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Jacques Stehman
História da
Música Européia
das origens aos nossos dias
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© 1964 by Éditions Gérard ir C", Verviers (Bélgica).
Todos os direitos reservados para a publicação desta obra em Português
(Portugal e Brasil) pela Livraria Bertrand, S. A. R. L., Lisboa.
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I – DEFINIÇÕES
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meio das missas e dos motetos que a linguagem musical se ornamenta e
enriquece. A ciência musical evoluiu através da música religiosa; e a música
religiosa transmitiu à música profana todo o seu saber.
Do robusto tronco gregoriano, que foi o primeiro a crescer, brotaram
múltiplos ramos, que em seguida se desenvolveram; toda a nossa música
provém desta origem e foi principalmente na França, na Itália e na Alemanha
que se operou essa evolução.
A essência da música
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“espiritual”, abrangendo a música ritual dos povos primitivos e o canto
gregoriano da liturgia católica. Aqui os elementos sensoriais e intelectuais
fundem-se num só. E se o canto gregoriano, purificado, decantado é o reflexo
de uma vida espiritual muito elevada, a música ritual do povo primitivo pode
refletir uma mesma exigência de superação pela fé, na sua ingênua mistura de
pureza e de ação sobre os sentidos.
O que é o tom?
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expressão elementares ou obsessivas provoca em nós a embriaguez física.
Estas noções são conhecidas, pois todos sabem o que significa a excitação
física produzida por certos trechos musicais ou, pelo contrário, a exaltação
espiritual originada por outros.
Mas a recepção do fenômeno sonoro processa-se de tal forma que as mais
sublimes expressões da arte mais perfeita atingem-nos primeiro sob a forma de
uma simples sensação física: o gênio do homem organizou essa sensação e
levou-a a participar no exercício das nossas mais elevadas faculdades. Ao
analisar sucintamente o mecanismo da audição musical, observa-se que o som
passa pelo ouvido externo (condutor auditivo), o ouvido médio (tímpano e
cadeia de ossículos que transmite as vibrações) e o ouvido interno (labirinto,
membrana basilar, que contém 24 000 fibras que reagem às vibrações dos
ossículos, e órgão de Corti, fim da transmissão). Sendo a música uma sensação
física, essa sensação pode ser deleitável até ao êxtase, ou desagradável até à
dor. A música tem a capacidade surpreendente de poder exercer um efeito
hipnótico, eufórico ou exaltante sobre os nossos sentidos; se for violenta, pode
igualmente revoltar-nos. Todo o significado da mensagem musical, até às suas
mais requintadas proliferações, encontra-se contido neste fenômeno elementar;
assim, a música mais requintada, tal como a mais primitiva, é um
encantamento que age sobre os nossos sentidos. Num dos casos detém-se nos
sentidos, no outro ultrapassa-os e subjuga-os pelo domínio do pensamento.
Destes fatos depreende-se uma moral da música, e foi essa moral que alguns
povos das antigas civilizações tinham compreendido. A nossa época já não
toma estes elementos em consideração na apreciação da obra musical, porque
concedeu plena liberdade a obra de arte em geral, de forma a explorar a fundo
todas as virtualidades humanas.
E esta sensação elementar que distingue a música da pintura ou da literatura.
A emoção causada pela leitura de um .texto provém essencialmente da nossa
apreciação intelectual; o mesmo sucede com a emoção provocada por uma obra
plástica. Nos dois casos a nossa sensibilidade é atingida pela beleza de
expressão, o encanto da obra, mas a apreciação do nosso intelecto é
indispensável para agir sobre a nossa emotividade.
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Nascimento de uma ordem sonora
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passar por numerosas transformações, de que as mais importantes são, em
primeiro lugar, entre a Idade Média e a Renascença, o estabelecimento
progressivo das escalas ascendentes na música profana, em oposição às escalas
descendentes da música religiosa; em seguida, no século XVIII, instituiu-se o
chamado “sistema temperado”. Em poucas palavras, este sistema consiste na
elaboração de uma escala na qual cada som se encontra convencionalmente
fixado de acordo com um número de vibrações doravante invariável. Fixado o
padrão (o lá do diapasão que serve de referência) em 870 vibrações por
segundo (muitas orquestras utilizam presentemente um lá de 880, portanto
ligeiramente mais alto), estabeleceu-se o conjunto das relações de forma a
uniformizar os sons e, portanto, a reunir dois sons quase semelhantes num só:
por exemplo, dó sustenido e ré bemol, ré sustenido e mi bemol, mi sustenido e
fá natural e assim por diante. Por este processo obtém-se uma escala total de
doze sons (as teclas brancas e pretas do teclado totalizam doze notas), que
constitui o “total cromático” do sistema, no qual os sons distam entre si de
meio som — o intervalo mais claro e mais perceptível ao ouvido.
Este sistema temperado (nome que deve a sua origem ao fato de se terem
“temperado” as vibrações, apertando umas e alargando outras, para as trazer às
doze alturas convencionais) inspirou a João Sebastião Bach o famoso Teclado
Bem Temperado (e não cravo, como por vezes se diz), constituído por doze
prelúdios e fugas nos doze tons do sistema, que era então uma novidade.
Um tal sistema, a despeito de reduzir a extensão sonora a doze alturas bem
definidas, acusa por um lado arbitrariedade e, sem dúvida, imperfeição, pois
renuncia às riquezas das alturas sonoras “à margem”. Possui ele, contudo, o
merecimento de simplificar o alfabeto musical, reduzindo-o a doze elementos.
Na ausência de um sistema temperado, teria sido necessário recorrer a um
sistema de vinte e uma notas, cada uma destas com a sua altura exata
(matematicamente nas relações de vibrações), o que não teria deixado de tornar
tudo mais pesado e complicado, impedindo, por exemplo, a prática da música
polifônica ou orquestral. Além disso, pensemos no universo musical que nos
legaram os séculos a partir desta escala temperada. Confessemos que ela de
forma alguma impediu o desenvolvimento da técnica e do pensamento
artístico.
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Se por um instante voltarmos às escalas, notaremos que certos povos da
Antigüidade, tal como os Chineses, os Hebreus e os Japoneses, utilizavam as
escalas pentatônicas (de cinco sons). Presentemente estas escalas ainda existem
em algumas ilhas do Pacífico. Pouco sabemos das melodias pentatônicas,
transmitidas por tradição oral (sem notação). Outros povos, tal como os
Gregos, utilizavam a escala de sete sons, dita diatônica (cinco tons e dois meios
tons).
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na nossa escrita: o “quarto de tom” existe ainda em algumas músicas
primitivas, que o utilizam inconscientemente por falta de uma organização
sonora racional. Na nossa época, os compositores tentaram ressuscitar o quarto
de tom e reintegrá-lo no nosso sistema musical. A experiência não podia deixar
de ficar à margem, mesmo sendo de natureza a enriquecer a percepção sonora.
O quarto de tom pode ser muito expressivo nas vibrações da voz ou de um
instrumento, mas é necessário que um ouvido seja bastante sensível para o
perceber, o que parece provar que o sistema temperado corresponde a uma
realidade acústica.
Note-se que o Ocidente teve o merecimento de simplificar os sistemas
existentes, no intuito de torná-los universais. Esta tendência, constante nos
povos europeus, tem-se manifestado desde os primeiros séculos da nossa era,
prosseguiu na Idade Média e ainda hoje se verifica: a Europa propõe ao mundo
um tipo de linguagem universal. Assim o nosso alfabeto literário, prático,
espalha-se desde há séculos, ao contrário do que sucede com os complexos
alfabetos orientais. Assim também o nosso sistema musical tende, desde os
primeiros séculos da era cristã, a transformar os diversos sistemas anteriores do
mundo oriental numa espécie de síntese. Empobrecida, sem dúvida, de certo
modo por esta operação, a linguagem musical enriquece-se por outro lado. Por
exemplo, se a instituição da “barra de compassos” (espécie de grade que, nas
partituras, marca os tempos e a sua divisão) põe termo à arte subtil e rica do
ritmo livre e matizado (característica que, nos nossos dias, o canto gregoriano
ainda conserva), permite por outro lado a prática da música de conjunto, que,
de outro modo, seria impossível. Mesmo a sujeição ao “tempo forte”, acento
instintivo sobre cada primeiro tempo de um compasso, pode introduzir na
música grandes riquezas expressivas e rítmicas. Mas todos estes fatos são a
história da expansão ou da decadência de um sistema. Será possível, contudo,
imaginar a impotência, a confusão e as limitações que teriam ameaçado a
cultura musical, se a dispersão dos sistemas musicais se tivesse perpetuado...?
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II - AS PRIMEIRAS ERAS DA MÚSICA
A pré-história musical
A Antiguidade Greco-Romana
Grécia: tocadora de
citara (cerca de 500 a.C.)
É justo dizer que foi a Grécia que nos legou a música, visto que impôs, além
do seu sistema musical pitagórico, uma poética musical que se tornou um
modelo. O que foi possível reconstituir, pelos raros documentos que chegaram
até nós, permite afirmar que:
1.° A música grega é essencialmente vocal; os instrumentos desempenham
apenas um papel de acompanhamento.
2." A função da música é simultaneamente religiosa e social, constituindo o
ritual da vida coletiva.
3.° O emprego da música encontra-se estritamente regulamentado; o sistema
musical compõe-se de sete modos; cada um destes modos possui um carácter
bem determinado, cujo uso está fixado por lei.
4." A música é monódica; quando um instrumento a acompanha é em
uníssono.
A escala grega é diatônica (as teclas brancas do nosso teclado). Os Gregos
conheciam igualmente o gênero cromático, que comportava intervalos menores
que o diatônico, mas apenas em determinadas alturas da escala. Se a escala é
uma sucessão de notas, o modo é a maneira de dispor essas notas. Cada nota da
escala dava origem a um modo diferente. Para imaginarmos a importância dos
modos, lembremos que a nossa época emprega, desde a Renascença, apenas
dois: o maior e o menor, o que, portanto, empobreceu as possibilidades de
modificação das escalas. Os nossos modos são “ascendentes”, enquanto os
modos gregos eram “descendentes”; ainda se encontram vestígios dos modos
gregos nos modos de igreja, que deles são originários, bem como na música
popular espanhola ou na música árabe. A explicação deste fato é simples:
alheia ao movimento de evolução da música erudita na Europa Ocidental, a
música popular ou religiosa da bacia mediterrânea, tendo conservado as suas
tradições, permanece ainda hoje igual ao que era há dois mil anos, enquanto a
música européia se afastava em busca de novos caminhos.
A música grega, que possuía, sem dúvida alguma, um repertório muito
vasto, deixou-nos pouca coisa: um fragmento de um coro para a Oréstia, de
Eurípides, dois hinos a Apoio (século n a.C.), o Hino ao Sol, de Mesomedes de
Creta, um hino cristão de Oxyrhinchos. Os Gregos possuíam igualmente um
sistema de notação sumário, constituído por letras; juntamente com os escritos
dos teóricos, este elemento permite reconstituir um conjunto que deve ter sido
muito rico e do qual o canto da Igreja Cristã nos dá uma idéia, uma vez que
praticamente todo o seu repertório descende dele.
Se os documentos materiais não são numerosos, sabemos, em contrapartida,
que a cultura grega deve muito à música e à sua influência sobre os costumes.
Se as obras musicais são raras, sabemos que a formação moral do cidadão se
apoiava na música e parece ser evidente que a espiritualidade grega foi
fecundada pela música. Platão professa, na sua República, que a música deve
guiar a juventude para a beleza e a harmonia espiritual. Aristóteles preconiza a
“purificação pela música”, não obstante reconhecer que esta pode ser um
divertimento, como por exemplo depois do trabalho. Se os cultos de Apoio e de
Dionisos têm os seus fiéis, apenas os dissolutos celebram o deus do prazer nos
seus banquetes, com melodias e ritmos, cantos e danças incitando à
licenciosidade. Mas ninguém se ilude e a verdade surge nos filósofos e na
mitologia.
O teatro tem os seus coros e os seus intermédios instrumentais, que
acompanham a tragédia; as Panateneias, festas em honra de Atenas, são
dotadas de cantos e de danças nobres; os Jogos Píticos evocam a luta de Apoio
e do monstro Pitão, com o auxílio de uma música descritiva. Cerimonias
religiosas, cortejos, festas profanas, estes acontecimentos não se realizam sem
música. Os aedos, poetas-cantores discípulos de Orfeu, subjugam a multidão
com as suas grandes obras de caráter épico, acompanhadas pela cítara ou a lira.
Esta descrição conduz-nos aos instrumentos, cujo domínio é mais
conhecido: além do fato de estes instrumentos terem sido frequentemente
reproduzidos em efígie, encontrou-se um grande número deles. Por outro lado,
é certo que o princípio da ressonância dos instrumentos foi sempre o mesmo
desde as épocas mais recuadas. Os consideráveis aperfeiçoamentos introdu-
zidos nos instrumentos musicais desde há alguns séculos não trouxeram
qualquer modificação neste capítulo. Tão longe quanto possamos retroceder, a
percussão o sopro e a corda têm constituído os três tipos de ressonância: bater
numa superfície vibrante, soprar num tubo ou ferir uma corda, são os três
processos de que o homem mais primitivo pôde ter conhecimento. Da corda
tensa nasceu a harpa, a cítara, a lira (cordas pinçadas) ou o ravanastron
(Ceilão, 5000 anos a.C.), primeiro instrumento de arco. Do tubo surgiu a
siringe, a flauta, o aulos (espécie de oboé, que os Gregos consideravam como
dionisíaco), a trombeta, a buzina, etc. Quanto à percussão, deu origem às casta-
nholas, aos diversos tipos de tambores e tantas. Certos instrumentos em nada
evolucionaram desde a Antiguidade, exceto nos pormenores. Outros, tais como
as “madeiras” ou a família dos violinos, adquiriram novos meios técnicos
desde há apenas trezentos anos.
Quando o Império Romano sucedeu às repúblicas gregas, absorveu uma
grande parte da sua música e inspirou-se na ordem e na beleza helênicas.
Durante muito tempo músicos gregos tomaram parte na vida artística romana,
verossimilmente ensinado ou, pelo menos, introduzindo o seu exemplo e as
suas tradições. Privada, contudo do espírito que comandava a sua existência e
da sua antiga força espiritual, a música romana torna-se mais prosaica, mais
dura, mais exterior; exaltando a glória militar e a grandeza dos césares,
vulgariza-se: a tuba, a trompa, o órgão, a buzina, instrumentos de maior
potência sonora, acompanham os combates dos gladiadores.
A decadência, helênica dilui-se no poderio romano: os vestígios da música
pertencentes ao apogeu da civilização grega vêm morrer num mundo regido
por uma escala de valores diferentes. No primeiro século da nossa era, a
música em Roma destina-se ao povo, música de folguedo, de circo, de dança,
que se tornará rapidamente trivial ou libertina.
Em suma, ao passar da Grécia para Roma, a música degenera; perde o seu
sentido e a sua nobreza. É, contudo sob esta forma que vai penetrar no
Ocidente, pois será nos amplos fundos legados pelas civilizações antigas que os
cristãos irão colher os cantos que lhes servirão de senha. É de resto através
destes cristãos, bom como das tradições conservadas em certos meios patrícios,
que poderá sobreviver uma música superior.
Os instrumentos antigos vistos por um musicólogo do
século XVIII (Ensaio sobre a Música Antiga e Moderna,
de Laborde)
III - A MÚSICA CRISTÃ
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Podemos imaginar uma comparação — exacta na essência, senão no pormenor: a melodia
cromática é sensual, suaviza os contornos, é lânguida. A melodia diatónica serve melhor a
expressão viril, os contornos nítidos, o sentimento são. Beethoven utiliza o diatonismo, Wagner
o cromatismo.
orientais, em uso nas comunidades cristãs misturadas com os conquistadores
árabes. Este rito ainda existirá na Renascença em alguns pontos do território.
Em diversas ocasiões, Carlos Magno vê-se forçado a chamar a atenção dos
bispos para a necessidade de observância do rito romano. Uma ordem sua
nesse sentido ficou célebre: Revertimini vos ad fontem sancti Gregorii, quia
manifeste corruptistis cantum. (“Voltai às fontes de São Gregório, pois estais
manifestamente a corromper o canto”). Quem é este São Gregório, a quem a
cristandade é solenemente convidada a referir-se? Papa no século VI, Gregório
I, tal como os seus predecessores, é testemunha do desenvolvimento— rico
mas inquietante—da liturgia romana, das transformações do rito ambrosiano,
da vitalidade dos ritos bizantinos, célticos, moçárabes. Aplica-se então a
reprimir esta enorme proliferação e a estabelecer a unidade da liturgia romana
através da Europa. E é assim que o repertório do canto religioso é depurado das
cantilenas de caráter oriental, que numerosos intervalos melódicos são
corrigidos e se regressa a uma severa disciplina de expressão, que rejeita tudo
quanto possa ser chamado lirismo. Além disso, este canto, estabelecido num
tipo gradual (o Antifonário, coletânea dos cantos da Igreja romana), é imposto
a toda a cristandade; enviam-se missionários a todas as dioceses, a fim de
ensinar o canto de igreja.
Esta reforma, que fixa definitivamente o rito, comporta sem dúvida o perigo
de impedir qualquer evolução ou enriquecimento eventuais; em contrapartida,
desenvolve a intensidade da sua expressão, a sua exaltante austeridade. Foi
assim que este canto, doravante chamado gregoriano, adquiriu essa
simplicidade luminosa, essa gravidade apaziguadora e, talvez possamos
acrescentar, essa suavidade romana que só nele se preservou enquanto
desaparecia à sua volta, e graças à qual sobrevive intacto desde há treze
séculos.
Não é bem conhecida a obra verdadeira de Gregório, mas pode
razoavelmente atribuir-se-lhe o merecimento da reforma do canto religioso; é
lícito supor que, se não foi o único a agir nesse sentido, foi pelo menos ele que,
tanto pelos seus próprios trabalhos, como pela sua autoridade, reuniu os
escritos dos teóricos seus predecessores e contemporâneos.
O gregoriano iria, portanto, ser doravante o canto oficial da Igreja Cristã.
Contudo, no século XIX, julgou-se necessário efetuar uma nova reforma e
desta vez foram os beneditinos da Abadia de Solesmes, em França, que ligaram
o seu nome à paciente revisão do repertório litúrgico. A Edição Vaticano,
versão oficial do canto gregoriano após esta revisão, foi publicada em 1908.
É oportuno notar que as monódias gregorianas conservam a sua pureza nos
ofícios divinos dos conventos beneditinos, mas na nossa época estão
harmonizadas e são acompanhadas pelo órgão na maioria das igrejas. Este
sistema, de prática tão corrente que os fiéis nem reparam nele, está contudo em
contradição com o espírito da monódia, que se basta a si própria. Além disso, o
estilo das harmonizações encontra-se muito frequentemente em oposição com
toda a estrutura modal destas monódias.
O canto gregoriano é p núcleo de toda a música ocidental: tal facto explica-
se facilmente. A canção popular da Idade Média, que é anônima, tem a sua
fonte na igreja, pois a vida do povo permanece estreitamente ligada à das
comunidades religiosas. O povo reúne-se em volta das igrejas ou das abadias e
conventos. A música sacra é a única a que ele tem acesso e é
inconscientemente que ele cantarola o que ouviu nos ofícios, transformando,
ornamentando, alterando ou ritmando segundo a sua fantasia os cantos rituais
ou inventando melodias inspiradas nestes.
As mais antigas canções que possuímos são testemunhos surpreendentes
desse mimetismo entre a melodia religiosa e a profana: assim, as canções de
misteres, baseadas em ritmos funcionais (gestos de ofício, etc.), reproduzem
contornos melódicos próprios do canto gregoriano. Pouco a pouco a canção
separar-se-á deste completamente, mas conservará, não obstante, a escala
descendente, que evoca com precisão o canto de igreja.
A primeira fase da história da música na era cristã pode situar-se entre os
séculos I e X, isto é, no decurso de um período em que o canto litúrgico se
estabelece, após algumas hesitações, e se torna no servidor imutável da
estabilidade da Igreja. Simultânea e progressivamente desenvolve-se o canto
popular, segundo os legítimos anseios do povo, que deseja folguedos. O final
desta primeira época situa-se no momento em que esses folguedos adquirem tal
importância que são rejeitados pela Igreja e em que, ao mesmo tempo, os
progressos da teoria musical dão lugar, .por um lado, à notação e, por outro, ao
nascimento da polifonia.
Instrumentistas egípcias
tocando flauta dupla,
alaúde e harpa (fresco
tumular de um sacerdote
de Amon, cerca de 1600-
1800 a.C.;
Tipos de instrumentos
gregos, no século V a.C.:
o aulos, oboé duplo, era
utilizado nas bacanais e
nas festas profanas (taça
ática)
A cítara acompanhava os Vaso para refrescar, do século V
cantos e a poesia lírica a. C. A lira era o atributo da
(terracota beociana) poetisa Safo e do poeta Alceu
A notação musical
Laon 239 de Metz (cerca de 930) nos dá um pouco mais de informação quanto à melodia
Pauta de 4 linhas
Pautas de 4 linhas
O texto é o seguinte: Ut queant laxis, Resonare fibris, Mira gestorum,
Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum, Sancte Johannes, o que significa:
“A fim de permitir que ressoem nos corações as maravilhas das tuas ações,
absolve o erro dos lábios indignos do teu servo, ó São João.”
Sucede também que o primeiro verso ut queant laxis começa pela nota
tradicionalmente chamada C, segundo o hábito adquirido no momento do
aparecimento dos neumas, e que designava os sons fixos da escala sonora pelas
sete primeiras letras do alfabeto. O hino a São João começa, portanto, por C:
Chamar-Ihe-ão Ut. O segundo_começa por D, chamar-lhe-ão Ré, e assim por
diante. Restam dois pontos que se torna necessário explicar: Por que motivo a
denominação assim elaborada compreende dois nomes, Ut e Dó para a mesma
nota? Porque o primeiro verso começa sobre Ut e o regresso do Ut, oito graus
mais acima, recai sobre a oitava deste som, onde o cantor termina dizendo
“Domino”. De onde provem o nome Si para o sétimo grau? Das iniciais Sancte
Johannes, o J confundindo-se com o I.
Eis portanto, a escala de sete notas estabelecida a partir do som Ut. Este
desnível de duas notas em relação à escala antiga de Lá (A) estabelece
simultaneamente o tipo de escala maior em Dó, tal como a conhecemos hoje.
Por meio de uma série de modificações subtis e pelo emprego de graus
elevados ou abaixados, o sentido (“tonal” vai desenvolver-se durante a Idade
Média e fazer recuar pouco a pouco o sentido “modal”, que havia prevalecido
desde a Antiguidade, e se conservará no canto de igreja.
A música tonal, a escala ascendente, embriões de todo o nosso sistema musical
profano, abrirão caminho mercê dessas descobertas e teorias, que alargarão as
fronteiras que limitavam a música desde há cerca de dez séculos.
1
Do francês trouver — achar, encontrar — significando, portanto, “aquele que encon-
tra”. (A1, da T.)
A sequência chama-se igualmente jubilus (canto alegre). Longínquo ante-
passado dos vocalizos ornamentais e expressivos do bel canto, o jubilus desig-
na qualquer improvisação sobre a Aleluia, improvisação que exprime júbilo
espiritual. Esta alegria da alma não conservará sempre a sua pureza de inten-
ções: o jubilus representa uma tentação para a virtuosidade, o prazer sensual da
voz e da expressão.
Este gênero, que se conservará do século VII até ao século XIV aproxima-
damente, será condenado pelo Concílio de Trento (1545-63), devido aos exces-
sos que origina. O tropo e a sequência desaparecem então da cena, mas já se
haviam introduzido na música profana e desempenhado um papel eminente no
estímulo da criação musical da Idade Média, de que foram um dos fermentos
ativos. Sem tais elementos, a música religiosa teria estagnado numa tradição
que recusava absorver qualquer idéia nova. A este propósito, será interessante
fazer notar que tal tradição, firmemente mantida através de vinte séculos, só
conseguiu sobreviver graças a um equilíbrio harmonioso e prudente, constan-
temente discutido, entre os princípios intangíveis do estilo religioso e certa
infusão de sangue novo cuidadosamente controlada.
Os legisladores da Igreja conseguiram sempre repelir riquezas que pudes-
sem asfixiar a pureza do gregoriano e que assim iam manifestar-se à margem
dos ofícios divinos. É, contudo, este movimento de enriquecimento do canto
religioso que vai caracterizar a Idade Média, provocar o nascimento da polifo-
nia, favorecer o desenvolvimento dos grupos instrumentais e, finalmente, ori-
ginar a floração polifônica, que atingirá o seu apogeu no século XVI.
Duas correntes opostas, mas igualmente vigorosas, irão marcar a Idade Mé-
dia: as correntes religiosa e profana. Como se desenvolve a música profana?
De duas formas, uma popular e outra aristocrática. O povo canta e dança, ela-
borando um inteiro repertório de melodias ritmadas conforme as necessidades
do trabalho (canções de ofícios), e impõe um quadro simétrico a estas melodi-
as. A simplicidade do ritmo e da melodia é necessária no canto popular para
facilidade de compreensão e de memória. Assim se explica a existência de es-
tribilhos e coplas curtos, repetidos em textos diferentes, e de fórmulas rítmicas
e melódicas impressionantes e sugestivas. Desta forma, a canção popular intro-
duz na música um elemento do qual ela nunca mais conseguirá libertar-se: a
barra de compasso. Esta permitiu notáveis progressos na escrita e, por exem-
plo, a possibilidade de execuções coletivas. Mas, ao mesmo tempo, impede a
liberdade, a flexibilidade e as subtilezas do ritmo, tal como aparece no gregori-
ano e de que só ele conservou o segredo (excetuando algumas músicas rituais
do Oriente).
Trovadores
A polifonia
Precisemos que a polifonia pode existir sem contraponto: uma série de acor-
des, cada um deles colocado sobre as diferentes notas de uma melodia (num
coral religioso, por exemplo), pertence à escrita harmônica (encadeamento de
acordes fixos), mas forma uma polifonia, uma vez que contém várias vozes.
Para simplificar, podem-se resumir assim os três termos:
Polifonia: várias vozes.
Harmonia: várias notas agrupadas em acordes.
Contraponto: várias linhas melódicas simultâneas.
Podemos encontrar a primeira—ou pelo menos uma das primeiras —
manifestação da polifonia no século X no Música Enchiriadis, de Hucbald, no
qual está anotada uma Rex Coeli, Domine Maris (“Ó Rei do Céu, Ó Senhor do
Mar”) a duas vozes, a inferior fornecendo a melodia, a superior seguindo o
desenho melódico a uma distância de quarta. Este processo, muito rudimentar,
constitui na realidade o início da polifonia, chamado organum. (A etimologia,
bastante complexa, pode resumir-se assim: o termo latino que deu origem à
palavra “órgão” — instrumento — provém do grego organon que significa
órgão vocal, voz). O organum, primeiro ensaio da arte polifônica, é, portanto,
constituído por um contraponto paralelo a duas vozes, também chamado diafo-
nia.
Note-se que a polifonia faz a sua aparição no momento em que a notação
musical se aperfeiçoa e a música profana se desenvolve. Ainda neste caso, os
progressos da técnica evolucionam paralelamente ao aparecimento de ideias
novas.
As duas vozes do organum primitivo vão em breve adoptar outra técnica: o
movimento contrário. Este simples achado enriquecerá consideràvelmente as
possibilidades da polifonia, que assim se aventurará a acrescentar uma terceira
e, em seguida, uma quarta voz à melodia principal, e por fim a variar as dura-
ções e os ritmos dessas diversas vozes. Será então que o contraponto encontra-
rá as suas mais belas aplicações e que a escrita musical se .tornará numa ciên-
cia minuciosa e precisa. O que assim se resume numa frase representa, contu-
do, uma evolução lenta e difícil, que levará, desde o início até atingir a plenitu-
de, cerca de seiscentos anos...
Poderia perguntar-se por que motivo aparece a polifonia no decurso da Ida-
de Média. Porquê numa determinada época em vez de outra? Por que motivo
ninguém tinha pensado na polifonia anteriormente? Pode admitir-se, contudo,
que ela não surgiu devido a um simples acaso. Seguindo paralelamente a evo-
lução da música, bem como o grau de evolução social, a polifonia manifesta-se
no momento em que se procura aumentar o poder expressivo das melodias dos
ofícios religiosos, onde a sua nudez e a sua singeleza já não pareciam suficien-
tes.
A associação de uma voz à voz que canta a melodia provém desse desejo de
ampliar as possibilidades do gregoriano, mas, simultaneamente, representa um
ato audacioso, correspondendo a uma audácia geral que marca os espíritos, a
uma vasta corrente de progresso que a nossa época nem sempre reconheceu
como devia. Na verdade, mencionam-se com mais frequência as “trevas” da
Idade Média do que as suas “claridades”.
O movimento polifônico espalha-se porque corresponde ao gosto e à curio-
sidade da época. É o gregoriano que serve de base aos primeiros ensaios de
polifonia e, assim, será o canto de igreja que vai amparar a nova música. No
século xi, por exemplo, surge o discantus, improvisação livre em movimentos
paralelos e contrários ao canto litúrgico, que se experimenta nomeadamente na
Catedral de Chartres.
Uma palavra, de que os séculos modificaram totalmente o sentido, permane-
ce ligada aos começos da polifonia: tenor. Proveniente de tenere (sustentar), o
tenor é uma melodia cantada em valores longos, sobre a qual se desenrola o
discantus em valores mais breves. O tenor sustenta assim a melodia principal,
em volta da qual se tecem floreios diversos; o cantor a quem se confia esta voz
torna-se uma espécie de protagonista. Foi nesse sentido que o termo transitou
para a linguagem profana.
O primeiro balbuciar da polifonia dá origem a diferentes gêneros, que mais
tarde desaparecerão, mas que lhe trazem novas formas e definições: o gymel
inglês, acompanhamento do canto à terceira inferior em movimento paralelo; o
fá-bordão, ou falso-baixo, a voz à terceira superior cantando-se na oitava infe-
rior (ainda hoje um cantor pode enganar-se na oitava e cantar abaixo de uma
melodia que dobra julgando cantar acima); o conductus, peça litúrgica ou pro-
fana, que consiste num canto ornamentado por uma segunda voz. livre.
Até aqui a música tinha sido anônima: tanto os cantos rituais como os popu-
lares não têm autores. Tão longe quanto possamos retroceder na história, am-
bos pertencem à criação coletiva (ou individual, imediatamente transmitida à
coletividade), cuja origem permanece inevitavelmente misteriosa. Mas a partir
do momento em que a música se desenvolve noutras direções, os nomes dos
teóricos e dos compositores vão permanecer ligados à sua evolução.
Já pudemos citar os nomes de Ambrósio e de Gregório, os primeiros a exer-
cer sobre o canto religioso uma influência reconhecida pelos seus contemporâ-
neos. Mais tarde, entre outros, bastante escassos, encontramos Hucbald e Gui-
do d'Arezzo, pois então existiam poucos teóricos ou compositores que se tor-
nassem conhecidos. Não esqueçamos que o trabalho dos monges, voluntaria-
mente humilde e obscuro, favoreceu o anonimato. Quanto aos trovadores, os
seus nomes ficaram ligados à história porque se tratava de nobres ou haviam
conquistado a fama por outros motivos.
Ao mesmo tempo em que a música se desliga do canto religioso coletivo,
sai, portanto, do anonimato. Caminha para certa individualização do sentimen-
to e também da técnica; a marca do músico criador poderá doravante manifes-
tar-se; ao, princípio modesta e muitas vezes involuntária, em breve se afirmará
com uma audácia sempre crescente.
Na cena musical vão aparecer músicos especializados, teóricos ou composi-
tores. Em Notre-Dame de Paris, o organista Léonin (século XII) escreve uma
série de músicas para órgão, algumas a duas vozes. O seu sucessor, Pérotin,
dito o Grande, é considerado como um dos primeiros grandes compositores da
história e o pai da música polifônica. Deixou organa, discantus, conductus,
peças a quatro vozes, que, executadas por coros ou órgão, deviam produzir nos
fiéis uma profunda impressão de novidade.
Imaginemos o que devia representar para o homem do século XII a audição
simultânea de duas ou várias melodias - surpresa para a qual os espíritos esta-
vam tão pouco preparados como os ouvidos - e conviremos que os primeiros
ensaios da polifonia - a despeito da sua desajeitada rigidez, que nos parece
cheia de “encanto arcaico” - devem ter suscitado grande curiosidade. A segun-
da voz e, em seguida, as outras que se lhe agregaram introduziram um elemen-
to de colorido e de calor completamente estranho à austera tradição gregoriana.
Pérotin, que, não o esqueçamos, é organista numa catedral, afirma a fé ro-
busta dos seus construtores e do seu povo. Entre 1180 e 1232 aproximadamen-
te, Pérotin cria um novo estilo musical que hoje seria classificado de vanguar-
da. Para coroar os seus trabalhos, utiliza por fim o processo itnitativo, que es-
trutura as peças pela repetição dos .motivos principais, respondendo entre si de
uma voz à outra. Este processo, de que os polifonistas da Renascença farão uso
até às suas mais extremas possibilidades e que dará origem à fuga, continua a
empregar-se atualmente como um dos elementos constitutivos da forma musi-
cal.
Desta vez a tradição greco-romana foi completamente abandonada. O mun-
do feudal da Idade Média é um meio activo, corajoso, poderoso, onde circulam
e se desenvolvem numerosas idéias novas. Os homens deslocam-se; Paris é já
um local de encontro para os clérigos. Estudantes de vários países vêm a esta
cidade para assistir aos cursos da universidade que Robert de Sorbon acaba de
fundar e que usará o seu nome. Notre-Dame de Paris é um ponto de reunião
dos fiéis e a música nova e ousada que ali se toca repercutir-se-á longe. Tam-
bém virão jovens músicos estrangeiros, que aprenderão os mistérios da polifo-
nia com mestre Pérotin. O rei Filipe Augusto, cognominado o Construtor, favo-
rece em Paris o progresso social e econômico; grandes catedrais começam a
cobrir a França, a literatura e a música desenvolvem-se. Em 1235 compõe-se a
primeira parte do Romance da Rosa; é o romance do amor cortês, que os tro-
vadores continuam a difundir por toda a Europa. Assiste-se ao despertar de um
mundo novo, onde as criações do espírito adquirem cada vez mais importância
e lançam os alicerces da civilização artística do Ocidente. É então que a músi-
ca, que havia sido uma ciência no estudo dos fenômenos sonoros e, desde sem-
pre, um ritual, começa a transformar-se no que será doravante: uma arte. É
então também que, juntamente com a literatura e a pintura, ela se torna num
dos elementos fundamentais da cultura européia.
Os gêneros e os instrumentos
A música em França no
século XV: No primeiro
plano, tocadora de flauta
doce e de tamboril, tocado-
ra de trombeta direita, tím-
pano; no segundo plano,
órgão portátil, tímpano,
bombarda-tenor (ante-
passado do oboé), mandara
(guitarra) tocada com plec-
tro, ainda outra flauta doce
(flauta suave).
As musas, manuscrito de
O Campeão das Damas - 1441) (A frottola (Itália, século
XV) é uma canção a quatro
vozes, que provém dos cantos e danças populares. Dará origem ao madrigal da
Renascença, a que nos referiremos mais adiante.
Em Espanha, as canções de estribilhos de ricos ritmos de dança, ditas vilan-
cicos (de aldeia), alcançam considerável e duradoura popularidade. Os trovado-
res do século xii trazem para a Península a canzone, gênero italiano. Primeiro
monódica, torna-se polifónica, e de vocal transforma-se em instrumental (can-
zone da tonar: canção para tocar num instrumento). Composta de várias partes,
a canzone é a origem da sonata.
É, portanto, uma série de peças vocais ou instrumentais, religiosas ou profa-
nas, sempre polifônicas, que vimos surgir e multiplicarem-se entre os séculos
XI e XV. Estes gêneros permitem que a fantasia criadora se manifeste sob múl-
tiplas formas; e a principal verificação que podemos fazer é que a música poli-
fônica tem tendência a ornamentar-se cada vez mais. É um movimento inces-
sante, que conduzirá à extraordinária proliferação do século XVI e marcará a
expansão duma técnica que atingiu o seu ponto culminante.
Que instrumentos se usavam neste período, que vai dos trovadores aos poli-
fonistas, da Idade Média à Renascença? Reencontramos instrumentos conheci-
dos da Antiguidade, mas aperfeiçoados.
Na categoria das “cordas”, eis a harpa, o saltério e a lira (cordas pinçadas).
A viola de arco é o mais longínquo antepassado do violino; a sanfona, instru-
mento nobre que, mais tarde, se tornou popular, é constituído por uma caixa
munida de cordas; uma manivela lateral move uma roda resinada que faz vibrar
essas cordas, enquanto um teclado produz as notas. (Não confundir com a
vièle, antepassada da viola, nome que na Idade Média servia para designar
qualquer instrumento de corda e arco.)
O alaúde, que apareceu na época das Cruzadas, manter-se-á até ao século
XVII. Compreende de quatro a onze cordas; é o instrumento por excelência do
acompanhamento, mas também é usado como solista. O seu repertório é imen-
so; é o instrumento-rei da Renascença.
A guitarra, conhecida desde o século XII, é irmã do alaúde, mas estes ins-
trumentos não derivam um do outro. No século XV, existem diferentes tipos de
guitarras, que conforme as regiões de Espanha, se chamam mandolas (de onde
provém bandolim) e vihueIas. A vihuela de mano, instrumento aristocrático
que possui uma extensa literatura, tornar-se-á a guitarra espanhola, que conhe-
cemos e que será simultaneamente a mensageira de uma arte erudita e do reper-
tório popular em todos os países de cultura ibérica, gozando de inalterável pre-
ferência, como se pode verificar.
O clavicórdio, de início chamado échiquier2, é uma caixa retangular que se
pousa sobre uma mesa. Munido de cordas e de um teclado, é o antepassado do
piano, pois o seu .mecanismo é constituído por “martelos” que percutem as
cordas. (A espineta e o cravo são instrumentos de cordas pinçadas.) O clavi-
córdio existiu do século xiv ao século XVII. Em Inglaterra, a expressão virgi-
nal (séculos XVI e XVII) designa uma espineta.
Os instrumentos de sopro compreendem as trombetas, a trompa (de metal
ou de madeira) e a corneta, instrumento de madeira contendo seis ou sete orifí-
cios. A par destes antepassados dos nossos metais, existem a flauta doce (de
madeira) e a flauta travessa (metálica), que se toca segurando-a de lado. Tam-
bém se usa a flauta de Pã, legada pela Antiguidade. Alguns destes instrumen-
tos são “de palheta” (lâmina de cana vibrando na embocadura): a flauta de ca-
na, a gaita de foles, a bombarda (oboé), o cromorne.
O órgão, instrumento de sopro, é conhecido sob a forma portátil — pequeno
órgão de mesa — e sob a forma majestosa do órgão de igreja.
É evidente que só a história do órgão encheria numerosas páginas; limite-
mo-nos a recordar com brevidade que o órgão tem por antepassado longínquo o
aulos (flauta dupla) dos Gregos ou a flauta de Pa, de diversos tubos de com-
primento decrescente. O órgão de boca dos Chineses (cheng) era constituído
por um conjunto de tubos semelhantes mergulhados numa cabaça provida de
uma abertura. Ao aplicar os lábios nessa abertura faziam-se vibrar os tubos;
encontra-se aqui o princípio do órgão. Crê-se, em geral, que Ctesibio de Ale-
xandria construiu, no século n a.C., o primeiro modelo de órgão. Grandes ins-
trumentos (quatro séries de treze tubos), datando do século m depois de Cristo,
foram encontrados na nossa época. Os pequenos órgãos de mesa, tal como os
órgãos destinados à igreja, espalharam-se pela Europa desde os primeiros sécu-
los da cristandade até à Renascença. Dois tipos de órgão subsistem praticamen-
te desde o século XVII : o órgão barroco, de sonoridades leves, coloridas, finas,
e o órgão romântico, que se deve a Cavaillé-Coll, instrumento potente e maci-
ço, cuja utilização se revelou limitada, a despeito de uma grande riqueza de
2
Échiquier — tabuleiro de xadrez. (N. da T.)
paleta. Desde há alguns anos, o órgão barroco tem obtido novamente algum
sucesso. É insubstituível para a execução de toda a literatura musical dos sécu-
los XVII e XVIII.
Os instrumentos de percussão não são desprezados: utilizam-se sobretudo
para sublinhar o ritmo das danças. Assim sucede com ó tamborim (percutido
com a mão), as castanholas, os címbalos (placas de metal), os sinos ou as di-
versas espécies de tambores.
Estes mestres deixam discípulos, que, por seu turno, ensinarão. Pode dizer-
se que eles dão à Europa a sua linguagem musical unificada, modelo sobre o
qual se edificará a música dos séculos vindouros. É a esta difusão dum estilo é
duma escola à escala européia que a linguagem musical deve a sua universali-
dade: estabelece-se um sistema que se fortifica e completa, para em seguida se
espalhar, ditando leis, impondo convenções que todos reconhecem. Assim, não
se fará mais qualquer tentativa para sair desse sistema (e mesmo os sistemas
que mais tarde se erguerem contra ele terão este facto em consideração). Tal
como uma língua falada, cuja gramática, sintaxe e vocabulário são unanime-
mente admitidos, a fim de que os homens se compreendam, a música alcançou
então a sua fase “adulta”. Quem foram os homens que coroaram esta evolução
de dez séculos, escrevendo as obras mestras da polifonia? Eis alguns: Jean Oc-
keghem, de Termonde (1420-1495); Jacob Obrecht, nascido em Berg-op-
Zoom (1450-1504); Josquin dês Près, nascido no Hainaut (1450-1521);
Henry Isaak, nascido na Bélgica — dizia-se oriundo da Flandres, (1450-1517);
Johannes Tinctoris, nascido em Nivelles (1435-1511); Adrien Willaert (Bruges
ou Roulers, 1480-1562); Cyprien de Rore (Malines, 1516-1565); Jacob Arca-
delt (Flandres, 1514-1560); Roland de Lassus (Mons, 1532-1594); Philippe de
Monte (Malines, 1521-1603); Lambert de Sayve (Liège, 1549-1614).
Na Itália
Em França
Na Inglaterra
Em Portugal
1
Há aqui um jogo de palavras intraduzível em português, pois a expressão petit-maitre, que
literalmente, corresponde a pequeno mestre, significa em francês peralta, janota, etc. (.Y. da T.)
Delgado (segunda metade do século XVI), Manuel Mendes (falecido em 1605),
compositor de corais de sugestiva austeridade, Filipe de Magalhães (fim do
século xvi-1623), o carmelita frei Manuel Cardoso (1570-1650), João Louren-
ço Rebelo (1610-1661), mas o mais notável de todos foi incontestavelmente
Duarte Lobo (1540-1643?), mestre excelente do contraponto e autor de vasta
obra, que compreende numerosos vilancicos, magnificats, missas, motetes e
um salmo a 3 coros e 11 vozes, de grande poder expressivo.
Em Espanha
Reforma e Contra-Reforma
A explosão libertadora
1
A palavra ficou no vocabulário musicológico: stile rapprasen-tativo, estilo representativo dos sentimentos.
resumo, a intensidade de expressão aliada à turbulência da decoração—, todos
estes elementos constituem a música barroca.
Por volta de 1600, o conde Bardi reuniu na sua bela residência de Florença
um grupo de humanista trados. A camerata Bardi2 debate muitos assuntos e,
em especial, a arte. Evoca-se detidamente a Grécia Antiga, que simboliza um
ideal de perfeição para os homens da Renascença. No intuito de representar os
grandes temas mitológicos com a maior veracidade possível, o compositor Ja-
copo Peri (1561-1633) propõe aos membros da camerata uma narrativa da his-
tória de Eurídice, que, em vez de ser cantada como um madrigal polifônico,
seria interpretado por cantores solistas, cada um atuando por seu turno e acom-
panhados por um grupo de instrumentos. Os cantores, trajando à antiga, evolu-
cionariam no palco no meio de cenários especialmente concebidos para o efei-
2
Camerata: salão, centro, grupo.
to. Este acontecimento ocorreu em 1600; ao querer ressuscitar a tragédia grega
com os seus coros e orquestra, ao colocar as personagens no centro de uma
ação psicológica que vão representar para o espectador, os Florentinos aca-
bam, sem o saber, de criar um gênero novo: a ópera.
Musicalmente, a revolução assim operada era considerável: a ópera renunci-
ava completamente ao velho estilo. O seu sistema baseava-se unicamente na
melodia cantada por uma só personagem, a quem se confiava a expressão de
todas as graduações do sentimento. O stile recitativo ou stile rapprasentativo
nascia ao mesmo tempo, com o seu realismo psicológico,- e nunca mais aban-
donaria a cena do teatro lírico até aos nossos dias. Se a ópera inicial é indireta-
mente oriunda do. madrigal, pelo fato de ter podido assumir a forma de um
madrigal representado e enfeitado de intermédios e melodias de solistas, nem
por isso deixa de constituir um gênero estético completamente novo.
Ver-se-ao, portanto, obras musicais de vastas proporções, que se desenrolam
como sucessões de monólogos e de diálogos, entrecortados de intervenções de
coros (regresso ao madrigal) que comentam a situação, enquanto o recitativo
dos solistas exprime os seus sentimentos. Para sustentar estes longos
recitativos, os instrumentos (violas, oboés, cravos) tocam alguns acordes que
pontuam o ritmo ou marcam a tensão dramática. Chega-se assim a uma espécie
de síntese da polifonia fortemente aliviada, pela qual o estilo harmónico vai
suceder ao polifónico.
Efetivamente, o emprego do acorde, ao qual se pode dar grande força ex-
pressiva — além do seu eventual papel rítmico — , vai desenvolver a notação
da harmonia, oposta à da polifonia (uma harmonia é um grupo de notas ouvi-
das simultaneamente). A ciência da harmonia, quase ignorada até à Renascen-
ça, vai assumir, a partir do século XVII, uma importância tão considerável, que
substituirá a da polifonia: o estilo harmônico caracterizará a maioria das obras
do clássico século XVIII, do romântico século XIX e do século XX, quando
então se associará ao estilo polifônico, mas dominando-o.
Eis, portanto, o que mais atrás havíamos chamado o reinado da “melodia
acompanhada”. Considerada em relação à extrema riqueza da estrutura polifô-
nica, a melodia acompanhada pode parecer sumária ao ponto de representar um
empobrecimento. Contudo, este empobrecimento, incontestável do ponto de
vista material (a escrita), encontra-se compensado por um enriquecimento não
menos certo do ponto de vista espiritual (a expressão); mercê da “melodia a-
companhada”, os sentimentos vão poder expandir-se livremente por meio de
uma melodia que obedece com flexibilidade às sugestões do texto poético, sem
o entrave de qualquer convenção de escrita a quatro vozes de formas pré-
estabelecidas.
A “melodia acompanhada” volta a encontrar a liberdade expressiva de toda
a música que precedeu a era polifônica: monódia antiga, declamação grega,
canto gregoriano, etc. Mas os cinco séculos de polifonia que a música acaba de
viver enriqueceram-na consideràvelmente; doravante, a “melodia acompanha-
da” conservará a marca do estilo polifônico e harmônico, mesmo se for reduzi-
da a uma síntese, uma simples elipse. No século XVIII, quando Bach, o único
grande polifonista da época, escreve as suas sonatas para um só instrumento,
como o violino ou o violoncelo, notar-se-á que as suas melodias sugerem ao
ouvido uma verdadeira coerência tonal e harmônica: a sua monódia está fir-
memente estabelecida sobre o sistema harmônico.
Embora o nascimento da ópera na Itália — centro da civilização da Renas-
cença — possa parecer natural, é preciso notar que, quer seja ou não coinci-
dência, esse país onde o lirismo é rei ia libertar a música das amarras que a
retinham e permitir-lhe regressar à sua profunda vocação, que é o canto. Sol-
tando assim as rédeas à expressão lírica, a ópera ia simultaneamente provocar o
desabrochar de um gênero e fazer nascer um perigo contido em potência nessa
própria libertação: o bei canto, a embriaguez da virtuosidade. As ofensivas do
bei canto vão doravante suceder-se; a história da ópera será em parte a da luta
entre os partidários de uma arte lírica e os de uma arte ornamental. Sendo a
ópera um espetáculo, a luta estender-se-á ao domínio do palco: representar-se-
ão, por um lado, obras baseadas num argumento psicológico, cuja música evo-
cará em profundidade o desenvolvimento dramático e, por outro, obras basea-
das na atração da encenação e do espetáculo puro, em que a música é utilizada
para embelezar superficialmente essas seduções.
A história da ópera é praticamente uma história italiana; é da Itália que virão
os modelos em que o mundo se inspirará, mesmo para os combater. Depois da
Euridice, de Peri, representada em 1600, e alguns outros ensaios que abriram o
caminho, considera-se geralmente que o verdadeiro ponto de partida . da ópera
foi o Orfeu, de Monteverdi, escrito para o duque de Mântua e representado no
palácio ducal em 1607. O Orfeu é a primeira obra lírica que, de um só golpe,
mercê de uma extraordinária intuição do génio, se eleva aos cumes do realismo
dramático e aos limites da liberdade expressiva. Esta liberdade é a do
“recitativo”, que já não corresponde a qualquer lei de organização sonora, mas,
literalmente, “vai onde o texto o conduz”. O recitativo acusa todas as gradua-
ções expressivas do texto pelos ritmos, os silêncios, as curvas e os
afastamentos melódicos, os efeitos de contraste e de intensidade. Em suma,
este recitativo barroco, estabelecido por Monteverdi, inaugura uma estética
completamente oposta à estética arquitecturada da polifonia. Acompanhado de
acordes, que como já dissemos — têm uma função, ora rítmica, ora expressiva,
ele dá origem ao estilo de “baixo contínuo”, que se repercutirá na música
instrumental e que designa o acompanhamento em acordes de uma melodia
vocal ou instrumental: o cravo e o alaúde (ou órgão, conforme o tipo da obra)
tocam os acordes de suporte, eles próprios por vezes acompanhados por um
baixo de viola.
Pouco a pouco, não só as recitações e árias, mas também os grandes conjun-
tos vocais, serão acompanhados pelo baixo contínuo — chamado igualmente
“baixo cifrado”, porque os acordes tocados pelo instrumentista não são intei-
ramente escritos, mas indicados por cifras. (Conhece-se hoje um sistema aná-
logo, com a notação dos acompanhamentos à guitarra, que deriva de um longo
hábito dos músicos de jazz.)
O exemplo de Monteverdi
O destino paradoxal da ópera reside no fato de que o seu advento foi deter-
minado pela necessidade de libertar a música de que, no entanto, ela só sobre-
viveu mercê de múltiplas convenções, de que muitas vezes foi prisioneira. Da-
do que cada arte é uma convenção, a ópera não podia fugir a esta regra; a sua
fraqueza reside no fato de que as suas convenções foram em muitos casos de-
masiado flagrantes: convenções de interpretação cênica e musical, lógica musi-
cal por vezes oposta à lógica psicológica, convenção dos sentimentos estiliza-
dos de forma demasiado sumária, convenção de artifícios (bei canto, bailados)
destruindo a verosimilhança, etc. Vários historiadores da música disseram, com
fundamento, que se a ópera, em vez de ter nascido nos salões dos príncipes
italianos e de ser, de certo modo, o produto de uma fantasia estética, tivesse
surgido da arte popular ou do drama litúrgico teria assumido um aspecto muito
diferente. Efetivamente, a ópera permaneceu um gênero artificial e os seus su-
cessos foram mais devidos ao gênio de alguns compositores do que às virtudes
dos seus princípios.
Seja como for, a atração da ópera é tão intensa que ela fez furor desde o seu
início, espalhando-se por toda a Itália. É Florença que presencia as suas primei-
ras manifestações; mas, com músicos como Francesco Cavalli (1602-1676) e
Marco António Cesti (1618-1669), desenvolve-se um estilo veneziano, onde se
aliam o fausto do espetáculo, a complexidade do enredo e o encanto de uma
música mais amável e sugestiva do que profunda. É em Veneza que, em 1637,
se inaugura pela primeira vez uma sala de teatro destinada ao público. O suces-
so é tal, que em breve esta cidade possuirá sete salas de ópera. A ópera venezi-
ana resplandecerá na Europa durante cerca de um século; as suas qualidades
não devem fazer esquecer que ela contém em germe (e por vezes em flor) vá-
rios defeitos, que mais tarde lhe serão censurados por todos os músicos desejo-
sos de disciplinar a sua negligência ou de corrigir as suas mais absurdas con-
venções.
Mas a ópera evolucionará incessantemente de acordo com os ditames da
moda. E se o bel canto suscita o entusiasmo da multidão, que enche as salas de
espetáculos bem mais no desejo de apreciar a mestria dos virtuosos do que a
beleza pura da música, é preciso não esquecer que este fenômeno não lhe é
particular: os aficionados que sublinham com bravos e apupos as proezas dos
toureiros nas praças espanholas, os conhecedores que aplaudem as séries
impressionantes de jetés-battus ou de fouettés das grandes bailarinas, todos
obedecem a um mesmo conceito do espetáculo, que se confunde com a noção
da proeza. O impulso para o salto à vara, o poder do salto em esqui, a destreza
no lançamento da linha de pesca, todos proporcionam ao espectador a mesma
embriaguez. É por isso que, se é difícil afastar a proeza da cena lírica, é neces-
sário estar vigilante a seu respeito, a fim de evitar que ela se imponha em preju-
ízo dos valores artísticos.
Outro estilo vai desenvolver-se ao mesmo tempo que a ópera veneziana: a
ópera napolitana, revestindo um caráter completamente diferente3. O povo de
Nápoles aprecia a loquacidade, a sátira, o gracejo; a ópera napolitana vai ex-
primir estas características e fá-lo-á especialmente pela pena do mais brilhante
dos representantes do novo estilo: Alessandro Scarlatti (1659-1725), pai de
Domenico, o famoso cravista. Compositor extremamente fecundo, Alessandro
Scarlatti escreveu mais de cem óperas, sem contar as suas obras religiosas. Ti-
nha o talento fácil, mas neste fato residiu exatamente a sua fraqueza, pois pou-
cas das suas obras sobreviveram. Scarlatti impõe-se-nos sobretudo como um
inovador: é ele quem aperfeiçoa o tipo da ária da capo (de repetições) e que
confere à abertura (de início apenas uma simples e sumária introdução) a estru-
tura sinfônica que conservou; deu ao recitativo secco, oposto à ária, a sua for-
ma definitiva. Este recitativo secco, que Mozart utilizará, é uma invenção pre-
ciosa: como o termo sugere, ele evoca o fluir da palavra, pontuada por alguns
acordes breves no cravo; sem qualquer lirismo, ele desenha as inflexões da voz
falada em pequenos arabescos melódicos.
Este realismo, vindo de Nápoles, fazia acompanhar--se por outro realismo: o
dos temas, pois os Napolitanos tinham muito menos tendência para o sublime
do que os seus compatriotas do Norte. Assim, ver-se-ão óperas edificadas sobre
temas mais prosaicos, mesmo quando estes ainda são fornecidos pela história
ou narram um episódio com fundo moral.
3
A ópera napolitana do tipo sério c representada por Francesco Provenzale (1627-1704). que
teve numerosos discípulos e escreveu várias ópera. A sua influência perdurou, mas a história
iria reter de preferência um outro nome tia música napolitana.
Finalmente, a ópera napolitana transporá a distância que separa a" grande
ópera de caráter sério, a opera seria, de um gênero que cativará a atenção e a
preferência da multidão, crian-
do a farsa musical: a opera
buffa.
Tipicamente napolitana, a
opera buffa alcançará um
sucesso universal; o seu rótulo,
tanto podia servir para as
verdadeiras farsas, como para
os temas meio sérios meio
jocosos. Os temas inspiram-se
desta vez na vida quotidiana,
não só dos nobres, mas
também do povo; basta pensar
no “neo-realismo italiano” do
cinema depois de 1945, para
imaginar o que devia ser a
opera buffa por volta de 1680-
1700. Ao lado das grandes
óperas mitológicas, que ora
foram tragédias cantadas, ora
espectáculos faustosos, e cujo
estilo de corte era por vezes um
tanto enfático, a opera buffa
representa uma corrente de ar Saltimbancos venezianas na
fresco e de juventude. Praça de São Marcos (1610)
Os dois gêneros vão dora-
vante coexistir dentro de domínios bem definidos, -cujas fronteiras são respei-
tadas até aos nossos dias. Salientemos aqui que não se deve confundir a opera
buffa com a ópera cômica; sendo a palavra “cômica” empregada no sentido de
“comédia”, a ópera cômica é uma obra onde alterna o canto e a palavra (a ópe-
ra séria poderia ser chamada ópera lírica).
Com as duas grandes escolas de Veneza e de Nápoles, a Itália deu à Europa
um teatro lírico de extraordinária vitalidade. O prestígio dos músicos italianos é
tão grande que são convidados para o estrangeiro. Assim sucede com Cavalli,
que o cardeal Mazarino chama a Paris em 1660, por ocasião do casamento de
Luís XIV, no intuito de oferecer ao auditório, como um grande acontecimento,
a representação de uma das suas óperas. Todas as cidades italianas têm o seu
teatro de ópera, e a multidão, de todos os graus da escala social, apaixona-se
por estes espetáculos. Semelhante situação incita os músicos a escrever abun-
dantemente; na realidade, deve ter-se consumido uma quantidade de obras de
circunstância, cujos títulos e nomes de autores não chegaram até nós. Mas po-
demos adivinhar o poder que a ópera exerceu desde a sua origem sobre o espí-
rito de um público muito vasto, sobre a sua sensibilidade, os seus gostos e até
as suas opiniões sociais e políticas. Sabemos que a cena lírica foi por vezes um
local predileto de polêmicas e que a censura dos reis e os príncipes a fulminou
com frequência.
A ópera de Lully
A ópera inglesa
4
Notemos aqui a nascença da opera buffa francesa (género popular) sobre os palcos de [eira
em Paris. Este vaudeville (de voix--de-ville) vai buscar os seus temas - satíricos - à actualidade.
5
Fabliau: pequeno conto popular francês, em verso, dos séculos XII e XIII. (N. da T.)
- por vezes supérfluos -, linguagem de grandes efeitos, em suma, o gosto da
ostentação.
Três músicos marcaram- o século: John Blow, Matthew Locke e, finalmen-
te, Henry Purcell, o maior de todos. John Blow (1649-1708), organista de
Westminster, autor fecundo de obras religiosas, escreveu em 1682 um “mask”
para a distracção do Rei”, Vénus e Adónis, considerado uma obra-prima. Matt-
hew Locke (1630-1677), músico de Carlos II, é um precursor. Dedicado à mú-
sica profana, instrumental ou lírica, Locke escreve masks que prefiguram a
ópera.
Tal como em Itália ou em França, a grande
ópera inglesa (ópera séria) vai recorrer à decla-
mação lírica, dedicar-se a exprimir os conflitos e
as paixões, afastando qualquer elemento superfi-
cial ou exterior. Será Henry Purcell (1658-1695)
que a levará à perfeição, ao fazer a síntese dos
estilos italiano e francês. A escola de Versalhes
exerceu incontestavelmente a sua influência
em Inglaterra e Purcell é uma testemunha deste
fato. Mas este músico delicioso, dotado de irre-
Purcell sistível encanto e de gênio poderoso, soube mol-
dar os elementos estrangeiros numa matéria pes-
soal e, o que é mais, nacional. Pois Purcell é o grande músico nacional da In-
glaterra no século XVII. Adaptando um admirável estilo recitativo dramático
à língua inglesa, legou-nos, com Dido e Eneas, o Rei Artur ou The Fairy
Queen, os exemplos mais perfeitos de obras onde se associam o grave e o de-
leitoso, o real e o fantástico, os intermédios coreográficos ou instrumen-
tais. A morte de Dido, entre outras, é uma das mais belas páginas do repertó-
rio lírico; o patético da lamentação atinge ali o sublime.
Pode dizer-se que Purcell não foi apenas o grande músico inglês do seu sé-
culo, mas também um gênio comparável a Lully, no que respeita à ópera (em
que se mostra muito mais rico de expressão), a Buxthude, na música de órgão,
a Schútz, na música religiosa (a sua Ode a Santa Cecília é notável), ou ainda a
Alessandro Scarlatti, na cantata de câmara.
O barroco shakespeariano surge mais de uma vez nos libretos das suas obras
cénicas, escritas por Dryden; porém, ainda mais do que o barroco, encontra-se
na obra de Purcell esse gosto tipicamente inglês pela mágica, a canção popular
associada a um assunto dramático e, como já o fizemos notar, essa combinação
de elementos reais e fantásticos, cujo sabor poético é inimitável.
“Purcell morreu novo e com ele a música inglesa”, disse um dos seus bió-
grafos. A expressão não é exagerada. Esse Mozart do século XVII deu à músi-
ca inglesa toda a sua nobreza, a sua beleza, a sua graça. Depois dele começará
uma lenta decadência e a invasão do repertório pelos artistas italianos e os “ita-
lianismos”, sem que surja outra qualquer produção verdadeiramente nacional.
As maravilhosas audácias de declamação, de harmonia, de modulação e de
orquestra concebidas por Purcell, o requinte da sua inspiração, tudo isso foi
quase esquecido em benefício do que a ópera italiana tinha de mais inferior.
Foi preciso a chegada (e as lutas esgotantes) de Haendel, no século XVII, para
que um “grande estilo” fosse imposto de novo e pusesse em fuga a música sem
valor. Foi necessário que surgisse na nossa época um Benjamin Britten, para
que se voltasse a encontrar o segredo da prosódia genuinamente inglesa e de
uma ópera nacional - segredo que, segundo o próprio Britten, se havia perdido
desde Purcell.
A ópera conquistou, portanto, toda a Europa no século XVII? Sim, mas im-
põe-se uma reserva: pouco atraídos pelo prestígio do espetáculo, do bei canto e
da melodia acompanhada e ligados, pelo contrário, às suas elevadas tradições
polifônicas, os músicos da Alemanha, Europa Central e Países Baixos não se-
guiram o movimento. Alguns produziram realmente óperas ao gosto veneziano
ou napolitano, mas, à parte J. S. Kusser (1660-1727), antigo discípulo de Lully,
e, em seguida, Reinhard Keiser (1674-1739), discípulo de Kusser—que muito
contribuíram para estabelecer um estilo de ópera hamburguesa, espécie de co-
média lírica anunciando o Singspiel, de que nos ocuparemos mais adiante—,
nenhum compositor dos países do Norte ajudou a enriquecer o gênero.
A floração da ópera no século XVII, sob a sua forma italiana, francesa ou
inglesa, e o carácter de divertimento sumptuoso que assumirá em toda a parte
onde se afastaram da pura tradição de um Monteverdi — e até o acréscimo de
atractivos representado pelo luxo material, as encenações sensacionais
(trovoadas, sismos, monstros e engenhos diversos) e a vertiginosa ostentação
da virtuosidade vocal — são elementos que constituem a expressão mais
característica do barroco em matéria artística. Grandes arquitectos, decoradores
e pintores colaboram nos espectáculos encomendados ora pelos reis, ora por
directores teatrais ávidos de receitas. Cem episódios diferentes, indo da
mitologia ao fantástico, passando pelo realismo, fazem da cena lírica um lugar
vivo onde se manifesta um barroco triunfante. A glória do século XVII terá sido
permitir que a ópera, não obstante os seus erros e fraquezas, lançasse esse
prodigioso fogo de artifício cuja recordação ainda nos deslumbra.
Novas formas
Antes de 1750
1
Outro veneziano, Benedetto Marcello (1686-1739), cognominado o príncipe da música por
grandes músicos do seu tempo, é também conhecido pelos seus Salmos e a sua elegante música
instrumental. Também escreveu óperas, obras religiosas, obras poéticas e teóricas.
(e nomeadamente o Tratado da Harmonia Reduzida aos Seus Princípios Natu-
rais, publicado em 1722) fixam as bases da linguagem musical moderna.
3
A família de Bach forma uma verdadeira dinastia de músicos. O primeiro Bach conhecido,
Hans, nasceu em 1561; os últimos descendentes que se conhecem viveram até 1871. João
Sebastião figura no meio de uma numerosa linhagem de primos, parentes diversos, sobrinhos,
que são organistas, chantres, compositores. Entre os seus filhos, Jean-Christophe, Carl-
Philippe-Emmanuel e Wilhelm-Friedmann são os mais dotados.
Georg-Philipp Telemann (1681-1767) obteve em vida uma glória que facil-
mente eclipsou a notoriedade de Bach. Compositor amável, sedutor, bastante
superficial, teve uma carreira brilhante; o seu estilo musical, prejudicado pela
afetação, orienta-se nitidamente para o rococó. Muito eclético, era capaz de
escrever tão bem à italiana como à francesa, manejava o contraponto com des-
treza e dava provas de uma estonteante facilidade e de uma ciência excepcio-
nal. Amigo de Bach e de Haendel, foi padrinho de Philippe-Emmanuel, filho
daquele. Nos nossos dias, a despeito de se reconhecer que a sua envergadura
não era das maiores, aprecia-se neste amável músico o encanto da eloquência e
a elegância da forma.
Não citaremos aqui todos os virtuoses italianos do violino que foram com-
positores apreciados, nem todos os compositores que foram apreciados virtuo-
ses: existiram centenas. Presentemente, a moda impõe uma admiração por Vi-
valdi e pela música italiana do século XVIII, e os programas dos concertos
ostentam frequentemente nomes até agora quase desconhecidos; trata-se de
compositores menores, certamente músicos honestos, que beneficiam do pres-
tígio do rótulo “século XVIII italiano”. Na realidade eles manifestaram a. vir-
tude, desde então desaparecida, de praticar a sua arte como artífices impecá-
veis, de forma que, se o céu não lhes dispensou o gênio criador, exprimem-se
contudo numa linguagem intensa, requintadamente artística e de boa sociedade,
pelo que, evidentemente, não poderão ser censurados.
Também não citaremos os inúmeros compositores de óperas, de óperas-
bailados, ou de operas buffas que, tanto em França como na Itália, forneceram
aos seus contemporâneos noites magníficas e pretextos para discussões. A
produção geral de um país é interessante pelo nível médio que revela e pela
fecundidade que afirma — fecundidade que banha os espíritos num “clima”
artístico, representativo da época e em que todos colaboram. Mas a nossa in-
tenção é apenas a de evocar os maiores desses compositores. Em França, por
exemplo, houve uma quantidade infinita de músicos que escreveram para o
teatro nos séculos XVII e XVIII. Infelizmente os famosos “temas mitoló-
gicos” formava o seu fundo principal, e esta particularidade, aliada ao menor
valor da sua música, faria desaparecer as suas obras com a época que vira o seu
sucesso.
Do mesmo modo os autores de peças para cravo e sonatas para violino, obo-
é, ou flauta com baixo contínuo serão inumeráveis, assim como os composito-
res de obras religiosas: missas, motetos, peças para órgão. Ter-se-á reparado
que todos os grandes músicos, qualquer que fosse o gênero particular em que
se distinguiram, escreveram música de igreja. Porquê? Porque, na maioria
dos casos, ocupavam funções de mestres de capela no seio de uma corte
real ou principesca e essas funções postulavam a composição de obras destina-
das ao culto, o que não os impedia de se dedicarem, tanto à ópera, como à mú-
sica instrumental. Esta primeira metade do século XVIII vê, portanto, estabele-
cer-se insensivelmente uma ordem estética, que, poder-se-ia dizer, codifica
o barroco. Um tal impulso não podia perpetuar-se sem recorrer a princípios que
o amparem, depois de passada a grande labareda inicial. O mesmo caso repetir-
se-á mais tarde com o romantismo. Ao examinar a produção musical dos anos
1700 a 1750, reconhecem-se sem dificuldade as características do barroco;
imas também se vê surgir com idêntica nitidez o estilo clássico, pelo abandono
da ênfase, do poder, da fantasia livre, que são substituídos pela medida, a ele-
gância, a ironia, o requinte e a sujeição à forma".
Através da orquestra, e até na música de solistas, impõe-se o estilo de Man-
nheim: fixa-se a estrutura material da orquestra, tal como o tipo da sonata para
orquestra, a que se dá o nome de “sinfonia” e que se perpetuará até aos nossos
dias. Em 1734, Jean-Baptiste Sammartini (1698-1775) escreve a primeira ver-
dadeira sinfonia, em quatro andamentos, que, pela sua construção e desenvol-
vimento, vai mais longe do que as sinfonias de Mannheim. Sammartini contri-
bui assim para essa estabilização da linguagem musical, onde a ordem estética
manda e a inspiração obedece. É contudo necessário fazer uma verificação: o
grande estilo musical que reina nesse momento vem da Itália; os artistas italia-
nos — cantores, virtuoses, compositores — invadem a Europa e alcançam tri-
unfos; todos os países estão subjugados pelos seus encantos. Como se calcula,
o bom e o mau gosto caminham de mãos dadas. Mas o lado resolutamente po-
sitivo de toda esta atividade é o fato de que o grande estilo instrumental (sona-
tas, concertos, sinfonias), o grande estilo vocal da ópera e o grande estilo reli-
gioso (missas, motetos, cantatas, oratórias) florescem com luxuriante vitalida-
de.
Para completar este quadro da primeira metade do século, não esqueçamos,
ao recordar o seu classicismo, de evocar a sua disparidade, ou sejam as suas
tendências contraditórias, as suas forças que ainda se afrontam, enquanto ele
avança progressivamente para a unificação. Os esercisi, de Scarlatti, as sinfo-
nias de Stamitz, as oratórias de Haendel, as óperas1 de Rameau, as missas mo-
numentais e as pequenas peças pinturescas para cravo; Pergolesi e a sua Serva
Padrona, sim, mas também o seu Stabat Mater; Couperin e as suas Leçons de
Ténèbres, sim, mas também os seus Amours Badins; a escolástica alemã, a
ordem francesa, a exuberância italiana, a pompa britânica... Ali, onde hoje jul-
gamos ver uma paisagem harmoniosa e aprazível, reinava a própria desordem
da vida; essa época é compósita e sobrecarregada. Tem tendência a organizar-
se, muito simplesmente, e é na segunda metade do século que a ordem se afir-
mará.
De 1750 a 1789
A evolução, que se manifestava tanto nos gostos como nas idéias e nos cos-
tumes -e, por consequência, no estilo musical - afirma-se depois de 1750. É a
época do rococó e do estilo galante, a época da música amável e da vida des-
cuidada. Esse mundo, que vive os seus derradeiros momentos na euforia, sub-
meteu-se à lei do “bonito”, da qual se notam inúmeras manifestações: igrejas e
monumentos, trajos, rendas e fitas, móveis, adornos, literatura e conversas,
tudo concorre para enobrecer a futilidade e cultivá-la como se fosse uma virtu-
de. Paradoxalmente, é, contudo, neste quadro que se inscreverão os homens
graças a quem a arte musical alcançará o mais elevado nível do classicismo:
Haydn e Mozart, em primeiro plano, Gluck logo a seguir e, em volta destes,
alguns músicos trabalham no mesmo sentido. Sob uma aparência amável e sor-
ridente, a música de um Haydn ou de um Mozart encerra uma força de que os
seus contemporâneos não suspeitam e que o nosso século apenas descobrirá no
fim do romantismo: a purificação das paixões humanas, a transcendência dos
sentimentos, a luz espiritual que faz planar esta música, eternamente jovem
e fresca, por cima das modas e das gerações, pois ela alcança o essencial.
No seio da sociedade européia, o músico era um criado. Ao serviço de um
rei, de um príncipe ou de um bispo, ele usava a libré do amo e tomava as suas
refeições na copa, compunha o que o amo desejava, casava-se ou viajava con-
forme a disposição desse mesmo amo. Um bom ou mau amo podia introduzir
distinções nesta condição, mas a dependência determinava a sua vida inteira.
Nenhuma possibilidade de liberdade, exceto na miséria; não havia para o mú-
sico qualquer outra alternativa para além das funções de mestre de capela nal-
guma corte. Parece que os músicos consideraram como muito natural aquilo a
que hoje chamaríamos servidão, uma vez que não podiam imaginar outro des-
tino. Mas o constrangimento imposto pela sua condição, e, para além desta, por
uma sociedade inteira, determinou o estilo musical do fim do século.
São conhecidas, pelo menos de nome, as “músicas de mesa”, equivalência
dos nossos rádios no século XVIII, isto é um fundo sonoro que se ouve distrai-
damente, que “mobila” o desenrolar de certos atos quotidianos. A condição do
músico, dessa forma sujeito à vontade-—e frequentemente aos caprichos — de
um príncipe mais ou menos consciente do valor do seu compositor e do inte-
resse da sua música, pode parecer-nos humilhante e, por vezes, mesmo cruel.
Para sermos justos, é contudo necessário acrescentar que, alguns príncipes
mantinham uma capela musical completa, orquestra e coro, empenhando-se em
encorajar o seu mestre de capela e em favorecer a sua notoriedade. Uma coisa
compensa a outra.
Seja como for, eis a conclusão: a grande ordem clássica, o domínio da for-
ma, o reinado da medida, do equilíbrio e da linguagem intensa.
Mas não é tudo: a grande característica da música do século XVIII, Legada
pelos séculos precedentes e que se foi incessantemente precisando porque era a
consequência do esforço unânime dos compositores e dos teóricos, reside no
fato de constituir uma linguagem universal, cujas convenções (feições melódi-
cas e harmônicas, ritmos, períodos, expressão dos sentimentos, etc.) são com-
preendidas por todos. Como a língua falada, a música estabelece a sua gramáti-
ca, a sua sintaxe, o sentido das suas palavras e das suas frases; e todos a perce-
bem, mesmo que seja apenas superficialmente. Abordamos aqui o problema da
inteligibilidade de uma linguagem, para além da sua apreciação: o escritor mais
audacioso escreve hoje uma língua relativamente acessível ao leitor, enquanto
o compositor moderno se exprime, na maioria dos casos, numa língua aparen-
temente ininteligível, porque essencialmente pessoal. O problema - e o drama -
da música atual reside neste fato, neste enigma, nesta incoerência aparente,
cuja coerência só pode ser descoberta com a condição de se aprender a decifrar
a língua pessoal do autor.
Regressemos ao nosso propósito, que havíamos deixado para tentar fazer
sentir a diferença fundamental que separa a clareza, o classicismo, o conven-
cionalismo o século XVIII, daquilo que vai suceder-lhe.
Pois esse instante de equilíbrio da música não durará muito tempo.
Joseph Haydn (1732-1809) oferece um exemplo tipo do que acabamos de
esboçar. Aquele a quem chamaram o “pai da sinfonia”, porque dela nos deu os
exemplos mais perfeitos, escreveu com tanta habilidade como sinceridade a
música exata que esperavam dele. De caráter feliz e simples, esteve ao serviço
dos poderosos príncipes Esterhazy, ilustres em todo o mundo, tanto pela sua
fortuna, como pelo seu prestígio intelectual. Haydn devia passar junto desses
amos compreensivos e generosos os anos mais belos e mais fecundos da sua
vida, a servidão transformando-se, neste caso, em segurança material. E, con-
tudo, a sua disposição irônica, aliada ao seu gênio criador, impediram-no sem-
pre de se instalar numa amável mediocridade; primeiro, influenciado pelo
estilo de Mannheim, em breve despreza a música antiga e transforma-se no que
chamaríamos hoje um músico de vanguarda.
Haydn aperfeiçoa as suas sinfonias ao ponto de as transformar em verdadei-
ras arquiteturas; emprega desenvolvimentos de temas, efeitos de cambiantes,
processos originais de instrumentação: combinações de grupos, oposições
dramáticas, solos de instrumentos apoiados pela orquestra, em suma, uma
alquimia que frequentemente prefigura a sinfonia romântica. Além disso, in-
troduz na sinfonia esse elemento de que, após ele, Mozart se servirá para enri-
quecer toda a sua produção: o desenvolvimento da idéia musical. Acabaram
doravante os desenhos graciosos, os arabescos de virtuosidade, os motivos
simplesmente decorativos. A música sinfônica de Haydn manifesta a ambição
de expor, e em seguida desenvolver, uma ou várias idéias, cujo tecido sinfônico
é, de certo modo, a vestidura. Por este processo Haydn introduz na música, em
parte sem o saber, esse elemento psicológico que se vai transformar “na sua
própria essência. A centena de sinfonias que escreveu são quase todas, sobre-
tudo as da idade madura, obras-primas de engenho, de equilíbrio sonoro entre
os diferentes grupos orquestrais, de inspiração fluente e sedutora, amiúde sorri-
dente, numa linguagem pura e cristalina.
Assim, sob a amabilidade deliberada, esconde-se uma vigorosa e impulsiva
natureza criadora, inteira e totalmente virada para os mais altos valores da arte.
Haydn marcou a sinfonia clássica com o seu cunho definitivo; Mozart e Bee-
thoven inspirar-se-ão depois nas suas lições.
Christoph-Willibald Gluck (1714-1787), nascido nos arredores de Bayreuth,
foi um reformador. A sua música obedece ao classicismo do século, mas o seu
vigor, a sua nobreza aliada à simplicidade, desenham com grande exactidão o
retrato da sua personalidade sólida, de carácter autoritário, de determinações
nítidas, por vezes brutais, tal como diz a crónica. A sua carreira foi
intensamente internacional; ao segui-la, julgamos ver um dos nossos artistas
actuais, dando a volta ao mundo de avião três vezes por ano e semeando reci-
tais. Está presente nas estreias das suas óperas em Milão, Cremona, Veneza,
Londres, Dresda, Viena, Hamburgo, Praga, Nápoles, Roma e Paris, numa
época em que as viagens são ainda morosas e difíceis.. E essa mesma ambição
que o lança pelas estradas, leva-o também a aproveitar cada estada para fazer
abrir na sua frente as portas dos grandes salões e dos palácios principescos,
donde pode surgir a glória. Este “rústico de génio”, como frequentemente lhe
chamaram, é de origem checa e de educação alemã. Em contrapartida, a sua
formação musical é italiana, e se escreveu mais de cem óperas (mas quase
nenhuma obra de música instrumental) apoiou-se sempre em assuntos
históricos ou mitológicos, gozando de popularidade. Os títulos são
significativos; eis, ao acaso: Artaxerxes, Demétrio, Demofonte, Sofonisba,
Hyper-mestre, Hipólito, As Bodas de Hércules, Antígona, Issifilo, A Clemência
de Tito, Telémaco, Paris e Helena, Eco e Narciso.
Por volta dos cinquenta anos e após ter sido chefe de orquestra, organista e
diretor teatral, o cavaleiro Gluck, que estudara demoradamente o problema da
ópera italiana e meditara sobre a “Querelle dês Bouffons”, toma subitamente
uma posição. Solicita do poeta Casalbigi um libreto sobre o tema de Alceste
e Admeto (o mesmo poeta já escrevera o libreto de Orfeu); e na dedicatória
deste novo trabalho, que ele oferece ao grão-duque de Toscana, Gluck explica-
se: apenas a simplicidade é válida — escreve ele —, tanto na escolha de um
assunto, como na sua expressão dramática e na sua tradução musical, pois a
missão da música é secundar a poesia para lhe fortificar a expressão. Por meio
deste “regresso à simplicidade”, que é a sua grande idéia, Gluck pretende lutar
contra os dois males que asfixiam a ópera: a sumptuosidade abusiva do espetá-
culo e os excessos de virtuosidade vocal à italiana (tão ameaçadores como os
excessos dos grandes instrumentistas, divindades tirânicas do mundo musical).
A reação de Gluck era salutar, pois propunha ao público obras despojadas
de artifícios e de excessos ornamentais, cuja pureza e dignidade se opunham,
com sugestiva eloquência, à miscelânea de mau gosto que atravancava o reper-
tório lírico.
Esta iniciativa de Gluck não foi, porém, inteiramente coroada de êxito: a sua
declamação majestosa e solene, o seu recurso sistemático a um helenismo já
fora de moda, e até a própria destituição de ornamentos, não deixavam de pro-
vocar certo enfado. A arte, neste compositor, é por vezes afetada e o conven-
cionalismo triunfa com demasiada frequência. Seria perfeitamente inconveni-
ente discutir as belezas que iluminam certas páginas de Orfeu, de Armide, de
Ifigénia em Táurida e Ifigénia em Aulida, mas estas obras não deixam de reve-
lar algumas fraquezas comuns às composições líricas da época.
Notar-se-á com certa surpresa, que Gluck emitiu sobre a música um juízo
extremamente audacioso: “A música é uma arte limitada”, disse ele, “e sobre-
tudo na parte que se chama melodia. Na combinação de notas que compõem
um canto procurar-se-á em vão um caráter próprio de certas paixões: tal não
existe.”
Esta é, a duzentos anos de distância, a opinião de Strawinsky, afirmando que
a música é, por essência, incapaz de exprimir seja o que for. Esta filosofia da
música não pode ser aqui analisada - pois arrastar-nos-ia longe demais - mas é
bastante curioso verificar que Gluck nega à música qualquer poder expressivo,
negando, portanto, também a sua missão ritual. Por outro lado, esta afirmação
explica que Gluck faça da música uma serva das palavras, cuja expressão for-
tifica. É assim que a famosa ária de Orfeu, J'ai perdtt mon Eurydice, é uma
desolação cantada no modo maior, quando o menor é normalmente utilizado
para as melodias tristes; e certo crítico pôde dizer que outras palavras se lhe
adaptavam igualmente bem. Noutros termos, na opinião de Gluck a música não
possui vida nem carácter próprios; ela apenas adquire sentido em função do
texto.
É evidente que este desdém dos “ornamentos supérfluos que interrompem a
acção” alvejava de forma tão nítida a ópera italiana que os adversários de
Gluck suscitaram, tal como no caso de Rameau, uma nova querela: mandaram
vir de Itália um rival, Piccini, a quem foi confiada a missão de destronar o
“gosto francês”. A despeito do sucesso momentâneo de Piccini, Gluck saiu
engrandecido da batalha entre gluckistas e piccinistas. É incontestável que a
dignidade do seu estilo exerceu uma influência altamente benéfica na sua épo-
ca. Orfeu (1762) e Alceste (1767) são as duas obras onde mais nitidamente se
marca o alcance da sua reforma.
Um destino cruelmente irónico estava reservado a Mozart (1756-1791), um
dos génios mais singulares de toda a história da música: após uma infância
radiosa, em que foi animado pelos grandes deste mundo, cumulado de
admiração e de glória, conheceu na idade adulta as infelicidades de um
casamento inadequado com uma mulher frívola e sem inteligência e, em
seguida, o desgosto de afrontar a indiferença dos seus contemporâneos, a quem
já não interessava depois de passada a idade do menino prodígio. A labuta
febril, os excessos de trabalho que se impôs para conseguir ganhar algum
dinheiro, os cuidados da luta pela existência minaram a sua saúde já delicada,
falecendo aos trinta e cinco anos.
Improvisador extraordinário, virtuose do cravo aos oito anos, deu a volta à
Europa acompanhado pelo seu pai, Leopoldo, músico também, ao serviço do
príncipe-arcebispo do Salzburgo. O processo de Leopoldo Mozart perante a
história ainda não terminou: terá ele abusado do talento e das forças do seu
filho, ao passeá-lo como se fosse um macaco sábio através de uma dezena de
países? Terá ele sido, pelo contrário, um mestre sensato que lucidamente per-
mitiu o desenvolvimento das faculdades desse filho excepcional? Não podemos
duvidar que o desejo de lucro e a vaidade desempenharam um papel na sua
atitude.
A educação musical de Wolfang-Amadeus faz-se ao acaso das viagens; em
cada país trabalha com um professor diferente. É sem dúvida este fato que lhe
dará mais tarde essa facilidade de pena e essa faculdade de poder escrever “em
qualquer estilo”, como ele próprio orgulhosamente declara. As suas obras reve-
lam, de resto, os estilos italiano, alemão e francês e, com a extraordinária es-
pontaneidade que sempre manifesta, Mozart nunca se preocupará com teorias
estéticas: escreve no estilo que melhor convém à obra que aborda e à idéia que
pretende exprimir.
A sua produção é considerável: mais de seiscentos números, incluindo ópe-
ras, música religiosa, instrumental, sinfônica. Esta produção, onde não se en-
contra um vestígio de mediocridade, está marcada por um sinal: a graça. Tudo
quanto Mozart faz resulta perfeito; possui por instinto o segredo da beleza, da
elegância, da leveza, da pureza. Ele “fala justo”. Ele nunca força. O seu encan-
tador sorriso, a sua melancolia pudica, a sua finura, conferem à música o cunho
da perfeição suprema.
Mas não é tudo: Mozart manifesta também um conhecimento que, poder-se-
ia dizer, completa estas qualidades ou virtudes natas: a sua técnica de compo-
sitor é precisa, erudita; a sua pena corre sem hesitações. As idéias surgem,
sempre claras, e organizam-se harmoniosamente. Quando escreve um concerto
para piano, violino, clarinete, fagote ou trompa, fá-lo com exato conhecimento
das possibilidades técnicas do instrumento; e é dentro desses limites bem defi-
nidos que ele deixa correr a sua inspiração poética, irônica ou dramática.
A grande virtuosidade instrumental é nele resplandecente, mas inteiramente
subordinada às leis da forma. É este fato que faz de Mozart - com Haydn - o
melhor representante do classicismo. Todas as
suas obras instrumentais são baseadas num
princípio de geometria sonora que contém ide-
almente a expressão— uma expressão aérea,
situada entre o Céu e a Terra.
Nas suas óperas, construídas sobre o modelo
italiano (recitativo secco e árias), o convencio-
nalismo do gênero desaparece para dar lugar à
espantosa realidade humana. Além destas (Cosi
fan Tutte, As Bodas de Fígaro, D. João), escre-
ve óperas sobre libretos alemães (O Rapto do
Serralho, A Flauta Mágica). Reencontrando e
fixando a forma já utilizada do singspiel, com-
binação da ópera cômica francesa e da opera Mozart em 1783
buffa italiana, Mozatt não hesita em associar os
gêneros no seio da mesma obra (assim as cenas burlescas de Leporello
integradas no violento dramatismo de D. João). Mozart levou a ópera italiana
à perfeição, como levou à perfeição todas as formas existentes, mas nunca
se esforçou no sentido de as codificar. Pelo contrário, insuflou-lhes uma
vitalidade ardente e muitas vezes audaciosa.
Sabe-se que Haydn (que Mo-
zart venerava) disse a Leopoldo:
“Declaro-vos perante Deus que o
vosso filho é o maior músico que
conheço.” Não só Mozart foi esse
grande músico, como ainda mani-
festou qualidades completamente
incompreendidas, devido às quais
teve de arrostar com a má vontade
dos seus contemporâneos - as suas
qualidades de homem. Ao contrá-
rio dos músicos-criados, que acei-
tavam a sua sorte com bonomia ou
resignação, Mozart foi um revol-
tado, pronto a escoicear nos va-
rais, ironizando ou resmungando
a propósito da sua condição ao
serviço do arcebispo de Salzebur-
go. Após ter sido vergonhosamen-
te expulso dessa casa, onde o seu
lugar às refeições era ao lado dos
moços de cavalariça, sendo a
“parte alta” da mesa reservada
para os criados de primeira classe, Emmanuel Schikaneder, o criador do
retomou definitivamente a sua papel de Papagueno na Flauta Mágica
liberdade e descobriu a miséria.
Consciente da sua dignidade e da injustiça do destino, frequentou em Paris os
meios que preparavam o terreno onde ia germinar a Revolução. As suas Bodas
de Fígaro eram, para a época, subversivas e impertinentes. Na obra de Beau-
marchais, primeiro censurada e em seguida dando lugar a inúmeras controvér-
sias, a sátira social desenvolvia-se em cheio. Trocava dos aristocratas, cujo
papel era pouco brilhante, e admirava-se Fígaro, o plebeu, cuja astúcia valia
bem o privilégio do nascimento.
As idéias de Mozart não eram apenas pura especulação; fez-se inscrever na
maçonaria, que representava para ele uma forma de igualdade humana de que
se sentia ávido. Ali, homens da mesma condição dos seus antigos amos poderi-
am chamar-lhe “irmão”. Foi para eles que escreveu A Flauta Mágica, cujo te-
ma evoca os ritos de iniciação maçônicos. Simultaneamente Mozart afirmava-
se um cristão sincero; com a sua Música Fúnebre Maçônica e o seu Requiem
ou o seu perturbante Ave Verum, ele dava livre curso ao seu fervor e ao seu
ideal - um ideal onde o amor de Deus não podia excluir a fraternidade humana.
Tanto na sua obra como na sua vida, Mozart revela-se um espírito avançado;
transborda do quadro convencional e do preciosismo do seu tempo; encara com
olhar lúcido os seus contemporâneos. Reivindicando a liberdade do artista, ele
exprime essa liberdade na sua música; a despeito dos contornos banais postula-
dos pela linguagem da época, e de que frequentemente fez uso porque estes lhe
eram tão naturais como as imagens familiares da língua falada, a sua obra fer-
vilha de audácias e de surpresas. E se Mozart criança pode ser inteiramente
contido nos limites do “estilo galante”, sabemos que Mozart adulto já nada tem
de comum com ele: sob o sorriso convencional a sua música torna-se grave;
com as suas personagens de ópera atinge as fronteiras do idealismo psicológi-
co. Tinge-se de cores sombrias e trágicas. Nas três últimas sinfonias, no D.
João, nos últimos concertos para piano e no Requiem existe uma ordem clás-
sica soberba e infalível, mas também uma grandeza, uma eloquência sacra,
uma nobreza perturbante. Nesse momento, Mozart tornou-se no verdadeiro
Mozart, isto é o músico cuja obra coroa o século e indica o caminho ao futuro.
Assim termina o século XVIII, numa apoteose. Mozart domina a época, mas
à sua volta diversos músicos acrescentam a sua pedra ao edifício.
Não se deve por exemplo esquecer o napolitano Domenico Cimarosa (1749-
1801), cujo estilo se aproxima do de Mozart. Particularmente hábil na opera
buffa, Cimarosa deixou Il Matrimonio Segreto “(Casamento Secreto”), que é
uma das mais encantadoras obras-primas do momento. A sua carreira foi bri-
lhante: permaneceu três anos na corte de Catarina II da Rússia, viveu em Viena
e em Nápoles e gozou de grande celebridade.
Luigi Boccherini (1743-1805) é hoje apenas recordado por um minuete a-
mável e um brilhante concerto de violoncelo. Caprichos e injustiças da glória:
Boccherini, músico cheio de espírito, de fantasia e de originalidade, foi um dos
melhores representantes do estilo rococó no fim do século e a sua obra merecia
ser também “novamente descoberta”. Na sua música ouvem-se por vezes acen-
tos mais sentimentais do que na dos seus contemporâneos, como se preludiasse
à grande explosão romântica. Conheceu uma glória internacional, foi composi-
tor do rei da Prússia, Frederico-Guilherme II, e do infante de Espanha em Ma-
drid, onde regressou e morreu, já esquecido.
Citemos ainda o italiano Viotti (1753-1824), que formou numerosos
violinistas em França e aperfeiçoou o concerto; Muzio Clementi (1752-1832),
que todos os jovens alunos pianistas conhecem e que, pelos seus estudos e
sonatas (um tanto descuidadas), enriqueceu a literatura do piano; o espanhol
padre António Soler (1729-1783), músico eminente que domina a sua época;
Philippe-Emmanuel Bach (1714-1788), interessante autor de sonatas para
cravo; e André-Modeste Grétry (1741-1813), oriundo de Liège mas residindo
em França, compositor agradável, sensível e elegante, excelente na ópera
cómica, na qual introduz, sob uma bela
forma clássica, inflexões sentimentais
bastante sugestivas.
Este último ocupa um lugar importante
no século, do qual exprime fielmente a
sensibilidade. Célebre em toda a Europa,
cumulado de honrarias, a sua reputação
sobreviverá à Revolução de 1789. Após
ter escrito típicas pastorais, tais como
Céphale et Procris ou Zémir et Azor, de
que possuímos algumas páginas encanta-
doras, Grétry comporá obras como a Ro-
seira Republicana, onde surge, de forma
flagrante, a ruptura entre o antigo e o no-
vo. João Domingos Bontempo,
Em Portugal, citemos Carlos de Seixas grande pianista e compositor
(1704-1742), cravista, organista e compo- português
sitor, que nas suas tocatas, minuetes, fugas, concertos e sinfonias acusa a influ-
ência de Scarlatti, e Marcos da Fonseca Portugal (1762--1830), que escreveu
uma vasta obra lírica, também dominada pelo estilo italiano, dedicando-se à
música religiosa nos últimos anos da sua vida; mas deve destacar-se a figura de
João Domingos Bontempo (1755--1842), homem integrado nas ideias liberais e
introdutor em Portugal dos princípios da escola de Viena. Grande pianista e
compositor, distinguiu-se como virtuose do seu instrumento em Paris e Lon-
dres. Fundador da Sociedade Filarmônica de Lisboa, destinada a revelar a nova
música, continuou, 'mais tarde, a sua obra pedagógica como professor do então
recém-criado Conservatório de Música. Nas suas obras incluem-se sinfonias,
concertos, sonatas, variações para piano, música de câmara e coral-sinfónica
(Missa de Requiem, dedicada à memória de Camões).
Todos estes músicos resumem o século e rematam a evolução que se havia
iniciado cento e oitenta anos antes, com o advento do barroco. Se alguns caem
já no preciosismo, outros dão à arte clássica os seus mais belos frutos. Essa
transparência, essa beleza harmoniosa, essa luz espiritual, não voltará a ser
reencontrada, pois 1789 está agora muito próximo.
Os grandes músicos
O Italianismo
As escolas nacionais
1
* Os musicólogos, como já dissemos anteriormente, estabelecem uma diferença entre a
música “folclórica” e a música “étnica”. Os caracteres próprios de uma música “étnica”, tanto
nos ritmos e melodias como nos temas de inspiração, podem não ser folclóricos na acepção do
século XX, isto é, de tradição popular. Para maior facilidade, limitar-nos-emos ao termo
folclore, menos científico, mas que abrange a criação artistica popular de um grupo, de uma
região ou de um país.
para se dedicarem ao ideal comum. Balakirev tinha feito estudos científicos;
com Islamey deixou uma página magistral, de intenso colorido, cujo subtítulo é
“fantasia oriental para piano”. O engenheiro Cui, que foi o porta-voz do grupo,
tornou-se conhecido com uma ópera, O Prisioneiro do Cáucaso, e numerosas
peças para piano. Terminou a sua carreira de oficial de engenharia com o posto
de general e escreveu um Tratado de Fortificações notável, ao que parece...
Borodine foi médico e químico; deixou uma obra--prima, O Príncipe Igor, e
algumas páginas como Nas Estepes da Ásia Central, já citadas. O Príncipe
Igor, Ópera inspirada na história russa, influenciará profundamente a produção
nacional.
Rimsky-Korsakov, oficial de marinha, é o mais erudito de todos; corrigiu as
obras de vários dos seus amigos, por vezes mesmo de forma discutível; certos
historiadores sustentam a opinião de que, com a sua preocupação acadêmica e
didática, Rimsky-Korsakov talvez tenha alterado a frescura de páginas, cujas
próprias incorreções afirmavam a originalidade. Magnífico orquestrador, com
um sentido agudo da cor orquestral, Rimsky-Korsakov fez neste domínio au-
tênticos achados, que um Strawinsky tomará em consideração (como, por e-
xemplo, em O Pássaro de Fogo). Sheherazade, O Galo de Ouro, Capricho
Espanhol revelam um talento criador extremamente original, ao qual a escola
sinfónica do século xx muito deve; e sabe-se que Debussy estudou a obra dos
“Cinco” com entusiasmo.
Moussorgsky, certamente o mais dotado do grupo, foi oficial. Após uma
descuidada juventude dourada, mudou subitamente de vida, renunciou às mun-
danidades e dedicou-se inteiramente à tarefa de criar uma arte nacional. Ao
evocá-la, ele faz por vezes lembrar um herói de Dostoiewsky ou o próprio Dos-
toiewsky: exaltação, misticismo, sarcasmo e ironia, grandiloquência e sinceri-
dade...
A despeito de uma formação musical bastante imperfeita, Moussorgsky cri-
ou uma linguagem pessoal e adivinhou que as estruturas musicais, tais como
repetições, desenvolvimentos, etc., podiam prejudicar o realismo e a veracida-
de da ação. Reagindo contra esta ameaça de formalismo, a sua música será
essencialmente livre e a sua declamação lírica estreitamente adaptada à língua
russa. As óperas (Boris Godounov, a sua obra-prima, Khonantchina) e as me-
lodias de Moussorgsky provam a que ponto ele foi capaz de exprimir a alma
das coisas e dos seres do seu país. Note-se que os títulos das suas obras, e as
dos seus amigos, evocam sempre um tema ou uma personagem nacional.
Temos de classificar isoladamente Ilytch Tchaikowsky (1840-1893), músico
atormentado, patético, romântico até ao excesso, pois nem sempre evita a gran-
diloquência e os efeitos fáceis. Tchaikowsky permanece ligado à música euro-
péia, alemã em especial; ele não é, portanto, um músico “nacional” no sentido
preciso do termo, tal como o definimos, e manteve-se, de resto, afastado dos
seus colegas. Hoje verificamos, contudo, que o nitchevo que se manifesta na
sua música, o seu misto de nostalgia e de ardor, de exaltação e de desespero,
assim como por vezes a sua frescura popular, são tipicamente eslavos. Depois
de ser rotulado de cosmopolita, notou-se mais recentemente que a sua música
se identificava profundamente com o caráter russo—como o prova a constante
popularidade de que goza junto do público soviético.
A vida de Tchaikowsky, tal como a dos seus contemporâneos ocidentais,
impressionou as imaginações pelas suas infelizes peripécias, a despeito dos
seus êxitos profissionais. Dominado por uma melancolia devoradora, passando
continuamente do entusiasmo ao abatimento, este músico teve uma vida priva-
da instável e dramática, sendo as suas paixões, frequentemente, mais fortes do
que a sua vontade. Uma experiência de casamento terminou com uma separa-
ção quase instantânea e que aumentou a sua desorientação. Recebeu o auxílio
de uma mulher rica e apaixonada pela sua obra, Nadejda von Meck, que, embo-
ra nunca o tivesse conhecido pessoalmente, lhe garantiu toda a vida um rendi-
mento que lhe permitiu dedicar-se à composição. Esta circunstância romanesca
será o único acontecimento feliz da sua existência. Vitimado pela cólera, Ilytch
Tchaikowsky morreu aos cinquenta e três anos, em 1893.
Ainda na Rússia surge-nos Scriabine (1872-1915). Visionário de sensibili-
dade exacerbada, sofreu sucessivamente as influências românticas de Chopin,
Wagner, Richard Strauss e, em seguida, as de Debussy e de Ravel, que marca-
ram a sua linguagem harmônica. Dirigindo-se para uma metafísica mal defini-
da, para sonhos exaltados (o Poema do Êxtase), Scriabine permanece como um
músico singular, de inspiração cativante, e que vai além dos conhecimentos da
sua época. Os seus Estudos e Prelúdios para piano são obras ricas pela forma e
pelo conteúdo.
Com Bedrich Smetana (1824-1884) e Anton Dvorak (1841-1904) tiveram os
Checos dois representantes da sua arte nacional. Smetana é o mais autentica-
mente popular (A Moldávia, página sinfônica, A Noiva Vendida, ópera de deli-
ciosa frescura campestre). A sua música é viva, espontânea, por vezes ingênua
como uma encantadora estampa popular, enquanto a de Dvorak (Sinfonia do
Novo Mundo, Concerto para Violoncelo) se torna pesada, devido a uma retóri-
ca muito estreitamente tributária de Brahms, que lhe tira espontaneidade, fi-
xando-a entre dois gêneros que não se definem claramente.
Dvorak não pôde encontrar a linguagem adequada à música que desejava
escrever e que postulava mais simplicidade. Outros conseguiram-no mais fa-
cilmente, sem se deixarem influenciar por estilos que lhes eram estranhos, co-
mo o norueguês Edvard Grieg (1843--1907), músico menor, mas cujas Danças
Norueguesas, certas melodias e o famoso Concerto para Piano (baseado no
estilo de Liszt) representam o caráter e a alma do seu país com frescor, candu-
ra, uma evidente sedução sentimental e um belo dom de poesia evocadora.
Em Portugal, Alfredo Keil (1850-1907) foi o primeiro compositor a tomar a
iniciativa de sacudir a influência italiana, profundamente enraizada nesse país,
e escrever sobre temas de caráter nacional. Salientaremos a sua ópera Serrana,
inspirada no folclore da serra da Estrela.
Aipos ele Viana da Mota (1868-1948), grande pianista mas compositor me-
nor, teve também o merecimento de contribuir para a divulgação do folclore
nacional, absorvendo-o nas suas obras, de que citaremos, como exemplo, a sua
sinfonia Pátria.
Considerando o relevo e colorido intrínseco da sua arte popular, os Espa-
nhóis deviam brilhar muito especialmente no panorama das escolas nacionais.
Assim, Isaac Albeniz (1860-1909) e Enrique Granados (1868--1916) encontra-
ram instintivamente os meios técnicos adequados à tradução dos caracteres da
música popular, do clima e do temperamento espanhóis. Nestes músicos reen-
contramos, estilizados, o zapateado (martelar de saltos), a longa melopéia do
canto flamenco, a imposição dominadora do ritmo, a sensualidade da melodia.
As Danças de Albeniz e a sua suite Ibéria (um quadro como A Festa do Corpo
de Deus em SeviIha) têm um surpreendente poder evocativo de luz e de cores.
As Goyescas, inspiradas pela obra de Goya, e as Danças de Granados têm um
caráter diferente: Granados é mais lânguido, mais rico de harmonias, mais or-
namentado. Foi um romântico melancolicamente sensual: morreu aos quarenta
e oito anos, no naufrágio do “Sussex”.
Manuel de Falia (1876-1964) forma com Albeniz e Granados, de quem foi
contemporâneo, o “triunvirato” que revelou ao mundo as riquezas do seu país.
Personalidade vincada, grande senhor ascético, ele impõe uma arte toda feita
de elegância e de intensidade requintada, de um ardor mais refreado mas igual-
mente escaldante. A sua expressão do carácter nacional não assenta sobre
elementos exteriores, mas sobre uma estilização e uma transposição
psicológica que lhe elevam o nível. Áspera, incisiva, animada de um ardor
seco, a sua obra ultrapassa o pitoresco e exprime a alma profunda da Espanha.
Os bailados O Tricórnio ou O Amor Bruxo, o Retábulo de Mestre Pedro, as
Noites nos Jardins de Espanha, para piano e orquestra, o Concerto para Cravo,
as admiráveis Sete Canções Populares, verdadeira síntese de uma arte erudita
baseada em elementos regionais, são obras que evidenciam a grande qualidade
da sua inspiração.
Sem avançarmos até à nossa época, em que numerosos compositores explo-
ram o domínio cativante do folclore, lembremo-nos de Liszt, que, nas suas
Rapsódias Húngaras utiliza profeticamente os cantos e ritmos populares numa
estilização clássica. Neste aspecto é o precursor de Bartok (como o próprio
reconheceu).
Finalmente, Sibelius (1865-1957) é o grande músico nacional da Finlândia,
de que foi o poeta, sem recorrer exatamente a elementos populares, mas evo-
cando a alma do seu povo, os vastos e pacíficos horizontes do país dos mil la-
gos, a contemplação que estes suscitam e inúmeras coisas familiares aos Fine-
ses. Poder-se-ia facilmente renunciar à Valsa Triste, que se tornou tão famosa,
em proveito das Sete Sinfonias, praticamente desconhecidas nos países latinos,
mas familiares aos Anglo-Saxões e aos Alemães, pois correspondem ao gosto
musical destes povos pelo mistério e o irracional. O público latino prefere uma
dialética, uma forma, um dinamismo; quando a música plana, contempla, ou
simplesmente impõe uma atmosfera, corre o risco de provocar impaciência.
Assim se explica por que certas obras extremamente belas têm dificuldade em
passar de um público ao outro.
Esta “descoberta do ouro”, esta súbita revelação de um tesouro popular, iria
influenciar toda a produção musical; não há um único país onde este tema não
tenha suscitado interesse. Doravante associada à música <(pura”, a música fol-
clórica conferir-lhe-á uma nova riqueza. Sabe-se o partido que, em breve, um
Bartok dela iria tirar. De acordo com um fenômeno de compensação bastante
frequente na história, a música do século XIX, que se tornara simultaneamente
muito erudita e nitidamente dramática, devia descobrir nos campos as fontes de
uma simplicidade pastoral de uma franca alegria de viver. Será pela junção
destes elementos que a música do fim do século XIX e do século XX vai, em
parte, renovar-se.
IX - O SÉCULO VINTE
1
Nascido na Itália, o verismo manifestou-se nesse país de acordo com o carácter apaixonado que os
compositores imprimiam à sua inspiração, mas, na realidade, ele só transpôs as fronteiras da Península mercê de
uma transformação, como mais adiante veremos.
cado, uma eloquência acariciadora à flor da pele, a despeito de um notável ta-
lento de melodista, de orquestrador e de estilista. Pelo menos, estes composito-
res ajudaram a impor um “tom francês”.
Claude Debussy
Maurice Ravel
O “Grupo dos Seis” rodeando Jean Cocteau.
Da esquerda para a direita: Milhaud, Auric,Hon-
neger, Germuine Tailleferre, Pouíenc e Durey
E, como se a revolução debussiana não fosse completa, eis que a sua lin-
guagem harmónica se liberta inteiramente da linguagem clássica, refuta as suas
regras e descobre outras, cujo encanto sonoro — ou a evidência — vem provar
que existia uma verdade latente, ainda não revelada, na sintaxe dos acordes. Os
encadeamentos livres de Debussy revelam um mundo sonoro desconhecido e
abrem a porta a toda a harmonia do século XX.
Uma das páginas mais pessoais e mais audaciosas do jovem Debussy, o Pre-
lúdio à Sesta de Um Fauno (1892), evidencia a sua extraordinária imaginação:
basta recordar que ela é contemporânea das grandes obras de Franck, de Ri-
chard Strauss, de Saint-Saèns, de Bruckner ou de Mahler. A subtileza das sono-
ridades, a coloração ligeira da orquestra, as harmonias inesperadas, o seu poder
evocativo, indicam o gênio deste músico de trinta anos, que se afasta de todas
as sendas batidas. Manifesta-se o mesmo gênio nos Estudos e Prelúdios para
Piano, onde Debussy utiliza uma matéria sonora irisada para descrever, com
poesia e graça, paisagens, (personagens e sensações musicais puras. As suas
obras para orquestra, os Nocturnos, as Imagens, as suas melodias, em suma,
toda a sua obra revela-o prodigioso renovador das formas e da expressão.
Mary Garden,
criadora da personagem de Mélisande, na ópera cómica
Grandes personalidades
1918-1940
Após 1945...
1
É nesta acepção, e por oposição a estas concepções de música, que utilizaremos o termo
“clássico” nas páginas seguintes.
A ópera no século XX, Duas obras de Alban Berg:
Lulu, no Ópera de Viena, e Wozzeck, no T. R. Aí. de Bruxelas
A escola americana
2
Em França, e durante muitas gerações, a música talvez não tenha sido mais do que “a li-
ção de piano” das jovens de família burguesa, a tal ponto que ela finalmente se associou, na
nossa mentalidade coletiva, aos trabalhos de agulha.
Já foi utilizada uma comparação bastante interessante para ilustrar até que
ponto se modificou o aspecto da vida e o sentido de valores: um Liszt ou uma
Sarah Bernhardt, no apogeu da glória, exibiam-se perante quinhentas ou mil
pessoas num local determinado, de onde radiava a sua fama. Apenas alguns
privilegiados podiam vê-los ou ouvi-los. Hoje qualquer artista, mesmo
medíocre, adornado com o título de “vedeta”—quando não é de “ídolo” —
pode atingir de um só golpe, por meio de uma cadeia de televisão americana ou
pela Eurovisão, mais de cem milhões de espectadores. Sem contar os discos,
que levam a sua presença sonora a todos os lares. Como avaliar o peso da
responsabilidade deste poder considerável?
Poder-se-á comparar o lugar e a influência da música na sociedade atual
com o que foi no passado, há cem, mil ou três mil anos? Não, se se avaliar até
que ponto a música se transformou, tanto no que respeita à matéria, ao espírito,
como à função. Sim, contudo, se considerar que a música religiosa de hoje é a
mesma de há vinte séculos, que o seu poder não se alterou e que, a despeito dos
transtornos profundos, os homens pedem ainda e sempre à música profana que
lhes apresente, como uma magia, um mundo onde possam situar o ideal da sua
imaginação, dos seus sentimentos, de toda a sua vida invisível. Numa palavra,
pedem-lhe uma influência benéfica, e a música nunca falhou nesta missão de
representar o lugar sublime das aspirações humanas.
No termo deste livro devemos repetir, o que de resto terá, sem dúvida, sido
sugerido nas páginas anteriores, que a música não é e nunca foi uma criação
gratuita, arbitrária, sem raízes nem justificação profunda. Uma época produz
sempre uma música à sua imagem, uma música que, como todas as outras ar-
tes, é a sua emanação direta. Nas civilizações da Antiguidade e da Idade Mé-
dia, a música reflete uma poderosa realidade espiritual. Na Renascença espelha
uma maneira de viver, uma realidade social, de que ela constitui uma das face-
tas. No século XVIII, ela refletirá uma realidade filosófica que então enquadra
o universo do pensamento, onde toda a atividade se inscreve naturalmente; os
homens admitem essa ordem imaginada pelos seus filósofos e a música traduz
o seu equilíbrio tranquilizador, a sua claridade, os seus limites. No século XIX,
a música reflete — apaixonadamente— uma realidade humana, um mundo de
idéias tumultuosas, uma nova era, em resumo, os fenômenos mais evidentes do
momento.
Mas hoje, dir-se-á, será verdade que a música reflete mais uma vez o caráter
profundo da nossa sociedade? Sim, evidentemente, apesar de que nem sempre
assim pareça. Vamos tentar dar uma breve explicação: a evolução rápida da
música em todos os sentidos provocou uma desorientação legítima no público,
que gostaria de saber qual a música que representa realmente o século XX, qual
é “válida”. Das últimas investigações da eletrônica às obras dos mais rigorosos
pós-webernianos, passando pelos discípulos do formalismo proposto por Stra-
winsky ou de um romantismo segundo Prokofiev, existem vinte tipos de mú-
sica, que puxam cada um para seu lado e que, contudo, são todos bem da nossa
época. A resposta encontra-se precisamente nesta diversidade, pois ela acusa,
traduz, reflete muito fielmente a disparidade de um momento da história em
que as mais avançadas idéias se opõem — e por vezes de forma extraordinari-
amente violenta — a outras que se mostram tanto mais ferozmente conservado-
ras, quanto a vanguarda é agressiva. Hoje como nunca, o futuro coabita com o
passado: televisão, transmissão por satélites, aventuras de cosmonautas, aplica-
ções da energia nuclear, tudo coexiste com métodos antigos, maneiras de viver
que ainda não nos parecem ultrapassadas, organizações sociais quase feudais,
preconceitos tenazmente enraizados. A estreiteza de espírito não desarma pe-
rante o alargamento do universo e este conjunto prossegue numa incrível agita-
ção de elementos que formam finalmente o matizado da nossa segunda metade
do século XX.
Consequentemente, dir-se-á sem reservas que as experiências electrónicas
são o reflexo natural das realidades científicas do nosso tempo: o desejo de se
encontrar uma nova linguagem musical não é mais extraordinário do que o
facto de se ter achado uma nova técnica de arquitectura, que ergue imensos edi-
fícios sobre pilares, derrubando as noções tradicionais dos alicerces; não é mais
insólito ouvir os agrupamentos de sons não figurativos do que ver num receptor
de televisão uma cena que se desenrola — ou já se desenrolou—a centenas de
quilómetros. A nossa vida transforma-se como nunca havia acontecido. Ao
encararmos tal facto, temos de admitir, pelo menos em princípio, que essas
transformações possam repercutir-se em todos os domínios. A realidade das
buscas intelectuais inscreve-se na vanguarda; a realidade social inscreve-se por
exemplo em Porgy and Bess ou West Side Story, que, numa linguagem lírica,
traduzem as graves inquietações próprias ao homem de hoje em determinado
país. Quanto à arte não envolvida neste processo, puro esforço do espírito, ela é
uma realidade tão viva como a arte envolvida, mesmo quando esta última
suscita um choque de ideias, pois ataca um problema humano ao qual não se
pode fugir.
O enigma da nova música reside no fato de que ninguém sabe que gênero
“permanecerá” ou triunfará, ou até se a atual multiplicidade de linguagens e de
estilos se manterá. Haverá uma tendência mais forte? Será a música mais de-
sencarnada, mais árida, mais científica que ganhará a luta, o que provaria que
ela corresponde a uma necessidade duradoura? Ou será, pelo contrário, a mais
fácil, a mais direta, porque gostaríamos de mergulhar nela a fim de esque-
cermos uma vida difícil? Seja como for, ela não será amanhã mais gratuita ou
arbitrária do que foi ontem: ela corresponderá a uma necessidade que ainda não
podemos claramente discernir.
O enigma que o futuro da música hoje representa não impede que o canto
gregoriano, Monteverdi, Bach, Mozart, Chopin e tantos outros estejam inscri-
tos no nosso universo de cultura. Este fao prova apenas—coisa maravilhosa —
que a cultura musical encerra valores permanentes, inacessíveis aos golpes das
modas e dos séculos.
Se a época da desintegração do átomo presenciou a desintegração de tantos
valores reconhecidos e o desmoronar de tantos quadros tradicionais, se a arte
contemporânea repudia dez séculos de evolução para recomeçar a partir de
zero, torna-se desnecessário afirmar que precisaremos de paciência para aguar-
dar os primeiros resultados desta formidável aventura que se inicia sob os nos-
sos olhos.
E eis que, de novo, tudo recomeça na história.