sobre matéria religiosa e, por conseguinte, sobre o ensino daquela matéria.

Estando proibido – por força do preceito do art. 19, inciso I, da Constituição


vigente – de adotar uma religião ou crença, deve o Estado manter-se absolutamente

eqüidistante da promoção da atividade religiosa, renunciando a quaisquer tentações

deliberativas, regulatórias ou executivas nesta seara.

Reconhecida a incompetência estatal nesta seara, forçoso é concluir que a

instrução religiosa configura uma tarefa que admite um e apenas um executor: as

227
Jónatas MACHADO, A Constituição e os Movimentos Religiosos Minoritários, p. 229.
209
confissões religiosas, inclusive porque presume-se que a adesão de novos fiéis deve

ser de interesse de toda e qualquer religião ou crença.

No dizer de Anna Candida da Cunha Ferraz,

não pode o Estado ser compelido a ‘ministrar’ o ensino religioso,


que de resto é facultativo para os alunos. A quem incumbiria, então,
prestar o ensino religioso? Como se trata de manifestação de liberdade de
religião, somente as confissões religiosas, no caso da religião desejada
pelo aluno, poderia ministrar tal ensino.228

Assim, assegurada a manifestação de vontade do aluno e/ou do pai ou


responsável (se criança) ou tão somente do próprio aluno (se adolescente),
manifestação esta que deve ser feita sem a imposição de quaisquer tipos de

embaraços ou constrangimentos, às confissões religiosas compete executar a


instrução religiosa, de acordo com a teologia e os dogmas de cada uma, em

conformidade com o pluralismo tutelado pela Constituição e em estrita obediência à


norma da não-discriminação religiosa.

Consoante síntese de Anna Candida da Cunha Ferraz,

compete ao Poder Público, no que toca à ministração desse


ensino, manter a ordem democrática, diligenciar para assegurar a
igualdade de todas as confissões religiosas no prestar o ensino religioso,
diligenciar para que essa modalidade de ensino não constitua, ela própria
motivo de dissenções ou discriminações, assegurando que o ensino
religioso signifique o pleno exercício da própria liberdade de religião em
todos os seus aspectos. 229

228
Anna Candida da Cunha FERRAZ, O Ensino Religioso nas Escolas Públicas: Exegese do § 1º do
art. 210 da CF de 05.10.1988, p. 33.
229
Anna Candida da Cunha FERRAZ, op. cit., p. 33.
210
Restaria, neste ponto, indagar de um outro aspecto material do ensino

religioso: pode o Estado despender recursos financeiros para suportar o ensino

religioso?

À luz do sistema jurídico brasileiro, a resposta é terminantemente negativa.

Em primeiro lugar porque o enunciado do art. 19, inciso I, do Texto


Constitucional, veda expressamente o financiamento público da atividade religiosa,

sendo desnecessário realçar que instrução religiosa é atividade tipicamente religiosa.

Veja-se dicção ao aludido preceito:

É vedado à União, aos Estados, e ao Distrito Federal e aos


Municípios: 1- Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-
los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na
forma da lei, a colaboração de interesse público.

Convém insistir na afirmação de que o verbo subvencionar significa auxiliar ou


contribuir financeiramente, arcar com despesas, suportar quaisquer tipos de
despesas de quaisquer cultos ou igrejas.

Em segundo lugar, não menos importante, porque o fato gerador da instrução


religiosa é a escolha, a opção, a vontade do aluno, algo rigorosamente sujeito à

mutações, de sorte que as regras constitucionais da eficiência e da probidade da


administração pública impedem o Estado de financiar, em caráter permanente, um

serviço cuja procura é inapelavelmente incerta, indeterminada e mutável.

211
Conforme acentua Anna Candida da Cunha Ferraz, é inadmissível que se

possa contratar pessoal em caráter permanente para ministrar um conteúdo

acessório e facultativo. 230

É assim que em homenagem à vedação constitucional do financiamento

público da atividade religiosa, a autora conclui que a obrigação imposta ao Estado


deve estar limitada à disponibilização de espaço físico, designando salas de aula e

fixando horários para que, mediante solicitação, os representantes das confissões


religiosas possam ministrar o ensino religio so. Todavia, malgrado a proficiência e a
perspicácia das investigações de Anna Candida da Cunha Ferraz, forçoso é

reconhecer que a disponibilização de salas de aula implica, per si, na imposição de


despesas para os cofres públicos.

Deste modo, salvo melhor juízo, a disciplina de ensino religioso impõe ao


Estado tão somente o dever de reservar, na grade curricular, horários para que os
alunos interessados no ensino religioso estejam liberados de outras atividades, de
modo que possam dirigir-se à instituição religiosa mais próxima de sua escola ou de
sua residência, escolhida por eles ou pelos seus responsáveis, para que ali recebam

a instrução religiosa que melhor lhes aprouver.

Convém realçar, neste estágio, o valioso preceptivo constitucional segundo o


qual a educação será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade

(art. 206, caput), bem como o meritório princípio arrolado no art. 3 o, inciso X, da Lei

230
Ibidem, p. 43.
212
de Diretrizes e Bases, por força do qual o ministério do ensino deve contemplar e

valorizar a experiência extra-escolar.

Isto posto, ao disponibilizar horários para o ensino religioso, o Estado cumpre


seu papel de garantir a disciplina nos horários normais das escolas, proporcionando

o acesso ao ensino religioso, valorizando a experiência extra-escolar e conferindo


eficácia ao mandamento constitucional.

Tendo em conta o caráter facultativo da matrícula, do que decorre a


impossibilidade da imposição de quaisquer critérios de avaliação, de aprovação ou
reprovação, a liberação dos alunos para freqüentar a instituição religiosa de sua

escolha exaure as obrigações estatais impostas pelo preceito constitucional em


comento.

6.4 A inconstitucionalidade da Lei n. 9.475, de 22 de julho de 1997

A versão srcinal do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases regulamentava a


matéria de forma a evitar quaisquer interferências do Estado no conteúdo do ensino

religioso:

art. 33 - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui


disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental, sendo oferecido sem ônus para os cofres públicos, de acordo
com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis,
em caráter:
I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do
seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos
preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades
religiosas; ou
II – interconfessional, resultante de acordo entre diversas
entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do
respectivo programa.

Não obstante, passados sete meses da promulgação da Lei de Diretrizes, o

213
Congresso Nacional aprovava a Lei n. 9.475/1997, alterando especificamente o

aludido art. 33, e impondo modificações substantivas em sua redação:

art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte


integrante normais
horários da formação
das básica
escolasdopúblicas
cidadão de
e constitui
ensino disciplina dos
fundamental,
assegurando o respeito à diversidade cultural, religiosa do Brasil, vedadas
quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para
a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas
para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída
pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos
do ensino religioso.

Na redação primitiva, a Lei de Diretrizes e Bases assegurava a manifestação

de vontade do aluno, vedava a imposição de encargos ao erário, e atribuía às


confissões religiosas a responsabilidade pela ministração do ensino religioso.

Na redação atual, a primeira observação a ser feita diz respeito ao status que

se pretendeu impor ao ensino religioso. Com efeito, à margem da disciplina


constitucional da matéria, a nova lei prescreve a adesão religiosa, a profissão

religiosa como condição supostamente necessária para a formação básica do


cidadão, indiferenciando cidadão de fiel, e impondo a confissão religiosa como se

fora um dever jurídico, sem a qual o indivíduo estaria inabilitado para o exercício da

cidadania.

Nem mesmo a longínqua Constituição de 1824, francamente confessional,


que adotava a noção de religião de Estado e limitava a liberdade de culto, teria ido
tão longe em termos de compelir o indivíduo a adotar uma confissão religiosa.

Ao prescrever o ensino religioso como condição básica para a formação do

cidadão, a nova lei não deixa margem para dúvidas ou tergiversações: a

214
partir da data de sua promulgação, o Brasil passou a contar com dois tipos de

cidadãos: o cidadão perfeito, pleno, qual seja, aquele cuja formação contemplou a

iniciação religiosa escolar; e, o cidadão imperfeito, inacabado, isto é, aquele cuja

formação prescindiu da catequese escolar, o que inclui todos os alunos das escolas
privadas, visto que destas não se exige a instrução religiosa.

Numa penada, o ensino particular passou a ser considerado inepto para

formar cidadãos plenos, ao passo que o ensino público foi ressuscitado, agora na
condição de centro de excelência no preparo para o exercício da cidadania.

Há ainda um aspecto inusitado na lei em comento: por força do disposto no

art. 1 o da Lei de Diretrizes e Bases, “A educação abrange os processos formativos


que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas

instituições de ensino e de pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da


sociedade civil”.

Este mesmo dispositivo não se aplicaria, entretanto, à educação religiosa:


será cidadão pleno apenas e tão somente aquele cujo aprendizado religioso tenha-
se dado no espaço escolar, pelo que a nova lei terminou decretando a falência de

quaisquer outras instituições que se ocupem da instrução religiosa, visto como, no

mínimo, suas atividades deixaram de ser suficientes para formar o fiel/cidadão.

Doravante, recai fundamentalmente sobre a catequese escolar a

responsabilidade pela instrução do fiel, condição tida como essencial para o

exercício da cidadania.

215
Dito de outro modo, à vista de uma suposta ineficiência das confissões

religiosas para desempenharem seu mister, o Estado, em defesa da elevação da

qualidade do ensino e do aperfeiçoamento do cidadão, teria intervindo prontamente,

transformando um conteúdo acessório e opcional em serviço público essencial, e


atribuindo à educação uma finalidade não prevista na Constituição da República.

De resto, se o ensino religioso é condição básica para a formação do cidadão,

está eliminada a possibilidade de escolha, de opção ou não pela freqüência, enfim,


lei ordinária terá derrogado a regra constitucional que fixa o caráter facultativo da
matrícula, visto que é razoável supor que todo e qualquer aluno irá preferir ingressar

na galeria dos cidadãos plenos.

Configurando uma ofensa frontal e direta ao princípio da laicidade e da

separação do Estado da religião, a nova lei tratou de suprimir a proibição de encargo


para os cofres públicos, prevista no art. 19, inciso I, da Lei Suprema, e na redação
srcinal da Lei de Diretrizes e Bases, de modo que determina o treinamento e
admissão de professores, à expensas do erário, naturalmente. Os sistemas de
ensino, é dizer, o Estado passou a ter autorização, ao arrepio do princípio

constitucional da laicidade e da separação Estado/religião, para definir os

fundamentos da religião e do ensino religioso, de modo que passou a deter poderes


para auscultar, selecionar e sistematizar meticulosamente os caracteres da verdade

religiosa, e, ouvidas solenemente todas as confissões, reverenciada a diversidade e


sofreado o proselitismo, deverá então organizar um cabedal de conhecimento

religioso, decerto condizente com os patamares de excelência do ensino oferecido


pela escola pública no Brasil.

216
Por último, mas não em último, a lei em tela instituiu uma obrigação repelida

pelo Texto Constitucional: as confissões religiosas interessadas em ser ouvidas,

ficam obrigadas a se associar numa entidade civil.

Indiferente aos crescentes clamores públicos pela desburocratização estatal,

a lei determina que as con fissões religiosas serão, sim, ouvidas, não de viva voz,
mas por intermédio de um porta voz – uma entidade civil. Para supostamente

resolver um problema de natureza religiosa, optou-se por nomear como interlocutora


principal uma entidade de natureza civil.

6.5 Notas sobre a imple mentação do ensin o relig ioso nos Est ados de São

Paulo e Rio de Janeiro

Visando ilustrar o impacto da indigitada Lei n. 9.475/1997 no direito estadual,

julgamos conveniente assinalar breves notas sobre a implementação do ensino


religioso em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Em São Paulo, Lei Estadual n. 10.783, de março de 2001, “Dispõe Sobre o

Ensino Religioso na Rede Pública Estadual de Ensino Fundamental”, determinando:

art. 1º. O ensino religioso constitui disciplina dos horários normais


das escolas da rede pública estadual de ensino fundamental, ficando
assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa, vedado o
proselitismo ou o estabelecimento de qualquer primazia entre as diferentes
doutrinas religiosas.

Deliberação do Conselho Estadual de Educação, de n. 16/2001, assegura às


instituições religiosas das mais diversas orientações, horário para oferta de ensino

confessional, de caráter facultativo para os alunos, e institui um órgão consultivo,

217
com representação de todas as confissões para definição do conteúdo do ensino

religioso.

De sua parte, o Decreto Estadual n. 46.802, de 05 de junho de 2002,


determina que o ensino religioso deve ser ministrado pelos próprios professores

pertencentes ao quadro do Magistério da Secretaria de Educação (art. 4º), com


caráter supraconfessional (art. 2º), devendo assegurar o respeito a Deus, à

diversidade cultural e religiosa e fundamentar-se no princípio da tolerância, entre


outros, além de vedar o proselitismo, o preconceito ou a violação de direitos
individuais dos alunos e professores (art. 2º).

Merece aplausos a preocupação do Estado de São Paulo de assegurar que o


ensino religioso tenha caráter interconfessional. Não obstante, a esta altura

esperamos ter chamado a atenção do leitor para as insuperáveis dificuldades que se


colocam para o Estado no tocante à definição de matéria religiosa.

Ademais, o aproveitamento dos próprios professores da rede coloca o


problema de que um mesmo professor possa ministrar a disciplina de geografia, por
exemplo, e, ao mesmo tempo, a de ensino religioso, uma situação que dá ensejo a

embaraços ou mesmo constrangimentos aos alunos, optantes ou não pelo ensino

religioso.

No caso do Rio de Janeiro, a Lei Estadual n. 3.459, de 14 de setembro de

2.000, que “Dispõe Sobre o Ensino Religioso Confessional nas Escolas da Rede

Pública de Ensino do Estado do Rio de Janeiro”, preceitua:


art. 1º. O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte
integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina obrigatória
dos horários normais das escolas públicas, na Educação
218
Básica, sendo disponível na forma confessional de acordo com as
preferências manifestadas pelos próprios alunos a partir de 16 anos,
inclusive, assegurado o respeito à diversidade cultural e religiosa do Rio
de Janeiro, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
Parágrafo único. No ato da matrícula, os pais ou responsáveis
pelos alunos deverão expressar, se desejarem, que seus filhos ou
tutelados freqüentem as aulas de Ensino Religioso.
art. 2º Só poderão
oficiais, professores ministrar
que atendam àsaulas de Ensino
seguintes Religioso nas escolas
condições:
I – Que tenham registro no MEC e, de preferência que pertençam
aos quadros do Magistério Público Estadual;
II – tenham sido credenciados pela autoridade religiosa
competente, que deverá exigir do professor,formação religiosa obtida em
Instituição por ela mantida ou reconhecida.
art. 3º Fica estabelecido que o conteúdo do ensino religioso é
atribuição específica das diversas autoridades religiosas, cabendo ao
Estado o dever de apoiá-lo integralmente.

Lei Estadual n. 3.280, de 29 de outubro de 1999, “Institui no âmbito do Estado

do Rio de Janeiro o Estudo dos Livros da Bíblia, integrando o Ensino Religioso nas
Escolas Públicas”, apresenta a seguinte redação:

art. 1º O Estudo dos Livros da Bíblia integrará a disciplina de


ensino religioso, de matrícula facultativa, nas escolas públicas do âmbito
do Estado do Rio de Janeiro, objetivando repassar aos alunos os valores
morais e espirituais de construção de uma cidadania digna, fraterna e
respeitosa.

Dispensável assinalar que a Lei estadual n. 3.459/2000 estabeleceu norma

pretensamente srcinária, e não secundária, de sorte que a Constituição Federal


permite o ensino religioso apenas no ensino fundamental, mas a matéria estadual 231

dispôs a obrigatoriedade da disciplina nas escolas públicas de educação básica,

pelo que incluiu o ensino médio – além do ensino fundamental.

231
Na trilha da norma estadual, o município do Rio de Janeiro aprovou a Lei Municipal n. 3.228, de 26
de abril de 2001, literalmente copiando os termos da norma estadual em comento.
219
Vale notar que, mesmo antes da edição da lei estadual que regulamenta o

ensino religioso, uma outra lei já determinava um dos seus conteúdos, isto é, o

estudo dos Livros da Bíblia.

A respeito dos princípios gerais de direito constitucional, aduz José Afonso da

Silva:

O que é possível afirmar é que aqueles princípios e outros, como o


do sistema de governo, sua f orma, a repartição ou colaboração de
Poderes, etc. formam temas de uma teoria geral do direito constitucional,
por envolverem conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter seu
estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional, sem negar a
existência real de princípios gerais do direito constitucional, induzidos da
realidade histórico-constitucional de cada povo.232

O autor realça textualmente um princípio geral de direito constitucional: “a


proteção da autonomia individual em face do poder, decorrente da declaração dos
direitos individuais e garantias constitucionais”. 233

À evidência, a aludida Lei federal n. 9.475/97 e suas congêneres estaduais,

certificam a distância existente entre o princípio constitucional da autonomia


individual, o cânone da liberdade de crença e o tratamento infraconstitucional

conferido à liberdade de crença.

O hiato tantas vezes existente entre norma constitucional e o mundo dos fatos,

vale dizer, a “falta de correspondência entre o descrito e o prescrito pela Lei Maior e

232
José AFONSO DA SILVA, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 121.
233
Ibidem, mesma página.
220
o concretizado ou materializado no mundo empírico”, levaram Celso Bastos a

declarar que “Somos uma nação carente de vivências constitucionais”. 234

Celso Bastos adverte, no entanto, para o fato de que uma Constituição não se
cumpre espontaneamente e conclama o povo para assumir seu papel de agente

ativo, organizando-se e mobilizando-se, inclusive para fazer com que o Judiciário


seja o seu intérprete no trabalho de concretização da Constituição.

Sentencia o aclamado constitucionalista: “Pode parecer estranho que haja


necessidade de exercer pressão nesse sentido. Todavia, é assim que se passam as
coisas”. 235

Nesta quadra do nosso trabalho, o estágio da finalização, sentimo-nos no


dever de declinar uma palavra a respeito das razões da escolha deste tema de

pesquisa.

Antônio Joaquim Severino, no seu clássico “Metodologia do Trabalho


Científico”, refere uma interessante construção de autoria de Ana Maria Cintra,

nestes termos:

Quaisquer que sejam as distinções que se possam fazer para


caracterizar as várias formas de trabalhos científicos, é preciso afirmar
preliminarmente que todos eles vêem em comum a necessária
procedência de um trabalho de pesquisa e de reflexão que seja pessoal,
autônomo, criativo e rigoroso .236
Trabalho pessoal no sentido em que qualquer pesquisa, em
qualquer nível, exige do pesquisador um envolvimento tal que seu objetivo

234
Celso Ribeiro BASTOS, Curso de Direito Constitucional, pp. 82-83.
235
Ibidem, p. 83.
236
Antonio Joaquim SEVERINO.Metodologia do Trabalho Cientifico . 22. ed. São Paulo: Cortez, 2002,
p.145.
221
de investigação passa a fazer parte de sua vida; 237 a temática deve ser
realmente uma problemática vivenciada pelo pesquisador, ela deve lhe
dizer respeito. Não, obviamente, num nível puramente sentimental, mas no
nível da avaliação da relevância e da significação dos problemas
abordados para o próprio pesquisador, em vista de sua relação com o
universo que o envolve. A escolha de um tema de pesquisa, bem como a
sua realização , necessariamente é um ato político. Também, neste âmbito,
238
não existe neutralidade.

Os fatos de intolerância e discriminação religiosa subjacentes à normativa, à


doutrina e aos postulados nos quais o presente trabalho se apoiou, repugnam a

consciência do autor.

Bem por isso não poderíamos deixar de reverberar uma antológica


formulação dos enciclopedistas, mais especificamente de Diderot, que, na aurora do

Iluminismo já exortava:

“Não nos importamos mais em impor aqui os limites precisos da tolerância,

em considerar a caridade que a razão e a humanidade reclamam em favor dos


errantes com esta culpável indiferença que nos faz ver sob o mesmo aspecto todas

as opiniões dos homens. Pregamos a tolerância prática e não mais a especulativa; E,

desta forma, é possível sentir a diferença que existe entre tolerar uma religião e
aprová-la”. 239

237
A. M. M. CINTRA. Determinação do Tema de Pesquisa in Ciência da Informação. Brasília, 11 (2):
13-16, 1982 apud Antonio Joaquim SEVERINO, op. cit ., p.145.
238
Ibidem, p. 14.
239
Denis DIDEROT, Textes Choisis de L’Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des
Arts et des Métiers, p. 249.
222
CONCLUSÕES

1. O antropocentrismo, nota caracterizadora do movimento iluminista,

deflagrou a controvérsia sobre a delimitação do espaço religioso, provocando a


demarcação do pensamento político do raciocínio religioso.

Do Iluminismo brotou o movimento separatista, propugnando a distinção do


cidadão do fiel, considerando a temática religiosa um assunto de natureza privada e
exigindo que o governo civil se ocupasse tão somente da dimensão da cidadania.

2. A separação do Estado da religião engendrou a reivindicação do direito à


liberdade de crença, nos marcos das liberdades públicas, buscando preservar a

autonomia individual, postulando a imunidade de coação e pleiteando tão somente


a proteção estatal do fato religioso, erigindo a crença religiosa em bem jurídico

constitucionalmente tutelado.

3. O movimento constitucionalista, as declarações de direitos, e a legislação


separatista que se seguiu em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, colocou
em questão a relação entre ordenamento jurídico e ordenamento religioso,
demarcando os três modelos básicos: Estado confessional, caracterizado pela
justaposição entre ordenamento estatal e ordenamento religioso; Estado leigo, cuja

característica é a indiferença ou mesmo o repúdio estatal pelo ordenamento religioso;


e Estado laico, no qual ordenamento jurídico e ordenamento religioso mantêm

relação de independência, cada qual incidindo em distintas dimensões da existência


humana.

223
4. Estado pode ser definido como a sociedade soberana, surgida com a

ordenação jurídica, cuja finalidade é regular globalmente as relações sociais de

determinado povo fixo em dado território sob um poder, destinando-se ainda à

promoção do bem comum do povo (Geraldo Ataliba e Dalmo Dallari).

5. Religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas


sagradas, práticas que reúnem numa mesma comunidade moral todos aqueles que

a ela aderem (Durkheim).

6. A história do direito constitucional brasileiro, sob a ótica da relação


Estado/religião, apresenta uma trajetória acidentada, tumultuada e disforme,

transitando entre a intolerância religiosa prevista em lei até declarações solenes de


laicidade e separação.

7. A disciplina constitucional da liberdade de crença contempla


expressamente o princípio organizativo da laicidade estatal e da separação entre
Estado e religião, irradiando-se por todo o sistema, impondo obrigações aos Estados
e aos particulares e subordinando a atividade regulamentadora.

A Lei Suprema outorga à República um caráter inequivocamente laico, mas

protege a liberdade de crença, por meio de um leque de direitos e garantias.

A possibilidade de cooperação entre Estado e religião somente pode ser


determinada por lei, respeitando-se a igualdade de todas as religiões e crenças e

vedando-se qualquer forma de discriminação.

8. A igualdade de todas as religiões e crenças perante a lei implica na

proteção e garantias contra qualquer forma de discriminação injusta, seja


224
de natureza legal, judicial, administrativa ou promovida por particulares; de outra

parte, a liberdade religiosa demanda a garantia da fruição e gozo de todos os

direitos e prerrogativas deferidos às confissões, associações, ministros religiosos,

fiéis e templos.

9. Considerada uma matéria de natureza privada, a fundação da confissão


religiosa não requer qualquer certificação prévia por parte do Estado, exigindo-se tão

somente o registro da associação religiosa nos termos da lei civil. Inexiste, no


ordenamento jurídico brasileiro, a figura da religião oficial, religião de Estado ou
religião reconhecida.

10. Sob a ótica dos direitos fundamentais, a liberdade de crença apresenta


um núcleo cuja descrição é delineada antes pelo exame da atividade

regulamentadora, legiferante, do que por qualquer exercício conceitual, taxinômico,


visto que a crença situa-se numa esfera indevassável da individualidade – e é
insuscetível de regulação estatal.

11. A liberdade de crença compreende a liberdade de não crer, de ser


indiferente, agnóstico, ateu, ou seja, contempla o direito de não aderir a qualquer

confissão; mas implica também no direito de escolher ou mudar de religião ou

crença, e de exercer todos os direitos outorgados aos fiéis, sem quaisquer tipos de
preferências e/ou discriminações.

12. Em sua dimensão positiva, a liberdade de crença assegura ao indivíduo o

direito de não-coação, de não ser constrangido a aderir a uma religião, o direito de


não ser discriminado em função de crença ou descrença; já em sua dimensão

225
negativa, a liberdade de crença assegura ao indivíduo o direito de exercer de modo

livre e desembaraçado todas as prerrogativas deferidas aos fiéis, ao culto, às

associações, aos ministros religiosos.

13. A liberdade de crença manifesta-se, exterioriza-se por meio do culto, da

liturgia e da organização religiosa. Trata-se de manifestações que intersecionam a


liberdade de reunião e de manifestação do pensamento, subordinando-se à

legalidade, inclusive à polícia administrativa.

14. A Lei Maior assegura a assistência religiosa nas instituições de internação


coletiva, sempre prestigiando a autonomia individual, a manifestação de vontade do

assistido e garantindo o contato do fiel com os ministros religiosos.

15. Ministro Religioso, confissão religiosa, institutos de vida consagrada,

ordem ou congregação religiosa, possuem contornos jurídicos que devem ser


interpretados conforme a Constituição.

16. Ministro Religioso designa o indivíduo que dedica sua vida ao ofício

religioso, com ou sem habilitação conferida por instituto teológico, dedicando-se à


difusão, propaganda e ensinamento de doutrinas e crenças, à celebração de cultos e

cerimônias, à organização das comunidades religiosas e à observância das normas

estabelecidas, desde que devidamente indicados para o exercício de suas funções


pela associação ou comunidade a que esteja vinculado, ou por superior religioso.

17. Confissão religiosa designa a instituição baseada em uma comunidade ou


associação de indivíduos unidos pela profissão de uma mesma crença ou religião,
vinculados por uma ética religiosa e cooperados para a consecução de

226
cultos, liturgias, cerimônias, ritos, práticas, deveres religiosos e angariamento de

adeptos.

18. Associação religiosa é a personificação civil e jurídica da confissão


religiosa, pelo que a inscrição dos estatutos e atos constitutivos no registro das

pessoas jurídicas dá ensejo à sua existência legal, a partir do que lhe é atribuída
uma personalidade civil e reconhecida sua capacidade para ser titular de direitos.

19. O sistema jurídico defere ao Ministro Religioso o status de dignitário,

outorgando-lhe o direito de celebrar casamento, de ter acesso a hospitais e


institucionais prisionais, de ser recolhido em cela especial antes do trânsito em

julgado de sentença condenatória, e de ser sepultado no próprio templo.

20. O casamento religioso, o funeral religioso, a imunidade tributária, a

isenção de taxas de limpeza pública e a proteção locatícia dos templos, bem como a
formação de escolas confessionais e de institutos teológic os, inscrevem-se entre os
direitos assegurados às associações religiosas.

21. A Constituição vigente proíbe a privação de direitos fundada em critério


religioso e determina a punição de qualquer discriminação atentatória dos direitos e

liberdades fundamentais. Na qualidade de direito subjetivo, a liberdade de crença

encontra um conjunto de garantias no sistema jurídico, as quais se traduzem em


medidas hábeis para obstar ou reparar a violação do direito.

22. O princípio da laicidade e da separação do Estado da religião, a igualdade,


a liberdade, a dignidade da pessoa humana, a honra, a proibição de tratamento

227
degradante e a tolerância religiosa figuram entre os bens jurídicos tutelados pela

liberdade de crença.

23. Tolerância religiosa pode ser definida como abstenção de hostilidades em


face de religiões ou crenças diversas daquela do observador, ressalvado que o

termo encerra uma carga negativa, indicando uma condescendência com algo
censurável em princípio. Melhor seria o emprego do termo transigência religiosa,

significando acordo, transação, concessão recíproca.

24. O instituto da responsabilidade civil objetiva por discriminação religiosa na


educação, o Mandado de Segurança, a Ação Popular, a Ação Civil Pública, a Lei de

Abuso de Autoridade, a Lei da Tortura, o Código Penal, figuram entre os diplomas


idôneos para a defesa judicial da liberdade de crença. Destaque deve ser

assegurado à Lei n. 7.716/89, que pune a prática, a indução ou a incitação da


discriminação ou preconceito religioso.

25. À eficácia do princípio da laicidade estatal se opõem condicionantes


históricos e fáticos, configurando uma tensão entre norma da laicidade e fatos de
inspiração confessional, engendrando um fenômeno denominado por Habermas

como tensão entre direitos e valores.

26. A menção a Deus no preâmbulo da Constituição Federal, a previsão do


uso da Bíblia nos regimentos de casas legislativas, a fixação de crucifixos em

edificações públicas, a mensagem religiosa nas cédulas da moeda nacional e a

matéria dos feriados são exemplos da tensão existente entre direitos e valores.

228
27. A Constituição consubstancia um sistema normativo formado por duas

qualidades de normas: os princípios e as regras. Os princípios encerram enunciados

dos valores políticos fundamentais, standards jurídicos, os quais servem de

fundamento para as regras e funcionam como balizas para o inter-relacionamento


entre todas as normas do sistema constitucional.

28. Na medida em que encontra fundamento no princípio da liberdade de

crença, a regra do ensino religioso deve guardar estrita relação de coerência,


sintonia e conformidade com aquele, embora apresente traços de proximidade com
o direito educacional.

29. A disciplina constitucional da educação atribui aos sistemas de ensino o


papel de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício

da cidadania e a qualificação para o trabalho.

30. O Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases da


Educação e o Plano Nacional de Educação, além de tratados internacionais
ratificados pelo Brasil, asseguram aos pais ou responsáveis o direito de escolherem
a orientação religiosa a ser dada aos filhos, além de respeitarem a autonomia dos

alunos, em termos de optarem ou não pela instrução religiosa.

31. Disciplina não-obrigatória, acessória, adicional, opcional, excluída dos


conteúdos mínimos da formação básica do ensino fundamental, o ensino religioso

designa o espaço que a escola pública abre para que estudantes, facultativamente,

se iniciem ou se aperfeiçoem numa determinada religião (Conselho Nacional de


Educação/Ministério da Educação).

229
32. O princípio da laicidade implica a neutralidade estatal na seara religiosa,

pelo que proíbe o Estado de deliberar sobre matéria religiosa, e, conseqüentemente,

sobre instrução religiosa. Do mesmo modo, o princípio da laicidade veda a assunção,

pelo Estado, da tarefa de ministrar o ensino religioso, donde a execução deste


competir exclusivamente às confissões religiosas. Ademais, a laicidade impede o
Estado de despender quaisquer tipos de recursos para financiar a atividade religiosa.

33. A disciplina do ensino religioso impõe ao Estado tão somente o dever de


reservar, na grade curricular, horários para que os alunos interessados no ensino
religioso estejam liberados de outras atividades, de modo que possam dirigir-se à

instituição religiosa mais próxima de sua escola ou de sua residência, escolhida por
eles ou pelos seus responsáveis, para que ali recebam a instrução religiosa que

melhor lhes convier.

34. A Lei n. 9.475/97 pretendeu erigir a instrução religiosa à categoria de


conteúdo obrigatório do ensino fundamental, impondo a confissão religiosa como
condição básica para a formação do cidadão, permitindo o financiamento público do
ensino religioso, autorizando o Estado a deliberar sobre matéria religiosa e

constrangendo as confissões religiosas a se associarem para fins de serem ouvidas

no processo de definição do conteúdo da instrução religiosa. Trata-se de uma


ofensa direta e frontal à Constituição da República.

35. De lege ferenda, vale notar que o regime jurídico da liberdade de crença
seria melhor delimitado com a regulamentação do art. 5o, inciso VI, da Carta Política,

que prevê a proteção dos locais de culto e suas liturgias, e também do art. 19, I, que

delega à lei poderes para definir as hipóteses de colaboração entre

230
Estado e religião. O ideal seria a adoção de uma norma disciplin ando globalmente a

liberdade e organização religiosa, a exemplo da Lei da Liberdade Religiosa de

Portugal. Seria útil, também, a instituição de uma Comissão de Defesa da Liberdade

de Crença, no âmbito do Ministério da Justiça, à qual incumbiria, entre outras


atribuições, acompanhar a implementação dos tratados internacionais pertinentes.

Por último, parece-nos que seria igualmente interessante a adoção, pelo

sistema interamericano e pelo sistema internacional de proteção dos direitos


humanos, de uma convenção internacional sobre a liberdade de crença.

231
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