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Jacques Stehman

História da
Música Européia
das origens aos nossos dias

DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO, LDA.


RUA BENTO DE FREITAS, 362-6."—SÃO PAULO

Nascido em Bruxelas em 1912, Jacques Stehman fez os seus estudos de


música no Conservatório Real desta cidade. De 1933 a 1939 integra-se num
grupo de jazz, participa nas atividades de um cenáculo literário, publica duas
revistas musicais, organiza recitais de piano. Terminada a guerra, retoma a
atividade, distribuindo-se pela crítica e pela composição. Algumas das suas
obras mais conhecidas: Sinfonia de Algibeira, Concerto de Piano, Suite para
Cordas, música de bailado (O Baile dos Embaixadores) e de cena (Cristóvão
Colombo, de Ch. Bertin). Em 1953 é distinguido com o Prêmio Itália.
Atualmente professor de Harmonia Prática no Conservatório Real de Bruxelas
e de História da Música na Escola Superior de Artes Decorativas e no Instituto
dos Jornalistas da Bélgica, Jacques Stehman exerce também os cargos de vice-
presidente da Juventude Musical Belga e da Sociedade Belga de Musicologia

NA CAPA: A Tocadora de Alaúde-(Século XVI, coleção particular) -


Maítre dês Demi-Figures.
Mais detalhes sobre a figura: http://eunjangdo.net/g_gallery/16/jf.htm

A obra original foi Publicada em francês com o título”Historie de la


Musique européenne” pelas Êditions Gerard & C.ie.", Verviers Bélgica
Maquetas dos extratextos de Yvan Rolen * Tradução de Mana Teresa
Athayde * Revisão técnica de Fernando Cabral

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© 1964 by Éditions Gérard ir C", Verviers (Bélgica).
Todos os direitos reservados para a publicação desta obra em Português
(Portugal e Brasil) pela Livraria Bertrand, S. A. R. L., Lisboa.

Numerosas histórias da arte apresentam uma lacuna: a de ignorar a


música. Por outro lado, existe outra lacuna correspondente em algumas
histórias da música, que isolam o fenômeno musical de um mundo onde,
contudo, ele sempre permaneceu, por assim dizer, incrustado. Pois uma obra
de arte não se deve apenas ao impulso do seu autor: este obedece, consciente
ou inconscientemente, a uma ordem social ou moral, religiosa ou estética, a
determinado estado das idéias que o rodeiam e que moldam a alma e a
fisionomia de uma época, de que ele será simultaneamente testemunha e
intérprete. Músicas primitivas ou eruditas, religiosas ou profanas, antigas ou
modernas, todas obedecem a estas leis.
Um dos mais eminentes musicólogos franceses, Jules Combarieu (1859-
1915), pôde escrever em 1913: “Porque será que em França, ainda hoje e em
vinte obras assinadas por nomes ilustres, a rubrica "história da arte" apenas
significa história das artes do desenho? A que lugar inferior ou estranho, a
que ordem de estudos abandonam eles a música, esses que, após haver
adaptado tal atitude, julgam poder ignorar os músicos?”
Verificar-se-á que meio século não introduziu qualquer alteração nesta
situação e que as histórias da arte permanecem divididas em compartimentos.
Foi por isso que nos pareceu útil, dentro dos limites desta pequena obra,
recordar os laços que, em cada época, unem a música às outras artes e à vida
do seu tempo.
J. S.

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I – DEFINIÇÕES

O destino europeu da música

A história que vamos aqui evocar é a da música européia. Devemos


considerar haver nisto qualquer injustiça? Não, não há; a música existe em
todos os países não europeus, desde a Antigüidade, segundo duas tendências
freqüentemente paralelas: ou evoluciona, torna-se erudita, inspirando-se
finalmente na técnica ocidental, ou, fiel às suas tradições religiosas e populares,
permanece ritual e primitiva. Um povo não poderia renunciar a esta música
tradicional sem perder a sua alma: é a fonte da sua civilização própria. Nota-se
em muitos países uma sobrevivência permanente da música tradicional (música
folclórica, que os especialistas chamam “étnica”), enquanto outra música de
inspiração européia liga esses mesmos países às grandes correntes artísticas
que percorrem o mundo. O perigo reside no fato de que essa música possa
tornar-se puramente acadêmica e impessoal, limitando-se a decalcar os
processos dos grandes compositores ocidentais. Mas o interesse mais evidente
é que esses compositores têm a possibilidade de criar uma música “erudita”,
impregnada de elementos tradicionais (ritmos e melodias), onde podem
exprimir o autêntico caracter do seu país, numa linguagem universalmente
compreendida e ao nível das maiores obras de arte.
Observemos a música popular espanhola ou grega, a música tradicional
árabe, balinesa, índia do México, chinesa ou japonesa e veremos sempre o
mesmo fenômeno: ou assimilou a técnica e o espírito europeus e perdeu o seu
caracter nacional, ou conservou os seus caracteres preservando-se da evolução.
É apenas desde há cerca de cem anos, com o aparecimento das “escolas
nacionais” que descobriram o folclore, que este aparece integrado na música
erudita. Mais próximo de nós, foi apenas desde há algumas dezenas de anos
que compositores brasileiros, mexicanos, japoneses, negros americanos, etc.,
conseguiram misturar os mais puros elementos da sua música com os
elementos técnicos e estéticos da nossa cultura musical, criando assim obras
interessantes e novas.
É evidente que a música folclórica, elevando-se ao nível de uma obra de
arte, não pode substituir o elemento funcional que existe em toda a música
tradicional e que é a sua sujeição à celebração de um rito. Para citar um
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exemplo, as mais belas páginas de um Manuel de Falia são obras de arte
impregnadas de um profundo caracter nacional, evocando com precisão o que é
a Espanha; mas em caso algum poderiam substituir o flamenco popular, que,
pelo bater de palmas, o martelar de saltos, as melopéias e os gritos, traduz, no
estado puro, a necessidade, para bailarinos e para aqueles que os rodeiam, de
ativamente exprimirem o seu ser profundo. Ainda outro exemplo: os Choros de
um Villa-Lobos, no Brasil, ou a Sinfonia índia de um Carlos Chavez, no
México, são estilizações de concerto, tal como as obras de Bartok ou de outros;
exprimem admiràvelmente todos os caracteres genuínos de uma música
tradicional, que, no entanto, continua a existir sob forma independente.
O destino da música, tal como o vamos encarar, é, portanto, europeu, porque
foi a Europa que produziu esta cultura musical universal e a ensinou ao mundo.
Ela substituirá, pouco a pouco, os múltiplos sistemas musicais em uso na
Antigüidade por um sistema codificado que se tornará numa linguagem, e cujas
convenções serão admitidas. Uma infinidade de elementos rodeia esse facto e
confirma a sua força: a expansão da Igreja Cristã e, consequentemente, do seu
canto; o papel de algumas grandes abadias e de algumas grandes cidades, tal
como Paris, desde a Idade Média, com a sua influência que se estendeu a todo
o Ocidente. A herança grega, e em seguida a romana, transmitiu-se modificada,
mas foi ela que serviu de base à Europa para explorar infatigàvelmente o
universo musical e estabelecer uma grande linguagem universal.
A história desta música é inseparável da história e das vicissitudes da
Europa. primeiro religiosa, e separando-se depois, na Idade Média, em dois
ramos bem distintos: a música de Igreja e a do povo, segue a evolução das
idéias e dos gostos, exprime o estado dos espíritos em dado momento, responde
às necessidades de uma sociedade (distrações, protocolo, etc), acusa as
perturbações das crises políticas ou morais.
A partir de um vasto feixe de músicas procedentes da Antigüidade Oriental,
a Igreja Cristã fixará a atenção dos seus fiéis sobre uma música cantada,
simples, completamente destituída de sensualismo, e que — paralelamente à
expressão progressiva dessa mesma Igreja — vai por sua vez radiar, impregnar
as almas, penetrar nos espíritos, moldar a inspiração musical. O lento caminhar
desta música permanece ligado ao caminhar da civilização ocidental. É a partir
da cantilena gregoriana que surgem as primeiras tentativas de polifonia; é por

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meio das missas e dos motetos que a linguagem musical se ornamenta e
enriquece. A ciência musical evoluiu através da música religiosa; e a música
religiosa transmitiu à música profana todo o seu saber.
Do robusto tronco gregoriano, que foi o primeiro a crescer, brotaram
múltiplos ramos, que em seguida se desenvolveram; toda a nossa música
provém desta origem e foi principalmente na França, na Itália e na Alemanha
que se operou essa evolução.

A essência da música

A música foi primeiro a linguagem mágica do homem primitivo, a sua


invocação às divindades. Em seguida, foi ciência, como as matemáticas e a
astronomia. Durante longos séculos permaneceu oração.
Finalmente, misturando-se com o mundo profano, tornou-se uma arte, um
divertimento também, o que lhe trouxe considerável enriquecimento, por vezes
puramente material (uma orquestra de sonoridades sumptuosas não será
necessariamente mais “rica” do que uma melodia isolada intensamente
expressiva).
Mas, a partir do momento em que a música se torna arte, as leis da estética
vão condicionar a sua evolução, enquanto anteriormente, desde a Antigüidade
até à Idade Média, era apenas regida pelas leis da moral: com efeito, quer seja
magia, quer oração, a música ritual obedece a regras éticas precisas.
Existem, portanto, duas grandes eras da música, cada uma englobando uma
evolução de facetas múltiplas, no interior de um domínio bem definido: a era
religiosa e a era estética. A Idade Média forma praticamente a charneira entre
estas duas fases. Desde as mais rudimentares ou recuadas civilizações até à
Idade Média, o homem viveu a era religiosa da música. Desde há oito séculos,
vivemos a sua era estética.
Se a música é um ritual, a linguagem sagrada do homem — mas livre de
qualquer referência realista, já que exprime o mundo do irracional mais direta-
mente que a literatura ou a pintura —, é também um fenômeno cujos elementos
devem ser conhecidos.
De que é feita a música, como se manifesta o fenômeno sonoro altamente
organizado da nossa civilização e qual o seu significado? Parece oportuno, em
meados do século XX, abandonar a definição de Jean-Jacques Rousseau: “A
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música é a arte de combinar os sons de forma agradável ao ouvido.” Emanando
de um filósofo cujas opiniões neste domínio foram muitas vezes discutíveis,
esta definição encerra a música dentro dos limites onde se reconhecem os
ditames do estilo galante. Ora a “música amável” é apenas um aspecto da
música em geral. Após esses convencionalismos do século XVIII, como
formular uma opinião sobre um canto guerreiro da Antigüidade, uma monódia
gregoriana, uma ária de Monteverdi, uma página de Beethoven, Berlioz,
Strawinsky ou Bartok? Como apreciar todos esses compositores, cujo alvo não
foi serem agradáveis ao ouvido”, segundo aquele critério, mas exprimir com
intensidade os anseios de uma coletividade, as suas próprias paixões, ou ainda
as diversas possibilidades da linguagem ou da arquitetura sonora? Foi contudo
graças ao gênio de tais inovadores que o domínio da música se enriqueceu e
alargou. É, portanto, impossível fecharmo-nos dentro de princípios sem dúvida
claros e tranquilizadores, mas que a vida pode sempre desmentir.
Conforme a música seja uma organização sonora articulada, tal como uma
linguagem (frase, pontuação, ritmo, desenvolvimento de uma idéia), ou um
meio intencional de provocar uma sensação, ela será intelectual ou sensorial,
mas agirá sempre sobre a nossa sensibilidade. No primeiro caso, o encanto
(fascinação) físico do som está sujeito a uma ordem estética e intelectual, no
segundo exerce-se livremente. É evidente que esta própria liberdade se move
dentro de quadros fixos. Um exemplo familiar ilustrará este fato: sabe-se que a
improvisação livre e totalmente “inspirada” dos instrumentistas de jazz se
desenrola de acordo com um esquema harmônico e rítmico muito estrito. O
compositor nunca se afasta desse quadro invisível, sendo este a dar a sua
coerência ao discurso, que, de outra forma, seria apenas desordem e confusão.
Para esquematizar, poder-se-ia classificar numa categoria “intelectual” toda
a música clássica, onde a forma impõe a sua autoridade e onde o sentimento é
estilizado, trabalhado: os polifonistas do Renascimento, Bach, Haydn, Mozart,
Haendel no século XVIII, um Strawinsky, um Hindemith presentemente, etc.
Na categoria “sensorial” poderíamos classificar os impressionistas, os
românticos, os expressionistas e alguns dos grandes compositores do século
barroco. Acrescentar-lhe-emos o jazz, música de encantamento por excelência.
Aqui voltamos a encontrar as denominações tradicionais de apolíneo e de
dionisíaco. Para ser completo, é necessário acrescentar uma categoria

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“espiritual”, abrangendo a música ritual dos povos primitivos e o canto
gregoriano da liturgia católica. Aqui os elementos sensoriais e intelectuais
fundem-se num só. E se o canto gregoriano, purificado, decantado é o reflexo
de uma vida espiritual muito elevada, a música ritual do povo primitivo pode
refletir uma mesma exigência de superação pela fé, na sua ingênua mistura de
pureza e de ação sobre os sentidos.

O que é o tom?

Antes de adquirir qualquer significado, a música é um fenômeno sonoro; foi


a exploração deste fenômeno e a sua domesticação que produziram os sistemas
musicais. A matéria sonora é, de início, uma vibração. Esta vibração, qualquer
que seja a sua origem—corda, pele esticada, tubo produzindo sons—,
transmite-se ao nosso ouvido. Este constitui um aparelho de recepção
minúsculo e subtil, reagindo às freqüências (número de vibrações por
segundo), que vão de cerca de 20 a 20000. Abaixo de 20 vibrações por segundo
situam-se os infra-sons, acima de 20 000 os ultra-sons, que, saindo do campo
de percepção do ouvido, são, portanto, inaudíveis para o homem. No ouvido
interno encontra-se o órgão de Corti, receptor das vibrações, que o alcançam
após terem abalado as fibras nervosas e que ele transmite ao cérebro por meio
do nervo auditivo. Uma cadeia de transmissões físicas das vibrações transfor-
ma-se assim em transmissões fisiológicas: efetivamente, as fibras auditivas
conduzem a uma região chamada “zona auditiva” da massa cinzenta, o que
explica o fato de transformarmos os sons, recebidos sob forma puramente
física, em representações mentais, imagens, pensamentos, recordações, etc.
Neste fato reside a diferença entre o homem e o animal, cuja audição
permanece puramente física.
Esta explicação muito esquemática do fenômeno da audição permite
compreender que a música, ou, antes da música, o simples som, atinge
diretamente um dos nossos centros nervosos mais importantes e, após ter-nos
comunicado uma sensação física pura, determina instantaneamente em nós, por
um lado e conforme os casos, a excitação ou o entorpecimento e, por outro, os
mais coerentes pensamentos ou representações, se estiver organizada segundo
uma ordem intelectual ou afetiva. No caso oposto, uma música de forma e

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expressão elementares ou obsessivas provoca em nós a embriaguez física.
Estas noções são conhecidas, pois todos sabem o que significa a excitação
física produzida por certos trechos musicais ou, pelo contrário, a exaltação
espiritual originada por outros.
Mas a recepção do fenômeno sonoro processa-se de tal forma que as mais
sublimes expressões da arte mais perfeita atingem-nos primeiro sob a forma de
uma simples sensação física: o gênio do homem organizou essa sensação e
levou-a a participar no exercício das nossas mais elevadas faculdades. Ao
analisar sucintamente o mecanismo da audição musical, observa-se que o som
passa pelo ouvido externo (condutor auditivo), o ouvido médio (tímpano e
cadeia de ossículos que transmite as vibrações) e o ouvido interno (labirinto,
membrana basilar, que contém 24 000 fibras que reagem às vibrações dos
ossículos, e órgão de Corti, fim da transmissão). Sendo a música uma sensação
física, essa sensação pode ser deleitável até ao êxtase, ou desagradável até à
dor. A música tem a capacidade surpreendente de poder exercer um efeito
hipnótico, eufórico ou exaltante sobre os nossos sentidos; se for violenta, pode
igualmente revoltar-nos. Todo o significado da mensagem musical, até às suas
mais requintadas proliferações, encontra-se contido neste fenômeno elementar;
assim, a música mais requintada, tal como a mais primitiva, é um
encantamento que age sobre os nossos sentidos. Num dos casos detém-se nos
sentidos, no outro ultrapassa-os e subjuga-os pelo domínio do pensamento.
Destes fatos depreende-se uma moral da música, e foi essa moral que alguns
povos das antigas civilizações tinham compreendido. A nossa época já não
toma estes elementos em consideração na apreciação da obra musical, porque
concedeu plena liberdade a obra de arte em geral, de forma a explorar a fundo
todas as virtualidades humanas.
E esta sensação elementar que distingue a música da pintura ou da literatura.
A emoção causada pela leitura de um .texto provém essencialmente da nossa
apreciação intelectual; o mesmo sucede com a emoção provocada por uma obra
plástica. Nos dois casos a nossa sensibilidade é atingida pela beleza de
expressão, o encanto da obra, mas a apreciação do nosso intelecto é
indispensável para agir sobre a nossa emotividade.

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Nascimento de uma ordem sonora

Pitágoras, filósofo e matemático grego (582-500 a.C.), defendia a teoria de


que o princípio de tudo reside nos números. Essa teoria levou-o a estudar as
relações das vibrações dos sons resultantes da divisão de uma corda esticada.
Descobriu assim que as principais consonâncias (oitavas e quintas)
correspondiam à divisão simétrica da corda e, portanto, ao número de vibra-
ções. Esta descoberta revelava uma ordem matemática inerente à altura dos
sons e indicava que as relações de consonância são, antes de mais, relações
matemáticas de vibrações e não um princípio puramente arbitrário de
conveniência ou de gosto. Alargando o campo das suas observações, Pitágoras
estabeleceu as relações que o levaram a percorrer uma escala de sons de vibra-
ções cada vez mais rápidas, partindo de um som fundamental. Por outras
palavras, o total das vibrações do som fundamental, ao subdividir-se, produz
uma série de sons na direção do agudo.
Uma vez que a divisão regular de uma corda produz a oitava, a quinta e a
terceira, o acorde perfeito encontra-se, portanto, contido dentro das
ressonâncias naturais de um som, tal como a escala de sete sons. Assim sé
explica por que razão o nosso sistema musical está construído sobre princípios
matemáticos e acústicos naturais e o acorde perfeito, base do sistema, é uma
realidade de ordem física. O acorde perfeito provoca uma sensação de
plenitude e de repouso; a dissonância uma impressão de tensão ou de
constrangimento. A harmonia da consonância e o dramatismo da dissonância
são elementos que os músicos têm largamente utilizado, e que exercem uma
forte influência sobre o nosso psiquismo, as nossas reações nervosas, a nossa
imaginação, constituindo um dos aspectos das relações matemáticas exatas ou
imperfeitas entre vibrações diversas. A ordem sonora, a ordem musical e, por
fim, a ordem estética foram, portanto, na origem, estabelecidas pela natureza.

A escala, alfabeto da linguagem musical

Da divisão da corda nasce o sistema das escalas, ou seja das sucessões de


sons dentro de certa ordem, mas por graus aproximados. A escala de Pitágoras
(sete sons) serviu de base à instituição do nosso sistema musical, depois de

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passar por numerosas transformações, de que as mais importantes são, em
primeiro lugar, entre a Idade Média e a Renascença, o estabelecimento
progressivo das escalas ascendentes na música profana, em oposição às escalas
descendentes da música religiosa; em seguida, no século XVIII, instituiu-se o
chamado “sistema temperado”. Em poucas palavras, este sistema consiste na
elaboração de uma escala na qual cada som se encontra convencionalmente
fixado de acordo com um número de vibrações doravante invariável. Fixado o
padrão (o lá do diapasão que serve de referência) em 870 vibrações por
segundo (muitas orquestras utilizam presentemente um lá de 880, portanto
ligeiramente mais alto), estabeleceu-se o conjunto das relações de forma a
uniformizar os sons e, portanto, a reunir dois sons quase semelhantes num só:
por exemplo, dó sustenido e ré bemol, ré sustenido e mi bemol, mi sustenido e
fá natural e assim por diante. Por este processo obtém-se uma escala total de
doze sons (as teclas brancas e pretas do teclado totalizam doze notas), que
constitui o “total cromático” do sistema, no qual os sons distam entre si de
meio som — o intervalo mais claro e mais perceptível ao ouvido.
Este sistema temperado (nome que deve a sua origem ao fato de se terem
“temperado” as vibrações, apertando umas e alargando outras, para as trazer às
doze alturas convencionais) inspirou a João Sebastião Bach o famoso Teclado
Bem Temperado (e não cravo, como por vezes se diz), constituído por doze
prelúdios e fugas nos doze tons do sistema, que era então uma novidade.
Um tal sistema, a despeito de reduzir a extensão sonora a doze alturas bem
definidas, acusa por um lado arbitrariedade e, sem dúvida, imperfeição, pois
renuncia às riquezas das alturas sonoras “à margem”. Possui ele, contudo, o
merecimento de simplificar o alfabeto musical, reduzindo-o a doze elementos.
Na ausência de um sistema temperado, teria sido necessário recorrer a um
sistema de vinte e uma notas, cada uma destas com a sua altura exata
(matematicamente nas relações de vibrações), o que não teria deixado de tornar
tudo mais pesado e complicado, impedindo, por exemplo, a prática da música
polifônica ou orquestral. Além disso, pensemos no universo musical que nos
legaram os séculos a partir desta escala temperada. Confessemos que ela de
forma alguma impediu o desenvolvimento da técnica e do pensamento
artístico.

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Se por um instante voltarmos às escalas, notaremos que certos povos da
Antigüidade, tal como os Chineses, os Hebreus e os Japoneses, utilizavam as
escalas pentatônicas (de cinco sons). Presentemente estas escalas ainda existem
em algumas ilhas do Pacífico. Pouco sabemos das melodias pentatônicas,
transmitidas por tradição oral (sem notação). Outros povos, tal como os
Gregos, utilizavam a escala de sete sons, dita diatônica (cinco tons e dois meios
tons).

Agrupando os sons, cuja altura praticamente se confunde, obtém-se o


sistema cromático atual. Observemos que a escala de sete sons (dó, ré, mi, fá,
sol, lá, si) pode, neste caso, ser percorrida três vezes: em bemóis (b). em
natural e em sustenidos ( # ). Só mais tarde é que virá a ser intercalado um som
intermédio entre cada um destes sons, para assim se obter a escala cromática
(doze meios tons).
Os sistemas musicais da índia e da Arábia utilizam escalas que
compreendem intervalos menores do que o meio tom, mas impossíveis de notar

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na nossa escrita: o “quarto de tom” existe ainda em algumas músicas
primitivas, que o utilizam inconscientemente por falta de uma organização
sonora racional. Na nossa época, os compositores tentaram ressuscitar o quarto
de tom e reintegrá-lo no nosso sistema musical. A experiência não podia deixar
de ficar à margem, mesmo sendo de natureza a enriquecer a percepção sonora.
O quarto de tom pode ser muito expressivo nas vibrações da voz ou de um
instrumento, mas é necessário que um ouvido seja bastante sensível para o
perceber, o que parece provar que o sistema temperado corresponde a uma
realidade acústica.
Note-se que o Ocidente teve o merecimento de simplificar os sistemas
existentes, no intuito de torná-los universais. Esta tendência, constante nos
povos europeus, tem-se manifestado desde os primeiros séculos da nossa era,
prosseguiu na Idade Média e ainda hoje se verifica: a Europa propõe ao mundo
um tipo de linguagem universal. Assim o nosso alfabeto literário, prático,
espalha-se desde há séculos, ao contrário do que sucede com os complexos
alfabetos orientais. Assim também o nosso sistema musical tende, desde os
primeiros séculos da era cristã, a transformar os diversos sistemas anteriores do
mundo oriental numa espécie de síntese. Empobrecida, sem dúvida, de certo
modo por esta operação, a linguagem musical enriquece-se por outro lado. Por
exemplo, se a instituição da “barra de compassos” (espécie de grade que, nas
partituras, marca os tempos e a sua divisão) põe termo à arte subtil e rica do
ritmo livre e matizado (característica que, nos nossos dias, o canto gregoriano
ainda conserva), permite por outro lado a prática da música de conjunto, que,
de outro modo, seria impossível. Mesmo a sujeição ao “tempo forte”, acento
instintivo sobre cada primeiro tempo de um compasso, pode introduzir na
música grandes riquezas expressivas e rítmicas. Mas todos estes fatos são a
história da expansão ou da decadência de um sistema. Será possível, contudo,
imaginar a impotência, a confusão e as limitações que teriam ameaçado a
cultura musical, se a dispersão dos sistemas musicais se tivesse perpetuado...?

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II - AS PRIMEIRAS ERAS DA MÚSICA

A pré-história musical

Terá existido uma música anterior a qualquer civilização? Existiu, sim, e é


necessário referi-la, pois a música não surgiu subitamente um belo dia no de-
curso da história. Se nada sabemos, praticamente, sobre a pré-história musical,
podemos pelo menos observar um fato: tão longe quanto possamos retroceder
na história e imaginar, encontramos a música, ou pelo menos, certa música
rude e sumária, cujo papel e função são já em potência o que serão ao longo
dos séculos.
De tudo quanto o nosso século descobriu sobre as origens do homem e as
mais rudimentares condições de vida da humanidade primitiva, sobressai que a
música, assim que se manifesta, é de ordem sagrada. A música é o ritual da
existência e, simultaneamente' religiosa e profana, é ela que dá à vida
quotidiana o seu sentido sagrado. Os homens das eras mais recuadas, vivendo
rodeados de mistérios inexplicáveis e de terrores diversos, sem recurso perante
a hostilidade da natureza e os enigmas da criação, utilizam, antes mesmo de
saberem falar, uma linguagem que representa um meio de comunicação com os
espíritos ou com as forças que os dominam, ou ainda com as divindades que
comandam essas forças.
Esta linguagem exprime a revolta ou a sujeição, a alegria ou o medo perante
a vida, a morte, a doença, os fenômenos da natureza. Os homens dançam, gri-
tam, batem em si próprios, pintam o rosto e o corpo, ora no intuito de conciliar
a proteção dos deuses poderosos, ora de os afastar assustando-os. Desta forma
aprendem o poder do ritmo e do grito, os dois elementos fundamentais de
qualquer música. O encantamento, a fascinação hipnótica ou exaltante da
obsessão do ritmo atingem — sem o freio dos mecanismos intelectuais — a
sensibilidade dos primitivos.
Estas considerações partem de um conjunto de fatos verosímeis: a pré-
história musical tem sido objetivo de investigações científicas bastante recentes
e constitui um vasto capítulo da história da música. Além do caráter ritual das
primeiras manifestações sonoras, já comprovado, os instrumentos pré-
históricos, tais como chifres, ossos, objetos percutíveis, etc., fornecem outras
indicações que confirmam as primeiras.
Eis, portanto, a primeira faceta da música na aventura da humanidade: a
música existe porque corresponde a uma necessidade fundamental de
comunicar com o Além, com os mortos e os deuses, a uma necessidade intensa
e profunda de atingir um segundo estado. Desde a sua origem, a música é,
portanto, uma linguagem superior; não é a linguagem da razão e da vida
quotidiana, mas a das grandes forças misteriosas que animam o homem. Nada
existe de mais necessário o que esta música, que não é luxo nem prazer, mas,
pelo contrário, a voz profunda da humanidade.
Assim é esta “pré-música” que podemos imaginar nas sociedades ainda em
estado embrionário; até é possível fazermos dela uma idéia bastante exata, se
observarmos o papel atribuído à música nas sociedades que ainda permanecem
primitivas nos nossos dias ou que, tendo evolucionado, conservaram contudo
uma música de caráter religioso primitivo (Bali, índia, Arábia). Será, pois,
lógico afirmar que a música primitiva é sempre sagrada, porque exprime
essencialmente um sentimento, ou instinto, religioso.
A expressão “música primitiva” indica uma música ritual constituída por
cantos e ritmos baseados em motivos simples, repetidos obstinadamente, na
maioria dos casos, com o fim de provocar o estado de transe. A música
primitiva, tal como a dança, está carregada de símbolos: determinado ritmo,
determinada feição melódica, ou determinado gesto, exprimem uma idéia
precisa e tornam-se sagrados pela prática. “Primitivo” não significa pobre ou
sumário, pois, dentro dos seus limites, a música primitiva exprime uma grande
intensidade de sentimentos e, frequentemente, uma arte sutil da melopéia e do
ritmo. Em termos mais simples, esta música não é erudita nem elaborada de
acordo com as leis estéticas. Pensemos na expressão “pureza primitiva” e
sentir-nos-emos mais próximos da verdade.
Podemos, portanto, reter a seguinte imagem da pré-história musical: o
emprego do ritmo (tambor, tanta, etc.), com o seu poder de sugestão
psicológica; o emprego do grito, de início grosseiro, em seguida cada vez mais
modulado, graduado, a fim de exprimir sentimentos cada vez mais diversos;
finalmente o emprego da dança, primeiro como encantamento e trepidação,
transformando-se progressivamente em linguagem e arabesco.
A Antiguidade Oriental

Os primeiros, exemplos de que dispomos sobre a existência de uma música


sujeita e integrada numa ordem social, ética ou religiosa, são os que colhemos
na Antiguidade: Egito, Mesopotâmia, China, Grécia.
Treze séculos a.C., a China possui uma cultura musical. Vinte séculos a.C.,
o Egito utiliza uma música que consiste em cantos acompanhados por instru-
mentos, em danças de luto ou de júbilo, em cantos de cerimônias diversas:
adoração do Sol, banquetes rituais, colheitas, etc. Os faraós têm os seus
cantores e instrumentistas. Um dignitário, espécie de mestre de capela, está
incumbido de tudo quanto diz respeito aos músicos e ao emprego da música.
Harpa, trombeta, flauta, címbalos e campainhas formam um repertório
instrumental bastante variado.
Trinta séculos a.C., os Sumérios empregavam flautas de prata e de cana,
harpas, liras; a sua música, exclusivamente religiosa, participava em todas as
cerimônias e, segundo estudos muito recentes, sabe-se que a música
desempenhou um papel extremamente importante na civilização sumeriana.
A história ensinou-nos que os Hebreus dedicavam considerável interesse à
música; o rei David, poeta e músico, é um ilustre exemplo deste fato. Possuíam
cantos de guerra e de misteres, salmos e cânticos; os seus instrumentos eram
igualmente a trombeta, a flauta, a harpa e vários tipos de tambores.
Infelizmente apenas temos conhecimento deste imenso repertório musical
por meio de frescos, textos teóricos ou ornamentações de alguns achados, tais
como vasos, ânforas, etc. Alguns instrumentos foram assim encontrados nos
túmulos. Mas como nos falta a notação musical, este precioso patrimônio não
pode restituir a presença viva da música.
Uma das principais características da música da Antiguidade, e que
sobrevive até à Idade Média, é a sua forma monódica. Nota-se, efetivamente,
que nas civilizações antigas nunca se fez menção de música a várias vozes: os
conjuntos vocais, instrumentais ou mistos cantam e tocam em uníssono. Pôde,
portanto, admitir-se como verosímil que a monódia, cuja existência se estendeu
por vários milhares de anos, foi o único gênero musical conhecido pelas
grandes civilizações antigas, que, de resto, atingiram na sua prática um extremo
requinte. Mas tal fato não significa que a música tenha sido monódica de forma
sistemática e sem excepção. Assim, baseando-se na flauta dupla (3000 anos
a.C.), capaz de emitir dois sons simultaneamente (é o caso do aulos grego), no
órgão antigo (hidráulico), utilizado em Alexandria 300 anos a.C., e no qual
dois tubos podiam funcionar ao mesmo tempo, e, finalmente, nas diferenças de
registo vocal entre homens, mulheres e crianças, é fácil admitir que uma
polifonia rudimentar tivesse podido existir muito antes do aparecimento, na
Idade Média, da polifonia como ciência organizada. As vozes humanas de
registo diferente podiam cantar a oitava, em uníssono ou ainda a outros
intervalos (terceira, quinta), inconscientemente. Outras formas elementares de
polifonia podiam ter sido, por exemplo, o acompanhamento de uma nota de
baixo contínuo durante o canto; ou um tocador de lira podia entregar-se a
diversas variações sobre a linha melódica do cantor: notas mais graves ou mais
agudas, ritmos contrastantes, etc. Considerando, contudo, as teorias da
Antiguidade, assim como a música que esta nos legou, temos de admitir que
tais polifonias, verossimilmente limitadas a duas vozes, fossem utilizadas sem
que tivesse surgido a idéia de estabelecer uma teoria ou de regular o seu uso.
Eram sem dúvida “acidentais” e em nada prejudicavam o princípio da
monódia.
Tal como na Pré-História, observa-se em todas as civilizações da
Antiguidade que os acontecimentos da vida quotidiana de uma coletividade, as
suas manifestações religiosas ou guerreiras, os seus múltiplos ritos são
acompanhados de música. Não existe cerimônia onde ela não tenha o seu lugar.
Dessa forma alcança uma importância considerável na ordem social: o seu uso
não se limita à prática do canto ou de um instrumento, imas faz parte da
formação moral do cidadão. Exprime os sentimentos da comunidade e não os
de um indivíduo, é a linguagem do grupo que assim atinge a sua unidade
espiritual. Foi confiada aos sacerdotes, aos músicos e aos poetas, que se
incumbiram de traduzir o sentimento comum.
Durante estes milênios e até à Idade Média, a _ música não é considerada
como uma arte; esta noção só começará a manifestar-se a partir do momento
em que a música se libertará do seu papel puramente ritual. As transformações
da Idade Média — aparecimento da notação musical e, em seguida, da
polifonia, o desenvolvimento da música profana e erudita, os instrumentos
inéditos—darão à música um aspecto e um significado totalmente diferentes do
que haviam sido no decurso dos séculos anteriores.
Ao descobrirmos a intensa vida musical que impregnou as civilizações não
européias da Antiguidade, não podemos deixar de pensar nesse passado que
continua a viver, por vezes de forma surpreendente, nos seus monumentos,
frescos, desenhos, estatuária e objetos, enquanto a sua voz se extinguiu e a sua
música permanece muda, manifestando-se apenas por sinais e enigmas. O
único esforço que podemos fazer é decifrar esses enigmas, dar uin sentido a
esses sinais e tentar imaginar, sem poder ressuscitá-la, uma música que hoje é
apenas uma língua morta.

A Antiguidade Greco-Romana

Já anteriormente evocamos a Antiguidade Greco-Romana; voltemos apenas


por alguns instantes a esse mundo, berço da música ocidental.

Egipto: tocadora de lira (cerca de 1500 a. C.)

Grécia: tocadora de
citara (cerca de 500 a.C.)
É justo dizer que foi a Grécia que nos legou a música, visto que impôs, além
do seu sistema musical pitagórico, uma poética musical que se tornou um
modelo. O que foi possível reconstituir, pelos raros documentos que chegaram
até nós, permite afirmar que:
1.° A música grega é essencialmente vocal; os instrumentos desempenham
apenas um papel de acompanhamento.
2." A função da música é simultaneamente religiosa e social, constituindo o
ritual da vida coletiva.
3.° O emprego da música encontra-se estritamente regulamentado; o sistema
musical compõe-se de sete modos; cada um destes modos possui um carácter
bem determinado, cujo uso está fixado por lei.
4." A música é monódica; quando um instrumento a acompanha é em
uníssono.
A escala grega é diatônica (as teclas brancas do nosso teclado). Os Gregos
conheciam igualmente o gênero cromático, que comportava intervalos menores
que o diatônico, mas apenas em determinadas alturas da escala. Se a escala é
uma sucessão de notas, o modo é a maneira de dispor essas notas. Cada nota da
escala dava origem a um modo diferente. Para imaginarmos a importância dos
modos, lembremos que a nossa época emprega, desde a Renascença, apenas
dois: o maior e o menor, o que, portanto, empobreceu as possibilidades de
modificação das escalas. Os nossos modos são “ascendentes”, enquanto os
modos gregos eram “descendentes”; ainda se encontram vestígios dos modos
gregos nos modos de igreja, que deles são originários, bem como na música
popular espanhola ou na música árabe. A explicação deste fato é simples:
alheia ao movimento de evolução da música erudita na Europa Ocidental, a
música popular ou religiosa da bacia mediterrânea, tendo conservado as suas
tradições, permanece ainda hoje igual ao que era há dois mil anos, enquanto a
música européia se afastava em busca de novos caminhos.
A música grega, que possuía, sem dúvida alguma, um repertório muito
vasto, deixou-nos pouca coisa: um fragmento de um coro para a Oréstia, de
Eurípides, dois hinos a Apoio (século n a.C.), o Hino ao Sol, de Mesomedes de
Creta, um hino cristão de Oxyrhinchos. Os Gregos possuíam igualmente um
sistema de notação sumário, constituído por letras; juntamente com os escritos
dos teóricos, este elemento permite reconstituir um conjunto que deve ter sido
muito rico e do qual o canto da Igreja Cristã nos dá uma idéia, uma vez que
praticamente todo o seu repertório descende dele.
Se os documentos materiais não são numerosos, sabemos, em contrapartida,
que a cultura grega deve muito à música e à sua influência sobre os costumes.
Se as obras musicais são raras, sabemos que a formação moral do cidadão se
apoiava na música e parece ser evidente que a espiritualidade grega foi
fecundada pela música. Platão professa, na sua República, que a música deve
guiar a juventude para a beleza e a harmonia espiritual. Aristóteles preconiza a
“purificação pela música”, não obstante reconhecer que esta pode ser um
divertimento, como por exemplo depois do trabalho. Se os cultos de Apoio e de
Dionisos têm os seus fiéis, apenas os dissolutos celebram o deus do prazer nos
seus banquetes, com melodias e ritmos, cantos e danças incitando à
licenciosidade. Mas ninguém se ilude e a verdade surge nos filósofos e na
mitologia.
O teatro tem os seus coros e os seus intermédios instrumentais, que
acompanham a tragédia; as Panateneias, festas em honra de Atenas, são
dotadas de cantos e de danças nobres; os Jogos Píticos evocam a luta de Apoio
e do monstro Pitão, com o auxílio de uma música descritiva. Cerimonias
religiosas, cortejos, festas profanas, estes acontecimentos não se realizam sem
música. Os aedos, poetas-cantores discípulos de Orfeu, subjugam a multidão
com as suas grandes obras de caráter épico, acompanhadas pela cítara ou a lira.
Esta descrição conduz-nos aos instrumentos, cujo domínio é mais
conhecido: além do fato de estes instrumentos terem sido frequentemente
reproduzidos em efígie, encontrou-se um grande número deles. Por outro lado,
é certo que o princípio da ressonância dos instrumentos foi sempre o mesmo
desde as épocas mais recuadas. Os consideráveis aperfeiçoamentos introdu-
zidos nos instrumentos musicais desde há alguns séculos não trouxeram
qualquer modificação neste capítulo. Tão longe quanto possamos retroceder, a
percussão o sopro e a corda têm constituído os três tipos de ressonância: bater
numa superfície vibrante, soprar num tubo ou ferir uma corda, são os três
processos de que o homem mais primitivo pôde ter conhecimento. Da corda
tensa nasceu a harpa, a cítara, a lira (cordas pinçadas) ou o ravanastron
(Ceilão, 5000 anos a.C.), primeiro instrumento de arco. Do tubo surgiu a
siringe, a flauta, o aulos (espécie de oboé, que os Gregos consideravam como
dionisíaco), a trombeta, a buzina, etc. Quanto à percussão, deu origem às casta-
nholas, aos diversos tipos de tambores e tantas. Certos instrumentos em nada
evolucionaram desde a Antiguidade, exceto nos pormenores. Outros, tais como
as “madeiras” ou a família dos violinos, adquiriram novos meios técnicos
desde há apenas trezentos anos.
Quando o Império Romano sucedeu às repúblicas gregas, absorveu uma
grande parte da sua música e inspirou-se na ordem e na beleza helênicas.
Durante muito tempo músicos gregos tomaram parte na vida artística romana,
verossimilmente ensinado ou, pelo menos, introduzindo o seu exemplo e as
suas tradições. Privada, contudo do espírito que comandava a sua existência e
da sua antiga força espiritual, a música romana torna-se mais prosaica, mais
dura, mais exterior; exaltando a glória militar e a grandeza dos césares,
vulgariza-se: a tuba, a trompa, o órgão, a buzina, instrumentos de maior
potência sonora, acompanham os combates dos gladiadores.
A decadência, helênica dilui-se no poderio romano: os vestígios da música
pertencentes ao apogeu da civilização grega vêm morrer num mundo regido
por uma escala de valores diferentes. No primeiro século da nossa era, a
música em Roma destina-se ao povo, música de folguedo, de circo, de dança,
que se tornará rapidamente trivial ou libertina.
Em suma, ao passar da Grécia para Roma, a música degenera; perde o seu
sentido e a sua nobreza. É, contudo sob esta forma que vai penetrar no
Ocidente, pois será nos amplos fundos legados pelas civilizações antigas que os
cristãos irão colher os cantos que lhes servirão de senha. É de resto através
destes cristãos, bom como das tradições conservadas em certos meios patrícios,
que poderá sobreviver uma música superior.
Os instrumentos antigos vistos por um musicólogo do
século XVIII (Ensaio sobre a Música Antiga e Moderna,
de Laborde)
III - A MÚSICA CRISTÃ

A época gregoriana (séculos III a XI)

Posto que os informes sobre a música nos princípios do cristianismo sejam


escassos, sabe-se, contudo que esta aparece associada à liturgia desde as
primeiras manifestações do ritual cristão. Acompanha os primeiros gestos
rituais do partir do pão (a ceia) e as reuniões culturais. Assim nascem os
salmos monódicos, destituídos de qualquer artifício; assim a sublimação dos
arrebatamentos espirituais dos participantes se exprime por meio de uma
simples linha melódica cheia de sentido. Os cânticos e as longas melopéias dos
primeiros séculos da era cristã constituem uma oração cantada, cuja pureza vai
acentuar-se constantemente. Originário das tradições judaicas (salmos e
cânticos do Antigo Testamento), gregas e pagãs, o canto de igreja está
edificado sobre os modos descendentes da Antiguidade; a sua melodia flexível
alia-se ao texto segundo um ritmo livre (cantochão, oposto ao canto medido,
que fará a sua aparição pelo século XIII). Na sua simplicidade, o canto de
igreja representa, ao longo da história e a despeito das consideráveis
transformações da música erudita, um exemplo de perfeição, de equilíbrio
exato entre a expressão e os meios pelos quais se exterioriza. A melodia, ou
melhor, a monódia religiosa, basta-se a si própria, sem necessidade de recorrer
à harmonização ou à instrumentação; exprime, com supremo requinte, as
menores graduações do texto. Assim a “oração cantada” da Igreja Cristã
representa já um dos pontos culminantes da espiritualidade.
Esta liturgia das primeiras épocas, síntese de um patrimônio legado pela
história, foi marcada pela personalidade de um homem: Santo Ambrósio, bispo
de Milão no século IV. A música que o precede pode ser chamada música
cristã primitiva. Santo Ambrósio introduziu na sua diocese antífonas e hinos
vindos do Oriente, integrando na missa os modos do rito bizantino, derivados
dos modos gregos, subtis e eruditos: estes impregnaram o “rito ambrosiano” de
cantos vocalizados extremamente flexíveis, onde abundam os “pequenos
intervalos”, que produzem uma expressão mais sensual. Esta expressão será
combatida pelos neopitagoristas, que reclamam para a Igreja um canto menos
“efeminado” segundo o seu critério. Os chefes da Igreja, inquietos por verem
que os fiéis se afastam de uma liturgia que lhes é estranha (e demasiado eru-
dita, acrescentam eles), tentarão regressar à aplicação dos modos gregos
clássicos, isto é, diatônicos1 .
Em 387 Ambrósio efetua o batismo de Agostinho de Hipona, o futuro Santo
Agostinho (354-430). Este vai propagar o salmo ambrosiano e redigir o tratado
De Música, de grande importância para a teoria do canto de igreja e surge
como um dos primeiros grandes pensadores e teóricos do canto litúrgico.
Aproximemos do seu nome o de Boécio (475-526), nobre romano, autor do
tratado De Institutione Musica, súmula dos conhecimentos teóricos do mundo
greco-romano. Esta obra, característica de uma tendência então espalhada,
considera a música unicamente como uma ciência, dentro da tradição
pitagórica. Sabe-se que este conceito influenciará a evolução da música até à
Idade Média.
Voltemos a Santo Ambrósio, que, por sua iniciativa, difunde a liturgia
ambrosiana na Gália. Ao espalhar-se, contudo, esta liturgia tem tendência a
transformar-se. Na Provença, na Alemanha, na Espanha, desenvolvem-se
liturgias locais, que empregam associações de modos e de línguas: com efeito,
a “língua vulgar” aparece frequentemente, alterando o texto e a melodia. Pouco
a pouco manifesta-se uma espécie de vasta anarquia, inconsciente, que ameaça
tornar-se heresia, conduzir aos cismas e até, por fim, fazer ruir a estrutura da
própria Igreja, fragmentando-a em tantas liturgias — e depois igrejas —,
quantos ritos locais existam. A abundância de liturgias põe em jogo nada
menos do que a unidade da Igreja. A ausência de notação favorece esta
dispersão: o impulso vigoroso que os chefes da Igreja tentam transmitir através
da Europa, perde a sua força ao chegar aos confins da cristandade, em terras
longínquas onde o temperamento dos homens, o clima, os gostos, tendem a
dominar. Torna-se necessário efetuar uma enérgica reforma, pois na Alemanha
triunfa o ritual gelasiano, fundado por Gelaso I, e que sobreviverá até ao século
IX. Em Espanha reina o rito moçárabe, associação de cantos gregos, romanos e

1
Podemos imaginar uma comparação — exacta na essência, senão no pormenor: a melodia
cromática é sensual, suaviza os contornos, é lânguida. A melodia diatónica serve melhor a
expressão viril, os contornos nítidos, o sentimento são. Beethoven utiliza o diatonismo, Wagner
o cromatismo.
orientais, em uso nas comunidades cristãs misturadas com os conquistadores
árabes. Este rito ainda existirá na Renascença em alguns pontos do território.
Em diversas ocasiões, Carlos Magno vê-se forçado a chamar a atenção dos
bispos para a necessidade de observância do rito romano. Uma ordem sua
nesse sentido ficou célebre: Revertimini vos ad fontem sancti Gregorii, quia
manifeste corruptistis cantum. (“Voltai às fontes de São Gregório, pois estais
manifestamente a corromper o canto”). Quem é este São Gregório, a quem a
cristandade é solenemente convidada a referir-se? Papa no século VI, Gregório
I, tal como os seus predecessores, é testemunha do desenvolvimento— rico
mas inquietante—da liturgia romana, das transformações do rito ambrosiano,
da vitalidade dos ritos bizantinos, célticos, moçárabes. Aplica-se então a
reprimir esta enorme proliferação e a estabelecer a unidade da liturgia romana
através da Europa. E é assim que o repertório do canto religioso é depurado das
cantilenas de caráter oriental, que numerosos intervalos melódicos são
corrigidos e se regressa a uma severa disciplina de expressão, que rejeita tudo
quanto possa ser chamado lirismo. Além disso, este canto, estabelecido num
tipo gradual (o Antifonário, coletânea dos cantos da Igreja romana), é imposto
a toda a cristandade; enviam-se missionários a todas as dioceses, a fim de
ensinar o canto de igreja.
Esta reforma, que fixa definitivamente o rito, comporta sem dúvida o perigo
de impedir qualquer evolução ou enriquecimento eventuais; em contrapartida,
desenvolve a intensidade da sua expressão, a sua exaltante austeridade. Foi
assim que este canto, doravante chamado gregoriano, adquiriu essa
simplicidade luminosa, essa gravidade apaziguadora e, talvez possamos
acrescentar, essa suavidade romana que só nele se preservou enquanto
desaparecia à sua volta, e graças à qual sobrevive intacto desde há treze
séculos.
Não é bem conhecida a obra verdadeira de Gregório, mas pode
razoavelmente atribuir-se-lhe o merecimento da reforma do canto religioso; é
lícito supor que, se não foi o único a agir nesse sentido, foi pelo menos ele que,
tanto pelos seus próprios trabalhos, como pela sua autoridade, reuniu os
escritos dos teóricos seus predecessores e contemporâneos.
O gregoriano iria, portanto, ser doravante o canto oficial da Igreja Cristã.
Contudo, no século XIX, julgou-se necessário efetuar uma nova reforma e
desta vez foram os beneditinos da Abadia de Solesmes, em França, que ligaram
o seu nome à paciente revisão do repertório litúrgico. A Edição Vaticano,
versão oficial do canto gregoriano após esta revisão, foi publicada em 1908.
É oportuno notar que as monódias gregorianas conservam a sua pureza nos
ofícios divinos dos conventos beneditinos, mas na nossa época estão
harmonizadas e são acompanhadas pelo órgão na maioria das igrejas. Este
sistema, de prática tão corrente que os fiéis nem reparam nele, está contudo em
contradição com o espírito da monódia, que se basta a si própria. Além disso, o
estilo das harmonizações encontra-se muito frequentemente em oposição com
toda a estrutura modal destas monódias.
O canto gregoriano é p núcleo de toda a música ocidental: tal facto explica-
se facilmente. A canção popular da Idade Média, que é anônima, tem a sua
fonte na igreja, pois a vida do povo permanece estreitamente ligada à das
comunidades religiosas. O povo reúne-se em volta das igrejas ou das abadias e
conventos. A música sacra é a única a que ele tem acesso e é
inconscientemente que ele cantarola o que ouviu nos ofícios, transformando,
ornamentando, alterando ou ritmando segundo a sua fantasia os cantos rituais
ou inventando melodias inspiradas nestes.
As mais antigas canções que possuímos são testemunhos surpreendentes
desse mimetismo entre a melodia religiosa e a profana: assim, as canções de
misteres, baseadas em ritmos funcionais (gestos de ofício, etc.), reproduzem
contornos melódicos próprios do canto gregoriano. Pouco a pouco a canção
separar-se-á deste completamente, mas conservará, não obstante, a escala
descendente, que evoca com precisão o canto de igreja.
A primeira fase da história da música na era cristã pode situar-se entre os
séculos I e X, isto é, no decurso de um período em que o canto litúrgico se
estabelece, após algumas hesitações, e se torna no servidor imutável da
estabilidade da Igreja. Simultânea e progressivamente desenvolve-se o canto
popular, segundo os legítimos anseios do povo, que deseja folguedos. O final
desta primeira época situa-se no momento em que esses folguedos adquirem tal
importância que são rejeitados pela Igreja e em que, ao mesmo tempo, os
progressos da teoria musical dão lugar, .por um lado, à notação e, por outro, ao
nascimento da polifonia.
Instrumentistas egípcias
tocando flauta dupla,
alaúde e harpa (fresco
tumular de um sacerdote
de Amon, cerca de 1600-
1800 a.C.;

Tipos de instrumentos
gregos, no século V a.C.:
o aulos, oboé duplo, era
utilizado nas bacanais e
nas festas profanas (taça
ática)
A cítara acompanhava os Vaso para refrescar, do século V
cantos e a poesia lírica a. C. A lira era o atributo da
(terracota beociana) poetisa Safo e do poeta Alceu

Começa então uma segunda fase da história da música. Verificaremos,


efetivamente, que a evolução da vida social na Idade Média introduz notáveis
modificações nas festas religiosas: diversos elementos profanos (cantos e
danças), assim corno a língua vulgar, são integrados como intermédios nos
ofícios divinos. Estes elementos vão intensificar-se até desfigurar o aspecto da
cerimônia religiosa, tanto mais que não desprezam os temas de atualidade, nem
os de inspiração libertina. Em breve se produz o rompimento inevitável entre
estes dois gêneros inconciliáveis e a Igreja rejeita do seu seio tudo quanto é
exterior à cerimonia propriamente dita. Assim regressa à pureza primitiva,
restitui a missa o seu sentido real e apenas autoriza as representações profanas
no adro das igrejas. Desta atitude resultará para o espetáculo profano a
possibilidade de se desenvolver livremente, provocando assim o nascimento do
teatro. Estas representações, jogos, ou “mistérios”, como lhes chamavam, meio
religiosos, meio profanos, ilustram, ora a Paixão, ora a história de Adão e Eva,
ora qualquer outro tema tirado das Escrituras onde, por vezes, figuram alusões
à crônica da época.
A época gregoriana encontra-se mais ou menos contida entre o século III e o
século XI. Mas no momento em que, sob o impulso das forças profanas, a
missa se dilata desmedidamente e se torna ela própria meio profana, no
momento em que ocorre a separação entre a oração e os divertimentos que
tinham tentado associar-se-lhe, nesse momento termina a época gregoriana,
isto é, a longa sucessão de séculos durante os quais o estilo gregoriano
dominara a arte musical.
Quando se examina a história deste período, verifica-se que a música
escapou à regra geral da evolução que marca tanto o destino dos homens como
o das suas criações artísticas. A que atribuir esta fixidez? Ao fato de a música,
sendo essencialmente religiosa, ritual, atingir plenamente o seu fim ao
participar na oração. Estranha à vida do século, não é afetada pelas leis da
evolução: no exterior, os homens agitam-se e a vida transforma-se; no seio da
Igreja, a música permanece contemplação e adoração.
Mas esta imobilidade vai terminar no século XI; associada ao ritmo da vida
e às aspirações dos homens, a música profana vai, de certo modo, “recuperar o
atraso”, seguir o movimento das idéias, responder à poesia e à pintura.
Haverá doravante uma música religiosa e uma música profana e esta última
dividir-se-á em breve em música popular e em música erudita. Estes três tipos,
gerados em graus diversos pelo canto gregoriano, constituem toda a música
desde há dez séculos.

A notação musical

Um dos problemas mais árduos que o homem teve de resolver na história da


música foi o da notação. Foram necessários séculos de pesquisas para encontrar
uma forma de fixar por meio de um sistema de escrita os dois dados
fundamentais de uma notação musical: a altura e a duração dos sons. Tais
pormenores, que nos parecem simples, representaram durante muito tempo
uma incógnita para os investigadores. Ora a música padeceu certamente desta
falta de notação, visto que o essencial das criações musicais da Antiguidade
caiu no esquecimento e que, por outro lado, tal ausência alterou, sem dúvida
numa medida por vezes considerável, cantos deformados pela tradição oral.
Os Gregos e os Romanos designavam as notas por meio de letras do
alfabeto. A Índia e a China empregavam igualmente uma notação, mas deve
observar-se que nenhum sistema antigo pôde impor-se à Europa, uma vez que a
escala modal de sete notas e os intervalos utilizados nas melodias nada tinham
de comum com os sistemas musicais antigos e orientais. Julga-se que Boécio
foi o primeiro a designar os sons estabelecidos por Pitágoras por meio de letras
latinas, substituindo assim as letras gregas usadas até então.
Contudo desenvolveu-se um sistema, cujos primeiros documentos se situam
cerca do século VII. Este sistema, inteiramente empírico, baseava-se na
analogia entre o ouvido e a vista e iria tentar “desenhar” a linha melódica com
o auxílio de linhas e de pontos, reproduzindo os seus contornos com maior ou
menor fidelidade. Impreciso na origem, iria, ao aperfeiçoar-se, dar nascença à
nossa escrita musical e revelar-se apto a notar a música nos seus múltiplos
pormenores. Este sistema é a notação neumática. Os neumas consistiam numa
espécie de taquigrafia, correndo por cima do texto religioso e indicando, pelas
diversas formas dos sinais utilizados, as subidas, descidas, ornamentos e
paragens do canto. Efetivamente, a única utilidade dos neumas, nesta fase tão
primitiva, era a de auxiliar a memória do cantor na igreja. Mas iriam
desenvolver-se de forma inesperada; nas abadias e nos mosteiros, os clérigos
procuravam infatigavelmente um processo para dar forma a este velho sonho:
fixar no papel um fenômeno de pura imaterialidade como o som, com as suas
particularidades secundárias. Tantos esforços não foram vãos: surgiu a idéia de
dispor os neumas em volta de uma linha traçada ao longo do texto,
encontrando-se o primeiro som da melodia fixado sobre esta linha. Desta forma
precisava-se a identificação dos intervalos. Depois traçaram-se duas linhas de
referência, em seguida três e, finalmente, quatro; sobre e entre estas linhas (o
seu afastamento designava o intervalo de terceira) dispunham-se os neumas,
doravante muito mais precisos quanto à altura. As quatro linhas (chamadas
“pauta”) permaneceram associadas à escrita do cantochão de igreja, enquanto a
música profana utiliza a pauta de cinco linhas, dada a extensão da escala sonora
que percorre.
Estando a altura dos sons praticamente definida pelo sistema de linhas (com
um som sobre cada linha e um som entre cada uma destas, os sete sons da
escala eram notados sobre quatro linhas e três entrelinhas), tornava-se ainda
necessário indicar a duração destes sons. Diferentes formas convencionais
forneceram uma primeira apreciação. Foi assim que se elaborou pro-
gressivamente um sistema de sinais em forma de quadrados ou de losangos,
dispostos sobre e entre as linhas, cada um representando um som. A sua dimen-
são, a maneira de agrupá-los ou de lhes associar um traço vertical, indicavam
uma série de durações diferentes. No século XIII surge a notação
proporcional, estabelecida a partir da notação quadrada. Temos aqui um
exemplo, que nunca mais se modificará, da escrita musical utilizada para os
cantos da missa gregoriana; será apenas por intermédio da música profana que
esta escrita evolucionará ainda para a notação redonda, a pauta de cinco linhas
e as divisões binárias dos valores das notas (uma semibreve vale duas
.mínimas, ou quatro semínimas, ou oito colcheias, ou dezasseis semicolcheias,
etc.).
Dois teóricos da Idade Média deixaram os seus nomes ligados à história
da notação musical: o monge Hucbaldo (840-930), professor, autor do tratado
De Harmonia Institutione, que verosimilmente estabeleceu a pauta de quatro
linhas; e o beneditino italiano Guido d'Arezzo (980?-1050), que efetuou um
importante trabalho de fixação das cantilenas litúrgicas e passa por ter
completado a pauta de quatro linhas. Foi ele também que atribuiu aos sons os
seus nomes definitivos, mas de uma maneira inesperada, onde o acaso
desempenhou um papel; sucede que o canto de um hino a São João Baptista é
concebido em “escada”, o que quer dizer que cada verso começa num grau
mais alto que o precedente.
A progressão da notação musical entre os século X e XV:

1. Neumas franceses do século X — 2. Notação de um canto litúrgico na


pauta, no fim do século XII — 3. Página de cantochão de um livro de missa do
século XIII, pauta de quatro linhas — 4-Antifonario do século XV, com
notação proporcional, pauta de cinco linhas.
Fragmento com neumas do manuscrito 239
de Laon, Metz, escrito por volta de 930.

Laon 239 de Metz (cerca de 930) nos dá um pouco mais de informação quanto à melodia
Pauta de 4 linhas

Pautas de 4 linhas
O texto é o seguinte: Ut queant laxis, Resonare fibris, Mira gestorum,
Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum, Sancte Johannes, o que significa:
“A fim de permitir que ressoem nos corações as maravilhas das tuas ações,
absolve o erro dos lábios indignos do teu servo, ó São João.”

Sucede também que o primeiro verso ut queant laxis começa pela nota
tradicionalmente chamada C, segundo o hábito adquirido no momento do
aparecimento dos neumas, e que designava os sons fixos da escala sonora pelas
sete primeiras letras do alfabeto. O hino a São João começa, portanto, por C:
Chamar-Ihe-ão Ut. O segundo_começa por D, chamar-lhe-ão Ré, e assim por
diante. Restam dois pontos que se torna necessário explicar: Por que motivo a
denominação assim elaborada compreende dois nomes, Ut e Dó para a mesma
nota? Porque o primeiro verso começa sobre Ut e o regresso do Ut, oito graus
mais acima, recai sobre a oitava deste som, onde o cantor termina dizendo
“Domino”. De onde provem o nome Si para o sétimo grau? Das iniciais Sancte
Johannes, o J confundindo-se com o I.
Eis portanto, a escala de sete notas estabelecida a partir do som Ut. Este
desnível de duas notas em relação à escala antiga de Lá (A) estabelece
simultaneamente o tipo de escala maior em Dó, tal como a conhecemos hoje.
Por meio de uma série de modificações subtis e pelo emprego de graus
elevados ou abaixados, o sentido (“tonal” vai desenvolver-se durante a Idade
Média e fazer recuar pouco a pouco o sentido “modal”, que havia prevalecido
desde a Antiguidade, e se conservará no canto de igreja.
A música tonal, a escala ascendente, embriões de todo o nosso sistema musical
profano, abrirão caminho mercê dessas descobertas e teorias, que alargarão as
fronteiras que limitavam a música desde há cerca de dez séculos.

Guido d'Arezzo e um discípulo


(miniatura do século XII)
IV - A IDADE MÉDIA

Por volta do século X, a fisionomia da sociedade européia modifica-se pro-


gressivamente: O Ocidente organiza as suas estruturas feudais e divide-se em
vilas burguesas, em castelos e em conventos. Os castelos dos suseranos são os
centros do poder e da autoridade militar, que se estendem às regiões vizinhas.
Nesses tempos em que os nobres guerreiam permanentemente entre si, os con-
ventos são o refúgio da vida espiritual, mas até estes nem sempre escapam às
devastações que por vezes os arruinam. As vilas esboçam-se, centros econômi-
cos e sociais que prefiguram as grandes cidades futuras.
No que respeita à música, deu-se uma grande transformação desde o tempo
em que o gregoriano reinava sozinho sobre a Igreja e o povo. Num movimento
constante, lento mas irreprimível, a música profana, como já vimos, invadiu a
Igreja, sendo em seguida rejeitada por esta, e assistimos à separação destes dois
gêneros por volta do século X. Doravante vai operar-se a associação da música
erudita e da música popular, ambas profanas. Quando qualquer delas tiver ad-
quirido força autônoma, separar-se-ão por sua vez.
Dissemos mais acima que o canto religioso não evoluciona; é exato. Teóri-
cos, copistas, professores, protegeram a cantilena litúrgica de qualquer agres-
são exterior. Por outro lado, os compositores (o que, na Idade Média, significa
os “mestres de canto”) pretenderam enriquecer o gregoriano, conferir-lhe maior
variedade expressiva ou decorativa; com a polifonia, vão adorná-lo de vestes
sumptuosas. Mas primeiramente desenvolveram um gênero que assumiu gran-
de importância: o tropo. Amplificação do canto litúrgico, o tropo é uma impro-
visação de vocalizes. O tropador, precursor dos trovadores, é um trouver1 na
acepção medieval. Dá livre curso à sua inspiração quando chega à palavra “ale-
luia”: ornamentando-a, prolongando-a, acabará por conferir-lhe tal amplitude
que o tropo tornar-se-á numa verdadeira peça separada. Transformar-se-á na
sequência, trecho original que perdeu as suas ligações com a Aleluia, e que se
cultiva em todos os conventos europeus, sobretudo em Saint-Martial de Limo-
ges e em Saint-Gall. Neste último, o monge Notker (830-912) deixou diversos
modelos de sequências.

1
Do francês trouver — achar, encontrar — significando, portanto, “aquele que encon-
tra”. (A1, da T.)
A sequência chama-se igualmente jubilus (canto alegre). Longínquo ante-
passado dos vocalizos ornamentais e expressivos do bel canto, o jubilus desig-
na qualquer improvisação sobre a Aleluia, improvisação que exprime júbilo
espiritual. Esta alegria da alma não conservará sempre a sua pureza de inten-
ções: o jubilus representa uma tentação para a virtuosidade, o prazer sensual da
voz e da expressão.
Este gênero, que se conservará do século VII até ao século XIV aproxima-
damente, será condenado pelo Concílio de Trento (1545-63), devido aos exces-
sos que origina. O tropo e a sequência desaparecem então da cena, mas já se
haviam introduzido na música profana e desempenhado um papel eminente no
estímulo da criação musical da Idade Média, de que foram um dos fermentos
ativos. Sem tais elementos, a música religiosa teria estagnado numa tradição
que recusava absorver qualquer idéia nova. A este propósito, será interessante
fazer notar que tal tradição, firmemente mantida através de vinte séculos, só
conseguiu sobreviver graças a um equilíbrio harmonioso e prudente, constan-
temente discutido, entre os princípios intangíveis do estilo religioso e certa
infusão de sangue novo cuidadosamente controlada.
Os legisladores da Igreja conseguiram sempre repelir riquezas que pudes-
sem asfixiar a pureza do gregoriano e que assim iam manifestar-se à margem
dos ofícios divinos. É, contudo, este movimento de enriquecimento do canto
religioso que vai caracterizar a Idade Média, provocar o nascimento da polifo-
nia, favorecer o desenvolvimento dos grupos instrumentais e, finalmente, ori-
ginar a floração polifônica, que atingirá o seu apogeu no século XVI.

Trovadores (séculos X-XIII)

Duas correntes opostas, mas igualmente vigorosas, irão marcar a Idade Mé-
dia: as correntes religiosa e profana. Como se desenvolve a música profana?
De duas formas, uma popular e outra aristocrática. O povo canta e dança, ela-
borando um inteiro repertório de melodias ritmadas conforme as necessidades
do trabalho (canções de ofícios), e impõe um quadro simétrico a estas melodi-
as. A simplicidade do ritmo e da melodia é necessária no canto popular para
facilidade de compreensão e de memória. Assim se explica a existência de es-
tribilhos e coplas curtos, repetidos em textos diferentes, e de fórmulas rítmicas
e melódicas impressionantes e sugestivas. Desta forma, a canção popular intro-
duz na música um elemento do qual ela nunca mais conseguirá libertar-se: a
barra de compasso. Esta permitiu notáveis progressos na escrita e, por exem-
plo, a possibilidade de execuções coletivas. Mas, ao mesmo tempo, impede a
liberdade, a flexibilidade e as subtilezas do ritmo, tal como aparece no gregori-
ano e de que só ele conservou o segredo (excetuando algumas músicas rituais
do Oriente).

Trovadores

Marcabru Gile de Vièle Mariont


A canção aristocrática permanece ainda estreitamente ligada ao gregoriano
até cerca do século XIII, fazendo uso restrito da simetria rítmica. Esta canção
aristocrática é o apanágio dos trovadores, cuja obra é considerável, em França,
a partir do século XI até ao século XIII. Poetas líricos em língua de oil, então
falada ao norte do Loire (onde se chamavam trouvières), ou em língua de oc,
empregada ao Sul (troubadours), são na sua maioria nobres letrados que escre-
vem eles próprios os poemas e as músicas das suas canções; os assuntos esco-
lhidos vão das Cruzadas à adoração da Virgem, passando pela sátira, a Prima-
vera e o amor cortês.
Nessa época cria-se o hábito de prestar homenagem platônica a uma dama,
cantando-lhe ou enviando-lhe uma canção de amor. Amor cortês e cavalhei-
rismo vêm suavizar os costumes muito rudes de uma sociedade inteiramente
preocupada com acções guerreiras. Realizam-se reuniões poéticas e musicais,
chamadas “cortes de amor”, onde cantores e declamadores se defrontam em
despiques apaixonados.
As canções eruditas dos trouvières e dos troubadours (troveor: trouvère,
trobador: troubadour) exerceram grande influência no desenvolvimento das
formas musicais; existem histórias cantadas de forma livre, mas também can-
ções de coplas e estribilhos ou onde se emprega repetidamente um motivo do-
minante. Existem canções-tipo, que dão origem a um repertório inteiro sobre o
mesmo assunto: a “canção do pano”, que acompanha a fiação e tecelagem; a
“canção da alvorada”, contando a separação dos amantes ao nascer do dia; a
pastourelle, canção de pastora frequentemente dialogada, tal como o jeuparti,
canção para várias personagens. Finalmente, as canções corteses, que evocam
as alegrias e tristezas do amor.
Na maioria dos casos a canção molda-se sobre uma forma poética, sendo as-
sim que a balada, o rondo, o lai e o virelai devem os seus nomes e a sua estru-
tura ao exemplo literário que seguiram. Todas estas formas são de coplas e
estribilhos. Devem acrescentar-se as canções de carácter político (sirventes) ou
satírico, assim como o planh (planctus), lamentação fúnebre.
No plano instrumental salienta-se também um gênero que se espalhou con-
sideràvelmente: a estampida, dança tocada na flauta e ritmada pelo tambor, ou,
mais tarde, acompanhada por um contraponto na viola. Por vezes a estampida,
cujos ritmos se inspiram no domínio popular e se desenrola numa sucessão
muito simples de motivos breves, é acompanhada de palavras.
Salvo raras excepções, os trovadores inspiraram-se no canto gregoriano; a-
lém disso, associaram o canto religioso e o canto popular, as suas fontes de
inspiração. O seu repertório musical, de que apenas um décimo chegou ao nos-
so conhecimento, devia representar perto de dois mil cantos.
Não devemos deixar de referir igualmente um aspecto importante da arte
dos trovadores: o aspecto social. Viajando eles próprios, a fim de irem decla-
mar e cantar os seus poemas e canções nas cortes vizinhas, os trovadores fa-
zem-se também, por vezes, representar por menestréis e jograis pertencentes à
sua casa e que atuam em seu nome, percorrendo as estradas de França, indo de
castelo em castelo, de vila em vila e, em breve, de província em província. Nas
praças públicas, nas salas de armas, ou seja onde for que os acolham, relatam
as proezas do seu senhor. Cantam evidentemente o repertório que este lhes
ensinou, mas como pelo caminho vão vendo inúmeras coisas que se apressam a
repetir, este repertório alarga-se à medida que eles próprios inventam canções,
parodiando melodias ouvidas nas suas digressões. Acabam por misturar de tal
forma as criações do seu senhor com as da sua própria autoria, que nem sempre
se consegue saber a quem de fato pertencem.
Estas personagens errantes, e por vezes famélicas, percorrem as estradas,
tanto no Verão como no Inverno, munidas da sua pequena harpa portátil ou de
uma sanfona. Menestréis (cantores-poetas) e jograis (distraidores), ambos por
vezes fundidos num só, tocam sem suspeitar de uma influência que ultrapassa a
sua humilde atividade: as suas idas e vindas através da Europa tecem uma am-
pla rede de crônicas e de informações, contribuindo para um contínuo inter-
câmbio de idéias. Estes “portadores de notícias” difundem a lírica românica no
interior de um território cuja extensão nos deixa hoje estupefactos, consideran-
do os meios rudimentares de que dispunham para se deslocar. A rede dos tro-
vadores cobre, nos séculos XII e XIII, toda a Europa: França, Alemanha, Países
Baixos, Suíça, Itália, Hungria, Áustria, Portugal, Espanha, Inglaterra e Irlan-
da...
Estes poetas são todos franceses? Sim, na maioria dos casos. De entre os
trouvères podemos citar Adam de la Halle (Arras 1240 —Nápoles? 1287),
Blondel de Nesles (Picardia, século XII), Thibaut de Champagne (rei de Navar-
ra, Troyes, 1201-1253); de entre os troubadours, Guilherme IX de Aquitania, o
mais antigo de todos os conhecidos (1071-1127), Bernard de Venta-dour ou
Bernard de Ventadorn (Limousin, século XII), Jeanroy Marcabru (Gasconha,
século XII), etc.
Existem igualmente trovadores italianos no século XII. Quanto à Alemanha,
sofreu este país intensamente a influência desse movimento poético e musical,
que se manifesta pelo aparecimento dos Minnesánger (cantores de amor), de
que Walter von der Vogelweide é um dos mais famosos representantes no sé-
culo XIII, e dos Meistersànger (mestres-cantores), de entre os quais a história
reteve sobretudo o nome de Hans Sachs (Nuremberga, 1494-1576), graças à
homenagem prestada por Wagner, tanto ao homem, como à sua corporação.
A música na Alemanha no século XIV. Da esquerda para a direita:
tambor, flauta, flauta de cana, vièles, saltério e gaita de foles.
(Manuscrito de Manesse, por volta de 1300)

Os Meistersànger são posteriores aos Minnesánger; existem do século XIV


ao século XIX aproximadamente, e esta sobrevivência até à nossa época expli-
ca-se pelo fato de que os mestres-cantores, contrariamente ao que sucedeu com
os Minnesánger ou os trovadores, organizaram-se em corporações, editaram
regras de admissão muito severas, estabeleceram uma hierarquia e conservaram
ciosamente as suas tradições. Beneficiando dos privilégios e da prosperidade
dos comerciantes, artífices e burgueses, a arte destes mestres-cantores e a sua
atividade manteve-se, pois, dentro de um campo bastante limitado e escolásti-
co; em contrapartida, tiveram o merecimento de conservar viva uma tradição
musical e poética onde numerosas gerações irão colher a inspiração.
Resumindo, verificamos que a importância do repertório dos trovadores, a
variedade dos seus temas de inspiração, a influência da sua arte poética e musi-
cal nos gostos, nos costumes e nos espíritos, a sua difusão através da Europa
feudal, todos estes fatores fazem deles os arautos de um poderoso movimento
lírico que durante mais de dois séculos inspira o Ocidente. Foi graças a eles
que a música profana alcançou grande popularidade.
Consideremos, por exemplo, a apresentação do Jeu de Robin et Marion, de
Adam de La Halle: não é cheio de novidade, de frescura? Trata-se de um en-
saio de teatro cantado. O amor de dois jovens e as inúmeras peripécias que o
contrariam são evocadas com o auxílio de árias “em voga” e de cantilenas ins-
piradas no gregoriano, segundo uma sucessão de monólogos e de diálogos (á-
rias e duetos) em que o agradável se associa ao enternecedor. Esta obra pode
ser considerada como a primeira ópera cômica. A fábula cantada Aucassin et
Nicolette, cujo autor não foi identificado, conta uma bela e longa história de
amor, cheia de situações a que hoje chamaríamos melodramáticas. A forma
destas obras é simples: em primeiro lugar, canta-se, depois um instrumento
(flauta, vièle) proporciona um intermédio e os solos e os duetos alternam, por
vezes acompanhados em uníssono. Esta ingenuidade, esta simplicidade, carac-
teriza muitas produções da mesma época. A par das grandes epopéias, dos can-
tos ou das crônicas, elabora-se também uma música destinada a deleitar ou a
divertir.
Finalmente, uma última observação: a música dos trovadores é geralmente
monódica. Os acompanhamentos instrumentais intervêm em uníssono; só mui-
to raramente (no caso de Adam de La Halle, entre outros) assumem uma forma
polifônica, por vezes simplesmente a duas vozes.

A polifonia

Contraponto provém de “ponto contra ponto” (punctum contra punctum),


alusão às notas, chamadas “pontos” na Idade Média. O contraponto é uma es-
crita de várias linhas (ou vozes), primeiro nota contra nota, em seguida combi-
nando os valores (ou durações). A diferença, por vezes confusa, entre contra-
ponto e polifonia é simples: o contraponto é a técnica de escrita que produz a
polifonia. A escrita contra-pontística, em que evolucionam diversas linhas me-
lódicas mais ou menos diferenciadas em contornos e durações, levará vários
séculos a atingir uma flexibilidade total, uma liberdade perfeita.

Alegoria medieval da músi-


ca, com carrilhão, viola e Harpista. Pormenor do livro
saltério (portal oeste da de tropos de Saint-Martial de
Catedral de Chartres, sécu- Limoges (seculo XI)
lo XIII)
Um episódio do romance de cavalaria Renaud de Montauban. Em primeiro
plano uma harpa portátil (miniatura de Loyset Lié det, século XV)
Século XV, expansão da polifonia. No primeiro plano: Saltério,
flauta e órgão portátil; no segundo: trombeta, viola, tambor e
harpa (frontispício do livro de salmos de René de Lorraine)

Precisemos que a polifonia pode existir sem contraponto: uma série de acor-
des, cada um deles colocado sobre as diferentes notas de uma melodia (num
coral religioso, por exemplo), pertence à escrita harmônica (encadeamento de
acordes fixos), mas forma uma polifonia, uma vez que contém várias vozes.
Para simplificar, podem-se resumir assim os três termos:
Polifonia: várias vozes.
Harmonia: várias notas agrupadas em acordes.
Contraponto: várias linhas melódicas simultâneas.
Podemos encontrar a primeira—ou pelo menos uma das primeiras —
manifestação da polifonia no século X no Música Enchiriadis, de Hucbald, no
qual está anotada uma Rex Coeli, Domine Maris (“Ó Rei do Céu, Ó Senhor do
Mar”) a duas vozes, a inferior fornecendo a melodia, a superior seguindo o
desenho melódico a uma distância de quarta. Este processo, muito rudimentar,
constitui na realidade o início da polifonia, chamado organum. (A etimologia,
bastante complexa, pode resumir-se assim: o termo latino que deu origem à
palavra “órgão” — instrumento — provém do grego organon que significa
órgão vocal, voz). O organum, primeiro ensaio da arte polifônica, é, portanto,
constituído por um contraponto paralelo a duas vozes, também chamado diafo-
nia.
Note-se que a polifonia faz a sua aparição no momento em que a notação
musical se aperfeiçoa e a música profana se desenvolve. Ainda neste caso, os
progressos da técnica evolucionam paralelamente ao aparecimento de ideias
novas.
As duas vozes do organum primitivo vão em breve adoptar outra técnica: o
movimento contrário. Este simples achado enriquecerá consideràvelmente as
possibilidades da polifonia, que assim se aventurará a acrescentar uma terceira
e, em seguida, uma quarta voz à melodia principal, e por fim a variar as dura-
ções e os ritmos dessas diversas vozes. Será então que o contraponto encontra-
rá as suas mais belas aplicações e que a escrita musical se .tornará numa ciên-
cia minuciosa e precisa. O que assim se resume numa frase representa, contu-
do, uma evolução lenta e difícil, que levará, desde o início até atingir a plenitu-
de, cerca de seiscentos anos...
Poderia perguntar-se por que motivo aparece a polifonia no decurso da Ida-
de Média. Porquê numa determinada época em vez de outra? Por que motivo
ninguém tinha pensado na polifonia anteriormente? Pode admitir-se, contudo,
que ela não surgiu devido a um simples acaso. Seguindo paralelamente a evo-
lução da música, bem como o grau de evolução social, a polifonia manifesta-se
no momento em que se procura aumentar o poder expressivo das melodias dos
ofícios religiosos, onde a sua nudez e a sua singeleza já não pareciam suficien-
tes.
A associação de uma voz à voz que canta a melodia provém desse desejo de
ampliar as possibilidades do gregoriano, mas, simultaneamente, representa um
ato audacioso, correspondendo a uma audácia geral que marca os espíritos, a
uma vasta corrente de progresso que a nossa época nem sempre reconheceu
como devia. Na verdade, mencionam-se com mais frequência as “trevas” da
Idade Média do que as suas “claridades”.
O movimento polifônico espalha-se porque corresponde ao gosto e à curio-
sidade da época. É o gregoriano que serve de base aos primeiros ensaios de
polifonia e, assim, será o canto de igreja que vai amparar a nova música. No
século xi, por exemplo, surge o discantus, improvisação livre em movimentos
paralelos e contrários ao canto litúrgico, que se experimenta nomeadamente na
Catedral de Chartres.
Uma palavra, de que os séculos modificaram totalmente o sentido, permane-
ce ligada aos começos da polifonia: tenor. Proveniente de tenere (sustentar), o
tenor é uma melodia cantada em valores longos, sobre a qual se desenrola o
discantus em valores mais breves. O tenor sustenta assim a melodia principal,
em volta da qual se tecem floreios diversos; o cantor a quem se confia esta voz
torna-se uma espécie de protagonista. Foi nesse sentido que o termo transitou
para a linguagem profana.
O primeiro balbuciar da polifonia dá origem a diferentes gêneros, que mais
tarde desaparecerão, mas que lhe trazem novas formas e definições: o gymel
inglês, acompanhamento do canto à terceira inferior em movimento paralelo; o
fá-bordão, ou falso-baixo, a voz à terceira superior cantando-se na oitava infe-
rior (ainda hoje um cantor pode enganar-se na oitava e cantar abaixo de uma
melodia que dobra julgando cantar acima); o conductus, peça litúrgica ou pro-
fana, que consiste num canto ornamentado por uma segunda voz. livre.
Até aqui a música tinha sido anônima: tanto os cantos rituais como os popu-
lares não têm autores. Tão longe quanto possamos retroceder na história, am-
bos pertencem à criação coletiva (ou individual, imediatamente transmitida à
coletividade), cuja origem permanece inevitavelmente misteriosa. Mas a partir
do momento em que a música se desenvolve noutras direções, os nomes dos
teóricos e dos compositores vão permanecer ligados à sua evolução.
Já pudemos citar os nomes de Ambrósio e de Gregório, os primeiros a exer-
cer sobre o canto religioso uma influência reconhecida pelos seus contemporâ-
neos. Mais tarde, entre outros, bastante escassos, encontramos Hucbald e Gui-
do d'Arezzo, pois então existiam poucos teóricos ou compositores que se tor-
nassem conhecidos. Não esqueçamos que o trabalho dos monges, voluntaria-
mente humilde e obscuro, favoreceu o anonimato. Quanto aos trovadores, os
seus nomes ficaram ligados à história porque se tratava de nobres ou haviam
conquistado a fama por outros motivos.
Ao mesmo tempo em que a música se desliga do canto religioso coletivo,
sai, portanto, do anonimato. Caminha para certa individualização do sentimen-
to e também da técnica; a marca do músico criador poderá doravante manifes-
tar-se; ao, princípio modesta e muitas vezes involuntária, em breve se afirmará
com uma audácia sempre crescente.
Na cena musical vão aparecer músicos especializados, teóricos ou composi-
tores. Em Notre-Dame de Paris, o organista Léonin (século XII) escreve uma
série de músicas para órgão, algumas a duas vozes. O seu sucessor, Pérotin,
dito o Grande, é considerado como um dos primeiros grandes compositores da
história e o pai da música polifônica. Deixou organa, discantus, conductus,
peças a quatro vozes, que, executadas por coros ou órgão, deviam produzir nos
fiéis uma profunda impressão de novidade.
Imaginemos o que devia representar para o homem do século XII a audição
simultânea de duas ou várias melodias - surpresa para a qual os espíritos esta-
vam tão pouco preparados como os ouvidos - e conviremos que os primeiros
ensaios da polifonia - a despeito da sua desajeitada rigidez, que nos parece
cheia de “encanto arcaico” - devem ter suscitado grande curiosidade. A segun-
da voz e, em seguida, as outras que se lhe agregaram introduziram um elemen-
to de colorido e de calor completamente estranho à austera tradição gregoriana.
Pérotin, que, não o esqueçamos, é organista numa catedral, afirma a fé ro-
busta dos seus construtores e do seu povo. Entre 1180 e 1232 aproximadamen-
te, Pérotin cria um novo estilo musical que hoje seria classificado de vanguar-
da. Para coroar os seus trabalhos, utiliza por fim o processo itnitativo, que es-
trutura as peças pela repetição dos .motivos principais, respondendo entre si de
uma voz à outra. Este processo, de que os polifonistas da Renascença farão uso
até às suas mais extremas possibilidades e que dará origem à fuga, continua a
empregar-se atualmente como um dos elementos constitutivos da forma musi-
cal.
Desta vez a tradição greco-romana foi completamente abandonada. O mun-
do feudal da Idade Média é um meio activo, corajoso, poderoso, onde circulam
e se desenvolvem numerosas idéias novas. Os homens deslocam-se; Paris é já
um local de encontro para os clérigos. Estudantes de vários países vêm a esta
cidade para assistir aos cursos da universidade que Robert de Sorbon acaba de
fundar e que usará o seu nome. Notre-Dame de Paris é um ponto de reunião
dos fiéis e a música nova e ousada que ali se toca repercutir-se-á longe. Tam-
bém virão jovens músicos estrangeiros, que aprenderão os mistérios da polifo-
nia com mestre Pérotin. O rei Filipe Augusto, cognominado o Construtor, favo-
rece em Paris o progresso social e econômico; grandes catedrais começam a
cobrir a França, a literatura e a música desenvolvem-se. Em 1235 compõe-se a
primeira parte do Romance da Rosa; é o romance do amor cortês, que os tro-
vadores continuam a difundir por toda a Europa. Assiste-se ao despertar de um
mundo novo, onde as criações do espírito adquirem cada vez mais importância
e lançam os alicerces da civilização artística do Ocidente. É então que a músi-
ca, que havia sido uma ciência no estudo dos fenômenos sonoros e, desde sem-
pre, um ritual, começa a transformar-se no que será doravante: uma arte. É
então também que, juntamente com a literatura e a pintura, ela se torna num
dos elementos fundamentais da cultura européia.

A Ars Nova (século XIV)

Como vimos, a polifonia nasceu de necessidades novas: de acordo com uma


explicação não científica, mas simplesmente poética, a alma dos homens, nos
primeiros séculos da nossa era, não estando preparada para a música polifôni-
ca, não sentia a sua falta. Nesses tempos de grande fé e austeridade, não se po-
dia conceber ou admitir que qualquer elemento ornamental ou sensual fosse
introduzido no canto religioso; como também vimos, os chefes da Igreja agi-
ram diversas vezes no sentido de se lhe opor.
Orquestra burlesca, miniatura do Romance de Fauvel

A despeito de, aqui e ali, se manifestarem algumas liberdades, de um modo


geral a ignorância e a superstição mantêm o povo num estado de absoluta doci-
lidade em relação a tudo o que lhe é imposto. Esta simplicidade do homem da
remota Idade Média pouco durará: será abalada pelas reivindicações de alguns,
pelas correntes de idéias, pelas criações artísticas que pouco a pouco modifi-
cam o estado dos espíritos e, em breve, o cenário da existência.
A música na Boémia no século XIV. Em cima: harpa de saltério,
carrilhão e saltério. Em baixo: harpa, sistro, vièle e saltério. (Bíblia
de Velislav, 1340)

A sociedade feudal, dos séculos XI a XVI aproximadamente, vive de uma


determinada maneira, que suscita uma forma e uma expressão artísticas corres-
pondentes. À monódia gregoriana, na sua pureza e nudez, emanação de um
espírito adequado aos primeiros séculos do cristianismo, corresponde a igreja
românica na sua simplicidade. No momento em que decorações e esculturas
começam a cobrir estas paredes nuas, no momento em que se animam as per-
sonagens dos frescos, até então imobilizadas num hieratismo bizantino, surgem
'também os primeiros ornamentos sobre a nudez gregoriana: a polifonia. No
domínio da música, passar do românico ao gótico significa passar da monodia
à polifonia. Existe uma estreita correlação entre o século e a criação musical.
Vários fatos confirmam esta teoria: os trovadores começam a notar as suas
canções, visto que existe uma notação, na verdade reservada ao canto religioso,
mas que vai transbordar para o campo profano; os menestréis iniciam-se no seu
mister nas ménestrandies, escolas criadas em Paris, e onde se ensina a arte de
cantar, de falar, de tocar um instrumento, resumindo, de entreter. As ménes-
trandies da Idade Média podem considerar-se como os humildes e populares
antepassados dos nossos conservatórios. Por outro lado, o conjunto dos músi-
cos começa a interessar-se pelas canções populares, enquanto anteriormente os
monges teóricos ou copistas tinham outras tarefas a cumprir nos seus con-
ventos do que debruçar-se sobre as canções da gente vulgar, que corriam as
ruas e os campos. Com inteira boa fé não lhes atribuíam qualquer importância e
será mais tarde, na Renascença, que se compreenderá verdadeiramente o inte-
resse desta criação espontânea do povo. Entretanto, pelo século XIV, a canção
popular integra-se na música, afirma-se com mais vigor do que anteriormente,
não só pelas canções de ofícios fortemente ritmadas, mas também por melodias
livres cujo texto trata de um assunto de atualidade.
No domínio da música erudita, os progressos da polifonia dão lugar, no pla-
no teórico, ao aparecimento de um tratado da nova música, publicado em 1330
pelo bispo de Meaux, Philippe de Vitry (1291-1361). Trata-se do Ars Nova,
que determina os conhecimentos da época e fixa as regras da escrita polifônica.
O que Vitry propõe por esse meio aos seus contemporâneos é um programa de
vanguarda: os modos eclesiásticos, por exemplo, já não são considerados como
os únicos aceitáveis, e a “nota sensível” (sétimo grau elevado) de uma escala,
processo inteiramente moderno, vai favorecer e fortificar a escala maior que
hoje conhecemos. A técnica da notação aperfeiçoa-se e Vitry codifica assim
numerosas aquisições recentes.
O estilo proveniente do Ars Nova e que usará o seu nome, vai revolucionar o
mundo musical e religioso. Aos ofícios litúrgicos correspondem já as danças e
canções populares, por um lado, e, por outro, as danças, canções e divertimen-
tos das cortes e dos castelos. Eis que surge um tratado importante, devido a um
eminente teórico, além disso, homem de igreja, que defende a causa do enri-
quecimento da música por diversos processos e encara resolutamente uma mú-
sica de futuro.
A Ars Nova estende a sua influência a um período de cerca de século e mei-
o; ela representa uma fase de evolução da polifonia, mas inscreve-se num en-
cadeamento que não podemos, sem arbitrariedade, dividir em capítulos. Se a
história da música estabelece tradicionalmente esses capítulos, é unicamente
por espírito de ordem e de classificação, pois os contemporâneos de Philippe
de Vitry, por exemplo, prosseguem a obra de um Pérotin e dos seus sucessores;
introduzem-lhe novidades, audácias, liberdades que, por sua vez, vão dar lugar
ao nascimento da grande arte polifônica da Renascença. Para maior clareza do
exposto, situemos a Ars Nova nos séculos XIV e XV, na esteira de Vitry.
A personalidade de um compositor marcou o período da Ars Nova: Guil-
laume de Machaut (1300-377). Após uma juventude aventurosa, em que, na
qualidade de secretário, seguiu Jean de Luxembourg por toda a Europa, tornou-
se cónego de Reims. Homem culto, frequentador das cortes (Carlos de Na-
varra, o duque de Berry), tanto cultiva a poesia como a música. Espírito auda-
cioso e fecundo, deixou numerosas obras profanas: baladas, virelais, rondós;
contudo, a obra mais importante da sua carreira é a Missa a Quatro Vozes, es-
crita, ao que se julga, para a sagração de Carlos V em Reims, em 1364. A no-
vidade fundamental da obra reside no facto de que as suas diversas partes: K-
yrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei,já não são peças isoladas: o autor tra-
ta-as a quatro vozes, liga-as entre si, criando assim a primeira “missa polifôni-
ca” da história. Pela primeira vez, efetivamente, surge uma concepção arquite-
tônica que procura atingir o monumental, a unidade de um vasto conjunto, as-
sim como a diversidade de pormenores no seio desta unidade. Esta missa de
Machaut (chamada também Missa Nossa Senhora) marca uma data-charneira
na história da música e coloca-se entre as obras que melhor caracterizam a
franqueza e a audácia da Ars Nova.
É evidente que esta polifonia, ainda rude e desajeitada, mas que manifesta
um indiscutível caráter de fervor e de grandeza, não exerce nos nossos ouvidos
esse “entanto” que geralmente esperamos da música, por vezes erradamente,
visto que ela nem sempre teve como objetivo ser encantadora ou sedutora. Nas
épocas de fé, a música devia ser forte, expressiva sem dúvida, rica de lingua-
gem e de graduações, mas sem languidez, semelhante, neste aspecto, às idéias e
aos costumes da época.
Cem anos após o Romance da Rosa, surge o Romance de Fauvel, obra satí-
rica em verso, cujas afinidades com a música são comprovadas pela importante
série de composições musicais que nela se encontram integradas: antífonas,
rondós, lais, motetes, sequências, baladas, aleluias, onde, como se vê, se mis-
turavam o profano e o sagrado. Estas peças constituem um documento interes-
sante no que respeita às formas então utilizadas, bem como às novidades per-
tencentes à Ars Nova, tais como a complexidade rítmica das diferentes partes
de uma peça polifônica, o interesse do acompanhamento instrumental de uma
melodia de moteto, etc.
Para completar a fisionomia da França gótica, não esqueçamos que também
a língua profana alarga o seu domínio e alcança a produção literária e poética:
já não é em latim, mas sim em “língua vulgar”, que se escrevem os poemas e as
canções e se representam os “mistérios”. A língua francesa começa a existir.
Na Itália, onde se espalha a Ars Nova, citaremos o organista cego. Frances-
co Landino (1325-1397), como o mais notável desta escola. A sua música é
mais gentil e mais terna do que a de um Machaut, revelando uma sedutora in-
venção melódica, e se o nome de Landino não figura na primeira fila dos gran-
des criadores, tal fato deve-se a uma lamentável injustiça. A história não come-
te muitas injustiças, mas neste caso é flagrante. Landino (ou como por vezes
erradamente se escreve, Landini) alcança pela sua ciência o prestígio de um
chefe de escola, e os numerosos discípulos que formou contribuíram para fazer
brilhar a Ars Nova na Itália. Pelo seu realismo e misticismo, ele evoca o seu
contemporâneo Fra Angélico. Por outro lado, Landino situa-se no prolonga-
mento direto de Giotto, nascido cerca de cinquenta anos antes dele, e cuja au-
dácia e realismo exprimem de forma semelhante as tendências da nova arte.
Assim, logo no início da polifonia, os músicos italianos afirmaram um estilo
onde a fantasia e a liberdade têm o seu lugar, um estilo que nunca se torna es-
cravo de uma escolástica demasiado estrita, que se alia a certa faceta popular, e
onde se manifestam os elementos sensuais e líricos da música. Esta disposição
de espírito e de sentimento é permanente nos músicos italianos. É ela que con-
diciona toda a criação artística do país e tem sido possível observar, até aos
nossos dias, de que forma os compositores italianos transformam, de acordo
com o seu próprio gênio, a severidade de qualquer imperativo estético vindo do
Norte.

Os gêneros e os instrumentos

Detenhamo-nos aqui um instante, para formularmos algumas interrogações


sobre os gêneros e os instrumentos em uso na música medieval. Ao desenvol-
vimento da música profana corresponde necessariamente um desenvolvimento
de estruturas e de gêneros. Paralelamente à expansão das cidades burguesas,
verifica-se a expansão da música cultivada pelos cidadãos: burgueses, artífices,
personalidades de destaque. Ao uníssono do gregoriano, que representa a fé
coletiva, sucedeu a polifonia, que espalha o gosto pelo diferenciado; no primei-
ro caso a música pretende edificar, no segundo divertir. Para os cidadãos que se
reúnem para cantar ou tocar, a música representa uma distração. Assim nascem
e se expandem gêneros diferentes.
Já vimos quais eram os gêneros religiosos dos princípios da polifonia: o or-
ganum, o conductus, o discantus, a sequência. É necessário acrescentar o mote-
to, peça composta de várias partes, cada uma destacando um texto diferente em
língua vulgar sobre um tenor litúrgico, que, na voz superior, canta uma palavra.
(motetus) por cada nota. Este tenor pode ser também tocado por um instrumen-
to. No século XIV, a adoção de um tenor profano transforma o moteto numa
peça profana, que se dilatará até se tornar, com Lully e os seus contemporâneos
do século XVII, numa grande arquitetura de coros, solistas e instrumentos.
A balada é uma espécie de estilização das árias de dança dos trovadores; é
uma canção acompanhada, uma narração. Transforma-se, torna-se polifônica: o
seu gênero define-se melhor do que a sua forma. No seguimento e até a nossa
época, a balada corresponderá sempre à mesma definição.
O lai é uma peça acompanhada, compreendendo doze estrofes diferentes
quanto ao ritmo poético e à melodia.
O virelai canta-se a uma voz, com duas ou três partes instrumentais em con-
traponto, e alterna coplas com estribilho. É parente próximo do rondo, onde
alternam uma única voz (coplas) e coro (estribilho), baseados em ritmos de
dança. Compor-se-ão também rondós polifônicos.
O cânone (que significa regra) é um processo de imitação que vai obter su-
cesso e considerável expansão, enriquecendo-se até aos nossos dias em todos
os gêneros. Trata-se da repetição de uma mesma frase, enunciada pelas diferen-
tes partes de uma peça, cada uma por seu turno.
O cânone primitivo dá origem, na Itália, à caccia (século XVI), pequena pe-
ça descritiva que evoca os prazeres da caça. Por meio das entradas sucessivas
do motivo cria-se a impressão de corrida.
O ricercar (procura), em Espanha tento, em Inglaterra fancy, em Portugal
tento, peça instrumental decalcada do moteto vocal, retoma o processo de imi-
tação e toca-se no alaúde, no órgão ou no cravo. Mais tarde, no século XVII,
aperfeiçoar-se-á por meio de uma escolástica complexa, que dará origem à fu-
ga.

A música em França no
século XV: No primeiro
plano, tocadora de flauta
doce e de tamboril, tocado-
ra de trombeta direita, tím-
pano; no segundo plano,
órgão portátil, tímpano,
bombarda-tenor (ante-
passado do oboé), mandara
(guitarra) tocada com plec-
tro, ainda outra flauta doce
(flauta suave).
As musas, manuscrito de
O Campeão das Damas - 1441) (A frottola (Itália, século
XV) é uma canção a quatro
vozes, que provém dos cantos e danças populares. Dará origem ao madrigal da
Renascença, a que nos referiremos mais adiante.
Em Espanha, as canções de estribilhos de ricos ritmos de dança, ditas vilan-
cicos (de aldeia), alcançam considerável e duradoura popularidade. Os trovado-
res do século xii trazem para a Península a canzone, gênero italiano. Primeiro
monódica, torna-se polifónica, e de vocal transforma-se em instrumental (can-
zone da tonar: canção para tocar num instrumento). Composta de várias partes,
a canzone é a origem da sonata.
É, portanto, uma série de peças vocais ou instrumentais, religiosas ou profa-
nas, sempre polifônicas, que vimos surgir e multiplicarem-se entre os séculos
XI e XV. Estes gêneros permitem que a fantasia criadora se manifeste sob múl-
tiplas formas; e a principal verificação que podemos fazer é que a música poli-
fônica tem tendência a ornamentar-se cada vez mais. É um movimento inces-
sante, que conduzirá à extraordinária proliferação do século XVI e marcará a
expansão duma técnica que atingiu o seu ponto culminante.
Que instrumentos se usavam neste período, que vai dos trovadores aos poli-
fonistas, da Idade Média à Renascença? Reencontramos instrumentos conheci-
dos da Antiguidade, mas aperfeiçoados.
Na categoria das “cordas”, eis a harpa, o saltério e a lira (cordas pinçadas).
A viola de arco é o mais longínquo antepassado do violino; a sanfona, instru-
mento nobre que, mais tarde, se tornou popular, é constituído por uma caixa
munida de cordas; uma manivela lateral move uma roda resinada que faz vibrar
essas cordas, enquanto um teclado produz as notas. (Não confundir com a
vièle, antepassada da viola, nome que na Idade Média servia para designar
qualquer instrumento de corda e arco.)
O alaúde, que apareceu na época das Cruzadas, manter-se-á até ao século
XVII. Compreende de quatro a onze cordas; é o instrumento por excelência do
acompanhamento, mas também é usado como solista. O seu repertório é imen-
so; é o instrumento-rei da Renascença.
A guitarra, conhecida desde o século XII, é irmã do alaúde, mas estes ins-
trumentos não derivam um do outro. No século XV, existem diferentes tipos de
guitarras, que conforme as regiões de Espanha, se chamam mandolas (de onde
provém bandolim) e vihueIas. A vihuela de mano, instrumento aristocrático
que possui uma extensa literatura, tornar-se-á a guitarra espanhola, que conhe-
cemos e que será simultaneamente a mensageira de uma arte erudita e do reper-
tório popular em todos os países de cultura ibérica, gozando de inalterável pre-
ferência, como se pode verificar.
O clavicórdio, de início chamado échiquier2, é uma caixa retangular que se
pousa sobre uma mesa. Munido de cordas e de um teclado, é o antepassado do
piano, pois o seu .mecanismo é constituído por “martelos” que percutem as
cordas. (A espineta e o cravo são instrumentos de cordas pinçadas.) O clavi-
córdio existiu do século xiv ao século XVII. Em Inglaterra, a expressão virgi-
nal (séculos XVI e XVII) designa uma espineta.
Os instrumentos de sopro compreendem as trombetas, a trompa (de metal
ou de madeira) e a corneta, instrumento de madeira contendo seis ou sete orifí-
cios. A par destes antepassados dos nossos metais, existem a flauta doce (de
madeira) e a flauta travessa (metálica), que se toca segurando-a de lado. Tam-
bém se usa a flauta de Pã, legada pela Antiguidade. Alguns destes instrumen-
tos são “de palheta” (lâmina de cana vibrando na embocadura): a flauta de ca-
na, a gaita de foles, a bombarda (oboé), o cromorne.
O órgão, instrumento de sopro, é conhecido sob a forma portátil — pequeno
órgão de mesa — e sob a forma majestosa do órgão de igreja.
É evidente que só a história do órgão encheria numerosas páginas; limite-
mo-nos a recordar com brevidade que o órgão tem por antepassado longínquo o
aulos (flauta dupla) dos Gregos ou a flauta de Pa, de diversos tubos de com-
primento decrescente. O órgão de boca dos Chineses (cheng) era constituído
por um conjunto de tubos semelhantes mergulhados numa cabaça provida de
uma abertura. Ao aplicar os lábios nessa abertura faziam-se vibrar os tubos;
encontra-se aqui o princípio do órgão. Crê-se, em geral, que Ctesibio de Ale-
xandria construiu, no século n a.C., o primeiro modelo de órgão. Grandes ins-
trumentos (quatro séries de treze tubos), datando do século m depois de Cristo,
foram encontrados na nossa época. Os pequenos órgãos de mesa, tal como os
órgãos destinados à igreja, espalharam-se pela Europa desde os primeiros sécu-
los da cristandade até à Renascença. Dois tipos de órgão subsistem praticamen-
te desde o século XVII : o órgão barroco, de sonoridades leves, coloridas, finas,
e o órgão romântico, que se deve a Cavaillé-Coll, instrumento potente e maci-
ço, cuja utilização se revelou limitada, a despeito de uma grande riqueza de
2
Échiquier — tabuleiro de xadrez. (N. da T.)
paleta. Desde há alguns anos, o órgão barroco tem obtido novamente algum
sucesso. É insubstituível para a execução de toda a literatura musical dos sécu-
los XVII e XVIII.
Os instrumentos de percussão não são desprezados: utilizam-se sobretudo
para sublinhar o ritmo das danças. Assim sucede com ó tamborim (percutido
com a mão), as castanholas, os címbalos (placas de metal), os sinos ou as di-
versas espécies de tambores.

Manuscrito borgonhês do século XV.


As letras sob o texto indicam os passos de dança
V - A IDADE DE OURO DA POLIFONIA

A escola borgonhesa (séculos XV e XVI)

A partir do momento em que, no século IX, surgira o primeiro ensaio de or-


ganum, nascera a polifonia. Esta irá doravante desenvolver-se de forma irresis-
tível, dando origem a um novo capítulo na história da música. A Antiguidade,
as civilizações pré-cristãs e a nossa própria música tinham vivido até à Idade
Média a era monódica; desde há onze séculos, vivemos a era polifônica. No
decurso de cerca de seiscentos anos a polifonia iria alcançar uma riqueza pro-
digiosa, mas, uma vez atingido o apogeu, iria ceder subitamente, por volta de
1600, perante forças novas (a ópera: melodia acompanhada), para finalmente
retomar o seu lugar no seio de uma arte musical que os seus princípios nunca
cessaram de impregnar e fertilizar.
Com certa lógica, alguns musicólogos têm subdividido a história da polifo-
nia em três grandes períodos: o primeiro vai dos anos 1100, em que se espalha
o uso de cantar o organum nas catedrais francesas, até 1330, ano em que se
publica o tratado de Vitry; o segundo é o da Ars Nova (séculos XIV); final-
mente o terceiro período, ou idade de ouro, é o da escola borgonhesa (séculos
XV e XVI).
Já evocamos Machaut e Landino; eis dois outros grandes músicos também
pertencentes à Ars Nova: Guillaume Dufay e Gilles Binchois. Dufay (1400-
1474), formado pela escola de canto coral litúrgico de Cambrai, esteve ao ser-
viço dos príncipes Malatesta, em Rimini, tornando-se em seguida chantre na
capela pontifical de Roma. Nomeado cónego da Catedral de Cambrai, onde
acabaria os seus dias, Dufay é também mestre de capela de Filipe o Bom. Tan-
to pela sua ciência considerável, a sua inspiração rica e pessoal, as suas ousa-
das inovações, como pelo encanto e elegância da sua escrita contrapontística.
Dufay é uma personalidade dominante do seu século. As suas relações com os
mais ilustres soberanos da Europa, a sua inteligência e o seu talento, fazem
dele um dos príncipes da música. A missa Alma Redemptoris Mater e baladas
como a admirável Virgine Bella são testemunhos, entre inúmeras outras pági-
nas, da sua sensibilidade, bem como da influência do lirismo italiano que fe-
cundou a sua inspiração.
Gilles Binchois (1400-1460), nascido em Mons, falecido em Soignies, dis-
tinguiu-se pela graça e a originalidade do seu temperamento. No fim da Idade
Média, no fim da Ars Nova, Binchois impõe o seu requinte, e as suas obras
profanas são talvez mais significativas do que as religiosas, como o provam as
suas canções escritas sob a forma de rondo, o qual gozava de grande predile-
ção. Binchois esteve também ao serviço de Filipe o Bom; situa-se ligeiramente
atrás de Dufay, de quem não tem a envergadura, mas deixou-nos páginas de
grande beleza e foi considerado como um dos primeiros mestres do seu tempo.
A par do tratado de Philippe de Vitry, citemos ainda o de Jacques de Liège,
escrito depois de 1330 e intitulado Speculum Musicae. Este é o mais volumoso
tratado de música da Idade Média. Jacques de Liège, de quem apenas se co-
nhece o nome próprio, Jacobus, e a sua origem, segue um caminho diferente do
de Vitry; compara os processos dos “antigos” e dos “modernos”, como lhes
chama, e sublinha o interesse das novidades da escrita polifônica.
Um facto importante vai, contudo, modificar o curso da história: em 1415 a
França perde a Batalha de Azincourt, os Ingleses entram em Paris e os prín-
cipes que amavam a música e recrutavam cantores, menestréis e organistas
desaparecem da cena. Simultaneamente, a vida intelectual e artística desloca-se
para regiões mais propícias ao seu desenvolvimento: as que dependem da auto-
ridade dos poderosos duques e Borgonha e que compreendem os actuais terri-
tórios do Norte da França, da Bélgica e do Sul dos Países Baixos.
Eis que se aproxima agora a idade de ouro da polifonia. O país borgonhês é
próspero; os seus músicos, alimentados, por um lado, pela Ars Nova e, por
outro, pela exuberância italiana, são mestres disputados na Europa. A derrota
de Azincourt terá tido, portanto, repercussões profundas, apesar de indiretas, no
plano da música, deslocando o centro da cultura musical e pondo em foco os
compositores borgonheses. Tais fatos são, de resto, apenas um princípio, pois
de 1450 a 1600, aproximadamente, vai ocorrer uma prodigiosa expansão da
música borgonhesa. De todos os lados as grandes igrejas, as cortes principes-
cas, eclesiásticas ou reais, solicitam a presença dos músicos do Norte. Os mais
eminentes têm brilhantes carreiras na Itália, Espanha, Alemanha ou Inglaterra.
Mestres de capela e organistas ensinam a sua arte de instrumentistas ou de
compositores; espalham através da Europa a rica escrita polifônica, que, no
encalço de um Dufay e de um Binchois, elevam a um grau superior de requinte
e de habilidade. Ao período de século e meio durante o qual se exercerá a in-
fluência dos músicos borgonheses corresponderá o apogeu da polifonia.

O imperador Maximiliano dirigindo um concerto


Gravura de Hans Burgkmair, 1516

Estes mestres deixam discípulos, que, por seu turno, ensinarão. Pode dizer-
se que eles dão à Europa a sua linguagem musical unificada, modelo sobre o
qual se edificará a música dos séculos vindouros. É a esta difusão dum estilo é
duma escola à escala européia que a linguagem musical deve a sua universali-
dade: estabelece-se um sistema que se fortifica e completa, para em seguida se
espalhar, ditando leis, impondo convenções que todos reconhecem. Assim, não
se fará mais qualquer tentativa para sair desse sistema (e mesmo os sistemas
que mais tarde se erguerem contra ele terão este facto em consideração). Tal
como uma língua falada, cuja gramática, sintaxe e vocabulário são unanime-
mente admitidos, a fim de que os homens se compreendam, a música alcançou
então a sua fase “adulta”. Quem foram os homens que coroaram esta evolução
de dez séculos, escrevendo as obras mestras da polifonia? Eis alguns: Jean Oc-
keghem, de Termonde (1420-1495); Jacob Obrecht, nascido em Berg-op-
Zoom (1450-1504); Josquin dês Près, nascido no Hainaut (1450-1521);
Henry Isaak, nascido na Bélgica — dizia-se oriundo da Flandres, (1450-1517);
Johannes Tinctoris, nascido em Nivelles (1435-1511); Adrien Willaert (Bruges
ou Roulers, 1480-1562); Cyprien de Rore (Malines, 1516-1565); Jacob Arca-
delt (Flandres, 1514-1560); Roland de Lassus (Mons, 1532-1594); Philippe de
Monte (Malines, 1521-1603); Lambert de Sayve (Liège, 1549-1614).

Estes músicos podem ser considerados


como os mais importantes. Assim o rótulo de
“escola borgonhesa” corresponde a uma reali-
dade e estes polifonistas, a que os musicólo-
gos chamavam anteriormente neerlandeses ou
franco-flamengos, são, sem dúvida alguma,
borgonheses.
A evidência geográfica e a lógica musical
apontam-nos este fato: é como cidadãos de
estados ricos e poderosos, onde a prática da
Josquin des Prés música está largamente difundida - tal como
se difundiu o gosto flamengo de um certo
fausto burguês -, e como representantes de uma civilização material e moral de
incontestável envergadura que estes mestres da música se fazem conhecer e
apreciar. Os belgae ou os fiamminghi, como lhes chamam no estrangeiro, são
muito procurados e a sua carreira internacional é brilhante. Todos eles, de certo
modo, fecundaram a Europa.
Jean Ockeghem foi chantre em Antuérpia e, em seguida, tesoureiro do Mos-
teiro de Saint Martin de Tours. onde permaneceu. Viajou também em Espanha.
Missas, motetos e cauções profanas constituem a sua obra, onde um Dco Gm-
tins a trinta e seis vozes, obra-prima de técnica, ficou célebre.
Jacob Obrecht foi chantre em Hutreque, em Ferrara e em Cambrai. entrando
cm seguida ao serviço do duque de Ferrara.
Josquin dês Près esteve sucessivamente ao serviço dos duques de Borgonha
e da corte dos Sforza, em Milão. Membro da capela pontifical em Roma. visi-
tou Florença, Modena, Nancy, St. Quentin. As suas obras revelam uma origina-
lidade ousada, tanto na escrita, como na expressão.
Henri Isaak dividiu a sua atividade entre a Alemanha e a Itália: foi organista
da capela de Lourenço o Magnífico, em Florença, servindo em seguida Maxi-
miliano I, em Inesbruque, e Frederico o Sábio, em Torgau. Regressou a Floren-
ça, como agente diplomático de Maximiliano. Um pormenor para a “pequena
história”; numa carta datada de Janeiro de 1508, Maquiavel cita ter encontrado
em Constância “Isaak, il Fiammingo”.
Johannes Tinctoris esteve ao serviço do rei de Nápoles, como professor de
Beatriz de Aragão, futura rainha de Hungria, e tradutor francês-italiano. O rei
incumbiu-o de regressar ao Bravante para ali recrutar chantres. Posteriormente
exerceu as funções de mestre dos meninos de coro da Catedral de Chartres.
Adrien Willaert, a quem na Itália se chama frequentemente “Adriano Fiani-
mingo”, teve nesse país uma carreira prestigiosa. Do serviço do duque de Fer-
rara passou para o do arcebispo de Milão, sendo finalmente elevado à dignida-
de excepcional de mestre de capela de São Marcos, em Veneza. Foi aí que ele
escreveu as suas Sumptuosas composições para coro duplo, pois a Igreja de
São Marcos possuía duas tribunas e dois órgãos frente a frente. O estilo “para
coro duplo” vai espalhar-se e enriquecer as solenidades religiosas.
Cyprien de Rore exerceu as funções de chantre em São Marcos, no tempo de
Willaert, e mais tarde junto do duque de Ferrara. Após ter servido o duque Far-
nésio, em Parma, deslocou-se novamente a Veneza, para aí tomar a sucessão de
Willaert, mas regressou a Parma dois anos mais tarde.
Jacob Arcadelt foi mestre de capela na corte de Florença e na Capela Giulia,
em Roma, donde transitou para a capela pontifical. Contratado por Carlos de
Lorena, residiu em Nancy e mais tarde em Paris.
Philippe de Monte, preceptor de música em Nápoles, viveu algum tempo em
Inglaterra. Regressou a Roma, indo em seguida fixar-se em Viena, ao serviço
do imperador Maximiliano II.
Lambert de Sayve, chantre da capela imperial de Viena, acabou os seus dias
como sucessor de Philippe de Monte na mesma capela. Entretanto havia estado
ao serviço do arquiduque Carlos da Áustria.

Roland de Lassus era ainda criança


quando foi levado para a Sicília pelo
vice-rei Fernando de Gonzaga, que ha-
via reparado nos seus excepcionais do-
tes. Foi mais tarde para Milão, Nápoles
e Florença, sendo nomeado director do
coro de São João de Latrão nesta última
cidade. Viajando em Inglaterra e em
França, é chamado a Munique pelo du-
que Alberto da Baviera e ali fixa resi-
dência. Graças à sua influência, a capela
de Munique será uma das mais brilhan-
tes da Europa.
Lassus, o maior de todos estes músi-
cos, é um gênio universal que sintetiza
Roland de Lassus todas as tendências do seu tempo. A sua
vigorosa personalidade, a sua pujança
criadora, tanto lhe inspiram obras de fé
profunda e severa, como outras onde a fantasia, a vivacidade e a audácia bro-
tam com brilho irresistível. A sua existência faustosa, as suas elevadas funções
e a sua cultura fazem dele uma personagem digna de ocupar um lugar de desta-
que entre os príncipes da música. A sua produção é imensa: motetos, salmos,
missas, canções francesas, madrigais italianos, lieder polifônicos alemães, pai-
xões, etc. A sua figura evoca a de um Rubens (que precedeu de quarenta e cin-
co anos), tanto pelos traços de caráter, como pela obra e a situação social.
Seria fastidioso demorar-nos mais na descrição das atividades dos composi-
tores que acabamos de citar: as suas carreiras européias, o nível das suas fun-
ções, chegam amplamente para evidenciar a profunda influência que irradia-
ram. De 1450 e 1600 aproximadamente, o renome dos polifonistas borgonheses
resplandece em toda a Europa com fulgor incomparável e, mercê da sua mes-
tria, a música atinge uma das fases mais elevadas da sua história.

Os gêneros praticados pelos polifonistas

Do século XI ao século XVI deu-se uma evolução considerável, que vai da


simplicidade à complexidade: a escrita musical tornou-se cada vez mais erudi-
ta, a técnica, doravante dominada, desenvolve-se livremente. Com insistência
crescente, a música é chamada a desempenhar o papel de divertimento que a
sociedade da Renascença vai atribuir-lhe. As obras profanas multiplicam-se e,
paralelamente, desenvolvem-se os requintes de escrita, de expressão e de ima-
ginação. A utilização de determinado cromatismo, alguns progressos na nota-
ção, tudo concorre para enriquecer a linguagem musical.
A imitação é, de todos os gêneros, aquele que incontestavelmente oferecerá
mais recursos à música. Simples processo de resposta de um mesmo motivo às
diferentes vozes, a imitação pode assumir os aspectos mais complexos, mais
requintados, e contribuir para edificar estruturas polifônicas de extrema rique-
za. A técnica da imitação vai dar ao tecido polifônico a sua solide/ e a sua uni-
dade. Será utilizada tanto nas obras religiosas como profanas, e atingirá por
vezes tal sobrecarga que a grande polifonia da Renascença aí encontrará a sua
decadência, pela simples razão de que a obra musical se transformará num pre-
texto para eruditos floreados de escrita.
Um exemplo das surpreendentes combinações de gêneros em que se delei-
tavam os compositores é a missa-paródia. Desde o século XV aproximada-
mente e até meados do século XVI, momento em que o Concílio de Trento
proibiu tal prática, espalhou-se o uso de construir missas sobre motivos profa-
nos pré-existentes. As “árias em voga”, como se diria hoje, constituem o mate-
rial temático, isto é o motivo inicial de cada parte da missa, sobre o qual se
desenvolve a polifonia... e o texto religioso. Assim se explica a origem dos
títulos inesperados de certas missas dos séculos XV e XVI: missa La Bataille
(“A Batalha”), segundo a Batalha de Marignan, de Janequin; missa L'Homme
Arme (“O Homem Armado”), de Josquin dês Près e de muitos outros, pois o
tema de L'Homme Arme, muito popular nessa época, foi numerosas vezes a-
proveitado; missa Se Ia Face ay Pale, de Dufay; missa Douce Mèmoire, de
Lassus; missa Ma Maitresse, de Ockeghem, etc.
Omadrigal é o género musical por excelência; disseram-no resultante do
matrimônio entre a melodia italiana e a polifonia do Norte, e se tal fórmula é
atraente não é menos exata. Nascido provavelmente no século XVI, o madrigal
desenvolve-se sobretudo na Itália e na Inglaterra. Na origem, é uma peça a du-
as vozes, de caráter profano. Mas os elementos literário e musical assumem
nele idêntica importância; foi cultivado por Dante, Petrarca e Boccacio. Com-
positores como Arcadelt ou Willaert trabalham o madrigal polifônico recorren-
do ao processo imitativo: repetição dos motivos nas diferentes vozes. Com
Lassus, Luca Marenzio, Palestrina, Monteverdi, Cyprien de Rore, Philippe de
Monte, o madrigal atinge a sua forma última: escrito a quatro, cinco ou seis
vozes, utiliza cromatismos por vezes audaciosos na liberdade expressiva e to-
das as subtilezas do contraponto.
O madrigal aborda assuntos heróicos, pastoris e até libertinos: é estruturado,
quer sob forma simétrica, em imitações estritas, quer sob forma livre no ritmo e
na melodia. Pela sua flexibilidade, que nenhuma outra forma musical havia até
então oferecido aos músicos, assim como pela variedade dos textos sobre os
quais se constrói, ele favorece a imaginação criadora e o lirismo de expressão.
Em suma, o madrigal contribui durante cerca de dois séculos para o desenvol-
vimento de uma rica literatura lírica, levando simultaneamente a escrita do con-
traponto a uma fase de suprema mestria. Mais adiante veremos que ele será a
origem da ópera.
A canção polifônica francesa, produto da escolástica borgonhesa e de um
espírito de fantasia livre, representa no século XVI o elemento mais atraente da
música. (Não esqueceremos alguns “madrigais alegres” da Renascença italiana,
que praticam igualmente uma fantasia livre do mesmo gênero.) No que respeita
às canções polifônicas francesas, um editor de música, Attaignant, contribuiu
para a sua difusão, publicando numerosas colectâneas durante toda a primeira
metade do século XVI. Estas coletâneas, que foram conservadas, representam
hoje uma mina de ouro para musicólogos e músicos.
Trabalhada a quatro vozes, a canção francesa é frequentemente descritiva; a
sua melodia é flexível e aborda todos os assuntos. Emparceira com o madrigal
italiano ou inglês, e, no momento em que o grande estilo polifônico começa a
estagnar no academismo, ela afirma a vitalidade de uma arte que procura sem-
pre a sua liberdade, insurgindo-se logo que um estilo começa a impor leis sus-
ceptíveis de a represar.
Precisemos que iodos estes gêneros são vocais e que esta polifonia da Re-
nascença exclui praticamente o uso de instrumentos, baseando-se no sistema
chamado a-capela (de capela). Este sistema provém do hábito de cantar na
igreja sem acompanhamento instrumental, que, como elemento profano, era
proibido. A expressão perpetuou-se: um coro a-capela designa presentemente
ioda a espécie de canto de conjunto sem acompanhamento.
Polifonia, Renascença e humanismo

De 1330, data da Ars Nova, a 1600, nascem e desenvolvem-se múltiplos gê-


neros e formas, traduzindo o desejo e a necessidade de novidades que animam
os homens ao sair da Idade Média: a música manifesta as mesmas aspirações
que as outras disciplinas culturais; a audácia do gótico flamejante, com os seus
requintes ornamentais e expressivos, simboliza a polifonia em toda a sua proli-
feração. No momento em que os territórios da cristandade se cobrem de cate-
drais, de palácios e de castelos, a arte musical enriquece-se de vastas composi-
ções polifônicas, cujo caráter monumental responde perfeitamente, tanto no
espírito como na forma, ao ideal dos grandes arquitetos e pintores do tempo.
Bastará, para compreender a que ponto a música permanece ligada ao seu
século, pensar na sociedade da Renascença, nos ricos mercadores, nos burgue-
ses, cujo poderio econômico e social se defronta com o dos reis e príncipes.
Estes vivem faustosamente no seio dos seus domínios e protegem as artes. A-
queles rodeiam-se de um fausto semelhante, contribuem para a prosperidade
das cidades e reúnem nas suas residências as mais belas criações da arte e do
artesanato: trajos, móveis, tapetes, tapeçarias, pratas, louças e roupas, jóias e
quadros, decorações de toda a espécie. Cantores e músicos têm o seu lugar no
seio desta ordem social. Como poderia a música da Renascença, no meio do
esplendor das igrejas e do luxo dos palácios burgueses, ter deixado de assumir
o mesmo caráter de grandiosidade e de opulência?
Talvez seja na Itália que a proliferação artística européia tenha encontrado o
seu centro mais ativo. Podemos, até certo ponto, dissociar o século XVI do
século XV, no sentido em que foi nos anos 1400 (o Quatrocento italiano) que
floresceu uma arte em que os temas profanos são tratados com ousadia; as fon-
tes tradicionais do cristianismo, tão abundante e demoradamente exploradas,
parecem tornar-se menos necessárias para os homens da Renascença, voltados
para outros horizontes, sob a influência progressiva das ideias e dos aconteci-
mentos que transformam o século. O humanismo, essa nova atitude filosófica
que vai modificar a face do mundo, nasce em parte da descoberta da civilização
grega revelada ao Ocidente —e em primeiro lugar à Itália — pelos sábios bi-
zantinos fugindo diante dos Turcos (tomada de Constantinopla por Mohammed
II). A Antiguidade torna-se um tema de inspiração para os artistas e, ao mesmo
tempo, uma espécie de modelo de vida. O homem da Renascença liberta-se de
catorze séculos de docilidade religiosa e de anonimato. Ele entrevê outros des-
tinos; arrastado pelas suas recentes descobertas, sente-se orgulhoso das suas
próprias forças.

A música, divertimento de corte no principio da Renascen-


ça, em Franca (tapeçaria de Gobelins do século XVI)

Algumas datas são o bastante para revelar a vitalidade do século:


1454: Gutenberg faz imprimir o seu primeiro livro em Mogúncia.
1456: reabilitação de Joana d'Arc e, em seguida, reinado de Luís XI.
A França será doravante um estado unificado por uma sólida instituição
monárquica.
1470: a Sorbonne imprime o primeiro livro em França.
1492: Cristóvão Colombo desembarca na América; no mesmo ano, em Es-
panha, os Reis Católicos, Fernando e Isabel, retomam Granada.
Efetivamente, a grande revolução da Renascença pode resumir-se da seguin-
te forma: até ao século XV, o homem dedica-se inteiramente a Deus; nas suas
obras — e sobretudo nas suas obras de arte — ele dirige-se a Deus, pois pintar,
escrever ou tocar são formas diversas de orar, de prestar homenagem à glória
divina, perante a qual o homem manifesta uma humildade tão absoluta que as
suas obras de arte até esse momento são, na sua maioria, anônimas. Em suma,
Deus é o centro do universo para o homem da Idade Média. Pode dizer-se, ao
inverso e esquematizando ligeiramente, que para o homem da Renascença o
centro do universo será o homem. A sua obra representa uma forma de se afir-
mar ele próprio e de cultivar todos os valores humanos. O humanismo vai pro-
vocar — mesmo no campo religioso — a grande florescência dos séculos XV e
XVI e suscitar um mundo onde os artistas exprimem a vida na sua plenitude,
um mundo que parece ter sido criado por e para os artistas. Este facto é o que
melhor define a ruptura com a austeridade, a gravidade, a nobreza, muitas ve-
zes dura, da Idade Média.
Esta inversão dos valores sobre os quais vivia o Ocidente há quinze séculos
marca na realidade o início dos tempos modernos. Este início fixa-se, evidente-
mente, em épocas diferentes, conforme as regiões: mais precoce no Sul da Eu-
ropa, mais tardio no Norte, mas situa-se sempre, nas suas grandes linhas, nesse
momento em que o mundo antigo desaba literalmente, para fazer surgir outro
de que ainda somos os herdeiros, não obstante tudo quanto dele nos separa.
O século XVI vê brilhar o maior esplendor da Renascença: um materialismo
evidente conjuga-se com um gosto pelo fausto e pela grandeza e um sentido
religioso, fervente também, mas renovado por esse mesmo gosto faustoso. É
neste quadro que se inscrevem as opulentas polifonias de um Adrien Willaert,
dos Gabrieli em Veneza, as prodigalidades de um Rolando de Lassus, o radiar
de um Palestrina, cujas obras abandonam toda a rudeza para assumir uma lin-
guagem erudita extremamente subtil.
É ainda necessário notar, para distinguir tudo quanto possa separar a Renas-
cença da Idade Média, que a música medieval é essencialmente escolástica;
não pode pretender igualar o realismo que marca, por exemplo, a pintura, as
letras ou a escultura. Esta escolástica constitui um entrave para os músicos da
Renascença, que empregarão todos os meios para lhe escaparem: flexibilidade
das formas, multiplicação das graduações expressivas, ampliação dos temas de
composição. É o verdadeiro “sentido moderno” da música que a Renascença
vai descobrir, ao dedicar-se a outros alvos para além das eruditas combinações
do contraponto. De acordo com a pertinente observação de Combarieu, a músi-
ca da Renascença descobre que não deve apenas construir, mas também expri-
mir, e é então que começa esta conquista do verdadeiro que ainda hoje não
terminou.
Esta representa, na realidade, toda a evolução e toda a aventura da música.

Na Itália

Se os nomes de um Willaert ou de um Lassus designam os mais ilustres


mestres da escola borgonhesa, o italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina
(1526-1594) é, para a Itália, um valor correspondente: Palestrina foi
efectivamente considerado como o maior músico do século. Em Roma, onde
trabalhou sucessivamente em S. Pedro, S. João de Latrão, na Capela Sistina e
no Oratório de Filipe de Néri, Palestrina será incumbido, como consequência
do Concílio de Trento, de impor à Igreja um canto polifónico tão puro quanto
possível e cujas palavras sejam acessíveis aos fiéis. Esta circunstância, aliada
ao seu temperamento profundo, impregnado de gravidade, levá-lo-á a escrever
obras (mais de cem missas) cuja perfeição nunca foi ultrapassada. Pelo
equilíbrio admirável do sentimento e da forma, pela exata flexibilidade da es-
crita, pela comovente nobreza do lirismo, Palestrina deu à polifonia vocal o seu
máximo fulgor. Este compositor personifica a ordem soberana da Renascença.
Enquanto Palestrina atinge o cume da sua carreira, alguns compositores de-
dicam-se mais particularmente à música profana e cultivam o madrigal. É o
caso de Luca Marenzio (1553-1599), familiar dos príncipes e das cortes, espíri-
to aristocrático, que leva o madrigal polifônico ao seu apogeu, imprimindo-lhe
alegria e fantasia. Diz-se que Palestrina não gostava dele, considerando-o, sem
dúvida, como um músico frívolo. Mas dentro dos limites do gênero que pratica,
Marenzio é um mestre.
O padre Orazio Vecchi (1550-1605) tornou-se famoso pelos seus numerosos
livros de madrigais e de “diálogos”, nos quais pretendeu sobretudo divertir, de
forma que as suas obras religiosas passaram para segundo plano. Pelas suas
comédias madrigalescas, em que se exprime um realismo popular, pelas suas
canzonnette, fantasias, serenatas, e diálogos, Vecchi contribuiu para libertar o
estilo polifônico do seu academismo e da rigidez da sua escrita de imitações. A
sua obra, onde já se encontram algumas verdadeiras pequenas comédias musi-
cais (como, por exemplo, o Amfiparnasso), prepara o aparecimento da ópera.

Dança de corte, acompanhada de viola e alaúde.


(Tabuleiro de parturiente, primeira metade do século XV)
Anjos músicos (órgão pneumático, harpa portátil e viola).
Pormenor do triplico de Najéra, de Hans Memling, século XV

A Coroação da Virgem, por Juan de Sevilla – Seculo XV


Pormenor de “A natividade” , de Piero della Francesca:
tocadora de alaúde e cantoras ( século XV)
A Virgem e o Menino, Sasseta, Seculo XV
Em contrapartida, Cláudio Merulo (1533-1604) é um compositor inteira-
mente dedicado ao órgão, para o qual escreveu páginas esplêndidas: toccatas,
canzone e ricercari.
Os Gabrieli, Andrea (1502-1586) e o seu sobrinho Giovanni (1557-1612),
que ocupam os órgãos de São Marcos depois de Willaert, são os dois represen-
tantes mais brilhantes da escola veneziana. O esplendor formal e expressivo
das suas obras produziu profunda impressão em toda a Europa. A música ins-
trumental destes compositores, assim como as suas polifonias sacras, manifes-
tam idêntico carácter de intensidade de sentimentos, de nobreza, de originali-
dade e de riqueza técnica.

Em França

O brilho da Renascença italiana vai produzir profunda impressão no rei


Francisco I, que, a despeito das suas infrutíferas campanhas além dos Alpes,
fica seduzido pela intensa vida artística e intelectual da Península. Ao regressar
a França, este rei levará com ele o espírito da Renascença e convidará para a
sua corte alguns dos mais famosos pintores de então, nomeadamente Vinci, que
viveu em Amboise. Além disso, Francisco I vai lutar pessoalmente em favor
dos sábios e dos artistas, sempre perseguidos pela má vontade dos doutores
formados pela Sorbonne (os sorboniqueurs, cuja rigidez escolástica foi escar-
necida por Rabelais).
A vida de corte em França atravessava então um período áureo; espetáculos,
cantos e danças sucedem-se, inspirados na sua maioria pela Itália, nomeada-
mente os bailados, as mascaradas e as cenas cômicas. Fontainebleau é o ponto
de reunião de nobres e grandes senhores, que vivem eles próprios rodeados de
artistas e de humanistas nos seus castelos, que já não são as sombrias fortalezas
de outrora, 'mas se transformaram pouco a pouco em residências acolhedoras.
A par dos mestres borgonheses, os músicos franceses introduzem fantasia e
novidade na música profana. Clément Janequin, um dos mais bem dotados,
dedica-se a este gênero de música e enriquece-o com invenções surpreenden-
tes. Nascido por volta de 1480 e falecido cerca de 1560, Janequin personifica
verdadeiramente a canção francesa da Renascença; as suas polifonias vocais,
de uma virtuosidade magistral, manifestam um espírito malicioso que se deleita
a evocar em páginas famosas (Cris de Paris, Bataille de Marignan, Chant dês
Oiseaux, Caquet de Femmes), assuntos que à primeira vista parecem ser muito
pouco “musicais”; mas o seu bom gosto, o seu sentido descritivo, a sua ciência
dos efeitos, fazem destas peças pequenas obras-primas, onde se passa da ironia
ao drama, numa sucessão de infinitas graduações de sentimento.
Farândola de pastores – fim do século XV

Claude, o Jovem (1528-1600), torna a melodia mais flexível e liberta-se do


estilo imitativo demasiado rigoroso. Guillaumc Costeley (1531-1606) destaca-
se pelas suas audácias e o seu requinte. Uma das suas canções ficou célebre: Je
Voy de Glissantes Eaux.
Foi sem dúvida Claude, o Jovem, quem tirou maior partido das teorias da
“música medida à antiga”, que apareciam, em 1571, na Academia de Música e
Poesia fundada pelo poeta Antoine de Baif. Este poeta, querendo fazer reviver
a união destas duas artes à maneira dos antigos, vai até ao ponto de tentar a
união do drama, da dança, da poesia e da música; introduz na poesia a notação
da quantidade rítmica, oponível à simples escansão, e que poderia chamar-se
igualmente “graduação rítmica”. A sua iniciativa, bem como os seus poemas,
apesar de uma sistematização por vezes excessiva, exerceram grande influência
nos compositores franceses, pois a sua “música medida à antiga” encontra-se
na origem do ritmo geral da música francesa, até à canção de corte e ao bailado
do século XVII.
Claudin de Sermisy (c.1490-1562), compositor extremamente sedutor, divi-
de-se entre a música religiosa e a música profana. Mais inclinado para os temas
sérios, Sermisy, ao inverso de Janequim, não se ocupa de canções para acom-
panhar as libações nem de canções libertinas. Nas suas composições profanas
trata os temas líricos (canções francesas); em matéria religiosa, goza de uma
brilhante reputação na Europa.
De Passereau, quase desconhecido (primeira metade do século xvi), ficou-
nos uma encantadora canção: Il Est Bei et Bon. O seu estilo aproxima-se do de
Janequim.
Mas a música erudita e aristocrática cede por vezes o passo à canção e à
dança de essência popular; em França, por exemplo, a bourrée, a galharda e a
farândola tomam o seu lugar ao lado da pavana, da forlana e da sarabanda,
danças das cortes reais e principescas. E, para voltarmos a Francisco I, citemos
aqui o nome de Claude Gervaise, que se supõe ter sido violinista ao seu serviço
e que, entre 1550 e 1555, publicou vários livros de danceries (danças), pava-
nas, galhardas, alle-mandes, bransles de Borgonha, da Champanha, de Poitou,
etc. (O bransle é uma basse danse, isto é uma dança em que se caminha ou
desliza, por oposição à danse sautée. Esta última é popular, enquanto a outra é
aristocrática.) As danceries de Gervaise, escritas para diversos instrumentos,
fornecem-nos preciosas indicações, tanto sobre os divertimentos de corte no sé-
culo XVI, como sobre a intrusão da música popular na música erudita. Estas
danceries formam o embrião da “suite de danças”, que se tornará na “suite”
instrumental, a qual, por sua vez, dará origem ao “concerto grosso” e, final-
mente, no século XVIII, à sinfonia. Não deixaremos a França sem mencionar
outros músicos que lhe estão ligados, a despeito da sua arte permanecer borgo-
nhesa: Jacob Arcadelt, de quem já falámos; Nicolas Gombert (c. 1500-1556),
possivelmente discípulo de Janequin, dedicado ao grande estilo clássico. Tho-
mas Créquillon (falec. c. 1557), entre Josquin dês Près e Lassus, é um dos mais
hábeis representantes do estilo imitativo. A sua música é sobretudo religiosa. E,
finalmente, evoquemos esses escritores que fizeram a grandeza da Renascença
francesa: Rabelais, bardo do individualismo e da liberdade, Montaigne, pensa-
dor ousado e profético, Ronsard e Joachim du Bellay, poetas que fizeram flo-
rescer a grande língua francesa.

Na Inglaterra

A Inglaterra de Isabel I conheceu, no domínio da música, uma espécie de


idade de ouro, que corresponde à grandeza do reinado noutros setores; infeliz-
mente, os historiadores esquecem-se regularmente de mencionar a atividade
musical de uma época, mesmo quando evocam as artes em geral. Ora seria
injusto ignorar os virginalistas (brilhante escola de compositores que escreve-
ram para o virginal), os madrigalistas, os compositores religiosos, que, no de-
curso de todo o século XVI inglês, ilustram uma arte onde se associam a graça,
a majestade, a riqueza e a eloquência.
Recordemos rapidamente as fases da música na Inglaterra: John de Garlan-
de, nascido por volta de 1190, veio para Paris e aqui publicou o tratado De Mu-
sica Mensurabili (“Da Música Medida”), participando assim nos primeiros
passos da polifonia e nos ensaios que lhe estão ligados. Em meados do século
XIII (provavelmente por volta de 1240), aparece uma peça polifónica tão erudi-
ta, requintada e bela, que permaneceu na história como testemunho da aptidão
dos músicos ingleses e como prova do seu perfeito conhecimento no que res-
peita a um estilo completamente novo praticado no continente. Este cânone
duplo a seis vozes, Summer is i-cumen (“O Verão Está a Chegar;”), é de autor
desconhecido. Em seguida, destaca-se a forte personalidade de John Dunstable
(por volta de 1379-1453), que, depois de Azincourt, veio para França ao servi-
ço do duque de Bedford, e certamente influenciou os músicos do seu tempo
pela sua ciência e originalidade, às quais se aliavam processos de escrita mais
flexíveis do que a severa Ars Nova. Efectivamente, o gymel inglês (que corres-
ponde ao organum europeu de século XI) admitia os intervalos de terceiras e
de sextas, muito mais suaves ao ouvido do que as quartas e quintas, que, muito
curiosamente, eram prescritas durante toda a Idade Média como sendo os úni-
cos intervalos consonantes. Estas terceiras e sextas reencontram-se nas obras
de Dunstable, cujas harmonias e arabescos melódicos são particularmente se-
dutores. É um facto significativo que Johannes Tinctoris, teórico e compositor
flamengo já anteriormente citado, tenha apreciado Dunstable nos seguintes
termos: “Dunstable é o iniciador da escola inglesa, fundamento e origem da
arte nova, que ultrapassa tudo quanto em música possamos sonhar.” Podemos,
portanto, admitir como certo, a despeito da ausência de documentos sobre este
período, que, na Idade Média, a Inglaterra já possuía uma boa civilização mu-
sical, a qual prosseguirá até Purcell, no século XVII, mas com venturas diver-
sas.
Finalmente, sob o reinado de Isabel, aparece um grupo muito brilhante de
compositores: Thomas Tallis (cerca de 1510-1595), um dos mais prestigiosos,
distingue-se sobretudo na música religiosa; William Byrd (1543-1623), prote-
gido pela rainha a despeito de ser católico; John Dowland (1562-1626), a quem
chamaram o maior dos petits-maitres 1, escreveu páginas encantadoras, sobre-
tudo para o alaúde; John Buli (1563-1628), grande virtuoso do órgão e do vir-
ginal, será organista da Catedral de Antuérpia. Citemos ainda: Giles Farnaby
(cerca de 1560-1600), virginalista cheio de fantasia e de sedução; John Wilbye
(1574-638), compositor de madrigais, espírito simultaneamente sensível, bri-
lhante e capaz de grandeza; O. Gibbons (1583-1625), que se distingue, princi-
palmente, na música religiosa; Thomas Weelkes (1575-623), outro madrigalis-
ta, cuja obra se revela cheia de inovações e audácias.
Todos estes músicos participam, de resto, na extraordinária vitalidade inte-
lectual do século pela diversidade do seu talento.

Em Portugal

A Ars Nova em Portugal teve o seu mais brilhante representante na persona-


lidade de Damião de Gois (1502-1574). historiador, humanista e compositor.
Muito viajado, familiarizara-se com as técnicas dos principais centros musicais
europeus do seu tempo, sendo autor de canções e motetos, um dos quais, a 3
vozes, se tornou então famoso.
As formas da balada, do cânone, do rondo e do vilancico também gozaram
de grande popularidade, transformando-se este último no madrigal, ao qual
permanecem ligados, entre outros, os nomes de Marques Lésbio (1639-1709),
um dos melhores contrapontistas do seu tempo, e de frei Francisco Santiago
(falecido em 1646), autor fecundo, que, além de muitas missas, salmos, respon-
sórios e motetos, escreveu 538 vilancicos.
Não devemos deixar de referir a escola de guitarra em Coimbra, no século
XVI. A forma então ali praticada para este instrumento era a variação sobre
temas de danças ibéricas, tais como a passacalle espanhola ou a chacota portu-
guesa.
O período de maior atividade polifônica em Portugal situa-se entre o fim do
século XVI e a primeira metade do século XVII, em que se evidenciaram nu-
merosos polifonistas dedicados ao estilo imitativo a-capela, tais como: Cosme

1
Há aqui um jogo de palavras intraduzível em português, pois a expressão petit-maitre, que
literalmente, corresponde a pequeno mestre, significa em francês peralta, janota, etc. (.Y. da T.)
Delgado (segunda metade do século XVI), Manuel Mendes (falecido em 1605),
compositor de corais de sugestiva austeridade, Filipe de Magalhães (fim do
século xvi-1623), o carmelita frei Manuel Cardoso (1570-1650), João Louren-
ço Rebelo (1610-1661), mas o mais notável de todos foi incontestavelmente
Duarte Lobo (1540-1643?), mestre excelente do contraponto e autor de vasta
obra, que compreende numerosos vilancicos, magnificats, missas, motetes e
um salmo a 3 coros e 11 vozes, de grande poder expressivo.

Em Espanha

Em Espanha devemos mencionar o padre Juan dei Enchia (1469-1529), poe-


ta e músico, que escreveu a letra e a música de representações sagradas e de
éclogas. Cristobal Morales (cerca de 1500-1553), o polifonista mais representa-
tivo da sua época, compôs missas e motetos. Mas o maior de todos é incontes-
tavelmente Tomas Luis de Victoria, chamado correntemente Vittoria (cerca de
1548-1611), cuja obra é exclusivamente consagrada à liturgia. Músico cheio de
poder, procurando uma expressão intensa, por vezes austera, Vittoria aparenta-
se — na maioria das suas 180 obras — aos seus contemporâneos Teresa de
Ávila e Juan de La Cruz, tanto pelo lirismo místico e o palpitar ardente de e-
moção, como pelo sentido do trágico e do sublime.
António de Cabezon (1510-1566), familiarizado com as técnicas italiana,
flamenga e francesa, de que tomou conhecimento no decurso das suas viagens,
permanece essencialmente um organista. Aperfeiçoa a escrita instrumental com
tanta ciência e gosto que exerce grande influência na sua época.
Luís de Milão (1561), músico requintado, consagrou-se à técnica da guitar-
ra. Uma palavra a este propósito: a vida musical foi sempre particularmente
rica em Espanha, onde os ritmos e as melodias populares têm um caráter espe-
cífico muito marcado. Da mesma forma, a música erudita, tanto sob o domínio
árabe, como depois da reconquista, distinguir-se-á sempre das outras escolas
européias pela sua exuberância expressiva e ornamental. O canto moçárabe,
utilizado pelos cristãos que viviam em territórios dominados pelo Islão, oferece
um exemplo desta afirmação. O vilancico é uma peça polifônica, inicialmente
um canto estrófico do Natal, que se desenvolverá até se tornar, no século XVII-
I, um conjunto em que intervêm solistas, coros e interlúdios instrumentais. A
vihuela, antepassado da guitarra, de que já falamos, goza de tanta popularidade
em Espanha como o alaúde no Norte. A despeito da voga crescente da guitarra,
conservará o seu prestígio ao longo do século XVI, e as coletâneas para vihuela
de mano (vihuela dedilhada, por oposição às vihuelas de arco ou plectro), pu-
blicadas por Luís de Milão entre 1535 e 1560, comportam trechos de inspira-
ção erudita e popular: vilancicos, romanzas, sonetos, pavanas, etc. Os vihuelis-
tas dão à Espanha um vasto e brilhante repertório. É conveniente fazer notar
que a vihuela e a guitarra existiram simultaneamente durante muitos anos; só
pelos fins do século XVI é que a vihuela desaparecerá pouco a pouco da cena.
Assim, a Renascença espanhola caracteriza-se por uma profusão musical; e
se os compositores ibéricos, que na sua maioria viajaram pela Itália e absorve-
ram as influências conjugadas das escolas borgonhesas e italiana, foram admi-
ráveis polifonistas, souberam ser também grandes líricos, tornando-se frequen-
temente porta-vozes do sentimento popular. Aqui, mais uma vez, misturam-se
os diferentes gêneros: tanto em Vittoria como Greco ou em Zurbarán, tanto em
Teresa de Ávila ou em Juan de La Cruz, como em Cervantes ou Lope de Vega,
encontramos essa exuberância dos sentimentos, essa intensidade do realismo,
esse fervor da inspiração poética que arrebatam o espírito. Deve notar-se que a
música em Espanha nunca cairá numa escolástica abusiva; esta será sempre
dominada pelo fogo de uma eloquência nata.
Da grandeza deste século XVI, a música apenas nos oferece um aspecto,
contudo estreitamente ligado à época, que fervilha de forças novas. Basta evo-
car Ticiano, Miguel Angelo, Vinci, esses arautos das idéias novas, que abrem
de par em par as portas do futuro. Se pensarmos nos seus contemporâneos e
nos seus predecessores, nos poetas, nos pintores ou nos filósofos, em Brueghel,
na Flandres, Ronsard, Rabelais ou Montaigne, em França, Shakespeare, na
Inglaterra, El Greco, em Espanha, encontraremos por todos os lados resplande-
centes manifestações do espírito novo, ou seja do individualismo oposto ao
espírito coletivo da Idade Média. Pela sua poderosa personalidade, todos esses
artistas arrastam a sua época para novas realidades humanas e morais. À parte,
sem que por isso deixe de ser igualmente característico do seu tempo, Jerôme
Bosch, visionário alucinado, liberta com surpreendente violência os terrores, os
pesadelos e as visões do inferno das crenças medievais. É a reação de um espí-
rito que ultrapassou a fase da submissão. No domínio científico, é um Copérni-
co que descobre o movimento dos planetas, e está prestes a surgir o génio de
Galileu.
O universo alarga-se em todas as direções.

Reforma e Contra-Reforma

Século de ouro da civilização espanhola e de grande prosperidade dos Países


Baixos, século de ouro da Inglaterra sob o reinado de Isabel e século de ouro
também da Renascença italiana, sabemos contudo que esse século XVI tam-
bém assistirá a conflitos religiosos cruciantes, que lhe imprimirão a marca dos
seus tumultos, tal como as artes e o pensamento o marcaram com a sua riqueza.
O acontecimento dominante e a promulgação da Reforma, por Lutero, em
1517.
Sem nos alargarmos neste trabalho sobre o seu caráter religioso e político,
verificaremos a profunda perturbação que a Reforma causará nos espíritos,
bem como o estilo que ela vai impor à música de igreja — luterana na Alema-
nha e nos países vizinhos, calvinista em Genebra, em França e na Inglaterra.
Um sopro de austeridade e de purificação espalha-se pela Europa. Lutero
escreve Corais, espécie de cânticos lentos e solenes, cantados a quatro vozes,
em acordes, sem ornamentos (e cuja severa beleza atingirá o seu apogeu com J.
S. Bach). Numerosos músicos adotam por sua vez o coral, que introduz no cul-
to reformado uma liturgia musical pura e grandiosa. Calvino faz cantar os sal-
mos em uníssono e proíbe que a igreja ostente -pinturas, esculturas ou qualquer
pompa exterior. O estilo musical do rito protestante impor-se-á doravante ao
lado do estilo católico romano. Deve observar-se que vários compositores es-
crevem versões polifônicas dos salmos para uso profano, pois a polifonia, ba-
nida da Igreja pela Reforma, continua a viver uma vida intensa e agora profun-
damente enraizada na sociedade.
Johann Walther (1496-1570), amigo de Lutero, compõe ou faz compor inú-
meras obras sob a fornia de corais; Walther pode ser considerado como o mais
eminente dos compositores luteranos.
O salmo protestante é uma paráfrase em língua vulgar dos salmos de David.
Enquanto os católicos os cantam em latim, os protestantes vão cantá-los na lín-
gua do país onde praticam o seu culto. A pedido de Calvino, Clément Marote,
em seguida, Théodore de Bèze, traduzem para francês os cento e cinquenta sal-
mos, numa obra que ficará conhecida pelo nome de Saltério Huguenote.

Numerosos compositores adaptam estes salmos à música, de acordo com a


escrita polifônica; mas a Igreja calvinista não admite o canto em uníssono. O
francês Claude Goudimel (1505-1572) dará duas versões do saltério: uma no
estilo contra: pontístico, a outra no estilo harmônico (em acordes). Será esta
segunda versão, mais próxima das concepções de Calvino, que se imporá.
Os rápidos progressos do movimento da Reforma levam a Igreja Católica a
tomar medidas enérgicas para resistir ao cisma; criam-se ordens novas, entre
estas a dos Jesuítas, verdadeiros soldados de Deus. Nascem duas instituições: a
Inquisição, que exercerá terríveis repressões, e a congregação do índex, dedi-
cada à defesa da doutrina católica. Finalmente, um concílio reúne todos os re-
presentantes da Igreja na cidade de Trento. Esse Concílio de Trento, que durará
de 1545 a 1563, terá como consequência a reorganização total da vida interna
da Igreja e a consolidação da sua doutrina. O movimento de Contra-Reforma,
iniciado desse modo cerca de vinte anos após a Reforma, terá também conside-
ráveis repercussões no domínio artístico. Perante a austeridade da Reforma,
esse movimento ergue um conjunto de crenças que já não são sombrias, mas
sim reconfortantes (culto aã Virgem e dos santos, verdadeira presença de Cristo
na eucaristia, etc.), e atinge uma humanização da religião que comunicará aos
crentes uma espécie de júbilo, um sentimento de renovação. A Contra-Reforma
provoca uma verdadeira explosão de alegria; os aspectos mais espetaculares e
mais tangíveis da religião são postos em evidência; cerimônias e manifestações
grandiosas, imagens sagradas, culto do Sagrado Coração de Jesus, tudo isto se
opõe ao rigor protestante e manifesta-se no domínio artístico por uma liberta-
ção de forças novas, que irão glorificar e magnificar a religião. O espírito da
Contra-Reforma vai dar origem ao barroco. Chegamos ao fim do século XVI;
uma nova geração de artistas começa a abandonar a ordem e a harmonia da
Renascença, para exprimir mais liberdade, mais realismo, mais “autenticida-
de”, como hoje diríamos.
Se colocarmos a música neste movimento geral das idéias, compreendere-
mos melhor a sua evolução. O desabrochar da Renascença conduziu os músi-
cos a uma espécie de ponto de equilíbrio supremo, que alcança todos os apo-
geus de uma época e que se conserva milagrosamente durante certo tempo,
mais ou menos breve. No que respeita à polifonia, pode dizer-se que ela viveu
as suas horas mais gloriosas na segunda metade do século XVI. À medida que
os anos passam, vamos vê-la enterrar-se pouco a pouco numa escolástica tão
erudita que acabará por se tornar confusa, obscura, esotérica. Vítima de uma
espécie de orgulho do seu próprio poder, ela concede o triunfo aos “fortes em
tema”, que se entregam a jogos subtis de escrita; mas esta arte de retóricos per-
de progressivamente todo o contacto com a realidade. Cai finalmente na deca-
dência e cederá amanhã perante o impulso irresistível das duas grandes cria-
ções estéticas do século XVII: o barroco e a ópera.
Não esqueçamos finalmente que todos os progressos introduzidos na lin-
guagem musical, desde a Idade Média à Renascença, conduziram a uma con-
vergência na aplicação dos princípios. Foi assim que, pouco a pouco, se forjou
uma linguagem que transpôs as fronteiras: ao atingir o apogeu da Renascença,
a música (e é este fato que lhe dará força) tornou-se européia; quer se estude
música em italiano, alemão, francês, inglês ou espanhol, observam-se as mes-
mas regras, as mesmas convenções. Paralelamente à Europa do pensamento
literário e filosófico, existe uma Europa musical cosmopolita, cuja importância
não poderia ser subestimada sem injustiça. Pois as grandes viagens, o incessan-
te intercâmbio de artistas e de intelectuais, contribuem para afirmar um espírito
europeu que então parecia natural, já que a Europa era uma realidade psicoló-
gica. A era dos grandes nacionalismos destruiu esta ordem, que o nosso século
procura reconstituir, a fim de tentar reencontrar esse “pensamento europeu”
altamente civilizado e que produziu frutos tão admiráveis.
VI - ADVENTO DO BARROCO

O ano de 1600 é importante na história da música: o movimento de idéias,


que se preparava aqui e ali desde há cerca de um quarto de século, define-se e
manifesta subitamente a expressão justa que procurava. É o rompimento, nítido
desta vez, com o estilo polifônico, pelo aparecimento de um estilo novo: a me-
lodia acompanhada, a que costuma chamar-se “o reinado do baixo contínuo”.
Estas duas expressões: melodia acompanhada e baixo contínuo, que ao leigo
podem parecer puramente técnicas, designam na realidade uma estética que vai
ditar leis a século e meio de criação musical. São apenas a definição, em ter-
mos profissionais, de um fenômeno que, por volta de 1600, vai perturbar a mú-
sica: o advento do barroco. Explicá-las-emos mais adiante.
A vida da arte desenrola-se em ciclos que partem de um estado primitivo e,
através de uma sucessão de transformações, tendem para um ideal de perfeição
clássica. Esse classicismo, uma vez atingido, conduzirá por sua vez à decadên-
cia, da qual nascerá um novo estilo. É este fenômeno que observamos na músi-
ca, onde, mais do eme em qualquer outra arte, a técnica tem sempre ameaçado
asfixiar a expressão. Em consequência, a música nunca se fixa no seio de uma
ordem ou linguagem estabelecidas, pois a liberdade de expressão que ela rei-
vindica encontra-se perpetuamente entravada por leis de escrita que progressi-
vamente a enclausuram, até que, finalmente, ela se revolta e adota uma nova
liberdade, uma nova “desordem fecunda” que a salvará do academismo. Já
vimos, desde a Ars Nova, a evolução deste processo, que representa a luta do
espírito e da matéria. A matéria é perigosa para a música: deve estar presente
sem nunca se fazer sentir. Esta lei é válida em todas as épocas e quaisquer que
sejam os estilos: verifica-se na mestria de um Palestrina ou de um Alban Berg,
manejando formas de uma rigorosa exigência técnica a quatrocentos anos de
distância e conferindo-lhes a aparência da mais absoluta liberdade.
O pedantismo escolástico existiu sempre e foi contra ele que sempre lutaram
os verdadeiros criadores. É contra ele que lutam os músicos e os humanistas
dos últimos anos do século XVI, para tentarem novamente a “conquista do
verdadeiro”, quase asfixiado sob uma forma convencional, que apenas se preo-
cupa com a sua própria perfeição. Não são todas as grandes páginas polifônicas
dessa época infalivelmente construídas sobre o processo intangível da imita-
ção? É impossível ouvir dois compassos de qualquer trecho sem ver surgir,
contra toda a verosimilhança, as respostas sucessivas do primeiro motivo nas
diferentes vozes, de forma que o trecho se estrutura sempre exatamente da
mesma forma. É impossível que tais composições possam exprimir o sentimen-
to individual, por exemplo, uma vez que o “eu” é cantado por quatro vozes (ou
mais) e pelo processo imitativo, nenhuma voz podendo destacar-se isolada da
apertada trama da polifonia. Esta forma, daí para o futuro cristalizada, perfeito
exemplo de habilidade, amostra de virtuosidade de um estilo que alcançou o
mais alto nível da sua evolução, torna-se banal, monótona, perde toda a verda-
de humana. Os eruditos deleitam-se em combinações cada vez mais extraordi-
nárias do contraponto, tão complicadas que agora apenas servem para leitura. E
a própria música é assim espoliada do que lhe é devido... Este fato é bem evi-
dente, pois a revolução vem precisamente do interior: por outras palavras, são
os maiores músicos da época, um Lassus, um Monteverdi, um Marenzio e ou-
tros, que, pelo caminho indireto do madrigal, introduzem na polifonia algumas
liberdades de escrita que rompem a severidade acadêmica (os madrigalismos),
algumas audácias, como a de confiar à voz superior (o soprano) um canto que
exprime o sentimento individual, enquanto as três vozes restantes em breve
parecerão apenas acompanhar o solista. Tais liberdades e flexibilidades repre-
sentam o fermento de desagregação do edifício polifônico, que, tanto no senti-
do próprio como no figurado, vai desaparecer, porque os espíritos, aventuran-
do-se para além das fronteiras conhecidas, vão partir em busca de uma nova
verdade.
A Itália, que devolveu à Europa o que a Europa lhe havia dado (uma arte po-
lifônica magistral) acrescido da sua própria riqueza (o lirismo, a flexibilidade
de expressão), a Itália, que incontestavelmente se encontrou no centro espiritu-
al da Renascença, vê manifestarem-se as primeiras e mais férteis impaciências
de uma geração que pretende romper com as leias severas dos (músicos do
Norte, graças às quais ela criou verdadeiras jóias, mas que lhe parecem, contu-
do, asfixiantes... E o poder ofensivo da Contra-Reforma exerce ele também a
sua influência, no sentido de que a arte da Renascença é pouco a pouco consi-
derada como ultrapassada, pertencendo a uma época que tudo naquele momen-
to renega.
E então que vai nascer esse movimento tumultuoso que vivifica toda a histó-
ria da música: o barroco. Simultaneamente, o desejo de renovação, a necessi-
dade de uma música que “represente” com realismo os sentimentos humanos1,
inspira um gênero novo, onde a vontade e o acaso se conjugaram, e que vai
ocupar um lugar imenso na vida musical: a ópera.
O advento do barroco e da ópera são os dois acontecimentos essenciais da
música no século XVII; são o bastante para modificar a face do mundo, do
mundo musical evidentemente. A juventude triunfante destes dois elementos
vai em breve fazer parecer arcaica toda a arte da Renascença, e a música inteira
seguirá pelos mesmos caminhos onde eles avançam a largos passos.

A explosão libertadora

O barroco é uma grande explosão libertadora; se, por um lado, representa a


desagregação das formas legadas pela Renascença, por outro é também uma
arte do ornamento e do movimento, a arte do poder e da riqueza. O barroco é
profusão, virtuosidade, grandeza e frequentemente grandiloquência. Opõe-se
totalmente ao classicismo, no sentido em que as linhas direitas tornam-se cur-
vas, a serenidade dá lugar à intensidade, a moderação transforma-se em trans-
bordamento, em suma, o barroco representa exatamente o oposto do que o pre-
cedeu. O artista do século XVI sujeita a sua fantasia a uma forma; o do século
XVII sujeita a forma à sua fantasia. O classicismo define-se pela aceitação de
uma ordem estética; o barroco improvisa, cria formas inesperadas e afirma a
preeminência do impulso humano sobre a regra abstrata que subjuga a obra.
Se observarmos todas as grandes criações barrocas das artes plásticas, não
será difícil estabelecer um paralelo com a música e verificar que a criação mu-
sical do século XVII é barroca pelas mesmas razões e segundo os mesmos
princípios: a linha melódica inesperada, quebrada, caprichosa (a que vai provo-
car a grande literatura instrumental dos virtuoses), o poder expressivo aliado ao
gosto pelo ornamento, o emprego dos contrastes de volumes, de relevos colori-
dos (o diálogo solista-orquestra, que amplifica o estilo decorativo e conduzirá
ao grande concerto), os arabescos flexíveis do canto ou do instrumento — em

1
A palavra ficou no vocabulário musicológico: stile rapprasen-tativo, estilo representativo dos sentimentos.
resumo, a intensidade de expressão aliada à turbulência da decoração—, todos
estes elementos constituem a música barroca.

O bailado As Fadas das Florestas de Saint-Germain,


exibido no Louvre em 1625: instrumentistas do
Grande Ballet, espanhóis e instrumentistas campestres.
A efervescência ornamental e expressiva que caracteriza o barroco plástico
encontra-se assim transposta paia a música. O que faz a grandeza de uma ópera
de Monteverdi é o espírito barroco: grandes arabescos melódicos, contrastes
imprevistos, jorros súbitos, grande declamação lírica. Os elementos que, num
concerto de Corelli ou de Vivaldi, definem o barroco são tambem a oposição
dos grupos, o sentido do relevo, do volume, da perspectiva, os contrastes
dinâmicos das graduações, a vitalidade do ritmo e, finalmente, a escrita fluente,
nervosa, decorativa, enchendo o espaço de uma infinidade de trajectórias.
O barroco permitiu o desabrochar de uma música inteiramente renovada,
tanto no espírito, como na forma. Por outro lado, torna-se responsável por cer-
tos excessos que continha em potência e de que nem a ópera nem a música
instrumental jamais poderão libertar-se completamente, de tal forma eram po-
derosas as suas seduções: os excessos da virtuosidade. Do bel canto — virtuo-
sidade vocal — à virtuosidade instrumental, vivemos desde há cerca de quatro
séculos a era da virtuosidade. Numerosas vezes combatida, por vezes rejeitada
por compositores que introduzem na música outros valores, ela voltou sempre à
superfície, porque o seu poder é irresistível. Ela faz parte das grandes conquis-
tas humanas; a virtuosidade do arquiteto ou do pintor, a do cirurgião, do enge-
nheiro ou do técnico é da mesma ordem: significa a vitória sobre a matéria. No
que respeita à música, compete-nos fixar limites a essa virtuosidade, de forma a
que as suas ofensivas regulares nunca consigam asfixiar a arte.
Eis, portanto, o barroco, que vai reinar sobre a música de 1600 a 1750 apro-
ximadamente. Podemos considerar três estados sucessivos, que definem bas-
tante bem a sua evolução: primeiro um “barroco primitivo”, que precede os
anos 1600 e se revela durante o último terço do século: é a época das grandes
manifestações de liberdade de que já falamos e que abalam o edifício polifôni-
co. Músicos tais como Orazio Vecchi, Cláudio Merulo, Giovanni Gabrieli e Jan
Pieter Sweelinck manifestam por essa forma a sua fantasia criadora, mesmo a
despeito de uma escolástica por vezes severa.
O “pleno barroco” cobre aproximadamente todo o século XVII: é neste pe-
ríodo que se situa o desabrochar total do género, com as grandes óperas mito-
lógicas de cenários faustosos e imponentes (Lully) ou conflitos psicológicos
(Monteverdi), com os concerti grossi (Corelli) e as sonatas e tocatas instru-
mentais (Frescobaldi, Couperin).
O “barroco tardio”, a que poderíamos igualmente chamar barroco clássico,
representa a conclusão do gênero que estabelece progressivamente o seu pró-
prio classicismo: as leis da linguagem e da forma obedecem a certos ditames de
ordem e de estrutura, canalizando de certo modo a profusão. Dois grandes gê-
nios porão termo ao barroco, introduzindo-lhe as virtudes conjugadas de uma
inspiração poderosa e de uma arquitetura magistral: Haendel e João Sebastião
Bach.
Apesar de nem todos os ar-
tistas se ligarem necessa-
riamente ao estilo de uma épo-
ca e terem portanto existido
isolados — ou atrasados — ao
longo da história, o fato é que o
barroco abrange praticamente
toda a produção musical dos
séculos XVII e XVIII, pelo
menos até cerca de 1750. Por
outro lado, ele adquire diversas
expressões conforme os países:
luxuriante, apaixonado e fluen-
te na Itália, torna-se teatral,
pomposo, bastante frio em
França, enfático, pesado e sen-
sual na Alemanha, poético e
feérico na Inglaterra, so-
brecarregado de ornamentos
em Espanha e em Portugal.
Mas as suas características
permanecem as mesmas em
toda a parte. O barroco musi- O Músico, gravura do século XVII
cal, demasiado esquecido pelos
historiadores, é uma realidade extremamente rica. Se a música do século XVII
não for integrada no movimento de idéias que nesse momento suscita uma flo-
ração tão opulenta, ela não tem razão de ser. Se não lhe for aplicada a palavra
“barroco”, ela perde o seu significado.
Uma vez alcançado o ponto culminante de meados do século XVIII e pouco depois
de 1750, o estilo barroco começa por seu turno a empastar-se. Reveste-se de tantos
pormenores que estes acabarão por lhe fazer perder o seu verdadeiro caráter; o gosto
pelo ornamento, que já não serve o desejo de alcançar um ideal, conduz ao preciosis-
mo. Os períodos amplos, os grandes voos, são abandonados em proveito de uma forma
que, com demasiada frequência, se revela pré-estabelecida, isto é, acadêmica e pruden-
te. Até as próprias idéias perdem a sua envergadura. A expressão amesquinha-se e
dissolve-se em boniteza, em “estilo galante”. Chegamos ao rococó. A fase do
poder passou, e inicia-se agora um tipo de música amável, pura distração ao
serviço de uma sociedade frívola.
O rococó é a conclusão insípida do barroco e a sua decadência. A audácia e
a aventura desapareceram; os gigantes da música deram lugar a peraltas de
cabeleira empoada. A música tornou-se numa arte “tranquilizadora”, enquanto,
no século anterior, fora concebida para deslumbrar, assustar, subjugar. Este
culto do “lindo” encontra-se, como se sabe, na maioria dos pintores e literatos
da época. E se a música acusa um ligeiro atraso em relação a esta evolução, de
resto já perceptível antes do fim do século, ela será pelo menos, com as outras
artes, a última luz de um século que os acontecimentos de 1789 deitarão por
terra.

A riqueza do século XVII

O reinado de Luís XIV estende-se de 1645 a 1715; em volta do soberano


gravitam Mazarino, Colbert, Louvois. O rei cria a Academia Real de Música.
Anteriormente, Richelieu tinha fundado a Academia Francesa (1635). São Vi-
cente de Paula e São Francisco de Sales, duas grandes figuras da Contra-
Reforma, iluminam o século cristão, enquanto a filosofia se encontra represen-
tada por estes dois pólos do pensamento: Descartes e Pascal. O século literário
conta com Corneille, Racine, Molière, Bossuet, La Rochefoucauld e La
Bruyère, e na pintura temos Claude Gellée, Georges de Ia Tour, Philippe de
Champaigne, Poussin.
Os Holandeses percorrem os mares e conquistam vastas colónias, enquanto
Rembrandt, Vermeer, Ruysdael, Frans Hals evidenciam a vitalidade artística da
nação. Na Inglaterra, os nomes do poeta Milton, do sábio Newton e do
filósofo Locke respondem ao de Purcell.

A Visita, gravura do século XVII


Em Espanha, onde Lope de Vega e Calderón ilustram uma renascença tea-
tral, Velázquez exprime o barroco pictural. Rubens afirma esse mesmo barroco
na Bélgica, enquanto Bernini constrói a colunata e o baldaquino de São Pedro,
em Roma. Borromini, no domínio da arquitetura, e Caravaggio, no da pintura,
assim como os seus contemporâneos, impõem à Itália a sua exuberância.
Jordaens e Van Dyck, Zurbarán ou Ribera, a extraordinária abóbada de San-
to Inácio, em Roma, de Pozzo, os grandes empreendimentos de um Colbert,
abrindo os mares à França, os voos oratórios de Bossuet... De um extremo ao
outro da Europa respondem-se as grandes vozes inspiradas, as ideias audacio-
sas, que, em todos os domínios, exaltam o século, um século de vistas largas.
Fica-se surpreendido perante as transformações que marcam a Europa do sécu-
lo XVII em relação à do século XVI. Determinadas épocas continuam as que as
precederam, outras renegam-nas, mas neste caso dá-se um rompimento total.
Entre o século da Renascença e o do barroco situam-se as reformas religiosas,
as descobertas da ciência e da filosofia, as grandes explorações, um estilo novo
de vida. Só em fins do século XVIII é que se acalmarão as ondas alterosas que
agitaram o mundo e se terminará um ciclo de civilização. A Europa terá pro-
gredido mais no decurso de duzentos anos do que ao longo dos mil e quinhen-
tos precedentes. Mas regressemos agora aos inícios do século xvn, que viram o
advento e a revelação do barroco.

 ópera no século XVII

Por volta de 1600, o conde Bardi reuniu na sua bela residência de Florença
um grupo de humanista trados. A camerata Bardi2 debate muitos assuntos e,
em especial, a arte. Evoca-se detidamente a Grécia Antiga, que simboliza um
ideal de perfeição para os homens da Renascença. No intuito de representar os
grandes temas mitológicos com a maior veracidade possível, o compositor Ja-
copo Peri (1561-1633) propõe aos membros da camerata uma narrativa da his-
tória de Eurídice, que, em vez de ser cantada como um madrigal polifônico,
seria interpretado por cantores solistas, cada um atuando por seu turno e acom-
panhados por um grupo de instrumentos. Os cantores, trajando à antiga, evolu-
cionariam no palco no meio de cenários especialmente concebidos para o efei-
2
Camerata: salão, centro, grupo.
to. Este acontecimento ocorreu em 1600; ao querer ressuscitar a tragédia grega
com os seus coros e orquestra, ao colocar as personagens no centro de uma
ação psicológica que vão representar para o espectador, os Florentinos aca-
bam, sem o saber, de criar um gênero novo: a ópera.
Musicalmente, a revolução assim operada era considerável: a ópera renunci-
ava completamente ao velho estilo. O seu sistema baseava-se unicamente na
melodia cantada por uma só personagem, a quem se confiava a expressão de
todas as graduações do sentimento. O stile recitativo ou stile rapprasentativo
nascia ao mesmo tempo, com o seu realismo psicológico,- e nunca mais aban-
donaria a cena do teatro lírico até aos nossos dias. Se a ópera inicial é indireta-
mente oriunda do. madrigal, pelo fato de ter podido assumir a forma de um
madrigal representado e enfeitado de intermédios e melodias de solistas, nem
por isso deixa de constituir um gênero estético completamente novo.
Ver-se-ao, portanto, obras musicais de vastas proporções, que se desenrolam
como sucessões de monólogos e de diálogos, entrecortados de intervenções de
coros (regresso ao madrigal) que comentam a situação, enquanto o recitativo
dos solistas exprime os seus sentimentos. Para sustentar estes longos
recitativos, os instrumentos (violas, oboés, cravos) tocam alguns acordes que
pontuam o ritmo ou marcam a tensão dramática. Chega-se assim a uma espécie
de síntese da polifonia fortemente aliviada, pela qual o estilo harmónico vai
suceder ao polifónico.
Efetivamente, o emprego do acorde, ao qual se pode dar grande força ex-
pressiva — além do seu eventual papel rítmico — , vai desenvolver a notação
da harmonia, oposta à da polifonia (uma harmonia é um grupo de notas ouvi-
das simultaneamente). A ciência da harmonia, quase ignorada até à Renascen-
ça, vai assumir, a partir do século XVII, uma importância tão considerável, que
substituirá a da polifonia: o estilo harmônico caracterizará a maioria das obras
do clássico século XVIII, do romântico século XIX e do século XX, quando
então se associará ao estilo polifônico, mas dominando-o.
Eis, portanto, o que mais atrás havíamos chamado o reinado da “melodia
acompanhada”. Considerada em relação à extrema riqueza da estrutura polifô-
nica, a melodia acompanhada pode parecer sumária ao ponto de representar um
empobrecimento. Contudo, este empobrecimento, incontestável do ponto de
vista material (a escrita), encontra-se compensado por um enriquecimento não
menos certo do ponto de vista espiritual (a expressão); mercê da “melodia a-
companhada”, os sentimentos vão poder expandir-se livremente por meio de
uma melodia que obedece com flexibilidade às sugestões do texto poético, sem
o entrave de qualquer convenção de escrita a quatro vozes de formas pré-
estabelecidas.
A “melodia acompanhada” volta a encontrar a liberdade expressiva de toda
a música que precedeu a era polifônica: monódia antiga, declamação grega,
canto gregoriano, etc. Mas os cinco séculos de polifonia que a música acaba de
viver enriqueceram-na consideràvelmente; doravante, a “melodia acompanha-
da” conservará a marca do estilo polifônico e harmônico, mesmo se for reduzi-
da a uma síntese, uma simples elipse. No século XVIII, quando Bach, o único
grande polifonista da época, escreve as suas sonatas para um só instrumento,
como o violino ou o violoncelo, notar-se-á que as suas melodias sugerem ao
ouvido uma verdadeira coerência tonal e harmônica: a sua monódia está fir-
memente estabelecida sobre o sistema harmônico.
Embora o nascimento da ópera na Itália — centro da civilização da Renas-
cença — possa parecer natural, é preciso notar que, quer seja ou não coinci-
dência, esse país onde o lirismo é rei ia libertar a música das amarras que a
retinham e permitir-lhe regressar à sua profunda vocação, que é o canto. Sol-
tando assim as rédeas à expressão lírica, a ópera ia simultaneamente provocar o
desabrochar de um gênero e fazer nascer um perigo contido em potência nessa
própria libertação: o bei canto, a embriaguez da virtuosidade. As ofensivas do
bei canto vão doravante suceder-se; a história da ópera será em parte a da luta
entre os partidários de uma arte lírica e os de uma arte ornamental. Sendo a
ópera um espetáculo, a luta estender-se-á ao domínio do palco: representar-se-
ão, por um lado, obras baseadas num argumento psicológico, cuja música evo-
cará em profundidade o desenvolvimento dramático e, por outro, obras basea-
das na atração da encenação e do espetáculo puro, em que a música é utilizada
para embelezar superficialmente essas seduções.
A história da ópera é praticamente uma história italiana; é da Itália que virão
os modelos em que o mundo se inspirará, mesmo para os combater. Depois da
Euridice, de Peri, representada em 1600, e alguns outros ensaios que abriram o
caminho, considera-se geralmente que o verdadeiro ponto de partida . da ópera
foi o Orfeu, de Monteverdi, escrito para o duque de Mântua e representado no
palácio ducal em 1607. O Orfeu é a primeira obra lírica que, de um só golpe,
mercê de uma extraordinária intuição do génio, se eleva aos cumes do realismo
dramático e aos limites da liberdade expressiva. Esta liberdade é a do
“recitativo”, que já não corresponde a qualquer lei de organização sonora, mas,
literalmente, “vai onde o texto o conduz”. O recitativo acusa todas as gradua-
ções expressivas do texto pelos ritmos, os silêncios, as curvas e os
afastamentos melódicos, os efeitos de contraste e de intensidade. Em suma,
este recitativo barroco, estabelecido por Monteverdi, inaugura uma estética
completamente oposta à estética arquitecturada da polifonia. Acompanhado de
acordes, que como já dissemos — têm uma função, ora rítmica, ora expressiva,
ele dá origem ao estilo de “baixo contínuo”, que se repercutirá na música
instrumental e que designa o acompanhamento em acordes de uma melodia
vocal ou instrumental: o cravo e o alaúde (ou órgão, conforme o tipo da obra)
tocam os acordes de suporte, eles próprios por vezes acompanhados por um
baixo de viola.
Pouco a pouco, não só as recitações e árias, mas também os grandes conjun-
tos vocais, serão acompanhados pelo baixo contínuo — chamado igualmente
“baixo cifrado”, porque os acordes tocados pelo instrumentista não são intei-
ramente escritos, mas indicados por cifras. (Conhece-se hoje um sistema aná-
logo, com a notação dos acompanhamentos à guitarra, que deriva de um longo
hábito dos músicos de jazz.)

O exemplo de Monteverdi

Cláudio Monteverdi (1567-1643) escreveu numerosas obras, das quais infe-


lizmente poucas nos ficaram: Orfeu, Ariana, O Coroamento de Papeia, O
Combate de Tancredo e de Clorinda, todas elas tragédias musicais explorando
a fundo as paixões humanas e exprimindo-as com uma prodigiosa intensidade.
O célebre “lamento” de Ariana prefigura a atitude do artista romântico domi-
nado pelas paixões e apenas preocupado com a sua exteriorização (consta que o
músico compôs esta página numa noite, à cabeceira de sua mulher, agonizan-
te). Não obstante ter sido marcada por alguns sucessos, a vida de Monteverdi
não foi feliz: perdeu a mulher e os dois filhos e, a despeito da sua notoriedade,
foi diversas vezes forçado a renunciar a cargos que ambicionava. No plano
musical, é um gênio de grande envergadura: pressentiu tudo quanto o teatro
lírico podia conter; a exaltação de um sentimento romântico, aliado ao estilo
barroco, fez-lhe exprimir as alegrias e as tristezas da humanidade, não só com
rara intensidade, mas ainda com originalidade, nobreza e grandiosidade. As
suas obras são palpitantes de vida. Além disso, Monteverdi compreendeu o
papel da orquestra, confiando aos instrumentos a missão de criar o ambiente no
qual a obra vai desenvolver-se. Dá ao seu conjunto instrumental uma “cor so-
nora” característica da cena tratada e introduz-lhe efeitos dramáticos (tais como
o “tremulo” das cordas). Até meados do século XX, o exemplo de Monteverdi
será retomado e analisado sempre que se tentar definir o teatro lírico.
Observemos que o drama lírico, tal
como e representado no princípio do
século XVII por Monteverdi, Peri e, em
seguida, pelos outros compositores,
Caccini, Landi, Cesti ou Cavalli, reúne
todos os elementos daquilo que hoje se
chama o “espetáculo total”: todas as
artes nele se encontram integradas; o
canto, a dança, o desempenho dos ato-
res, o guarda-roupa, os cenários, a ilu-
minação e, finalmente, a orquestra, par-
ticipara numa realização que, a despeito
de ter o canto como elemento essencial,
se apoia em todas elas e este conjunto
que confere à ópera o seu prestígio, e Monteverdi
podemos imaginar o que devia ter sido a sedução exercida por um tal gênero,
num momento em que constituía a maior distração oferecida ao público. Magi-
a, encanto, realismo transposto para uma obra de arte, deslumbramento das
luzes e dos cenários, engenhos espantosos, histórias romanescas, heróis mito-
lógicos ou humanos, tudo concorria para fascinar o público, tal como hoje su-
cede com o cinema. Pensemos ainda no nível geral de cultura e de informação
desse público e compreenderemos o poder da ópera, assim como as paixões
que ela desencadeou.
A forma adoptada por Monteverdi e os seus contemporâneos, e que estrutura
a ópera desde o seu início, é a do “recitativo e ária”. O princípio é simples: o
recitativo é a acção, o diálogo dos atores; a ária é a paragem da ação e a confi-
dência dos sentimentos que o ator exprime. A ária pode ser cantada por um
solista ou por um duo, um trio, ou qualquer conjunto. Entre estes dois gêneros
situa-se o arioso, combinação do recitativo e da ária, e que geralmente é uma nar-
ração expressiva, de inflexões melódicas sugestivas. Na ópera à italiana, recitati-
vos e árias seguem-se sem paragem, exceto para introduzir um intermédio coreo-
gráfico ou orquestral. Baseada nestes elementos, a ópera vai viver cerca de duzen-
tos anos, não sem algumas modificações, Mas conservando, contudo, o essencial.
Será a mitologia que fornecerá à ópera os seus primeiros temas, de acordo com
as aspirações dos humanistas da Renascença e dos gostos da camerata Bardi em
especial. Tendo as grandes obras iniciais ressuscitado com felicidade as narrações
e os heróis mitológicos, estabelece-se a tradição de recorrer a estes temas e a ópera
mitológica alcançará um sucesso considerável; ao ler os títulos das obras líricas
dos séculos XVII e XVIII, verificamos que este fundo parece inesgotável; permiti-
rá mesmo a evocação de personagens ou acontecimentos contemporâneos, mercê
de uma hábil transposição. Sabe-se que tais transposições permitiram aos escrito-
res dizer na sua época verdades de outra forma inaceitáveis. Seja como for, Orfeu,
Eurídice Apolo, Ulisses, Andrómaca, Perseu, Armida, e tantas outras, contribuem
para alimentar um gênero que parece ter apenas existido para evocar uma antigui-
dade fabulosa. As idéias do momento reencontram-se nestas obras, onde os deuses
e os semideuses assumem figuras humanas e experimentam paixões humanas; a
exploração das almas apaixona o público, assim como os grandes problemas do
destino do homem e as suas relações com a divindade. Esse domínio infinito da
consciência humana, cuja exploração nunca consegue fatigar-nos, é abordado
por meio da transposição mitológica. Sob este ponto de vista, a ópera do século
XVII, e em especial a de Monteverdi, abre a época moderna. É neste aspecto
que sentimos quanto o nosso mundo vive segundo os valores herdados da Re-
nascença italiana, enquanto os da Idade Média nos parecem tão longínquos;
nos primeiros anos de 1600, o público apaixona-se pelas peripécias de um a-
mor ou de um destino trágico, cantadas com realismo violento por um ator que
comunica ao auditório sentimentos transmutados em obra de arte. Este único
fato encerra tudo quanto separa o século XVII das épocas anteriores e tudo
quanto o aproxima de nós.
Solimão, ópera de Bonarelli, representada em Roma em 1632

Vénus Ciumenta, de Sacrati, representada em Veneza em 1643


A ópera veneziana e a napolitana

O destino paradoxal da ópera reside no fato de que o seu advento foi deter-
minado pela necessidade de libertar a música de que, no entanto, ela só sobre-
viveu mercê de múltiplas convenções, de que muitas vezes foi prisioneira. Da-
do que cada arte é uma convenção, a ópera não podia fugir a esta regra; a sua
fraqueza reside no fato de que as suas convenções foram em muitos casos de-
masiado flagrantes: convenções de interpretação cênica e musical, lógica musi-
cal por vezes oposta à lógica psicológica, convenção dos sentimentos estiliza-
dos de forma demasiado sumária, convenção de artifícios (bei canto, bailados)
destruindo a verosimilhança, etc. Vários historiadores da música disseram, com
fundamento, que se a ópera, em vez de ter nascido nos salões dos príncipes
italianos e de ser, de certo modo, o produto de uma fantasia estética, tivesse
surgido da arte popular ou do drama litúrgico teria assumido um aspecto muito
diferente. Efetivamente, a ópera permaneceu um gênero artificial e os seus su-
cessos foram mais devidos ao gênio de alguns compositores do que às virtudes
dos seus princípios.
Seja como for, a atração da ópera é tão intensa que ela fez furor desde o seu
início, espalhando-se por toda a Itália. É Florença que presencia as suas primei-
ras manifestações; mas, com músicos como Francesco Cavalli (1602-1676) e
Marco António Cesti (1618-1669), desenvolve-se um estilo veneziano, onde se
aliam o fausto do espetáculo, a complexidade do enredo e o encanto de uma
música mais amável e sugestiva do que profunda. É em Veneza que, em 1637,
se inaugura pela primeira vez uma sala de teatro destinada ao público. O suces-
so é tal, que em breve esta cidade possuirá sete salas de ópera. A ópera venezi-
ana resplandecerá na Europa durante cerca de um século; as suas qualidades
não devem fazer esquecer que ela contém em germe (e por vezes em flor) vá-
rios defeitos, que mais tarde lhe serão censurados por todos os músicos desejo-
sos de disciplinar a sua negligência ou de corrigir as suas mais absurdas con-
venções.
Mas a ópera evolucionará incessantemente de acordo com os ditames da
moda. E se o bel canto suscita o entusiasmo da multidão, que enche as salas de
espetáculos bem mais no desejo de apreciar a mestria dos virtuosos do que a
beleza pura da música, é preciso não esquecer que este fenômeno não lhe é
particular: os aficionados que sublinham com bravos e apupos as proezas dos
toureiros nas praças espanholas, os conhecedores que aplaudem as séries
impressionantes de jetés-battus ou de fouettés das grandes bailarinas, todos
obedecem a um mesmo conceito do espetáculo, que se confunde com a noção
da proeza. O impulso para o salto à vara, o poder do salto em esqui, a destreza
no lançamento da linha de pesca, todos proporcionam ao espectador a mesma
embriaguez. É por isso que, se é difícil afastar a proeza da cena lírica, é neces-
sário estar vigilante a seu respeito, a fim de evitar que ela se imponha em preju-
ízo dos valores artísticos.
Outro estilo vai desenvolver-se ao mesmo tempo que a ópera veneziana: a
ópera napolitana, revestindo um caráter completamente diferente3. O povo de
Nápoles aprecia a loquacidade, a sátira, o gracejo; a ópera napolitana vai ex-
primir estas características e fá-lo-á especialmente pela pena do mais brilhante
dos representantes do novo estilo: Alessandro Scarlatti (1659-1725), pai de
Domenico, o famoso cravista. Compositor extremamente fecundo, Alessandro
Scarlatti escreveu mais de cem óperas, sem contar as suas obras religiosas. Ti-
nha o talento fácil, mas neste fato residiu exatamente a sua fraqueza, pois pou-
cas das suas obras sobreviveram. Scarlatti impõe-se-nos sobretudo como um
inovador: é ele quem aperfeiçoa o tipo da ária da capo (de repetições) e que
confere à abertura (de início apenas uma simples e sumária introdução) a estru-
tura sinfônica que conservou; deu ao recitativo secco, oposto à ária, a sua for-
ma definitiva. Este recitativo secco, que Mozart utilizará, é uma invenção pre-
ciosa: como o termo sugere, ele evoca o fluir da palavra, pontuada por alguns
acordes breves no cravo; sem qualquer lirismo, ele desenha as inflexões da voz
falada em pequenos arabescos melódicos.
Este realismo, vindo de Nápoles, fazia acompanhar--se por outro realismo: o
dos temas, pois os Napolitanos tinham muito menos tendência para o sublime
do que os seus compatriotas do Norte. Assim, ver-se-ão óperas edificadas sobre
temas mais prosaicos, mesmo quando estes ainda são fornecidos pela história
ou narram um episódio com fundo moral.

3
A ópera napolitana do tipo sério c representada por Francesco Provenzale (1627-1704). que
teve numerosos discípulos e escreveu várias ópera. A sua influência perdurou, mas a história
iria reter de preferência um outro nome tia música napolitana.
Finalmente, a ópera napolitana transporá a distância que separa a" grande
ópera de caráter sério, a opera seria, de um gênero que cativará a atenção e a
preferência da multidão, crian-
do a farsa musical: a opera
buffa.
Tipicamente napolitana, a
opera buffa alcançará um
sucesso universal; o seu rótulo,
tanto podia servir para as
verdadeiras farsas, como para
os temas meio sérios meio
jocosos. Os temas inspiram-se
desta vez na vida quotidiana,
não só dos nobres, mas
também do povo; basta pensar
no “neo-realismo italiano” do
cinema depois de 1945, para
imaginar o que devia ser a
opera buffa por volta de 1680-
1700. Ao lado das grandes
óperas mitológicas, que ora
foram tragédias cantadas, ora
espectáculos faustosos, e cujo
estilo de corte era por vezes um
tanto enfático, a opera buffa
representa uma corrente de ar Saltimbancos venezianas na
fresco e de juventude. Praça de São Marcos (1610)
Os dois gêneros vão dora-
vante coexistir dentro de domínios bem definidos, -cujas fronteiras são respei-
tadas até aos nossos dias. Salientemos aqui que não se deve confundir a opera
buffa com a ópera cômica; sendo a palavra “cômica” empregada no sentido de
“comédia”, a ópera cômica é uma obra onde alterna o canto e a palavra (a ópe-
ra séria poderia ser chamada ópera lírica).
Com as duas grandes escolas de Veneza e de Nápoles, a Itália deu à Europa
um teatro lírico de extraordinária vitalidade. O prestígio dos músicos italianos é
tão grande que são convidados para o estrangeiro. Assim sucede com Cavalli,
que o cardeal Mazarino chama a Paris em 1660, por ocasião do casamento de
Luís XIV, no intuito de oferecer ao auditório, como um grande acontecimento,
a representação de uma das suas óperas. Todas as cidades italianas têm o seu
teatro de ópera, e a multidão, de todos os graus da escala social, apaixona-se
por estes espetáculos. Semelhante situação incita os músicos a escrever abun-
dantemente; na realidade, deve ter-se consumido uma quantidade de obras de
circunstância, cujos títulos e nomes de autores não chegaram até nós. Mas po-
demos adivinhar o poder que a ópera exerceu desde a sua origem sobre o espí-
rito de um público muito vasto, sobre a sua sensibilidade, os seus gostos e até
as suas opiniões sociais e políticas. Sabemos que a cena lírica foi por vezes um
local predileto de polêmicas e que a censura dos reis e os príncipes a fulminou
com frequência.

A ópera de Lully

Enquanto conquista a Itália, a ópera espalha-se também no estrangeiro. Em


França, ela terá um destino singular, pois será um italiano que terá a oportuni-
dade de criar o estilo francês. O público francês, de acordo, neste aspecto, com
o seu próprio gênio, era mais sensível às situações trágicas exprimidas por
grandes comediantes do que cantadas por grandes tenores, e assim não tinha
seguido espontaneamente a revolução que se produzira na Itália no princípio do
século. Mas quando as companhias italianas (chamadas em duas ocasiões por
Mazarino: em 1646, para o Carnaval, e mais tarde aquando do casamento do
rei, como já mencionamos) vieram representar em Paris, o êxito foi extraordi-
nário. A qualidade das vozes, a prodigiosa técnica vocal dos cantores, o brilho
da encenação e o encanto da música atuaram poderosamente sobre os Parisien-
ses. A corte apaixona-se, e Luís XIV não tinha esperado por este acontecimen-
to para desejar que a música tomasse um lugar condigno em Versalhes. Um
homem vai contribuir de forma brilhantíssima para a grandeza que o rei pre-
tende impor: trata-se de Jean-Baptiste Lully.
Filho de um moleiro florentino, ganhando alguns tostões como saltimbanco
nos palcos de feira, Lully (1632-1687) atraiu um dia a atenção do cavaleiro de
Lorena, que o levou para França e
o introduziu na corte.
Perfeitamente dotado para a
música, mas sabendo também
desempenhar o papel de hábil
cortesão (até na ausência de
escrúpulos), Lully torna-se in-
dispensável. Cativando,
divertindo, adivinhando os desejos
do rei, Lully consegue obter tudo
quanto pede. Pouco a pouco,
através de uma carreira
prestigiosa, se bem que nem
sempre edificante, consegue ser
nomeado superintendente da
música do rei e assumir na
realidade um posto de comando
supremo. Doravante, nada se fará
no domínio da música sem pri-
meiro ter sido aprovado por Lully
e pelo rei.
O florentino saberá manter na
sombra os músicos de talento
Trajo do Rei-Sol no Ballet de Ia Nuit.
susceptíveis de o prejudicar e
montado por Lully em 1663
provocar os êxitos ou fracassos
que mais lhe convierem. A ação de Lully no plano musical é, contudo,
considerável: para servir de divertimento ao rei, ele compõe grandes óperas-
bailados, onde cantos, danças e intermédios de orquestra se sucedem, rodeados
por encenações sensacionais, providas de maquinismos imponentes. É quase
desnecessário dizer que tais representações se afastam notavelmente dos
exemplos de Monteverdi e até dos italianos contemporâneos: as óperas-
bailados de Lully são nobres, pomposas e solenes, ricas e cheias de efeitos
espectaculares. O seu estilo decorativo, apesar de perfeitamente ordenado, não
deixa de ser barroco no aspecto geral. Oferece efectivamente um perfeito
exemplo do grande barroco francês, inseparável de uma certa “ordem”.
Sabe-se que Lully colaborou com Molière, tanto na montagem de comédias-
bailados, como para lhe fornecer músicas de cena. O estilo que ele inaugura
encontra-se na origem da música dramática francesa. Ele impõe a grande de-
clamação lírica e majestosa, dando relevo ao texto. As suas óperas Cadmus et
Hermione, Atys, Thésée, Proserpine, Lê Triomphe de l'Amour Acis et Galathée,
tanto pela prosódia, como pelo estilo, quer cantado, quer instrumental, manifes-
tam uma originalidade que nada fica a dever aos Italianos.
O que Lully cria é de facto uma ópera francesa. À sua volta e após a sua
morte, um grupo bastante numeroso de músicos comporá no mesmo sentido.
Concebida para brilhar na corte do Rei-Sol, essa música inscreve-se numa esté-
tica geral em que podem ser classificadas as construções de Mansart, os jardins
de Lê Nôtre, a pintura de Poussin, a escultura de Puget e as obras literárias de
Bossuet e de Racine.
Dá-se o nome de “escola de Versalhes” a este fecundo movimento musical,
que não foi apenas profano, pois Lully escreveu também obras religiosas de
belo efeito (Te Deum, Dies Irae, De Profundis). Entre os compositores de
maior fama dessa época, devemos citar Michel-Richard de Lalande (1657-
1726), Marc-Antoine Charpentier (1634-1702), Henri Dumont (1610-1684),
André-Cardinal Destouches (1672-1749), Jean-Joseph Mouret (1682-1738),
Marin Marais (1656-1728), os três primeiros complementos impregnados da
grandeza de Versalhes, os três últimos manifestando um talento mais pessoal e
mais fino. Verifica-se, portanto, que o destino da ópera será muito diferente
em França e na Itália; tendo amadurecido e produzido obras-primas, os dois
estilos estabelecer-se-ão ambos solidamente, mas, por força das circunstâncias,
tornar-se-ão rivais. Até ao século XIX (e poder-se-ia dizer até ao presente), os
partidários da ópera italiana e da ópera francesa defrontar-se-ão. No século
XVIII, a luta assumirá um aspecto bastante violento com a “Querelle dês
Bouffons”, a que mais adiante nos referiremos, pois existem dois conceitos
fundamentais da ópera, do espectáculo e da música que se opõem a qualquer
possibilidade de entendimento. Uma coisa é certa: a ópera francesa em nada
influenciou a Itália, enquanto o estilo importado da Península encontrou os
seus adeptos em França, como em todos os outros países da Europa4.

A ópera inglesa

A história conservou-nos poucos nomes de madrigalistas e de composito-


res ingleses; limitemo-nos aos principais e recordemos, em primeiro lugar,
que a grande época dos madrigalistas ingleses situa-se aproximadamente entre
1550 e 1600, no momento em que o reinado de Isabel I suscita uma admirável
floração artística. A par do madrigal, os ayres, confiados a solistas, obtêm
grande sucesso: são cantados por um dos cantores de madrigais, acompanha-
dos por vozes ou instrumentos, às vezes por ambos. A “canção do alaúde”, que
terá ainda maior sucesso, por ser mais popular, tornar-se-á numa ária de solista,
que se acompanha a si próprio. Esta é já uma forma que pode ser chamada
.moderna, visto que ainda se mantém nos nossos dias, tendo o alaúde sido subs-
tituído pela guitarra, o piano ou qualquer outro instrumento. No que respeita ao
teatro dos tempos de Isabel, praticar-se-á o mask (máscara), termo que designa
qualquer representação e, nomeadamente, a mágica.
O mask, que se tornará na forma cênica especificamente inglesa, já existia
antes da época de Isabel I. Em 1512, Henrique VIII ordena um divertimento à
maneira italiana, a que chamam mask. De que constava este espectáculo, cem
anos antes da ópera? Tratava-se de um espectáculo de corte combinando diver-
sos elementos cantados, falados, dançados e que tirava a sua origem dos fabli-
aux5 e moralidades da Idade Média. O mask, que na realidade é um drama mu-
sical, sofrerá a influência da ópera no século XVII, modificar-se-á em conse-
quência disso e dará à Inglaterra um tipo especial de espetáculo-divertimento.
Os sucessores da era isabelina não conservarão as suas tradições. Querendo
imitar Luís XIV, o rei Carlos II institui o faustoso musical na sua corte, abrindo
assim as portas ao barroco na mesma ocasião. Na segunda, metade do século,
os espetáculos caracterizam-se por grandes encenações, numerosos intermédios

4
Notemos aqui a nascença da opera buffa francesa (género popular) sobre os palcos de [eira
em Paris. Este vaudeville (de voix--de-ville) vai buscar os seus temas - satíricos - à actualidade.
5
Fabliau: pequeno conto popular francês, em verso, dos séculos XII e XIII. (N. da T.)
- por vezes supérfluos -, linguagem de grandes efeitos, em suma, o gosto da
ostentação.
Três músicos marcaram- o século: John Blow, Matthew Locke e, finalmen-
te, Henry Purcell, o maior de todos. John Blow (1649-1708), organista de
Westminster, autor fecundo de obras religiosas, escreveu em 1682 um “mask”
para a distracção do Rei”, Vénus e Adónis, considerado uma obra-prima. Matt-
hew Locke (1630-1677), músico de Carlos II, é um precursor. Dedicado à mú-
sica profana, instrumental ou lírica, Locke escreve masks que prefiguram a
ópera.
Tal como em Itália ou em França, a grande
ópera inglesa (ópera séria) vai recorrer à decla-
mação lírica, dedicar-se a exprimir os conflitos e
as paixões, afastando qualquer elemento superfi-
cial ou exterior. Será Henry Purcell (1658-1695)
que a levará à perfeição, ao fazer a síntese dos
estilos italiano e francês. A escola de Versalhes
exerceu incontestavelmente a sua influência
em Inglaterra e Purcell é uma testemunha deste
fato. Mas este músico delicioso, dotado de irre-
Purcell sistível encanto e de gênio poderoso, soube mol-
dar os elementos estrangeiros numa matéria pes-
soal e, o que é mais, nacional. Pois Purcell é o grande músico nacional da In-
glaterra no século XVII. Adaptando um admirável estilo recitativo dramático
à língua inglesa, legou-nos, com Dido e Eneas, o Rei Artur ou The Fairy
Queen, os exemplos mais perfeitos de obras onde se associam o grave e o de-
leitoso, o real e o fantástico, os intermédios coreográficos ou instrumen-
tais. A morte de Dido, entre outras, é uma das mais belas páginas do repertó-
rio lírico; o patético da lamentação atinge ali o sublime.
Pode dizer-se que Purcell não foi apenas o grande músico inglês do seu sé-
culo, mas também um gênio comparável a Lully, no que respeita à ópera (em
que se mostra muito mais rico de expressão), a Buxthude, na música de órgão,
a Schútz, na música religiosa (a sua Ode a Santa Cecília é notável), ou ainda a
Alessandro Scarlatti, na cantata de câmara.
O barroco shakespeariano surge mais de uma vez nos libretos das suas obras
cénicas, escritas por Dryden; porém, ainda mais do que o barroco, encontra-se
na obra de Purcell esse gosto tipicamente inglês pela mágica, a canção popular
associada a um assunto dramático e, como já o fizemos notar, essa combinação
de elementos reais e fantásticos, cujo sabor poético é inimitável.
“Purcell morreu novo e com ele a música inglesa”, disse um dos seus bió-
grafos. A expressão não é exagerada. Esse Mozart do século XVII deu à músi-
ca inglesa toda a sua nobreza, a sua beleza, a sua graça. Depois dele começará
uma lenta decadência e a invasão do repertório pelos artistas italianos e os “ita-
lianismos”, sem que surja outra qualquer produção verdadeiramente nacional.
As maravilhosas audácias de declamação, de harmonia, de modulação e de
orquestra concebidas por Purcell, o requinte da sua inspiração, tudo isso foi
quase esquecido em benefício do que a ópera italiana tinha de mais inferior.
Foi preciso a chegada (e as lutas esgotantes) de Haendel, no século XVII, para
que um “grande estilo” fosse imposto de novo e pusesse em fuga a música sem
valor. Foi necessário que surgisse na nossa época um Benjamin Britten, para
que se voltasse a encontrar o segredo da prosódia genuinamente inglesa e de
uma ópera nacional - segredo que, segundo o próprio Britten, se havia perdido
desde Purcell.
A ópera conquistou, portanto, toda a Europa no século XVII? Sim, mas im-
põe-se uma reserva: pouco atraídos pelo prestígio do espetáculo, do bei canto e
da melodia acompanhada e ligados, pelo contrário, às suas elevadas tradições
polifônicas, os músicos da Alemanha, Europa Central e Países Baixos não se-
guiram o movimento. Alguns produziram realmente óperas ao gosto veneziano
ou napolitano, mas, à parte J. S. Kusser (1660-1727), antigo discípulo de Lully,
e, em seguida, Reinhard Keiser (1674-1739), discípulo de Kusser—que muito
contribuíram para estabelecer um estilo de ópera hamburguesa, espécie de co-
média lírica anunciando o Singspiel, de que nos ocuparemos mais adiante—,
nenhum compositor dos países do Norte ajudou a enriquecer o gênero.
A floração da ópera no século XVII, sob a sua forma italiana, francesa ou
inglesa, e o carácter de divertimento sumptuoso que assumirá em toda a parte
onde se afastaram da pura tradição de um Monteverdi — e até o acréscimo de
atractivos representado pelo luxo material, as encenações sensacionais
(trovoadas, sismos, monstros e engenhos diversos) e a vertiginosa ostentação
da virtuosidade vocal — são elementos que constituem a expressão mais
característica do barroco em matéria artística. Grandes arquitectos, decoradores
e pintores colaboram nos espectáculos encomendados ora pelos reis, ora por
directores teatrais ávidos de receitas. Cem episódios diferentes, indo da
mitologia ao fantástico, passando pelo realismo, fazem da cena lírica um lugar
vivo onde se manifesta um barroco triunfante. A glória do século XVII terá sido
permitir que a ópera, não obstante os seus erros e fraquezas, lançasse esse
prodigioso fogo de artifício cuja recordação ainda nos deslumbra.

Como se apreciava a ópera no século XVII

A moda do bei canto determinará a moda da vedeta; os teatros, que delas


dependiam para se manter, sofreram os seus caprichos. Ô cinema deixa-nos
hoje adivinhar o que poderia ter sido então a celebridade de uma “estrela”; os
compositores, se desejassem obter algum sucesso, eram forçados a escrever
para um ou uma virtuose; as lutas pelo prestígio entre cantores obsediavam os
compositores e diretores de teatro. O público, pelo seu lado, apenas se interes-
sava pelas proezas vocais, de forma que em muitas obras a parte “séria” ou os
recitativos eram pura e simplesmente suprimidos. Nos camarotes tagarelava-se,
jogava-se as cartas... ou dormia-se. As grandes árias e, sobretudo, a ária d'agi-
lità (ária de bravura) eram acolhidas com gritos de entusiasmo. Na alta socie-
dade estabeleceu-se a tradição de apenas se ir à ópera no momento previsto,
quando a diva cantava a sua grande ária, sendo o resto do espectáculo conside-
rado apenas próprio para as classes vulgares...
O bei canto floresceu especialmente em Nápoles: o público aguarda a entra-
da do gran uomo (sopranista castrado) ou da prima donna, e estes, senhores
absolutos da partitura, cantam o que querem, substituem tal ária que não lhes
agrada por outra e reservam certas passagens para a improvisação de vocalizos.
Na sala ouvem-se então verdadeiros uivos de alegria. Quanto à obra, evidente-
mente, ninguém lhe prestava qualquer atenção.
Os jovens aclamam as cantoras, chamando-as pelo seus nomes, gritando: Mi
butto cara, fingindo precipitar-se do alto dos camarotes a fim de as apertar
mais prontamente nos seus braços. Um grande divertimento consiste em reco-
nhecer os cantores disfarçados sob trajos estranhos. Quando certo padre, famo-
so pela maneira como desempenha papéis burlescos, surge no palco mascarado
de ama, toda a platéia grita encantada: Ecco Pré Pierrô che fà Ia vecchia!6
Quanto mais numerosos são os feiticeiros, os fantasmas, os imbróglios de todos
os gêneros e, sobretudo, os travestis, mais contente se mostra o público. Che-
gou-se ao ponto de ver, em Xerxes, de Cavalli, um frade cantar o papel da rai-
nha Ammestris, apaixonada pelo rei da Pérsia e disfarçada de homem. Estas
extravagâncias não impediram os bons músicos de escrever muito boa música.”
(Henry Prunières).
“Temos de concordar que o sentido da paixão falta frequentemente nas árias
francesas, porque o nosso canto contenta-se em fazer titilar os ouvidos e delei-
tar por meio de futilidades, sem ter a preocupação de excitar as paixões dos
auditores”, disse o padre Mersenne, musicógrafo do século XVII. Definição
muito exata do que distingue a ópera francesa da italiana.
“Vi as óperas de Inglaterra e de Itália”, escreve um pouco mais tarde Mon-
tesquieu. “São as mesmas peças e os mesmos atores; mas a mesma música pro-
duz efeitos muito diferentes nas duas nações: uma é tão calma e a outra tão
exaltada, que parece inconcebível.”
“O pior flagelo que apareceu para devastar a cena musical inglesa foi, em
1679, a chegada do sopranista italiano Grossi. Este virtuoso teve um sucesso
extraordinário; a partir desta época, a influência dos castrados tornou-se tão
grande, que adquiriram o hábito de exercer uma verdadeira ditadura sobre os
compositores de ópera. Estes, para fazer valer a voz dos seus tiranos, eram for-
çados a escrever árias de soprano de uma dificuldade extravagante, cujo mau
gosto era ainda acrescido de ridículo, quando as melodias saiam das gargantas
de um Augusto ou de um Alexandre...” (R. de Candé).

Novas formas

O barroco lança-se no desconhecido, inventa as suas formas e a sua expres-


são à medida dos seus desejos, avança a cada passo no domínio do novo e do
inesperado, e esses mesmos elementos fazem do século XVII uma extraordiná-
ria época de investigações e de descobertas. O radiar da ópera não impede que
outros gêneros floresçam e proliferem na Europa; primeiro porque a ópera não
6
“Olha o padre Pedro que faz de velha!”
é a única expressão artística que responde às aspirações do tempo, em seguida
porque a vitalidade do barroco estimula as forças criadoras.
É assim, por exemplo, que a música religiosa e a música instrumental to-
mam um impulso vigoroso e encontram novos caminhos. Os gêneros musicais
do século são numerosos: as formas que definem esses gêneros estão, em pri-
meiro lugar, subordinadas aos mesmos. Esta é a característica própria do barro-
co. Mas antes de chegar ao século XVIII, que assistirá à fixação acadêmica das
formas, elas precisar-se-ão entretanto. Para melhor as apreciarmos, diremos
que a sua estrutura permite que as poderosas imaginações se manifestem
com coerência, enquanto no século seguinte o seu quadro rígido tolherá com-
pletamente uma inspiração dócil. Esse grande século de criação, em que tudo é
novo, tudo é possível, viu nascer todas as formas modernas que nos foram le-
gadas e que a nossa época ainda pratica, cm certos casos à custa de algumas
modificações. Salientemos, de passagem e para evitar confusões, que os mu-
sicólogos utilizam as palavras forma, gênero, estrutura, com muita cir-
cunspecção em várias categorias. Admitiremos simplesmente que o gênero
designa um tipo de obra em geral (a ópera, o concerto, a oratória, são gêneros);
a forma designa uma arquitetura característica da obra (o concerto grosso, a
fuga, a suite); finalmente a estrutura designará a articulação interna da obra,
aquilo que se pode “tecnicamente decompor”.
Contudo, quando falamos das “formas” do século XVII, é por vezes possí-
vel substituir esta palavra por “gênero”, sem que a verdade se deturpe com esta
terminologia, visto que ela ainda não possui leis precisas. De resto, um gênero
pode assumir formas diversas e estas variarem de estrutura...
A oratória fez a sua aparição em Roma, em 1575, quando o jesuíta Philippe
de Neri (1515-1595) teve a idéia de fazer representar pela Congregação do
Oratório, que ele dirigia, laudi spirituali (cantos espirituais) compostos por
músicos do seu meio. Temas tirados das Escrituras e Evangelhos da Paixão
foram assim tratados sob forma de recitativos, diálogos, oposições de solistas e
coros, cujo realismo iria impressionar os fiéis. Este gênero novo, simultanea-
mente representativo e narrativo, está ligado ao espírito da Contra-Reforma.
Tirando o nome do seu lugar de origem, a oratória designará qualquer obra
lírica ç dramática baseada num texto religioso. Na realidade, trata-se quase de
uma ópera sacra; a fronteira entre a ópera e a oratória será de resto frequente-
mente confusa no século XVII, pois a oratória assume em alguns casos um
estilo mais brilhante e mais teatral do que verdadeiramente religioso. O estilo
barroco reencontra-se em absoluto na oratória do século XVII: vitalidade, elo-
quência, grandeza, dramatismo, contrastes, intensidade, ornamentação, tudo ali
se encontra reunido. Fixa na sua forma e nos seus elementos (solistas, coros e
orquestra; árias, duetos, conjuntos, corais, recitativos), ela atravessará os sécu-
los mantendo quase as mesmas prerrogativas.
As oratórias mais marcantes do século são as do alemão Henrich Schútz
(1585-1672), músico espantoso, que mantém a tradição polifónica enquanto se
inicia no estilo italiano (óperas e bailados mitológicos). Compôs quatro pai-
xões: São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João, e as Sete Palavras de
Cristo na Cruz. O seu estilo prenuncia o de Bach.
Giacomo Carissimi (1604-1674), autor das oratórias: Exéquias, Baltasar,
Jefta, Abraão, e Isaac, etc., é considerado como o grande mestre do género na
Itália. A par de Schútz, a oratória de Carissimi é mais brilhante e anuncia Ha-
endel mais do que Bach. Discípulo de Carissimi, o francês Marc-Antoine
Charpentier (escola de Versalhes) escreve “histórias sacras” que são na reali-
dade oratórias ou “dramas sacros”; de entre as suas obras conservou-se David e
Jónatas. O seu estilo erudito tem grande encanto melódico. Quanto a Alessan-
dro Scarlatti, tão fecundo em todos os gêneros, legou-nos cerca de vinte e cinco
oratórias.
Notemos que a primeira grande oratória representada em Roma em 1600 foi
La Rappresentazione di Anima e dei Corpo (“A Representação da Alma e do
Corpo”), de Emílio de Cavalieri (1550-1602). Composta no novo estilo oriundo
da camerata Bardi, esta obra punha em cena personagens alegóricas, tais como
o Tempo, a Vida, o Prazer, a Alma e o Corpo. Era cortada por ritornelli (repe-
tições de um mesmo motivo) e por danças. Apesar de ser esta a origem da ora-
tória, há um pormenor importante que mais tarde intervirá para consumar a sua
separação da ópera: esta não pode existir sem um palco, enquanto a oratória
abandoná-lo-á de vez e será representada no estrado da sala de concertos, mais
de acordo com o seu gênero.
A cantata é uma obra para solista e orquestra ou um pequeno grupo de ins-
trumentos. Pode ser sacra ou profana; de proporções mais reduzidas do que a
oratória, consiste frequentemente num monólogo dividido em recitativos e á-
rias sucessivas. Gênero barroco por excelência, a cantata presta-se a todas as
liberdades de composição. Certas cantatas dramáticas italianas aproximam-se,
como a oratória, do estilo da ópera; existe de resto frequentemente uma certa
contusão, pois o desenho melódico, os acentos dramáticos de um recitativo ou
de uma ária de uma cantata, por um lado, e da ópera, por outro, podem ser mui-
to semelhantes. Cantata (de cantare) significa muito simplesmente peça canta-
da. Será a progressiva definição
Na ópera de Viena, o frontão de Papageno comemorando a criação de A
Flauta Mágica, de Mozart, em 1791. À direita: retraio de M o lar t aos treze
anos da forma e do estilo que determinará a acepção da palavra. Para evidenci-
ar a confusão de que falamos, basta evocar o admirável Combate de Tancredo
e de Clorinda, de Monteverdi, que é simultaneamente uma cantata e uma ópe-
ra. A cantata em geral não se representa: a ópera, porém, desenrola-se no palco.
Caccini, Peri, Rossi e Carissimi praticaram a cantata, que, obedecendo aos
ditames do barroco, adquire amplitude no decurso do século (importância das
personagens, da orquestra, dos conjuntos vocais). Em França, os grandes mote-
tos da escola de Versalhes são na realidade cantatas de igreja. Notar-se-á que as
cantatas de J. S. Bach têm um caráter mais íntimo, uma forma reduzida, um
estilo mais clássico.
A suite é uma das formas mais antigas e também das mais imprecisas da
música instrumental. Mas nem todos os conjuntos de trechos sucessivamente
ligados podem ser definidos como uma suite: é necessário introduzir uma certa
ordem e, em primeiro lugar, a da alternância e unidade de caráter. É já neste
sentido que trabalham os músicos da corte de Borgonha. No século XVI, Clau-
de Gervaise compõe de uma forma audaciosa e profética suites de melodias de
-dança diretamente oriundas dos repertórios popular e erudito: bransies, gavo-
tas, bourrées, tourdions, etc. É ao som destas suites que dançam os senhores
franceses, enquanto alguns instrumentos — alaúdes, violas, harpas, flautas e
tamborins — as acompanham.
Séculos XV-XVI: a Renascença italiana associa a musica ao
movimento de libertação das artes Esq.: anjo músico tocando flauta,
por Donatello. Dir.: Ninfa tocando trompa -(fresco do século XVI)
Espineta
Espineta, instrumento de cordas pin-
çadas, aparentado com o cravo,
mas com um único teclado.
Modelo do sec. XVIII

Tímpano, espécie de citara de


cordas de latão, que se feriam
com plectros de madeira
Virginal fabricado por Gilbert
Townsend em 1641. Este ins-
Grande cravo com dois
trumento, parente do cravo, estava
teclados, fabricado por
muito espalhado em Inglaterra
Jean Couchet em 1649

Virginal, atribuído a Vincentius de Taeggiis,


Bologna, 1629
Século XVII, proliferação do barroco: órgão, alaúde, harpa, cravo e vio-
la de gamba ( quadro atribuído a Van Kessel)
“Concerto de mesa” no século XVII, com alaúde e baixo de viola
( segundo O Ouvido, de Abraham Bosse).

Aperfeiçoando-se, a suite torna-se uma obra de música erudita para conjunto


instrumental. As danças que a compõem vêm de todos os pontos da Europa;
assim a bourrée é da Auvérnia, a gigue da Escócia, o minuete de Versalhes, a
siciliana e a allemande denunciam a sua origem. A alternância dos movimentos
vivos e lentos, o fato de que todas as partes são escritas no mesmo tom, indi-
cam uma preocupação de coerência. Partindo desta fase, a suite, que pode
comportar um número indefinido de andamentos, vai dar origem à sonata, que
apenas conservará três ou quatro andamentos, bem como ao concerto grosso.
A sonata (do italiano sonare, tocar) é uma peça destinada a ser tocada por
um instrumento qualquer e não cantada. Tem a sua origem nas canzoni da so-
nar do século XVI (A. Gabrieli), que eram peças instrumentais. A suite de
danças e a peça de polifonia vocal transcrita para instrumentos de teclado
podem ser chamadas sonatas. Mas em bre-
ve destaca-se uma forma de sonata, dita
“monotemática” (de um só tema). Kuh-
nau e Couperin contribuem para o desen-
volvimento deste gênero. Corelli fixa-o.
Domenico Scarlatti, no século XVIII, ainda
utilizará a sonata monotemática de um an-
damento, quando já numerosos composito-
res do século XVII tinham escrito sonatas
de três partes sobre o modelo das suites,
Haydn e Mozart fixarão o modelo clássico
da sonata “bitemática”, de três ou quatro
andamentos: allegro, adagio (minuete),
allegro. Em princípio, a sonata é um pre-
texto para a virtuosidade instrumental e,
facto novo, já não depende de qualquer
assunto extramusical: seguir ofícios, subli-
nhar textos, ritmar danças, etc. O advento
da sonata é importante, pois marca um
passo em direção à autonomia da música
instrumental, ou seja aquilo que se chama-
rá a “música pura”.
Afirmaram-se dois tipos de sonatas nos
Maqueta do trajo desenhado por séculos XVII e XVIII: a sonata de igreja
Carzou para a reposição de (da chiesd) e a de câmara (da camera). A
Indes Galantes, de Romeau primeira, escrita para o órgão, é de estilo
(Paris, 1955) severo; a segunda, mais ornamentada, uti-
liza por vezes ritmos de danças e o seu estilo é mais harmônico do que o con-
trapontístico.
Século XVIII, advento do estilo galante: a sociedade encara
a música como um divertimento amável. O marquês de
Sourches e a sua família, por Drouais.

Os românticos ampliaram e variaram a forma da sonata, vergando-a comple-


tamente às necessidades da expressão. Apenas permanecem as grandes linhas
de estrutura: bitematismo da primeira parte e as três ou quatro partes tradicio-
nais, mas remodeladas e desenvolvidas. A sonata — hoje novamente incluída
nas normas clássicas — designa qualquer tipo de obra de música pura (para um
ou vários instrumentos) obedecendo a estas regras gerais de forma.
O concerto grosso separa-se da suite no século XVII. Não obstante esta ter
existido até ao século XVIII, até Bach, que dela nos deu os modelos mais per-
feitos, nota-se que permaneceu arcaica, enquanto o concerto grosso constitui o
seu elemento “progressista”.
O concerto grosso, emana-
ção típica do século barroco,
é também construído sobre
ritmos de dança e dividido em
vários andamentos (partes),
quatro, cinco, seis ou mais.
Orienta-se em direção a um
destino mais ambicioso e essa
ambição levá-lo-á ao concerto
para solista e à sinfonia, dois
gêneros que ele continha em
potência e que, como se sabe,
reinam sobre a música como Na ópera de Viena, o frontão de Papagueno
senhores incontestados desde comemorando a criação de A Flauta Mágica,
há duzentos anos. de Mozart, em 1791.
Nascido na Itália, o concerto grosso e constituído por dois grupos instru-
mentais que dialogam (concertare); um solista ou um grupo de solistas tocam a
melodia (o tema e as suas brilhantes variações): é o concertino. Um conjunto
instrumental responde-lhe, fornecendo o acompanhamento: é o ripieno. A reu-
nião destes dois grupos, chamada concerto grosso, significa o conjunto, a or-
questra completa. O número de instrumentos não está fixado. O género: cordas
e madeiras. O estilo do concerto tende para a música pura, livre de qualquer
elemento narrativo; as danças que lhe fornecem o material são tratadas em va-
riações com intermédios livres. Estas utilizam o estilo harmônico ou polifônico
ou uma associação de ambos; a polifonia do concerto grosso é sempre extre-
mamente clara e ligeira, uma vez que a virtuosidade dos solistas passa para
primeiro plano. O primeiro andamento, como no caso da suite, é geralmente
uma ouverture, dita à francesa, segundo o modelo imposto por Lully: adagio-
allegro-adagio. O estilo solene desta introdução devia ser especialmente ade-
quado para captar a atenção do auditório.
Na alternância das partes do concerto grosso encontram-se mais frequente-
mente os cinco andamentos seguintes: ouverture ou prelúdio (lento), allemande
(bastante lento); corrente (moderadamente animado); sarabanda (adagio), e
giga (rápido). Cada peça torna-se um trecho de música autônomo, sabiamente
desenvolvido, onde a inspiração pode expandir-se livremente sobre o esquema
rítmico e melódico proposto.

É a Corelli que pertence o merecimento


de ter dado ao concerto grosso a sua forma
clássica, favorecendo assim a sua expan-
são. Corelli já utiliza vocábulos que desig-
nam o tipo de trecho em vez da dança ori-
ginal; assim ele escreve allegro em vez
de corrente. Em breve os nomes das dan-
ças desaparecerão e, simultaneamente, a-
firmar-se-á o caráter da obra, sendo assim
que esta vai conquistar a sua plena inde-
pendência. Apenas o minuete se conservará
até à obra de Beethoven, que, precipitando
o seu ritmo a três tempos para lhe conferir
um caráter dramático, lhe chama scherzo,
eliminando da sinfonia este último vestígio Mozart aos 13 anos
da antiga suite.
O concerto grosso dividir-se-á, portanto, em dois ramos: o concerto e a sin-
fonia. Desenvolvendo-se cada uma das suas partes, em breve só se utilizarão os
três ou quatro andamentos que resumem as suas necessidades. O concerto pro-
vém da parte cada vez mais importante confiada ao solista, verdadeiro virtuose
do “bel canto instrumental”, onde o ornamento prevalece sobre a expressão.
Concerto e sinfonia adquirirão a sua forma definitiva no século XVIII, no-
meadamente com Haydn e Mozart, que, como no caso da sonata, nos darão
modelos perfeitos:
1.° Andamento (allegro}: entrada sucessiva de dois temas contrastantes;
seu desenvolvimento e oposições.
2.º Andamento (adagio, andante, etc.): longa melodia de caráter .meditativo
e expressivo, com variações, desenvolvimento, etc.
3,° Andamento facultativo: minuete, finale (presto, allegro vivace, etc.): i-
deia musical mais viva e desenvolvimento mais breve do que na primeira parte,
com vista a uma conclusão brilhante.
A tocata, terceira das peças nascidas de um princípio sonoro (cantare, sona-
re, toccare) e que deveria chamar-se toccale para sermos lógicos, é uma obra
de pura virtuosidade, destinada a fazer valer o instrumento de teclado. Conser-
vou este caráter até aos nossos dias. “Toca-se” no teclado, o que é uma coisa
diferente de fazer soar determinado instrumento ou grupo de instrumentos. A
tocata designava, logo desde a origem, um gênero bem definido, e as tocatas do
século xvn para órgão ou cravo são testemunhas deste fato, apesar de a sua
virtuosidade não ser ainda deslumbrante.
O ricercar, precursor da fuga, consiste numa construção de temas e respos-
tas que se estruturam de acordo com regras severas (ricercar: procurar).
A chaconne expõe um tema que se transforma no decurso de uma série de
variações rítmicas e melódicas.
A passacaille, que por vezes tem sido confundida com a chaconne, consiste
num motivo de baixo repetido continuamente e sobre o qual se enxertam varia-
ções. A diferença reside, portanto, no fato de que o tema da chaconne se trans-
forma ele próprio, enquanto o da passacaille se repete sem modificações e ser-
ve de fundo às variações das outras vozes. As duas formas são oriundas de uma
dança lenta, de compasso ternário, vinda de Espanha.
A ária (melodia) é uma das grandes invenções do século. A ópera, a
oratória, a cantata e mais tarde a música instrumental e sinfónica utilizam-na.
Grande melodia livre, a ária permite que a música barroca se expanda sem
constrangimento (Monteverdi). No decurso do século xvn adicionam-lhe,
porém, uma estrutura: pela forma a-b-a, ela obedece aos princípios (e às
necessidades incontestáveis) do espírito ocidental, que quer a repetição da
ideia, o regresso de um mesmo motivo. Será a ária da capo “(do começo” ou
regresso ao princípio). Esta forma de ária, utilizada por todos os grandes
músicos, acusa convencionalismo em alguns, enquanto noutros parece natural.
Oposta à grande improvisação barroca inaugurada por Monteverdi, ela
representa, não obstante o seu interesse e as belezas que suscitou, o
constrangimento de uma forma arbitraria. (Nos géneros menores a forma
copla-estribilho é indispensável para suster a evolução do texto.).
Irmão da ária, o arioso é um recitativo expressivo, medido, de caráter menos
amplo do que a ária, mas mais melódico do que o recitativo.
Todas estas formas criadas no século XVII sublinham a sua vitalidade; notar-
se-á que o sinal distintivo de todas elas é a grandeza, a majestade do porte, a
amplitude das proporções. Este século moldou as formas que melhor se adap-
tavam às suas necessidades expressivas. Se a ópera, a oratória, a cantata e as
formas vocais em geral beneficiam de uma extraordinária renovação, não
deixemos de observar que esta época é também a da maior floração instrumen-
tal da história. É no século XVII que o estilo instrumental brota verdadeira-
mente da obscuridade relativa em que tinha sido retido pela polifonia, gênero
essencialmente vocal. Com a ajuda do barroco, assistimos a uma prodigiosa
competição de todos os gêneros: instrumentos solistas (órgão, cravo, alaúde),
instrumentos de acompanhamento (flauta, oboé, violas), sonatas em trios, gru-
pos instrumentais diversos, concertos grossos, suites. É a embriaguez da procu-
ra: descobre-se a virtuosidade, escrevem-se peças exclusivamente destinadas a
fazer brilhar os instrumentos, multiplicam-se as sonatas e as tocatas. As escalas
sobem e descem, as passagens rápidas das semicolcheias abundam, manifesta-
se uma espécie de febre de alegria na literatura instrumental; em breve surgem
os grandes solistas instrumentais, fazendo concorrência aos virtuoses do canto.
O bel canto introduz-se de resto no repertório instrumental; da virtuosidade
vocal passa-se à virtuosidade instrumental. Pela extraordinária abundância or-
namental e a riqueza da escrita, o barroco marca nitidamente toda a produção
musical do século.
VII - O SÉCULO XVIII, PERÍODO CLÁSSICO

Herdeiro do século XVII, o século XVIII vai selecionar, classificar e orde-


nar as riquezas que o seu predecessor semeou com louca prodigalidade. Era
forçoso que assim acontecesse: o impulso do barroco não podia durar e viu-se
que, no início do século XVIII, esse barroco começa pouco a pouco a instruir
certas regras de estilo e de forma. Além disso, as idéias do século XVIII ten-
dem para o equilíbrio, a medida; é a época dos enciclopedistas e dos filósofos
da razão. O progresso das ciências também contribui para fortalecer um espíri-
to simultaneamente racionalista e céptico.
O século XVIII não é um período de grande fé religiosa nem de grande a-
ventura no plano espiritual ou até material; será sobretudo uma era de sensatez,
de razão que orienta e tempera. Será frívolo também, e apoiar-se-á mais sobre a
considerável herança do século anterior do que sobre valores próprios. Mas ele
coloca tudo ao nível de uma filosofia optimista e tranquilizadora, que, a despei-
to das críticas acerbas contra a realeza, a Igreja e a desigualdade social, apre-
senta a existência de uma maneira sumária e convencional. No interior desta
confortável e completamente teórica concepção da vida, o homem do “século
das luzes” nada vê das rudes realidades exteriores. Este estado de espírito de-
senvolve pouco a pouco o “sentimento”, a “sensibilidade”. Pelo fim do século,
as almas emotivas procuram a melancolia na contemplação da natureza. Os
leitores de La Nouvelle Héloise, de Rousseau, ou do Werther, de Goethe, já
romperam com a ordem antiga; sem o saber, preparam o advento do romantis-
mo.
A música reflete fielmente a ordem estética que dá o tom geral do século:
antes de 1750, essa ordem estética ainda está ligada à tradição do barroco, que
se orienta para um classicismo cada vez mais marcado. Após 1750, o barroco
foi ultrapassado e as tendências levam ao rococó, ao estilo galante, ao manei-
rismo e à pieguice - um Marivaux, um Watteau, um Mozart transcenderão
estas características, transformando-as em virtudes supremas duma arte disci-
plinada. O prazer delicado que se espera da arte condiciona o seu aspecto e
impõe-lhe um verdadeiro código: as suas regras são escritas e ninguém pode
impunemente transgredi-las. Sujeita a esta ordem intransigente, a música é do-
minada pela forma; a expressão pessoal torna-se apenas perceptível, o compo-
sitor é abrigado a fornecer à sociedade um divertimento amável e de bom gosto
(após o “grande gosto” do século precedente, eis o “'bom gosto”; a distinção é
significativa). Escuta-se esta música domesticada, de asas delicadamente cer-
ceadas, acha-se que ela é agradável e está tudo dito.

Antes de 1750

Regressemos ao princípio do século, ainda profundamente impregnado do


barroco. Em França, os sucessores da grande escola de Versalhes são François
Couperin (1668-1733), Louis Marchand (1669-1732), Nicolas Clerambault
(1679-1749), Claude Daquin (1694-1772), cravistas e organistas que praticam
a virtuosidade instrumental com tal mestria e originalidade, que se tornam nos
clássicos de um gênero.
Couperin (membro de uma gloriosa linhagem de músicos que se sucederam
durante dois séculos no órgão de Saint-Gervais) é o mestre da escola francesa
de cravo; é ele quem espalha o gosto pelas pequenas peças pinturescas, retratos
de personagens: A Mimi, A Manon, Irmã Mónica, de caracteres: A Ingénua, A
Jovial, A Majestosa, ou quadros descritivos: A Toutinegra Queixosa, O Pintar-
roxo Assustado, etc. Cinzelando o pormenor com elegância, e espírito também,
faz lembrar Watteau e afirma assim o “estilo galante”. Por outro lado, Couperin
deixou admiráveis obras de inspiração religiosa.
Os cravistas franceses haviam tido como primeiro mestre Jacques Champion
de Chambonnières (1602-672), que na época de Luís XIV escreveu suites de
danças e peças descritivas para o teclado, renunciando à supremacia do alaúde.
Estes cravistas espalhar-se-ão por toda a Europa, no século XVIII, e os músicos
estrangeiros inspirar-se-ão nos seus processos técnicos e tipo de expressão.
Os compositores de óperas, bailados e música instrumental da mesma época
(fim do século XVII e primeira metade do século XVIII) permanecem ligados a
um barroco que não se pode conceber sem uma certa ordem e uma elegância
que contém em germe a evolução .da música francesa ulterior. André Campra
(1660-1744) distingue-se pela graça e originalidade dos coloridos. A sua Euro-
pa Galante marca uma data na história da ópera bailado. Jean-Joseph Mouret
(1682-1738), o “músico das graças”—já citado—, escreveu cantatas profanas,
sinfonias e fanfarras que justificam esta reputação.
Jean-Marie Leclair (1694-1674) pode ser considerado como o primeiro
compositor-violinista do seu tempo. As suas sonatas e concertos revelam um
virtuose notável e que fez escola. Como Couperin, ele reuniu frequentemente o
“gosto italiano” e o “gosto francês”, ou seja um estilo melódico expressivo e
maleável, aliado a um trabalho harmônico e contrapontístico bastante requinta-
do.
Aproximadamente entre 1700 e 1750, alguns compositores vão imprimir o
cunho da sua personalidade na história da música e elevar a herança do barroco
aos cumes do classicismo: trata-se sobretudo de Stamitz, Vivaldi, Rameau,
Haendel e J. S. Bach.
Johann Stamitz (1717-1757), virtuose do violino e compositor, mestre de
capela da corte de Mannheim, dispunha de uma orquestra, na qual introduziu
inovações absolutamente revolucionárias. Em primeiro lugar organizou essa
orquestra de forma coerente, por famílias de instrumentos (cordas, madeiras,
metais). Para este conjunto escreve sinfonias onde os grupos se respondem, se
reúnem e opõem. É a primeira vez que aparece uma orquestra organizada: até
ali os instrumentos agrupavam-se um pouco ao acaso. Lully e Corelli tinham
manifestado uma preocupação de ordem, mas utilizando sobretudo a orquestra
de cordas, por vezes acrescida de trombetas e oboés, etc. As obras de Stamitz
destinam-se à sinfonia, de que ele também fixa a forma, completando assim as
suas descobertas. Além disso recorre aos “cambiantes”: aos cambiantes
sumários que já então existiam, e que apenas consistiam em “suave” e “forte”,
ele acrescenta as gradações (crescendo) e degradações (decrescendo), os
acentos, os efeitos. A obra musical adquire assim um relevo1 e uma vida que
espanta os contemporâneos e esta extraordinária novidade atrai a Mannheim
numerosos amadores de música. Vê-se assim nascer e afirmar-se o estilo
sinfónico actual, o equilíbrio das sonoridades, o seu uso dramático, o sentido
dos volumes, dos planos, dos contrastes rítmicos, dinâmicos e expressivos.
Nada revela melhor o espírito barroco do que esta manifestação; a escola de
Mannheim, berço da sinfonia, exercerá a sua influência sobre o século inteiro
e, a par da ópera e do concerto, introduzirá um género novo, rico de
possibilidades, cujo fértil desenvolvimento é bem conhecido.
António Vivaldi (1678-1743), que a nossa época voltou a descobrir, foi um
dos mais brilhantes representantes da música instrumental. A sua fama ultra-
passou a de Bach e, como virtuosa do violino ou como compositor e maestro,
foi uma figura tão prestigiosa, tão lendária, como o serão mais tarde Liszt ou
Paganini. Vítima de uma dessas injustiças tantas vezes inexplicáveis, Vivaldi
acabou a sua vida praticamente esquecido e a sua obra desapareceu com ele.
Será preciso esperar pelo século XX para que Vivaldi seja lembrado e a desco-
berta de numerosas partituras provoque subitamente um enorme movimento de
interesse. Padre e ruivo (chamaram-lhe Il Prete Rosso), de saúde delicada, con-
sagrou o essencial da sua atividade ao Hospital da Pietà, em Veneza, instituição
para órfãs, a quem um grande número das suas obras foram destinadas.
O principal merecimento de Vivaldi foi o de ter fixado a forma do concerto
de solista, oriundo do concerto grosso de Corelli. Improvisador extraordinário,
músico da alegria de viver e da inspiração luminosa, Vivaldi é mais um gênio
exuberante e espontâneo do que um grande construtor de formas. Não hesita
©m repetir muitas vezes o mesmo motivo ou o mesmo ritmo sem os variar, ou
em entregar uma obra sumariamente escrita, sem se preocupar com o seu de-
senvolvimento. A sua maior qualidade é precisamente o brio da virtuosidade, a
fluência do discurso, o espírito vivo que se manifesta na sua obra, a vitalidade
comunicativa dos seus ritmos, a audácia dos seus temas, das suas harmonias e,
frequentemente, a penetrante poesia dos seus andamentos lentos. Obras reli-
giosas, evidentemente, mas em muito maior número concertos para um ou mais
violinos ou outros instrumentos, onde o solista se eleva e paira sobre um dis-
creto acompanhamento de orquestra: aí reside o gênio de Vivaldi. O seu con-
certo é construído em três partes (allegro-adagio-allegro), na maioria dos ca-
sos bastante breves. A parte do solista apresenta uma profusão de passagens, de
arpégios, de escalas, de saltos acrobáticos. É a expressão mais pura e mais bri-
lhante do grande concerto barroco1.
Jean-Philippe Rameau (1683-1764), grande compositor e grande teórico, in-
troduz na música francesa — e por intermédio desta na música européia — os
seus princípios clássicos. Tudo na obra de Rameau tende para a ordem, a inte-
ligência, a ciência, o equilíbrio entre o coração e a razão. As suas obras teóricas

1
Outro veneziano, Benedetto Marcello (1686-1739), cognominado o príncipe da música por
grandes músicos do seu tempo, é também conhecido pelos seus Salmos e a sua elegante música
instrumental. Também escreveu óperas, obras religiosas, obras poéticas e teóricas.
(e nomeadamente o Tratado da Harmonia Reduzida aos Seus Princípios Natu-
rais, publicado em 1722) fixam as bases da linguagem musical moderna.

Partitura-autógrafo do Concerto em Sol Maior, de Vivaldi

As suas obras orquestrais e instrumentais afirmam uma medida, uma e-


legância, uma clareza espiritual que se imporão até ao fim do século. E contu-
do, de algum modo sujeito ao gosto do tempo, Rameau também sacrificou nos
altares do barroco: escreveu óperas-bailados e óperas cujo tom sério pareceu
excessivamente austero aos seus contemporâneos. Na realidade, Rameau enve-
redava por caminho errado: o público começava a enfadar-se dessas óperas
mitológicas pretensiosas, super-convencionais, que se arrastavam sole-
nemente ao longo de uma noite inteira, para enunciar banalidades mil vezes
ouvidas sobre fórmulas musicais já gastas. Hyppolite et Aricie, Lês Indes Ga-
lantes, Castor et Pollux, Lês Fêtes d'Hébé, Dardanus, contêm belas páginas e
outras mais fracas. As encenações faustosas deviam salvar estas obras, tal co-
mo sucedeu nos nossos dias, quando a Ópera de Paris levou à cena Lês Indes
Galantes, numa apresentação de um luxo tão denso que a partitura musical
desaparecia para segundo plano...
A seriedade de Rameau, a sua ironia por vezes cortante, ter-lhe-iam sido
mais proveitosas se se tivesse dedicado à música pura. Basta ouvir as suas pe-
ças para cravo e os Concertos em Sextuor para se ficar convencido; nessas o-
bras encontramo-nos perante uma grande arte clássica, de uma distinção e de
um equilíbrio supremos e de um caráter mais justo, mais natural do que o das
obras líricas, onde este músico, talvez inconscientemente, forçava a sua nature-
za. A única grande virtude das obras líricas de Rameau é de, pela nobreza e
seriedade, afirmar a existência de um estilo francês, de que, apesar de tudo, ele
é o porta-bandeira perante o estilo italiano. Pode dizer-se que Rameau deu ao
teatro musical o seu aspecto clássico; não é contudo proibido pensar que os
seus princípios eram melhores do que a sua música. Para sermos justos, acres-
centaremos que esse gosto, essa distinção, esse feliz equilíbrio entre o intelecto
e a sensibilidade (Voltaire chamava a Rameau “o nosso Euclides-Orfeu”) cria-
ram em França uma tradição a que, por vezes, pareceu são e providencial re-
gressar.
A “Querelle dês Bouffons” foi, em 1752, um momento de crise nessa rivali-
dade entre a música francesa e a música italiana. De início uma simples con-
trovérsia entre os amadores do que se poderia chamar a música fácil e os da
música erudita, essa querela ia envenenar-se, devido a posição assumida pelos
filósofos enciclopedistas, assim como pelo rei Luís XV e a rainha. Uma com-
panhia italiana veio representar em Paris2 a Serva Padrona (“Criada Patroa”),
do jovem e infortunado Pergolesi, falecido, em 1736, aos vinte e seis anos. Esta
opera buffa, escrita na melhor tradição napolitana, fervilha de malícia, de fami-
liaridade e de sentido do natural e permanece um modelo que numerosos com-
positores—italianos ou não—irão imitar mais tarde. O seu êxito extraordinário
levou alguns melómanos apaixonados, entre os quais o barão Grion, a dizer (e
a imprimir) que os compositores franceses se entrincheiravam num gênero ma-
çador e antiquado.
Rameau foi tomado como alvo; certamente não o merecia mais do que qual-
quer outro, mas... a nobreza cria obrigações. Organizaram-se imediatamente
dois clãs. Quando se soube que o rei era partidário dos Franceses e a rainha
dos Italianos, os salões da época entraram também na contenda. No teatro, o
2
No Théâtre dês Bouffons, o que deu origem ao nome desta querela. (N. da T.)
“grupo do rei” reunia Madame de Pompadour, Rameau, Mondonville, Phi-
lidor; o “grupo da rainha”, em frente, Grim, Diderot e Jean-Jacques e Jean-
Jacques Rousseau. Como sempre sucede nestes casos, os argumentos não podi-
am alcançar o adversário e nos nossos dias tem-se visto de forma bem evidente
a vaidade de tais controvérsias.
No que respeita a Rousseau, este assumiu uma posição de polemica tão ou-
sada que se tornou ridículo para a posteridade. A sua Caria sobre a Música
Francesa, além dos ataques extremamente desagradáveis dirigidos contra Ra-
meau, contém inépcias tão solenes, que somos forcados a verificar que melhor
teria sido se este filósofo não se tivesse
metido em assuntos musicais. Pretender
que não existe “nem melodia nem com-
passo na música francesa”, que “o canto
francês é um ladrar contínuo”, que os
Franceses são “incapazes de criar uma
música própria”, e assim por diante, era
aventurar-se bastante imprudentemente
num domínio onde apenas a sua animo-
sidade e alguns muito vagos conheci-
mentos de amador o guiavam. As obras
musicais de Rousseau (nomeadamente
Lê Devin du Village) não passam de
pálidas e enfadonhas pastorais, que, não
sendo nem francesas nem italianas, só se
fossem geniais se poderiam opor às de
Rameau. Vê-se neste retrato o célebre
Em 1754, os comediantes italianos Rameau, filho dileto de Apolo,
regressaram ao seu país e a disputa per- rival da Itália, e que por novos
deu a sua intensidade. Não foi, de resto, caminhos soube descobrir-nos as
nesta época que o público francês se leis da harmonia
deixou seduzir e deslumbrar pelo encan-
to da música italiana, se nos recordarmos do sucesso já obtido anteriormente
pelos cantores italianos em Paris, um século antes.
Frontispício da partitura de Júlio César, de Haendel (1724)
Georg-Friedrich Haendel (1685-1759) é um dos mestres do século XVIII.
Representa, com Bach, a conclusão do estilo barroco transformado em classi-
cismo grandioso. Excepcionalmente dotado, Haendel (que nasceu em Halle, na
Saxónia) era aos dezoito anos tão bom organista como violinista; aos vinte já
tinha escrito uma Paixão segundo São João e duas óperas. A sua carreira foi
cheia de atribulações e de viagens. Estando ao serviço do príncipe de Hanover,
teve subitamente a ideia de tentar a sua sorte em Inglaterra. Após ter obtido
êxito em Londres, voltou a Hanover, mas a nostalgia das mundanidades londri-
nas levou-o a solicitar uma segunda dispensa e, desta vez, esqueceu-se de re-
gressar. Entretanto, produzia-se um acontecimento imprevisível: o seu antigo
amo, o príncipe Jorge, de Hanover, subia ao trono de Inglaterra (1714). Perple-
xo, Haendel preparava-se para sofrer as represálias, quando—conta a história
(ou a lenda) — por ocasião de uma festa real no Tamisa, Haendel fez acompa-
nhar o barco do soberano por outro barco onde se encontrava uma orquestra
que tocava a sua célebre Water Music, o que lhe valeu o perdão desejado.
Verdadeira ou falsa, esta anedota refere-se, contudo, a uma realidade:
Haendel forneceu à corte músicas de circunstância e era excelente no género
pomposo e decorativo. A música de Haendel, a despeito de uma ciência muito
vasta e de uma incontestável facilidade de invenção, nem sempre é profunda e
procura os grandes efeitos; a sua escrita na literatura instrumental (concertos
para órgão, concertos grossos, peças para cravo) é rica e a sua expressão
not>re, mas será nas obras de maior envergadura que ele dará o melhor de si
próprio.
Tal como Rameau, Haendel ia cometer um erro na justa apreciação das suas
faculdades, passando vários anos a tentar impor-se como compositor de ópera
italiana. Dolorosos fracassos, assim como problemas de saúde, venceram a sua
obstinação, e foi com a idade de cinquenta e sete anos que ele finalmente enve-
redou pelo caminho onde o seu gênio ia afirmar-se, com a composição do Mes-
sias, que permanece uma das obras--primas da música. O talento de Haendel
estava doravante maduro e seguiram-se então Baltasar, Jefta, Judas Macabeu,
etc. A grandeza de arquitetura, a eloquência majestosa, os sugestivos efeitos
orquestrais, tudo nestas inspiradas oratórias indica o barroco, mas também, e
não menos, o classicismo, o gosto pela ordem, o domínio de uma ampla forma
servindo de molde à inspiração.
João Sebastião Bach (1685-1750), considerado desde há um século como
um dos maiores gênios da música e que deixou obras cuja análise se revela
perpetuamente fecunda, apenas teve durante a sua vida a honesta notoriedade
de um virtuose do órgão e foi esquecido após a morte.
Ao serviço do príncipe de Anhalt-Cöthen de 1717 a 1723, compôs
essencialmente música instrumental, pois a corte, de religião reformista, não
admitia música nos ofícios divinos. Mestre de capela (organista, mestre de
coros, compositor da música dos ofícios) em São Tomás de Leipzig, de 1723
até à sua morte, acumulou com extraordinária fecundidade as obras religiosas,
os grandes corais para órgão, etc. O caso de Bach é bastante curioso: a despeito
de permanecer atento às novidades que o rodeiam e aos estilos então
espalhados nas capitais da música europeia, Bach mostra-se um fiel
continuador da técnica polifónica. Emprega o género da suite, que praticamente
já não se usava, e aperfeiçoa-o; eleva a fuga ao seu ponto culminante em
matéria de ciência; toma como exemplo um Schútz para as suas Paixões (S.
Mateus e S. João), inspira-se num Dittersdorf para as peças de órgão,
harmoniza corais de Lutero e compõe grandes “corais variados”, forma
indicando que o canto largo do coral se insere num tecido polifónico complexo.
Ele reúne assim as características do estilo barroco e do polifónico, afir-
mando-se, com tanta humildade como
majestade, um grande tradicionalista e
reencontrando a lição dos velhos mestres
polifonistas que a Alemanha sempre
conservou, pois este país admira a música
mais nobre, mais erudita, mais rica, sem se
importar que ela seja de ontem ou de hoje.
A característica de Bach, no domínio da
escrita, é de ter levado todas as formas antigas
a um ponto extremo de perfeição ou de flora-
ção. O seu traço dominante, no plano pessoal,
é o facto de que, músico de igreja, adido à sua
obscura tarefa quotidiana numa cidade pro-
vinciana, onde teve de lutar constantemente
Bach aos 35 anos
contra a ignorância e a mesquinhez de espíri-
to, ele aceitou com serenidade essa situação onde a Providência o havia colo-
cado; através das suas viagens e dos seus contactos, ele mantêm-se ao corrente
do prestigioso movimento musical exterior, sem sentir o menor azedume pelo
fato de não ter ali o seu lugar. Viúvo e casado pela segunda vez, pai de vinte
filhos, praticando a música em família, levando uma existência patriarcal, ele
criou obras “funcionais”, destinadas a servir o culto e, para ele próprio, a cele-
brar com todo o fervor, que era intenso, a glória de Deus.
As suas obras, que foram escutadas sem atenção e tocadas por instrumentis-
tas inábeis, são das mais elevadas e perfeitas que um cérebro humano possa ter
concebido. Com Haendel, Bach marca a conclusão do barroco; mas se o seu
estilo se integra no barroco pela sua majestade, a sua profusão ornamental, a
sua fantasia, é também clássico sob muitos aspectos — nem que fosse apenas
pelo facto de que qualquer das suas obras obedece a um princípio cie forma ou
de arquitetura, e que, em certos casos, a expressão se encontra voluntariamente
dominada. São de estilo barroco as paixões, fantasias e tocatas, mas clássicas
as suites, enquanto os concertos, as cantatas, as fugas se caracterizam pela as-
sociação dos dois gêneros. A grandeza essencial de Bach reside no facto de que
ele surge como um .músico de síntese; síntese dos estilos da sua época, síntese
do passado e do presente, síntese de todos esses elementos que ele ultrapassa
numa arte inteiramente pessoal.
É impossível citar as suas “grandes obras” sem evocar toda a sua produção,
pois tudo nela é grande. Os. dois livros do Teclado Bem Temperado (Wohltem-
periertes Klavier), e não “cravo” como por vezes se diz, foram escritos com
uma modesta finalidade didática, para marcar o advento do temperamento igual
e provar que, num teclado bem temperado, a sucessão das notas da escala( tons
e meios tons) se reencontra exatamente igual quando se transpõe nas diferentes
tonalidades. Já explicamos, no princípio deste livro, a teoria do “temperamento
igual”, que, de certo modo, impõe um teclado standard e uma altura de sons
igualmente standard, servindo de base a todos os instrumentos. Assim, esta
obra de Bach, que se apresentava em princípio como um simples exercício,
transpunha audaciosamente o limiar inexplorado de um novo domínio.
Os seis Concertos Brandeburgueses (escritos para o margrave de Brande-
burgo) e as quatro Suites, são expressões perfeitas de música pura. O Magnifi-
cai, a Oratória do Natal e a da Páscoa, a Missa em Si, as duas Paixões, são
monumentos cujas vastas proporções revelam uma inspiração inigualável. A
contemplação mística exprime-se nas coletâneas de corais para órgão. Em su-
ma, não existe uma única obra onde Bach não tivesse sabido, com pena infalí-
vel, deixar o cunho da grandeza e da beleza.
O lugar de Bach na música é tão considerável que existe o hábito, auxiliado
pelo recuo do tempo, de situar a sua morte no fim do grande estilo barroco. E,
efetivamente, os anos que se seguiram a 1750 indicam já uma transformação
do gosto. Os filhos de Bach e os músicos da sua geração abordarão o estilo
galante; a austera grandeza do “velho Bach” já não convém a ninguém3.
Esta primeira metade do século XVIII é de uma maravilhosa fertilidade; ter-
se-á notado que todos os músicos que acabamos de citar viveram entre o fim do
século XVII e cerca de 1750. Existem outros, como por exemplo Pergolesi
(1710-1736), que no decurso da sua breve existência saberá afirmar a sua ex-
cepcional originalidade, desde o Stabat Mater, profundamente comovedor, à
Serva Padrona, cintilante de ironia.
Domenico Scarlatti (1685-1757), filho de Alessandro, permaneceu longos
anos em Espanha e Portugal. Com as suas Sonatas para cravo, breves e mono-
temáticas, escritas num espírito de pura virtuosidade, ele dá a este instrumento
numerosas peças (mais de quinhentas) onde se manifesta uma inesgotável fan-
tasia, uma inspiração, ora poética, ora espiritual, uma escrita tão interessante
como elegante e audaciosa; em suma, sob o rótulo de esercisi, como ele dizia,
trata-se de um verdadeiro monumento musical e didático. Se a influência dos
cravistas franceses é evidente na obra de Scarlatti (e sabe-se que esta se esten-
deu a toda a Europa), ele soube, contudo, e para além da sua vivacidade ita-
liana, dar provas de qualidades criadoras que o situam ao nível dos seus bri-
lhantes antecessores. Sem esquecer as suas obras religiosas, nem as suas ópe-
ras, reconheçamos que Scarlatti é, antes de mais, o compositor de sonatas para
cravo.

3
A família de Bach forma uma verdadeira dinastia de músicos. O primeiro Bach conhecido,
Hans, nasceu em 1561; os últimos descendentes que se conhecem viveram até 1871. João
Sebastião figura no meio de uma numerosa linhagem de primos, parentes diversos, sobrinhos,
que são organistas, chantres, compositores. Entre os seus filhos, Jean-Christophe, Carl-
Philippe-Emmanuel e Wilhelm-Friedmann são os mais dotados.
Georg-Philipp Telemann (1681-1767) obteve em vida uma glória que facil-
mente eclipsou a notoriedade de Bach. Compositor amável, sedutor, bastante
superficial, teve uma carreira brilhante; o seu estilo musical, prejudicado pela
afetação, orienta-se nitidamente para o rococó. Muito eclético, era capaz de
escrever tão bem à italiana como à francesa, manejava o contraponto com des-
treza e dava provas de uma estonteante facilidade e de uma ciência excepcio-
nal. Amigo de Bach e de Haendel, foi padrinho de Philippe-Emmanuel, filho
daquele. Nos nossos dias, a despeito de se reconhecer que a sua envergadura
não era das maiores, aprecia-se neste amável músico o encanto da eloquência e
a elegância da forma.
Não citaremos aqui todos os virtuoses italianos do violino que foram com-
positores apreciados, nem todos os compositores que foram apreciados virtuo-
ses: existiram centenas. Presentemente, a moda impõe uma admiração por Vi-
valdi e pela música italiana do século XVIII, e os programas dos concertos
ostentam frequentemente nomes até agora quase desconhecidos; trata-se de
compositores menores, certamente músicos honestos, que beneficiam do pres-
tígio do rótulo “século XVIII italiano”. Na realidade eles manifestaram a. vir-
tude, desde então desaparecida, de praticar a sua arte como artífices impecá-
veis, de forma que, se o céu não lhes dispensou o gênio criador, exprimem-se
contudo numa linguagem intensa, requintadamente artística e de boa sociedade,
pelo que, evidentemente, não poderão ser censurados.
Também não citaremos os inúmeros compositores de óperas, de óperas-
bailados, ou de operas buffas que, tanto em França como na Itália, forneceram
aos seus contemporâneos noites magníficas e pretextos para discussões. A
produção geral de um país é interessante pelo nível médio que revela e pela
fecundidade que afirma — fecundidade que banha os espíritos num “clima”
artístico, representativo da época e em que todos colaboram. Mas a nossa in-
tenção é apenas a de evocar os maiores desses compositores. Em França, por
exemplo, houve uma quantidade infinita de músicos que escreveram para o
teatro nos séculos XVII e XVIII. Infelizmente os famosos “temas mitoló-
gicos” formava o seu fundo principal, e esta particularidade, aliada ao menor
valor da sua música, faria desaparecer as suas obras com a época que vira o seu
sucesso.
Do mesmo modo os autores de peças para cravo e sonatas para violino, obo-
é, ou flauta com baixo contínuo serão inumeráveis, assim como os composito-
res de obras religiosas: missas, motetos, peças para órgão. Ter-se-á reparado
que todos os grandes músicos, qualquer que fosse o gênero particular em que
se distinguiram, escreveram música de igreja. Porquê? Porque, na maioria
dos casos, ocupavam funções de mestres de capela no seio de uma corte
real ou principesca e essas funções postulavam a composição de obras destina-
das ao culto, o que não os impedia de se dedicarem, tanto à ópera, como à mú-
sica instrumental. Esta primeira metade do século XVIII vê, portanto, estabele-
cer-se insensivelmente uma ordem estética, que, poder-se-ia dizer, codifica
o barroco. Um tal impulso não podia perpetuar-se sem recorrer a princípios que
o amparem, depois de passada a grande labareda inicial. O mesmo caso repetir-
se-á mais tarde com o romantismo. Ao examinar a produção musical dos anos
1700 a 1750, reconhecem-se sem dificuldade as características do barroco;
imas também se vê surgir com idêntica nitidez o estilo clássico, pelo abandono
da ênfase, do poder, da fantasia livre, que são substituídos pela medida, a ele-
gância, a ironia, o requinte e a sujeição à forma".
Através da orquestra, e até na música de solistas, impõe-se o estilo de Man-
nheim: fixa-se a estrutura material da orquestra, tal como o tipo da sonata para
orquestra, a que se dá o nome de “sinfonia” e que se perpetuará até aos nossos
dias. Em 1734, Jean-Baptiste Sammartini (1698-1775) escreve a primeira ver-
dadeira sinfonia, em quatro andamentos, que, pela sua construção e desenvol-
vimento, vai mais longe do que as sinfonias de Mannheim. Sammartini contri-
bui assim para essa estabilização da linguagem musical, onde a ordem estética
manda e a inspiração obedece. É contudo necessário fazer uma verificação: o
grande estilo musical que reina nesse momento vem da Itália; os artistas italia-
nos — cantores, virtuoses, compositores — invadem a Europa e alcançam tri-
unfos; todos os países estão subjugados pelos seus encantos. Como se calcula,
o bom e o mau gosto caminham de mãos dadas. Mas o lado resolutamente po-
sitivo de toda esta atividade é o fato de que o grande estilo instrumental (sona-
tas, concertos, sinfonias), o grande estilo vocal da ópera e o grande estilo reli-
gioso (missas, motetos, cantatas, oratórias) florescem com luxuriante vitalida-
de.
Para completar este quadro da primeira metade do século, não esqueçamos,
ao recordar o seu classicismo, de evocar a sua disparidade, ou sejam as suas
tendências contraditórias, as suas forças que ainda se afrontam, enquanto ele
avança progressivamente para a unificação. Os esercisi, de Scarlatti, as sinfo-
nias de Stamitz, as oratórias de Haendel, as óperas1 de Rameau, as missas mo-
numentais e as pequenas peças pinturescas para cravo; Pergolesi e a sua Serva
Padrona, sim, mas também o seu Stabat Mater; Couperin e as suas Leçons de
Ténèbres, sim, mas também os seus Amours Badins; a escolástica alemã, a
ordem francesa, a exuberância italiana, a pompa britânica... Ali, onde hoje jul-
gamos ver uma paisagem harmoniosa e aprazível, reinava a própria desordem
da vida; essa época é compósita e sobrecarregada. Tem tendência a organizar-
se, muito simplesmente, e é na segunda metade do século que a ordem se afir-
mará.

De 1750 a 1789

A evolução, que se manifestava tanto nos gostos como nas idéias e nos cos-
tumes -e, por consequência, no estilo musical - afirma-se depois de 1750. É a
época do rococó e do estilo galante, a época da música amável e da vida des-
cuidada. Esse mundo, que vive os seus derradeiros momentos na euforia, sub-
meteu-se à lei do “bonito”, da qual se notam inúmeras manifestações: igrejas e
monumentos, trajos, rendas e fitas, móveis, adornos, literatura e conversas,
tudo concorre para enobrecer a futilidade e cultivá-la como se fosse uma virtu-
de. Paradoxalmente, é, contudo, neste quadro que se inscreverão os homens
graças a quem a arte musical alcançará o mais elevado nível do classicismo:
Haydn e Mozart, em primeiro plano, Gluck logo a seguir e, em volta destes,
alguns músicos trabalham no mesmo sentido. Sob uma aparência amável e sor-
ridente, a música de um Haydn ou de um Mozart encerra uma força de que os
seus contemporâneos não suspeitam e que o nosso século apenas descobrirá no
fim do romantismo: a purificação das paixões humanas, a transcendência dos
sentimentos, a luz espiritual que faz planar esta música, eternamente jovem
e fresca, por cima das modas e das gerações, pois ela alcança o essencial.
No seio da sociedade européia, o músico era um criado. Ao serviço de um
rei, de um príncipe ou de um bispo, ele usava a libré do amo e tomava as suas
refeições na copa, compunha o que o amo desejava, casava-se ou viajava con-
forme a disposição desse mesmo amo. Um bom ou mau amo podia introduzir
distinções nesta condição, mas a dependência determinava a sua vida inteira.
Nenhuma possibilidade de liberdade, exceto na miséria; não havia para o mú-
sico qualquer outra alternativa para além das funções de mestre de capela nal-
guma corte. Parece que os músicos consideraram como muito natural aquilo a
que hoje chamaríamos servidão, uma vez que não podiam imaginar outro des-
tino. Mas o constrangimento imposto pela sua condição, e, para além desta, por
uma sociedade inteira, determinou o estilo musical do fim do século.
São conhecidas, pelo menos de nome, as “músicas de mesa”, equivalência
dos nossos rádios no século XVIII, isto é um fundo sonoro que se ouve distrai-
damente, que “mobila” o desenrolar de certos atos quotidianos. A condição do
músico, dessa forma sujeito à vontade-—e frequentemente aos caprichos — de
um príncipe mais ou menos consciente do valor do seu compositor e do inte-
resse da sua música, pode parecer-nos humilhante e, por vezes, mesmo cruel.
Para sermos justos, é contudo necessário acrescentar que, alguns príncipes
mantinham uma capela musical completa, orquestra e coro, empenhando-se em
encorajar o seu mestre de capela e em favorecer a sua notoriedade. Uma coisa
compensa a outra.
Seja como for, eis a conclusão: a grande ordem clássica, o domínio da for-
ma, o reinado da medida, do equilíbrio e da linguagem intensa.
Mas não é tudo: a grande característica da música do século XVIII, Legada
pelos séculos precedentes e que se foi incessantemente precisando porque era a
consequência do esforço unânime dos compositores e dos teóricos, reside no
fato de constituir uma linguagem universal, cujas convenções (feições melódi-
cas e harmônicas, ritmos, períodos, expressão dos sentimentos, etc.) são com-
preendidas por todos. Como a língua falada, a música estabelece a sua gramáti-
ca, a sua sintaxe, o sentido das suas palavras e das suas frases; e todos a perce-
bem, mesmo que seja apenas superficialmente. Abordamos aqui o problema da
inteligibilidade de uma linguagem, para além da sua apreciação: o escritor mais
audacioso escreve hoje uma língua relativamente acessível ao leitor, enquanto
o compositor moderno se exprime, na maioria dos casos, numa língua aparen-
temente ininteligível, porque essencialmente pessoal. O problema - e o drama -
da música atual reside neste fato, neste enigma, nesta incoerência aparente,
cuja coerência só pode ser descoberta com a condição de se aprender a decifrar
a língua pessoal do autor.
Regressemos ao nosso propósito, que havíamos deixado para tentar fazer
sentir a diferença fundamental que separa a clareza, o classicismo, o conven-
cionalismo o século XVIII, daquilo que vai suceder-lhe.
Pois esse instante de equilíbrio da música não durará muito tempo.
Joseph Haydn (1732-1809) oferece um exemplo tipo do que acabamos de
esboçar. Aquele a quem chamaram o “pai da sinfonia”, porque dela nos deu os
exemplos mais perfeitos, escreveu com tanta habilidade como sinceridade a
música exata que esperavam dele. De caráter feliz e simples, esteve ao serviço
dos poderosos príncipes Esterhazy, ilustres em todo o mundo, tanto pela sua
fortuna, como pelo seu prestígio intelectual. Haydn devia passar junto desses
amos compreensivos e generosos os anos mais belos e mais fecundos da sua
vida, a servidão transformando-se, neste caso, em segurança material. E, con-
tudo, a sua disposição irônica, aliada ao seu gênio criador, impediram-no sem-
pre de se instalar numa amável mediocridade; primeiro, influenciado pelo
estilo de Mannheim, em breve despreza a música antiga e transforma-se no que
chamaríamos hoje um músico de vanguarda.
Haydn aperfeiçoa as suas sinfonias ao ponto de as transformar em verdadei-
ras arquiteturas; emprega desenvolvimentos de temas, efeitos de cambiantes,
processos originais de instrumentação: combinações de grupos, oposições
dramáticas, solos de instrumentos apoiados pela orquestra, em suma, uma
alquimia que frequentemente prefigura a sinfonia romântica. Além disso, in-
troduz na sinfonia esse elemento de que, após ele, Mozart se servirá para enri-
quecer toda a sua produção: o desenvolvimento da idéia musical. Acabaram
doravante os desenhos graciosos, os arabescos de virtuosidade, os motivos
simplesmente decorativos. A música sinfônica de Haydn manifesta a ambição
de expor, e em seguida desenvolver, uma ou várias idéias, cujo tecido sinfônico
é, de certo modo, a vestidura. Por este processo Haydn introduz na música, em
parte sem o saber, esse elemento psicológico que se vai transformar “na sua
própria essência. A centena de sinfonias que escreveu são quase todas, sobre-
tudo as da idade madura, obras-primas de engenho, de equilíbrio sonoro entre
os diferentes grupos orquestrais, de inspiração fluente e sedutora, amiúde sorri-
dente, numa linguagem pura e cristalina.
Assim, sob a amabilidade deliberada, esconde-se uma vigorosa e impulsiva
natureza criadora, inteira e totalmente virada para os mais altos valores da arte.
Haydn marcou a sinfonia clássica com o seu cunho definitivo; Mozart e Bee-
thoven inspirar-se-ão depois nas suas lições.
Christoph-Willibald Gluck (1714-1787), nascido nos arredores de Bayreuth,
foi um reformador. A sua música obedece ao classicismo do século, mas o seu
vigor, a sua nobreza aliada à simplicidade, desenham com grande exactidão o
retrato da sua personalidade sólida, de carácter autoritário, de determinações
nítidas, por vezes brutais, tal como diz a crónica. A sua carreira foi
intensamente internacional; ao segui-la, julgamos ver um dos nossos artistas
actuais, dando a volta ao mundo de avião três vezes por ano e semeando reci-
tais. Está presente nas estreias das suas óperas em Milão, Cremona, Veneza,
Londres, Dresda, Viena, Hamburgo, Praga, Nápoles, Roma e Paris, numa
época em que as viagens são ainda morosas e difíceis.. E essa mesma ambição
que o lança pelas estradas, leva-o também a aproveitar cada estada para fazer
abrir na sua frente as portas dos grandes salões e dos palácios principescos,
donde pode surgir a glória. Este “rústico de génio”, como frequentemente lhe
chamaram, é de origem checa e de educação alemã. Em contrapartida, a sua
formação musical é italiana, e se escreveu mais de cem óperas (mas quase
nenhuma obra de música instrumental) apoiou-se sempre em assuntos
históricos ou mitológicos, gozando de popularidade. Os títulos são
significativos; eis, ao acaso: Artaxerxes, Demétrio, Demofonte, Sofonisba,
Hyper-mestre, Hipólito, As Bodas de Hércules, Antígona, Issifilo, A Clemência
de Tito, Telémaco, Paris e Helena, Eco e Narciso.
Por volta dos cinquenta anos e após ter sido chefe de orquestra, organista e
diretor teatral, o cavaleiro Gluck, que estudara demoradamente o problema da
ópera italiana e meditara sobre a “Querelle dês Bouffons”, toma subitamente
uma posição. Solicita do poeta Casalbigi um libreto sobre o tema de Alceste
e Admeto (o mesmo poeta já escrevera o libreto de Orfeu); e na dedicatória
deste novo trabalho, que ele oferece ao grão-duque de Toscana, Gluck explica-
se: apenas a simplicidade é válida — escreve ele —, tanto na escolha de um
assunto, como na sua expressão dramática e na sua tradução musical, pois a
missão da música é secundar a poesia para lhe fortificar a expressão. Por meio
deste “regresso à simplicidade”, que é a sua grande idéia, Gluck pretende lutar
contra os dois males que asfixiam a ópera: a sumptuosidade abusiva do espetá-
culo e os excessos de virtuosidade vocal à italiana (tão ameaçadores como os
excessos dos grandes instrumentistas, divindades tirânicas do mundo musical).
A reação de Gluck era salutar, pois propunha ao público obras despojadas
de artifícios e de excessos ornamentais, cuja pureza e dignidade se opunham,
com sugestiva eloquência, à miscelânea de mau gosto que atravancava o reper-
tório lírico.
Esta iniciativa de Gluck não foi, porém, inteiramente coroada de êxito: a sua
declamação majestosa e solene, o seu recurso sistemático a um helenismo já
fora de moda, e até a própria destituição de ornamentos, não deixavam de pro-
vocar certo enfado. A arte, neste compositor, é por vezes afetada e o conven-
cionalismo triunfa com demasiada frequência. Seria perfeitamente inconveni-
ente discutir as belezas que iluminam certas páginas de Orfeu, de Armide, de
Ifigénia em Táurida e Ifigénia em Aulida, mas estas obras não deixam de reve-
lar algumas fraquezas comuns às composições líricas da época.
Notar-se-á com certa surpresa, que Gluck emitiu sobre a música um juízo
extremamente audacioso: “A música é uma arte limitada”, disse ele, “e sobre-
tudo na parte que se chama melodia. Na combinação de notas que compõem
um canto procurar-se-á em vão um caráter próprio de certas paixões: tal não
existe.”
Esta é, a duzentos anos de distância, a opinião de Strawinsky, afirmando que
a música é, por essência, incapaz de exprimir seja o que for. Esta filosofia da
música não pode ser aqui analisada - pois arrastar-nos-ia longe demais - mas é
bastante curioso verificar que Gluck nega à música qualquer poder expressivo,
negando, portanto, também a sua missão ritual. Por outro lado, esta afirmação
explica que Gluck faça da música uma serva das palavras, cuja expressão for-
tifica. É assim que a famosa ária de Orfeu, J'ai perdtt mon Eurydice, é uma
desolação cantada no modo maior, quando o menor é normalmente utilizado
para as melodias tristes; e certo crítico pôde dizer que outras palavras se lhe
adaptavam igualmente bem. Noutros termos, na opinião de Gluck a música não
possui vida nem carácter próprios; ela apenas adquire sentido em função do
texto.
É evidente que este desdém dos “ornamentos supérfluos que interrompem a
acção” alvejava de forma tão nítida a ópera italiana que os adversários de
Gluck suscitaram, tal como no caso de Rameau, uma nova querela: mandaram
vir de Itália um rival, Piccini, a quem foi confiada a missão de destronar o
“gosto francês”. A despeito do sucesso momentâneo de Piccini, Gluck saiu
engrandecido da batalha entre gluckistas e piccinistas. É incontestável que a
dignidade do seu estilo exerceu uma influência altamente benéfica na sua épo-
ca. Orfeu (1762) e Alceste (1767) são as duas obras onde mais nitidamente se
marca o alcance da sua reforma.
Um destino cruelmente irónico estava reservado a Mozart (1756-1791), um
dos génios mais singulares de toda a história da música: após uma infância
radiosa, em que foi animado pelos grandes deste mundo, cumulado de
admiração e de glória, conheceu na idade adulta as infelicidades de um
casamento inadequado com uma mulher frívola e sem inteligência e, em
seguida, o desgosto de afrontar a indiferença dos seus contemporâneos, a quem
já não interessava depois de passada a idade do menino prodígio. A labuta
febril, os excessos de trabalho que se impôs para conseguir ganhar algum
dinheiro, os cuidados da luta pela existência minaram a sua saúde já delicada,
falecendo aos trinta e cinco anos.
Improvisador extraordinário, virtuose do cravo aos oito anos, deu a volta à
Europa acompanhado pelo seu pai, Leopoldo, músico também, ao serviço do
príncipe-arcebispo do Salzburgo. O processo de Leopoldo Mozart perante a
história ainda não terminou: terá ele abusado do talento e das forças do seu
filho, ao passeá-lo como se fosse um macaco sábio através de uma dezena de
países? Terá ele sido, pelo contrário, um mestre sensato que lucidamente per-
mitiu o desenvolvimento das faculdades desse filho excepcional? Não podemos
duvidar que o desejo de lucro e a vaidade desempenharam um papel na sua
atitude.
A educação musical de Wolfang-Amadeus faz-se ao acaso das viagens; em
cada país trabalha com um professor diferente. É sem dúvida este fato que lhe
dará mais tarde essa facilidade de pena e essa faculdade de poder escrever “em
qualquer estilo”, como ele próprio orgulhosamente declara. As suas obras reve-
lam, de resto, os estilos italiano, alemão e francês e, com a extraordinária es-
pontaneidade que sempre manifesta, Mozart nunca se preocupará com teorias
estéticas: escreve no estilo que melhor convém à obra que aborda e à idéia que
pretende exprimir.
A sua produção é considerável: mais de seiscentos números, incluindo ópe-
ras, música religiosa, instrumental, sinfônica. Esta produção, onde não se en-
contra um vestígio de mediocridade, está marcada por um sinal: a graça. Tudo
quanto Mozart faz resulta perfeito; possui por instinto o segredo da beleza, da
elegância, da leveza, da pureza. Ele “fala justo”. Ele nunca força. O seu encan-
tador sorriso, a sua melancolia pudica, a sua finura, conferem à música o cunho
da perfeição suprema.
Mas não é tudo: Mozart manifesta também um conhecimento que, poder-se-
ia dizer, completa estas qualidades ou virtudes natas: a sua técnica de compo-
sitor é precisa, erudita; a sua pena corre sem hesitações. As idéias surgem,
sempre claras, e organizam-se harmoniosamente. Quando escreve um concerto
para piano, violino, clarinete, fagote ou trompa, fá-lo com exato conhecimento
das possibilidades técnicas do instrumento; e é dentro desses limites bem defi-
nidos que ele deixa correr a sua inspiração poética, irônica ou dramática.
A grande virtuosidade instrumental é nele resplandecente, mas inteiramente
subordinada às leis da forma. É este fato que faz de Mozart - com Haydn - o
melhor representante do classicismo. Todas as
suas obras instrumentais são baseadas num
princípio de geometria sonora que contém ide-
almente a expressão— uma expressão aérea,
situada entre o Céu e a Terra.
Nas suas óperas, construídas sobre o modelo
italiano (recitativo secco e árias), o convencio-
nalismo do gênero desaparece para dar lugar à
espantosa realidade humana. Além destas (Cosi
fan Tutte, As Bodas de Fígaro, D. João), escre-
ve óperas sobre libretos alemães (O Rapto do
Serralho, A Flauta Mágica). Reencontrando e
fixando a forma já utilizada do singspiel, com-
binação da ópera cômica francesa e da opera Mozart em 1783
buffa italiana, Mozatt não hesita em associar os
gêneros no seio da mesma obra (assim as cenas burlescas de Leporello
integradas no violento dramatismo de D. João). Mozart levou a ópera italiana
à perfeição, como levou à perfeição todas as formas existentes, mas nunca
se esforçou no sentido de as codificar. Pelo contrário, insuflou-lhes uma
vitalidade ardente e muitas vezes audaciosa.
Sabe-se que Haydn (que Mo-
zart venerava) disse a Leopoldo:
“Declaro-vos perante Deus que o
vosso filho é o maior músico que
conheço.” Não só Mozart foi esse
grande músico, como ainda mani-
festou qualidades completamente
incompreendidas, devido às quais
teve de arrostar com a má vontade
dos seus contemporâneos - as suas
qualidades de homem. Ao contrá-
rio dos músicos-criados, que acei-
tavam a sua sorte com bonomia ou
resignação, Mozart foi um revol-
tado, pronto a escoicear nos va-
rais, ironizando ou resmungando
a propósito da sua condição ao
serviço do arcebispo de Salzebur-
go. Após ter sido vergonhosamen-
te expulso dessa casa, onde o seu
lugar às refeições era ao lado dos
moços de cavalariça, sendo a
“parte alta” da mesa reservada
para os criados de primeira classe, Emmanuel Schikaneder, o criador do
retomou definitivamente a sua papel de Papagueno na Flauta Mágica
liberdade e descobriu a miséria.
Consciente da sua dignidade e da injustiça do destino, frequentou em Paris os
meios que preparavam o terreno onde ia germinar a Revolução. As suas Bodas
de Fígaro eram, para a época, subversivas e impertinentes. Na obra de Beau-
marchais, primeiro censurada e em seguida dando lugar a inúmeras controvér-
sias, a sátira social desenvolvia-se em cheio. Trocava dos aristocratas, cujo
papel era pouco brilhante, e admirava-se Fígaro, o plebeu, cuja astúcia valia
bem o privilégio do nascimento.
As idéias de Mozart não eram apenas pura especulação; fez-se inscrever na
maçonaria, que representava para ele uma forma de igualdade humana de que
se sentia ávido. Ali, homens da mesma condição dos seus antigos amos poderi-
am chamar-lhe “irmão”. Foi para eles que escreveu A Flauta Mágica, cujo te-
ma evoca os ritos de iniciação maçônicos. Simultaneamente Mozart afirmava-
se um cristão sincero; com a sua Música Fúnebre Maçônica e o seu Requiem
ou o seu perturbante Ave Verum, ele dava livre curso ao seu fervor e ao seu
ideal - um ideal onde o amor de Deus não podia excluir a fraternidade humana.
Tanto na sua obra como na sua vida, Mozart revela-se um espírito avançado;
transborda do quadro convencional e do preciosismo do seu tempo; encara com
olhar lúcido os seus contemporâneos. Reivindicando a liberdade do artista, ele
exprime essa liberdade na sua música; a despeito dos contornos banais postula-
dos pela linguagem da época, e de que frequentemente fez uso porque estes lhe
eram tão naturais como as imagens familiares da língua falada, a sua obra fer-
vilha de audácias e de surpresas. E se Mozart criança pode ser inteiramente
contido nos limites do “estilo galante”, sabemos que Mozart adulto já nada tem
de comum com ele: sob o sorriso convencional a sua música torna-se grave;
com as suas personagens de ópera atinge as fronteiras do idealismo psicológi-
co. Tinge-se de cores sombrias e trágicas. Nas três últimas sinfonias, no D.
João, nos últimos concertos para piano e no Requiem existe uma ordem clás-
sica soberba e infalível, mas também uma grandeza, uma eloquência sacra,
uma nobreza perturbante. Nesse momento, Mozart tornou-se no verdadeiro
Mozart, isto é o músico cuja obra coroa o século e indica o caminho ao futuro.
Assim termina o século XVIII, numa apoteose. Mozart domina a época, mas
à sua volta diversos músicos acrescentam a sua pedra ao edifício.
Não se deve por exemplo esquecer o napolitano Domenico Cimarosa (1749-
1801), cujo estilo se aproxima do de Mozart. Particularmente hábil na opera
buffa, Cimarosa deixou Il Matrimonio Segreto “(Casamento Secreto”), que é
uma das mais encantadoras obras-primas do momento. A sua carreira foi bri-
lhante: permaneceu três anos na corte de Catarina II da Rússia, viveu em Viena
e em Nápoles e gozou de grande celebridade.
Luigi Boccherini (1743-1805) é hoje apenas recordado por um minuete a-
mável e um brilhante concerto de violoncelo. Caprichos e injustiças da glória:
Boccherini, músico cheio de espírito, de fantasia e de originalidade, foi um dos
melhores representantes do estilo rococó no fim do século e a sua obra merecia
ser também “novamente descoberta”. Na sua música ouvem-se por vezes acen-
tos mais sentimentais do que na dos seus contemporâneos, como se preludiasse
à grande explosão romântica. Conheceu uma glória internacional, foi composi-
tor do rei da Prússia, Frederico-Guilherme II, e do infante de Espanha em Ma-
drid, onde regressou e morreu, já esquecido.
Citemos ainda o italiano Viotti (1753-1824), que formou numerosos
violinistas em França e aperfeiçoou o concerto; Muzio Clementi (1752-1832),
que todos os jovens alunos pianistas conhecem e que, pelos seus estudos e
sonatas (um tanto descuidadas), enriqueceu a literatura do piano; o espanhol
padre António Soler (1729-1783), músico eminente que domina a sua época;
Philippe-Emmanuel Bach (1714-1788), interessante autor de sonatas para
cravo; e André-Modeste Grétry (1741-1813), oriundo de Liège mas residindo
em França, compositor agradável, sensível e elegante, excelente na ópera
cómica, na qual introduz, sob uma bela
forma clássica, inflexões sentimentais
bastante sugestivas.
Este último ocupa um lugar importante
no século, do qual exprime fielmente a
sensibilidade. Célebre em toda a Europa,
cumulado de honrarias, a sua reputação
sobreviverá à Revolução de 1789. Após
ter escrito típicas pastorais, tais como
Céphale et Procris ou Zémir et Azor, de
que possuímos algumas páginas encanta-
doras, Grétry comporá obras como a Ro-
seira Republicana, onde surge, de forma
flagrante, a ruptura entre o antigo e o no-
vo. João Domingos Bontempo,
Em Portugal, citemos Carlos de Seixas grande pianista e compositor
(1704-1742), cravista, organista e compo- português
sitor, que nas suas tocatas, minuetes, fugas, concertos e sinfonias acusa a influ-
ência de Scarlatti, e Marcos da Fonseca Portugal (1762--1830), que escreveu
uma vasta obra lírica, também dominada pelo estilo italiano, dedicando-se à
música religiosa nos últimos anos da sua vida; mas deve destacar-se a figura de
João Domingos Bontempo (1755--1842), homem integrado nas ideias liberais e
introdutor em Portugal dos princípios da escola de Viena. Grande pianista e
compositor, distinguiu-se como virtuose do seu instrumento em Paris e Lon-
dres. Fundador da Sociedade Filarmônica de Lisboa, destinada a revelar a nova
música, continuou, 'mais tarde, a sua obra pedagógica como professor do então
recém-criado Conservatório de Música. Nas suas obras incluem-se sinfonias,
concertos, sonatas, variações para piano, música de câmara e coral-sinfónica
(Missa de Requiem, dedicada à memória de Camões).
Todos estes músicos resumem o século e rematam a evolução que se havia
iniciado cento e oitenta anos antes, com o advento do barroco. Se alguns caem
já no preciosismo, outros dão à arte clássica os seus mais belos frutos. Essa
transparência, essa beleza harmoniosa, essa luz espiritual, não voltará a ser
reencontrada, pois 1789 está agora muito próximo.

O espaço de uma revolução

Os anos que rodeiam 1789 vêem a Revolução Francesa preparar-se, eclodir


e em seguida organizar-se, para finalmente transmitir ao mundo inteiro a recor-
dação do seu ideal igualitário, quando ela própria já tinha deixado de existir. A
história escolheu o honesto Luís XVI e Maria Antonieta para enfrentarem a có-
lera de um povo. A promoção social da classe burguesa, que se tornara podero-
sa, a louca inconsciência dos aristocratas, o desenvolvimento do espírito crítico
dos filósofos e dos intelectuais, a organização da franco-maçonaria recrutada
por Montesquieu, Voltaire, Franklin, alguns príncipes e eclesiásticos, cami-
nham a par da situação cada vez mais miserável do povo. A Revolução será,
decerto, um choque social muito importante, mas também o resultado de uma
evolução filosófica. Desmorona-se todo o edifício cultural, para dar lugar a um
mundo onde os valores antigos já não circulam. Esse mundo enverederá por
um caminho diametralmente oposto ao Ancien Regime e instaurará uma filoso-
fia, uma economia, uma política, uma vida social e princípios estéticos que
nada devem ao passado e são a sua própria criação.
Aplicados à música, os princípios da Revolução traduzem-se da seguinte
forma: a arte de salão, destinada a uma elite e feita de eloquência cortês, é ba-
nida em proveito de uma música que deverá exaltar o sentimento revolucioná-
rio, falar ao povo numa língua simples e emocionante, celebrar os aconteci-
mentos nacionais, glorificar a liberdade conquistada, etc.

1789: o povo de Paris dança em torno


da estátua de Henrique IV
À música civilizada de uma sociedade civilizada sucede a música livre de
uma sociedade que quer ser livre. É a explosão e o fluir sem freio dos
sentimentos, é também o aparecimento de uma arte social, cuja qualidade é
muito menos fina do que a precedente, que já não se preocupa com a perfeição
formal nem com as maneiras corteses, mas que encara tarefas
diferentes: entre outras, a de nutrir o povo de lirismo substancial, de ambições
grandiosas e espectaculares. Mas, inevitavelmente, são a grandiloquência, a
ênfase e o mais rudimentar sentimentalismo os primeiros a manifestarem-se:
este mundo acaba de nascer, com furor e orgulho rejeitou séculos de
civilização e ainda não sabe falar a sua própria língua; ou melhor, ainda nem
sequer sabe que língua falará. Na realidade, são os músicos alemães do século
romântico que traduzirão e exaltarão o estado de espírito gerado pela
Revolução. Na embriaguez da recente vitória, os músicos franceses tentam a
ilustração de temas patrióticos: a morte dos tiranos, a festa das mães, a
apoteose do trabalho, a carmanhola, o hino ao Ser Supremo. Compositores
como Gossec, Méhul, Grétry, Cherubini, Lesuer, escrevem óperas, hinos e
cantatas cujos títulos parecem hoje saborosos: Os Verdadeiros Republicanos, O
Acordar do Povo, Hino à Fraternidade, Canto do 25 Thermidor, Canto dos
Triunfos da República, Canto das Vinganças, etc.
Algumas obras eram tocadas nas praças públicas por centenas de executan-
tes (por vezes perto de um milhar), compreendendo imponentes conjuntos co-
rais; o fragor das trombetas e trombones, o martelar dos tambores, faziam deli-
rar o auditório. Este lirismo coletivo, expressão rudimentar mascarada de exal-
tação “sublime”, era inevitável a partir do momento em que o compositor se
obrigava a exprimir a ideologia do tempo. Mas esta crise de crescimento ape-
nas duraria alguns anos—o espaço de uma revolução. Em breve foi esquecido
esse repertório, assim como os músicos que o haviam criado. Alguns destes
tinham-se tornado poetas da Revolução com comovente sinceridade (que nem
sempre, infelizmente, fazia honra à sua exigência artística); outros souberam
associar alguma habilidade ou prudência.
Após esta labareda, a música do século anterior terá definitivamente desapa-
recido. A arte já não será doravante o divertimento tranquilizador reservado a
uma fração da sociedade: passional, tumultuosa, tornar-se-á numa das forças
profundas que animam o homem, será a linguagem da sua vida psicológica.
VIII - O ROMANTISMO

Uma das consequências da Revolução será a completa transformação do es-


tatuto social do músico. A era dos mecenas e dos príncipes que mantinham
uma capela ou uma orquestra terminou; terminou também o tempo do músico-
criado-de-libré, que recebia como salário alojamento e refeições. Eis o advento
do músico livre, cidadão entre os outros. Esse músico que já não tem amo, ori-
undo de uma ordem social onde o seu lugar estava fixado, entra agora num
mundo onde lhe será preciso lutar para sobreviver; pois ele está perdido no
meio da multidão e a multidão não se preocupa com ele.
E aqui começa uma história, por vezes dramática, que ainda hoje não
terminou: a da solidão do artista na sociedade, uma sociedade à qual ele tem de
se impor. As inúmeras vantagens e a incontestável segurança de que
actualmente desfruta não solucionam o problema fundamental desta solidão,
que atinge sobretudo os criadores mais originais ou mais orgulhosos. As
atribulações, por vezes cruciantes, de alguns dos grandes músicos do século
passado são apenas variações sobre este tema único: a solidão. Este facto deu
até origem a que se formasse uma falsa imagem do artista romântico,
espalhando a convicção de que o sofrimento e a miséria fazem parte das
provações pelas quais todo o verdadeiro criador deve necessariamente passar.
Simultaneamente, o sucesso consagrado pela prosperidade material tornou-se
suspeito; não se andou longe de pensar que um artista que consegue alcançar
uma posição é um “burguês”, um “comerciante”, um “arrivista”. O romantismo
legou-nos muitos preconceitos gerados por essa exaltação da situação
antisocial do artista. Na nossa época, a fortuna de um Picasso ou de um
Strawinsky, sem falar nos grandes virtuoses, prova que afinal um criador não
fica necessariamente diminuído pelo facto de alcançar o êxito e as
consequentes vantagens materiais.
No que se refere ao plano social, o artista do século XIX vai, portanto, fazer
a dura aprendizagem da liberdade. No plano estético produz-se a seguinte “vi-
ragem” fundamental: uma vez que a Revolução libertou o indivíduo, a arte vai
assumir o rosto do indivíduo; o ideal de uma beleza abstrata e quase anônima
vai dar lugar a um ideal que exaltará o homem individual, surgido da coletivi-
dade secular. Assim se explica que a música se dramatize, se torne sentimental,
patética; o romantismo de Goethe impregna os corações e o romantismo dos
filósofos franceses responde-lhe como um eco. O movimento do Sturm una
Drang (tempestade e assalto), que na Alemanha resume as idéias novas, prova
que o homem oriundo da Revolução está—como hoje diríamos — considerà-
velmente “sensibilizado” pelo seu novo estado e pelos acontecimentos da sua
época.
É nesta atmosfera que se desenvolve a nova música; centrada no homem e
no seu mistério, nos segredos do seu coração, que a ordem do século XVIII
tinha prudentemente enterrado. A criação musical é um impulso, uma confi-
dência, traduz as emoções no estado bruto; para atingir esta finalidade ela já
não pode utilizar as formas da linguagem antiga. Liberta-se, portanto, comple-
tamente, desta e cria formas “livres”, que favorecem a improvisação e de que
até só os nomes são significativos: em vez de títulos tais como concerto, sinfo-
nia, sonata ou então allegro, adagio, etc., o que vimos agora? Fantasia, noctur-
no, balada, rapsódia, prelúdio, poema sinfônico, ou então molto appassionato,
misterioso, con tenerezza (com ternura), etc. As indicações de forma cederam o
lugar às indicações de sentimentos.
Também se modificou um critério de valores: uma obra apreciar-se-á sobre-
tudo pela sua intensidade de expressão e força persuasiva, de preferência às
suas qualidades de estilo; aos valores objetivos sucederão os valores subjetivos.
A música transpõe o limiar da psicologia, da filosofia, da metafísica; aborda
as grandes perguntas formuladas pelo homem a respeito da vida, do amor, da
morte, do além, assim como das suas mais íntimas preocupações. Ela dá a essas
perguntas respostas inefáveis, para além do raciocínio e da ciência, tornando-se
num poderoso meio de conhecimento espiritual: “A música é uma revelação
mais alta do que a ciência e a filosofia”, disse Beethoven. Assistimos aqui à
mais recente das grandes transformações da música no decurso da sua história:
nunca até então fora chamada a desempenhar semelhante papel. O romantismo
abre-lhe as portas de um imenso domínio que ela ainda hoje continua a explo-
rar, a despeito das transformações importantes surgidas no século XX; mas não
nos antecipemos. É a aventura humana, e nada mais do que esta que se exprime
nos lieder de Schubert e Schumann, nos dramas líricos de Wagner, nas sinfo-
nias de Beethoven, nos frescos de Berlioz e Liszt, nas confissões de Chopin.
Ainda falta salientar duas características, para completar a imagem do ro-
mantismo; duas características que parecem não ter despertado o interesse dos
historiadores da música. Primeiro, o romantismo é triste, ele exprime, antes de
mais, a paixão dolorosa e o desespero. Será assim, de resto, que ele esgotará as
suas forças. Como explicar esta faceta do romantismo, quando afinal ele surgi-
ra de um sentimento de triunfo e de libertação? Nunca se reparou neste parado-
xo, contudo bastante claro: se o romantismo se deleita nas lágrimas, é porque
ele é um narcisismo. Obsediados pela exploração do “eu” íntimo, os românti-
cos foram as vítimas do seu próprio jogo. Herdeiros dos literatos que desenvol-
veram a “sensibilidade”, o sentido trágico da vida, imolaram-se literalmente a
essa idéia. Todo o narcisismo engendra uma tristeza fatal: o romantismo não
podia escapar-lhe.
Em segundo lugar, o romantismo é germânico. À parte Berlioz (herdeiro dos
grandes compositores de hinos revolucionários e, de resto, rejeitado pela sua
geração), a França não produziu um único compositor romântico. É que o mo-
vimento romântico -filosófico, literário ou musical- com tudo quanto encerra
de irracional, de misterioso de “força obscura”, é próprio da sensibilidade ger-
mânica ou eslava e mal adequado para estimular o gênio racional da França.
Esta permanecerá constantemente fora do poderoso movimento lírico e expres-
sionista que anima a Europa Central e tal fato explica-se pelas mesmas razões.

Os grandes músicos

Após 1789, a produção musical atravessa um período de confusão. Como já


vimos, alguns compositores “alistaram-se” no novo regime; outros porém, por
motivos de idade ou de gostos, continuam a escrever, pacificamente, no estilo
em que sempre escreveram e, sem dar por isso, atravessam assim a fronteira de
1800. Mozart morreu em 1791, com o mundo que encarnou, mas Haydn, que
morrerá em 1809, sobrevive perfeitamente à Revolução sem introduzir qual-
quer modificação na sua maneira de compor; e Beethoven, que tem dezanove
anos em 1789, escreve as suas primeiras obras sob a nítida influência de Haydn
e de Mozart, aos quais dedicou um culto. O estilo novo vai porém afirmar-se e
a música verdadeiramente gerada pela Revolução será sobretudo a dos român-
ticos alemães, de preferência à dos Méhul, Gossec, Boieldieu, Lesueur, Rouget
de 1'Isle (autor de La Marsellaise, um dos numerosos hinos revolucionários da
época, mas um dos raros que sobreviveram).
Franz Schubert (1797-1828), nascido em Viena, falecido com trinta e um
anos apenas, surge nas suas primeiras obras como o herdeiro de Mozart, de
quem tem a delicadeza e o requinte. Clássico sob muitos aspectos, Schubert
encontra, contudo, acentos apaixonados e uma intensidade poética que rompem
o convencionalismo. Pode ser considerado como o primeiro dos românticos por
ordem cronológica, pois nos seus lieder aparece, de uma forma completamente
inesperada na música, a anais livre expressão de íntima confissão. Ele introduz
assim um elemento novo, em que todo o século se inspirará. O lied, forma
essencialmente alemã, é uma melodia acompanhada, onde o texto poético, o
canto e seu acompanhamento formam um todo indissolúvel, cuja música
sublinha as menores inflexões psicológicas com tanta subtileza como in-
tensidade subjectiva. Existe, portanto, uma profunda diferença entre a melodia
clássica, essencialmente objectiva, e o lied romântico.
A vida de Schubert foi banal e lamentável: aspirações sentimentais desiludi-
das, falta de meios (não dispunha de piano e compunha numa mesa), algumas
saídas na companhia de amigos bebedores e outras tantas conversas inflamadas
sobre a arte; e nada mais. E, todavia, uma prodigiosa fertilidade criadora: mais
de seiscentos lieder, peças para piano, obras de música de câmara e sinfonias.
O gênio encantador e tão vienense de Schubert não deve fazer esquecer a
grandeza que talvez encerrasse e cujo eco transparece nas expressões mais
sombrias que por vezes atravessam a sua música. Mas Schubert não teve tempo
de ultrapassar a juventude, e essa juventude, como a de Mozart, foi, antes de
mais, uma floração radiosa. A par dos improvisos ou das valsas para piano, de
um delicioso descuido, existe contudo o Dappelganger (“Sósia”), o Quinteto
em Dó (canto do cisne escrito pouco antes da sua morte) e o quarteto A Rapa-
riga e a Morte. E fica-se subitamente surpreendido pela expressão de uma tris-
teza infinita, por certos gritos de desespero e de angústia, que revelam bem o
fundo da sua alma.
Ludwig van Beethoven (1770-1827) domina todo o século romântico, de
que foi um dos mais poderosos tribunos. A sua música exprime as mais vastas
ambições da Revolução; Beethoven é o cantor épico dos tempos novos. É um
homem de ideias avançadas, profundamente republicano, exteriorizando (por
vezes com bastante ingenuidade) o seu desprezo por todos quantos usam um
título. A sua frase “Não reconheço outra superioridade que não seja a do
coração”, define a sua atitude, tal como a resposta que deu, um dia, a certo
príncipe: “Homens como vós ha muitos, mas Beethoven há só um.”
Muitas das suas obras têm a marca das suas políticas ou das suas aspirações
filosóficas e humanitárias; é mediante esta faceta que ele surge como o cantor
dos tempos novos e, através dele o novo significado da música transformada
em veículo das grandes idéias. Fidelio, glorificação do amor conjugal, mas
lamber protesto apaixonado contra a tirania; Egmont, exaltação da resistência à
opressão; A Terceira Sintoma monumento erguido em homenagem a um revo-
lucionário libertador -Bonaparte - e, em seguida, A Memória de Um Herói,
quando Beethoven, indignado, tem conhecimento de que Bonaparte se fez co-
roar imperador; a Nona Sinfonia, verdadeira solenidade musical, coroada pelo
Hino à Alegria, de Schiller, que Beethoven acrescentou após muitas hesitações
e que traduz a lua profunda necessidade de exprimir as suas idéias igualitárias
sob a mais intensa forma lírica.
Outras páginas, hoje esquecidas e apenas de circunstância, são significati-
vas: em 1813, a sinfonia Vitoria de Wellington; em 1814, um coro guerreiro,
Renascença da Alemanha (Germanias Wiedergeburt). Para a tomada de Paris,
em 1815, compôs um coro Tudo Está Consumado (Es ist Vollbracht). É evi-
dente que Beethoven conservou a paixão pela política ate a idade madura. O
seu orgulho feroz e intransigente e do domínio público; sabe-se que ao passear
com Goethe e cruzando-se com alguns nobres que o poeta cumprimenta, Bee-
thoven volta a cara para o lado ostensivamente e, em seguida, censura viva-
mente Goethe pela sua atitude...
Beethoven é de origem flamenga; a sua independência agressiva é caracte-
rística dessa origem e a sua música também apresenta o mesmo cunho; certos
ritmos de danças, por exemplo, certas manifestações de uma alegria rude. Se o
seu gênio não tem qualquer necessidade de justificação, pois o génio aparece
onde quer, homens como Brueghel, Rubens, Teniers, Permeke, explicam-no,
contudo, sem arbitrariedade.
Partindo da influência clássica, Beethoven avança rapidamente no caminho
do desconhecido e da descoberta. A composição representa para ele uma aven-
tura exaltante; ele agarrará o destino pela garganta e “realizar-se-á” totalmente
na sua música, procurando simultaneamente exprimir o seu ser mais autêntico e
atingir um ideal inacessível. Personifica assim o perfeito tipo do artista
romântico, com os seus tormentos infinitos, do mesmo modo que personifica a
aventura do espírito humano em busca da verdade ou de Deus. Toda a sua vida
é um exemplo de heroísmo e de combate. “Nascida no coração, que ela atinja o
coração”, disse ele da sua música, manifestando assim o alcance
essencialmente sentimental que lhe atribuía.

Beethoven em Viena Uma página do caderno de esboços de


(desenho de Lyser) Beethoven
Conhecem-se as peripécias dramáticas da sua existência, a sua solidão, a sua
surdez, o seu temperamento pouco sociável, o seu desprezo pelas contingên-
cias, as suas lutas contínuas para conse-
guir viver mesquinhamente, as suas de-
cepções sentimentais, as suas “bem-
amadas idéias”, que o consolam de uma
amarga verdade. Com o decorrer do tem-
po, e sem nunca deixar de animar as suas
obras de um marulho de paixões, fecha-se
cada vez mais na meditação e as suas úl-
timas páginas exprimem os mais sublimes
pensamentos. No plano musical, Beetho-
ven faz da sinfonia um vasto fresco efer-
Beethoven vescente de vitalidade, da sonata uma lon-
ga confissão onde a forma antiga se en-
contra metamorfoseada; e de toda a sua
produção uma intensa busca de vida interior e de meios de expressão incessan-
temente renovados e adaptados aos seus intentos. A sombra imensa de Beetho-
ven projeta-se até ao nosso século com permanente atualidade.
Frédéric Chopin (1810-1849), polaco pela mãe e francês pelo pai, tem o or-
gulho da primeira e o requinte do segundo. Com uma sensibilidade à flor da
pele, sofrendo por tudo quanto o rodeia, acusando com dolorosa acuidade os
menores embates da existência, Chopin vive uma infância infeliz na Polônia.
Ferido muito jovem por uma primeira decepção amorosa, deixa o seu país aos
dezanove anos. A revolução de Varsóvia coincide com a sua partida e fixa en-
tão residência em Paris. Exclusivamente preocupado com o piano, leva uma
vida mundana, favorecida pelas relações que estabeleceu e lhe garantem um
ganha-pão sob a forma de lições às jovens da aristocracia francesa ou polaca
emigrada. O seu encontro com George Sand, mulher autoritária e maternal,
oferece-lhe um ambiente de vida familiar (George Sand tem dois filhos) e de
afectuosa solicitude de que ele necessita, mas que todavia lhe pesa. Rompe essa
ligação, que o temperamento de George Sand tornava dificilmente harmoniosa,
e naufraga na melancolia e no desalento.
Homem de espírito penetrante, de uma
inteligência muito mais viva do que a len-
da deixa supor (como o provam as suas
palavras e os seus escritos), personalidade
forte e original, mas dominada pela sensi-
bilidade e certo gosto pelo sofrimento que
ele não consegue vencer, Chopin levará
uma existência aparentemente ociosa e
frívola, que criou uma ilusão. Traumatiza-
do pela desilusão do seu primeiro grande
Chopin amor por Maria Wodzinska, bem como
pelas circunstâncias humilhantes do rom-
pimento (a jovem, de uma grande família burguesa, obedecera às ordens do
pai, que desprezava os artistas), e em seguida pela catástrofe da revolução, do
exílio, da separação da família, Chopin chegara a Paris aos vinte anos, já roído
pela tristeza e o abatimento. Nunca mais sairá desse estado. A sua saúde altera-
se e, após anos de provações físicas, morre tuberculoso aos trinta e nove anos.
Chopin é vítima de um mal-entendido, pois a sua maneira de viver iludiu,
durante largo tempo, a sua natureza profunda. As suas escassas Valsas não de-
vem fazer esquecer que a sua obra, toda ela, está impregnada de orgulho, de
sentimento trágico, de revolta, bem como, também, de uma emoção e de um
lirismo fascinantes.
É necessário considerar a diversidade do seu talento, que sabe ser o de um
técnico lúcido e preciso nos seus Estudos, de um poeta bucólico nas Mazurkas,
de um sonhador apaixonado nos Nocturnos e de um visionário poderoso, aluci-
nado (um aspecto do seu talento que nunca foi convenientemente observado),
nas Baladas, Sonatas e Polacas.
Chopin é, com Liszt, o grande descobridor da técnica pianística. O seu estilo
absolutamente pessoal, á parte uma ligeira influência italiana (certo coque-
tismo do ornamento), revela a amplidão dos meios ao seu dispor: melodias
flexíveis e ondulantes, encanto de expressão, invenção espontânea, colorida, de
infinita variedade, passagens e efeitos pianísticos deslumbrantes, instinto da
harmonia enriquecendo o sentido da melodia ou do efeito dramático. Chopin
foi um dos primeiros compositores que imaginaram um ritmo complexo,
inesperado, pontuando a frase ou, pelo contrário, possuindo uma vida
autónoma e dando nascença à melodia.
Chopin tinha vinte anos quando atraiu a atenção pela publicação dos Doze
Estudos Op. 10 para piano, páginas que, sob pretexto didático, revelam um ta-
lento de uma novidade e originalidade que desorientam. A força insuflada por
este adolescente numa tal obra prova de forma eloquente que a indolência em
que se comprazia a sua natureza fatalista em nada altera o caráter vigoroso,
brilhante, apaixonado da sua música, que já tinha sido escrita quase na totali-
dade quando a doença o transformou no quadro falsificado que a imaginação
popular nos legou.
Robert Schumann (1810-1856) é, com
Schubert, o grande músico do lied, onde
soube verter o melhor de si próprio. De
uma sensibilidade aguda, os aconte-
cimentos exteriores refletiam-se nele, tal
como em Chopin, com tanta intensidade
que a sua vida psíquica se transformou até
ao desequilíbrio. As infelizes peripécias do
amor que dedicava a Clara Wieck (a irre-
dutível oposição do pai de Clara iria durar
sete anos) exasperaram a sua combativida-
de e as suas faculdades criadoras, arran-
cando-lhe obras de expressão pungente; Robert Schumann
mas uma existência de lutas e de exaltação
acabou por acentuar o seu desequilíbrio. A apaziguadora felicidade que Clara
lhe iria mais tarde proporcionar já não poderia deter o desenrolar de um pro-
cesso fatal: alucinações, crises de desespero, hipocondria. Aos quarenta e qua-
tro anos o compositor atirou-se ao Reno, em Dusseldórfia. Salvo, ainda vege-
tou num estado de semi-inconsciência numa casa de repouso, onde morreu dois
anos mais tarde.
A música de Schumann vive de uma extraordinária sensibilidade: extrava-
gante, caprichosa, dolorosa, é percorrida por um frêmito perpétuo; não há uma
nota que, em intensidade, seja igual à precedente ou à seguinte. É este fator que
torna a sua interpretação tão difícil; é necessária uma rara subtileza de intuição
para traduzir a eloquência schumaniana no seu arrebatamento, ora contido, ora
veemente, a sua emoção, os seus impulsos, os seus retraimentos, o seu sorriso,
por vezes estranhamente crispado. Schumann é um sonhador, um improvisa-
dor, o verdadeiro tipo do artista romântico, nutrido de literatura e de poesia -
nomeadamente a de Richter, hoje
esquecida, mas que exerceu profunda
influência em toda uma geração ale-
mã.
Nas suas obras curtas, de forma
livre, Schumann manifesta um gênio
radioso: nas suas páginas para piano
e nos seus lieder encontram-se algu-
mas das mais comoventes expressões
que o amor, a tristeza, a poesia das
coisas jamais inspirou à alma huma-
na. Toda a Alemanha romântica, toda
a sensibilidade do seu tempo, expri-
mem-se nesta música. Contudo, este
músico-poeta soube também dedicar-
se a fundo e bater-se pelas suas idéi-
as: durante cerca de vinte anos ele
lutou (nomeadamente por meio de
artigos publicados na revista musical
Neue Zeitschrift fúr Musik) pela boa
música contra a má, então represen-
tada por músicos de talento superfi-
Nas vésperas da Revolução Francesa, Ma- cial, mas de êxito fácil, a quem ele
dame de Genlis inicia a jovem duquesa de chama os “Filisteus”. A sua luta,
Orleães na arte de tocar harpa auxiliada por um grupo de jovens
artistas e intelectuais, foi proveitosa para o conjunto da música alemã. Sabe-se
também que Clara, mulher admirável e grande virtuose, no decurso das suas
numerosas tournées defendeu a música dos jovens mestres da sua época, entre
os quais Brahms.
Finalmente, Schumann soube estabelecer com lucidez uma escrita pianística
pessoal, de interessantes complexidades rítmicas, e desenrolar verdadeiros
“mantos harmônicos”, por vezes próximos da imobilidade, tanto para piano só,
como para piano acompanhando os seus lieder, criando assim atmosferas de
surpreendente poesia.
O húngaro Franz Liszt (1811-1883)
participou intensamente no movimento
romântico alemão. Ao inverso de um
Schumann, de um Schubert, de um Cho-
pin, Liszt é um triunfador, um homem de
sedução irresistível, que alcança numero-
sos sucessos femininos, conquista um
lugar de primeiro plano no mundo mu-
sical e se impõe a todos. Liszt é o tipo do
artista-herói. Grande senhor, virtuose
faiscante que subjuga as multidões, ele
dirige-se por instinto para o que requer
garbo, bravura, generosidade. Dedica-se Liszt
às causas de alguns dos seus colegas com
tanto ardor como aos seus próprios assuntos; utiliza as suas relações para auxi-
liar jovens músicos; entrega-se com entusiasmo à causa de Wagner (que se
tornará seu genro). Homem de sociedade, europeu, poliglota, ele leva a classe
burguesa a admitir não só a dignidade (o que é elementar), mas também a aris-
tocracia do artista, príncipe da vida intelectual. Desempenha assim um duplo
papel: primeiro no mundo musical, pela sua obra, em seguida na sociedade,
mercê da sua posição, do estilo de vida que adota e da personagem que impõe,
vingando assim, de certo modo, todos os colegas que dispõem de menos recur-
sos.
Além disso, e a despeito de hoje se menosprezarem algumas das suas com-
posições, cujo tom revela o desejo de brilhar, uma verbosidade enfática e um
gosto excessivo pela afetação sentimental, seria injusto não reconhecer o valor
de diversas Rapsódias e dos dois Concertos para Piano, cujos ricos achados
influenciaram Brahms, Tchaikowsky, Grieg e Rachmaninov, pois a música de
Liszt (os seus Estudos para piano permanecem de primeira importância) fervi-
lha de novidade, de idéias audaciosas e de engenho técnico. Habituado aos ex-
tremos, este homem, para quem a vida foi uma aventura exaltante, resolveu
professar no fim da sua carreira tumultuosa e quis morrer tão pobre como nas-
cera. Efetivamente, aquele que conhecera o luxo e semeara o dinheiro com
prodigalidade, deixou, ao todo, seis lenços.
Desde o princípio do século a ópera italiana tinha sido abandonada em pro-
veito de obras menos convencionais, e é na Alemanha que se manifesta essa
renovação.
Carl-Maria von Weber (1786-1826), cuja personalidade foi sem dúvida
menos forte do que a dos seus contemporâneos, deve contudo ser considerado
como o criador da ópera romântica alemã. Ele será o primeiro a romper com os
temas tirados da mitologia clássica e a abordar um domínio ainda inexplorado
pelos músicos: o da lenda, do mistério, do maravilhoso medieval amado pelos
românticos. A sua
produção, não obstante ser
pouco abundante, revelará
uma mina de riquezas que
todo o seu século
explorará: Freischutz é
uma ópera cómica onde
intervêm a fantasmagoria
e as cenas de aldeia.
Euryanthe, “romance de
cavalaria em “música”, é
um melodrama evocando
uma heroína da Idade
Média francesa; Oberon,
uma mágica onde os
A Europa romântica. Um “serão de rapazes”, em homens são protegidos por
Paris um rei-feiticeiro. Tudo
recheado de um repertório de situações e acessórios hoje um tanto gastos, mas
extraordinários para a época: florestas encantadas, trompas mágicas, aparições
sobrenaturais, personagens maléficas, raparigas expostas a inúmeros perigos,
cavaleiros heróicos, monstros ameaçadores, anéis encantados, etc.
Legenda do desenho acima:
1-Liszt aparece de sotaina. Sorriso altivo. Temporal de aplausos.
2-Primeiros acordes. Volta-se para forçar a atenção do público.
3-Fecha os olhos e parece tocar apenas para si próprio.
4-Pianíssimo: S. Francisco de Assis laia com as aves.
O seu rosto torna-se radioso.
5-Raciocínio de Hamlet. Tormento de Fausto. As teclas exalam suspiros.
6-Reminiscências: Chopin, Georges Sand. Bela juventude. Perfumes.
Luar. Amor.
7-Dante: o inferno; os danados e o piano gemem. Agitação febril.
O temporal faz rebentar as portas do inferno. Bum!
8-Apenas tocou para nós... divertindo-se. Aplausos, gritos e vivas!
Desenhos de Jankó, 1873

Carl-Maria von Weber (1786-1826), cuja personalidade foi sem dúvida


menos forte do que a dos seus contemporâneos, deve contudo ser considerado
como o criador da ópera romântica alemã.
Ele será o primeiro a romper com os
temas tirados da mitologia clássica e a
abordar um domínio ainda inexplorado
pelos músicos: o da lenda, do mistério, do
maravilhoso medieval amado pelos
românticos. A sua produção, não obstante
ser pouco abundante, revelará uma mina
de riquezas que todo o seu século
explorará: Freischutz é uma ópera cómica
onde intervêm a fantasmagoria e as cenas
de aldeia. Euryanthe, “romance de
cavalaria em música”, é um melodrama
evocando uma heroína da Idade Média
francesa; Oberon, uma mágica onde os
Carl-Maria von Weber
homens são protegidos por um rei-
feiticeiro. Tudo recheado de um repertório de situações e acessórios hoje um
tanto gastos, mas extraordinários para a época: florestas encantadas, trompas
mágicas, aparições sobrenaturais, personagens maléficas, raparigas expostas a
inúmeros perigos, cavaleiros heróicos, monstros ameaçadores, anéis
encantados, etc. Todo o romantismo alemão ali se encontra e se Boieldieu (A
Dama Branca), Meyerber (Robert lê Diable), Rossini (Guilherme Tell) ou
Hérold (Zampa), entre outros, se inspiraram nesse mundo fantástico de Weber,
é justo acrescentar que Wagner não teria sido o que na realidade foi se Weber
não lhe tivesse aberto o caminho que trilhou.
Os processos musicais de Weber servem exatamente as suas intenções. A
sua escrita é clara e a sua linguagem fácil de compreender. Introduz na sua or-
questra coloridos sugestivos que realçam o efeito cênico e emprega a técnica
do leitmotiv, tema musical repetido para evocar sempre a mesma personagem
ou a mesma idéia. Será este leitmotiv que Wagner levará a um ponto culminan-
te de complexidade técnica e simbólica.
Richard Wagner (1813-1883) é o “gigante” da cena lírica. Após algumas o-
bras, que podem ser consideradas como ensaios (O Navio Fantasma, Rienzi),
Wagner encontra progressivamente o seu caminho com vastas epopéias dramá-
ticas de que ele próprio escreve os textos, inspirando-se nas antigas lendas e na
mitologia germânica. Procurando criar relações cada vez mais estreitas entre o
texto e a música e realizar em cena uma síntese das artes, Wagner utiliza ao
máximo as possibilidades narrativas, descritivas e dramáticas da sua partitura
pelo emprego do leitmotiv, que se encontra embutido na trama sinfônica, cada
vez que o objeto, personagem ou idéia evocados surgem na ação ou no espírito
de um ator. Obras como o ciclo O Anel do Nibelungo, Tristão e Isolda, parsifal
dão à arte lírica os seus “monumentos”. Se, por vezes, acusam uma ênfase bas-
tante pesada, uma extensão que se pode julgar excessiva, um abuso de explica-
ções em prejuízo da ação, contêm todavia no seu ritmo lento e majestoso, mo-
mentos de grandeza inigualáveis, uma exuberância harmônica, melódica e or-
questral que forçam a admiração. Tristão é um dos mais belos cantos de amor
jamais lançados sobre a Terra; Parsifal é o poema sublime da abnegação; a
Tetralogia ou Anel do Nibelugo (O Ouro do Reno, a Walkiria, Siegfried, o
Crepúsculo dos Deuses) é a imensa saga germânica dos deuses entregues às-
paixões humanas. Não esqueçamos os Mestres Cantores de Nurernberga, evo-
cação anedótica e familiar da época dos Minnesãnger da Idade Média, nem
Lohengrin, essa bela lenda das margens do Escalda, igualmente medieval.
Até aos primeiros anos do nosso século, Wagner reinou sobre a música co-
mo um déspota, quase involuntariamente, apenas como resultado do seu mag-
netismo: quase nenhum músico escapou à sua influência. Transbordando da
música para entrar no domínio da filosofia, Wagner dá vida a personagens-
símbolos onde um povo inteiro se reconhece, alimentando assim uma verdadei-
ra mística racista e nacionalista.
O wagnerianismo foi uma fé, uma reli-
gião em nome da qual se afrontaram duas
gerações de melômanos.
Bayreuth foi e ainda é uma peregrina-
ção sagrada. Tendo povoado o universo
dramático de uma mitologia sombria, cruel
mas cativante, que inflama uma época in-
teira, tendo dado vida a essa mitologia
numa linguagem obsidiante e impondo-se
mercê de uma personalidade intransigente,
categórica, Wagner não podia ser conside-
rado senão como um deus da música.
A sua carreira, contudo, foi semeada de
dificuldades de toda a ordem: as suas pri-
meiras obras conheceram o fracasso e a
incompreensão. Foi forçado a efetuar inú-
meras diligências, decerto vexatórias para
o seu amor-próprio, que era agudo, na es- Wagner
perança de conseguir fazer-se representar na Alemanha. Em 1848, as suas idéi-
as políticas obrigaram-no a refugiar-se em Paris, onde o público fez troça de
Tannháuser; finalmente encontrou Luís II da Baviera, o jovem rei que iria pro-
tegê-lo e construir Bayreuth, imas a sua posição privilegiada foi combatida
pelos que rodeavam o soberano, e Wagner foi forçado a deixá-lo. A sua vida
privada conheceu numerosas vicissitudes; foi com Cosima Liszt que encontrou
finalmente a felicidade, após um primeiro casamento com Minna Planer e uma
demorada paixão impossível por Mathilde Wesendonck. Todos se aproxima-
vam com respeito e veneração deste criador altivo, autoritário, exigente, que
apenas concebia vastos empreendimentos. Mantinha à sua volta uma espécie de
corte- e foi no meio dessa glória, finalmente conquistada, que terminou os seus
dias.
A principal característica da escrita wagneriana é o emprego do cromatismo
ou linguagem baseada nos graus cromáticos da escala. Como já vimos no prin-
cípio deste livro, o cromatismo opõe-se essencialmente ao diatonismo; este
utiliza escalas de sete sons com intervalos francos, produzindo melodias de
contornos nítidos, enquanto o cromatismo, baseado na escala de doze sons,
emprega intervalos menores; a melodia torna-se assim mais subtil, mais gradu-
ada, por vezes também mais lânguida, podendo comparar-se a um desenho de
linhas flexíveis e ondeantes.
As melodias diatônicas, os acordes perfeitos, a precisão tonal da linguagem
de um Haydn ou de um Mozart, por exemplo, provocam uma sensação de cla-
reza, de equilíbrio. Inversamente, a escrita cromática suscita uma tensão, um
sentimento de inquietação. Não obstante o cromatismo ter já sido praticado
pela maioria dos músicos românticos, Wagner, explorando até ao extremo to-
das as possibilidades do sistema, vai transformar a linguagem musical. Esta
escrita totalmente cromática encontrará a sua flo-
ração última no dilacerante lirismo de Tristão e
Isolàa, onde o acorde perfeito apenas aparece no
compasso final. Assim o drama termina na pleni-
tude da transfiguração e os heróis só alcançam
serenidade na morte.
Através da obra tão diversa de Chopin, de
Schumann, de Liszt, de Berlioz, de Schubert, de
Wagner, o cromatismo exprime as necessidades
expressivas do século romântico. Pela subtileza
das inflexões melódicas e a complexidade dos e-
feitos harmônicos que permite, foi o veículo ideal
da inquietação, do tormento e da paixão do roman-
tismo. Revelou uma infinidade de graduações do Schubert
sentimento e deu a cada um destes músicos a maior, a mais ampla liberdade de
expressão pessoal.
Félix Mendelssohn (1809-1847) surge como uma personagem isolada no
meio do grande turbilhão romântico: pertencendo incontestavelmente à sua
época pela efusão sentimental, o apelo aos temas fantásticos (O Sonho de Uma
Noite de Verão), Mendelssohn manifesta contudo uma tradição inteiramente
clássica. O seu sentimento musical, feliz e claro, o seu encanto, classificam-no
como um dos continuadores de um Mozart ou de um Haydn, dos quais possui
ainda o segredo da forma nítida e ligeira e da justa eloquência. Num sentido,
Mendelssonh é o Mozart do romantismo. Nascido no seio de uma família de
ricos banqueiros, tendo conhecido todas as facilidades da existência,
inteligente, amável, fino e generoso, Mendelssohn teve o mérito insigne de
descobrir o génio de João Sebastião Bach; foi ele quem, em 1829, revelou a
Paixão segundo S. Mateus, esquecida há oitenta anos. Mendelssohn suscitou
assim uma corrente de ideias ligando a nova Alemanha à do século XVIII e
contribuiu para que o grande compositor de Leipzig fosse colocado no lugar
que lhe competia na história.
Mendelssohn é o único músico feliz do romantismo; nas suas sinfonias, nas
suas peças para piano (Romances sem Palavras, hoje quase esquecidas) e no
seu famoso Concerto para Violino exprime um sentimento sorridente numa
linguagem intensa, sempre cheia de distinção; mas algumas das suas inspira-
ções evocadoras de mistério, como A Gruta de Fingal ou O Sonho de Uma
Noite de Verão, são da melhor veia romântica. O fato de se ter censurado Men-
delssohn por não ter escrito uma música violenta, atormentada, e, em suma,
mais sujeita à escuridão do instinto do que à clareza do espírito é bastante sig-
nificativo. Chamaram-lhe frequentemente, com desdém, peralvilho, elegante e
superficial. É quanto basta para ilustrar a deformação causada nos espíritos
pelo romantismo. Se a maré romântica que invadiu a música durante um século
suscitou obras sublimes, nada justificava que um compositor se deixasse afogar
por ela, quando o seu temperamento o levava a manter, no seio da tempestade,
a linguagem e a atitude da beleza clássica. O mais grave defeito do romantismo
foi certamente o de ter imposto a linguagem da paixão com tanta força que
chegou a tornar suspeita a linguagem da felicidade. Na nossa época ainda se
torna necessário lutar contra este preconceito, que classifica de “superficial”
toda a música que não é convulsa. Com o recuo do tempo, sabemos hoje que,
embora Mendelssohn não tivesse atingido os mais altos cumes, d fixou-nos
uma obra cheia de sabor e de beleza.
Hector Berlioz (1803-1869) é o único grande músico francês do romantis-
mo, pois a França, como já dissemos anteriormente, é uma nação anti-
romântica por excelência e onde personalidades como as de Géricault, Dela-
croix, Victor Hugo ou Berlioz devem ser
consideradas (e assim o foram) como gênios
isolados, testemunhas do seu tempo, eviden-
temente, mas nunca porta-vozes da sua gera-
ção. Contudo estes homens viveram e senti-
ram profundamente a revolução romântica.
Embora Berlioz lutasse arduamente para
fazer executar as suas obras e admitir as suas
idéias, sem nunca o conseguir inteiramente,
a lenda que fez dele um músico “maldito”
não é inteiramente exata. Na realidade Berli-
oz, que era dotado de um temperamento e-
fervescente, apaixonado, tempestuoso, de
uma natureza intuitiva de visionário, era
também injusto, exaltado e violento nas pa-
lavras, agressivo e pouco sociável. Pelas
suas atitudes provocantes ele multiplicou as Berlioz
dificuldades em volta da sua música, já di-
fícil de aceitar. Com magnífica audácia (por vezes legítima) assediava os mi-
nistérios e os poderosos da época a fim de obter os amplos apoios financeiros
de que as suas obras careciam. Conseguiu obter numerosos êxitos nesse senti-
do, e a sua carreira não foi tão desastrosa como se disse - e ele próprio acredi-
tava. Viagens, compromissos, encomendas sucederam-se, mas o seu tempera-
mento amargo, ainda mais azedado por uma vida privada realmente desastrosa
(casamento mal sucedido, aventuras medíocres com uma Harriet Smithson ou
uma Maria Recio, de quem a sua imaginação ingênua e romanesca o tornava
joguete), concorreu para enegrecer-lhe a ''existência. Deixou notáveis e morda-
zes artigos de crítica, fustigando com razão os gostos e costumes musicais do
seu tempo; as suas palavras poderiam, de resto, aplicar-se com bastante fre-
quência ao nosso.
As grandes obras de Berlioz transbordam de invenção orquestral: ele é pra-
ticamente o criador da orquestra moderna e o seu Tratado de Orquestração
ainda conserva autoridade. Romântico absoluto, as suas obras Romeu e Julieta,
A Danação de Fausto, A Sinfonia Fantástica revelam a sua exaltação, mas
também uma poderosa eloquência. A escrita, fraca do ponto de vista da harmo-
nia e da forma, acumula com demasiada frequência incontestáveis imperícias, a
propósito das quais um Ravel, severo mas justo, pôde dizer: “Faltava-lhe essa
simples profissão, necessária aos mais medíocres.” Mas Berlioz preocupava-se
pouco com a profissão; apenas o seu instinto o guiava e este foi frequentemente
o mais precioso dos guias. A força sugestiva, que ele desejava fosse “aterrado-
ra” (pois o seu vocabulário é sempre hiperbólico), e o brilho da sua orquestra
são os elementos mais seguros do seu talento. Soube arrancar aos instrumentos
da orquestra sinfônica efeitos de contrastes e de combinações surpreendentes,
mercê de uma excepcional aptidão para a “audição interna”, essa faculdade de
ouvir mentalmente os sons dos instrumentos que cada compositor deve possuir,
mas que nem todos possuem no mesmo grau.
A ironia desencantada que Berlioz manifestou na vida e o frenesi que comu-
nicou à sua música dão a medida do seu temperamento, assim como do seu
caráter. Berlioz brilha com um clarão singular no seio do seu século, e deu o
tom a numerosos músicos atraídos pelo seu mundo fantástico e inquietante.
Na obra de todos os músicos que durante três quartos de século formaram a
grande escola romântica (as datas dos seus nascimentos situam-se na sua maio-
ria por volta de 1800) reconheceu-se uma característica fundamental: a exalta-
ção dos sentimentos. Ter-se-á notado também que a música, reflexo fiel e ínti-
mo do compositor, oferece um retraio psicológico e preciso de cada um deles.
Ao inverso da música objetiva, “não comprometida”, do século anterior, a mú-
sica romântica acusa na sua estrutura e na sua expressão todas as características
do indivíduo, seguindo fielmente a sua evolução interior. De tal forma que a
linguagem musical torna-se essencialmente pessoal: é impossível, mesmo para
quem esteja apenas superficialmente familiarizado com a música, confundir
quatro compassos de Beethoven com quatro compassos de Chopin, quatro
compassos de Liszt e quatro compassos de Schumann. A música identifica-se
estreitamente com o homem, transmitindo as mais ínfimas graduações por onde
passa a sua sensibilidade. Da eloquência poderosa dos grandes tribunos (Bee-
thoven, Wagner, Berlioz, Liszt) às confidências íntimas dos poetas (Schubert,
Schumann, Chopin), todo o romantismo se encontra marcado por essa esponta-
neidade e essa sinceridade total de uma emoção que nada deve represar. O cri-
tério do valor de uma obra romântica estabelece-se sobre a força da sua since-
ridade. A literatura da época oferece-nos os mesmos tipos de criadores, dos
tribunos (Hugo, Schiller, Balzac) aos poetas (Lamartine, Heine), que libertam
forças psicológicas eternas, mas até então inexploradas.
Contudo, este movimento, que ardeu com chama tão intensa, já se encontra
enfraquecido no último terço do século: as grandes vozes calaram-se e o des-
tino “fatal” dos românticos fê-los morrer quase todos jovens. Permanecem
Liszt e Wagner envelhecendo, cuja obra se orienta para a meditação. No decur-
so dês- , sés anos, uma vasta atividade musical nasceu da multiplicação dos
concertos e dos virtuoses, que responde ao ideal da Revolução Francesa e faz
da música uma arte social, transbordando do círculo restrito onde anteriormen-
te se encerrava. Liszt inaugura o princípio do recital, ou seja do concerto dado
por um único executante e que modifica a antiga fórmula em que os concertos
eram frequentemente constituídos por uma surpreendente mistura de artistas,
instrumentos e géneros. Tal facto representa um passo no sentido de maiores
exigências de cultura e de gosto.

O Italianismo

Entre as diversas tendências que então coexistiam, é necessário citar a de


um Meyerbeer (1791-1864), de talento superficial e frequentemente vulgar,
que procura o efeito e o sentimento fácil. Por meios de obras como Robert o
Diabo, Os Huguenotes, A Africana, reinou longos anos sobre a ópera francesa,
impondo um mau gosto contra o qual se ergueram todos os grandes românti-
cos, impotentes perante os seus êxitos. A mais medíocre miscelânea encontra-
se reunida nestes melodramas, verdadeiras caricaturas do romantismo, dos sen-
timentos nobres e do dramatismo musical, e onde abundam absurdidades tão
solenes que hoje desencadeiam a hilaridade. Mas não se deve esquecer que,
nessa época, o público se apaixonava por estes subprodutos, oferecendo aos
seus autores uni tributo de fortuna e de glória. Outros 'músicos representam um
italianismo que ainda conserva as suas seduções:
Donizetti (1797-1884), cujas obras A Favorita, Luccia de Lamermoor, Eli-
xir de Amor ou Don Pascuale apenas perduram mercê de algumas grandes á-
rias de bei canto romântico, que as salvam do desgaste do tempo.
Bellini (1801-1835) é uma figura de outra qualidade: graça e finura, encanto
e sensibilidade encontravam-se reunidas neste músico para fazer dele um gran-
de compositor. A despeito da brevidade da sua vida não lhe ter, sem dúvida,
permitido alcançar a plenitude, legou-nos com Norma, Os Puritanos e, sobre-
tudo, A Sonâmbula (não obstante libretos de um ridículo exasperante) numero-
sas páginas deliciosas e que figuram entre os clássicos do bei canto.
Rossini (1792-1868) encarna o descuido, a alegria, o entusiasmo sonoro e a
feliz aceitação da vida. A sua ópera O Barbeiro de Sevilha, escrita aos vinte e
quatro anos, no espaço de duas semanas, é uma obra-prima de espírito, uma
opera buffa efervescente de malícia e de uma escrita subtil. Outras das suas
óperas, escritas com a mesma prodigiosa facilidade, não têm a mesma solidez;
mas as suas aberturas, que são quase sempre encantadoras páginas sinfónicas
bem cinzeladas, permanecem hoje tão saborosas como no primeiro dia (La Ga-
zza Ladra, A Escada de Seda, A Italiana em Argel, etc.). Compositor de rara
fecundidade, Rossini, que cultivava decididamente a ironia, deixou súbita-
inente de trabalhar aos trinta e sete anos, quando era rico, famoso e aparente-
mente feliz com a sua sorte. Fora diretor da Ópera italiana em Paris e inten-
dente-geral da música; escrevera cerca de quarenta obras e atraíra a amizade de
homens como Stendhal, Chateaubriand, Musset e Heine. Todavia, após ter o-
posto o seu sorriso e o seu talento ligeiro ao temporal romântico, afastou-se da
cena e passou o resto dos seus dias (trinta e seis anos) num retiro, de onde ape-
nas saiu o muito belo Stabat Mater, retiro que, apesar de não ter sido marcado
pela amargura ou pela misantropia, nem por isso deixa de encerrar um enigma.
O cepticismo e o epicurismo deste artista de grande envergadura desempenha-
ram, sem dúvida, um papel no acontecimento. Se nunca pretendeu atingir o
sublime ou o patético, Rossini soube pelo menos ser um desses raros músicos
que conferiram títulos de nobreza artística ao sorriso, ao riso e ao prazer.
Mas o maior dos italianos deste período é incontestavelmente Giuseppe
Verdi (1813-1901). Não obstante colocar-se ligeiramente à margem da
“grande” música, Verdi é um músico considerável; enquanto Wagner havia
criado uma mitologia, Verdi cria uma humanidade igualmente vasta; uma
humanidade heróica, romanesca à imagem do século, transbordante de vida e
de paixões, uma humanidade vinda da história, da lenda, do romance, onde
evolucionam personagens brilhantes, exprimindo-se de acordo com um
realismo dramático e declamatório, que fez, e ainda faz, vibrar o público. Este
comove-se com as aventuras das belas e infelizes princesas, dos tiranos cruéis
mas finalmente castigados, embriaga-se com o espectáculo do amor triunfante
e dos grandes sentimentos que exaltam. Pela intensidade da expressão, o dom
melódico e o instinto dos efeitos dramáticos, a sedução irresistível de uma
escrita vocal que enriqueceu consideràvelmente o bel canto, o melodrama
verdiano exerceu, para além das modas, uma influência imensa.
A fecundidade de Verdi era inexaurível: partindo de obras sumárias quanto
à textura musical e mais preocupado com a expressão do que com o estilo,
Verdi aborda, com a idade, um domínio mais amplo; a sua ciência torna-se
mais profunda, a sua inspiração eleva-se. Aida, La Traviata, II Trovatore, Ri-
goletto, Il Vespri Siciliani, Um Bailo in Maschera, Nabucco, Don Carlos, La
Fona dei Destino povoam a cena lírica de um repertório que se tornará clássi-
co. Verdi impõe um género, o da grande ópera italiana tal como a conhecemos
ainda hoje, tal como a ilustram uma Cai-las ou uma Tebaldi. Renunciando às
facilidades do início, Verdi aperfeiçoa a sua maneira de compor e espanta o
mundo ao oferecer, com Otelo e Falstaff, escritos aos setenta e quatro e aos
oitenta anos, respectivamente, duas obras monumentais, uma das quais atinge o
tom da tragédia e a outra o da farsa mais truculenta. Verdadeiro herói nacional,
Verdi é, com Wagner, o compositor que mais vigorosamente marcou a história
da cena lírica.

As escolas nacionais

O romantismo e o acordar do individualismo suscitam, por volta do meio do


século, um movimento que se inscreve na lógica das coisas; por sua vez, os
povos tomam consciência da sua personalidade, do seu gênio próprio: alargam
a noção do individualismo à nação. E o nacionalismo, política muitas vezes ne-
fasta quando provoca os conflitos que conhecemos, teve, pelo contrário, os
mais felizes efeitos na arte.
A afirmação do nacionalismo musical é, em primeiro lugar, a procura dos
cantos e danças populares, a criação de obras líricas inspiradas em temas nacio-
nais, em suma, tudo quanto evoque a tradição de um país e o caráter dos seus
habitantes. Neste caso também existe, portanto, um desvio da música de caráter
universal do século anterior para uma arte que pretende ser particular: assim
nascem as escolas nacionais, quase simultaneamente, em diversos países da
Europa. Q folclore onde elas colhem os seus temas é vasto, rico, ignorado ou há
muito descurado. O século XIX descobre aí um tesouro de que a nossa época
ainda não esgotou os recursos 1.
Será na Rússia que, com Glinka (1804-1857), surgirá pela primeira vez uma
música de carácter nacional. Nas suas óperas (A Vida pelo Czar, Rousslan e
Ludmilla), Glinka pretende libertar-se da influência italiana dominante na Eu-
ropa, e muito especialmente na Rússia, desde o princípio do século XVIII. O
seu continuador, Dargomijsky (1813-1869), orientar-se-á para o realismo e
provocará a formação do “Grupo dos Cinco” em 1856. Cui (1835-1918), Bala-
kirev (1836-1910), Borodine (1834-1887), Rimsky-Korsakov (1844-1908) e
Moussorgsky (1839-1881) serão os membros deste grupo, que procurará acor-
dar a consciência nacional, criando uma música a partir de elementos especifi-
camente russos. A linguagem destes músicos, influenciada pelo romantismo
alemão mais inteiramente inclinada para a descrição em vez de tender para a
expressão pessoal, fará nascer obras de um gênero novo: frescos como Shehe-
razade, Nas Estepes da Ásia Central, Islamey, estão na origem da música de
evocação que mais tarde se reencontrará no impressionismo; os “quadros” pin-
tados por estes compositores (e que não deixam de fazer lembrar o gosto popu-
lar pelas cores garridas e a tradição profundamente enraizada dos ícones) o-
põem-se à música de caráter psicológico que reina então no Ocidente.
Pormenor curioso: os “Cinco” são músicos amadores, alguns dos quais re-
nunciaram à sua carreira inicial

1
* Os musicólogos, como já dissemos anteriormente, estabelecem uma diferença entre a
música “folclórica” e a música “étnica”. Os caracteres próprios de uma música “étnica”, tanto
nos ritmos e melodias como nos temas de inspiração, podem não ser folclóricos na acepção do
século XX, isto é, de tradição popular. Para maior facilidade, limitar-nos-emos ao termo
folclore, menos científico, mas que abrange a criação artistica popular de um grupo, de uma
região ou de um país.
para se dedicarem ao ideal comum. Balakirev tinha feito estudos científicos;
com Islamey deixou uma página magistral, de intenso colorido, cujo subtítulo é
“fantasia oriental para piano”. O engenheiro Cui, que foi o porta-voz do grupo,
tornou-se conhecido com uma ópera, O Prisioneiro do Cáucaso, e numerosas
peças para piano. Terminou a sua carreira de oficial de engenharia com o posto
de general e escreveu um Tratado de Fortificações notável, ao que parece...
Borodine foi médico e químico; deixou uma obra--prima, O Príncipe Igor, e
algumas páginas como Nas Estepes da Ásia Central, já citadas. O Príncipe
Igor, Ópera inspirada na história russa, influenciará profundamente a produção
nacional.
Rimsky-Korsakov, oficial de marinha, é o mais erudito de todos; corrigiu as
obras de vários dos seus amigos, por vezes mesmo de forma discutível; certos
historiadores sustentam a opinião de que, com a sua preocupação acadêmica e
didática, Rimsky-Korsakov talvez tenha alterado a frescura de páginas, cujas
próprias incorreções afirmavam a originalidade. Magnífico orquestrador, com
um sentido agudo da cor orquestral, Rimsky-Korsakov fez neste domínio au-
tênticos achados, que um Strawinsky tomará em consideração (como, por e-
xemplo, em O Pássaro de Fogo). Sheherazade, O Galo de Ouro, Capricho
Espanhol revelam um talento criador extremamente original, ao qual a escola
sinfónica do século xx muito deve; e sabe-se que Debussy estudou a obra dos
“Cinco” com entusiasmo.
Moussorgsky, certamente o mais dotado do grupo, foi oficial. Após uma
descuidada juventude dourada, mudou subitamente de vida, renunciou às mun-
danidades e dedicou-se inteiramente à tarefa de criar uma arte nacional. Ao
evocá-la, ele faz por vezes lembrar um herói de Dostoiewsky ou o próprio Dos-
toiewsky: exaltação, misticismo, sarcasmo e ironia, grandiloquência e sinceri-
dade...
A despeito de uma formação musical bastante imperfeita, Moussorgsky cri-
ou uma linguagem pessoal e adivinhou que as estruturas musicais, tais como
repetições, desenvolvimentos, etc., podiam prejudicar o realismo e a veracida-
de da ação. Reagindo contra esta ameaça de formalismo, a sua música será
essencialmente livre e a sua declamação lírica estreitamente adaptada à língua
russa. As óperas (Boris Godounov, a sua obra-prima, Khonantchina) e as me-
lodias de Moussorgsky provam a que ponto ele foi capaz de exprimir a alma
das coisas e dos seres do seu país. Note-se que os títulos das suas obras, e as
dos seus amigos, evocam sempre um tema ou uma personagem nacional.
Temos de classificar isoladamente Ilytch Tchaikowsky (1840-1893), músico
atormentado, patético, romântico até ao excesso, pois nem sempre evita a gran-
diloquência e os efeitos fáceis. Tchaikowsky permanece ligado à música euro-
péia, alemã em especial; ele não é, portanto, um músico “nacional” no sentido
preciso do termo, tal como o definimos, e manteve-se, de resto, afastado dos
seus colegas. Hoje verificamos, contudo, que o nitchevo que se manifesta na
sua música, o seu misto de nostalgia e de ardor, de exaltação e de desespero,
assim como por vezes a sua frescura popular, são tipicamente eslavos. Depois
de ser rotulado de cosmopolita, notou-se mais recentemente que a sua música
se identificava profundamente com o caráter russo—como o prova a constante
popularidade de que goza junto do público soviético.
A vida de Tchaikowsky, tal como a dos seus contemporâneos ocidentais,
impressionou as imaginações pelas suas infelizes peripécias, a despeito dos
seus êxitos profissionais. Dominado por uma melancolia devoradora, passando
continuamente do entusiasmo ao abatimento, este músico teve uma vida priva-
da instável e dramática, sendo as suas paixões, frequentemente, mais fortes do
que a sua vontade. Uma experiência de casamento terminou com uma separa-
ção quase instantânea e que aumentou a sua desorientação. Recebeu o auxílio
de uma mulher rica e apaixonada pela sua obra, Nadejda von Meck, que, embo-
ra nunca o tivesse conhecido pessoalmente, lhe garantiu toda a vida um rendi-
mento que lhe permitiu dedicar-se à composição. Esta circunstância romanesca
será o único acontecimento feliz da sua existência. Vitimado pela cólera, Ilytch
Tchaikowsky morreu aos cinquenta e três anos, em 1893.
Ainda na Rússia surge-nos Scriabine (1872-1915). Visionário de sensibili-
dade exacerbada, sofreu sucessivamente as influências românticas de Chopin,
Wagner, Richard Strauss e, em seguida, as de Debussy e de Ravel, que marca-
ram a sua linguagem harmônica. Dirigindo-se para uma metafísica mal defini-
da, para sonhos exaltados (o Poema do Êxtase), Scriabine permanece como um
músico singular, de inspiração cativante, e que vai além dos conhecimentos da
sua época. Os seus Estudos e Prelúdios para piano são obras ricas pela forma e
pelo conteúdo.
Com Bedrich Smetana (1824-1884) e Anton Dvorak (1841-1904) tiveram os
Checos dois representantes da sua arte nacional. Smetana é o mais autentica-
mente popular (A Moldávia, página sinfônica, A Noiva Vendida, ópera de deli-
ciosa frescura campestre). A sua música é viva, espontânea, por vezes ingênua
como uma encantadora estampa popular, enquanto a de Dvorak (Sinfonia do
Novo Mundo, Concerto para Violoncelo) se torna pesada, devido a uma retóri-
ca muito estreitamente tributária de Brahms, que lhe tira espontaneidade, fi-
xando-a entre dois gêneros que não se definem claramente.
Dvorak não pôde encontrar a linguagem adequada à música que desejava
escrever e que postulava mais simplicidade. Outros conseguiram-no mais fa-
cilmente, sem se deixarem influenciar por estilos que lhes eram estranhos, co-
mo o norueguês Edvard Grieg (1843--1907), músico menor, mas cujas Danças
Norueguesas, certas melodias e o famoso Concerto para Piano (baseado no
estilo de Liszt) representam o caráter e a alma do seu país com frescor, candu-
ra, uma evidente sedução sentimental e um belo dom de poesia evocadora.
Em Portugal, Alfredo Keil (1850-1907) foi o primeiro compositor a tomar a
iniciativa de sacudir a influência italiana, profundamente enraizada nesse país,
e escrever sobre temas de caráter nacional. Salientaremos a sua ópera Serrana,
inspirada no folclore da serra da Estrela.
Aipos ele Viana da Mota (1868-1948), grande pianista mas compositor me-
nor, teve também o merecimento de contribuir para a divulgação do folclore
nacional, absorvendo-o nas suas obras, de que citaremos, como exemplo, a sua
sinfonia Pátria.
Considerando o relevo e colorido intrínseco da sua arte popular, os Espa-
nhóis deviam brilhar muito especialmente no panorama das escolas nacionais.
Assim, Isaac Albeniz (1860-1909) e Enrique Granados (1868--1916) encontra-
ram instintivamente os meios técnicos adequados à tradução dos caracteres da
música popular, do clima e do temperamento espanhóis. Nestes músicos reen-
contramos, estilizados, o zapateado (martelar de saltos), a longa melopéia do
canto flamenco, a imposição dominadora do ritmo, a sensualidade da melodia.
As Danças de Albeniz e a sua suite Ibéria (um quadro como A Festa do Corpo
de Deus em SeviIha) têm um surpreendente poder evocativo de luz e de cores.
As Goyescas, inspiradas pela obra de Goya, e as Danças de Granados têm um
caráter diferente: Granados é mais lânguido, mais rico de harmonias, mais or-
namentado. Foi um romântico melancolicamente sensual: morreu aos quarenta
e oito anos, no naufrágio do “Sussex”.
Manuel de Falia (1876-1964) forma com Albeniz e Granados, de quem foi
contemporâneo, o “triunvirato” que revelou ao mundo as riquezas do seu país.
Personalidade vincada, grande senhor ascético, ele impõe uma arte toda feita
de elegância e de intensidade requintada, de um ardor mais refreado mas igual-
mente escaldante. A sua expressão do carácter nacional não assenta sobre
elementos exteriores, mas sobre uma estilização e uma transposição
psicológica que lhe elevam o nível. Áspera, incisiva, animada de um ardor
seco, a sua obra ultrapassa o pitoresco e exprime a alma profunda da Espanha.
Os bailados O Tricórnio ou O Amor Bruxo, o Retábulo de Mestre Pedro, as
Noites nos Jardins de Espanha, para piano e orquestra, o Concerto para Cravo,
as admiráveis Sete Canções Populares, verdadeira síntese de uma arte erudita
baseada em elementos regionais, são obras que evidenciam a grande qualidade
da sua inspiração.
Sem avançarmos até à nossa época, em que numerosos compositores explo-
ram o domínio cativante do folclore, lembremo-nos de Liszt, que, nas suas
Rapsódias Húngaras utiliza profeticamente os cantos e ritmos populares numa
estilização clássica. Neste aspecto é o precursor de Bartok (como o próprio
reconheceu).
Finalmente, Sibelius (1865-1957) é o grande músico nacional da Finlândia,
de que foi o poeta, sem recorrer exatamente a elementos populares, mas evo-
cando a alma do seu povo, os vastos e pacíficos horizontes do país dos mil la-
gos, a contemplação que estes suscitam e inúmeras coisas familiares aos Fine-
ses. Poder-se-ia facilmente renunciar à Valsa Triste, que se tornou tão famosa,
em proveito das Sete Sinfonias, praticamente desconhecidas nos países latinos,
mas familiares aos Anglo-Saxões e aos Alemães, pois correspondem ao gosto
musical destes povos pelo mistério e o irracional. O público latino prefere uma
dialética, uma forma, um dinamismo; quando a música plana, contempla, ou
simplesmente impõe uma atmosfera, corre o risco de provocar impaciência.
Assim se explica por que certas obras extremamente belas têm dificuldade em
passar de um público ao outro.
Esta “descoberta do ouro”, esta súbita revelação de um tesouro popular, iria
influenciar toda a produção musical; não há um único país onde este tema não
tenha suscitado interesse. Doravante associada à música <(pura”, a música fol-
clórica conferir-lhe-á uma nova riqueza. Sabe-se o partido que, em breve, um
Bartok dela iria tirar. De acordo com um fenômeno de compensação bastante
frequente na história, a música do século XIX, que se tornara simultaneamente
muito erudita e nitidamente dramática, devia descobrir nos campos as fontes de
uma simplicidade pastoral de uma franca alegria de viver. Será pela junção
destes elementos que a música do fim do século XIX e do século XX vai, em
parte, renovar-se.
IX - O SÉCULO VINTE

Diante da supremacia absoluta do romantismo germânico, a jovem geração


do fim do século XIX sente a necessidade de sacudir essa sujeição: o roman-
tismo já durava demasiado, a sua sobrevivência arrasta-se, privada do vigor
radioso do início. Toda a Europa seguiu o movimento. Em França, na Alema-
nha, na Itália, escritores, pintores e músicos adotaram a mesma linguagem e
manifestam os mesmos gostos. Durante uma geração a França, em especial, foi
até ao ponto de esquecer o seu próprio gênio, esse gênio que fez Couperin e
Rameau, Watteau, Lê Nôtre e Racine; a sua necessidade de clareza, de equilí-
brio e de razão não pôde manifestar-se enquanto a Europa passava pela sua
demorada crise de febre romântica. Este facto explica o aparecimento em
França de músicos que, a partir de meados do século, se afastam mais ou me-
nos conscientemente da linha geral e compõem obras onde os sentimentos ro-
mânticos se encontram por assim dizer canalizados. É o caso de Camille
Saint-Saèns (1835-1921) e de Charles Gounod (1818-1893), que procuram
reencontrar uma concepção mais clássica da música por meio de uma inspira-
ção depurada, de uma orquestra clara e de melodias encantadoras, de preferên-
cia às trágicas.
Saint-Saëns, homem de vasta cultura, cuja inteligência é mais viva do que o
temperamento, escreve uma música bastante severa, por vezes fria; se recorre
deliberadamente aos fundos habituais do romantismo é para extrair deles uma
versão simplificada. As suas óperas românticas, como Sansão e Dalila, os seus
Concertos para Piano, a sua grande Sinfonia com Órgão, produzem a
impressão de uma música de estilista, brilhantemente escrita, perfeitamente
dominada até nas suas efusões, respeitando as regras que o autor fixou à sua
inspiração. Desta forma, Saint-Saéns reencontra a tradição francesa, mas este
merecimento incontestável não lhe dará acesso ao nível de todos os grandes
criadores.
Gounod obedece aos mesmos princípios, mas a sua inteligência menos viva
e o seu gosto menos seguro reduzem-lhe a envergadura; compõe agradáveis
melodias, de que os renovadores da música francesa, tais como Duparc e Fau-
ré, se lembrarão. É também o autor de um Fausto famoso, onde a obra de Goe-
the se encontra reduzida a um nível burguês bastante tranquilizador, bastante
afastado do brilho de um Liszt, de um Berlioz, de um Wagner. A par de pági-
nas excelentes—e de indiscutível qualidade técnica—. a obra de Gounod apre-
senta demasiados estribilhos que marcam a decadência do sentimento românti-
co, demasiadas situações pseudodramáticas, mas no fundo bastante simples,
para poder resistir ao desgaste do tempo.

Fim do século e renovação

A burguesia do fim do século, escrava de um materialismo opressivo prove-


niente da sua rápida ascensão, está condicionada pelo novo poder que a fulmi-
nante evolução industrial da Europa lhe confere; como se sabe, é ela que vai
ditar o tom à sua época — o tom do mau gosto evidentemente. Rica e satisfeita,
esta sociedade aprecia, antes de mais, os valores comprovados e o conforto
intelectual. A face do mundo modificou-se desde o princípio do século, mas a
libertação do povo, esperada em 1789, transformou-se no triunfo da burguesia.
(Será apenas no decurso do século XX que o povo começará a libertar-se real-
mente.) A arte do fim do século encontra-se com demasiada frequência parali-
sada pelo materialismo, e este humanismo especial dá origem a um estilo sem
grandeza a que se chama naturalismo e que, exprimindo a realidade das coisas,
se esquece de a justificar pela poesia. A evolução da música é reveladora: a
Napoleão I corresponde Beethoven, a Napoleão III corresponde Offen-bach
(músico espiritual e digno de admiração), mas à república burguesa de Thiers
correspondem a música de um Ambroise Thomas e a literatura de um Ponson
du Terrail...
No seio desta época prosaica e sem inquietações, vive e agita-se, porém,
uma elite que pretende afirmar outros valores. Em primeiro lugar aparecerão
alguns músicos de talento, mas que não serão polemistas e cujo merecimento
inconsciente será, sobretudo, o de servirem de guia à jovem geração. Georges
Bizet (1838--1875) lança a moda do pitoresco exótico com a sua ópera cômica
Carmen. Mercê desta pequena obra-prima, onde — pormenor bastante picante
— as melhores páginas são espanholas, enquanto o resto pertence a uma con-
venção melodramática bastante banal, o folclore surge finalmente na cena fran-
cesa.
Emmanuel Chabrier (1841-1894), personagem ferina, exprime, no decurso
de uma carreira tão breve como a de Bizet, uma inspiração e um espírito cinti-
lantes e por vezes, também, um misto de colorido, de encanto e de vigor que
teriam podido produzir grandes obras. Mas Chabrier, tal como os seus contem-
porâneos, permanece demasiadamente sujeito à influência wagneriana para
encontrar a sua própria linguagem. Uma curta página como Espanha ou algu-
mas das suas Peças Pitorescas para piano evidenciam a sua medida e indicam
as suas tendências profundas, bem melhor do que as óperas que ele se julgou
na obrigação de escrever dentro de uma pesada tradição histórica ou lendária
(Lê Rói Malgré Lui, Gwendoline).
Dois compositores vão, contudo, exercer uma influência determinada sobre
todo o fim do século e para além deste, ao marcar a transição entre o
romantismo e o século XX. Trata-se de um belga de origem e de um alemão:
César Franck (1822-1890) e Johannes Brahms (1833-1897). A afirmação de
um neoclassicismo latente em numerosos dos seus contemporâneos vai
cristalizar-se na obra destes dois músicos. Franck e Brahms, herdeiros
espirituais do romantismo, terão o merecimento dç conservar a eloquência dos
seus predecessores, 'mas estruturando-a de forma clássica. Arquitectos da
música, compreenderam que a fraqueza do romantismo (e sobretudo do
romantismo tardio) residia na improvisação. Dando um vigor novo a tal
linguagem decadente, criaram-lhe uma escolástica que, se por vezes dá origem
a um certo academismo e peso de construção, fez renascer também uma música
bela e forte.
Johannes Brahms, admirado por Schumann, que ele próprio venerava, per-
maneceu, após a morte deste infeliz músico, ligado à sua viúva e aos seus fi-
lhos por um profundo afeto. Levantaram-se dúvidas sobre a natureza desta a-
mizade, mas a nobreza de caráter de Brahms e de Clara Schumann é quanto
basta para desmentir formalmente este gênero de suposições. Homem só, rude
mas de coração terno, vivendo uma existência retirada, Brahms espantou os
seus contemporâneos pela riqueza da sua inspiração, à qual ele acrescentava o
que os seus antecessores românticos haviam descurado: a faculdade de constru-
ir a obra musical, o sentido do equilíbrio e a harmonia das proporções. Durante
largo tempo foi considerado austero ou mesmo aborrecido, e até há poucos
anos o público francês votava-o a um relativo esquecimento; mas o tempo pres-
tou justiça às suas qualidades e ao papel que desempenhou, impedindo a deli-
quescência total do romantismo. A sua música manifesta um indiscutível sen-
timento apaixonado, mas no conjunto respira uma espécie de majestade serena.
Os períodos amplos, as grandes melodias, os ritmos enérgicos, a técnica cerra-
da, a orquestração rica e vasta, tudo afirma a abundância e a força. Com os seus
Concertos para Piano ou para Violino, oferece-nos os exemplos mais perfeitos
de um gênero de que Beethoven, Schumann e Liszt haviam fixado a intensida-
de expressiva. Na música de Brahms o concerto torna-se numa grande sinfonia,
onde o instrumento solista se funde por instantes na orquestra, enquanto nou-
tros faísca de uma técnica transcendente.
César-Auguste Franck, nascido em Liège, foi para paris com os seus pais
quando tinha oito anos e nunca mais deixou esta cidade. A sua obscura existên-
cia de organista e de pequeno professor particular não o impediu de dedicar as
suas férias à composição de obras bastante ambiciosas; todavia, por volta dos
cinquenta anos ainda não tinha escrito nenhuma das grandes páginas que desde
então consagraram a sua glória. Foi com efeito na última parte da sua existên-
cia que ele compôs as Variações Sinfónicas (o seu único concerto para piano),
a Sinfonia em Ré, o Prelúdio, Coral e Fuga para piano, sem contar os admirá-
veis Corais para órgão. Ò “Pater Seraphieus”, como lhe chamavam, era um ser
generoso, ingénuo e confiante, que ao órgão de Sainte-Clotilde entregava infa-
tigavelmente o melhor de si próprio. Franck instaurou um estilo de órgão mar-
cado pela riqueza polifónica, auxiliado nesse sentido pelos órgãos então cons-
truídos por Cavaillé-Coll. Esses órgãos românticos, de sonoridades poderosas,
frequentemente empastadas, diferiam radicalmente dos encantadores órgãos
“barrocos” do século XVIII, de timbre puro e fresco, de linhas nítidas. O franc-
kismo reinará no domínio do órgão até meados do século XX, e foi apenas
muito recentemente que os organistas começaram a regressar aos instrumentos
e estilo que o precederam, apesar de que ainda hoje se encontram órgãos ro-
mânticos na maioria das igrejas.
Se foi possível identificar Franck com a França, tal identificação deve-se
apenas ao fato de Franck ter exercido a sua atividade e a sua influência neste
país, mas, na realidade, a sua obra não revela característica francesa. Pelo con-
trário, ele representa bastante bem o sentimentalismo louco próprio da região
de Liège (que se encontra, através da diferença de linguagem, num Grétry)
aliado a uma formação germânica marcada pela sua forte escolástica; assim o
franckismo, que tão nitidamente fertilizou a música francesa, não era na origem
um valor francês. Uma das inovações técnicas de Franck foi aquilo a que se
deu o nome de estilo “cíclico”: o compositor utiliza um tema único através da
obra (concebida como um ciclo). O tema, transformado de diversas maneiras,
nem sempre é reconhecível, mas cimenta a unidade material e espiritual da
obra.
Dois músicos vão afastar-se destas tendências: Henri Duparc (1848-1933) e
Gabriel Fauré (1845-1924). A sua escrita límpida, a sua arte da graduação e
moderação fazem deles os primeiros representantes de uma corrente nova,
mercê da qual a música francesa reencontrará a sua inclinação pessoal. Com
Duparc e Fauré, o romantismo fica transformado mas não renegado; pudico, o
seu expressionismo enriquece-se com uma preocupação do desenho, da harmo-
nia, da forma elegante, que lhe conferem um aspecto muito diferente. Melodias
impregnadas de paz, impulsos contidos, harmonias cintilantes de colorido, ex-
primem uma estética fundada sobre valores musicais de preferência aos valores
sentimentais.
Com treze melodias (o essencial da sua produção), Duparc mostrou uma
sensibilidade nova. Com essas melodias, as suas obras instrumentais e, sobre-
tudo, o seu Requiem, de uma excepcional qualidade de doçura franciscana,
Fauré encontrou uma matéria sonora ligeira, etérea. Qualquer deles, não obs-
tante serem oriundos do romantismo, libertam-se dele pela distinção e o gosto,
que de forma alguma excluem o fervor lírico. La Vie Antérieure, Phydilé, La
Chanson Triste ou L'Invitation au Voyage, de Duparc, e Après un Revê, L'Ho-
rizon Chimérique, La Bonne Chanson, de Fauré, são páginas maravilhosas on-
de floresce uma emoção de delicioso colorido. Elas oferecem à música um
mundo virgem, cujos acentos traduzem todo um estado de espírito de “fim de
século”: languidez, boniteza, atmosfera de estufa.
Mas esta época é fértil em surpresas; na realidade ela é muito simplesmente
fértil e, para além das aparências burguesmente conformistas, trabalhada por
forças obscuras. Um artista isolado, personagem fantasista e desconcertante,
profeta extravagante, músico simultaneamente cândido e malicioso, vai tam-
bém desempenhar um papel de relevo: trata-se de Erik Satie (l866'-1925), es-
pécie de Jarry da música, que, com os seus motejos e impertinências, lutou efi-
cazmente contra um passado que muitos jovens artistas consideravam asfixian-
te. A troça, as atitudes irônicas ou paradoxais, uma música deliberadamente
sumária, serão os seus meios de combate; por estes processos ele pretende in-
dicar um regresso à pureza, à economia de ornamentos, a um certo helenismo,
únicos elementos susceptíveis de limpar a música do seu sentimentalismo para-
lisante. Debussy e Ravel terão a inteligência de levar os seus conselhos a sério
e, no seu encalço, procurarão novos caminhos. É evidente que estes com-
positores também possuirão o talento necessário para traduzir as idéias de Satie
em obras indiscutíveis.
No último terço do século esboça-se assim uma reação cada vez mais gene-
ralizada contra a grandiloquência, a lamentação, as intenções psicológicas vin-
cadas, a morosidade dos desenvolvimentos, a matéria sonora pesada e maciça.
Os pintores e os poetas dão o tom: Manet, Cézanne, Degas e Renoir, por um
lado, e, por outro, Baudelaire, Laforgue, Verlaine, são os representantes de
uma geração que “encontrou outra coisa para dizer”. Pois neste perpétuo reco-
meçar que é a história, as gerações que se seguem, mesmo quando não rene-
gam a herança das precedentes, nem por isso deixam de aspirar a descobrir
novos critérios.
No que respeita à arte do fim do século XIX, a revolução é importante: os
poetas substituem a eloquência do sentimento pela beleza sonora das palavras e
a sedução da imagem; os pintores substituem os valores do colorido e as vibra-
ções da luz pela eloquência do tema tratado e os músicos (de princípio apenas
Debussy) substituirão as sugestões da sonoridade pela eloquência patética da
confidência. Em todos os domínios, a arte evade-se para exprimir sensações
novas por meio de formas livres e ligeiras.
Mas como a história não pode ser cortada em fatias como se fosse um bolo, tais
tendências vivas e cada vez mais activas associam-se aos entusiasmos da mesma
geração por Wagner, cuja obra é objecto de verdadeira idolatria. Por outro
lado, a Alemanha fixa-se num neoclassicismo brahmsiano. Debussy foi o único
músico dessa época a ouvir imediatamente o apelo dos pintores e dos poetas da
sua geração. Os seus contemporâneos, Mahler, Sibelius, Bruckner, Dlndy,
Chausson são músicos do século XIX, que representam, cada um deles à sua
maneira, o movimento neoclássico; é confrontando a obra destes compositores
com a de Debussy que se verifica a que ponto este último pertence ao século
XX.
É, pois, em França que ocorre a renovação que tanto transformará a música.
Existe uma espécie de equilibrador entre as nações européias e particularmente
entre os três países que foram os fulcros da civilização musical: no século XVII
a Itália cria a ópera; no século XIX a Alemanha é a fonte do romantismo; no
princípio do século XX a França dá origem ao que se poderia chamar o objec-
tivismo. Essa revolução não será fácil, pois muitos músicos franceses encon-
tram-se hipnotizados pelas mitologia e linguagem wagnerianas. Não se imagina
um drama lírico sem ser inspirado numa lenda céltica: guerreiros, semideuses,
personagens misteriosas, brumas do mar do Norte, castelos inacessíveis e aven-
turas cavalheirescas, exprimindo-se todos estes temas num tom de solene a-
margura.
É assim que D'Indy escreve Fervaal, Chabrier Gwendoline, Franck Gene-
viève, Lalo Lê Rói d'Ys, etc. De todas estas obras, influenciadas pelos grandes
dramas wagnerianos, nenhuma de resto resistiu ao desgaste do tempo, com
excepção de Lê Rói d'Ys, que contém algumas páginas encantadoras. Contudo,
na mesma época, pelo menos Verdi, sem se preocupar com Wagner, escrevia
obras de irresistível sedução a partir de temas genuinamente italianos. Será,
portanto, necessário que os jovens músicos franceses tenham muita força para
conseguirem evadir-se do século XIX, e é assim que se manifestará a luta das
gerações entre partidários de D'Indy, ligados ao passado, e adeptos de Debussy,
voltados para o futuro.
Vicent d'Indy (1851-1931), grande professor, austero aristocrata de velha ra-
iz das Cévennes, empunhava o ceptro do franckismo e do academismo na S-
chola Cantorum, instituição que desempenhou um papel importante, mas cujos
próprios princípios se opunham às idéias novas. Efetivamente, como perfeito
representante do neoclassicismo, D'Indy professava que o futuro da música
francesa se encontrava numa adaptação “razoável” do romantismo wagneriano
às normas latinas: gosto, distinção, sobriedade, clareza da forma, etc. O que ele
preconizava era, em suma, um represamento das forças livres do romantismo;
mas podia desde logo prever-se a decadência e o estiolamento que daí resulta-
riam. Porque esta profissão de fé era um ponto de vista do espírito: era necessá-
rio romper com o passado, mesmo sem saber para onde se ia, e era exatamente
o que faziam dois jovens revolucionários chamados Debussy e Ravel. As me-
lhores obras de D’lndy são aquelas onde ele se manifesta pessoal e livre do
wagnerianismo, em contradição com as suas teorias; este é o caso da Sympho-
nie sur Un Chant Montagnard (com piano), obra-prima de frescor, de lirismo
sem vulgaridade, de clareza de forma e de expressão. Pedagogo eminente, cuja
lembrança e exemplo ainda permanecem vivos, Vincent d'Indy teve o mereci-
mento de formar numerosos músicos da mais fina têmpera e os seus atuais dis-
cípulos evidenciam uma sólida tradição.
Neste fim de século, em que coexistem os últimos defensores e os primeiros
adversários do romantismo, manifesta-se uma corrente distinta: o naturalismo,
que já citamos anteriormente. O naturalismo é um realismo que ignora o misté-
rio, um produto puro das idéias positivistas do século XIX. O seu prosaísmo
não pôde sobreviver. No domínio da ópera exerceu, contudo, sob o nome de
verismo1, uma influência nefasta pelo seu lirismo sumário e de efeitos senti-
mentais frequentemente grosseiros. Infelizmente os acentos veristas à italiana,
e que fizeram vibrar muitos corações simples, ainda continuam a acordar ecos;
as seduções melodramáticas e folhetinescas de Cavalaria Rusticana (Mascag-
ni) ou Palhaços (Leoncavallo) ainda constituem belas noites de certos teatros
líricos. É necessário dar um lugar à parte a Puccini (A Tosca, Turandot, Gianni
Schiccht), cujo talento é mais substancial que o dos seus compatriotas. Em
França, onde esses excessos meridionais são menos pronunciados, Louise, de
Charpentier, ou L'Attaque du Moulin, de Bruneau, que põem em cena a vida
quotidiana numa combinação de realismo e de wagnerianismo, representam os
documentos da época.
O Teatro Livre de Antoine e as obras de Zola são a origem destas tentativas;
mas se o merecimento de um Charpentier é o de ter, em 1900, abandonado o
repertório mitológico-simbólico em proveito dos problemas humanos corren-
tes, será preciso aguardar Wozzeck, ou até uma obra mais popular, como Porgy
and Bess, para aplicar estes princípios de forma magistral.
Músicos como Delibes ou Massenet contribuem certamente para a renova-
ção do teatro lírico francês. Mas as elegantes obras de Delibes (Lakmé, 1883)
não têm audácia, e as de Massenet (Manon, Werther, Lê Jon-gleur de Notre-
Dame), que alcançaram um êxito universal, pecam por um tom piegas e adoci-

1
Nascido na Itália, o verismo manifestou-se nesse país de acordo com o carácter apaixonado que os
compositores imprimiam à sua inspiração, mas, na realidade, ele só transpôs as fronteiras da Península mercê de
uma transformação, como mais adiante veremos.
cado, uma eloquência acariciadora à flor da pele, a despeito de um notável ta-
lento de melodista, de orquestrador e de estilista. Pelo menos, estes composito-
res ajudaram a impor um “tom francês”.

Eis, portanto, o quadro resumido deste fim de século:


— Franckismo e indyismo, preconizando uma escolástica que impunha um
freio aos devaneios românticos.
— Neoclassicismo de Brahms e da escola alemã.
— Estilo barroco dos continuadores diretos de Wagner, tais como Ri-
chard Strauss (de que falaremos mais adiante).
— Naturalismo e verismo, como reacção contra o sonho.
__Duparc, Fauré, Satie, pioneiros de uma arte que afirma a poesia e a gra-
duação.
Finalmente, existem os isolados: Paul Dukas (1865-1935), cujo scherzo sin-
fônico O Aprendiz de Feiticeiro, criado em 1897, se tornou famoso, manifesta
um perfeito classicismo de forma e de pensamento, não obstante o tema fantás-
tico da balada de Goethe (Ariane et Barbe-Bleue ou La Péri permanecem como
as obras-tipo deste grande músico); na Áustria, Anton Bruckner (1824-1896)
reveste a sua inspiração sonhadora de formas pesadas, bastante inacessíveis
para o público dos países latinos.
Se agora se perguntasse que gênero de música podia ser ouvida, entre 1875
e 1900, em França e na Alemanha a resposta pareceria certamente desconcer-
tante sob -muitos aspectos. Os espíritos abertos podiam escolher entre o melhor
e o pior, as fórmulas já gastas e a novidade. Eis alguns exemplos: os grandes
poemas sinfônicos de Richard Strauss, D. João, Morte e Transfiguração, Till
Eulenspiegel; O Aprendiz de Feiticeiro, de Dukas, o Prelúdio à Sesta de Um
Fauno, de Debussy (1892), a Sinfonia, de Franck (1888), a Primeira Sinfonia,
de Mahler, Lê Rói d'Ys, de Lalo (1888), o Requiem, de Fauré (1888), a Sym-
phonie Cé-névole, de D'Indy, o Otelo, de Verdi (1887), Lês Sara-bandes, de
Satie, a Sinfonia com Órgão, de Saint--Saèns (1886), as Variações Sinfónicas,
de Franck, a Sétima Sinfonia, de Bruckner, a estreia de Manon, de Massenet
(1884), o Parsifal, de Wagner (1882), e as Pièces Pittoresques, de Chabrier
(1881), das quais Franck, clarividente, dizia que, em pleno wagnerianismo,
ligavam a música francesa à Couperin e Rameau. Citemos ainda a estreia de
Carmen (1875), a inauguração de Bayreuth com a Tetralogia (1875), a Primei-
ra Sinfonia, de Brahms, o Primeiro Concerto para Piano, de Tchaikowsky
(1875), a composição dos lieder, de Hugo Wolf, e a Noite Transfigurada, de
Schoenberg (1899), etc.
Durante estes vinte e cinco anos, quantas riquezas e contradições, quantos
caminhos diferentes... Entretanto, vencerá a tendência mais forte: Debussy.

O alvorecer de uma idade nova

Todas as idéias, todos os sentimentos que animam a jovem geração do fim


do século XIX, vão pouco a pouco reunir-se, cristalizar-se, precisar-se, e pro-
duzir um conjunto de obras de arte onde finalmente aparece uma unidade que
define a época. Esta definição do credo estético e da sensibilidade do princípio
do século XX encontra-se na obra dos pintores impressionistas e dos poetas
simbolistas, assim como na música de Debussy.
Em que consiste o debussismo? Uma palavra designa-o, em relação ao que o
precedeu: liberdade. Claude Debussy (1862-1918) não teve dificuldade em
sacudir a sujeição: toda a sua maneira de ser o levava para a fantasia, a liberda-
de, a aventura. É solitário, irrequieto, silencioso, exceto quando se exalta—ou
se diverte—com amigos que perfilham as suas idéias. Assemelha-se ao cavalo
que escouceia mal sente o constrangimento do freio ou da sela. Desde a infân-
cia sentia aversão pelos exercícios, os métodos acadêmicos, não obstante ter
feito muito bons estudos no Conservatório de Paris; mas estuda sem gosto e
apenas porque é necessário: ele já então pressente a sua liberdade futura e es-
candaliza tanto os seus condiscípulos como os seus professores, inventando
combinações sonoras revolucionárias e proclamando (o que já é significativo)
que a música pode muito bem possuir regras derivando da sua própria lógica, a
qual não tem forçosamente de ser a lógica admitida até então.
O rompimento de Debussy com o mundo romântico será total; ele é o pri-
meiro músico a afirmá-lo dessa maneira, ao conceber uma música que já não
ambiciona traduzir os sentimentos humanos, uma música que já não é uma
íntima confissão, mas que, pelo contrário, se objetiva inteiramente. A música
de Debussy evoca a natureza, as sensações, a luz e a sombra, os perfumes e as
cores; liberta-se da paixão. O valor sonoro substitui o valor expressivo. É a
beleza-objecto, o anti-romantismo e o fim da hiper-expressão do “eu”.
Além desta característica fundamental do ponto de vista da expressão, a mú-
sica de Debussy introduz outra novidade igualmente importante: a da forma li-
vre, isto é, não pré-estabelecida, como sucedia com todos os seus antecessores
(Brahms, Bruckner, Franck, etc.). Na música de Debussy as estruturas orde-
nam-se de acordo com o desenvolvimento da obra, ignoram os esquemas que a
tradição musical havia pouco a pouco fixado e apenas obedecem à sua lógica
interna. A sua música elabora-se assim livremente e constrói-se a si própria,
cada estrutura dando origem a outras estruturas.

Schoenberg Alban Berg Strawinsky

Claude Debussy
Maurice Ravel
O “Grupo dos Seis” rodeando Jean Cocteau.
Da esquerda para a direita: Milhaud, Auric,Hon-
neger, Germuine Tailleferre, Pouíenc e Durey

E, como se a revolução debussiana não fosse completa, eis que a sua lin-
guagem harmónica se liberta inteiramente da linguagem clássica, refuta as suas
regras e descobre outras, cujo encanto sonoro — ou a evidência — vem provar
que existia uma verdade latente, ainda não revelada, na sintaxe dos acordes. Os
encadeamentos livres de Debussy revelam um mundo sonoro desconhecido e
abrem a porta a toda a harmonia do século XX.
Uma das páginas mais pessoais e mais audaciosas do jovem Debussy, o Pre-
lúdio à Sesta de Um Fauno (1892), evidencia a sua extraordinária imaginação:
basta recordar que ela é contemporânea das grandes obras de Franck, de Ri-
chard Strauss, de Saint-Saèns, de Bruckner ou de Mahler. A subtileza das sono-
ridades, a coloração ligeira da orquestra, as harmonias inesperadas, o seu poder
evocativo, indicam o gênio deste músico de trinta anos, que se afasta de todas
as sendas batidas. Manifesta-se o mesmo gênio nos Estudos e Prelúdios para
Piano, onde Debussy utiliza uma matéria sonora irisada para descrever, com
poesia e graça, paisagens, (personagens e sensações musicais puras. As suas
obras para orquestra, os Nocturnos, as Imagens, as suas melodias, em suma,
toda a sua obra revela-o prodigioso renovador das formas e da expressão.
Mary Garden,
criadora da personagem de Mélisande, na ópera cómica

A criação de Pelléas et Mélisande, em 1902, marca também uma data im-


portante; se admitir tudo quanto liga este drama lírico a Tristão e Isolda (mes-
mo enredo, .mesmo mistério, mesma continuidade do recitativo nas vozes,
mesma importância psicológica concedida à orquestra, etc.), perceber-se-á me-
lhor tudo quanto constitui a sua originalidade: a distinção, os tons diluídos, o
esbatimento das personagens no quadro geral, a orquestra tratada sem peso
nem ênfase, actores que não declamam e se aproximam de um “natural huma-
no” há muito esquecido, em suma, um conjunto de elementos que renovam o
carácter do teatro lírico.
Três anos após Pélleas, novo lance teatral, com a criação de La Mer, em
1905. Desta vez Debussy ataca o que havia de mais sagrado, de mais tabo na
música do século XIX: a sinfonia. Numa paleta orquestral de um colorido ain-
da desconhecido, de sonoridades fluidas e movediças, surgem subtis evoca-
ções; motivos breves dançam com um frescor e uma força marítimas; encon-
tramo-nos a cem léguas das solenes sinfonias da época (até mesmo a despeito
das belezas que o tempo consagrou) e aborda-se um mundo encantado, onde, é
necessário acrescentar, muito poucos auditores souberam ou puderam então
penetrar, de tal forma essa música maravilhosa e cintilante parecia enigmática.
A evolução de Debussy conduzi-lo-á, de resto, do encanto impressionista às
buscas inquietas das últimas obras (Sonatas para Violino e Piano, Violoncelo e
Piano), onde se manifestam incerteza e angústia. O período feliz do músico
passou; atingido pela doença, deprimido pela guerra, esgotado pelas lutas que
travara com coragem antes de entrar nesta última fase da sua vida, Debussy
morre aos cinquenta e seis anos, em Março de 1918, numa Paris submetida a
bombardeamentos.
Com Debussy a França reencontrou os “valores franceses” que o romantis-
mo havia eclipsado; com ele e os seus sucessores, ela retomará a supremacia
detida pela Alemanha romântica desde há um século. Fauré, Duparc, Satie fo-
ram os pioneiros, e Debussy o revelador dessa renovação que iria radiar duran-
te cerca de meio século, isto é, aproximadamente de 1900 a 1940.
É justo salientar que, ao inverso de certos músicos, que ficaram presos entre
duas tendências, a força de Debussy manifestou-se pelo modo como, ao abrir
as portas do século XX, fechou cuidadosa e definitivamente as do século XIX.
Este século XX, que desponta, vai assistir fora da França à mesma fermen-
tação de idéias, mas esta permanecerá quase sempre ligada à influência do
meio intelectual e artístico parisiense. Nesse momento, a atenção geral incide
sobre Paris, centro extremamente ativo que atrai os melhores de entre os jovens
artistas estrangeiros.
Basta citar algumas das obras musicais, tão importantes pela sua qualidade
como pelo seu significado histórico (chegaram até nós sem uma ruga), para dar
unia prova dessa força impetuosa das ideias novas num período que pode situ-
ar-se entre 1900 e 1914.
1902: Pélleas et Mélisande, de Debussy. 1905: La Vida Breve, de Manuel
de Falia.
1906: Ariane et Barbe-Bleue, de Paul Dukas (o seu Aprendiz de Feiticeiro,
tão moderno, data de 1897). Publicação, por Ferrucio Busoni, de um tratado:
Entwurf einer neuen Aesthetik der Tonkunst (“Esboço de uma nova estética da
arte musical”).
1907: A Hora Espanhola, de Maurice Ravel, a primeira opera buffa desde o
século XVIII.
1908: Primeiro Quarteto de Cordas, de Bela Bartok.
1909: Primeira temporada parisiense dos bailados russos de Diaghilev, que
vão revolucionar a arte da dança; Six Pièces pour Orchestre, de Webern.
1910: La Chanson d'Eve, de Gabriel Fauré; O Pássaro de Fogo, de Stra-
winsky.
1911: Lê Chateau de Barbe-Bleue, de Bela Bartok; Daphnis et Chloé, de
Ravel.
1912: Alexandefs Rag-Time Band, de Irving Ber-lin, aparecimento do jazz e
dos ritmos sincopados. No mesmo ano: as Goyescas, de Granados, os Jeux, de
Debussy, o Festin de L'Araignée, de Roussel, Pierrot Lunaire, de Schoenberg.
1913: A Sagração da Primavera, de Strawinsky, Die Glúckliche Hand (“A
Mão Feliz”), de Schoenberg.
Estas obras, escolhidas numa produção bastante considerável, representam
uma “música nova” e provocarão a adesão dos .mais dotados compositores da
nossa geração, aqueles, (precisamente, que vão ser os mestres da época.
Mais uma vez se evidencia o paralelismo entre a música e as outras artes: o
mesmo período vê a afirmação dos jovens pintores da Escola de Paris: Gau-
guin, Rousseau, Monet, Signac, Matisse, Vlaminck, Rouault, Utrillo, Picasso.
Fora da França os grupos Die Brúcke (Dresda), em parte inspirado nos france-
ses, e Der Blaue Reiter (Munique), dos quais saem Kandinsky, Klee, Kokosch-
ka, mas também Schoenberg, dão origem ao expressionismo, movimento de
revolta contra a ordem burguesa, que exprime um lirismo exacerbado e pessi-
mista.
Na literatura, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud, Mae-terlinck, Valéry, Apolli-
naire e Pirandello, Hoffmanns-tahl, Rilke, Kafka, confirmam este movimento
universal que faz do alvorecer do século XX um desses momentos privilegia-
dos em que a sensibilidade humana muda, em que a atitude do criador perante
a obra de arte (e ainda mais perante os homens, a natureza, a vida) se transfor-
ma. Naturalismo, realismo, simbolismo, impressionismo, expressionismo, são
apenas aspectos diferentes de uma mesma necessidade de libertação.

Grandes personalidades

A partir do princípio do século XX torna-se muito difícil considerar a evo-


lução da música de uma maneira linear, como se essa evolução se inscrevesse
num quadro geral coletivo onde a obra de cada músico se inserisse naturalmen-
te. No século XVII, por exemplo, a poderosa personalidade de um Monteverdi
surge no momento mais oportuno para exprimir as ideias que tinham amadure-
cido no seu meio. Hoje, pelo contrário, a história far-se-á pela vontade e sob o
impulso de alguns homens, que lhe imprimirão determinada direção, muitas
vezes imprevisível, ao dotá-la com- a linguagem, as teorias e, por assim dizer,
um “universo” próprio a cada um, que aumentará a fecundidade mas também a
disparidade da época.
Ao libertar a personalidade criadora do artista, o romantismo legou-nos este
princípio de linguagem que não pertence a nenhuma escola, a nenhuma estética
colectiva e apenas possui valor em virtude da sua singularidade. Doravante, o
artista que adere a uma tradição ou a uma tendência preexistente fica descon-
siderado: a sua atitude é apodada de academismo. Este constante apelo aos
recursos mais nitidamente individualizados produziu incontestáveis riquezas;
levou, contudo, a uma espécie de maior oferta, tanto por parte do artista, como
do público. Esta lei, hoje soberana, é exaltante mas dura e talvez esgotante; a
ela se deve provavelmente essa “corrida para diante”, essas buscas febris,
angustiadas, essa necessidade de espanto e essa sede de originalidade seja
porque preço for de que os artistas dão o espectáculo. A ela, sem dúvida, deve
também ser atribuído o rápido envelhecimento das novidades que se sucedem.
Pode-se também atribuir-lhe finalmente a desorientação do público perante um
mundo artístico em perpétua transformação. Uma revolução ainda não acabou
de produzir os seus frutos, já outra se inicia, que a desagrega e rejeita. Mas este
assunto pertence a outra história; o essencial é verificar que o individualismo
soberano instaurado no século XIX se espalhou e se implantou, de tal forma
que a evolução da música apenas depende hoje das experiências pessoais de
cada compositor.
Para esboçar a história da música contemporânea torna-se assim indispensá-
vel observar sucessivamente as personalidades criadoras que condicionaram o
seu desenvolvimento. Fazemos notar que, se o caráter da nossa música atual é
compósito, este termo nada tem de pejorativo. Em certas épocas a riqueza de
uma cultura musical provém da sua unidade: a Ars Nova, a Renascença, o sé-
culo XVIII. Noutras épocas, essa riqueza depende da sua variedade: o barroco,
o romantismo, o século XX.
Vejamos agora, depois de Debussy, que abre o século, quais são os outros
grandes compositores do nosso tempo.
Maurice Ravel (1875-1937), que foi comparado a Debussy, sobretudo no
que respeita às suas primeiras obras, mas que dele se desliga bastante rapida-
mente, é um músico precioso, de raça, severo, o oposto absoluto de um expan-
sivo. A sua obra oferece um modelo de perfeição formal, de medida e de domí-
nio da técnica e da eloquência. É um mestre clássico, cuja existência foi consa-
grada à busca paciente da perfeição. Evidenciou todas as suas qualidades de
estilista, assim como a sua inspiração harmoniosa, nas obras para piano: Gas-
par de Ia Nuit, Sonatina, Lê Tombeau de Couperin, Miroirs, e nas suas grandes
páginas de orquestra cinzeladas com uma ciência deslumbrante:
Daphnis et Chloé, Rapsódia Espanhola, A Valsa, Bolero.
A diversidade dos seus meios surge quando se confronta, por exemplo, a
Rapsódia Espanhola, evocação voluptuosa, colorida, toda sensorial, da Espa-
nha, Daphnis et Chloé, poema panteísta de nobre movimento, e Bolero, produ-
to de um extremo rigor intelectual, que organiza um crescendo orquestral verti-
ginoso até ao irresistível clímax final, sem recorrer a qualquer exaltação dioni-
síaca, mas dispondo com lucidez os processos de orquestração que produzirão
uma impressão de embriaguez frenética.
Diz-se que a arte de Ravel está ligada a uma grande tradição do génio fran-
cês, que consiste na sujeição das coisas mais apaixonadas às regras de um esti-
lo. Definição do cartesianismo em música. Mas a vontade de racionalismo não
exclui da sua obra o sentido do trágico e do mistério: o Concerto para a Mão
Esquerda ç a Valsa impõem um mundo alucinado por vezes até à angústia. A
inteligência precisa, a sensualidade e os demônios interiores formam neste caso
uma das mais preciosas “naturezas” da época, e que foi, sem dúvida, mais
complexa do que muitas vezes se julgou.
A vida de Ravel é a imagem da sua obra: muito solitário, fugindo do mundo
e das suas obrigações, pudico e reservado, refugiava-se no paradoxo ou na iro-
nia, levado pelo receio de se expandir. A sua natureza terna e sensível, a sim-
plicidade das suas maneiras, as suas opiniões sempre nítidas, a nobreza do seu
caráter valeram-lhe inúmeras e fiéis amizades. O seu ideal foi conferir à música
francesa essa distinção de tom e essa elegância de forma que havia perdido
desde o século XVIII.
Albert Roussel (1869-1937), que começou por ser oficial de marinha, em
breve se consagrou exclusivamente à música. A sua obra apresenta uma
associação bastante rara de dons poéticos e de vigor másculo. A sua música é
clara, sã, os seus ritmos entrecortados e impulsivos, os seus motivos melódicos,
sem languidez. Vivendo na sombra de um Ravel, de um Strawinsky, de um
Prokofiev, de um Bartok, em suma, dos grandes criadores da época, não pôde
firmar-se no primeiro plano; o seu temperamento meditativo e secreto tê-lo-ia
de resto impedido. Mas o tempo revelou-o como um dos mestres da escola
francesa. O seu Festin de L’Araignée, a ópera bailado Padmavâti, a Sinfonietta
para orquestra de cordas, a poderosa Suite em Fá para orquestra e as suas
sinfonias, das quais a terceira é uma obra-prima, apontam-no como um dos
grandes arquitectos da música moderna.
Arnold Schoenberg (1874-1951) ocupa um lugar à parte. Partindo do wag-
nerianismo e da linguagem anêmica, impregnada de cromatismo constante,
utilizada pelos epígonos de Wagner, girando em torno desse domínio asfixiante
sem encontrar uma saída, Schoenberg despendeu um esforço violento para se
libertar. Apoiando-se no cromatismo, encontrou na sua análise as bases de uma
completa renovação da linguagem musical: o sistema “dodecafônico”.
Coexistiram assim duas tendências na Europa: a escola germânica, inteira-
mente oriunda — conforme se pôde dizer—do cromatismo do Tristão, e a es-
cola francesa, que tomou a direção oposta. É corrente dizer-se que Tristão e
Isolda, fase última da escrita wagneriana, contém em germe todo o futuro da
música alemã e da Europa Central. Foi partindo desta escrita, que evita a sen-
sação tonal pela complexidade cromática das melodias e das harmonias, que
Schoenberg, levando o risco até às suas derradeiras consequências, desintegrou
completamente o sistema e descobriu a igualdade absoluta de todos os sons, a
sua libertação da função tonal. Com o “total cromático” (os doze sons do nosso
sistema musical tradicional), onde cada som já não tem valor em relação aos
outros, mas sim um valor próprio, Schoenberg organiza um sistema cromático
oposto ao sistema tonal: o sistema dos doze sons ou dodecafonia, do qual desa-
pareceu toda a noção de tonalidade (atonalidade). Este cromatismo integral
suprime a harmonia e todas as associações de sons tradicionais, oferecendo
assim um aspecto assaz desconcertante para o ouvido, que só dificilmente lhe
percebe a lógica, pois trata-se de uma lógica intelectual, de resto indiscutível,
mas não de uma lógica acústica. O termo “música serial”, aplicado à música
dodecafônica, tem a sua origem no fato de o compositor utilizar uma “série” de
sons escolhida de acordo com certas regras como motivo inicial, sobre o qual
se elaborará o trabalho de construção.
O sistema que Schoenberg elabora já antes de 1914 e que definiu em 1923
(com as Peças para Piano Op. 23) será desprezado por alguns, combatido por
outros, mas admitido por certos compositores e uma parte do público. Este sis-
tema fará a sua reaparição em França em 1945 com René Leibowitz, que lhe
conferirá um novo impulso e atrairá o interesse da nova geração. Músico e teó-
rico, Leibowitz havia demoradamente estudado o sistema serial e a sua contri-
buição para a evolução da linguagem musical. O seu ensaio Schoenberg e a
Sua Escola provocará uma verdadeira renascença da dodecafonia em França.
A existência de Schoenberg foi pouco favorecida pela sorte: juventude po-
bre, numerosos golpes de adversidade, exílio com o advento do nazismo, exis-
tência material precária nos Estados Unidos. A sua obra foi, contudo, fecunda;
devemos citar Pierrot Lunaire (1912), que emprega a “voz falada” (Sprechs-
timme), um conjunto de câmara extremamente subtil, os Gurre-Lieder (1900),
ainda ligados ao romantismo, as Cinco Peças para Orquestra (1909), onde a
sonoridade é utilizada sem pretexto anedótico, numa finalidade expressiva de
surpreendente dramatismo, a opera buffa num acto Von Heute auf Morgen
(1929), a ópera monumental, que ficou incompleta, Moisés e Aarão (1932), e O
Sobrevivente de Varsóvia (1949), para recitante e orquestra, drama violento e
rápido que se desenrola em oito minutos. Não esqueçamos os tratados teóricos
de Schoenberg, muito importantes, desde o Tratado de Harmonia, de 1911, até
Funções Estruturais da Harmonia, publicado em 1951, ano da sua morte.
Durante perto de trinta anos, Schoenberg tinha ensinado composição, ora em
Berlim, ora em Viena.
Foi aí que ele encontrou dois discípulos que, entre tantos outros, se afirma-
rão como os seus principais continuadores, não obstante cada um ter escolhido
um caminho diferente.
Anton von Webern (1883-1945) é o experimentador mais sistemático, mais
exigente do sistema cromático. Logo desde as suas primeiras obras, ele surge
como um músico austero, ascético mesmo, despojando severamente a sua mú-
sica de qualquer elemento pitoresco ou lírico, ou de qualquer apelo, mesmo
alusivo, à sintaxe tradicional. Emprega uma matéria sonora cada vez mais tê-
nue, onde o silêncio desempenha um papel dramático e liberta uma expressão
por vezes mórbida, mas de grande intensidade, em páginas de uma brevidade
que frequentemente surpreende (alguns minutos) e onde o “tempo psicológico”
adquire um sentido novo.
É assim que, após ter partido de um expressionismo áspero e violento (Pas-
sacaille Op. I, 1908), de ricas e fascinantes policromias não figurativas (Seis
Peças para Orquestra Op. 6, 1910), Webern, renuncia ao que se poderia cha-
mar o adorno da música e a sua dialética tradicional, para adotar uma lingua-
gem primeiro estritamente serial e fortemente intelectualizada e, em seguida,
concebida como um espaço percorrido por (“pontos sonoros”.
Webern também utilizou o processo da Klangfar-benmelodie: melodia de
timbres obtida por meio de uma extrema divisão da matéria sonora, sendo cada
nota de um motivo melódico tocada por um instrumento diferente. Este parce-
lamento da matéria sonora, esta redução da forma a um esquema e do discurso
a uma síntese conferem à música de Webern uma ressonância estranha, incrus-
tada de inquietação, mas que, pelo seu caráter enigmático, as suas sonoridades
de insetos e a sua fragmentação, possui um sabor raro, não obstante ser difícil
de apreciar para os auditores não preparados.
Alban Berg (1885-1935), músico tão atormentado como Webern, manifesta,
porém, uma sensibilidade muito diferente, intensamente expansiva e lírica; ele
é o romântico da música serial, um romântico febril que utiliza o sistema dode-
cafônico vergando-o à sua necessidade de expressão; surpreende ver esta natu-
reza emotiva exprimir-se por meio de um sistema cujo caráter puramente cere-
bral é apontado por alguns. O que provaria mais uma vez, se fosse preciso, que
um sistema tem o valor do homem que o emprega. A obra de Berg apoia-se
numa escrita rigorosa, onde aparecem muitas formas tradicionais da música
tonal, mas justificadas e revigoradas. A sua Suite Lírica para quarteto, as suas
duas óperas Wozzeck e Lulu, e o seu Concerto para Violino são evidentes ma-
nifestações do que se chamou o expressionismo de entre as duas guerras; a sua
música está marcada pela angústia e pelo desespero, mas nem por isso deixa de
ser a música de um gênio lírico transibordante de seiva, assim como o produto
de uma ciência muito elevada.
Schoenberg, Berg e Webern permanecem os representantes mais importan-
tes da escola da Europa Central. Os seus trabalhos determinaram uma renova-
ção completa da linguagem musical a partir do cromatismo wagneriano, que já
não se considera como a conclusão de uma evolução, mas como um ponto de
partida. O merecimento destes três homens foi o de terem edificado uma estéti-
ca a partir das últimas indicações de Wagner, como se este, no termo da sua
vida, tivesse confiado àqueles que soubessem compreendê-lo as chaves de um
domínio misterioso que ele talvez pressentisse.
Sergei Prokofiev (1891-1953) imprimiu o cunho da sua personalidade
criadora, extremamente fecunda, tanto na música ocidental como na música
russa. Injustamente acusado de secura na sua juventude, trata-se, pelo
contrário, de um lírico, cujas obras revelam um génio simultaneamente rude e
terno. Prokofiev enriqueceu a música de certos elementos que ela ainda não
abordara: a ironia sarcástica, a veemência selvagem, a rítmica brutal; mas estes
elementos apenas constituem um aspecto do seu talento, pois ele também sabe
exprimir a doçura e a efusão, a gravidade recolhida ou ainda o frescor cândido.
Além da invenção fulgurante que o caracteriza, possui uma técnica de pianista
que fez sensação aquando dos seus recitais; como compositor, a sua técnica de
orquestra não é menor e caracteriza-se por uma nítida originalidade. Se não
usou uma linguagem inédita, Prokofiev impôs contudo uma visão pessoal. Os
elementos tradicionais da composição reencontram-se na sua obra, mas uti-
lizados com grande audácia em relação à sua base clássica. A Suite Scythe e o
Primeiro Concerto para Piano fizeram escândalo no seu tempo, mas as suas
obras seguintes foram mais apreciadas: as sinfonias, os concertos (o terceiro
para piano e o primeiro para violino estão integrados no repertório clássico), as
sonatas; quanto a Pedro e o Lobo, deliciosa história contada em música com
finalidade didáctica, sabe-se que ela deu a volta ao mundo.
Após uma carreira fértil em sucessos e em escândalos, Prokofiev, que vivera
muito tempo em Paris, regressou a U. R. S. S. em 1932. Do seu “período rus-
so” a história dirá, com a serenidade que dela se espera, o que se deve pensar.
Podemos contudo desde já afirmar que, quer se tratasse da idade, quer das pre-
venções de instâncias oficiais, o seu talento sofreu uma travagem durante os
seus últimos vinte anos. Algumas obras revelam o Prokofiev profundo, o bár-
baro orgulhoso e genial, cujos achados surpreendiam as multidões; outras, exe-
cutadas de encomenda, caem numa banalidade de forma, de expressão, de har-
monia, que nunca anteriormente havia surgido sob a sua pena. De resto, todos
nós conhecemos a situação dos compositores soviéticos, ao serviço de um vas-
to público que deles espera uma contribuição substancial de cultura e não expe-
riências aparentemente gratuitas.
Bela Bartok (1881-1945) foi o infatigável pesquisador da música popular do
seu país, a Hungria, e dos países circunvizinhos, que percorreu sem cessar du-
rante vários anos, reunindo finalmente um tesouro folclórico avaliado em cerca
de dez mil cantos.
Consciente de que a expressão popular exprime a alma de uma nação, Bar-
tok não se limitou a esse trabalho de pesquisa, mas alargou-o pelo estudo e
classificação metódica dos diferentes tipos de ritmos e de melodias. Com o seu
colega e amigo Kodalyi, ele estabelece uma espécie de quadro psicológico da
arte tradicional dos países dos Cárpatos e do Danúbio. Trata-se já de um traba-
lho importante; mas Bartok vai mais longe e, sem nunca utilizar sistematica-
mente a música étnica, ele absorve-a na sua própria música, na qual recria à sua
maneira o folclore húngaro. A primeira característica da música de Bartok é
efetivamente um certo tipo de feições rítmicas e melódicas próprias do seu pa-
ís. Por outro lado, o seu temperamento orgulhoso, desconfiado, facilmente irô-
nico ou até escarnecedor, leva-o à violência expressiva, por vezes ao frenesi. A
sua preocupação não é agradar, mas sim exprimir a verdade. Existe algo de
brutal na sua recusa em ceder à complacência. Assim foi o seu caráter, assim
foi a sua música, alimentada, contudo, por uma sensibilidade rica e radiosa, por
uma bondade e um pudor que apenas alguns raros amigos souberam compre-
ender.
As formas tradicionais da música não interessam a Bartok; emprega-as li-
vremente e as suas obras são frequentemente construídas de acordo com estru-
turas originais, cada uma delas possuindo uma estrutura específica. Tonalidade,
politonalidade ou atonalidade combinam-se; a harmonia é rica e complexa, os
ritmos cativam pela sua diversidade e por essa particularidade que não é carac-
terística própria, mas se manifesta em toda a sua geração: o dramatismo, que
ele explora de forma magistral. Efetivamente, a rítmica de um Strawinsky (Sa-
gração da Primavera), de um Prokofiev ou de um Bartok possui um poder dra-
mático que age sobre os outros elementos da obra — melódica ou harmônica.
A rítmica arrasta o conjunto ao ponto de por vezes parecer a sua célula criado-
ra.
Com Lê Chateau de Barbe-Bleue, escrito em 1911, Bartok afirmava-se já
como um jovem mestre de inspiração pessoal e amplos recursos. Até às suas
últimas obras (o Concerto n.3 para Piano e o Concerto para Orquestra)
permaneceu um músico intransigente que prossegue o seu caminho sem se
voltar, sem nunca procurar uma via mais fácil. Sacrificando tudo à sua
exigência, viveu em toda a sua plenitude uma aventura espiritual que o
arrastava para um perpétuo desconhecido. Essa tensão, sempre perceptível na
sua música, comunica-lhe um dinamismo particularmente adaptado à
sensibilidade moderna.
Paul Hindemith (1895-1963) afirma uma natureza vigorosa, ligada à grande
tradição polifônica e tonal que ele renova e vivifica. Afastado da escola de S-
choenberg-Berg-Webern, este músico robusto, são, poderoso, poderia tomar
por sua conta a famosa frase atribuída a Picasse: “Eu não procuro, encontro.”
Pois a afirmação marca muito mais a sua obra do que. A dúvida.
As suas óperas Cardillac, Matias o Pintor, as suas grandes páginas sinfôni-
cas como as Metamorfoses de Temas de Weber ou a suite extraída do mesmo
Matias, as suas obras de música de câmara (sonatas, etc.) agradam pela riqueza
e sensibilidade. A despeito de certo coquetismo de estilo (Hindemith “trabalha
sobre o mesmo motivo” infatigavelmente até esgotar todas as possibilidades de
variantes e dg ornamentação), que sobrecarrega a sua música de uma retórica
por vezes supérflua, não deixa de ser um criador original e um dos únicos
grandes neoclássicos da primeira metade deste século. A sua teoria da Gebrau-
ch-musik (música funcional) opõe-se ao preciosismo das buscas puramente
estéticas. Na sua opinião, a música deve servir o executante e o auditor; deve
tomar lugar entre os interesses e as distrações correntes do homem contempo-
râneo. O seu temperamento ativo, direto, inimigo de qualquer literatura gratui-
ta, encontra-se plenamente nas suas concepções.
Igor Strawinsky (nascido em 1882) é sem dúvida, com Bartok, o maior mú-
sico da nossa época. É também um dos mais discutidos, mas é impossível ne-
gar a sua aguda inteligência, a sua prodigiosa mestria técnica, a amplitude da
sua cultura, o poder excepcional de renovação que ele manifesta em cada uma
das suas obras; qualquer destas é simultaneamente experimental e definitiva, de
forma que o público fica sempre desconcertado perante cada obra nova, quando
apenas começava a habituar-se às precedentes. A evolução estética de Stra-
winsky representa assim uma aventura perpétua, de certa forma semelhante à
de Bartok, com uma diferença que seria sem dúvida ocioso desenvolver aqui,
mas que se torna necessário salientar: a experiência de Bartok é a de um ho-
mem atormentado, procurando-se a si próprio e sofrendo, além disso constran-
gido por uma extrema susceptibilidade nas suas relações com os seus contem-
porâneos, enquanto a aventura de Strawinsky, corajosa evidentemente, não
implica angústia ou drama íntimo. Strawinsky “toca” e experimenta com per-
feito domínio dos seus nervos. Pertence à raça dos formalistas e não à dos ex-
pressionistas. Não obstante a música ser a sua razão de viver, nem por isso a
impregna de inquietação ou procura nela a sua salvação.
A Sagração da Primavera, representada pelos bailados russos em 1913,
marca uma charneira na história da música: é a irrupção de uma violência nova.
Numa formidável orquestração, em ritmos surpreendentes, Sagração evoca os
ritos primitivos, a vida cósmica e as forças obscuras do instinto. Não há desen-
volvimentos, mas repetições obsediantes. Não existem temas, mas motivos
breves e duros como granito. Em Bodas reaparecerá a sociedade primitiva com
meios' muito subtis e um conjunto instrumental reduzido.
Strawinsky introduz uma nova concepção orquestral: renuncia às riquezas
debussianas e instaura o reinado da sonoridade pura e individualizada. Sob os
seus golpes demolidores (e após os de Debussy), a orquestra romântica
desapareceu completamente: já não existe “massa orquestral)”. Debussy, os
impressionistas, Ravel, os alemães, cada um utiliza a partir de então uma
orquestra diferente, tratada de forma diversificada, cintiladora, faiscante e rude,
mas nunca mais sob a forma dessa pesada massa em que se exprimia o
sentimento “fim de século”. Herdeiro de Richard Strauss e de Rimsky-
Korsakov, cujos achados soube utilizar de forma brilhante, Strawinsky
libertou-se destes após alguns anos, que lhe bastaram para escrever Fogo de
Artifício, O Pássaro de Fogo, Petrouchka, e Sagraçãa. Em seguida
evolucionará para a simplificação e clareza.
Ao longo de toda a carreira de Strawinsky manifesta-se um elemento cons-
tante sobre o qual muito se glosou: o regresso ao passado. Academismo, forma-
lismo puro, ou, pelo contrário, renascença das formas e da linguagem antigas?
Este assunto ainda será discutido durante muito tempo. Com toda a evidência,
o formalismo aparece na obra de Strawinsky como uma preocupação essencial.
No divertimento O Beijo da Fada (segundo o título do bailado que dele se ex-
traiu), utiliza os temas de Tchaikowsky totalmente “desapaixonados”; em Pul-
cinella, temas de Pergolesi. Na sua ópera Rake's Progress, sujeita-se ao estilo
italiano, isto é, de Mozart. No Ebony Concert presta homenagem ao jazz, um
jazz também desapaixonado, é preciso dizê-lo. No Thrène ele anuncia a sua
conversão à técnica dodecafônica de Webern. Após as fulgurantes criações da
sua juventude, é difícil evitar dizer que Strawinsky se transformou num cientis-
ta diletante, procurando temas de inspiração, “hipóteses de trabalho”, no imen-
so fundo legado pela história, para dele extrair a matéria dos seus exercícios de
estilo. Verdadeiro mágico, consegue de resto retirar dessa reserva insólitas e
surpreendentes transformações.
O caso de Strawinsky não está definido; mas este compositor surge como a
principal personalidade deste meio século, em primeiro lugar devido aos cami-
nhos que abriu e, em seguida, porque é impossível fugir às questões formuladas
pela sua música. O seu principal merecimento terá sido sem dúvida o de afir-
mar a existência de uma arte “incapaz de exprimir seja o que for”, como ele
próprio definiu. As controvérsias que a posição assim assumida — e esta nova
filosofia da música — podem provocar em nada modificarão o fato realmente
importante: o sólido contrapeso oposto à formidável quantidade de “música
expressiva”, expressiva até ao brotar das lágrimas, até ao delírio sentimental,
até à consumpção. Férteis interrogações puderam assim ser formuladas, e
Strawinsky devolveu-nos o gosto por uma música reconduzida aos seus princí-
pios mais racionais.
Richard Strauss (1864-1949) é um músico do século XIX ou do século XX?
Contemporâneo de um Schoenberg ou de um Roussel, poderia ser considerado
como o último dos grandes românticos, mas o seu temperamento é tão comple-
xo que não se deixa facilmente encerrar numa definição a priori. Efectiva-
mente, Strauss, continuador directo de Wagner, não se afasta tanto como se
poderia julgar dos Bruckner, Mahler, Schoenberg e outros que desbravaram o
caminho da nova música a partir dos princípios wagnerianos. Mas Strauss pos-
suía uma faculdade de invenção que iria levá-lo a sucessivas mudanças de esti-
lo. A sua linguagem, extremamente cromática, provém em linha reta de Wag-
ner, tal como a sua orquestra sumptuosa, frequentemente maciça, e a sua utili-
zação do leitmotiv ou do recitativo contínuo. Mas ele ainda amplifica e enri-
quece a paleta orquestral wagneriana com um colorido faiscante, uma espanto-
sa virtuosidade de escrita e uma fantasia livre que apenas provêm do seu gênio.
O esplendor da sua orquestra, a vitalidade efervescente das suas idéias, a o-
riginalidade da sua linguagem, apontam-no desde a juventude como um músico
excepcional. As suas primeiras grandes obras são poemas sinfônicos; mas en-
quanto Liszt (criador do gênero) exprimia os seus próprios sentimentos nesses
poemas sinfônicos, Strauss procede a uma verdadeira descrição lírica do assun-
to, indo ao ponto de criar um simbolismo completo da linguagem musical (imi-
tação do silvo de uma seta, escala ascendente quando uma personagem sobe os
degraus de uma escada, frase entrecortada, se o herói está ofegante, etc.). Este
simbolismo tem de resto o merecimento de em nada diminuir a beleza ou a
lógica musical da obra, para um auditor que ignore o seu argumento.
A propósito dos poemas sinfónicos, sublinhemos que Strauss escreveu D.
João, Morte e Transfiguração, Till Eulenspiegel, D. Quixote, Vida de Um
Herói, Assim Falou Zaratustra, entre os vinte e cinco e os trinta e cinco anos
(de 1888 a 1898). Em seguida dá ao teatro lírico duas obras de um poder
surpreendente: Salomé e Electra, onde ele exprime o horror, a violência, o
furor das paixões com uma audácia que nem Berlioz ou Wagner se atreveram a
fazer. A grandeza trágica que ele sabe exprimir justifica o tom que utiliza.
Paradoxalmente, voltar-se-á em seguida para o divertimento, com O Cavaleiro
da Rosa, um dos seus maiores sucessos. A despeito de uma orquestração um
tanto empastada e de algumas graças por vezes pesadas, evoca, com espírito, a
frivolidade do século XVIII e a atmosfera das óperas de Mozart (género Bodas
de Fí-garó}. Ariana em Naxos, Arabella, Dia de Paz e, finalmente, o delicioso
Capriccio, escrito nos seus últimos anos, completam a sua produção lírica.
À pergunta que fizemos no princípio deste parágrafo é, sem dúvida, neces-
sário responder que Richard Strauss é um músico do século XX, não obstante
as suas raízes estarem solidamente enterradas no século XIX. Porque a sua
liberdade, as suas idéias e as suas fórmulas novas (para Ariana, em 1912, re-
nuncia à grande orquestra e utiliza um pequeno conjunto) fazem dele um ho-
mem que bem mais pertence ao futuro do que ao passado. O público culto dos
países latinos votou-o durante largo tempo a certo desprezo, em razão de um
mal-entendido originado pelas suas próprias qualidades: o seu poder, a sua fa-
cúndia, e a sua boa saúde ofuscavam a sensibilidade de uma época que apreci-
ava sobretudo a procura requintada.
X - PANORAMA CONTEMPORÂNEO

Entre 1900 e 1940 a Europa é palco de uma intensa actividade musical. Já


vimos que Paris é o principal centro para o qual convergirão todos os artistas
da vanguarda: o espanhol Manuel de Falia, o português Luís de Freitas Branco,
o italiano Alfredo Casella ali vão aperfeiçoar-se e estabelecer laços de amizade
com os músicos da sua geração. Dos Estados Unidos vêm Gershwin, que estu-
da a obra de Debussy, Duke Ellington, que penetra a alquimia harmónica e
orquestral de Ravel, Copland e outros. Romenos (Enesco), polacos (Szyma-
nowski) vêm por seu turno fundir-se neste crisol de onde sai a música do sé-
culo XX, assim como as idéias que regem o mundo. Neste meio efervescente
encontram-se pintores, poetas, romancistas, músicos, bailarinos, gente de tea-
tro; e mesmo aqueles que não vêm a Paris para seguir os ensinamentos de um
mestre, escolhem, apesar disso, essa cidade para manifestar o seu talento, pois
sabem que se ali alcançarem o sucesso, este repercutir-se-á instantaneamente
por todo o mundo.
Como já vimos, diversos acontecimentos provocaram uma verdadeira
aceleração da evolução musical entre 1900 e 1914. A este impulso de forças
novas acrescentar-se-á, em 1909, a revelação dos Bailados Russos animados
por Sergei Diaghilev, que imprimirão um cunho indelével ao princípio do
século. Não só estes bailados transformam a técnica da dança, como ainda
recorrem a cenários e guarda-roupas surpreendentes, desenhados por artistas
originais. Nunca se tinha visto algo semelhante em matéria de fantasia e de
vitalidade dos movimentos, de audácia de cores, de encanto simultaneamente
poético e realista dos temas populares, de invenção coreográfica. Os nomes de
Bakst, Fokine, Benois, Nijinski, Karsavina e muitos outros figuram desde então
no palmares do “novo bailado”; a sua acção vigorosa permitiu que a arte
coreográfica se orientasse para uma série de experiências que estão na origem
do bailado actual.
Com venturas diversas, os Bailados Russos viveram até 1929, ano em que
morreu Diaghilev. Este empreendera uma obra importante, reintroduzindo em
cena os bailados masculinos, praticamente ignorados desde o reinado das baila-
rinas estrelas, e encomendando as músicas aos mais audaciosos compositores,
abolindo assim a tradição de que a música de bailado seria fornecida por com-
positores de segunda ordem e colocada em segundo plano. Diaghilev combina-
ra a dança, a pantomima, por vezes o canto, associando-lhes estreitamente os
trajos, cenários e música, de maneira a formar o “drama coreográfico”, alar-
gando consideràvelmente a fórmula do bailado clássico—que até então era
apenas um divertimento, uma geometria perfeita e definitivamente fixada, uma
arte de graça formal e de meios limitados, onde a expressão não podia ter lugar.
Não obstante este homem extraordinariamente intuitivo ter tido a mão feliz
na escolha dos seus colaboradores, este fato não chega para explicar uma série
de inovações e de êxitos tão constantes. É, portanto, forçoso admitir que Dia-
ghilev, apesar de não ser ele próprio músico ou coreógrafo, foi contudo o gran-
de inspirador do bailado moderno.

1918-1940

Após 1918, a alegria da vitória e o pronto ressurgimento econômico, os be-


los anos de expansão e de descuido, tudo favoreceu em França o regresso do
movimento anterior a 1914. Se por um lado se chorava os grandes desapareci-
dos (Péguy, Granados, Debussy, Apollinaire, Déodat de Severac), vítimas dire-
tas ou indiretas da guerra, por outro retomava-se o fio onde o destino fizera um
corte, e Paris voltava a ser o fulcro de uma vida simultaneamente séria e frívo-
la, mas sempre intensa.
Um certo gosto do desafio, de desforra sobre os anos negros, dá o tom:
grandes costureiros e magnates da indústria automóvel disputam a celebridade
aos grandes pintores. De um dia para o outro lançam em moda uma estância
termal. Certos romances bastante livres como La Garçonne, de Victor Margue-
rite, causam emoção; a emancipação da mulher é o assunto predileto dos grace-
jos, apesar de ainda só se manifestar por atividades menores. Deseja-se uma
arte provocante e a principal preocupação é o sucesso; a vida artística desenro-
la-se numa sucessão de escândalos, polêmica, posições irredutíveis, querelas de
clãs. Importado dos Estados Unidos, surge o jazz; logo mal compreendido em
França, torna-se numa música vulgar, ruidosa, enquanto alguns conhecedores
defendem as virtudes do blue e do spiritual. A contenda termina com vantagem
para o jazz autêntico e o jazz-band dos clubes noturnos, completamente desna-
turado, desaparecerá por volta de 1930.
Apollinaire abriu novos caminhos à poesia. Jean Cocteau, misto indissolúvel
de frivolidade e de profundeza, inteligência excepcional, genial faz-tudo que
possui a extraordinária faculdade de ter o gosto seguro e as ideias justas,
profetiza sempre com conhecimento de causa; o seu panfleto Lê Coq et
l'Arlequin aponta as necessidades da idade nova. Animador infatigável, ele
sabe melhor do que ninguém suscitar o movimento onde este é necessário.
Patrocinando um grupo de compositores que para ele representam os indispen-
sáveis valores novos, ocupa-se da difusão da sua popularidade: o “Grupo dos
Seis” marcará na música francesa, tanto pela qualidade de cada um dos seus
membros, como pela influência que exercerá através do mundo. É este grupo
que, após Fauré, Debussy, Ravel, confirma e impõe a supremacia francesa. Dos
seis compositores que se reuniram sem abdicar da sua personalidade perante
qualquer santo e senha, dois dedicaram-se a uma arte da grandeza: Arthur
Honeiger (1892-1955) e Darius Milhaud (nascido em 1892 dois representam a
elegância e o sorriso: Francis Poi, Iene (1899-1963) e Georges Auric (nascido
em 1899 os dois outros, menos conhecidos, são Louis Durey, Germaine
Tailleferre, compositora de grande sedução.
Arthur Honegger, nascido no Havre, mas de pai suíços, é um mestre do esti-
lo monumental. As sud mais poderosas criações são as oratórias, Joana d'Ai-na
Fogueira, O Rei David, A Dança dos Mortos, e as grandes sinfonias: foi neste
gênero que encontrou , sua mais elevada e convincente inspiração. Honeiger, é
essencialmente um lírico, que utiliza indiferentemente este ou aquele processo
de escrita contanto que sirva a sua intenção, uma intenção que ele próprio pre-
cisou ao declarar que a sua ambição era interessar o entendido e comover o
profano. A sua personalidade exprime-se numa linguagem de grandeza (é um
dos poucos músicos desta época capaz de tal), onde se reconhece a tradição de
Bach. A despeito de não ter promovido qualquer revolução, Honneger impôs
contudo uma arte pessoal, muitas vezes impregnada de comovente humanida-
de.
A seu lado, Darius Milhaud, músico-rio, natureza generosa, escreve as suas
obras mais significativas na juventude: Lês Choéphores, os Cantos Hebraicos.
Não obstante ter frequentemente procurado a inspiração nos grandes temas,
bíblicos ou outros, existe nele uma fonte de poesia fresca que se exprime na
Suite Francesa, para orquestra, no seu Scaramouche para de pianos, que se
tornou numa das peças prediletas do repertório, ou nas Saudades do Brasil.
Dedicado a vastas composições, que nem sempre evitam um certo peso con-
fuso e prolixo, Darius Milhaud, cujo gênio inexaurível se manifesta cheio de
originalidade na maior parte das suas obras, talvez não se tenha suficientemen-
te dominado, mas nada tem de um estilista: por outro lado, a sua veia poética,
popular e sorridente, parece tão sedutora que não podemos deixar de ponderar
que motivo o terá impelido a dar tão frequentemente a preferência a frescos
gigantescos, que ele gosta mais de esboçar do que cinzelar, e onde o risco é
evidente...
Milhaud trabalhou a politonalidade com grande mestria e enriqueceu a lin-
guagem harmônica habitual. A sua ciência excepcional é surpreendente; com o
mesmo à-vontade, emprega os coros falados, os efeitos de percussão, os am-
plos movimentos de massas. É capaz de descrever uma fuga enquanto prosse-
gue uma conversa e a sua virtuosidade levou-o, por exemplo, a escrever um
quarteto duplo de cordas que tanto pode ser tocado pelos dois quartetos separa-
damente como reunidos, visto que a obra foi concebida para permanecer com-
pleta em qualquer dos casos.
François Poulenc (1899-1963) introduz na música francesa a euforia, o en-
canto, o agradável. A sua obra é clara e simples; situa-se decididamente à mar-
gem das buscas da sua época, à margem do modernismo e à margem também
de qualquer escolástica. É uma música feliz, livre, que frequentemente utiliza
feições do século XVIII. Poulenc ri-se do que alguns chamam a evolução ine-
lutável da música, com um arrojo que prova a sua mestria. Inimigo dos preten-
siosos e dos pedantes, inimigo dos sistemas e das declarações pseudofilosófi-
cas, Poulenc escreve a música que lhe agrada; e esta possui um perfume de
flores campestres em certas obras, enquanto outras manifestam um tom de cha-
laça bem parisiense, ironia em abundância e uma impertinência tranquila.
Mas a par do Poulenc do Concerto Campestre, das Serpentes, das Mamelles
de Tirésias, revela-se progressivamente um outro Poulenc, igualmente autên-
tico, o músico profundo, religioso, impregnado de .fervor, que escreveu o
Diálogo das Carmelitas, o Stabat Mater, a Missa, os Quatro Motetos para Um
Tempo de Penitência, etc. Poulenc foi frequentemente considerado como um
fútil, mas trata-se, na realidade, de um dos clássicos da escola francesa, com
Ravcl, Roussel e Honegger. Se emprega a elegância das fórmulas arcaicas,
actualiza-as por meio de uma naturalidade e simplicidade inimitáveis; uma
deliciosa emoção poética anima as suas melodias, enquanto as suas obras
instrumentais são efervescentes de alegria.
Poulenc é, com Auric, o representante dessa “música do prazer”, que mar-
cou a França entre 1918 e 1939; nesse domínio teve numerosos discípulos em
todo o mundo, quer direta, quer indiretamente. Os mais seguros continuadores
desta tradição, que faz apelo à subtileza e ao gosto francês, são presentemente
um Jean Françaix ou um Jean-Michel Damase.
No seio da rica floração de talentos de que Paris é o cenário, coexistem Pi-
casso, Van Dongen, Foujita, Braque, Modigliani, Mondrian, Chagall, Dali, o
fauvismo, o cubismo, a pintura abstracta, o movimento futurista, nascido na
Itália com Marinetti... Na literatura: André Breton, Eluard, Aragon, Claudel e
Gide, Colette, Mauriac e Bernanos, Giono e Montherlant, os moralistas, os
panteístas, os epicuristas, os ascetas. O dadaísmo, o surrealismo, todas as cor-
rentes manifestam extraordinária atividade... a menos que se trate da busca
estonteante de um prazer sempre renovado e do receio que ele se esgote.
Mas, por volta de 1930, já surgem as primeiras nuvens num céu sereno. O
krach da bolsa de Nova Iorque repercute-se como um verdadeiro trovão através
da Europa. A súbita descida de valores provoca a ruína de particulares e a que-
da de organismos importantes. Começam anos difíceis; simultaneamente, os
acontecimentos políticos precisam-se de forma inquietante: na Alemanha, Hi-
tler reanima a mística nacionalista, impõe-se pela violência e pelo terror e as-
sume o poder em 1933. A partir desse momento dedica-se a preparar a guerra.
A Europa vive num estado febril de indecisão, dominada pelo receio de não
poder enfrentar a ameaça claramente exprimida. Desde então a arte, e especi-
almente a música, prossegue no seu caminho de certa forma impelida pelo ba-
lanço adquirido: na realidade, assiste-se à liquidação do período 1919-1929.
Na Itália, o fascismo impede a floração livre da criação musical, mas músi-
cos como Pizzetti (1880), Respighi (1879-1936), Casella (1883-1947) e Giarí
Francesco Malipiero (1882) representam uma renascença da música italiana
pelo abandono do gênero lírico e a afirmação de uma arte sinfônica ou instru-
mental vigorosa.
Na Alemanha, o regime hitleriano condena não só os artistas israelitas, mas
também toda a obra “decadente”, isto é, moderna. Entre 1919 e 1933, a Alema-
nha conheceu uma situação completamente diferente da França: a derrota, a
miséria, a amargura, marcaram a criação artística: estes fatores determinaram o
grande estilo expressionista alemão, que renova o cinema com filmes como A
Rua sem Alegria, documento realístico e pungente, onde o mundo descobre
Greta Garbo, O Gabinete do Doutor Caligari, obra de alucinação mórbida,
Nosferatu, de Murnau, e tantas outras. Os desenhos de Grosz, o teatro de Bre-
cht, a música de Kurt Weill situam-se neste universo onde se combinam o ci-
nismo e a moral, a amarga ironia, o desencanto, a revolta, a fascinação da feal-
dade e o gosto da provocação.
Kurt Weill (1900-1950), contemporâneo de Carl Orff e de Paul Hindemi-
th, simboliza o espírito da sua geração. A sua música, que partira do classicis-
mo, adota simultaneamente acentos canalhas e um tom sofisticado; imita a ro-
manza vulgar e apresenta-se — eruditamente—crua e descomposta. Demasiado
intelectual para o clube noturno e demasiado “povo” para a ópera, ela escapa a
qualquer destes dois géneros, mas traduz uma realidade humana. Obras como
Dreigroschenoper (“A Ópera dos Três Tostões”), Aufstieg und Fali der
Stadt Mahagonny (“Grandeza e Decadência da Cidade de Mahagonny”) e Os
Sete Pecados Capitais são melodramas voluntariamente sórdidos, testemunhas
de uma época e de uma geração. O estilo de Kurt Weill influenciou, con-
tudo, de forma duradoura o clube noturno e a canção, tanto na Europa, como
nos Estados Unidos.
A par desta arte votada ao expressionismo e tasmagoria, a tradição clássica
sobrevive na Alemanha com um Hindemith, um Boris Blacher, etc. E veremos
que, após 1945, ela reencontra os seus mestres em todos os países.
Mas para completar este quadro, é necessário salientar o papel do jazz, a que
apenas nos referimos de passagem anteriormente. O aparecimento do jazz na
Europa depois de 1918 é um acontecimento importante, que vai influenciar a
música e o público. As suas origens são conhecidas e não nos deteremos sobre
este ponto, tanto mais que um resumo da sua história sairia do âmbito do nosso
assunto. Os cantos religiosos e profanos (negro spirituals, gospel songs, por
um lado, plantation songs, blues, por outro) que os negros dos Estados Unidos
cantam desde sempre introduzem-se no mundo branco. Acrescentam-se-lhe as
danças (rag-time). Um sistema harmônico sumário assegura a coerência destes
cantos e danças, cuja característica essencial é o fato de se desenvolverem so-
bre uma trama rítmica fixa... Fixa até à obsessão, ao frenesi. Reencontram-se
neles a virtude encantatória da música primitiva, um ritmo e melodias simples
e violentas.
O jazz é uma música de instinto e a sua força provém desta originalidade,
que sempre o distinguirá da música “séria” ou erudita. Todos os aperfeiçoa-
mentos que sofreu foram estabelecidos sobre a mesma base imutável; por ou-
tras palavras, as melodias, harmonias e ritmos do jazz, não obstante terem evo-
lucionado muito, nunca mudaram de natureza. O jazz dirige-se aos sentidos e
perde a sua alma e a sua substância ao tornar-se numa música intelectual. Além
disso, o jazz é uma música de solistas e parcialmente de improvisação (hot),
renovando-se sempre a partir de um determinado motivo. É por isso que a qua-
lidade de inspiração do solista é muito mais determinante no jazz do que na
música clássica. A esta perpétua criação opõe-se o jazz estabelecido pela escri-
ta (straight), que, se, por um lado, tem o merecimento de conservar certas idéi-
as felizes, por outro renuncia à liberdade fundamental do gênero.
Arte popular na origem, espontâneo, rico de invenção e de expressão, o jazz
oferece ao público o exemplo de uma música que, por meio de uma franqueza
brutal e de uma sensualidade generosa, se opõe essencialmente às alquimias
combinadas da arte erudita. De entre as personalidades marcantes que confe-
riram ao jazz a sua fisionomia antes de 1940, pode citar-se Louis Armstrong,
Duke Ellington, Count Basie, Fletcher Henderson, Earl Hines, Sidney Bechet,
etc. Desde o período 1945-50 estilos novos tentaram intelectualizar o jazz: o
be-bop, em seguida Thelonius Monk, Charlie Parker e a sua escola e, mais re-
centemente, John Coltrane introduziram-lhe harmonias e ritmos mais requinta-
dos. O jazz cool, Miles Da-vids, Stan Getz, o Modern Jazz Quartet transpõem a
fronteira e aproximam-se por vezes da música clássica; do que resulta um estilo
sedutor, mas frequentemente híbrido, que talvez constitua um perigo para a
realidade profunda do jazz. Pois é certo que o jazz elaborado, cheio de distin-
ção, envernizado com reminiscências de Strawinsky, de Ravel ou de Bach,
corre o risco de se tornar, por sua vez, numa arte de estetas, despojado já das
suas amarras com as poderosas fontes de inspiração que condicionaram a sua
existência.
É incontestável que o jazz impregnou todo o Ocidente e significativo que os
maiores músicos contemporâneos se tenham interessado por ele, não só nos Estados
Unidos, evidentemente, como também na Europa. Esta influência provém em
parte de um elemento que, de forma flagrante, liga o jazz à sociedade actual: a
sua rítmica. Os “três tempos” cheios de languidez e elegância indolente da
valsa vienense tinham caracterizado mais de meio século, desde os anos 1870
até pouco depois de 1918—, e, como música, a valsa não está completamente
abandonada. Com a irrupção do jazz surge o ritmo binário (dois ou quatro
tempos), que vai invadir a vida quotidiana, os hábitos, a sensibilidade dos
homens do século XX. Pela sua energia e dinamismo comunicativo, os “quatro
tempos” são o reflexo dos ritmos actuais; exercem a sua soberania, mas. em
contrapartida, absorvem as “realidades rítmicas” da nossa época: motores,
válvulas, máquinas diversas cuja pulsação, bastante afastada da valsa, se revela
muito próxima do jazz.
Por outro lado o jazz contém um ritmo interno característico: a síncope. Esta
foi pressentida e praticada em todas as épocas, tanto na música popular, como
na música erudita, na qual introduziu um elemento de intensidade rítmica ou
expressiva pela deslocação dos acentos. (A síncope é uma nota que se . enuncia
num tempo fraco e se prolonga no tempo forte seguinte.) Mas o jazz vai dar-lhe
uma riqueza nova por meio de uma utilização bastante mais sistemática, que
confere uma acentuação original à melodia. Se, por um lado, o ritmo sincopado
confere à música de jazz a sua fisionomia particular, por outro ele vai também
influenciar em grande parte a música clássica do século XX; numerosos com-
positores introduzi-lo-ão nas suas obras como elemento natural da linguagem
musical, ao qual a nossa época se habituou completamente.
A abundância das mais variadas músicas é, sem dúvida, o fator que melhor
caracteriza o período entre duas guerras. Se já se notava grande diversidade
antes de 1914, este período parece hoje de uma calma relativa comparado com
a agitação, a vitalidade, as disparidades, as manifestações simultâneas e con-
traditórias, numa palavra, a abundância de estilos que se oferecem à Europa
entre 1918 e 1940. Esta época, rica mas incontestavelmente confusa, evidencia
uma qualidade que nunca anteriormente se manifestara com tanto vigor: a li-
berdade de criação. Nunca a criação artística tinha sido tão prolífera, tão indi-
vidualizada, nunca os estilos musicais se haviam assim desenvolvido separa-
damente, sem preocupação do que pudesse acontecer nas vizinhanças. Cada
artista, cada obra, cada grupo representa um universo fechado, de que existem
inúmeros exemplos. Já não há qualquer estética de grupo ou de atelier segundo
o conceito antigo. As vozes dos grandes criadores são até, por vezes, asfixiadas
por outras que dispõem de meios de difusão mais vastos.
A publicidade representa doravante um papel importante na difusão das no-
tícias, o público não sabe que valor atribuir a este ou àquele músico antes de o
tempo ter feito a sua seleção, pois todos se encontram presentes na praça públi-
ca (simbolizada pela imprensa, a rádio, o disco, os festivais, etc.) revestidos de
uma aparência bastante semelhante. Como formar uma opinião?
Além disso, as escolas ou, se prefere, os estilos partilham entre si o mundo
musical: tonalidade, atonalidade ou politonalidade, neoclassicismo, impressio-
nismo sobrevivem na obra de alguns, outros seguem o dodecafonismo, enquan-
to nos jovens, sujeitos às diversas influências simultâneas, se manifestam as
deformações expressionistas da escola alemã, a secura intelectual dos discípu-
los de Strawinsky ou o estilo compósito. A música fragmenta-se de forma es-
pantosa e atinge um grau de dispersão que provavelmente nunca conhecera.
Mas este mundo, que se desenvolveu tão rapidamente, nem sequer terá tem-
po para responder às interrogações formuladas, pois no meio desta atividade
efervescente abriram-se as portas da guerra. A Europa mobiliza em 1939 e a
noite estende-se sobre a música.

Após 1945...

É sempre muito difícil compreender a história em curso: os seus movimen-


tos são imprevisíveis. Aos nossos olhos não existe qualquer “coerência históri-
ca” nos acontecimentos que se desenrolaram desde 1945, mas possivelmente os
nossos descendentes neles descobrirão uma continuidade lógica. Hoje apenas
podemos observar uma multiplicidade de tendências e, por vezes, fortes oposi-
ções entre estas.
A Segunda Guerra Mundial ia provocar o que pode chamar-se o fim de um
mundo. Os anos anteriores a 1940, a despeito das dificuldades cada vez mais
dramáticas que a Europa tinha de enfrentar no plano político, não tinham
contudo manifestado rompimento com os precedentes. Assistia-se ao termo de
um período que havia conhecido dias melhores e via-se avançar com
inquietação um futuro que não podia ser tranquilizador. Entre os que viveram
nessa época, muitos sentiram esta realidade histórica.
Em seguida, o mundo abalado nos seus alicerces pelas duras experiências de
1939 a 1945, não poderá reencontrar os quadros antigos. As idéias, a moral, 95
hábitos e certo conceito da vida mudaram. Forças econômicas e políticas, on-
tem ainda desconhecidas, procuram o seu equilíbrio. Países novos surgem, um
Terceiro Mundo afirma a sua existência, o bloco Ocidental e o bloco do Leste,
face a face, representam 'os dois grandes pólos de atração oriundos do conflito;
eles vão impor a muitas nações jovens, a milhões de seres humanos, uma esco-
lha crucial que determinará o seu futuro.
Teorias filosóficas reservadas antes da guerra a um punhado de iniciados
encontram subitamente a audiência inesperada da nova geração; Sartre contri-
bui para a difusão de uma filosofia do absurdo, amarga mas corajosa: o exis-
tencialismo. Paralelamente renascem os grandes impulsos de fé religiosa, pois
a época obriga a tais opções.
A primeira bomba atômica lançada sobre Hiroxima e,m 1945 encheu os
homens de uma estupefação aterrorizada. De 1945 a 1960, as conquistas da
aviação e os progressos industriais vão modificar profundamente a existência;
as primeiras ao tornar possíveis os intercâmbios ultra-rápidos entre todos os
pontos da Terra, os segundos ao revolucionar a vida privada, em primeiro lu-
gar, e, em seguida, certos dados da vida social. Nos países mais industrializa-
dos, nos Estados Unidos primeiramente e, logo depois, na Europa, surgirá, por
volta do fim dos anos 50, a “civilização da ociosidade”. Pela primeira vez na
história, o conforto, a cultura, as férias, todas essas “alegrias da vida” até então
reservadas a uma estreita camada de privilegiados, tornam-se para a maioria
um sonho talvez acessível, em breve acessível... A despeito do futuro inquie-
tante, sobre o qual paira a ameaça nuclear, o desejo geral de gozar plenamente
todas as vantagens oferecidas por uma sociedade ricamente apetrechada trans-
forma profundamente a mentalidade coletiva. Este mundo que surgiu da guerra
e em vinte anos passou do pavor físico e moral à mais extrema prosperidade,
em nada se assemelha já ao que, seis anos antes, se abismara no inferno desen-
cadeado por Hitler.
Numa tal situação, como poderia a concepção tradicional da música ter so-
brevivido sem modificação? Porque havia de ter sido ela a única a escapar às
interrogações fundamentais formuladas pela literatura, as artes, as ciências?
Porquê admirarmo-nos então, como sucede com alguns, do rumo, por vezes
inesperado, que a música seguiu desde 1945?
Do contexto do pós-guerra sairá uma geração de compositores mais graves
do que os seus predecessores e vamos ver como alguns deles, obedecendo aos
ditames da época, se consagram ao mais absoluto restabelecimento da lingua-
gem musical. Em França, os músicos da inquietação sucedem-se aos músicos
do prazer: entre outros, citaremos as personalidades de um Messiaen, de um
Jolivet, de um Leibowitz, de um Boulez.
Olivier Messiaen (nascido em 1908) assume posição no plano religioso, a-
firmando-se como um músico católico. No apocalipse da sua época, ele canta a
sua fé e a sua confiança. As suas composições associam de forma bastante cu-
riosa um sentimento místico franciscano, as investigações sonoras que prolon-
gam o impressionismo, o apelo à literatura e à filosofia que condicionam a sua
inspiração. As suas páginas para órgão são notáveis; as suas grandes obras, tais
como a Turangalila Symphonie ou as Pequenas Liturgias da Presença Divina,
evidenciam uma natureza profundamente lírica e efusiva; as suas investigações
mais recentes sobre o canto dos pássaros e a música hindu alimentam a sua arte
de uma estranheza e de um exotismo, cuja ingenuidade se impregna frequente-
mente de intensa poesia.
Para André Jolivet (nascido em 1905), que, por vêzes, se tem comparado a
Bartok, a música é, antes de mais, encantamento, expressão da religiosidade
dos agrupamentos humanos; o seu esforço tende a restituir-lhe o seu
significado antigo e elementar. Assim se explicam os títulos das suas obras:
Danças Rituais, Encantamentos, Cosmogonia. Noutras páginas, como o
Concerto para Piano ou o Concerto para Ondas Martenot, percebe-se a
mesma violência eruptiva, o mesmo sentido sacro da música. Apenas uma
coisa conta para este músico: atingir o essencial.
O mais harmonioso, o mais clássico e o mais estilizado desta geração é sem
dúvida Daniel Lesur; mas surgem outros jovens neoclássicos, tais como um
Henri Dutilleux. Por seu lado, René Leibowitz, que já vimos consagrado a re-
descobrir Schoenberg e a Sua Escola (título de uma obra que atraiu a atenção),
exerce durante alguns anos uma ação fecunda: inicia na música serial (despre-
zada desde há trinta anos em França, onde o público ainda não estava suficien-
temente amadurecido para a escutar) um grande grupo de músicos, de onde
sairá Pierre Boulez.
Este, considerado atualmente como o mais representativo criador das ten-
dências pós-seriais, conduzirá o dodecafonismo ao ponto de voltar a pôr em
discussão todos os elementos constitutivos da música: estrutura, técnica ins-
trumental, significado. Obras como Lê Marteau sans Maitre e Doubles são
provas evidentes deste fato. Na Alemanha, a actividade musical readquire um
impulso vigoroso; correspondendo a uma longa tradição, a música possui in-
térpretes admiráveis, orquestras de primeira ordem, teatros de ópera de um
nível elevado e compositores muito eruditos. Centros como Donaueschingên
ou Darmstadt reúnem anualmente, em sessões de estudo e de concerto, os mais
ativos representantes das investigações vanguardistas, enquanto o estúdio de
música eletrónica de Colônia permite a um Karlheinz Stockhausen, porta-
bandeira da nova geração, entregar-se a férteis experiências. Do lado clássico
situam-se Cari Orff, Werner Egk, Boris Blacher, Wolfang Fortner, Werner
Henze, aos quais pode ser acrescentado o austríaco Gottfried von Einem — se
contudo a palavra clássico pode doravante aplicar-se a músicos nitidamente
modernos, mas que não abordam o domínio da música eletrónica e as experi-
ências pós-seriais1. O espírito de investigação científica da Alemanha manifes-
ta-se nas duas tendências: a vanguarda, considerada com muita seriedade, pro-
gride resolutamente; os músicos mais conservadores nem por isso se refugiam
na rotina e exploram sistematicamente as possibilidades de escrita e de expres-
são da arte musical tradicional.
Pode situar-se à parte um Carl Orff (Munique, 1895), personalidade origi-
nal, elogiada por uns, desdenhada por outros: partidário de uma arte toda feita
de simplicidade e cujo contacto com o auditor não deve apresentar qualquer
problema, Orff exprime-se por meio de ritmos elementares e poderosamente
sugestivos, de melodias nítidas que se inscrevem nesses ritmos. Com obras
como a cantata Carmina Burana, a ópera burlesca Die Kluge (“A Matreira”), a
tragédia lírica Antígona, ele consegue impor uma linguagem dura, directa, po-
derosa, de uma simplificação extraordinária, cujo primitivismo se encontra de
resto sábia e subtilmente reconstituído.

1
É nesta acepção, e por oposição a estas concepções de música, que utilizaremos o termo
“clássico” nas páginas seguintes.
A ópera no século XX, Duas obras de Alban Berg:
Lulu, no Ópera de Viena, e Wozzeck, no T. R. Aí. de Bruxelas

Toscanini – Ópera de Viena


Na U. R. S. S., os músicos assumem um papel e uma situação fundamen-
talmente diferente dos seus colegas ocidentais. A sua função quase oficial, que
se integra nas engrenagens do sistema socialista, leva-os a considerar a sua
obra sob o ângulo da eficácia e como uma contribuição para a vida pública. O
resultado acusa incontestavelmente uma baixa de qualidade; mas personalida-
des como Dimitri Chostakovitch (1906), poderoso sinfonista, gênio de espanto-
sa profusão inventiva, ou Aram Katchaturian (1904), amável e sedutor folclo-
rista, conseguem criar uma obra pessoal dentro desses limites. A despeito de a
U. R. S. S. permanecer voluntariamente afastada das buscas estéticas ociden-
tais, não as ignora, e os músicos Soviéticos estão bem informados sobre a evo-
lução geral da sua arte. Salvo algumas excepções (aumentará o número destas?
Surgirão Evtuchenkos da música?), não parecem, contudo, tentados pelas expe-
riências que citamos.
Presentemente, compositores tais como Joaquin Turina, Oscar Espia, Joa-
quin Rodrigo, Rodolfo Halffter, afirmam-se como os melhores valores da Es-
panha; Rui Coelho, Ivo Cruz, Frederico de Freitas, Armando José Fernandes,
Lopes Graça, Croner de Vasconcelos, Artur Santos, Joly Braga Santos, Maria
de Lurdes Martins, Filipe de Sousa, Álvaro Cassuto, Vitorino de Almeida, Jor-
ge Peixinho os de Portugal; Lutoslawski, Pendeecki, Grazyna Bacewicz, Se-
rocki, Taduesz Baird os da Polónia. Na Itália, Luigi Dallapiccola, Bruno Ma-
derna, Luciano Berio, Riccardo Malipiero, Mário Peragallo, Luigi Nono, Gof-
fredo Petrassi representam as diversas tendências atuais.
Em Inglaterra, é Benjamin Britten (1913) que marca a renascença da ópera
nacional, com Peter Grimes, A Violação de Lucrécia, Billy Budd, The Turn of
the Screw, Albert Herring. A personalidade deste compositor domina a sua
geração; o seu estilo compósito permanece dentro da tradição, que renova pela
originalidade das ideias. A seu lado citar-se-ão Peter Racine Fricker, William
Walton, Michael Tippett, Lennox Berkeley, Allan Rawsthorne, Humphrey Se-
arle, etc.
Na Bélgica, a vida artística foi fertilizada entre 1900 e 1914 pela corajosa
acção do círculo da Liberte Esthétique, fundado por Octave Maus; depois de
1918, a influência de compositores vigorosos, tais como Paul Gilson (1865-
1945), ou subtis, como Joseph Jongen (1873-1951), muito contribuiu para tirar
a música belga do barranco do sub-wagnerianismo, abrindo-a às realidades da
época. Presentemente um Mareei Poot (1901) e um Jean Absil (1892) represen-
tam o classicismo moderno.
Nos Países Baixos, as influências francesa e germânica partilham entre si as
tendências dos compositores. Estes parecem beneficiar de um contacto bastante
direto com o público, que se interessa pela produção nacional; estabelece-se
um evidente diálogo entre o compositor e o auditor por meio dos concertos e
dos discos. É, sem dúvida, por este motivo que a produção permanece dentro
de limites que lhe permite ser ouvida sem obstáculos intransponíveis. Este é,
com efeito, um dos problemas mais obsidiantes da música contemporânea, do
qual compositores como Henk Badings, Herman Strategier, Marius Flothuis,
Hens Henkemans, Ton de Leeuw (este o mais avançado) parecem conscientes.
Outros compositores europeus são espontaneamente cosmopolitas, quer seja
pela inspiração e maneira de ser, quer seja porque as vicissitudes da existência
os obrigaram a viajar muito: o suíço Franck Martin (1892) escreve oratórias de
ampla inspiração, e a sua Petite Symphonie Concertante pode colocar-se entre
os clássicos da época. O checo Bohuslav Martinu (1890-1959) revela-se um
grande compositor original e robusto, como o prova o seu Concerto para Dois
Pianos.

A escola americana

Só o estudo da música americana necessitaria de uma obra distinta; nada


mais faremos do que esboçá-la em traços largos. E, em primeiro lugar, é preci-
so citar as mais fortes personalidades da América Latina: Heitor Villa-Lobos
(1887-1959), músico nacional do Brasil, Carlos Chavez (1899) e Sylvestre Re-
vueltas (1899-1950), no México, e Alberto Ginastera (1916), na Argentina;
estes figuram entre os primeiros que, fortemente inspirados pelas suas tradições
nacionais, de que exprimiram verdadeiramente o gênio, souberam criar obras
de caráter universal.
Nos Estados Unidos desenvolveu-se uma vida musical particularmente
intensa; existem ali numerosos compositores, uma boa parte dos quais fizeram
os seus estudos na Europa, frequentemente junto de personalidades eminentes.
E assim é impossível ignorar o papel de uma Nadia Boulanger, grande
professora, que recebeu em Paris inúmeros jovens músicos americanos, bem
como de Strawinsky, Milhaud, Schoenberg, Munch, Monteux, Bartok,
Koussevitzki, Serkin, etc, cuja acção pessoal ou o ensino, directa ou indirecta-
mente, impregnaram a geração actual. Sabe-se que Bartok, por exemplo, se
recusou a qualquer forma de ensino; contudo a sua influência não foi menos
profunda.
As instituições de ensino americanas empreenderam um esforço considerá-
vel de cultura popular: escolas, colégios e universidades possuem os seus co-
rais e as suas orquestras. Os concertos ao ar livre (populares) são muito fre-
quentes. Menos retraídos do que os Europeus por preocupações do gosto, me-
nos sensíveis às definições de “boa” ou “má” música, os Americanos conso-
mem-na sem dúvida mais como gulosos do que como gastrônomos, mas pode-
mos admirar e sentir estima pelo seu apetite. A par da cultura popular, existe
uma intelligentsia que permanece em contacto com os movimentos europeus e
que em determinados momentos recebe, enquanto noutros lança a novidade.
Os compositores americanos de maior evidência são Samuel Barber, Aaron
Copland, Lou Harrison, Lukas Foss, Paul Creston, Elliot Cárter, Léon Kirch-
ner, Roy Harris, Léonard Bernstein, Giancarlo Menotti. Estes representam, em
graus diversos, a realidade americana sob os seus múltiplos aspectos, do con-
servantismo à vanguarda, da música mais fácil à mais intelectual. Cite-se ainda
um pioneiro, que, no início do século, contribuiu para libertar a música do seu
país das imitações européias: Charles Ives (1874-1954), personagem singular,
profeta irônico e modesto à maneira de Erik Satie, ao qual se deve, sem dúvida,
a primeira música realmente americana no que respeita ao espírito e aos temas
tratados.
Um francês residente nos Estados Unidos, Edgard Varèse (1885), consa-
grou-se à música experimental, assim como Henry Cowell, que, já por volta
dos anos 30, explorava as sonoridades interiores do piano. Varèse procurou
durante toda a sua vida uma renovação da linguagem sonora e das estruturas de
composição musical. Utilizando primeiro os instrumentos tradicionais e, mais
tarde, a eletrônica, Varèse prosseguiu incessantemente no seu esforço e reuniu
à sua volta numerosos jovens compositores.
E, finalmente, existe o folclore, ou melhor, os folclores; pois os Estados U-
nidos possuem uma música étnica autóctone: a música índia, atualmente bas-
tante pobre, mas que alguns músicos estudam atentamente, e um folclore im-
portado, mas que se tornou específico, o folclore negro, isto é, o jazz. A música
negra inspirou incontestavelmente a escola americana, e, pondo de parte os
compositores clássicos que a utilizam, devemos citar os que encontraram um
estilo novo, efetuando a síntese das duas músicas. O pioneiro deste gênero foi
George Gershwin (1898-1937), ignorado pelos melômanos “entendidos” e i-
gualmente mal compreendido pelos puristas do jazz, que viram nele um repre-
sentante do pseudo-/azz comercial. Mas Gershwin foi de fato o primeiro a criar
uma arte tipicamente popular e nacional, tomando em consideração a realidade
branca e negra do seu país. As suas obras, apesar de ligadas à cultura ocidental,
são moldadas por cantares e ritmos negros (e não necessariamente pelo jazz).
Gershwin abriu um caminho no qual a morte prematura o impediu de alcançar
o seu valor total. O seu sucessor direto é presentemente Léonard Bernstein, que
escreve musical (comédias musicais), gênero essencialmente americano, sem
equivalente na cultura européia, no sentido em que, sendo uma combinação de
ópera, de opereta, de bailado e de comédia, pode abordar os assuntos mais im-
portantes da vida americana, numa linguagem musical familiar ao público. Para
Gershwin foi Porgy and Bess; para Bernstein, West Side Story.
Se fosse necessário caracterizar a vida musical nos Estados Unidos, poder-
se-ia dizer que os compositores desse país escrevem obras funcionais, isto é,
antes de mais, destinadas a ser representadas, ouvidas e apreciadas por um
vasto público; estas obras participam plenamente na cultura geral e são,
portanto, no seu conjunto, mais acessíveis ao auditor do que as suas
equivalentes na Europa. A este respeito, as ambições da música americana são
bastante semelhantes às da música soviética (e a aproximação é significativa);
a diferença reside no facto de que os músicos americanos são mais livres na sua
feição estética; o ambiente de competição que os anima, susceptível, na pior
das hipóteses, de assumir uma característica francamente comercial, permite-
lhes por isso mesmo uma actividade onde as finalidades são múltiplas, um
campo de acção e de meios ilimitado. Num terreno tão fértil, todas as
esperanças são permitidas.
Um mundo sonoro novo

Duas técnicas novas juntaram-se às buscas, embora férteis, da música clás-


sica: a música concreta e a música eletrónica. Em que consistem? A música
concreta é obtida por meio de gravação de ruídos e de sons, isto é, de objetos
sonoros concretos, em fita magnética. A manipulação dos sons assim gravados
(aceleração, retardação, retrogradação, sobreimpressão, repetição, deforma-
ções várias) e a sua montagem, de acordo com os princípios estruturais de uma
obra musical (frases, motivos, ritmos, períodos, graduações, etc.), liga-os à
música, e deste fato provém o seu nome. A partir destes materiais sonoros re-
novados, a música concreta deve as suas primeiras e mais significativas mani-
festações a Pierre Schaeffer, que foi o seu pioneiro, e a Pierre Henry, o primei-
ro técnico, o segundo artista. Uma produção marcante, a Sinfonia para Um Só
Homem, revelava ao público, em 1950, a música concreta: ao lado da equipa
Schaeffer-Henry, o coreógrafo Maurice Béjart impunha-lhe o seu estilo auda-
cioso. A associação desta música, que ainda não tinha sido ouvida, e de uma
coreografia simultaneamente realística e violentamente expressionista fez sen-
sação. O conjunto, contudo, não deixava de fazer lembrar certos grandes êxi-
tos de antes da guerra (Weill e Brecht, os Ballets Jooss).
Primeiro, por ordem cronológica, dos instrumentos eletrónicos, o Martenot
(do nome do seu inventor) nasceu em 1928. Apresentava-se praticamente como
um pequeno harmônio, cujas sonoridades, suaves ou muito poderosas, eram
produzidas por osciladores elétricos regulados pela utilização do teclado (cf. o
Concerto para Ondas Martenot e Orquestra, de André Jolivet). A música ele-
trônica tem origem nesses mesmos osciladores elétricos ou geradores, que pro-
duzem “sons puros” (sinusoidais). Estes sons, gravados em fita magnética, ser-
vem de “material sonoro” de base e são submetidos às mesmas manipulações
que os sons concretos. Eles abrem, portanto, um campo de experiências e de
possibilidades criadoras mais vasto do que o Martenot, que, de resto, nunca
teve essa ambição, mas apenas o merecimento de oferecer à música um novo
instrumento baseado na eletrônica. O timbre dos sons gravados da música ele-
trônica pode ser modificado pela adjunção de frequências ditas “harmônicas”,
que lhes variam consideràvelmente a cor, a intensidade, o caráter. Os cortes da
fita magnética podem multiplicar os efeitos ao infinito, de acordo com a imagi-
nação do compositor-técnico, nova personagem na evolução da música, a quem
incumbe “fazer uma obra” como .um pintor “faz um quadro”. Isto significa
que, uma vez concluída, a produção já não carece de intérpretes e reflete exa-
tamente a intenção do seu autor.
É necessário salientar que a eletrônica não é uma estética, mas uma técnica
que abriu um mundo sonoro, pertencendo aos compositores transformá-lo num
mundo musical. A descoberta da música concreta e electrónica introduziu, con-
tudo, um elemento novo, com o qual muitos compositores haviam sonhado
desde sempre, pois torna possível um fantástico sonoro que nenhum meio tra-
dicional tinha proporcionado. Nem Berlioz, nem Wagner, nem Gluck ou Lully
haviam conseguido ultrapassar os meios, de certo modo limitados, que lhes
ofereciam as leis da linguagem musical e os instrumentos de que dispunham.
Pode supor-se que eles teriam apressadamente utilizado a eletrônica, se a ciên-
cia do seu tempo tivesse colocado este meio à disposição dos seus gênios in-
ventivos.
No domínio da música concreta e electrónica, músicos como Henri Pous-
seur, muito ativo na Bélgica, Todd Dockstader, nos Estados Unidos, o grego
Yannis Xenakis e Karíheinz Stockhausen e Herbert Eimert, na Alemanha, figu-
ram entre os mais activos investigadores. Orphée, de Pierre Henry, Rimes pour
Diferentes Sources Sonores, de Pousseur, Gesang der Juglinge, de Stockhau-
sen, Omaggio a Emílio Vedova, de Nono, são, com a Sinfonia para Um Só
Homem, que se tornou o clássico do gênero, as produções mais interessantes de
uma linguagem que ainda se encontra, como é lógico, na fase experimental.

A nova música e o seu público

No que respeita às relações entre a música contemporânea e o público, tor-


na-se necessário salientar um fato: a evolução impõe a este último um esforço e
um ritmo que ele apenas aceita em maior ou menor grau, conforme os países,
as gerações e os níveis de formação. Muitos admitem, e por vezes até exigem,
esta evolução na maioria das disciplinas artísticas, mas têm tendência a recusá-
la logo que se trate de música. Tal atitude provém do fato de que, não obstante
a música ser um dos grandes alimentos do espírito, nem por isso deixa de ser
também “distração” no sentido mais elevado do termo. Por este motivo, no
domínio da música preferem-se os lugares familiares, as passagens conhecidas,
por outras palavras, as obras que prometem mais prazer do que surpresa e a
descontração em vez do esforço. Assim se explica a nossa resistência tão fre-
quente “perante determinadas sugestões dos músicos, quando estas têm por
alvo alterações da linguagem musical e apresentam obras onde tudo é um e-
nigma: estas terras virgens parecem-nos áridas. Neste domínio, atravessamos
hoje, incontestavelmente, um período de profundo mal-estar. Para esclarecer o
problema, poder-se-ia tentar definir as palavras-chave que regem a vanguarda
musical e reúnem a maioria dos compositores dedicados à procura experimen-
tal:
1. A noção tradicional do discurso musical já não existe. A música organi-
za-se em virtude de um espaço sonoro livre de qualquer convenção (desenvol-
vimento, repetições, etc.). Este espaço permite uma criação espontânea a
cada instante. Debussy deu o exemplo de uma “forma aberta”, permitindo que
um motivo engendre outro motivo, sem recorrer a um esquema pré-
estabelecido. No espaço sonoro os sons movem-se como as linhas, as cores ou
os volumes de uma tela abstrata.
2. O domínio sonoro amplificou-se consideràvelmente. Aos instrumen-
tos tradicionais da orquestra, cujas últimas possibilidades haviam sido explo-
radas, acrescentam-se agora as músicas concreta e eletrónica. O vocabulário
sonoro só por si oferece aos jovens compositores um campo de exploração fru-
tuoso.
3. A música já não se destina a servir de veículo a determinado estado de
alma e ainda menos a provocá-lo no auditor. Ela considera-se como um fenô-
meno específico, geometria ou arquitetura, como um objeto no espaço,
como um universo fechado com as suas perspectivas, os seus relevos, as suas
luzes e os seus contornos. Esta música “desapaixonada” libertou-se da dialé-
tica do sentimento. Os compositores evidenciam de resto a orientação essenci-
almente teórica das suas preocupações nos títulos das suas obras1: Estruturas,
Movimentos, Medida do tempo, etc.
4. Além disto, existe uma “música aleatória”, cuja execução é mais ou me-
nos livre dos constrangimentos de toda a música escrita: com esta finalidade,
vários instrumentos tocam a velocidades diferentes, de forma a obter um con-
junto diferente em cada execução; ou então escolhem uma ordem de desenvol-
vimento diversa para várias sequências em cada execução, e assim por diante.
O objetivo a atingir é sempre o de fugir à execução fixa — portanto hirta, defi-
nitiva.
É bem evidente que não se pode avaliar uma tela abstracta tentando
descobrir nela uma forma ao acaso das geometrias, que se oferecem à vista, um
pouco como um perfil humano, no desenho caprichoso de uma nuvem. Do
mesmo .modo é inútil —e bastante irritante — tentar “compreender” a música
nova utilizando os critérios da linguagem conhecida. Ela apenas poderá parecer
hedionda, disforme, ininteligível. O maior esforço consiste em compreender
um fenómeno novo, sem preconceitos nem recordações. Hoje chegámos
exactamente a este ponto.

Música e cultura de hoje

A nossa geração descobre um estranho paradoxo: o da cultura musical. É de


fato frequente ver um homem “culto” confessar sem qualquer constrangimento
a sua incultura no que respeita à música, enquanto não suportaria ser apanhado
em flagrante delito de ignorância em matéria de teatro, de pintura ou de litera-
tura. Imaginemos um intelectual obrigado a declarar que não conhece Molière
nem Vermeer de Delft, que ignora o nome de Montherlant ou o significado do
Teatro Livre de Antoine. Nem pensar nisso. Contudo, o mesmo homem confes-
sa espontaneamente que confunde determinado concerto de Mozart ou de Ba-
ch, que não entende a diferença entre o romantismo e o classicismo, etc. Não
parece haver neste fato um fenômeno perturbante? De fato, esta singularidade
evidencia-se sobretudo nos países latinos, onde a cultura se tornou pouco a
pouco só literária e a educação musical perdeu o seu lugar, contrariamente ao
que se praticava desde a Antiguidade e ainda se pratica na maioria dos países
anglo-saxões e germânicos2.
Assiste-se, de resto, a um considerável esforço desde há alguns anos para
preencher esta lacuna, para familiarizar o público com a música e reintroduzi-la
na cultura geral. Pois o paradoxo reside no fato de que a imensa difusão de que
presentemente desfruta a música, mercê dos novos meios postos à sua disposi-
ção, permite espalhá-la subitamente em todas as camadas sociais. Produz-se
uma formidável “impregnação” do público pela música. Mas surge imediata-
mente um problema: esta difusão, operando-se às cegas e inevitavelmente sem
método, uma vez que é efetuada pelas firmas de discos, a rádio, a televisão, o
cinema, que nunca tiveram por tarefa principal a classificação, ordenação e
divulgação da “boa” música, origina uma situação em que qualquer música
atinge, seja como for, qualquer público. Torna-se imperioso restabelecer a or-
dem neste imenso fluxo.
Esta é a tarefa que educadores e comentadores de rádio chamaram a si, pro-
curando definir o seu público e reuni-lo; é, sobretudo, a missão importante das
Juventudes Musicais, movimento internacional de educação musical por todos
os meios: concertos, prática coletiva, seminários, debates, reuniões internacio-
nais, etc. Levando a jovem geração a procurar não apenas uma distração amá-
vel e sem consequências, mas o esforço que produz a cultura verdadeira, as
Juventudes Musicais preparam continuamente um público de futuro, para quem
a música terá maior valor.
Tal tarefa é certamente a mais urgente numa sociedade diariamente sujeita a
sucessivas vagas de música e geralmente (com excepção de alguns melômanos
entendidos) pouco preparada para a receber, do que resulta evidentemente a
moda excessiva de músicas, populares ou nitidamente vulgares, propostas aos
ouvidos e aos espíritos sem defesa em doses cinquenta ou cem vezes superiores
ao que seria possível antes de 1940, o que lhes confere uma importância des-
medida na opinião pública.

2
Em França, e durante muitas gerações, a música talvez não tenha sido mais do que “a li-
ção de piano” das jovens de família burguesa, a tal ponto que ela finalmente se associou, na
nossa mentalidade coletiva, aos trabalhos de agulha.
Já foi utilizada uma comparação bastante interessante para ilustrar até que
ponto se modificou o aspecto da vida e o sentido de valores: um Liszt ou uma
Sarah Bernhardt, no apogeu da glória, exibiam-se perante quinhentas ou mil
pessoas num local determinado, de onde radiava a sua fama. Apenas alguns
privilegiados podiam vê-los ou ouvi-los. Hoje qualquer artista, mesmo
medíocre, adornado com o título de “vedeta”—quando não é de “ídolo” —
pode atingir de um só golpe, por meio de uma cadeia de televisão americana ou
pela Eurovisão, mais de cem milhões de espectadores. Sem contar os discos,
que levam a sua presença sonora a todos os lares. Como avaliar o peso da
responsabilidade deste poder considerável?
Poder-se-á comparar o lugar e a influência da música na sociedade atual
com o que foi no passado, há cem, mil ou três mil anos? Não, se se avaliar até
que ponto a música se transformou, tanto no que respeita à matéria, ao espírito,
como à função. Sim, contudo, se considerar que a música religiosa de hoje é a
mesma de há vinte séculos, que o seu poder não se alterou e que, a despeito dos
transtornos profundos, os homens pedem ainda e sempre à música profana que
lhes apresente, como uma magia, um mundo onde possam situar o ideal da sua
imaginação, dos seus sentimentos, de toda a sua vida invisível. Numa palavra,
pedem-lhe uma influência benéfica, e a música nunca falhou nesta missão de
representar o lugar sublime das aspirações humanas.
No termo deste livro devemos repetir, o que de resto terá, sem dúvida, sido
sugerido nas páginas anteriores, que a música não é e nunca foi uma criação
gratuita, arbitrária, sem raízes nem justificação profunda. Uma época produz
sempre uma música à sua imagem, uma música que, como todas as outras ar-
tes, é a sua emanação direta. Nas civilizações da Antiguidade e da Idade Mé-
dia, a música reflete uma poderosa realidade espiritual. Na Renascença espelha
uma maneira de viver, uma realidade social, de que ela constitui uma das face-
tas. No século XVIII, ela refletirá uma realidade filosófica que então enquadra
o universo do pensamento, onde toda a atividade se inscreve naturalmente; os
homens admitem essa ordem imaginada pelos seus filósofos e a música traduz
o seu equilíbrio tranquilizador, a sua claridade, os seus limites. No século XIX,
a música reflete — apaixonadamente— uma realidade humana, um mundo de
idéias tumultuosas, uma nova era, em resumo, os fenômenos mais evidentes do
momento.
Mas hoje, dir-se-á, será verdade que a música reflete mais uma vez o caráter
profundo da nossa sociedade? Sim, evidentemente, apesar de que nem sempre
assim pareça. Vamos tentar dar uma breve explicação: a evolução rápida da
música em todos os sentidos provocou uma desorientação legítima no público,
que gostaria de saber qual a música que representa realmente o século XX, qual
é “válida”. Das últimas investigações da eletrônica às obras dos mais rigorosos
pós-webernianos, passando pelos discípulos do formalismo proposto por Stra-
winsky ou de um romantismo segundo Prokofiev, existem vinte tipos de mú-
sica, que puxam cada um para seu lado e que, contudo, são todos bem da nossa
época. A resposta encontra-se precisamente nesta diversidade, pois ela acusa,
traduz, reflete muito fielmente a disparidade de um momento da história em
que as mais avançadas idéias se opõem — e por vezes de forma extraordinari-
amente violenta — a outras que se mostram tanto mais ferozmente conservado-
ras, quanto a vanguarda é agressiva. Hoje como nunca, o futuro coabita com o
passado: televisão, transmissão por satélites, aventuras de cosmonautas, aplica-
ções da energia nuclear, tudo coexiste com métodos antigos, maneiras de viver
que ainda não nos parecem ultrapassadas, organizações sociais quase feudais,
preconceitos tenazmente enraizados. A estreiteza de espírito não desarma pe-
rante o alargamento do universo e este conjunto prossegue numa incrível agita-
ção de elementos que formam finalmente o matizado da nossa segunda metade
do século XX.
Consequentemente, dir-se-á sem reservas que as experiências electrónicas
são o reflexo natural das realidades científicas do nosso tempo: o desejo de se
encontrar uma nova linguagem musical não é mais extraordinário do que o
facto de se ter achado uma nova técnica de arquitectura, que ergue imensos edi-
fícios sobre pilares, derrubando as noções tradicionais dos alicerces; não é mais
insólito ouvir os agrupamentos de sons não figurativos do que ver num receptor
de televisão uma cena que se desenrola — ou já se desenrolou—a centenas de
quilómetros. A nossa vida transforma-se como nunca havia acontecido. Ao
encararmos tal facto, temos de admitir, pelo menos em princípio, que essas
transformações possam repercutir-se em todos os domínios. A realidade das
buscas intelectuais inscreve-se na vanguarda; a realidade social inscreve-se por
exemplo em Porgy and Bess ou West Side Story, que, numa linguagem lírica,
traduzem as graves inquietações próprias ao homem de hoje em determinado
país. Quanto à arte não envolvida neste processo, puro esforço do espírito, ela é
uma realidade tão viva como a arte envolvida, mesmo quando esta última
suscita um choque de ideias, pois ataca um problema humano ao qual não se
pode fugir.
O enigma da nova música reside no fato de que ninguém sabe que gênero
“permanecerá” ou triunfará, ou até se a atual multiplicidade de linguagens e de
estilos se manterá. Haverá uma tendência mais forte? Será a música mais de-
sencarnada, mais árida, mais científica que ganhará a luta, o que provaria que
ela corresponde a uma necessidade duradoura? Ou será, pelo contrário, a mais
fácil, a mais direta, porque gostaríamos de mergulhar nela a fim de esque-
cermos uma vida difícil? Seja como for, ela não será amanhã mais gratuita ou
arbitrária do que foi ontem: ela corresponderá a uma necessidade que ainda não
podemos claramente discernir.
O enigma que o futuro da música hoje representa não impede que o canto
gregoriano, Monteverdi, Bach, Mozart, Chopin e tantos outros estejam inscri-
tos no nosso universo de cultura. Este fao prova apenas—coisa maravilhosa —
que a cultura musical encerra valores permanentes, inacessíveis aos golpes das
modas e dos séculos.
Se a época da desintegração do átomo presenciou a desintegração de tantos
valores reconhecidos e o desmoronar de tantos quadros tradicionais, se a arte
contemporânea repudia dez séculos de evolução para recomeçar a partir de
zero, torna-se desnecessário afirmar que precisaremos de paciência para aguar-
dar os primeiros resultados desta formidável aventura que se inicia sob os nos-
sos olhos.
E eis que, de novo, tudo recomeça na história.

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