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Capítulo I – Cinema – Arte
Todos os teóricos que chamei de “formativos” redivivo o fascínio pela nova tecnologia (mais que
acreditam que o cinema tem uma função simbólica similaridade com o contexto do final do século XIX-
quando apenas reproduz a realidade. Tem uma início do século XX, talvez se possa dizer de uma
função estética quando nos obriga a prestar potencialização dessa relação inaugurada naquele
atenção, de um modo especial (via suas técnicas momento) pela entrada do digital em todas as fases
não-naturais) naquela realidade. (Andrew 1989, 90)
de produção, de distribuição e de exibição; por outro,
destaca-se um cinema global que não rejeita o digital,
A tradição formativa ainda se aplica às produções mas aproveita dele para voltar a um estilo despojado,
cinematográficas que seguem uma estilística tida que busca despregar-se do que Cousins (2013,
como experimental, pois se alinha a uma concepção 283) chamaria de “esquema cinematográfico e suas
de uma função ou uma ontologia do cinema como camadas acumuladas”. Essa relação da tecnologia
meio expressivo da subjetividade do autor por meio com novos realismos no cinema é estabelecida,
das técnicas “não-naturais”. panoramicamente, por Cousins, quando reforça que,
Até final meados da década de 1940, pós-Segunda nos anos 1960, um grupo de cineastas, entre eles
Guerra Mundial, a teoria do cinema estava muito Pasolini, procurou retomar o estilo mais “simples e
relacionada às teorias da arte e, em grande parte por básico” do final dos anos 1910 e início dos anos 1920,
isso, era hegemônica a tradição formativa, ressalta e que, nos anos 1990, esse retorno ao esquema
Andrew (1989). No final da Segunda Guerra, num realista dos primeiros anos do cinema e a escolha
contexto europeu impactado diretamente pelos consciente por livrar-se do excesso da técnica sobre
efeitos da guerra, fortalece-se uma teoria realista que a matéria foi elaborada nos 10 mandamentos do
“coincide” com o ciclo de produção conhecido como Dogma 95 – sem esquecer-se do Documentarismo
neorrealismo italiano. Inglês, cujo auge, nos anos 1930, está associado
A tradição da teoria realista do cinema, inaugurada às câmeras portáteis e ao desenvolvimento e/ou
por Siegried Kracauer, tendo André Bazin como seu melhoria dos equipamentos de captação de áudio.
principal representante, defendia: Nesses momentos, são incorporadas à produção
fílmica tecnologias que tornam mais leve, aumentam
[...] uma teoria e uma tradição cinematográficas a mobilidade, facilitam o acesso à produção e a
baseadas na crença no poder das imagens própria operação do equipamento em situações de
mecanicamente registradas, e não no poder menor controle.
aprendido do controle artístico sobre tais imagens. Esse novo contexto, tecnológico e de organização
(Andrew 1989, 138).
do mundo numa sociedade globalizada, tem se
refletido numa nova abordagem do cinema não
Se, segundo Andrew, Eisenstein é o principal mais como resultado de culturas locais, regionais,
representante da tradição formativa (por conta do nacionais, mas reconhecendo-se um estilo que
volume e do alcance de seus escritos teóricos), Bazin transpassa essas fronteiras. Dessa forma, ainda
foi o primeiro teórico a se insurgir contra a tradição que aparentemente reforce, é uma abordagem
formativa e é considerado, ainda hoje, o nome mais que questiona a dicotomia “cinema hollywoodiano”
relevante da teoria realista do cinema. Curiosamente, versus “cinematografias nacionais”, pois se funda
ambos produziram grande quantidade de ensaios, nos numa estilística que não conhece fronteiras (Andrew,
quais elaboram suas concepções sobre o cinema, mas 2014; Dennison, 2013; Lopes, 2014). Embora seja
não produziram uma obra teórica sistemática. Além de um conceito ainda em construção, o world cinema
debruçar-se sobre os filmes do neorrealismo italiano, é uma concepção de cinema ou, como estabelece
Bazin confronta diretamente o fundamento do cinema Nagib (2014, 25) é “[...] um método, uma maneira
para Eisenstein (o específico fílmico), a montagem, de visualizar a história do cinema como ondas de
ressaltando as qualidades do plano sequência e de filmes e movimentos relevantes, que criam geografias
uma decupagem que não se sobrepusesse à matéria- flexíveis”, que rejeita fundamentalmente a dicotomia,
prima do cinema, o real. Mas não há nada de ingênuo pois não reconhece lugar especial para o cinema
em Bazin, como nos promotores dos filmes nos hollywoodiano seja histórica seja estilisticamente. Essa
primórdios; o teórico francês de forma alguma propõe é uma reformulação de abordagens usuais. Bordwell
que haveria uma captação do real em si, mas a criação (2013) chama essa tradição de História Básica, pela
de um efeito de real, respeitando-se, principalmente, qual se estabelece a narrativa e a estilística clássica,
o tempo concreto (daí os planos longos e planos- cristalizada em Hollywood, como canônica, e tudo o
sequência2 ocuparem papel primordial na estilística mais como “outra”, questionamento, desvio à regra.
realista no cinema) – em oposição ao tempo criado Embora não se restrinja ao estilo realista, esse estilo e
na articulação entre os planos. Dessa forma, as os diretores contemporâneos tributários dessa tradição
teorias realistas consideram a função do cinema o têm ganhado grande destaque. Curiosamente, também
desvelamento da realidade, mas isso se dá também se observa que há um cambiamento de técnicas e de
pela forma fílmica – daí Bordwell (2013) tratar também estilos na filmografia de alguns diretores ou em um
de um estilo cinematográfico realista (expressão mesmo filme – observe-se, por exemplo, as diferenças
mais precisa, talvez, que cinema realista), à forma entre os filmes mais realistas e o mais “pirotécnicos” da
cinematográfica de produzir o efeito de real. filmografia de Zhang Yimou; ou a variação de modos
No cinema contemporâneo, de um lado se vê narrativos no filme Tio Boonmee que pode recordar
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suas vidas passadas (Lung Boonmee Raluek Chat, concepção realista do cinema com estilo fílmico entre
Reino Unido/ Tailândia/ Alemanha/ França/ Espanha, realista e formalista (a forma fílmica adquire os modos
2010) do tailandês Apichatpong Weerasethakul. realistas, mas com uma função estética formalista).
Com o destaque internacional de cineastas como o Isso se dá por que Pasolini opera uma distinção entre
taiwanês Hou Hsiao-Hsien, que dialoga com o cinema Cinema e Filme (como seria a distinção entre Poesia
de Yasujiro Ozu (principal e explicitamente no filme e Poema, um sendo a encarnação do anterior); por
Cafe Lumière) e os iranianos, com destaque para que concebe a realidade como uma rede sígnica
Abbas Kiarostami, a tradição do estilo cinematográfico (portanto, longe da concepção ingênua de que há uma
realista volta à tona, bem como seus teóricos, realidade em si e que a câmera seria objetiva em seu
sobretudo Bazin. registro), portanto, a experiência de vida do indivíduo
Dessa forma, percebem-se ao longo da história do já é mediada, por princípio, por signos audiovisuais;
estilo cinematográfico oscilações entre as tradições por que aproxima a vida do indivíduo a um plano-
formativa e a realista, culminando num momento em sequência; por que entende que a significação só se
que se explicita o que, na verdade, na filmografia de dá pelo processo de montagem; mas que o filme deve
Eisenstein já se observa, que os filmes podem cambiar recorrer ao material cinematográfico (signos vivos)
entre modos narrativos (O encouraçado Potemkin, por para produzir sentido (ou seja, utiliza o estilo realista
exemplo, cambia entre o formalismo e a narrativa para produzir um efeito formalista).
clássica). Dessa forma, chegamos a Pasolini e nossa Murphy (2012) defende que os planos longos
proposta de retomar suas proposições teóricas e seriam a essência do primeiro cinema, o período de
estilísticas para pensar certa configuração de cinema inocência do cinema antes que o corte e as múltiplas
contemporâneo. possibilidades narrativas daí advindas transformassem
o cinema de atração em negócio. Gunning, citado por
O cinema, a realidade e o plano-sequência Murphy (2012), diria que Griffith seria um traidor, nessa
segundo Pier Paolo Pasolini perspectiva de pureza do cinema, uma vez que teria
sido quem empregou de forma consciente e artística
Mark Cousins (2013, 282) alinha Pasolini, “o mais as potencialidades inexploradas das invenções
arrebatador cineasta italiano”, a cineastas que, na dos primeiros anos, notadamente a montagem. Por
década de 1960, propuseram filmes “puros e simples” isso, Gunning (citado por Murphy 2012) sentencia
quanto à técnica fílmica, retornando à essência do que o desenvolvimento das técnicas de montagem
cinema, planos e cortes. empreendido por Griffith distanciou o cinema dos
filmes de um rolo só e dos planos longos, a essência
Bresson poderia ter escrito estas palavras: do cinema. Essa concepção pode nos levar também
frontalidade, simplicidade e rejeição da técnica. Ele, ao diálogo com Bazin, que lamenta a perda da
Pasolini, Mayles, Dreyer, Cassavetes, Warhol e, em contemplação com a introdução da montagem como
certa medida, Hitchcok sentiram a necessidade de
recurso produtor de sentido – induzindo o material a
remover do esquema cinematográfico suas camadas
dizer o que não está lá, mas apresenta-se o sentido
acumuladas. (Cousins, 2013, 283)
na montagem. “As soon as edit arrives the take is
A própria produção fílmica de Pasolini, assim, revela broken. The introduction of editing signals the end of
aspectos da sua concepção do cinema – podendo-se the innocence of cinema and arguably its essence –
entendê-la, aparentemente, como parte dos realismos the long take” (Murphy 2012)
da história do estilo no cinema. No entanto, segundo A observação histórica de Gunning, defendida por
Cousins (2013), o catolicismo e o marxismo de Murphy, ecoa a proposição de Pasolini de que o plano-
Pasolini, aos quais se agrega sua homossexualidade, sequência seria similar à vida e o corte, que transforma
concorrem para a composição de sua visão de cinema o cinema em filme, produziria a morte, estágio
e o afastam do “naturalismo do neorrealismo” italiano. necessário à produção do sentido. A montagem seria
Sua concepção da relação entre cinema e a realidade a “ferramenta de empoderamento da visão do diretor”
é bastante peculiar (e, acreditamos, em sintonia com (Murphy 2012, tradução nossa).
o realismo no cinema contemporâneo): “Ele [Pasolini] O recorte inicial dos textos de Pasolini, coligidos
queria filmar a estrutura da vida de seus personagens, no livro Empirismo Hereje, considerados centrais
não apenas sua superfície, e queira torna-la sagrada” e interrelacionados para o entendimento de sua
(Cousins 2013, 284). Pasolini propõe que o cinema concepção da realidade e, decorrentes daí, dos
seria a língua escrita da realidade, mas, ao mesmo conceitos de cinema, filme, plano-sequência abarca
tempo, estabelece uma tendência de configuração os seguintes textos: O “cinema de poesia”, A língua
neo-formalista, o cinema de poesia; assume que escrita da realidade, Observações sobre o plano
a experiência de mundo dos indivíduos é fundada, sequência, Os signos vivos e os poetas mortos, Res
principalmente, em signos audiovisuais associados a sunt nomina, O Código dos códigos e Teoria dos
outros sentidos (que, como vimos, no Ocidente, desde Raccords. Observando-se que não dão conta de
antes do cinema, têm função secundária, importante, todo o pensamento do autor, mas foram escolhidos
mas não primordial, na percepção/conhecimento do para uma abordagem inicial da pesquisa que se está
mundo), no entanto, por uma operação de morte, a vida desenvolvendo.
se torna significativa, assim como o cinema, quando Pasolini (1982) propõe que a realidade em si é
encarnado no filme. Ou seja, Pasolini conciliaria a cifrada. Apropriando-se com certa liberdade de alguns
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Escrevendo o tempo e a vida: O cavalo de muito curtos numa montagem mais frenética (que é
Turim inaugurada já no cinema moderno, dos anos 1970
em diante). Ao mesmo tempo, temos uma tendência
O filme O cavalo de Turim (The Turim Horse / A de utilização de planos mais longos em filmes de
torinói ló – Hungary – 2011), do diretor Béla Taar inicia- estilística realista, atualmente e ao longo da história
se com uma voice over (narrador) que conta, sobre do cinema. Mas tudo isso é uma generalização que
a tela preta, o episódio passado em Turim no dia 3 não pode ser tomada como verdades absolutas.
de agosto de 1889, quando o filósofo alemão Friedrich Embora até mesmo teóricos da tradição realista,
Nietzsche testemunha os maus-tratos sofridos por como Bazin (2014), apontem o caráter realista do
um cavalo. Nietzsche teria intervindo, enlaçando plano-sequência (pela preservação da integridade
fortemente o pescoço do cavalo dizendo, em seguida, dos acontecimentos no tempo e no espaço da
“Mãe, eu sou idiota” – começavam ali os “10 anos de existência – o que remete também a Pasolini), o
insanidade” sob os cuidados das mulheres de sua plano sequência em Festim diabólico de Hitchcock,
família. Ainda sobre a tela preta, o narrador sentencia a abertura do A marca da maldade de Orson Welles,
“Do cavalo... nada sabemos”. Daí em diante, mais recentemente o filme em plano-sequência A arca
acompanharemos um cavalo sendo conduzido por russa de Sokurov e Birdman de Iñarritu demonstram
um sujeito abrutalhado para sua casa, onde sua filha como mesmo a preservação aparente da integridade
submissa, resignada e de gestos leves, embora seja do acontecimento pode estar em função de uma
forte e dedique-se a trabalhos braçais, cuida do pai intencionalidade formal – como acreditamos que
(que tem uma deficiência em um dos braços), da casa ocorre também em O cavalo de Turim.
e do cavalo. A narrativa concentra-se em seis dias A quantidade e a duração mínima e máxima dos
desse pequeno agrupamento: um pai, uma filha, um planos do filme O cavalo de Turim fogem dos padrões
cavalo numa casa num cenário desolador, assolado de duração dos planos em filmes narrativos. Os planos
pelo vento, cujos sinais de vitalidade são um poço menores desse filme têm duração de mais de um minuto
d´água e uma árvore num morro. À primeira vista, – sendo que, numa decupagem de caráter clássico,
por sua desdramatização, parece ser uma narrativa para a apreensão da informação visual, os grandes
mergulhada no presente das personagens. Ou seja, planos gerais estáticos não demandariam mais que
não se estabelece, como no paradigma da narrativa 10 a 12 segundos. O movimento, logicamente, altera
clássica, um protagonista agente causal da história, essas durações médias. O movimento do quadro
cuja trama se que se estabelece em torno da cadeia (Bordwell e Thompson 2013) pode ter a função de
causal de acontecimentos que levam à resolução reenquadramento (quando algum elemento desloca-
de um conflito causado pelo desejo do personagem se alterando a composição do quadro e a câmera
em alcançar algo ou transpor um obstáculo. Tanto move-se para que esse elemento não saia do quadro
pai quanto filha são desprovidos de desejos (ao ou para que tenha melhor posicionamento, em termos
menos aparentes), não estão indo a lugar algum, de composição do quadro), pode ser um quadro
literal ou metaforicamente. móvel de seguimento (acompanha o deslocamento
Formalmente, temos muitos planos longos e/ou de algo, pessoa ou objeto) ou mesmo um movimento
planos-sequência: são cerca de trinta e sete planos independente das figuras (a câmera desloca-se para
com duração de um minuto e vinte segundos a sete revelar, destacar algo...). Como os planos longos e/ou
minutos e vinte segundos, num filme com duração total plano-sequências articulam movimentos constantes
de duas horas e vinte e oito minutos. das figuras e da câmera, “naturalmente” teriam uma
Como lembra Murphy (2012), os planos longos duração muito maior que o padrão do quadro estático.
eram padrão dos primeiros anos do cinema – nos A depender do estilo narrativo e, consequentemente,
primórdios, eram planos de duração de mais ou menos da encenação, os planos longos podem ser quase
um minuto com a câmera estática. Na primeira década despecebidos ou explicitam ainda mais a extensão
do século XX, essa duração dos planos se alterou temporal. Segundo Bordwell e Thompson (2014, 324),
com o emprego sistemático da decupagem das cenas “a percepção de duração e de ritmo é afetada pelo
(divisão em unidades de imagem menores, planos), quadro móvel”, assim como a percepção do espaço
reduz-se. Com a entrada do som, no entanto, final dos (dentro e fora de quadro). Lembrando que, segundo
anos 1920, o tempo dos planos voltou a se estender. Pasolini, no filme (como concretização do cinema)
Em números temos: no cinema silencioso, a média de o autor maniputa tempo e espaço, lançando mãos
duração dos planos era entre 5 e 7 segundos, tendo de signos análogos aos signos vivos, mas de forma
aumentado para 12 segundos com a introdução do som organizada. O plano-sequência técnico (no filme) é
sincrônico. Particularmente o estilo de filmagem nos diferente do plano-sequência infinito que é o cinema,
musicais, com múltiplas câmeras e, principalmente, mas numa estilística realista pode-se buscar a criação
com a câmera seguindo as personagens, contribuiu do efeito de real (da experiência e da vivência do real).
para o aumento da duração dos planos: além de A análise da forma fílmica toma como princípio
acompanhar as personagens, os planos mais abertos que seja entendida como um “sistema unificado de
que abrangiam o cenário e as coreografias exigiam elementos interdependentes relacionados”. “Se a
mais tempo para apreensão da informação visual. No forma no cinema é a inter-relação geral entre vários
cinema mais comercial contemporâneo, a tendência sistemas de elementos, podemos pressupor que cada
é de planos mais próximos, por isso podem ser elemento desempenhará alguns papéis no sistema
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todo” (Bordwell e Thompson 2014, 126-127). Dessa o artificialismo que a estabilidade absoluta da imagem
forma, buscamos a função do quadro móvel, da em situação adversa, como seria do deslocamento
encenação, da fotografia, do desenho de som, de uma em uma estrada “de terra”, denunciaria). Essa ligeira
instância narradora para tratar dessa fábula hipnótica, instabilidade ocorre em vários momentos – há muitos
circular que pode ser interpretada como a forma fílmica poucos planos realmente estáticos -, mesmo quando
do eterno retorno de Nietzsche, especificamente da dentro da casa, ou seja, num ambiente fechado e
concepção de que não há um sentido, uma direção com piso plano. Como vimos já na sequência inicial,
a se sequer para se chegar a algum lugar. Mesmo a câmera está sempre se movendo, mas também as
quando precisam sair para sobreviver, uma vez que personagens. Há muitas sequências, no entanto, que
o poço foi soterrado, pai, filha e cavalo retornam e a câmera muda de função e de estilo narrativo sem o
tentam retomar os rituais – mas, nesse momento, o corte. É constante o deslocamento da filha pelo espaço
peso da vida é maior e quedam-se no escuro, à mesa, da casa. A casa parece ser um grande salão onde tem
sem comer e sem conversar até que a escuridão (o um canto onde fica o que seria uma cozinha, um canto
fade) os encubra. de uma cama, um espaço onde fica a mesa, um canto
O narrador, cuja voz sobrepõe-se à tela preta de despejo de dejetos etc.. O movimento constante
no início da narrativa, aparece outras três vezes, e sem quebra constroi esse espaço íntegro, mesmo
fazendo comentários sobre a vida das personagens, não nos informando claramente seu desenho, pois
mas não narra ou descreve acontecimentos. Assim não há planos descritivos de espaço propriamente,
como os enquadramentos quando a câmera se a revelação do espaço depende do deslocamento
mantém estática em algum canto tendo o beiral das das personagens. O pai desloca-se menos, mas o
portas como moldura (deve-se ressaltar que, em deslocamento da filha em grande parte garante que
filmes, a câmera tem função de narrador), a voice as personagens se cruzem nesse espaço. O que
over denuncia o tempo passado, um acontecimento ocorre com frequência é que, quando as personagens
organizado presentificado pelo audiovisual. se cruzam, a câmera mude de ponto de vista ao
Os sons têm papel fundamental na criação deixar de seguir um e torna-se seguidora do outro –
de uma atmosfera dramática – em contraponto segundo Rosenfeld (2009), a personagem é o ponto
à desdramatização da narrativa. A trilha musical zero das coordenadas espácio-temporais. É uma
minimalista reforça a circularidade dos atos, dos forma de, no mesmo plano, coordenar dois pontos
gestos, das situações, causa um efeito hipnótico e de vista – dois fragmentos dos planos-sequência que
irreal (em contraponto à aparente crueza da realidade seriam a vida de cada um, conforme a concepção de
das personagens). A trilha musical cambia com os Pasolini (1982). Como esses ditos planos-sequência,
ruídos ambientes, particularmente o vento uivante correspondentes à vida de cada personagem, são
– usualmente, um dos dois está em primeiro plano, coordenados e não justapostos, não há esvaziamento
sobrepondo-se a tudo, apenas em poucos momentos do presente (como Pasolini alerta que ocorreia caso se
um está em primeiro plano e o outro em segundo plano. “juntasse” todos os pontos de vista simplesmente). A
Quase não há fala entre pai e filha. A fala maior é de um criação da percepção de que ambos, pai e filha, vivem
vizinho que discursa para ambos quando vai comprar mergulhados no presente, então, é reforçada pela
um pouco de aguardente – sua fala é maior que as forma como os planos longos e os planos-sequência
do narrador e tem a função de um comentarista sobre são coordenados entre pai e filha, bem como pelo
os sentidos filosóficos da história (é a explicitação de modo de narrativa menos esquematizado. A primeira
que o pensamento nietzschiniano está entranhado na fala entre eles por volta dos vinte minutos de filme,
narrativa, não se resume ao episódio inicial). quando ela informa que a comida está pronta. Já vimos
A sequência inicial, quando o homem açoita o ritual de ela vesti-lo, mas nem sabemos quem são
pesadametne o cavalo para que ele se desloque, já essas pessoas – ela o chama de papai, pela primeria
articula alguns desses elementos do sistema formal vez, quando o filme está chegando aos 29 minutos.
desse filme. A música pugente, hipnótica, perdura Por fim, os planos-sequência seriam, por si só,
até quase o final, abafando totalmente os ruídos- estratégias de manter a integridade temporal e
ambiente – que, ao final, vão entrando aos poucos, espaço em blocos da narrativa – blocos com certa
fazendo a narrativa sair do modo fabular no passado autonomia no que se refere a uma cadeia causal, que
para um registro realista no presente, sem o corte no não existe. Ou seja, conduziriam à matriz realista. No
plano. Imageticamente, o enquadramento varia, pois entanto, percebemos que o movimento da câmera
a câmera realiza um plano de seguimento do cavalo cambia entre ser uma subjetiva (o plano-sequência de
e do homem, mas não permanece estática ou numa cada uma das personagens) e objetiva (procura um
posição estável constante. Ela mantem uma altura ângulo para ter uma visão melhor do acontecimento,
do ângulo normal (no nível do olhar), parecendo, por imóvel, tendo um portal como moldura, demarcando a
isso, um observador, mas que tem mobilidade para narrativa passada); a trilha musical, no meio do plano,
circular em torno dessa ação sem sentido dramático sem o corte da imagem, substitui os ruídos-ambiente,
(no sentido de que não existe em função de lançar a fazendo também que o modo narrativo sai do registro
história em direção a uma resolução de um conflito). realista para o formal. Além disso, em termos de
Da frente do cavalo, a câmera se desloca para a “enredo”, os dias são todos iguais quanto ao ritual de
lateral, volta para frente, mas sempre com uma ligeira o pai acordar, ele tosse para ela perceber que ele está
instabilidade (que produz um efeito de real e minimiza pronto para ela o vestir, acabando de vesti-lo, ela serve
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a aguardente, vai recolher água, comem, vão cuidar um único plano). A abertura de A marca da maldade, de Orson
do cavalo etc. Os afazeres são sempre iguais a cada Welles, é um exemplar do plano-sequência a rigor: a bomba
é revelada, armada, vemos seu deslocamento, apresentam-se
dia, assim como os gestos. Alguns acontecimentos
as personagens principais, que podem ser atingidas, e o corte
interrompem isso: a chegada do vizinho, a passagem ocorre só quando a bomba explode (ainda que sonoramente,
dos ciganos, a descoberta do soterramento do poço, fora do quadro).
encenados de um único modo, pelos planos longos. O 3
Há muitas polêmicas em torno das propostas de Pasolini,
que pouco diz formalmente, pois, embora as ações e mas que não são tratadas nesse texto por serem objeto de
os gestos sejam os mesmos, e também a mobilidade fases posteriores do projeto em andamento.
do quadro contínuo (sem cortes), o modo como a
câmera desloca-se varia. Além disso, como os rituais
Referências bibliográficas
diários já são conhecidos do público, os cortes entre
Andrew, James Dudley. 1989. As principais teorias do
os planos longos mais no final da narrativa apresentam cinema: uma introdução. Tradução do inglês por Tereza
elipses mais notáveis que no início. Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
De forma geral, acreditamos que o plano- Andrew, James Dudley. 2014. Do cinema mundial ao
sequência em O cavalo de Turim seja essencial para cinema global. Tradução do inglês por André Antônio
a interpretação de seu significado, mas esse plano in: Lopes, Denilson; Lucas Murari (Curadores). Mostra
esencilamente móvel deve ser associado aos demais Cinema, Globalização e Multiculturalismo [catálogo]. Rio
elementos do sistema formal do filme, pois elementos de Janeiro: Caixa Cultural.
como o som (música e ruído do vento) e a própria Bazin, Andre. 2014. O que é o cinema? Tradução do
alteração no estilo e no padrão de movimento da francês por Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify.
câmera faz com que a narrativa do filme articule modos (coleção Cinema, Teatro e Modernidade)
Bordwell, David e Kristin Thompson. 2013. A arte do
do cinema realista e formal. O filme proporciona ao
cinema; uma introdução. Tradução do inglês por Roberta
seu espectador a experiência da vivência mergulhada Gregoli. Campinas, SP, Editora Unicamp, São Paulo,
no presente, mas não se furta de comentar e construir Editora USP.
discurso. O sistema formal está em função, então, Bordwell, David. 2013. Sobre a história do estilo
do filme subterrâneo, como diria Pasolini (1982), ou cinematográfico. Traduzido do inglês por Luís Carlos
seja, aquilo sobre o que o diretor quer dizer ainda que Borges. Campinas, SP, Editora Unicamp.
o faça pelas personagens e por suas subjetividades COUSINS, Mark. 2013. História do cinema; dos
transmudadas em escolhas estéticas. clássicos mudos ao cinema moderno. Tradução do inglês
por Cecília Carmargo Bartalotti. São Paulo: Martins Fontes.
Conclusão Lopes, Denilson. 2014. “Filmes em busca do mundo”
in: Lopes, Denilson; Lucas Murari (Curadores). Mostra
Cinema, Globalização e Multiculturalismo [catálogo]. Rio
Esse primeiro estudo de um filme contemporâneo
de Janeiro: Caixa Cultural.
a partir dos conceitos de Pasolini buscou apontar Murphy, Stephen. 2012. Keeping it long; why filmmakers
possibilidades de análise do plano-sequência use the long-take and its relevance to a modern cinema
realizado tecnicamente em relação à sua concepção audience? Workhouse Books. [Kindle Edition)
pasoliniana de que seria como a nossa experiência de Nagib, Lúcia. 2014 “Rumo a uma definição
vida. A análise do filme O cavalo de Turim, de Béla Taar positiva de World Cinema” in: Lopes, Denilson; Lucas
com fundamento nas proposições teóricas de Pasolini, Murari (Curadores). Mostra Cinema, Globalização e
enquadra-se numa discussão contemporânea de Multiculturalismo [catálogo]. Rio de Janeiro: Caixa Cultural.
novos realismos e das hibridizações dos estilos Pasolini, Pier Paolo. 1982. Empirismo hereje. Tradução
formais. A abordagem de Pasolini sobre o cinema, do italiano por Miguel Serras Pereira. Lisboa, Assírio &
estruturada nos anos 1960-1970, nos parece Alvim. (Cadernos Peninsulares, Ensaio 8)
Rancière, Jacques. 2013. Béla Tarr, o tempo depois.
responder bem a essa estilística presente em diretores
Tradução do francês por Luíss Lima. Lisboa, Orfeu Negro.
contemporâneos e também reflete uma conciliação Savernini, Erika. 2004. Índices de um cinema de poesia:
que seu pensamento promove entre duas tradições da Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieswloski.
teoria do cinema que reinaram até os anos 1960, a Belo Horizonte: Editora UFMG. (Coleção mídia@rte)
teoria formativa e a teoria realista. Savernini, Erika. Cinema utópico: a construção de
um novo homem e um novo mundo. 2011. Tese de
Notas finais Doutoramento, Universidade Federal de Minas Gerais.
http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/
1
Esse texto apresenta as discussões iniciais do handle/1843/JSSS-8LMGYA/tese_erika_savernini.
projeto “Cinema e a língua escrita da realidade: diálogos pdf?sequence=1 Acedido em 15 de maio de 2014.
contemporâneos com Pier Paolo Pasolini”, que tem auxílio Rosenfeld, Anatol. 2009. Literatura e personagem in:
financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Candido, Antonio et al. 11.ed. São Paulo: Perspectiva.
e Tecnológico (CNPq), no âmbito do edital de Apoio a Projetos
de Pesquisa - MCTI/CNPQ/Universal 14/2014. A análise tem
um caráter introdutório ao estudo que está sendo iniciado, por Referência filmográfica
isso configura-se como um mapeamento do sistema formal do
filme e de sua análise a partir da concepção de Pasolini. The Turim horse. 2011. De Béla Taar. USA: Cinema
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Há uma distinção que não é consensual entre planos Guild. Blu-ray.
longos (por que duração mais que os segundos que são
padrão) e os planos-sequência (que a rigor só ocorrem quando
uma ação dramática completa, princípio, meio e fim, ocorre em
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