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ASCESE E PRAZER: WEBER vs. SOMBART* GLAUCIA VILLAS BOAS Em um trecho da famosa biografia que escreve sobre 0 marido, Marianne Weber pondera que Max Weber havia atribuido a génese do ca- pitalismo a um deus absconditus, o deus impenetravel de Calvino, desco- nhecido ¢ misterioso que acima de tudo busca a prdpria gléria. Pergunta- se, entdo, se 0 marido nao teria sido ousado demais ao associar fato de tamanha importancia histérica com aquele “dem6nio”, que afinal deixara 0s homens inteiramente sozinhos, dependentes de si mesmos, cientes ape- nas do terrivel dever de organizar a vida da maneira mais ascética, eficiente ¢ afortunada possivel!. E verdade que Weber teve oportunidade de mudar seu ponto de vista, mas nao o fez. Em 1919, um ano antes de morrer, a0 ever os artigos sobre A ética protestante e 0 espirito do capitalismo, pu- blicados em 1904 e 1905, para que integrassem um dos volumes dos Escritos reunidos sobre Sociologia da Religido reafirmou sua hip6tesc sobre as origens da sociedade moderna de maneira ainda mais contundente, acrescentando novos pardgrafos ¢ notas ao manuscrito. Max Weber nao era o tinico a investigar a origem sociolégica dos valores que norteiam a conduta econémica do homem moderno; tam- pouco era tarefa unicamente sua buscar nas crengas religiosas a chave para © entendimento do mundo capitalista. Seu amigo Werner Sombart? pu- * Uma primeira versio deste trabalho foi apresentada no VIII Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado em agosto de 1997 em Brasilia "A biogralia de Max Weber publicada por Marianne Weber, em 1926, continua sendo uma fonte obrigatéria para os bidgrafos do autor, apesar das numerosas eriticas feitas 20 cardter devoto e sen- timental do livro. Ver, na primeira edigao mexicana (FCE, 1995: 328-338), as observagdes sobre A ftica protestante e o expirito do capitalism. 2 Werner Sombart (1863/1941) era fillio de um empresério industrial. Estudou Direito, Economia, Filosofia e Historia em Berlim e Roma. No inicio da carrera foi acusado de socialista, o que the dificul- tou o acesso a uma cétedra, conquistada somente ern 1918, na Universidade de Berlim, onde se cornu bas- tante conhecido. Mais tarde foi acusado de comparthar do idefrio do regime nazista,ficande & margem 40s sociSlogos que pouco a pouco foram sendo relidos e estudados a partir da década de SO, Parece haver poucos estudos recentes sobre a vida ¢ obra de Werner Sombart. Sobre o socilogo, ver artigo de seu Filho Nicolaus Sombart,“Wemer Sombart. Sozialisinus und soziale Bewegung im 19. Sahuhundert” (1987), 174 LUA NOVA N® 52.— 2001 blicara os dois primeiros volumes de O capitalismo moderno em 1902. Acreditava que 0 espirito do capitalismo era diferente do desejo comum de riqueza e nao podia ser explicado “por uma lei geral do desenvolvimento da economia” (Roth, 1978: LXXVID; além do que, investigava o impacto da religido no crescente afi de ganhar dinheiro, referindo-se ao papel dos judeus mas também dos calvinistas € quackers na construciio da economia moderna, Para Sombart, alids, a participagiio dos protestantes era “um fato Go conhecido que nao precisava de explicagdes detalhadas” (Lehmann, 1993: 197 e Roth,1978: LXXVII), Segundo Giinther Roth ¢ Hartmut Lehmann essa afirmacio de Sombart sobre os protestantes nfo passou despercebida a Max Weber. Insinuam que os ensaios originais sobre a influéncia da Reforma na consti- tuiggo do moderno ethos ocidental foram uma resposta as teses de Sombart. Em artigo dirigido a Felix Rachfahl,3 Weber reconhece sua divida para com © colega, e, apesar das divergéncias, sempre considerou “ engenhosos” os escritos de Sombart. Fato € que no infcio do século ambos lideraram os debates sobre 0 “capitalismo moderno” na Alemanha, retornando com tema & cena, de que estavam afastados: Weber, por forga da profunda depressiio que o retirara da vida intelectual durante quase cinco anos, & Sombart devido aos constrangimentos causados pela sua posigdo socialista. Curiosamente, as referéncias & relacdo entre Weber e Sombart nos textos estudados se limitam a explorar a polémica entre os dois sobre © papel dos judeus e/ou protestantes na constituigdo da sociedade moder- na. A contenda € reconstrufda a partir da andlise dos livros O capitalismo moderno (1902), O judeu e a vida econdmica (1911) ¢ O burgués. Contribuigdo a histéria moral e intelectual do homem econdmico moder- no (1913), de Werner Sombart, além das duas versdes de A ética protes- tante e o espirito do capitalismo, publicada, primeiro, no Archiv fiir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (1904/1905) depois em Escritos reunidos sobre a Sociologia da Religiao (1920). Entretanto, em 1913, Sombart também publica dois volumes com 0 titulo Estudos sobre a histéria do desenvolvimento do capitalismo 3 Ao responder a critica de Felix Rachfah ao seu conceito de ascese, Weber esclarece que sua for- mulagao do termo nada tem a ver com as de Troeltsch, pontm com os escritos de Sombart. Ver Max Weber, “Antikritisches zum ‘Geist des Kapitalismus™, reeditado por Winckelmann (1982). ASCESE E PRAZER: WEBER vs, SOMBART 175 modemo*, Em um deles discute a importancia da guerra no desenvolvi- mento do comércio e da produgao, no outro mostra como © consumo de luxo se associa ao surgimento do capitalismo. Nao se refere a Max Weber, embora, sobretudo no segundo estudo, suas hipsteses sobre o luxo contra- digam implicitamente as teses sébrias e puritanas deste socidlogo.S No pequeno livro, cujo titulo o autor gostaria que fosse Amor, luxo e capita- lismo (Sombart, 1979/8), desejo finalmente realizado pela edigdo alema de 1967, Sombart abandona os “deuses” supostamente responsdveis pela ansia de lucro e dinheiro, substituindo-os pela mulher cortesi, amante do mundo e do prazer. O “esquecimento” das hipéteses de Luxo e capitalismo na con- trovérsia Weber/Sombart chamou-me a atengao. As leituras comparadas de Luxo e capitalismo com A ética protestante terminaram por orientar meu interesse para quest6es mais instigantes que dizem respeito a um modo muito particular de fazer Sociologia, cujos pressupostos permitem com- preender regularidades do agir humano sem desprezar a pluralidade e diversidade do mundo. A perspectiva sociolégica, inscrita nas pesquisas dos dois socidlogos alemaes, é fiel a uma concepgiio de sociedade que pri- vilegia 0 sentido ¢ o significado da ago ¢ interagdo humana na construgio © manutengao de ordens sociais, (especificamente como foi construido & ordenado o capitalismo ocidental). Nao elege um nivel da realidade nem privilegia a idéia de um sistema em funcionamento, mas sobretudo leva em conta a experiéncia pratica de homens e mulheres, em miiltiplos planos da vida social, com 0 intuito de saber quais as crengas e valores que levam & ordenagio da vida conereta, previsivel e regular de diferentes (diferentissi- mos) atores sociais. Aparentemente de “fécil adogio", tal abordagem, entretanto, exige do estudioso uma opgio muito clara pelo conhecimento da vida social, em detrimento de possiveis juizos de valor sobre o objeto de andlise. Feita a escolha, ele nao tem mais raz6es para “classificar os deuses”, e menos ainda, 4 Lehmann (1993/202) menciona a completa fslta de “harmo: tos nos dois livros, mas dediea_poucas linhas a0 problema. 5 Neste artigo uso a tradugao espanhola do livro de Sombart, Lujey cupitalismo (1979) ” dos pontos de vista expos- 176 LUA NOVA N° 52 ~ 2001 motivos para tomar partido de um deles: resta-Ihe apenas aceité-los. Uma segunda exigéncia, a meu ver muito pouco compreendida em nossas dis- cuss6es mais freqilentes, € a atribuigdo de importancia central 4 experiéncia das agGes e relagdes humanas com sentido e significado, e consequentemente aos métodos que possibilitam a compreensio/explicativa da verdade de acontecimentos da vida social. Weber nao armadilha o conhecimento socio- Iogico em uma grande teoria explicativa, nem seus conceitos so construidos a partir da revelagdo de um segredo (a evolugiio do espirito ou das forgas produtivas) que se esconde por trés das aparéneias, mas de conceitos que buscam a tarefa nada fiicil de ordenar a vida como ela aparece. Meu objetivo é portanto trazer d discussiio questdes peculiares & Sociologia alema do infcio do século, que considero valiosas para recuperar os debates sobre o campo propriamente sociolégico, inconfundivel com o de outras disciplinas, num momento em que a identidade da Sociologia parece se dissipar em tantos meandros, quando sua perspectiva nao vista ora como autoritéria e determinista. Muito embora a Sociologia alema tenha sido rece- bida no Brasil e, ultimamente, ocupe espago cada vez mais importante nas dis- cusses, me parece que uma de suas vertentes mais caracterfsticas, percepti- vel em obras mais recentes como a Norbert Elias, pode figurar de maneira mais adequada nas polémicas sobre a disciplina, de tal modo que leve a ques- tionar a redugiio da tarefa do socilogo 2 eleigao de uma perspectiva micro ou macro, aposta no fragmento do estudo de caso ou na “grande” teoria, ou, ainda, a escolha crucial entre “estrutura’.e “ago”. A par disto, interessa-me repensar os caminhos da Sociologia no contexto brasileiro A luz de tradigdes. muito contrastantes, como creio serem a tradigao sociolégica brasileira ¢ a tradigo sociolégica alema do comego do século.$ Considero que 0 ceticismo, 0 valor atribuido ao con- flito de valores, e, sobretudo, uma espécie de “alheamento” que dignifica © conhecimento enquanto algo que pertence-ao mundo endo a pessoa (que © produziu), qualificam uma vertente do pensamento sociolégico alemao, que pode contribuir para pensar as crengas e certezas de nossa tradigao sociolégica ~ seniio a busca constante de “nossa” identidade que traduz 0 aprego pela comunhiio de ideais ¢ valores. © Acesse respeito ver meu artigo “A recepgio da sociotogia alema no Brasil, Notas para una discussao”, Série Estudos CiGncias Sociais, PPGAS/UFRI, 1995 ASCESE E PRAZER: WEBER vs, SOMBART 7 Por isso, no me interessam tanto os resultados a que chegaram Max Weber ¢ Werner Sombart nas suas pesquisas, quanto discutir como puderam chegar a resultados tao dispares, compartilhando de igual con- cepgdo sociolégica. De que maneira Max Weber pode afirmar que a ascese, a levar o homem A disciplina e A supressdo do gozo e dos prazeres trouxe- Ihe 0 desejo de adquirir cada vez mais dinheiro e porisso constituiu a fonte de uma mudanga radical na vida do homem? Enquanto, ao contratio. p: Werner Sombart era 0 prazer pelo luxo, 0 refinamento maximo dos senti dos — associado a uma nova concepgao de mulher — 0 mével principal de uma mudanga profunda na relagdo entre os sexos, cujo resultado se fez notar no aumento crescente das manufaturas € mercados locais? AD MAJOREM DEI GLORIAM No inicio de A ética protestante eo espirito do capitalismo, Max Weber define a tarefa de sua investigagao afirmando que “um filho” do moderno mundo cultural europeu, zo lidar com problemas.da histéria uni- versal, nao poderia deixar de perguntar pelo encadeamento de circunstan- cias que levaram ao surgimento de fendmenos culturais, impregnados de sentido ¢ validade universais ~ “ao menos assim gostamos de imaginar”? A qualidade universal dos fendmenos culturais, acentuada pelo autor, reforca, a meu ver com fina ironia, o questionamento de tal universalidade como valor cultural. Weber se surpreende portanto com o enigma de seu préprio mundo, ¢ convida o leitor & aventura de compreendé-lo, advertin- do, entretanto, que se trata de trabalho de especialista ¢ nao de simples observador ou pregador: “Quem quiser vis6es pode ir ao cinema” e “quem quiser um ‘sermiao’ que vd ao convento” (Weber, 1988: 14) Ha uina questo importante que se distingue aqui, logo de inf- cio: a postura weberiana em face do universalismo préprio da cultura oc dental. Quando se surpreende com os fendmenos do mundo, Weber estra- nha diretamente aqueles do mundo ao qual pertence. Nao recorre ao “exo- tismo” de uma cultura diferente, a chinesa ou egipcia, por exemplo, com Ter de Max Weber Gesammelte Aufsitze zur Religionssoziologie. Tibingen. J.C. Mohr (Paul Siebeck) 1920 (9.0 ed., 1988:1) 178 LUA NOVA N° 52. ~ 2001 valores e categorias préprios para entio “voltar” ao Ocidente e repensé-lo por novos prismas. Ao contrario, de partida, parece duvidar que o univer- salismo seja realmente intrinseco aos fenémenos do mundo ocidental. A idéia do universalismo seria, antes de tudo, um valor cultural importante e constitutivo da individualidade histérica como € o capitalismo moderno ocidental. Com este estatuto, Weber aceita a suposta qualidade universal dos fendmenos e se propde a usar categorias e instrumentos de trabalho cientificos que seu mundo cultural Ihe oferece. Ora, mais uma vez fica claro que a Sociologia weberiana se diferencia de outras concepges fundantes da disciplina, concepgées que se apresentam como tendo razo propria e, acreditando na evolugdo da vida coletiva, buscaram nao sé explicar a grande mudanga imposta pelo capi- talismo industrial como fazer sua critica, sem no entanto duvidarem do caréter essencial do universalismo, fosse ele cunhado pela doutrina judaico-cristao, pelo Iluminismo ou pela neutralidade da construgdo téeni- co-cientifica (Villas Béas, 1980:1441) A surpresa de Weber, entretanto, nao se restringe ao carter uni- versal dos fenémenos do que, alids, no se ocupa no livro, embora seja indu- bitavelmente seu ponto de partida. Na seqiiéncia de surpresas, a racionali- dade, sindnimo de adequagio de meios a fins, aparece imediatamente como algo que espanta e atrai a tengo do pesquisador. Por que s6 no Ocidente aparece com toda a pujanga, nas diversas esferas da vida, incluindo a misi ca e a arquitetura, e nao apenas na‘esfera da economia, que Weber gostaria de tratar especialmente? O leitor atento vai descobrindo aos poucos, nos capftulos seguintes & Introdugio, principalmente © segundo, “O espirito do capitalismo”, que a racionalidade, enquanto valor, interessa a Weber por estar intrinsecamente entrelagada com a rentabilidade. O homem “moderno” quer ser racional porque a racionalidade o torna rentavel. Porém, com que senti- do? Na realidade, nao deseja apenas ganhar ou consumir, mas adquirir cada vez mais bens, sobretudo dinheiro. Weber considera que a aquisigao de di- nheiro se torna a finalidade da vida, invertendo-se assim o que poderia pare- cer natural, que era a aquisigio para a satisfagao de necessidades materiais. (Weber, 1988:36) Este sim € 0 principio ordenador do capitalismo ocidental € que nunca foi experimentado por outros povos. Observar como Weber for- mula o problema do cardter proprio da sociedade capitalista ocidental interli- gando significativamente os termos nalidade/rentabilidade/aquisigao é aqui de importancia, uma vez que a recepgio do livro, ao usar muitas vezes ASCESE E PRAZER: WEBER vs, SOMBART 179 como quadro de referéncia a obra de Marx, confunde aguisigdo com acu- mulagéo ou ainda aquisig&o com consumo. Contudo, Weber nao estranha apenas a voracidade, a avareza ou a pulsio aquisitiva — expresso que usa com mais freqiiéncia — nas sociedades capitalistas. O que Ihe parece ainda mais estranho é que o desejo de adquirir mais ¢ mais dinheiro se torne um dever moral. Como pode a avareza tornar-se virtude? Ao delimitar o problema de sua investigago, pergunta entéo como puderam tantos homens e, somente em certas regides do Ocidente, conside- rarem o desejo de adquirir mais e mais dinheiro como obrigagao. Finalmente © espanto causado por esta atitude leva Weber a relacionar um conjunto de valores coerentemente interligados ~ racionalidade, rentabilidade e aquisicao = com dever moral, ordenando assim suas “surpresas” e “indagagdes” na questo de trabalho a que procura responder em A ética protestante. Em artigo sobre a racionalidade ¢ o sentido da aco social, Karl Léwith lembra um trago frequentemente esquecido do pensamento weberia- no, que diz. respeito ao seu interesse em contribuir para uma ciéneia empitica da realidade concreta’. A particulatidade de um fendmeno geral da economia ou da sociedade e o significado cultural geral do capitalismo, por exemplo, niio eram to “dignos de ser conhecidos” como os tracos singulares da vida social. Weber questionou, portanto, a singularidade caracterfstica do mundo em que vivia, capitalista, europeu e ocidental, conferindo importancia tanto aos valores que definiam aquela singularidade quanto aos motivos histéricos da imposigao de certos valores sobre outros na ordenagao da vida prati Em A ética protestante e o espirito do capitalismo Max Weber busca compreender 0 ethos da cultura ocidental a partir de duas orientagoes disciplinares distintas. a sociolégica e a hist6rica. E possivel que 0 aspec- to hisiérico, relacionado com as origens protestantes do ascetismo laico, ¢ portanto com as causas da sociedade capitalista, venha sendo mais ressaltado nos exames da obra, que buscam a continuidade da polémica entre as concepgdes weberiana ¢ marxista. Desejo, entretanto, distinguir na medida do possfvel as duas orientagdes disciplinares adotadas por Weber. Em iiltima andlise elas mostram de que pontos de vista ele respon- 8-0 artigo de Karl Lowith “Weber's Interpretation of the Bourgeois-Capitalistic World in Terms of the Guiding Principle of ‘Rationalization’ encontra-se it Dennis Wrong (org.), Max Weber. Prentice-Hall, 1970. 180 LUA NOVA N° 52 — 2001 interrogagiio: como nos tornamos 0 que somos hoje, seres s movidos por uma pulsdo aquisitiva nunca vista? Do ponto de vista histérico, a Reforma protestante é 0 grande marco de uma mudanga radical na vida de diversos agrupamentos humanos, na Alemanha, Sufea, Holanda, Inglaterra, ‘Franca e EUA. Nos limiares do século XVI e XVII dé-se a grande virada: homens piedosos ¢ crentes so chamados a agir no mundo, sem perda de tempo, a favor da maior gldria de Deus. Mais do que isto, Deus quer ser servido na terra; mas que isso se faca através da ascese, recusando-se o prazer, 0 gozo, a alegria das atividades seculares, definidas como obrigagao religiosa. A reforma no acabou com os monastérios mas, ao contrério, fez do mundo um monastério, transformando todo e qualquer cristo em monge (Weber 1969:84 © 1988:119-120). Em Weber a secularizagao do mundo foi con- duzida nos seus primérdios pela forga irresistivel da crenga religio: Na realidade, o mundo jamais significara o locus privilegiado para a edificagiio das obras humanas, nem se estimaram as tarefas simples € rotineiras como necessarias e imprescindiveis para uma ago transfor- madora do homem na terra, A idéia da dedicagao metédica e regular a uma profissdo, © que hoje poderfamos chamar de workaholism para expressar uma modalidade excessiva de devogio ao trabalho, nao existira em outros tempos e sociedades. Para Max Weber, a Reforma Protestante inicia um processo histérico de longa duragio e de grande significado para a cultura ocidental: inaugura uma nova concepgdo de mundo. A mudanga era de tal ordem que os préprios jesuftas, empenhados na Contra-Reforma, costumavam inscrever nos seus pertences a sigla AMDG ~ ad majorem Dei gloriam -, adotando ideais secularizados ja bem distintos daqueles do catolicismo “tradicional”, que julgava 0 trabalho no mundo tio necessario como comer e beber. Ainda assim, para Max Weber, a Companhia de Jesus teria apenas assumido “um compromisso utilitério e li- beral com o século” (Weber, 1967:54), que nao se igualava com, nem de Jonge alcangava,.a forga do Protestantismo, que revirara 0 mundo de ponta- cabega a0 associar a atividade secular & salvagdo da alma. A recompensa pelo trabalho metédico, calculado ¢ regular era enorme, pois, nas diversas vertentes do protestantismo, acreditava-se que Deus determinava o destino dos homens, distinguindo os eleitos daqueles predestinados & danagiio eterna, mas, ndo obstante, possibilitava a cada um por & prova a sua fé através de atividades seculares. Desta forma, o puri- ASCESE E PRAZER: WEBER vs. SOMBART 181 tanismo estimula o impulso para a ago ascética no mundo. Pode-se bem imaginar o empenho de grupos humanos piedosos, cuja incerteza quanto bem-aventuranga futura leva ao exercicio sistemstico de um autocontrole exemplar, a repelir qualquer atitude ou ago irracional, que nao servisse & gléria de Deus neste mundo nem A salvagéio de suas almas. E a hist6ria da génesis de uma nova acao social — da conduta racional com respeito a fins e valores — que Max Weber examina com acuidade em A ética protestante e o espirito do capitalismo. O livro trata da mudanga social em todas as suas passagens, mas ndo se descuida dos seres humanos e suas crengas, agdes e sentimentos. Afasta-se assim por completo dos estudos sobre 0 tema que, ao adotar 0 ponto de vista da histéria moderna, se ocupam somente dos “processos”, suas fases e carac- teristicas, deixando de lado as agGes € os sofrimentos humanos, como lem- bra enfaticamente Hannah Arendt (1979: 69). A hist6ria que Weber conta & ahistéria da regularidade de ages sociais (Jaspers, 1977:121), ¢ seu rela- to est repleto de personagens, empresérios s6brios, burgueses puritanos, aventureiros, operdrios protestantes, operdrias eslavas catélicas, clérigos, doutrinadores, homens, mulheres, poloneses, holandeses, ingleses, catéli- cos, protestantes, judeus, banqueiros, artesdos, camponeses. Nem por isto se pode dizer que Weber estivesse meramente interessado na maneira de pensar subjetiva dos agentes sociais ou na iden- tidade dos grupos sociais, por exemplo, os holandeses inescrupulosos com Ansia de lucro ou os conjuntos de familias quacker no interior da Pensilvania. Seus personagens sao seres que criam valores ¢ conformam, sim, grupos, classes, estamentos, associagGes ¢ sociedades dos quais Weber fala, para mostrar a regularidade de sua conduta no mundo. Sua perspecti- I6gica quer justamente buscar o principio que norteia o encadea mento significativo das mais diversas agées e relagdes sociais dos mais diversos agrupamentos humanos, examinando a regularidade e a persistén- cia da ago racional, da conduta rentdvel e do aff aquisitivo. Essa postura metodoldgica de Weber tem levado entretanto a muita controvérsia sobre-o caréter subjetivo de sua sociologia, que na realidade no esclarece 0 pensamento de Max Weber. Em Critica e Resignagao, Gabriel Cohn argumenta com muita propriedade que Weber esté acima de tudo inte- ressado no sentido da‘agio social. “A unidade compreenstvel da agdo € entdo dada pelo seu sentido. Resta saber onde se localiza esse sentido, posto que . Weber nao opera com a idéia de sistemas significativos objetivos j4 dados. S6 182 LUA NOVA N® 52 — 2001 hd uma resposta possivel, no esquema de Weber. A tnica sede efetiva, empiri ca possivel do sentido é 0 agente, 0 sujeito, que comparece assim, para usar 0 termo sugestivo do préprio Weber, como seu ‘portador’. E € por isso — longe portanto de qualquer ‘psicologismo’ — que Weber insiste no carter subjetivo do sentido da ago. O sujeito individual constitui para ele o limite ‘para cima € para baixo’ da realizago do sentido (Cohn, 1979: 93) . Giinther Roth chama a atengiio para as interpretages equivo- cadas do método “individualista” weberiano, que acentua as ages indivi- duais e 0 significado subjetivo das agées, afirmando que 0 autor os tem como referéncia ultima. “...isto (0 individualismo metodolégico) foi pen- sado no sentido de uma referéncia Gitima. Naturalmente nao forgou Weber, como tem sido as vezes equivocadamente afirmado, a limitar-se ao que se encontrava nas-mentes dos atores individuais. Indivfduos, sejam grandes homens ou multiddes representando ‘comportamento coletivo’ ndio desem- penham praticamente nenhum papel na pesquisa weberiana. Ao contrario encontramos uma enorme preocupagio em comparar principalmente as estruturas econdmicas, politicas, legais ¢ religiosas da Histéria Ocidental, da China e da [ndia. Todas esses estruturas estavam cheias de contradiges internas, e em todas elas as pessoas:sofriam pelo fato de nao poderem ante- cipar as conseqiiéncias...” (Roth, 1979: 120) De uma perspectiva sociolégica, A ética protestante e o espirito do capitalismo responde 2 pergunta feita pelo seu autor sobre a singulari- dade dos valores da cultura ocidental, evidenciando de que-modo ao longo do tempo a racionalidade, filha do ascetismo laico preconizado pelo protes- tantisino, se torna 6 prinefpio das ages dos homens.no mundo, predomi nando sobre outros valores, € como foi pouco.a pouco se espraiando e con- formou. uma teia de relagées sociais que invadem as mais diversas esferas da vida social. A regularidade da conduta racional gera rentabilidade.e, assim, atende pragmaticamente ao “impulso scm repouso em busca de mais” (Jaspers, 1977:125). Max Weber concliui que os mais nobres ideais de glorificagiio de Deus no mundo, através do ascetismo laico, teriam desaparecido, deixan- do 0. mundo livre para a mais desenfreada busca de riqueza, assim como a “vocagao para.o trabalho” sem justificativa. E possivel que a ascese tenha ironicamente ‘deixado de servir ao deus absconditus a que se refere Marianne Weber, para servir a outros senhores, como afirma: Hans-Albert Steger ao aludir aos sacrificios-das “cadernetas” de poupanga, sinnimo de ASCESE E PRA’ WEBER vs. SOMBART 183 recusa ou postergacio do prazer, ainda hoje costumeiros ¢ indispensdveis para a aquisigao de certos bens materiais, como carro do ano ou viagem a pats de cultura exética, Mas é curioso perceber que o empenho weberiano em buscar as origens de um processo histérico de longa durago tenha justamente servido para verificar a fragilidade dos célculos que os homens fazem quanto a0 futuro. Weber nio questiona as origens religiosas do capitalismo s6 para evi- denciar a importincia de um tipo de relagao causal. Nao é apenas disso que trata, nem me parece ser problema a que atribua maior importancia ao final da pesquisa. Ao concluir o trabalho, Weber se surpreende com o fato de que aqui- o que os homens planejam e projetam calculadamente para o futuro termina por engendrar um mundo inesperado. Se nos primérdios da secularizagio 0 protestantismtio laico foi indispensdvel, uma mudanga de sentido se operou na cOnduta dos homens cujo objetivo nao é mais adquirir riqueza para a maior gléria de Deus. Essa mudanga de sentido ocupa pensamento de Weber. Entre a primeira e a segunda fases da escrita de A ética protes- tante e 0 espirito do capitalismo, Max Weber viajou para os EUA com a esposa € o amigo Ernst Troeltsch®. Hans Rollmann (1993/357) reconstréi essa visita em um artigo intitulado “Meet me in St. Louis, Troeltsch and Weber in America’. A referéncia é a uma cangio de sucesso de Judy Garland, Gnica recordagao da feira mundial realizada em St. Louis, que promoveu o Congresso Mundial de Artes e Ciéncias, para 0 qual os dois estudiosos alemies tinham sido convidados. Weber nio visitou apenas a New England e a East Coast como era de habito entre os alemaes, mas fc a0 coragdo da América, 0 Midwest, 20 Sul e ao Oeste. Embora Rollmann no se refira 2 repercussio da viagem. na claboragio da segunda parte de A ética protestante, ¢ a referéncia aos EUA esteja presente desde o inicio do trabalho, sobretudo no importante capitu: lo de definigao do espitito capitalista, baseada nas ligdes de Benjamin Franklin para os jovens desejosos de enriquecer, creio ser importante chamar a atengio para uma idéia presente no tiltimo capitulo, “A ascese 0 espirito do capitalismo”, cujo ceticismo contrasta com.a fina ironia dos 9 Emst Trocltsch, tedlogo ¢ fildsofo passou a fazer parte do cfrculo de amigos de Max Weber na Universidade de Heidelberg. Dedicou-se ao estudo do cristianismo. Publicou em 1912 Die Sozialletren der christlichen Kirchen und Gruppen 1912), sendo um dos interlocutores erti- cos de Weber. Ver também Louis Dumont, 1991 184 LUA NOVA N* 52 — 2001 primeiros escritos, me faz pensar sobre os possiveis efeitos da viagem. A idéia da imponderabilidade da vida social se destaca nas reflexdes do ultimo capitulo, Roth chama atengio para esta preocupagiio de Max Weber, como j4 vimos: os homens sofrem porque ao longo do tempo o resultado de suas ages nao correspondem Aquilo que desejavam. Jaspers (1977:121) confirma essa suposigao, afirmando que, ao voltar-se para 0 passado com o propésito de entender o sentido das agdes dos homens do- minados pelo “afa aquisitivo", Weber fica espantado com o fato de que “engendram, na sua ago dotada de sentido para eles, algo diverso daquilo que visavam”. E decerto Marianne Weber (195/334) é a mais contundente ao comentar a postura do marido diante do inesperado da vida social. Para ela, uma verdadeira “tragédia” comegara quando o puritanismo nao pode mais resistir & riqueza adquirida. Weber teria se comovido profundamente com os destinos humanos que Ihe tocavam o coracao, sobretudo porque apreendeu que uma idéia podia se desenvolver justamente em oposigao 20 seu significado inicial, terminando por destruir-se a si mesma. Nada mais ameagador para um mundo que acredita no célculo, na racionalidade, na previsio. A descoberta da imponderabilidade da vida social a longo prazo, questdo posta por Weber, pode ser vista de dois modos. O primeiro diz respeito ao fato de que a relagao causa-conseqiiéncia ~ a causalidade, ou causa-efeito — nio € infalivel nem absolutamente correta. O que fica da génese do capitalismo, como foi proposta por ele, siio a raciona- lidade, a rentabilidade, a calculabilidade, a previsio, O significado inicial do uso desses meios, altamente valorizados para a glria de Deus, perde inteiramente seu sentido. Mas os meios de melhor glorificagio de Deus tornaram-se efetivamente os melhores meios de adquirir riqueza. Eis 0 ver- dadeiro problema. As intengées iniciais perdem o sentido e, portanto, de alguma forma a causalidade histérica € questionada. O segundo sentido, interligado ao primeiro, diz respeito & propria compreensio da ordem social objetiva criada pelo agir humano. Como compreendé-la, agora que seu sen- tido nao corresponde mais aquele dos grupos que a engendraram? Eis o problema que Weber formula. O capitalismo dos seus dias de inicio do século XX ndo expressa o desenvolvimento do-espfri- to ou evolugo das forgas produtivas. Nao tem essa positividade, mas se mostra para ele como a negagao dos principios e dos valores que o engendrou ao longo dos séculos. Que garantia ém agora os homens no que concerne ao’ mundo futuro que estéo a engendrar com suas agGes? Na realidade, Weber (1967:131) parece tomado por ceticismo profundo quanto & persisténcia e ao reconhecimento da validade dos valores que ASCESE E PRAZER: WEBER vs, SOMBART 185 conduzem as ages humanas. Lembrando-se dos EUA, pondera que “no setor de seu mais alto desenvolvimento”, a busca de riqueza havia se convertido em um esporte. Ao exemplificar a afirmagao, reproduz “o juizo”, de um jovem imigrante alemao sobre 0 sogro norte-americano, bem sucedido merceeiro de pequena cidade de Ohio: “Nao poderia o velho satisfazer-se com 75 mil délares por ano © descansar? Nao! A frente da loja deve ser aumentada para 400 pés. Por qué? Porque isto supera tudo, diz ele. A noite, quando mulher e filha léem juntas, ele quer ir para a cama. Aos domingos olha o relégio a cada cinco minutos para ver quando chega o fim do dia. Que vida futil!” (1967: 224). Muito mais do que inadequado, 0 comentario do jovem alemao teria sido simplesmente incompreensfvel ao seu parente norte- americano e, segundo a observagao irénica de Weber, poderia mesmo revelar a falta de energia de seus compatriotas em terras distantes. No entanto, na primeira parte do livro, € mais condescendente com as con- dutas obsessivamente voltadas para a aquisigao de bens. Quando se re- fere a Cecil Rhodes, por exemplo, (Weber 1967: 25), Weber o qualifica como um dos maiores empreendedores: capitalists, oriundo de uma familia de clérigos, cuja megalomania poderia ser compreendida como reacdo aos ensinamentos religiosos excessivamente severos da juven- tude. Alids, parece que a vida Cecil Rhodes tornou-se um bom exemplo de impulsos aquisitivos extraordindrios e bem sucedidos. Curiosamente, anos mais tarde, Cecil Rhodes vai chamar a atengao de Hanna Arendt (1989:154), quando discute a politica imperialista dos estados nacionais e as origens do totalitarismo: “A expansio é tudo, disse Cecil Rhodes, deprimido ao ver no céu essas estrelas (...) esses vastos mundos que nunea poderfamos atingir. ‘Se eu pudesse anexaria os planetas’. Em menos de duas décadas, as possessdes coloniais britanicas cresceram em 11, 5 milhdes de km2 e 66 milhdes de habitantes (...) No entanto Rhodes reconhecia ao mesmo tempo a inerente loucura dessa época c a sua contradig¢do com a natureza humana. Naturalmente, nem e: sabedoria nem a tristeza dela decorrente alteraram 0 seu modo, de agir. A ele pouco importavam esses rasgos de clarividéneia que o levavam muito além da capacidade normal de um comerciante ambicioso com fortes tendéncias megalomanfacas”. A leitura de A ética protestante e 0 espirito do capitalismo leva curiosamente ao questionamento da prépria origem do capitalismo, como € definida no livro. Teria Weber se equivocado? Os valores do ascetismo laico nao levaram & construgao de um mundo piedoso, porém materialista, 186 LUA NOVA N* voltado para a aquisigao de bens como sentido maximo da vida, Mas se Weber tivesse dtividas quanto aos resultados de seu trabalho, talvez, nao 0 tivesse preparado para nova publicagio com tanto esmero. Afinal, scu ponto de vista hist6rico e sociolégico pressupunha as incoeréncias, os para- doxos e os conflitos prdprios da tessitura das agGes e relagdes sociais que “fazem” sociedade. A VENUS DE BOTICELLI E surpreendente que enquanto Max Weber buscava as fontes mais apropriadas para provar que a ascese era o valor fundante de um novo estilo de vida, Werner Sombart, seu companheiro na edigtio do Archiv fiir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik se dedicava a mostrar que 0 prazer era um dos méveis mais’preciosos da sociedade capitalista que se forjara no Ocidente. O erotismo, 0 luxo, o refinamento dos sentidos teria levado A sede de consumo que gerara cada vez mais manufaturas e mercados. No preficio de Amor, luxo e capitalismo, Sombart afirma sem rodeios que havia muito vinha buscando as origens do capitalismo moder- no, pois elas sao diversas, e cada uma deve ser vista na sua singularidade. Define-se assim, mais uma vez, uma das marcas de uma vertente da Sociologia alema do inicio do século que, fundamentando-se nas ages ¢ interagSes humanas, dificilmente poderia tomar o partido: de‘ uma expli- cagdo monocausal para os fendmenos sociais. A sociedade nao se apresen- aa priori como um todo, sistema ou totalidade, independente das agdes ¢ relagdes individuais, porém evidencia-se na obra de Sombart a idéia basi ca de que sociedade se faz (Vergesellschaftung). Nesta perspectiva nao hd interesse em. “articular” 0 todo aos atores individuais, e saber como suas vidas silo condicionadas por uma “estrutura”’ preexistente 2-sua ago. Ao fazer-se, a sociedade se estrutura.em regularidades diversas, podendo uma dominar as outras em certos momentos, em-outros momentos desaparecer. Tém a possibilidade-de existir. As regularidades, que se traduzem em ordens sociais “objetivas”, ndo sZo-outra coisa senao obra dos agentes so- ciais que, suicedidos ao longo do tempo por outros, procuram manté-las ¢ justificd-las ou transformé-las. A secularizagao do amor € 0 ponto’ de partida do estudo de Sombart, relevante para o entendimento das mudangas advindas com 0 capitalismo: moderno.: Ela comega’lentamente apés o fim das cruzadas, quando trés acontecimentos coricorrem para uma profunda mudanga na ASCESE E PRAZER: WEBER vs, SOMBART 187 relagdo entre os sexos: a formagio das cortes européias, a necessidade de esbanjamento dos burgueses endinheirados e a criagdo das cidades como centros de consumo. Contudo, esses acontecimentos nao poderiam agir per se na construgio da sociedade'capitalista sem que houvesse participagaio ativa e insubstitufvel da mulher cortesd que, ao contribuir para desvincular encantos ¢ gozos do amor da instituigo medieval do casamento, insiste no refinamento dos sentidos, no esbanjamento, na ostentagio, no luxo. A “impetuosidade refinada” de relagdes scxuais proprias das cortes européias aparece a cada linha de Luxo e capitalismo em contraste flagrante com a sobriedade puritana de A ética protestante e 0 espirito do capitalismo. Contudo, a diferenga das tarefas a que se propdem Werner Sombart e Max Weber merece avaliagdo mais aprofundada. Sombart nao est interessado em verificar se o prazer, 0 refinamento dos sentidos ¢ 0 luxo so valores marcantes de uma individualidade histérica, Nao procura © ethos da civilizagio ocidental: deseja examinar as causas que deram origem A sociedade moderna. Contudo, embora néio tenha a mesma ambigo que Max Weber, Sombart antecipa um assunto caro 4 Sociologia contemporanea, Raramente se espera que um livro, publicado em 1912 na Alemanha, atribua as mulheres papel tio importante no processo de mudangas, caracteristico do perfodo que vai do século XII ao XVIII, na Europa. Nisto est, em parte, a novidade do livro de Sombart, A hipstese sombartiana sobre 0 “triunfo da mulher” é bastante ousada, ainda mais se considerarmos que o tratamento dado As mulheres na Alemanha da virada do século XIX era motivo de criticas severas. Contudo, sabe-se que contemporaneos de Sombart, como Simmel, escre- viam sobre a coquetterie, sobre o amor e a cultura feminina, sobre a pros- tituigdo, Sabe-se também que havia um movimento feminista organizado e forte na Alemanha de inicio de século, de cujas discussdes os homens tomavam parte (Roth, 1995: 1). Seja como for, surpreende a desenvoltura com que trata do amor livre, do erotismo e do casamento, relacionando-os com a opuléncia e 0 excesso, com 0 surgimento do consumo de luxo. Outra caracterfstica singular da obra de Sombart € a variedade das fontes a que recorre para comprovar a hipétese de que as mudangas na relagio entre os sexos influfram na génese do sistema econdmico moderno. Os antecedentes das “novas” idéias sobre o amor so pensados com os versos dos Minnestinger, as obras de Petrarca e Bocaccio, a pintura italiana do Quattrocento, além das_memérias © dos didrios, testemunhos de época. Sombart ndo se esquece das contas e dos custos das festas luxuosas, dé prego dos vestidos, das perucas e carruagens, dos dotes. Seu aprego pelos materiais 188 LUA NOVA N® 52 — 2001 da pesquisa 0 leva no s6 a discriminé-los no final do livro mas também a comenté-los, ds vezes com entusiasmo, como o faz. com os materiais especiti- cos sobre 0 1uxo:!! “Os materiais so abundantissimos: edificios e construcées, vestidos, mobilias, utensflios, notas e.apontamentos de cardter doméstico, fa- turas de gastos, descrig&es de viagens, resenhas e relatos dos contemporaneos. Tudo isto constitui fonte preciosa de conhecimento. Importancia especial merecem os escritos de fndole moralizadora, mas hd de examiné-los com no pouca precaugiio. A época dos séculos XVI, XVII ¢ XVIII pode ser estudada admiravelmente nas numerosas memérias”, (Sombart, 1979: 183) Parece que Sombart se sentia alertado insistentemente pela obrigagdo de mostrar muitas evidéncias daquilo que afirmava: “Facts, facts, facts — this admonition rang in my ears all the time I was writing the book” (Roth, 1995: LXXII). Mas, finalmente, terminava por analis4- los da perspectiva de valores, que conduziam a regularidade de agoes ¢ relagées sociais em um encadeamento histérico. Vejamos como faz isto em Amor, Luxo e Capitalismo. Em 1915, referindo-se a “O nascimento de Vénus” de Botticeli, Heinrich Wolfflin (1996: 3) chama a atengao para a impetuosidade dos contornos do pintor. “O cotovelo pontiagudo, o trago acentuado do ante- braco, a forma irradiante com que os dedos se abrem sobre o peito, cada linha carregada de energia: isto € Botticeli”. Foi este 0 quadro que mais atraiu a atengo de Sombart (48: 1979), quando se voltou para o exame das origens do capitalismo. Para ele, a Vénus do pintor italiano de fins do Quattrocento representa exemplarmente 0 momento em que a mulher se “desnuda”, revelando-se a beleza {ntima de suas formas, o fmpeto do amor sensual vence o da castidade medieval. A nova concep¢iio de amor teria desencadeado um conjunto de agdes e relacdes sociais que, através de séculos, terminaria por impor um estilo de vida suntuoso cujos efeitos se fizeram sentir no surgimento da industria de luxo, ponta de langa da indis- tria e mercados manufatureiros modernos. Assim como as maximas de Benjamin Franklin, citadas por Max Weber, no livro de Sombart 0 quadro de Botticelli pode ser visto como simbolo de novo tempo, no qual a mulher tem uma missio.transformadora relevante. 1 Bm artigo sobre De onde vem e para onde vai o luxo publicado na Folha de so Paulo a 30.03.1997, Hans Magnus. Enzesberger retonia o tema do tuxo, fazendo um bor uso das. fontes do livro de Sombart (1913). ASCESE E PRAZER: WEBER vs. SOMBART 189 Niio € outro o tema inicial de Sombart sendo a secularizagdo da con- duta social, Ele se detém, entretanto, em uma esfera usualmente pouco men- cionada ou examinada nos estudos sociolégicos daquela época, que € a secu- larizagiio do amor. Mais comumente pensada como distingdo entre as ester do poder religioso e poder secular na trama da formagdio de um corpo politico independente ¢ laico, (Pierucci 1988) ao qual se obedece porque legitimo par mandar e ordenar as mais diversas esferas da vida social, Sombart lembra, entretanto, que também na intimidade das relages sexuais a autoridade se desloca do céu para a terra, 0 que nao significa, evidentemente, o fim das crengas religiosas, como se pensa muitas vezes, mas a distingZo entre a autori- dade religiosa e a laica na conduta sexual. Sombart esclarece que se trata de um processo de longa duragio, atravessando séculos, desde as. primeiras expresses de um amor de puberdade ¢ devogio, inscrito nos versos dos Minneséinger até a completa oposigao entre o amor hedonistico € © amor san- ificado que surge nas telas dos pintores italianos do séculos XIV e XV. Aqui interessa chamar a atengiio para o fato de que a secula- rizagao em Weber, ¢ estou me referindo aA ética protestante e o espirito do capitalismo, € uma secularizagio que nao corta a cabega de Deus, a0 menos ao longo de muitos séculos. Ao indagar sobre a génese do capitalismo, mostra, como apontamos acima, que os puritanos e piedosos apenas pas- saram a glorificar a Deus através de uma conduta ascética e rentavel no mundo, E pois do deslocamento da igreja e dos mosteiros para a vida cotid- iana do lugar de glorificagdo a Deus de acordo com a vontade divina do Deus absconditus que ele trata no seu trabalho, e ndo do fim da crenga reli giosa que dé sentido a vida social de homens e mulheres. Somente na sua época € que este sentido religioso da conduta humana desaparece. O que Weber assegura portanto € que a base da secularizagio é religiosa. Nao é este 0 caso de Sombart. A autoridade religiosa ¢ totalmente afstada para que 0 amor e 0 desejo carnal ~ to veementemente expurgados pelos protes- tantes — possam enfim realizar-se. E do amor em si semi nenhum fim moral religioso ou mesmo laico de que ele fala como um valor que foi se tornan- do cada vez mais poderoso de modo absolutamente arbitririo, pois no obe- dece a nenhum prinefpio da natureza humana ou da natureza das coisas. O marco histérico que importa a Sombart & 0 surgimento da corte européia. Interessa a ele examinar a crescente valorizagiio do requinte edo luxo nas relagées sociais tipicas da aristocracia européia!? A comple- 12 Embora sigam orientagoes distintas é bom lembrar do liveo de Norbert El Corte (1987) em que as relagdes sociais da corte so também consi a compreensao da cultura européia. Elias faz algumas refer ins, Socieducde de leradas importantes para ias is teses de Sombart 190 LUA NOVA N° 52 ~ 2001 ta distingdo entre casamento e erotismo s6 se impée, segundo Sombart, nas cortes, onde o amor se liberta dos preceitos religiosos assim como da moralidade das instituigdes laicizadas. O amor secularizado realiza-se entretanto na ilegitimidade. A transgressiio das regras morais e religiosas foi reconhecida com positividade por teéricos, a exemplo de Montaigne, que aconselhava manter & distincia do casamento — instituigao social volta- da para fins elevados — os impulsos da paixo amorosa. O casamento le- vava em conta o encanto e a beleza, mas sobretudo os bens ¢ a posigao social dos cOnjuges, tendo por objetivo a familia ¢ a descendéncia (Sombart, 1979: 53). ‘Ao falar da vitéria do principio da ilegitimidade Sombart toma 0 partido de uma Sociologia que nao identifica a sociedade com um sistema de coergéio. Em nenhum momento ele recorre 8 idéia de punigao para falar de uma ordem tinica de valores coletivos, cuja transgressio teria como conse- giiéncia inevitével a pena, que, como ensina Durkheim, refaz sucessivamente a solidariedade social. Ao contrario, sua perspectiva sociol6gica busca, deci- dida, a diversidade e 0 conflito de valores. Nisto, Sombart se afasta intei mente da visio determinista da sociedade, estimulando o pensar sobre a efe- tiva diversidade das condutas sociais (que conformam a ordem capitalista). Prova disto sao uma ou outra referéncia aos burgueses austeros ¢ sisudos que olhavam com desdém e desprezo para as coquettes enquanto outros, imitan- do a nobreza, logo se entregaram aos prazeres sensuais. Argumentando a favor da secularizagao do amor, Sombart volta sua atengdio para a cortesd e 0 papel que desempenha na mudanga dos habitos ¢ costumes, primeiro da corte, depois das camadas altas ¢ baixas que habitam as cidades européias nos séculos XVI, XVII e XVII. Muther de qualidades raras, conhecedora das artes ¢ das letras, a cortesii se torna por exceléncia a figura responsdvel pela formagio do gosto (Sombart,1979: 61). Esposas addlteras, meretrizes, mogas seduzidas de boa familia adquirem centralidade na vida alegre e prazerosa da corte européia, Sombart quer saber de que maneira a ilegitimidade, que elas re- presentam, pode contribuir para a transformagio dos velhos castelos medievais risticos e sem adornos em castelos de mobilidrio novo, tou- cador, jardins, vestimentas, perucas, refeigdes requintadas € todo tipo de apetrechos que dé prazer aos sentidos sofisticados dos cortesios. Para se ter uma idéia do alcance do requinte provocado pela se- cularizagio do amor de acordo com as teses sombartianas, basta prestar atengdo A concepgiio de toucador que tinha o arquiteto francés Le Camus de Mézitres “O toucador 6 considerado a morada da voldpia; € Ii que ela parece ASCESE E PRAZER: WEBER vs, SOMBART 191 meditar seus projetos ou entregar-se as suas inclinagdes. E essencial que tudo seja tratado de maneira que possa reinar o luxo, a languidez.¢ 0 gosto...Nunca & demais evitar as sombras duras e cruas que poderiam produzir luzes por demais vivas. E preciso que haja uma claridade misteriosa, ¢ ela sera obtida de espethos colocados artisticamente sobre uma parte dos caixilhos...O tema-dos quadros serio extrafdos dos locais galantes, € preciso tentar tudo, usar a magia da pintura e a perspectiva para criar ilusdes.... (qpud Starobinski, 1994: 67) E do excesso, do trasbordamento, da ostentagao que ele fala, opondo uma estética voluptuosa & estética pietista que Weber menciona ao tinal de A ética protestante e o espirito do capitalismo (1967: 121), sébria, econdmica pela simplificagio das formas, voltada para a utilidade, sem veleidades artisticas. O luxo entretanto pretende a recriagio dos sentidos. Est4 imediatamente relacionado com o refinamento que para Sombart pragmaticamente quer dizer: aumento de gasto no trabalho vivo necessrio para a produgao da coisa; significa que a coisa esté mais integramente tra- balhada em todas suas partes, bem fabricada com materiais raros e cu tosos. Filho do amor ilegitimo, ou a-legitimo como prefere Sombart, 0 luxo acentua a valorizagio cada vez maior da sensualidade e do refinamento, comprovando-se esta tendéncia com 0 triunfo da arte rococé sobre a arte batroca. A imposigao de um estilo feminino em todas as esferas da cultura (Sombart, 1979: 98) 86 traz beneficios para o desenvolvimento do capita- lismo. O luxo, outrora puiblico e visivel nos torneios, nos espetdculos faus- tosos e nos cortejos adquire, sob o domfnio da mulher, um cardter interior, doméstico ¢ estavel; a possibilidade de sua existéncia associa-se irrevo- gavelmente & condensagao do tempo. “Desde que o individuo se emancipa da coletividade ele toma a duragao de sua vida prépria como medida de seu gozo. O individuo quer presenciar em vida todas as transformacée: Inclusive o rei se converte mais em si mesmo. Se manda construir um pala- cio, quer habitd-lo antes de morrer” (Sombart, 1979: 99). Para Sombart decididamente no € o af’ aquisitivo que gera manufaturas, mas 0 consumo de um bem, a ser utilizado talvez por pou- cas horas, para suprir um capricho e prazer passageiro. Este consumo, sim, leva & proliferagio das fabricas em torno das cortes das cidades, a comegar pela importante inddstria da seda, 0 melhor exemplo de uma manufatura que servia ao luxo. Se o ascetismo, a retengdo, o ganhar mais e ser mais rentavel tornam-se uma virtude para o burgués protestante, em Sombart, em visivel contraste com Weber, € na futilidade, na vain osten- tation, no supérfiuo, que se encontra o valor que engendra o grande crescimento da ordem capitalista.

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