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Reunião de Textos
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Historiografia: temas, desafios e perspectivas – Reunião de textos
II Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-americanos (CI-EHILA)
PPGH-UNISINOS, São Leopoldo/RS, 2017
ISSN 2527-1148
Organização do evento:
Editoração: Alba Cristina C. dos Santos Salatino & Jonathan Fachini da Silva
ISSN 2527-1148
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Historiografia: temas, desafios e perspectivas – Reunião de textos
II Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-americanos (CI-EHILA)
PPGH-UNISINOS, São Leopoldo/RS, 2017
ISSN 2527-1148
Comissão Organizadora
Alba Cristina C. dos Santos Salatino
Alexandre de Oliveira Karsburg
Ana Paula Korndörfer
Helenize Soares Serres
Hernán Ramiro Ramírez
Jonathan Fachini da Silva
Luiz Fernando Medeiros Rodrigues
Maíra Ines Vendrame
Comissão Científica
Alba Cristina C. dos Santos Salastino (Unisinos)
Carla Brandalise (UFRGS)
Carlos Daniel Paz (UNICEN, Argentina)
Carmem Adriane Ribeiro (PUCRS)
Charles Sidarta Machado Domingos (IFSUL)
Cláudio Pereira Elmir (IFSC)
Daniel Luciano Gevehr (FACCAT)
Eliane Cristina Deckmann Fleck (Unisinos)
Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos (Unisinos)
Fernanda Oliveira (UFRGS/UNIRITTER)
Gabriele Rodrigues de Moura (Unisinos)
Giane Flores (Unisinos)
Guilherme Galhegos Felippe (PNPD/PUCRS)
Helenize Soares Serres (Unisinos)
Isabel Cristina Arendt (ISEI/Unisinos)
Jairo Henrique Rogge (Unisinos)
Jonathan Fachini da Silva (Unisinos)
Juliana Aparecida Camilo da Silva (Unisinos)
Mara Cristina de Matos Rodrigues (UFRGS)
Marcos Antônio Witt (Unisinos)
Maria Cristina Bohn Martins (Unisinos)
Marluza Marques Harres (Unisinos)
Paulo Possamai (UFPel)
Paulo Roberto Staudt Moreira (Unisinos)
Pedro Ignácio Schmitz (Unisinos)
Priscilla Almaleh (Unisinos)
Rodrigo de Azevedo Weimer (FEE)
Rosane Marcia Neumann (UPF)
Site
http://www.unisinos.br/
Realização Apoio
Programa de Pós-Graduação em História Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Superior (CAPES)
Instituto Humanitas Unisinos (IHU)
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E56h
Inclui Bibliografia.
ISSN 2527-1148
CDU 97/98
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO...........................................................................................................................13
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APRESENTAÇÃO
Como parte de seu “ofício”, na feliz expressão cunhada por Marc Bloch 1, os
historiadores costumam se confrontar com a necessidade de empreender e (re)
empreender esforços no sentido de pensar sobre seus instrumentos de trabalho, buscar
novos percursos e perspectivas de análise, ou seja, de atualizarem-se em termos teóricos
e metodológicos. Os eventos em que profissionais da área apresentam e debatem o
resultado de seus trabalhos de investigação costumam ser momentos favorecedores de
tais iniciativas.
O livro que aqui apresentamos está composto, justamente, por um conjunto de
trabalhos inéditos preparados para serem apresentados por ocasião do II Congresso
Internacional de Estudos Históricos Latino-americanos – II CI-EHILA, promovido, com o
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Capes, entre os
dias 13 e 15 de setembro de 2017, pelo corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. As atividades
desenvolvidas como parte do evento constituíram-se em uma continuidade ao I CI-
EHILA2, transcorrido em 2015, mas também estiveram inscritas nas comemorações dos
30 anos do PPGH Unisinos.
Efetivamente, em agosto de 19873 foi instalado o primeiro curso de Pós-Graduação
estrito senso da Universidade, o qual, tem sua qualidade reconhecida pela Capes4 que lhe
confere, desde 2010 a nota 5. Desde sua criação, a área de concentração do PPGH
1 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
2 Para aquela edição, o tema escolhido foi “Literatura, História, Deslocamentos”, o qual esteve relacionado
aos processos de deslocamentos contemporâneos e às discussões teóricas que aproximam diferentes
campos de estudo. Privilegiando abordagens interdisciplinares, nele, foi dada especial ênfase às
experiências migratórias recentes e aos desafios epistemológicos, éticos e políticos que elas propõem para
o campo das ciências humanas e dos estudos literários.
3 O Curso de Doutorado teve início em 1999.
4 Desde 1995 a Capes é a responsável pela avaliação dos cursos de Pós-Graduação no país.
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As páginas que se seguem, representam, pois, uma parte do trabalho realizado por
professores e alunos do Programa de Pós-Gradução em História da Unisinos, mas também
de colegas e parceiros, nacionais e estrangeiros, com os quais dialogamos no propósito de
fazer avançar a produção do conhecimento acadêmico sobre temas da história do
continente latino-americano. Consideramos que a publicaçõ es dos trabalhos que
compõ em esta obra se reveste de importâ ncia na medida em que permite que um pú blico
mais amplo do que aquele que frequentou nosso evento, possa ter contato com artigos
que, em nossa opiniã o, trazem contribuiçõ es relevantes para os debates sobre temas
fundamentais da Histó ria das Amé ricas.
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PARTE 1
A AMÉRICA IBÉRICA NO PRATA: FRONTEIRAS, DISPUTAS E CONEXÕES
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Doutoranda em História [CAPES/PROSUP] pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS. E-mail:
helenizeserres@gmail.com
7 É o caso do reclamo por parte dos yapeyuanos, relativamente a um rebanho de vacas referido por Norberto
Compañía de Jesús.
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de longitud con 1.587 familias, que son 6.400 almas” (PASTELLS, 1912, p. 781). Sua
estância, entretanto, estava localizada no lado esquerdo do rio Uruguai.
O pueblo de La Cruz, segundo o cônego João Pedro Gay (1863, p. 349), foi edificado
pelos jesuítas em 1629, na margem ocidental do rio Uruguai e ao confluente do arroio
Mbororé, umas dezoito léguas ao sul de Santo Tomé. Foi a princípio agregado ao de
Yapeyú, do qual se separou, vindo a se estabelecer definitivamente no lugar hoje ocupado
pela cidade chamada La Cruz, pelo ano de 1657.
A Cruz está collocada sobre uma collina que fazem distinguir de longe
suas altas palmeiras. Sua posição é mui pittoresca. O Uruguay rega os pés
d’esta collina emquanto a antiga Missão corôa a parte superior; d’onde a
vista se estende até a villa de Itaqui, duas leguas acima da Cruz sobre a
margem opposta do rio Uruguay, e d’onde se avistam do lado do Poente
os tres cerros, que se levantam como enormes tumulos ou pequenas
pyramides na planície (GAY, 1863, p. 349).
A pequena expressão demográfica dos pueblos de La Cruz e Yapeyú fez com que os
jesuítas os integrassem, entre os anos de 1651-1657. Esta providência, embora tenha tido
vida efêmera, trouxe motivos para posteriores disputas.
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derecho, y de que legitim.te las posen, para que en ningun tiempo nadie
ler moleste ni inquiete su pacifica posesion digo, y declaro por términos
de la estancia de la outra banda del Uruguay donde tienen sus vacas y se
llama el Ytaqui comenzando el termino de dicha estancia desde la otra
banda del Uruguay corre havia el orientale y llega hasya el A. Ybipira miri,
q.e es el ultimo termino de lo largita, y por un Cierrilo costado desde el B.
Ytaembe q.e es la cabezada del C. Mbututî vine [viene] corriendo siempre
dicho mbutuî por la outra banda hasta entrar al Uruguay dicho Mbutuî,
corriendo al Uruguay arriba hacia de S.to Thomé llega el ultimo termino
de lo Largo, D. al Caai mirî de esta vanda, y corriendo dicho Caai mirî
arriba hasta, E. el Yaqueri y passando dicho Aguapey F. el Yaqueri
saliendo un vaquito del Cupecandu, se va corriendo hacia el Sur desde, G.
el Chaitaqua que es un Caa pau H. y el Yapo catingi, que es un Caa pau
desde donde comienza el pântano grande I. del Guabirabi, y corre hasta
k. el Ararati q.e es un baxo q.e divide las chacras del Yapeiu de las deste
Pueblo, y viene hasta llegar L. al Mbacati q.e es un Arroyo q.e entra al
Uruguay y todas las tierras que caen de esta vanda de dicho Arroyo hasta
el Uruguay son las tierras de este Pueblo menos el xembia ha q. e esto es
de los del Yapeyu, y asi el termino fixo es desde la cavezada del Mbaeati
corriendo entra al Uruguay y pasando [ilegível] um baxio de pantanillo
M. del Pari riti se va corriendo hasta N. el Tembetari vine [viene]
corriendo entrar O. el Ybicuiti corriendo arriba el orrientele [orientale]
hasta P. el Ibiripa guasu, pues y asi ordeno y mando q.e ningun Pueblo, ni
para q.e cuide dele l Ynquiete el domínio y pareciendo dichas tierras aqui
mencionadas dentro de dichos linderos ni pase, ni haga pasar a algun de
su Pueblo a obtener posecion o domínio de dichas tierras contenidas em
dichos términos pues en Justicia se guarden a cada uno indemnes las
tierras q.e poseen, y los derechos con que los porteen, y por que coste
[conste] dói esta firmada de mi nombre. En doze de Julio de mil seis
cientos y ochenta y ocho años en esta Doctrina de la Assunp.on de ñra
Señora del Mborore (Apud: BARCELOS, 2006, p. 459-460).
9 Sobre as datas de fundação de ambas estâncias, não encontramos documentos específicos, mas
presumimos que aconteceram junto às fundações das suas reduções, devido ao fato dos documentos que
tratam das reduções nesses períodos, trazerem informações sobre elas, especialmente ao tratarem dos
litígios de terras.
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argumentos apresentados, depois, pelos “yapeyuanos”, para reaver as terras que haviam
cedido, e a sua desistência deste intento.
Como veremos, no primeiro momento os Superiores tentavam resolver as
querelas, priorizando o “direito antigo” do Pueblo. Porém quando não chegavam a um
acordo, o problema era encaminhado para o Provincial autorizar a nomeação de juízes
para julgar a causa.
10 Grifo no original, porém, aparentemente, os sublinhados desse manuscrito foram feitos depois do
documento, para destacar elementos conforme o leitor desconhecido.
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11O padre Christobal Altamirano nasceu em 1602 em Santa Fé (Argentina) e faleceu em 1698 em Apóstoles
(Misiones). Ingressou na Companhia de Jesus em 1617 no Paraguai e recebeu seus últimos votos em
Concepción, foi nomeado Superior dos guaranis em 1660-65 (STORNI SI, 1980).
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no los inquieten en lo q- tienen dela otra vanda del Uruguay, y asi se haga,
y observe, fecho en la Redu.n de S. Thomé em 23 de Feb.º de 1663
(Compañía Jesús (1676-1702). Archivo General de la Nación (Buenos
Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-4).
O litígio de terras, contudo, não havia encerrado e estava longe de ser resolvido.
Além disso, em 1688 houve outra doação de terra, também realizada pelo Cabildo e
Caciques de Yapeyú para a redução de La Cruz. A terra doada, igualmente a anterior,
estava localizada na margem oriental do Uruguai, e o ato foi oficializado pelo Provincial
Thomas Donvidas12 para ser, depois, anulado pelo Superior Simón de Leon.
As doações realizadas, tal como nos casos aqui apresentados, traziam muitos
problemas, pois podiam ser depois contestadas. Além disso, havia problemas na
certificação das doações, algumas tinham o aval do Provincial, mas não apresentavam a
confirmação do Superior, que por sua vez poderia tornar a doação inválida. Percebe-se
que a falta de aprovação do Superior e ao mesmo tempo a confirmação do Provincial
estava levando a desentendimentos que podem ter sido responsáveis pelo litígio ter se
estendido no tempo.
12O padre Thomas Donvidas nasceu em Arévalo (Avila, Espanha) em 1618 e faleceu em Santiago do Chile
em 1695. Ingressou na Companhia de Jesus em 1635 e chegou no território da Província do Paraguai em
1640. Recebeu um cargo a partir dos 4 votos em 1656 em Asunción, foi nomeado Provincial do Paraguai em
1676-77 e visitador do Chile em 1692-95 (STORNI SI, 1980).
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13 O padre Anselmo de la Mata nasceu em Sevilha em 1658 e faleceu em Candelária em 1732. Destaca-se sua
idade, 38 anos, quando foi nomeado juiz pelo padre Provincial Simón de León para julgar o processo entre
Yapeyú e La Cruz. No documento onde explica a sentença se observa o conjunto das decisões e a conservação
de todos os documentos em um Arquivo (STORNI SI, 1980).
14 O padre Simon de Leon nasceu em Antequera, Espanha em 1630 e faleceu em Santiago do Chile em 1704.
Destaca-se sua idade, 33 anos, quando assumiu seu primeiro cargo em Asunción. Em 1695 foi nomeado
Provincial do Paraguay e em 1700 foi Visitador do Chile (STORNI SI, 1980).
15 Permitia, porém, que renovassem “q. do quisieren un algodonal, y una chacra q - para el P.e q- cuida dela
doctr.ª de la Assump.n se a permitido, conq- no paseen mas la tierra adentro”. O Parecer, datado de 23 de
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necessitava ser revista a partir de vários pontos que apresenta e que, ao final, serão
favoráveis a La Cruz, referida no documento por seu outro nome, Asunpción del M´bororé.
A revisão da suposta concessão por parte dos “yapeyuanos” poderia, de acordo
com ele, ressucitar antigos pleitos, envolvendo vários casos similares entre outras
doutrinas. Anselmo de la Matta sustenta que a desconsideração de doações como aquela
que estava sendo discutida, comportaria um grave risco: “pues ay muchas doctrinas, que
an dado a otras sus tierras, las q- legitimame posseian. Como la Concep.n S. Xavier S.
Miguel S. Nicolas S. Thomé. Yrapua el y otras q- ignoro”. Ainda segundo ele, muitas de tais
concessões eram feitas apenas “de palabra” ou com “algún papel simple q’ hace poca Fe”,
podendo-se com isso abrir-se caminho para um “incendio de pleitos” (Compañía Jesús
(1676-1702). Archivo General de la Nación (Buenos Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-
4)16.
O argumento de que Yapeyu teria sido prejudicada e enfrentava dificuldades por
conta das terras que perdera, haviam sido, na opinião deste julgador, superestimados. Os
problemas naquele momento vivenciados pela missão de los Reyes, decorreriam, no seu
entendimento, mais de uma peste que assolara o povoado e o privara de força de trabalho,
do que necessariamente da falta daquela porção de terra.
Já a justificativa por parte dos defensores da posição de Yapeyú de que a concessão
fora feita em presença de índios do cabildo e caciques, mas não de seu cura, não anulava,
para de la Mata, a cedência, uma vez que o ato envolvera a participação do Provincial
Tomas Donvidas e do Superior Alonso del Castillo, que tinham autoridade suficiente para
representar os moradores daquela missão. Finalmente, o último argumento, desqualifica
rumores de que os índios de Yapeyú haviam sido seduzidos por falsas promessas ou
ameaçados de castigos, caso não concordassem com a concessão de parte da estância que
agora pretendiam reaver.
Por tudo isto, seu parecer foi favorável a La Cruz, mas não encerrou a questão,
havendo ainda uma intervenção final datada de 2 de novembro de 1699, pondo fim ao
fevereiro de 1663, agora referido pelo padre Anselmo, concluía lembrando a “liberalidade” com que os
moradores de Yapeyú haviam cedido terra e gado para os de La Cruz quando eles necessitaram, na época
de criação do referida pueblo.
16 O processo que passamos a analisar trata-se do Parecer del Pe. Anselmo de la Matta de la Compañia de
Jesus sobre el esclarecimto de tierras del Pueblo de Yapeyu en el pleito seguido del de La Cruz, hecho en 13
de noviembre de 1696. Compañía Jesús (1676-1702). Archivo General de la Nación (Buenos Aires). Legajo 2
[409]. Sala IX 6-9-4.
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litígio e afirmando que não aceitaria mais reclamações por parte de Yapeyú. Ordena o
Provincial, que se cumprisse sua determinação, e se retirasse, o mais rápido possível, o
gado que tivesse indevidamente posto na área que a decisão reconhecia como pertencente
à estância de La Cruz.
Podemos assim, a partir deste caso, concluir que, como temos sustentado, as
relações entre as diferentes doutrinas nem sempre transcorriam em regime de
cordialidade e auxílio mútuo, podendo envolver longos conflitos que necessitavam da
intervenção de vários níveis de autoridade, inclusive do próprio Geral da Companhia.
Como vimos, mal-entendidos como o que acabamos de explorar, podiam fazer com que se
voltasse a discutir questões de doações já dadas como encerradas, como o caso de várias
doutrinas que cederam parte de suas terras.
Como foi possível acompanhar no caso acima analisado, um argumento acionado
para sustentar a posição das duas doutrinas litigantes, era o “direito antigo” que teria os
povoados. O tema da posse de terra foi algo complexo nas missões jesuíticas. Uma das
questões envolvidas está relacionada aos pueblos que eram formados por cacicados, ou
seja, parcialidades indígenas diversas ligadas as suas respectivas terras que passavam ao
pueblo que incorporavam. É importante atentar a essa informação, pois é uma das
questões chaves para entender a posse de terras. Norberto Levinton conta que “Yapeyú
se extendía al Norte de la Banda Occidental por lo menos hasta el río Aguapey. Una carta
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del padre Romero destaca la incorporación a Yapeyú del cacique Caarupa originario de
esa zona; su participación en el pueblo sustentó el Derecho Natural al territorio de la
comunidade yapeyuana” (2005, p. 39).
O referido autor sustenta que eram três os elementos que poderiam sustentar a
configuração do território das estâncias. Como pretendemos demonstrar eles acabam por,
de alguma forma, recortar o que a literatura chama igualmente de “espaço missioneiro”.
Os referidos elementos seriam: o uso cotidiano, acordos interéticos e o direito natural
(LEVINTON, 2005, p. 35).
Para Levinton o “uso cotidiano”, trata-se um elemento aplicado a um território
utilizado por diferentes grupos nativos com um fim de sustentação, a partir de um contato
com os missioneiros, mesmo que de forma prévia. Por exemplo, “es posible advertir en
mapas jesuíticos, entre mediados del siglo XVII y mediados del XVIII, los yaros
continuaron con su hábitat reconocidamente ubicado a partir del río Miriñay (límite fijado
por costumbre o acuerdo interétnico) hasta el Sur unto al río Mocoretá” (2005, p.36).
Seguindo a linha de pensamento do autor, o índio conseguia os títulos de suas terras
provando a utilização da mesma durante um longo período. Essa vai ser uma caraterística
presente especialmente em lugares próximos aos pueblos, zonas com algunas léguas de
distancia, em função disso esses territórios funcionaram como um acesso vigiado, com
objetivo de controlar a circulação de pessoas.
No segundo elemento, “acuerdo interétnico”, Levinton refere-se a relação
interétnica mantida pelos guaranis e charruas na região da Banda Oriental. Ele apresentou
vários documentos que trazem exemplos desse relação que ocorreu especialmente
através de parentesco e, a partir disso, permitiu até meados do século XVII o uso do
território nessa região.
E finalmente o “derecho natural”, que nada mais é do que algo relacionado ao bom
senso, ou seja, o direito do índio de conservar o lugar onde vive. Levinton explica que os
jesuitas ao longo das missões sustentam suas decisões no direito natural, porém, em meio
aos litigios de terra entre os pueblos, esse direito vai impor uma nova condição baseada
no direito de possidetis, no caso, fazer jus do território.
Trata-se de uma execessão a regra que possibilitou a condição a terra. Trazendo
essa discussão para o processo que estamos analisando. É unânime a decisão entre os
padres que a determinação fundada no Direito Natural não deveria ser discutida, “[...]
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como no haya otro mejor ni más bien fundado derecho...” (Compañía Jesús (1676-1702).
Archivo General de la Nación (Buenos Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-4), salvo por
algumas exceções, como no caso que o padre Anselmo de la Matta esclarece na
documentação acima analisada. Isto é, pelo direito antigo, as terras pertenceriam aos
yapeyuanos. Entretanto, não foi isto que prevaleceu. Nesse sentido, seguimos a ideia de
Levinton “independentemente de la evaluación del resultado, es destacable el análisis de
los hechos por los missioneiros. Demonstraron un gran respeto por los derechos y los
deberes de los indígenas. Sus opiniones se sustentaron en el Derecho Natural y en Derecho
Positivo” (2005, p.40).
Com isso, percebe-se os acordos firmados, entre os jesuítas e índios missioneiros,
em situações que mostram claramente os conflitos internos entre os pueblos momento em
que os padres buscam reestabelecer o equilíbrio e finalmente a consciência histórica de
posse pelo território que esteve presente durante todo o tempo. Apesar de haver,
portanto, critérios para reconhecimento de direitos, e processos que procuraram dirimir
dúvidas, os problemas transcorridos ainda podiam permanecer mesmo após a expulsão
dos jesuítas decretada em 1767, motivo pelo qual transformou-se grandemente a
administração dos povoados.
Referências bibliográficas:
BARCELOS, Artur H.F. Espaço & Arqueologia nas missões jesuíticas: o caso de São João
Batista. Porto Alegre, Edipucrs, 2000.
KERN, Arno Alvarez. Missões. Uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
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LEVINTON, Norberto. Las estancias de Nuestra Señora de los Reyes de Yapeyú: tenencia
de la tierra por uso cotidiano, acuerdo interétnico y derecho natural (Misiones jesuíticas
del Paraguay). Revista Complutense de Historia de América, vol. 31, p. 33-51, 2005.
MAEDER, Ernesto; GUTIERREZ, Ramón. Atlas territorial y urbano de las misiones jesuiticas
de guaraníes. Argentina, Paraguay y Brasil. Sevilla: Instituto Andaluz del Património
Historico, 2009.
MARTINS, Maria Cristina Bohn. Sobre festas e celebrações: as reduções do Paraguai (século
XVII e XVIII). Porto Alegre: ANPUH, 2006.
Fonte
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Tuani de Cristo
Luís Fernando da Silva Laroque
Introdução
O estudo insere-se nos Projeto de Pesquisa “Arqueologia, História Ambiental e Etnohistória do RS” e
“Identidades étnicas em espaços territoriais da Bacia Hidrográfica do Taquari-Antas/RS: história,
movimentações e desdobramentos socioambientais” do PPG em Ambiente e Desenvolvimento da
Universidade do Vale do Taquari – Univates e conta com auxílio financeiro da Fapergs e CNPq.
Graduada em Licenciatura em História, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e
Desenvolvimento (Bolsista PROSUC/CAPES), Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES. E-mail:
tuanidecristo@gmail.com
Doutor em História, professor do Curso de Licenciatura em História e no Programa de Pós-Graduação em
Ambiente e Desenvolvimentos, Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES. E-mail:
lflaroque@univates.br
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No século XVII após invasões dos bandeirantes nas reduções situadas nas
províncias administrativas do Guairá e do Itatin, os jesuítas iniciam a busca por novos
territórios, expandindo-se para as Províncias do Uruguai e do Tape no atual estado do Rio
Grande do Sul. Para se estabelecer e fundar reduções jesuíticas, os missionários
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Figura 1 - Mapa das reduções jesuíticas localizadas nas proximidades do rio Pardo e do Jacuí,
século XVII.
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Este foi um dos motivos que gerou uma situação de conflito entre lideranças
espirituais e missionários na redução de Jesus Maria. No ano de 1635 o padre Taño ao
chegar em Jesus Maria se espanta com o abandono de diversas moradias, roças e oficinas
situadas no local (CARTA, Ânua de 1635 In: CORTESÃO, 1969). Ao questionar o que havia
ocorrido para alguns Guarani ainda presentes na redução, estes lhes informam que alguns
yeroquiharas haviam realizado ameaças aos Guarani reduzidos.
Conforme descrição do padre Taño estes yeroquiharas haviam rido dos
ensinamentos dos padres, afirmavam ainda que eram deuses e senhores dos espíritos das
montanhas Itaquiçeyas e Ybitipos17. Estes afirmaram que por serem deuses possuíam o
poder de criar as roças de milho e outros alimentos (CARTA, Ânua de 1635 In: CORTESÃO,
1969).
Após estas ameaças aos Guarani que faziam parte da redução, ocorreu um ataque
de ratões (Myocastor coypus) as roças de Jesus Maria as destruindo. Os yeroquiharas em
questão haviam assumido o ataque, afirmando que foram eles os mandantes da investida
o que teria assustado muitos destes Guarani que decidiram abandonar a redução e
retornar para os seus antigos territórios (CARTA, Ânua de 1635 In: CORTESÃO, 1969).
Ao saber da situação o padre Taño compreende que era necessário “desconstruir”
estes “feiticeiros mentirosos” e para isso, reúne alguns caciques e capitães da redução de
Jesus Maria para exigir que estes capturassem os responsáveis pelo ataque que estavam
estabelecidos em territórios próximos a redução. O líder do conflito teria sido um indígena
chamado Ybapiri que afirmava “[...] q el avia muerto antiguamente y avia buelto a vivir y
para esto tomo el nombre de um hechiçero q V.R. fue a coger al ygayriapipe llamado
ybapiri” (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO, 1969, p. 107).
O grupo liderado pelos caciques e capitães de Jesus Maria foram em busca desta
“junta de feiticeiros”, pois na lógica cristã do padre Taño era necessário capturá-los e
“desconstruí-los” frente aos indígenas da redução, demonstrando o quanto eles eram
“mentirosos” demonstrando que os indígenas não deveriam teme-los e nem mesmo
abandonar as reduções.
[...] y a la mañana les veo venir cargados de flechas y arcos y porras
diçiendo q iban por el hechiçero. alabeles el animo. fueron e cogieron três
17 Por falta de maiores informações não temos a localização desses locais mencionados.
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Contudo, Ybapiri acabou fugindo, mas um dos seus aliados fora capturado e
passara por intensas provocações dos indígenas da redução para que demonstrassem o
seu poder.
[...] a todos los truxeron los índios bien açotados y manietados y aqui em
el pueblo hicieron burla dellos, los muchachos llenaron de todo con q le
vinieron a perder el miedo, diçiendo q hiçiesen venir alli los yaguareces y
los y itaquiçeyas y los ybitipos [...](CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO,
1969, p. 107).
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O relato de padre Taño não termina com a captura dos aliados de Ybapiri, neste
meio tempo, chegam notícias de que este grupo de “feiticeiros” estaria nas redondezas e
continuava “atemorizando” as comunidades Guarani locais. O Capitão Antoni se oferece
para ir até estas aldeias e tentar recolher informações sobre o local onde este grupo
estaria estabelecido. Contudo o Antoni descobre que este grupo era formado por “[...] una
junta de bellacos comedores de carne humana [...]” (CARTA, Ânua de 1635c In:
CORTESÃO, 1969, p. 107).
As informações fazem alusão de que o grupo era liderado por poderosas
lideranças espirituais, Chemboabaete, seu filho Yeguacaporu e o irmão do primeiro,
Yguarobi. Estes teriam uma aliança com os portugueses e teriam sido os verdadeiros
mandantes do ataque ocorrido a redução de Jesus Maria, enviando os Yeroquiharas. Estas
três lideranças haviam se reunido com um “lunático comedor de carne humana”, Apiçayre,
conforme descrito por padre Taño (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO, 1969). O grupo
havia se estabelecido em território do Tayaçuapé que conforme descrição de Porto (1954)
seria uma área situada entre o rio Pardinho e o Arroio Sampaio, ou seja, territórios
próximos das reduções do rio Pardo, Jesus Maria, San Cristóbal e San Joaquín.
Com o objetivo de capturar estes “rebeldes” os padres reúnem um “exército” de
Guarani totalizando 1000 guerreiros, abarcando índios das reduções de Jesus Maria, San
Cristóbal, San Joaquin e Santa Ana (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO, 1969).
Enquanto a força bélica se organizava um dos Caciques de Jesus Maria capturou mais um
aliado de Chemboabaete e companhia, este feito de prisioneiro ao ser interrogado
afirmava ser o filho do Sol, portanto um Deus.
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maior poder de comunicação com o mundo não humano. Além disso, estes andavam por
diversas aldeias, de distintas etnias, mesmo inimigos e possuíam grande influência entre
todos.
Vainfas (1995) realizou pesquisas sobre o movimento dos Caraíbas Tupi em
territórios do atual estado da Bahia no período colonial demonstrando como estas
lideranças/profetas indígenas movimentavam-se entre as aldeias indígenas incitando a
luta contra os ensinamentos portugueses, seja em questões referentes ao cristianismo
quanto às questões dos trabalhos forçados nas lavouras portuguesas. Realizando uma
analogia com estas lideranças Guarani em análise que se movimentavam entre as aldeias
e reduções afirmando que os ensinamentos dos jesuítas eram contrários a cultura
Guarani, podemos inferir que alguns deles fossem Caraíbas.
Nesta perspectiva compreendemos que estas relações entre Guarani e jesuítas,
Caraíbas e jesuítas formaram fronteiras culturais que geravam conflitos. Os jesuítas
enxergavam os indígenas como “selvagens” que deveriam ser “civilizados” para viver
conforme a lógica do cristianismo. As reduções eram uma dos mecanismos utilizados para
tentar realizar “transformação”, entretanto, mesmo que algumas parcialidades indígenas
tenham aceitado estabelecer estas alianças com os padres e fazer parte destas missões, os
Guarani possuíam sua própria lógica cultural, consequentemente esta “salvação” não
ocorreria, ao menos não como o esperado.
Esta ideia do “bárbaro”/”selvagem” está presente em diversas cartas ânuas
escritas pelos jesuítas, principalmente quando referiam-se a estas lideranças, Caraíbas ou
Pajés, traduzindo para os seus superiores a justificativa para o trabalho da Companhia de
Jesus, conforme Fontana (2005) o europeu ao enxergar no “outro” o “diferente” precisa
combatê-lo, desconstruí-lo. Esta premissa torna-se visível neste fato analisado, os
indígenas que lutam contra a presença dos padres, afirmando serem deuses, comunicar-
se com o mundo não humano, necessariamente é o “diferente”, contrário a lógica cristã.
Desta forma, o padre Taño precisa “desconstruir”/”desmentir” estes “rebeldes
infiéis”, pois além de serem contrários a lógica cristã, também eram uma ameaça aos
jesuítas, pois eram lideranças que ocupavam exatamente o mesmo posto social que os
missionários, ou seja, há uma disputa de poder, ambos precisam comprovar quem está
correto. Evidencia-se isto tanto na captura dos indígenas e a provocação para que eles se
transformassem em deuses ou em jaguares, quanto a demonstração de poder, na
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perspectiva dos Caraíbas, ao afirmarem ter comandado o ataque dos ratões do mato
(Myocastor coypus) as roças de Jesus Maria.
Conforme Hartog (1999) o surgimento de uma fronteira cultural ocorre a partir
do momento que a e b entram em contato, estabelecendo um limite de interpretação
cultural entre ambos os grupos, isto é, as lógicas culturais se chocam formulando
interpretações distintas de uma mesma situação por ambas as culturas. Diversas
situações descritas nas Cartas Ânuas nos parecem formar estas fronteiras culturais, por
exemplo, ao retirar Aguaraguaçu do posto de Capitão, o padre responsável não estava
avaliando lógica cultural do prestígio de uma liderança e como ela é escolhida, apenas
interpreta o seu lado, isto é, possivelmente alguma “falta” cometida pelo indígena
contrária à lógica da redução.
Quando o padre Taño afirma que estes Caraíbas eram “feiticeiros” está
interpretando as ações destas lideranças através da lógica europeia, necessitando assim
capturá-los e colocá-los frente a um “tribunal” para que comprovassem os seus poderes.
Há ainda a referência a eles como “comedores de carne humana”, outro ponto não aceito
pelos europeus, pois em sua concepção cultural ingerir carne humana era um ato
impiedoso, contudo fazia parte das diversas culturas indígenas existentes na América.
Portanto, compreendemos que é possível afirmar que houve o estabelecimento de
fronteiras culturais entre jesuítas e indígenas.
Considerações finais
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negociações com os jesuítas, seja ao firmar alianças, quanto ao declarar guerra aos
ensinamentos cristãos. Mesmo que a proposta do simpósio temático, ao qual
participamos, tenha se fundamentado mais em uma relação de fronteira espacial,
tentamos demonstrar a fronteira cultural que também pode vir a se tornar uma fronteira
territorial e/ou interétnica. Neste sentido, procuramos avançar em estudos futuros para
estar analisando estas possibilidades.
Referências
CARTA, Ânua de 1635. Carta do Padre Francisco Dias Taño para o superior do Tape,
dando-lhe conta do estado das respectivas reduções. In: CORTESÃO, Jaime (Ed).
Manuscritos da coleção de Angelis (jesuítas e bandeirantes...). v. III. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 1969, p. 105-113.
FONTANA, Josep. O Espelho selvagem. In: ______. A Europa diante do espelho. Bauru, SP:
Edusc, 2005. p. 105-117.
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PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais e do Uruguai. Porto Alegre: Livraria
Selbach, 1954.
ROGGE, Jairo Henrique. Fenômenos de fronteira: um estudo das situações de contato entre
os portadores das tradições cerâmicas pré-históricas no Rio Grande do Sul. 241 f. Tese
(Doutorado) – Curso Doutorado em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS), São Leopoldo, 2004.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Mestrando em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS/CNPq.
18 Na “pesquisa de campo” em si foram realizadas consultas, também, em outras instituições de caráter
arquivístico e público, bem como a busca de bibliografia inexistente no mercado editorial brasileiro.
19 Para ser mais exato, a pesquisa poderia ser dividida em dois momentos. Primeiramente, quando através
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20 Este tipo de aprisionamento não é nenhuma novidade na historiografia platina. Até o momento, ignoro a
produção histórica referente aos temas que envolvem a observação de cativos criollos e indígenas que tenha
esclarecido sua abrangência e delimitações jurídicas.
21 Não se trata de afirmar a existência de uma coerência estrutural do sistema jurídico colonial, e sim a
presença de aparentes contraditoriedades, que serão abordadas em momento oportuno. Pode-se adiantar
que estas “inexplicações”, por assim dizer, são os instrumentos operacionais para pensar as práticas de
justiça no período e espaço abordado.
22 Comunicado de 21/01/1778. Arquivo General de la Nación (AGN), Sala IX, 1840 (21-2-5).
23 Comunicado de 02/01/1778. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
24 Comunicado de 09/03/1778. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
25 Comunicado de 09/04/1778. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
26 Comunicado de 25/01/1778. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
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transcrição alcançou apenas a Agustina San Martin27; e, junto à esta, há também o nome
de Nicolasa de el Castillo, depositada “por demente, y [para] evitar que handuviesse
perdida por las calles”28.
Também não é novidade que para este estabelecimento foram remetidas um sem
número de mulheres indígenas. Susana Aguirre (2006) ao propor a busca pelos cativos
aborígenes29 afirmou, inclusive, que na Casa de Reclusão “las epidemias de viruelas eran
frecuentes y producían estragos entre los prisioneros”. Até o momento30, a assertiva se
confirma através de cinco casos de índias pampas que morreram na instituição, sendo três
em dezembro de 177731 e as outras duas em janeiro de 177832 (destas, quatro receberam
os sacramentos do batismo e a extrema unção). Aguirre (2006) também apontou que as
índias cativas realizavam suas fugas quando “salían a lavar al río, situación que era
aprovechada en algunos casos para no regressar”. E sobre isto, Silvia Ratto (2010, p.48)
agregou que as índias “aprovechaban la oportunidad cuando salían de la Casa a hacer sus
compras en las pulperías”.
Poderíamos dizer que todas as mulheres destinadas à Casa de Residência foram
“depositadas”, se não fossem os casos de Maria Castillo33 e Narieta Lemu34;
respectivamente condenadas a quatro e dois anos de reclusão na dita Casa. E ali, havia não
apenas as índias pampas, mas várias outras “chinas tapes”35 também foram identificadas.
No entanto, também encontramos diversas crianças nativas de ambos os sexos, e,
inclusive, homens, como demonstra a Relación que manifiesta las Indias e Indios Pampas
27 DE ACOSTA, José Antônio. [27/07/1785] Razón individual de las Mugeres que actualmente existen en la
Casa de Recogidas de esta capital. Con especificacion de el estado de cada uma, calidad, edad, dia y año en que
se entraron, por quien fueron puestas y su proceder en dha Casa. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
28 Idem.
29 As pesquisas que envolvem o tema do rapto, até então – e ainda hoje, têm abordado a questão como uma
prática unilateral; isto é, alienavam os índios quando na condição de cativos, tratando-os apenas em seus
papéis de raptores.
30 O processo de transcrição das fontes ainda se encontra em fase inicial. No entanto, cabe destacar que a
busca se deu pela qualidade do conteúdo dos documentos em detrimento da quantidade. Em especial, foram
fotografados todos os casos de indígenas. As demais entradas e saídas foram obtidas à fim de refletir sobre
o papel da instituição.
31 Comunicados de (09/12/1777; 14/12/1777; 20/12/1777). AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
32 Comunicados de (13/01/1778; 18/01/1778). AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
33 Comunicado de 03/07/1789. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
34 Idem.
35 Comunicados de (03/04/1778; 25/03/1778; 02/02/1778; 17/03/1778). AGN, Sala IX, 21-2-5.
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que se hallan existentes en la Casa de la Residencia36, mas também outros, como se vê, por
exemplo, o caso de Domingo Perez, instalado como “demente”37.
Sendo assim, a Casa de la Residencia abrigava membros de populações nativas
quando aprisionados durante as incursões espanholas aos territórios aborígenes, pessoas
com problemas mentais, ex-escravas, mulheres negras livres e outras tidas por “de vida
escandalosa”, além de detentos sentenciados pelos órgãos de Justiça, como as recém
mencionada Maria Castillo, Narieta Lemu, o desterrado Joseph Norberto Benitez que
“desertó de la Casa de Residencia en 3 de Abril”38 de 1786, e Francisco Martinez que por
haver fugido da dita Casa “se ha puesto otro en su lugar”39.
Por ora, percebe-se, então, que a instituição estava, em geral, voltada a receber as
pessoas indesejadas; ou talvez seja melhor pensar, indivíduos cujos comportamentos
destoavam do esperado pela sociedade bonaerense, como as mulheres tidas por imorais,
os “dementes”, e os índios. No entanto, qual a lógica que explica, que para a dita Casa,
estariam enviando também indivíduos condenados judicialmente? E, além disso,
misturando homens, mulheres e crianças? Cabe ressaltar, que quando se tratava de
hispano-criollos, estes eram oriundos dos setores menos favorecidos economicamente –
dada a ausência do qualificativo Don e Doña - nos registros de seus ingressos, uma vez
que era praxe evocar tais distinções quando elas existiam (DE PALMA, 2009, p. 42).
Ao deslocarmos a ênfase para os detidos no Real Presidio de la Barranca, como era
de se esperar, identificamos que, além da presença de hispano-criollos40 cumprindo suas
sentenças, “Ha venido prezo a este Presidio de Orden del Ex.mo Sor Gen.l vn Indio Pampa41.
Porém, encontramos, também, vários outros nativos de distintas parcialidades como
Melchortatayandy42, oriundo do Pueblo de San Borja; um outro índio chamado Patrício43
– ao qual não há menção de sua origem; “vn Indio tape llamado Ciranto”44 e outro tape
36 DE ACOSTA, José Antonio. [19/07/1785]. Relacion que manifiesta las Indias e Indios pampas que se hallan
existentes en la Casa de la Residencia con especificacion de el numero de las antiguas, y de las que han entrado
en tiempos de el actual. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
37 Comunicado de 09/12/1788. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
38 Comunicado de 14/06/1786. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
39 Comunicado de 18/08/1786. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
40 Comunicado de 05/03/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
41 Comunicado de 19/11/1768. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
42 Comunicado de 11/10/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
43 Comunicado de 17/06/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
44 Comunicado de 03/06/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
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evidências e testemunhos relacionados ao delito em questão. Ver mais em: BARRENECHE, Osvaldo. Dentro
de la Ley, TODO. La justicia criminal de Buenos Aires en la etapa formativa del sistema penal moderno de la
Argentina. La Plata: Ediciones Al Margen. 2001, p. 62-72.
49 TORRES. [-/-/1785]. Diferentes Providencias tomadas contra distintos indivíduos, que por sus excesos
remitió à esta superioridade desde las Conchas el capitan de milícias Don Bernardo Miranda y han passado
para su cumplimiento al Ingeniero Extraordinario Don Joaquin Antônio Mosquera. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-
6).
50 MOSQUERA, Joaquin Antonio. [01/01/1786]. Reparto y distribuicion de los sessenta y cinco indivíduos de
que consta el Real Presidio de esta Capital. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
51 ANÔNIMO. [26/10/1776]. Relación de los índios infieles que se han remitido a la Plaza de Montevideo, índias
que se hallan en la Casa de la Residencia, y párbulos que se han distribuído. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
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demais instituições de Justiça que estamos examinando. Salienta-se que, fossem estas
pessoas julgadas ou condenadas, espanhóis, criollos, mestiços ou nativos, a aplicação da
pena – por ora, isentando a questão do castigo físico – era no mínimo semelhante para
todos os casos.
Desta forma, compreender os mecanismos de subordinação e dessocialização a
que foram submetidos os cativos indígenas – mais precisamente os oriundos das regiões
pampeana e bonaerense – requer conhecer as práticas de encarceramento que a
sociedade hispano-criolla dedicou aos seus próprios membros, uma vez que – ainda que
seja aparentemente – os aprisionados compartilhavam as mesmas instalações
carcerárias, sendo, inclusive, destinados aos mesmos locais para a realização de forçadas
atividades laborais como cumprimento de pena. Sendo assim, cabe indagarmos quais os
meios legais dispunham as autoridades hispano-criollas, no período, para realizarem a
punição e/ou correção daqueles que eram considerados transgressores.
Vimos que na documentação decorrente das comunicações internas do Real
Presídio de La Barranca e da Casa de la Residencia pôde-se constatar os dois tipos de
ingressos. O que diferenciava estas duas modalidades de encarceramento, uma vez que,
aparentemente, eram aplicadas indistintamente à indivíduos variados? Possivelmente,
uma boa parcela dos depositados estava a aguardar o deferimento dos órgãos
competentes até que se realizassem os trâmites processuais e possíveis sentenças. Se sim,
explicaria o porquê de, até agora, todos os relacionados ao Real Cárcel serem listados
apenas como depositados.
No entanto, por que pessoas que os tribunais julgaram criminosos eram alocadas
junto àquelas que foram depositadas sem terem cometido crime algum? A quem as
autoridades bonaerenses podiam depositar? E por que haviam depositados e condenados
a compartilhar não só a Casa de Residencia, mas também o Real Presidio? A julgar pelas
fontes examinadas, em um primeiro momento, temos a impressão de que as instalações
penais ou eram insuficientes diante do alto número de indivíduos considerados
transgressores, e, por isso, se misturavam pessoas de todas as estirpes, sexo e idade; ou
que as autoridades responsáveis pela Lei exageravam demasiadamente no cumprimento
de suas funções ao atuarem abusivamente no interesse da ordem, efetuando prisões, que
ao meu ver, buscava impor um controle social dos espaços públicos marginalizando
hábitos, conforme a condição étnica e/ou social dos indivíduos que ali se encontravam.
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Fontes históricas
DE ACOSTA, José Antonio. [19/07/1785]. Relacion que manifiesta las Indias e Indios pampas que
se hallan existentes en la Casa de la Residencia con especificacion de el numero de las antiguas, y de
las que han entrado en tiempos de el actual. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
DE ACOSTA, José Antônio. [27/07/1785] Razón individual de las Mugeres que actualmente existen
en la Casa de Recogidas de esta capital. Con especificacion de el estado de cada uma, calidad, edad,
dia y año en que se entraron, por quien fueron puestas y su proceder en dha Casa. AGN, Sala IX, 1840
(21-2-5).
TORRES. [-/-/1785]. Diferentes Providencias tomadas contra distintos indivíduos, que por sus
excesos remitió à esta superioridade desde las Conchas el capitan de milícias Don Bernardo Miranda
y han passado para su cumplimiento al Ingeniero Extraordinario Don Joaquin Antônio Mosquera.
AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Referências bibliográficas
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BARRENECHE, Osvaldo. Dentro de la Ley, TODO. La justicia criminal de Buenos Aires en la etapa
formativa del sistema penal moderno de la Argentina. La Plata: Ediciones Al Margen. 2001.
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Maira Damasceno
Licenciada em História e mestranda em Ciências Sociais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
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O que demonstra bem que historiadores têm se comprometido com novas bases e
vêm reescrevendo histórias a partir de novas perspectivas, teorias e metodologias. O
problema, porém, é que estes estudos ainda ficam restritos aos Programas de Pós
Graduação e com menor foco nas Graduações, quase não chegando às escolas básicas e
não fazendo parte das narrativas “oficiais” difundidas por secretarias de educação, cultura
e prefeituras, causando além de disputas historiográficas entre esses antigos
enquadramentos eurocêntricos e os novos conhecimentos realizados de forma mais
plural, sentimentos de engodo quando outras possibilidades discursivas são colocadas à
luz. Um bom exemplo é a narrativa oficial do Estado do Rio Grande do Sul. Desde os anos
pré escolares os sul riograndenses são treinados a aprender sobre a Revolução
Farroupilha (1835-1845), seus heróis, sua pretensa superioridade moral frente ao
opressor e escravagista Império brasileiro, seu hino, etc. Adicionada a essa narrativa, anos
mais tarde, outra de cunho essencialista. Nos anos de 1960 alguns estudantes da fronteira
do Estado, alocados em Porto Alegre, inauguram o “Movimento Tradicionalista Gaúcho”,
que adotado pelo Estado e mídias, fundiu-se com a narrativa dos Farroupilhas, criando
uma coesão enquadrada para a História do Estado. O problema está, quando as pessoas
descobrem que esta é uma narrativa única e positivada que somente leva em consideração
uma pequena parte dos acontecimentos, uma identidade construída e fixada por uma
pequena parcela da população criando, muitas vezes, falas ressentidas como a deste
universitário:
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20 de setembro
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tem entre seus conteúdos os estudos regionais, muitas vezes desconectados de seus
contextos e sem acesso de pesquisas recentes sobre as temáticas que não são oficializadas.
Acredita-se que uma perspectiva plural para o ensino de história em áreas de
fronteiras interculturais seja possível através de outros protagonismos, novos
reconhecimentos oficiais e produções historiográficas. Já há diverso e farto material
produzido sobre as trajetórias de grupos invisibilizados historicamente, é preciso
trabalhar em conjunto com estruturas e escolas para divulgar de maneira equilibrada
todas as referências disponíveis.
Referências bibliográficas:
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Cidadania?. Porto Alegre: ANPUH, Ed. UISINOS, 1997. 308p.
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Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia
Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007
MARCOLIN, Monique. Desfile Farroupilha leva tradição ao Centro de São Leopoldo. On Line.
20 de setembro 2017. Disponível em:
http://www.saoleopoldo.rs.gov.br/?titulo=&template=conteudo&categoria=&codigoCat
egoria=&idConteudo=&idNoticia=18952&tipoConteudo=INCLUDE_MOSTRA_NOTICIAS
acesso em setembro de 2017
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QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, S.;
GROSFOGUEL, R. (ed.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más
allá del capitalismo global. Bogotá: Iesco-Pensar-Siglo del Hombre Editores, 2007. pp. 93-
126.
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Mestranda em História Regional pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo
Fundo, sob orientação do professor Dr. Alessandro Batistella. Esta pesquisa conta com o apoio do Programa
de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Particulares (PROSUC) da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), assim como com o auxílio da Universidade de
Passo Fundo.
52 Segundo a classificação criada por Arno e Maria José Wehling (2004, p. 37 – 42), a justiça da Coroa esteve
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Por mapa de Antonio Igacio Rodriguez de Cordova (1780), referente ao Continente do Rio Grande, ou
Capitania do Rio Grande de São Pedro, observamos representados os territórios pertencentes à vila do Rio
Grande, em aguada amarela, e à freguesia do Rio Pardo, em aguada azul. É perceptível, primeiramente, a
grande extensão pertencentes às vila e freguesia em questão, bem como estes dois locais caracterizam-se
como fronteira com os domínios espanhóis. Autor: CORDOVA, Antonio Igacio Rodriguez de. Planta do
Continente do Rio Grande. 1780. Disponível em: IHGRS. Capítulo III – Mapas do Rio Grande do Sul. Disponível
em: < http://www.ihgrgs.org.br/mapoteca/cd_mapas_rs/CD/imagens/mapas/cap_3/604-348.htm>.
Acesso em: 17 set. 2017.
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Contudo, destaca-se que não se constituir como uma faixa de exclusão não significa
a existência de uma fluidez completa; ou a fronteira perderia sua razão de ser. Para
Mariana Flores da Cunha Thompson Flores, o limite não era uma barreira instransponível,
mas o horizonte de expectativas disponível aos atores e as estratégias que eles podiam
adotar eram dimensionadas pela ação do Estado (THOMPSON FLORES, 2004, p. 78).
Embora não se possa falar em limites nacionais, pode-se dizer que mesmo no período
colonial os limites delimitavam domínios imperiais distintos. Nesse sentido, o contato
refere-se às relações entre sujeitos fronteiriços, e a separação fica a cargo, principalmente,
da atuação institucional (THOMPSON FLORES, 2014, p. 80).
A realização da justiça pelos comandos militares fronteiriços provavelmente está
relacionada à posição social privilegiada desses. Devido à defesa territorial, tornaram-se
protagonistas político-econômicos e mediadores das relações entre a sociedade e a
guerra. Nota-se que o protagonismo dos comandos militares está associado à própria
constituição do espaço fronteiriço. Segundo Luis Augusto Farinatti:
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53 Uma lista completa de atribuições dos juízes ordinários relativas aos assuntos judiciais é elencada por
Graça Salgado (1985, p. 360) na obra Fiscais e Meirinhos: proceder contra os que cometem crimes no termo
de sua jurisdição; dar audiência nos conselhos, vilas e lugares de sua jurisdição; ordenar aos alcaides que
tratam os presos às audiências e passar mandado de pressão ou de soltura, de acordo com seu julgamento;
impedir que as autoridades eclesiásticas desrespeitem as jurisdições da Coroa; conhecer dos feitos crimes
cometidos por escravos, cristãos ou mouros, até a quantia de quatrocentos réis, despachando, sem apelação
e agravo, com os vereadores; conhecer dos feitos das injúrias verbais e despachá-los com os vereadores na
primeira reunião da Câmara; nas sentenças até seis mil-réis, dar execução sem apelação e agravo; conhecer
dos feitos das injúrias verbais feitas a pessoas consideradas de ‘maior qualidade’, suas mulheres e oficiais
da Justiça, despachando-os por si só e dando apelação e agravo às partes; tirar, por si só, devassas
(particulares) sobre mortes, violentação de mulheres, incêndios, fuga de presos, destruição de cadeias,
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justiça a nível de primeira instância no Continente de São Pedro, mesmo pela falta de
juízes de fora. A instância superior estava fora do limite sul-rio-grandense, pois o ouvidor
residia na vila do Desterro e fazia correições esporádicas. A justiça recursal estava na
distante Relação do Rio de Janeiro. É de se notar que os pleitos e recursos demandavam
despesas que não estavam ao alcance dos pobres, limitando esses pedidos às partes
abastadas da sociedade.
Acontece que, o aparato judicial a nível de primeira instância dava-se apenas nos
quadros da câmara e, portanto, aonde havia vila. Salienta-se que, entre 1751 e 1809,
somente uma câmara atuou sobre o território do Rio Grande de São Pedro, a da vila de
mesmo nome. A câmara encontrava-se em Porto Alegre, estando, então, deslocada da sede
de sua vila. Com o advento da invasão espanhola, em 1763, as justiças municipais
refugiaram-se juntamente com o restante do aparelho administrativo na povoação de
Viamão e a partir de 1773 em Porto Alegre. Então, esta última acolheu a Câmara mesmo
que não gozasse do estatuto de vila, sendo somente uma freguesia (COMISSOLI, 2011, p.
67).
A insuficiência de agentes dos quadros judiciais da Coroa Portuguesa é evidenciada
na correspondência expedida pelos governadores do Rio Grande de São Pedro e pela
câmara de Porto Alegre, dentre pelo menos os anos de 1791 a 1807. Essa correspondência
versa sobre o inapropriado aparelho judicial e a intenção de melhorias na justiça da
capitania do Rio Grande de São Pedro, a partir da vinda de juízes de fora (magistrados
profissionais nomeados por provisão régia), visto que os juízes ordinários eram leigos
(AHU-RS, cx. 3, doc. 252; AHU-RS, cx. 4, D. 356; AHU-RS, Cx. 6, D. 428; AHU-RS, Cx. 7, D.
484).
Essa situação explica-se, segundo Nuno Camarinhas (2016, p. 85), porque a malha
judicial da Coroa Portuguesa, sobretudo ao nível das instâncias locais, constituía-se
incipiente e muito restrita a regiões consideradas estratégicas do ponto de vista
administrativo. Por isso, o aparelho de administração judicial da Coroa, além de ser
composto pela magistratura e por uma série de judicaturas não letradas (ditas
moeda falsa, resistência, ofensa de justiça, etc.; tirar inquirições e devassas (gerais) dos juízes que o
antecederam, assim como as de todos os oficiais da Justiça, vereadores, etc; participar da escolha do juiz de
vintena; conhecer de ações novas no seu termo (município), dando apelação para o ouvidor da capitania,
nas quantias estipuladas nas Ordenações; executar as penas pecuniárias aplicadas pelo sargento-mor da
comarca aos oficiais da ordenança que faltarem com suas obrigações de posto.
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Mesmo gozando de estatuto de Vila, Rio Grande não tinha casa de cadeia, informação evidenciada em
ofício de Rafael Pinto Bandeira: “Neste Continente não há senão a Vila do Rio Grande, donde não há vestígios
de haver Cadeia, nem Pelourinho, por os Espanhóis derrubarem no tempo que possuíram este lugar”. AHU-
RS. Ofício do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira a Martinho de Melo e Castro, 29 de fevereiro de 1791, cx. 3,
doc. 252.
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55 Na época, paisano era uma espécie de camponês, um trabalhador com residência fixa que, por vezes,
tinha sua própria terra. A palavra “paisano” apresenta igual conotação em espanhol, francês e italiano.
56 Neste trabalho é utilizada a designação <preto> durante a análise, por tratar-se de uma categorização
social e racial presente, respectivamente, nas fontes e nas concepções do período. A utilização do termo não
é um julgamento pejorativo em relação ao fenótipo de pele escura, mas uma forma de explicitar as
compreensões dos agentes históricos. Não estão inclusos nas porcentagens os negros levados ao calabouço
por seus senhores, para receberem <pequenas correções>, os quais são indicados na relação de presos de
01 de maio de 1810 (AHRS, maço 16, doc. 494).
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Referências documentais:
Relação de presos anexa à correspondência do major Manoel José Soares Barbosa Dantas Brandão
a D. Diogo de Souza, 1 de janeiro de 1810, maço 18, doc. 865.
Relação de presos anexa à correspondência do tenente Coronel Felix José de Mattos Pereira de
Castro a Diogo de Souza, 9 de abril de 1810, maço 16, doc. 491.
Relação de presos anexa à correspondência do tenente Coronel Felix José de Mattos Pereira de
Castro a Diogo de Souza, 1 de maio de 1810, maço 16, doc. 494.
Ofício do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira a Martinho de Melo e Castro, 29 de fevereiro de 1791,
cx. 3, doc. 252.
Ofício do governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara a D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
12 de março de 1800, cx. 4, D. 356.
Consulta do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. João sobre carta dos oficiais da Câmara
da vila do Rio Grande de São Pedro do Sul, 11 de setembro de 1802, Cx. 6, D. 428.
Carta de Paulo José da Silva Gama a D. João, 4 de dezembro de 1803, Cx. 7, D. 484.
Referências bibliográficas:
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(1808c.-1831c.). Tese (Doutorado em História social), Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, Rio de Janeiro, 2011.
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FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Cabedais militares: os recursos sociais dos potentados da
Fronteira Meridional (1801-1845). In: POSSAMAI, Paulo César. Gente de guerra e fronteira:
estudos de História militar do Rio Gande do Sul. Pelotas, Ed. UFPEL, 2010, p. 81-97.
_______. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-
1865). Tese (Doutorado em História social), Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio
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(Mestrado em História Social), Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro,
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HESPANHA, António Manuel. Categorias. Uma reflexão sobre a prática de classificar. Análise
Social, vol. 168, p. 823-840, 2003.
LESSA, Aluísio Gomes. Exílios meridionais: o degredo na formação da fronteira sul da América
portuguesa (Colônia do Sacramento, Rio Grande de São Pedro e Ilha de Santa Catarina, 1680-
1810). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS,
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SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira/Pró-Memória/ Instituto Nacional do Livro, 1985.
SOUZA, Adriana Barreto de. Caxias na memória biográfica. A construção de uma heroicidade
moderna. Varia Historia, Belo Horizonte, nº 24, p. 210-227, 2001.
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil colonial – O Tribunal da Relação
do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
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Stéfani Hollmann
Graduada em Licenciatura em História e Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul
57KLEIN, Herbert. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto: Funpec Editora, 2004. p.21-24
58 FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial
(séculos XVI e XVII). In: BICALHO, Maria Fernanda,FRAGOSO, João, GOUVÊA Maria Fátima. Antigo Regime
nos trópicos, A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
2001
59 BLACKBURN, Robin. A construção do Escravismo no novo mundo: 1492 – 1800. Editora Record, 2003. p.
466
60 ELTIS, David & RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven & London: Yale
67
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61 MILLER, Joseph C. “A economia política do Tráfico Angolano no século XVIII” In: PANTOJA, Selma;
SARAIVA, José Flávio Sombra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p.13
62 RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos e grupo
mercantil (c. 1750 – c. 1800) /Alexandre Vieira Ribeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2005. XIII, 256f.: Il;
31cm. Orientador: Antônio Carlos Jucá de Sampaio. Tese (Doutorado) – UFRJ-IFCS/Programa de Pós
Graduação em História Social, 2009. p.63
63 FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial
(séculos XVI e XVII). In: BICALHO, Maria Fernanda,FRAGOSO, João, GOUVÊA Maria Fátima. Antigo Regime
nos trópicos, A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
2001 p. 38
64 POSSAMAI, Paulo. Aspectos do cotidiano dos mercadores na Colônia do Sacramento durante o governo
de Antônio Pedro de Vasconcelos (1722-1749). Revista de Estudos Ibero Americanos. Porto Alegre: PUCRS,
2002. p.200
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“terceira perna do tráfico65”, aquele que era desenvolvido entre os portos luso-brasileiros
e as regiões que não eram abastecidas diretamente por embarcações vindas do continente
africano. Devido a sua posição geográfica, se fez um importante entreposto comercial,
recebendo mercadorias vindas de portos luso-brasileiros e os revendendo a Buenos Aires.
Sacramento era majoritariamente dependente do comércio intraimperial. Devido as
características do Rio da Prata, que era de difícil navegação, grandes embarcações tinham
dificuldade de acessá-lo. Portanto, dos portos brasileiros vinham embarcações menores
que trafegavam com maior facilidade pelo estuário. Também devido as longas distâncias
entre o continente africano e Colônia do Sacramento, a maioria dos barcos aportava
primeiro nos portos atlânticos como Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Assim, evitava-
se perda de grandes quantias de cativos, que depois de alguns dias em solo brasileiro,
seguiam viagem a Sacramento. O estudo do tráfico de escravos para a Colônia do
Sacramento é importante, pois houve períodos em que a população de cativos foi de
aproximadamente metade do total de pessoas que habitava a praça66. Considerando que
não havia economia em Sacramento, que necessitasse do uso da mão de obra escrava em
larga escala, é provável que estes cativos estivessem no local, aguardando para ser
comercializados com a América Espanhola.
Devido ao tratado de Tordesilhas, os espanhóis não possuíam acesso a Costa da
África. Portanto, para ter acesso à mão de obra escravizada africana, os castelhanos teriam
que comprar cativos ou dos britânicos, que tiveram seu período de asiento67 em Buenos
Aires, ou comprar dos portugueses da Colônia de Sacramento. As trocas mercantis entre
portugueses e castelhanos de ambas as margens do Rio da Prata eram frequentes e
antigas, apesar das tentativas de represálias espanholas. Pois muitas vezes os
portugueses, devido a proximidade com outros portos lusos, conseguiam comercializar
65 BERUTE, Gabriel. Dos escravos que partem para os portos do Sul – Características do tráfico negreiro do
Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790 – c.1825. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em
História/UFRGS, dissertação de mestrado, 2006 p. 14 ao citar Roberto Martins distingue as três etapas do
tráfico de escravos, a terceira seria aquela que ocorreu dentro do continente Americano, sendo na qual a
Colônia do Sacramento se insere e outras regiões periféricas do Brasil também, como o caso estudado por
Berute, do Rio Grande de São Pedro.
66 KUHN, Fábio. “Clandestino e ilegal: O contrabando de escravos na Colônia do Sacramento (1740-1777)”.
In: XAVIER, Regina Célia Lima. “Escravidão e Liberdade: Temas, problemas e perspectivas de análise".
Alameda Casa Editorial (2012). E PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: a situação na fronteira
platina no século XVIII. 2003 trabalham com censos
67 Acordo feito pela coroa espanhola que garantia monopólio da venda de escravos por parte dos ingleses
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com preços menores daqueles do monopólio inglês. Assim, o fluxo de mercadorias entre
ambas as praças platinas foi intenso. Devido a isso, muitos portugueses afixaram-se em
Sacramento, a fim de que através do comércio pudessem distinguir-se na sociedade
colonial. Entre eles, estavam aqueles que são objeto de análise deste trabalho, os
traficantes de escravos.
Através de dados cedidos da pesquisa “Os homens de negócio da Colônia do
Sacramento e o Contrabando de Escravos para o Rio da Prata (1737-1777)”, financiado pelo
CNPQ e executado entre 2012 e 2014, Professor Doutor Fábio Kuhn, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul68, tive acesso ao nome de 116 comissários/homens de
negócio/comerciantes que atuaram na Colônia do Sacramento entre 1737 e 1777. Sabe-
se que o traficante de escravo, mesmo no século XVIII, não realizava comércio exclusivo
de cativos. Para garantir suas trocas mercantis, o comerciante não tinha exclusividade de
produto, portanto, não vendiam apenas cativos, outros produtos também eram
comercializados, tais como os derivados da cana-de-açúcar. Também não eram todos os
mercadores que comercializavam escravos, no entanto, como já mencionado, no
setecentos o “trato dos viventes69” ganhou importância. Portanto, utilizando do registro
de óbito de escravos70, cruzei estes com os dados cedidos da pesquisa acima referida,
entre essa mais de uma centena de homens que se dedicavam ao comércio, trinta e quatro
apareceram enterrando escravos na Colônia do Sacramento. Portanto considerei que os
homens que apareciam mencionados em outros documentos com vínculos com o
comércio e que sepultaram cativos neste período, eram traficantes de escravos. Destes,
todos ao menos sepultam um escravo, outros aparecem com mais frequência, como o caso
de Bartolomeu Nogueira, que enterrou onze cativos.
Além de saber quem eram os homens que comercializavam escravos na Colônia do
Sacramento, estes registros de óbito auxiliaram a determinar as redes de comércio
estabelecidas. Pois, além do nome e características do defunto, o nome de quem o estava
sepultando, no registro também constava através de quem e de qual lugar este cativo
68 Os dados deste projeto são estudos dos documentos do Arquivo Ultramarino do Rio de Janeiro e da
Colônia do Sacramento, do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Habilitações do Santo Ofício que estão
online no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Documentos Eclesiásticos da Cúria Metropolitana
do Rio de Janeiro, como registro de óbito de cativos.
69 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, século XVI e XVII.
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71 FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel Domingues da “Aspectos comparativos
do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)” in: Afro-Ásia, nº 31, 2004
72 RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos e grupo
mercantil (c. 1750 – c. 1800) /Alexandre Vieira Ribeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2005. XIII, 256f.: Il;
31cm. Orientador: Antônio Carlos Jucá de Sampaio. Tese (Doutorado) – UFRJ-IFCS/Programa de Pós
Graduação em História Social, 2009. p. 357
73 OSÓRIO, Helen. “Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e negócios de um
grupo mercantil da América Portuguesa” in: Revista Brasileira de História. Vol. 20, nº 39, 2000, p. 103. A
autora refere-se ao grupo mercantil que formou-se no Rio Grande no final do século XVIII e início do XIX, no
entanto, também era comum na Colônia do Sacramento, no grupo estudado, que seguisse esta regra.
74 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes, formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII.
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entanto muitos foram com moças sacramentinas. O casamento era uma das formas de
enraizamento dos interesses destes homens ao local. Desta forma, ampliavam sua rede de
contatos e conseguiam aumentar sua ação dentro desta sociedade. Como o caso de Manuel
Lopes Fernandes, natural de Braga, que casou-se em 1751, com Maria Pereira dos Santos,
já viúva de Antônio de Carvalho de Medeiros. Estendo as suas relações também na praça
sacramentina.
De forma geral, pode-se dividir o grupo de trinta e quatro homens, em dois
menores. No período em que Luís Garcia Bivar administrou a Colônia do Sacramento,
houve assinatura de atestações75, que mostravam a orientação política do indivíduo que
a assinava. Estes documentos não foram assinados somente por comerciantes, também
foram por párocos e militares, que visavam com isso aproximação com o governador, que
tendo em vista a ausência de órgãos administrativos, era autoridade máxima na praça.
Não foram todos os traficantes que se posicionaram em relação ao governo Bivar. Alguns
fizeram questão de assiná-la contrária ao governador, mas, muitos provaram lealdade ao
administrador.
Os traficantes de escravos, mais do que realizar comércio com Buenos Aires e
enriquecer, também visavam distinção social dentro de uma sociedade que vivia à lei da
nobreza, seguindo moldes europeus nos trópicos. Tendo em vista o caráter militar da
praça, obter títulos militares também era importante. Uma forma de discernimento,
concedida muitas vezes pelo governador, era ganhando patentes militares das ilhas
próximas a Sacramento. Estes títulos, nem sempre eram para realizar serviço militar, é
possível supor, que estas ilhas eram utilizadas para o desvio de mercadorias, que seriam
contrabandeadas com Buenos Aires, evitando assim o fisco. Portanto, estar bem
relacionado com o governador era uma forma de conseguir alcançar esses meios. Como
por exemplo, José de Barros Coelho, que assinou atestação favorável ao governador Bivar,
e que era Capitão de Ordenança da Ilha de São Gabriel. As patentes militares eram
conferidas aos traficantes, assim como para os demais homens que as recebiam, pelos
governadores. Verifica-se que por algumas vezes, estas patentes não era vitalícias,
75As atestações são trabalhadas por KUHN, Fábio. no artigo: “Os interesses do governador: Luiz Garcia de
Bivar e os negociantes da Colônia do Sacramento (1749-1760)” Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, v.
13, n. 24, jan-jun. 2012, pp. 29-42
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conforme o interesse dos governadores era redistribuído para outros homens que eram
dados como dignos delas pelo governador.
O compadrio também era uma das formas de ampliação das redes de contato. O
parentesco fictício foi utilizado pelos traficantes de escravos entre homens que possuíam
o mesmo ofício, mas também com militares, bem como com o governador. Entre 1732 e
1777, os governadores aparecem apadrinhando crianças que tinham pais com profissões
e origens diversas. No entanto, Luís Garcia Bivar tinha relações de parentesco espiritual
com muita frequência com os traficantes de escravos. Diversas vezes escolhido como
padrinho de filhos de traficantes, como Manuel Gomes dos Santos Lisboa, de quem batizou
mais de um filho. Ainda havia outros traficantes relacionados a ele, como Manuel Coelho
Rosa, de quem Bivar batiza um dos filhos, além de servir como testemunha do seu
casamento com Vitória de Lacerda, moça sacramentina.
Manuel Coelho Rosa serve como exemplo de trajetória. Natural da Sé do Porto,
capitão, o traficante, que aparece nos registros de óbito de cativos por dezessete vezes
realizando sepultamento, casou-se com moça nascida na praça da Nova Colônia.
Provavelmente somou valores realizando comércio entre Colônia do Sacramento e
Buenos Aires, possuía relações de comércio com o Rio de Janeiro, Bahia e a América
Espanhola. Assinou a atestação sendo favorável ao governo de Luís Garcia Bivar, com qual,
como já visto, tinha relações pessoais com o comerciante. Este que é o comerciante que
apareceu com maior frequência nos registros de sepultamento analisados.
Apesar, de não poder afirmar que Coelho Rosa tenha sido o traficante de maior
sucesso em Sacramento, pois minhas fontes só oferecem os números de perda dos cativos,
e não das transações comerciais que se efetivaram, posso afirmar que recebeu um número
significativo de escravos. Provavelmente, sua relação com o governador Bivar, tenha o
favorecido no comércio, assim como dentro da sociedade sacramentina, enraizando seus
interesses na praça. Não há registro de seu óbito, portanto é provável que tenha morrido
em mar. Mas sua família – esposa e filhos – permaneceram na Colônia até o final do
período português na praça76. Também é preciso considerar que a maior parte dos
traficantes eram esporádica, ou seja, realizavam comércio de cativos ocasionalmente, não
eram especialistas neste tipo de venda. Portanto, Manuel Coelho Rosa, aparecendo
76 Em 1776, sua filha Vitória aparece como madrinha da filha de Custódio de Almeida, Sargento Mor da
Praça.
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dezessete vezes enterrando escravos, significa que não fez este tipo de comércio com
pouca frequência.
Outra forma de distinção social em Sacramento, eram as habilitações do Santo
Ofício. Considerando que a profissão de comerciante não era bem vista na sociedade de
Antigo Regime, pois estes viviam do seu próprio trabalho, além de estar relacionada aos
cristãos novos, ter a carta de familiatura, além de provar a origem, provava a limpeza de
sangue. Em uma sociedade, que apesar de periférica, tentava copiar o centro
metropolitano77, significava distinção social. Além disso, estas regiões eram destinos de
muitos degredados, portanto, assim verificava-se o passado do sujeito, comprovando a
sua regularidade como súdito lusitano.
Igualmente, precisa-se considerar que a Colônia do Sacramento não possuía
Câmara ou Misericórdia, que eram espaços utilizados em outros pontos do Império
Português para distinção social. Portanto, ser familiar do Santo Ofício em Sacramento,
podia diferenciar o sujeito na comunidade, dando origem a uma hierarquia costumeira78.
Esta que também podia ser dada através das redes de clientelismo e de parentesco fictício
entre os traficantes e demais moradores da Praça da Nova Colônia, ou mesmo de Buenos
Aires ou de portos luso-brasileiros, com os quais tinham relações comerciais. Mas,
sobretudo, dava-se pelos mesmos tipos de relações estabelecidas com os governadores
da praça, sobretudo com o governador Luís Garcia Bivar, o qual mantinha negócios
escusos e próximos com os traficantes de escravos sacramentinos.
O tráfico intraimperial, foi viabilizado devido aos interesses dos representantes
das coroas ibéricas, estes que nem sempre iam ao encontro dos interesses das cortes na
Europa. No caso da Colônia do Sacramento, contaram com o apoio de alguns governadores
como Antônio Pedro de Vasconcelos, Luís Garcia Bivar e Pedro Sarmento. O primeiro
governador, dos acima referidos, estreitou as relações entre a burocracia portuguesa e “os
homens que concorrem ao seu negócio”, desde o início do século XVIII, as relações dos
77 RUSSEL-WOOD, A. J. R. “Centro e periferia no mundo luso-brasileiro, 1500 – 1808” in: Revista Brasileira
de História. 1998, nº 36 p.187-249. O autor coloca que as sociedades que faziam parte do império luso,
apesar de serem periféricas, não tentavam romper com o modelo europeu, e sim copiá-lo.
78 FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. “Monarquia Pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões
sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII” in: Tempo, Vol. 14, nº 27, p. 49 – 63. 2009. Os autores se referem
a hierarquia que surgia nos diferentes espaços do Império Português, em geral, reproduzindo os
metropolitanos, mas que em escala local poderiam ganhar outro significado.
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79 KUHN, Fábio. “Homens que concorrem ao seu negócio” A comunidade mercantil da Colônia do
Sacramento (1737-1777). R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 176 (468): 13-38, jul/set. 2015. p. 14
80 KUHN, Fábio. “Tráfico negreiro para a Colônia do Sacramento através das fontes paroquiais: algumas
1735), 2001.
82 HESPANHA, Antônio Manuel. Imbecilitas – As bem aventuranças da inferioridade nas sociedades de
fronteira (manejada): uma proposta conceitural. In: Crimes de fronteira: a criminalidade na fronteira
meridional do Brasil (1845-1889). Porto Alegre: PUCRS, 2012.
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Referências bibliográficas:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes, formação do Brasil no Atlântico Sul,
séculos XVI e XVII. Companhia das Letras, 2000.
BERUTE, Gabriel. Dos escravos que partem para os portos do Sul – Características do tráfico
negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790 – c.1825. Porto Alegre: Programa de
Pós-Graduação em História/UFRGS, dissertação de mestrado, 200.
ELTIS, David & RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven &
London: Yale University Press, 2010.
FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial (séculos XVI e XVII). In: BICALHO, Maria Fernanda,FRAGOSO, João, GOUVÊA
84 FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. “Monarquia Pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões
sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII” in: Tempo, Vol. 14, nº 27, p. 49 – 63.
85 O artigo XII do Tratado de Ultrecht (1715), já determinava que portugueses e espanhóis poderiam realizar
trocas mercantis, exceto de escravos, pois havia um asiento britânico nos domínios espanhóis na América.
Artigo XII do Tratado de Utrecht: “Abrir-se-a geralmente o comércio entre os vassalos de ambas as majestades
com a mesma liberdade e frequência que havia antes da presente guerra, e em demonstração da sincera
amizade que se deseja não só estabelecer, mas ainda acrescentar entre os vassalos das duas coroas, concede
Sua Majestade portuguesa á nação espanhola e Sua Majestade católica a nação portuguesa todas as vantagens
no Comércio e todos os privilégios, liberdades e isenções que até aqui tiver dado, ou pelo tempo adiante
conceder a nação mais favorecida e mais privilegiada das que tem comércio nos domínios de Portugal e de
Espanha, estendendo-se isso só nos domínios de Europa, por estar unicamente reservada a navegação e
comércio das Índias às duas só Nações nos seus domínios respectivos da América, excetuando o que
ultimamente se tem estipulado no contrato de asiento dos negros, feita entre Sua Majestade católica e Sua
Majestade Britânica”.
86 Cód. 68: Secretaria de Estado do Brasil Volume 2. p.26 Arquivo Nacional
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Maria Fátima. Antigo Regime nos trópicos, A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. 2001.
KLEIN, Herbert. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto: Funpec Editora, 2004.
KUHN, Fábio. “Tráfico negreiro para a Colônia do Sacramento através das fontes
paroquiais: algumas considerações metodológicas”. Paper apresentado na V Reunião do
Comitê Acadêmico História, Regiões e Fronteiras da AUGM. Mar del Plata, Argentina, abril
de 2014.
MILLER, Joseph C. “A economia política do Tráfico Angolano no século XVIII” In: PANTOJA,
Selma; SARAIVA, José Flávio Sombra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p.13.
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Fontes
Arquivo Nacional
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Francesco Santini
Taís Giacomini Tomazi
Introdução
Este trabalho é uma união entre dois esforços e vertentes de análise diferenciadas
que confluíram em um mesmo caminho, baseado e inspirado nos estudos na cultura e do
cotidiano. Ambos trabalhos individuais da autora e do autor deste texto tem como lócus
de seus estudos a região meridional do Brasil Império com especificidade para Alegrete
na segunda metade do século XIX, no qual uma das vertentes indicadas parte da busca da
inserção de cidades da fronteira oeste do Rio Grande de São Pedro em tal período nas
transformações do consumo e da relação das pessoas com os objetos e entre si, a fonte
principal foram os inventários post mortem. Já a outra, teve como objetivo a compreensão
de relações sociais entre trabalhadores (livres nacionais e estrangeiros e cativos) e alguns
aspectos destas dinâmicas sociais de interações contidas nas entrelinhas dos processos
crime. Esta última fonte é o foco deste texto, pois foi em um processo por assassinato em
que esta união de propostas diversas de pesquisa uniram-se, quando um indivíduo é
identificado como autor da morte de outro por ter sido visto com as roupas do morto,
roupas que evidentemente e para todas as testemunhas não eram suas. Em um primeiro
momento pode parecer um elemento ínfimo, porém quando se busca na historiografia
percebe-se uma lacuna para com este tipo de análise de processos crimes, geralmente
usados para temas que trabalhem diretamente com o crime e seus atores e não com os
itens do “cenário”, tal como a roupa do pardo Pedro.
Graduado, Graduação em História, Universidade Federal de Santa Maria.
Mestranda, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Maria.
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87Alguns trabalhos da autora deste texto publicados em Anais de eventos podem ser exemplo de pesquisas
que levem em consideração as especificidades da região da fronteira oeste (ver lattes). Podemos ainda citar
Mariana Thompson Flores (2007, 2012) como abordagem diferenciada dos processos crimes e dos bens
que ingressavam na Província neste mesmo período.
80
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(consumo, relações e cotidiano) em uma região com certo estigma histórico, identificada
como atrasada, isolada e como bárbara. Faz-se a ressalva de que não se quer dize que a
entrada de bens manufaturados e do contato com a Europa “tornou” a região civilizada, já
que as concepções sobre civilidade já estão bastante refinadas e a própria compreensão
de uma interlocução entre os elementos da cultura platina e os europeizados tornam a
análise da cultura ainda mais produtiva, “real” e fundamentada para além do binômio
civilização e barbárie. Vamos então aos fatos: o crime e a roupa roubada por Pedro.
Fontes
Os processos criminais são fontes riquíssimas e densas de informações que
precisam ser analisadas com cuidado e que podem informar acerca de numerosos
elementos de uma dada sociedade em um dado período histórico. Diferentemente de
outros tipos de fontes, nos processos criminais são presentes narrações que, mesmo que
mediadas pelas autoridades, podem ajudar a entender de uma forma mais detalhada
aspectos e características do contexto social, cultural e também econômico de uma
comunidade, região, cidade ou espaço em geral em um determinado momento histórico.
Nesse tipo de fonte, é possível encontrar um leque variado de sujeitos e talvez é um dos
poucos documentos no qual os subalternos tenham uma presença certa – não
necessariamente preponderante – e um número maior de elementos acerca deles, como
trabalho desenvolvido aspectos do cotidiano, estado civil, entre outros.
Este tipo de fonte pode servir de forma seriada para, junto a outros documentos,
analisar de forma estatística determinados elementos; também, é possível operar uma
análise qualitativa de alguns casos, efetuando uma espécie de “leitura lenta”, para
construir determinadas hipóteses, como é o caso deste trabalho. Não excluímos, contudo,
a possibilidade futura de trabalhar tais hipóteses realizando uma pesquisa seriada das
fontes criminais em questão.
Em geral, como muitos autores88 mostraram os processos crimes são documentos
que requerem algum cuidado, pois uma análise superficial levaria a caminhos
enganadores. O fato, por exemplo, de as testemunhas e os réus terem a própria fala
mediadas pelas autoridades (escrivão, juízes, etc.) já alerta para uma padronização da
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narração e nos faz refletir sobre como no documento redigido desta forma, se perca a
emoção que o ser humano inquirido colocava no seu relato. Por outro lado, tal emoção
poderia, no caso de subalternos, fazer com que o sujeito se calasse ou evitasse falar muito
por se sentir inibido frente às autoridades. (Thompson Flores, 2012, pp. 31 – 32). Mesmo
assim, pensamos que essas peculiaridades dos processos, afetem de maneira reduzida
esta pesquisa, pois o que nos interessa é a presença de elementos relativos à
materialidade dos objetos presentes naquela sociedade.
Ademais, não podemos esquecer que neste tipo de fonte existem várias e variadas
falas, versões que por vezes concordam, por outras discordam. Mas, é preciso lembrar que
como apontado por Chalhoub (2012) “ler processos criminais não significa partir em
busca ‘do que realmente se passou’ porque esta seria uma expectativa inocente [...]”,
portanto, “resta ao historiador a tarefa árdua e detalhista de desbravar o seu caminho em
direção aos atos e às representações que expressam, ao mesmo tempo que produzem,
estas diversas lutas e contradições sociais”. (p. 40 - 42). Além disso, nós concordamos com
Boris Fausto (1984), quando a propósito da fonte criminal diz que “um texto desta
natureza” abre-se para outras áreas como “a antropologia, a psicologia ou mesmo a
psicanálise [...]”. (p. 29). Com certeza, outras áreas como aquela da antropologia citada por
Fausto, são de grande suporte para o tipo de pesquisa que nos propomos a fazer, pois
como veremos no caso que segue, a roupa que é um elemento material, quase
insignificante na atual sociedade industrial, chegava na segunda metade do século XIX a
definir a identidade de um sujeito, mostrando assim a estreita relação entre os âmbitos
cultural, social e econômico.
O caso
No dia 9 de maio de 185089, no Passo dos Baptista, dois peões, o pardo Pedro e o
índio Leonardo, dirigem-se para o próprio patrão, o fazendeiro Thomas Baptista de
Castilho, e com gestos e palavras ofensivas, ameaçaram-no de morte. Chegaram a cavalo,
armados e um dos dois chegou a fazer um gesto com o poncho90. Os dois, que estavam
89 Comarca de Missões. 1a Vara cível e crime. 1847 – 1850. Acondicionador: 009.0042. Processo: n° 2696 de
1850.
90 Nos autos consta como “aceno de ponxe (sic.)”. Difícil saber ao certo como seria, mas por estar presente
de forma destacada, indica uma clara ameaça de morte. Talvez o poncho tivesse sido levantado para mostrar
a arma, mas também é possível que o sujeito o manuseou como era típico nos momentos de combate.
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embriagados, deviam ter alguma desavença para com ele, não é claro qual, mas podemos
supor que fosse algo ligado a questões de trabalho91.
Foi este evento que levou o fazendeiro a registrar uma queixa oficial contra os dois.
Sabemos disso, pois tal queixa e a narração de quanto descrito encontram-se no processo
criminal por homicídio que vê como réus os peões acima citados junto ao preto José
Gonçalves, também peão de Thomas; como vítima consta um moço de nome João.
Aparentemente não há relação entre os dois crimes. Contudo, é muito provável que a
perseguição oficial aos réus (Pedro e Leonardo), pelo crime de homicídio, seja derivada
justamente da preponderância social do poderoso Thomas Baptista, que sofrendo as
ameaças e não tendo conseguido capturar os dois peões, se valeu de seus status para
encontrar uma forma de puni-los.
Seja como for, o homicídio ocorreu realmente, apesar deste estar quase em
segundo plano, sobretudo no que diz respeito à vítima, da qual se soube somente que era
um moço de nome João e que era sobrinho de tal “Machado”. Quem avisou do
acontecimento, conforme os autos, foi o próprio Pedro, o qual alertou o seu companheiro
Leonardo que era preciso enterrar um corpo de um garoto que se encontrava no Passo
das Carretas, no meio dos “espinilhos”. Logo em seguida, após supostamente ter
confessado o crime para Leonardo, Pedro fugiu. Enquanto isso, Thomas mandou “agarrar”
os dois peões posteiros pelas ameaças sofridas. Já que Pedro havia fugido, só pôde ser
preso Leonardo, o qual avisou sobre o corpo e inclusive mostrou para as autoridades o
lugar da morte. Por desconfiança, também foi preso naquela ocasião, o preto José. Este
último foi logo absolvido pelas testemunhas, pois para estas, no momento do crime não
se encontraria junto aos dois. Nesse sentido, reforça-se a tese de que o processo foi uma
tentativa de punir Pedro e Leonardo pelas ameaças de morte, mais do que pelo homicídio.
Durante a inquirição dos réus, emergiram elementos interessante, como o fato de
Leonardo de chamar na verdade Francisco Xavier Lopes, ser correntino e desertor da
cavalaria do Império Brasileiro. Além disso, José confessa não ser liberto, mas um escravo
foragido de Pelotas e (talvez) desertor das tropas do General Oribe.
Leonardo (ou Francisco), que sempre se declarou inocente, foi condenado pelo júri
por ter participado à morte de João, junto ao principal réu fujão Pedro. Provas concretas
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não existiam, contudo, um elemento foi utilizado para condenar o peão, o testemunho
conforme o qual Pedro estaria vestindo a roupa da vítima, pois todos confirmaram que
aquela roupa (pala, esporras, etc.) não era dele. Este elemento, que pode parecer marginal,
foi o que fez as testemunhas terem certeza da culpa do Pedro e por consequência do
Leonardo, o qual foi condenado à prisão perpétua.92
Não temos elementos que expliquem o motivo da morte, se por exemplo, teria sido por
justamente roubar a roupa ou se o apropriar-se da vestimenta seria somente uma
consequência. Não é possível saber, todavia, o que chama atenção é a construção de uma
identidade por parte de Pedro que incluía o seu traje e que era conhecido pelos membros
da comunidade. O fato de Pedro trocar sua roupa com aquela de João, implica algumas
hipóteses que giram em torno da possibilidade e do padrão de consumo na segunda
metade do século XIX, na Campanha gaúcha e que analisaremos na última parte deste
trabalho.
Questionamentos e hipóteses
Por que a roupa do “Pardo Pedro” ficou tão evidente? É o questionamento mais
evidente e que ocasionou na escrita deste texto. A vestimenta que não era do pardo Pedro
e sim do assassinado, indicando que as pessoas eram conhecidas também por suas roupas,
ou mesmo principalmente por suas roupas. É conhecido pela historiografia de que a troca
de roupas por compra ou costura em casa não era algo regular, mas sim poucas vezes na
vida do indivíduo apontando então para um hábito a identificação das pessoas pelas
roupas que estas vestiam ao longo de suas vidas, principalmente as mais pobres, pois
estas estavam mais à margem dos recursos necessários para aquisição de bens diversos.
Outro aspecto interessante é a possibilidade diversa de estudo a partir de uma
fonte bastante utilizada como os processos crime como apontam autores chave como
Chalhoub (2012) e Thompson Flores (2007). Importante atentar para o fato de que os
processos crime já nos “dizem” (mesmo nos silêncios, ou principalmente) muita s coisas
sobre as sociedades estudadas, mas sobre elementos do consumo estes elementos ainda
merecem maior atenção já que é possível identificar aspectos das sociedades estudadas
por vias “indiretas” das fontes que como os processos crime tem tido como foco estudos
92Tais informações fizeram parte do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado por Santini em 2017 na
Universidade Federal de Santa Maria.
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Conclusão
Pretendeu-se neste texto demonstrar as transformações que passam a ocorrer
durante o século XIX e que apontam para novas percepções de roupas e itens
industrializados que passaram a diferenciar as posições sociais dos indivíduos e
acabaram por condenar o “pardo Pedro”, e que são possibilidade de temática de estudos
sobre o cotidiano em relação ao consumo dos sujeitos e de seus fundamentos culturais.
Outras possibilidades do uso dos processos crime em uma perspectiva de estudo
da cultura, consumo e/ou cotidiano diferentemente do que se percebe na historiografia,
abrindo espaço para estudos que possam qualificar e tornar mais complexo o passado,
compondo um cenário cultural e social descaracterizando a região apenas no âmbito
militar e político e em seus famigerados aspectos “bárbaros”.
Referências bibliográficas
ALENCASTRO, Luis Felipe de. Vida Privada e Ordem privada no Império. In: ALENCASTRO,
Luis Felipe de. História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
CABREJAS, Laura Leonor. Vida materia en la frontera bonaerense. In: MAYO, Carlos. Vivir
en la frontera: la casa, la dieta, la pulpería, la escuela (1770-1870). Buenos Aires, Biblos,
2000.
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:
Editora Brasiliense, 1984.
MAYO, Carlos (Ed.). Vivir em la frontera: la casa, la dieta, la pulpería, la escuela (1770-
1870). Buenos Aires, Biblos, 2000.
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Fontes
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS)
PROCESSOS CRIMES – ALEGRETE:
Comarca de Missões. 1a Vara cível e crime. 1847 – 1850. Acondicionador: 009.0042.
Processo: n° 2696 de 1850.
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Evandra Moreira
Introdução
América Latina, como uma região do continente americano que foi
maioritariamente dominada pelos impérios coloniais europeus espanhol e português,
assemelha ao histórico de muitos países africanos, também colonizados pelos mesmos
impérios. As duas regiões geográficas albergam países distintos, com idiomas
diferenciados e em estágios de desenvolvimento a nível científico, social e económico
diferenciado.
Sendo assim, o imperativo/categoria pós-colonialismo torna-se uma variável interessante
diante da conjuntura atual, focada no desenvolvimento, independência, globalização,
industrialização e no desenvolvimento da ciência.
O pós-colonialismo teve a sua origem nos estudos da história indiana
empreendidos pelo “Grupo de Estudos Subalternos, que rejeitavam a história escrita a
partir do ponto de vista das autoridades coloniais e buscava evocar a voz dos súditos
colonizados – os subalternos. Ideias correlatas foram desenvolvidas na obra de Franz
Fanon, Edward Said e dos nacionalistas negros dos Estados Unidos”(Scott , 2010, p.230).
Para este trabalho, tomamos como referência o conceito de pós-colonialismo a
partir das reflexões de um dos mais proeminente teóricosassociados à problemática do
pós-colonial - o crítico indiano Homi Bhabha, no qual define a tarefa da crítica pós-colonial
como sendo a "revisão crítica de questões de diferença cultural, autoridade social e
discriminação política" que visa examinar as ambivalências existentes nas
"racionalidades" da chamada modernidade cultural (Bhabha, 1994,p.171). Ainda segundo
o autor, a emergência dos estudos pós-coloniais estaria vinculada a uma emergência da
Este texto faz parte da avaliação final da disciplina de Teorias das Ciências Sociais 2016/1, ministrada pelo
professor Carlos Gadea e Eduardo Barros.
Mestranda em Ciências Sociais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), contando com o apoio
financeiro do CNPq no âmbito do Programa de Estudante Convénio de Pós-Graduação (PEC-PG).
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dentro da América Latina no final do século tão urgente como reação com o fenómeno da
globalização e de migração (Gadea e Barros, 2013, p.3).
Por sua vez, o continente africano alberga essas características de hibridez. Ainda no
período colonial, alguns intelectuais e líderes políticos questionaram não apenas a
produção científica sobre África como a dimensão ideológica de que revestiam os modelos
teóricos e epistemológicos que legitimavam tais produções. É verdade que relativamente
inexpressivos os números de pesquisadores africanos que não apenas criticaram os
paradigmas utilizados, tanto por africanistas como por africanos, para analisar o
continente, como também fizeram todo um exercício de teorização, procurando superar
os modelos por eles considerados anacrónicos e despidos de qualquer capacidade
heurística (Furtado, 2015, p. 29).
Ainda o autor realçou o trabalho de Cheikh Anta Diop, que, por sua vez pugnou pelo
“reconhecimento da relevância do continente africano não apenas como o berço do
homem bem como do desenvolvimento cultural e cientifico da humanidade” (Furtado,
2015, p. 29).
A característica geral dos estudos e da teoria latino americana, segundo (Toro,
1999), relacionado com a pós-colonialidade, têm como base a concepção de
“heterogeneidade”, da hibridez e a “desconstrução do discurso logo e etnocêntrica” no
contexto de uma “desconstrução” com “reapropriação”, dialogando com as teorias de
Derrida, de Foucault, de Deleuze, de Jameson e de Baudrillard, partindo da arqueologia da
linguagem e da cultura (Herlinghaus, 1994, p. 49 ss.).
Já no período pós-colonial, no continente africano a situação não muda em termos
substanciais e estruturais. Com efeito, não obstante o aumento significativo de
universidades, centros de investigação e de investigadores africanos, a extraversão
prosseguiu num quadro de “desenvolvimento desigual”. Tanto na agenda de investigação,
quando os modelos teóricos e metodológicos são utilizados, encontram-se imbricados e
dependentes do “norte epistémico” e os resultados da investigação são,
preferencialmente, produzidos e publicados a norte. Afinal, a legitimação do
conhecimento científico produzido é assegurado pelo norte do campo científico, no mais
das vezes localizado no “norte geográfico” (Furtado, 2015).
Essa preocupação dos latino-americanos faz com que tomem uma posição crítica
frente a tendências nacionalistas-monolíticas- binaristas que reclamam uma “identidade
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Por sua vez, segundo (Toro, 1999), a situação dos teóricos da cultura latino americana na
atualidade parecem estar inscritos através de uma escritura da “diferença”e uma
estratégia “metonímica da presença” (Bhabha, 1994, p.89).O pensamento latino-
americano não somente integra um discurso pós-moderno e pós-colonial predominante
em um momento histórico-cultural, mas ambos contribuem em encontrar formas
descritivos e caminhos que correspondam a sua natureza histórica e sócio-cultural.Neste
sentido as duas reflexões sobre a pós-colonialidadeestão em sintonia.
Torna-se assim de grande importância a concepção de “heterogeneidade” de
(Brunner, 1986), que, enquanto reduza mesma a subculturas étnicas, a classe e grupos a
uma mera sobreposição de culturas (Brunner, 1986, p.178), mas que entende como:
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Hoje, mais do que nunca, se debate sobre a finalidade das Ciências Sociais.
Questionamo-nos sobre o seu contributo para a formulação e resolução
dos problemas contemporâneos, incluindo de que forma elas podem
ajudar a uma maior eficácia na tomada de decisões políticas e
administrativas. Questionamo-nos, inclusivamente, sobre o futuro das
próprias Ciências Sociais e Humanidades, futuro esse que depende em
grande medida da pertinência das visões do mundo que nos
proporcionam. A procura de respostas para estes questionamentos não
pode estar dissociada da discussão em torno da problemática referente à
produção e apropriação do conhecimento. A cultura científica é
actualmente encarada como uma dimensão fundamental das sociedades
contemporâneas, na medida em que interfere com todos os domínios da
vida social.Ela representa o vector decisivo da modernização e do
desenvolvimento.
Certamente que a discussão sobre os paradigmas do conhecimento não se
circunscreve ao campo acadêmico. Ela associa-se diretamente ao tema do poder e
articula-se a um outro debate: o a da colonialidade do saber, que discute entre outras
coisas, as relações de dominação entre o Norte e o Sul no mundo. O tema remete também
à discussão sobre a produção/reprodução das relações sociais entre os indivíduos, grupos
e movimentos da sociedade, sobre as formas como vivem, interagem, reproduzem-se;
como atribuem sentidos às suas experiências, produzem sua cultura, fundamentam seus
projetos de vida e de sociedade (Cf. Silva; Borges&Neves, 2012).
Na América latina o campo das ciências sociais oferece condições privilegiadas
para o desenvolvimento da pesquisa social pelas seguintes razões: “1) a delimitação no
espaço periférico da disciplina; 2) a delimitação no tempo contemporâneo e sua relação
com os clássicos; 3) a originalidade que pode advir desta interface entre ruptura e
continuidade a partir da relação dialética entre teoria e empiria”(Mota, 2009, p.5).
Isto em mente a consciência da alteridade que por sua vez permite converter-se
em um privilégio para o exercício da vigilância epistemológica, ao mesmo tempo que a
pesquisa social não perde seu caráter de universalidade, por estarligada à tradição da
disciplina e ser constituída por seu passado. Ainterface entre ruptura e continuidade pode
se expressar em umapesquisa original. O cientista social latino-americano tem o privilégio
de se inserir em uma tradição, mas estar situado em um contexto que lhe impede sua
assimilação acrítica.
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Isto porque para ele a África está longe de atingir o estágio de produção de um
pensamento próprio, baseado numa epistemologia libertadora, alternativa e um processo
autónomo e auto-confiante de produção e de capitalização de conhecimentos que nos
permita responder às nossas próprias questões e ir aoencontro das necessidades tanto
intelectuais como materiais das sociedades africanas.Há pelo menos duas razões que
explicam a necessidade de uma ruptura epistemológica, razões que são próximas uma da
outra, mas remetem para referenciais de natureza completamente diferentes. A primeira
tem a ver comuma razão de ordem externa à evolução do saber científico, ligada à
evolução dahistória na sua vertente fenomenológica. A outra é de ordem epistemológica
eremete para a própria dinâmica do processo de conhecimento (Cardoso, 2012). Porém
estes dois pontos estão extremamente ligados.
Em África, a produção de conhecimentoenquanto tal está a ser cada vez mais
negligenciada em favor de uma noção deuniversidade como centro de formação
estritamente ligado às necessidades domercado. O mais preocupante ainda é que isto
acontece num período em queuma cultura de consultorias tende a sobrepor-se à cultura
de pesquisa e departicipação em actividades científicas locais, regionais e
internacionais.O ambiente sociopolítico susceptível de influenciar a prática das ciências
sociaismelhorou consideravelmente nas últimas três décadas. A liberdade de expressãoé
hoje uma realidade palpável na maior parte dos países africanos.
E como Cardoso refere:
Consideração finais
A cultura científica é atualmente encarada como uma dimensão fundamental das
sociedades contemporâneas, na medida em que interfere com todos os domínios da vida
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(Furtado, 2015). Vale ressaltar que nos dois continentes a questão da pós-colonialidade
apresenta caraterísticas em comum que são: osespaços geográficos caracterizam-se pela
hibridez e diversos entrecruzamentos culturais; ambos lutam pela heterogeneidade da
hibridez e a desconstrução do discurso logo, reclamam contra o centro exclusivo e
dogmático e etnocêntrico no contexto no contexto de uma “desconstrução” com a
“reapropriação” e reclamam “identidade pura e autóctone”. Sendo assim, o campo das
ciências sociais constitui-se como um campo propício para a mudança de paradigma
dentro do contexto que domine dentro da postulado da pós-colonialidade que evidencie
os resultadosem um labor científico atual.
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(Orgs). Como fazer Ciêmcias Sociais e Humanas em África. Questões Epistemológicas,
Metodológicas, Teóricas e políticas. (Textos do colóquio em homenagem a Aquino
Bragança). Dakar, CODESRIA, 2012, PP.12.
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GADEA. A. Carlos/ BARROS PORTANOVA.E. (Org). A “questão pós” nas ciências sociais:
crítica, estética, política e cultura. – 1 ed – Curitiba: Appris, 2013.
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der Geschichte I. (ed. Johannes Hoffmeister). Hamburg. 1830/1981.
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Alltagskultor bei José Joaquim Brunner”, en: Birgit Scharlau (ed.). Lateinamerika denken.
Kulturtheoretische Grenzange zwischen Moderne und Postmoderne. Tubingin. pp. 49-58.
1994.
MAZRUI, A. A. Towards Diagnosing and traeating cultural dependency: The case of the
African University. In: Internaational Journal of Educational Development, vol.12, No 2,
1992.
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MUDIMBE. V. The invention of Africa: Gnosis, Philosopphy and the Order of knowledje,
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SILVA. Cruz Teresa; e, Borges. João Paulo & de Souto Amélia Neves. Como Fazer Ciências
Sociais e Humanas em África: Questões Epistemológicas, Metodológicas, Teóricas e Políticas;
(Textos do Colóquio em Homenagem a Aquino de Bragança). Dakar, CODESRIA, 271 p.,
ISBN 978-2-86978-505-2. 2012.
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Introdução
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superior no Piauí”, faculdades que deram origem a UFPI, sendo a pioneira, a Faculdade de
Direito, a qual acomodou o primeiro curso de Direito, no Piauí, criado nos idos de 1930.
. Esta pesquisa teve aposte teóricos autores que estudam sobre história, memória
e história oral, entre os quais Alberti (2005), Halbwachs (2006), Lawerthal (1998), Le Goff
(1992), Nora (1993), e outros. Os nexos foram construídos a partir de pesquisa
documental e memória de atores, que vivenciaram o período em estudo, cujo recorte
temporal vai de 1920, quando iniciam as primeiras discussões, até a consolidação desta
faculdade, marcada pelo reconhecimento definitivo e posterior federalização da IES, em
1950. Trata, portanto, de pesquisa historiográfica com utilização da história oral como
metodologia
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93Cargo instituído pelo Presidente Getúlio Vargas após a Revolução de 1930, escolhidos os
interventores, pessoas de sua confiança e os nomeou governadores para cada estado.
94 Escritor, Jornalista, advogado e político brasileiro.
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Esta é uma das muitas citações encontradas nos periódicos que circulavam no
Piauí no início do século XX. Menção que representa a percepção da sociedade por
alguém que retornava para o seu Estado portando um diploma de curso superior,
95 Rosanvallon ao refletir sobre a construção de “Uma NovaHistória Política”, afirma que o poder e o politico
trazem, como conclusão, que nas sociedades sempre existiram duas classes distintas de indivíduos: os
governantes e os governados. Os primeiros conduzem as sociedades e, por isso é chamado classe política
ou classe dirigente; os outros, os governados, seriam os conduzidos, e são chamados de massa.
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especialmente se tal diploma fosse de bacharel em Direito, não que não fosse extensivo
aos Médicos e Engenheiros, todavia aos primeiros havia mais reverência.
Provavelmente seja por isso que possa explicar a importância e o anseio da sociedade
pela implantação de uma instituição superior no Estado.
Apresenta-se a seguir dois representantes das lutas pela implantação do Ensino
superior, cada um contribuindo em seu contexto histórico. O primeiro, Genuíno Sales
(1965)96, um dos muitos representantes da década de 1960 na luta pela criação da UFPI;
o segundo, Freitas (1988)97, egresso da Faculdade de Direito do Recife, foi atuante no
meio político e cultural do Piauí, e ao discutir sobre a situação educacional do Estado,
afirmava:
[...] a distância em que se acha esta província das faculdades e cursos
superiores de instrução, arreda aos menos abastados dos estudos
secundário que até hoje se consideram somente como preparatório e os
mais opulentos podem com mais facilidade e proveito cursá-los nas
aulas das faculdades ou de melhores colégios das capitais mais
adiantadas (FREITAS, 1988, p. 73).
96
Escreveu sobre as dificuldades vividas pela juventude piauiense, em relação ao contexto nacional, o
quanto fazia falta uma universidade no Estado do Piauí, principalmente analisando que, na década de
1960, o governo Federal estava abrindo espaço para a expansão universitária, (escreveu para o
“Almanaque da Parnaíba”) – periódico - primeiro exemplar editado em 1924. Destacados intelectuais
da Parnaíba e demais do Estado Piauí escrevem sobre conteúdos variados: contos, poesias, histórias,
informes sobre a cidade de Parnaíba e sobre o Estado.
97 Clodoaldo Severo Conrado de Freitas bacharelou-se em Direito em 1880. Promotor público e juiz
municipal em Teresina. Político no Império, membro do Partido Liberal (PL); defensor da causa
abolicionista e a republicana; Após a proclamação da República (15.11.1889), a seção piauiense do antigo
PL cinde-se, e Clodoaldo Freitas adere à ala liderada pelo barão de Castelo Branco, que não declarou apoio
ao governador Gregório Taumaturgo de Azevedo (1889-1890). Integrou a junta governativa presidida
pelo tenente-coronel João Domingos Ramos e integrada por Clodoaldo Freitas, Higino Cunha, José Eusébio
de Carvalho Oliveira, Elias Firmino de Sousa Martins e José Pereira Lopes. Transferiu-se para São Luís-MA,
destacando-se intelectualmente, figurando entre os fundadores da Academia Maranhense de Letras em
agosto de 1908. Retorna ao Piauí e é nomeado desembargador em 1916; fez parte do Tribunal de Justiça
do estado até o fim da vida. Foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Academia Piauiense de
Letras, em dezembro de 1917. Colaborou em diversos periódicos, entre os quais o Diário do Piauí, A
Imprensa, O Reator, O Abolicionista, A Reforma, O Democrata, O Estado, A República, A Notícia, O Piauí, O
Diário, Revista Mensal da Sociedade União Piauiense, A Pátria, A Notícia, Revista da Academia Piauiense
de Letras e Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, todos do Piauí. A Reação, de Pernambuco,
e Diário da Manhã e Diário, do Pará. Publicou Fatores do Coelhado (1892), O Piauí (1902), História do Piauí
(1902), Vultos piauienses (1903), Memórias de um velho (1905), A Pátria (1905), Em roda dos fatos
(1911), Crônicas (1911), História de Teresina (1912), Contos a Teresa (1915). Fez também as traduções
de Inferno de Dante (1912) e Os últimos dias de Pompéia (1912).
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avaliação dos intelectuais tal carência afetava até o ensino secundário, penalizava os
menos favorecidos economicamente, que deixavam de cursar essa modalidade de
ensino, que tinha finalidade de preparar para o nível superior, porque não tinham
condições financeiras para dar continuidade aos seus estudos em outras regiões do País.
Higino Cunha (1935) informa que as primeiras iniciativas em torno da criação da
Faculdade de Direito do Piauí, aconteceram em reuniões promovidas pelo grupo à
frente do empreendimento, as quais visavam aproximação com representantes da
sociedade teresinenses, oportunidade que aproveitavam esses eventos para a
necessidade de criação de um curso superior na cidade. Outras reuniões foram
realizadas no espaço da redação do Diário Oficial do Estado (órgão que tem a finalidade
de publicar os atos do poder público). A ideia central, nessas reuniões, foi tratar sobre
as providências necessárias à materialização da citada Faculdade. Sobre esse fato,
Higino Cunha destaca os presentes:
O engenheiro civil, Dr. Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves, que convidou para
secretariá-lo o jornalista Antonio Nunes de Mello, e para comporem a
Mesa os srs. Des. Cromwell Barbosa de Carvalho, Drs. Mário Baptista,
Arthur Furtado, Giovanni Costa, professor e o professor Leopoldo Cunha
(CUNHA, 1935, p. 23)
Na primeira reunião foi escolhida uma comissão organizadora para elaboração dos
trabalhos relativos à proposta de criação da IES, que solicitava apoio do Estado pelo
menos em dois itens: reconhecimento da Faculdade e obtenção de ajuda financeira, sem
as quais se tornava impossível à criação da IES. Às sessões de preparação sobre a formação
da Faculdade de Direito, novos participantes agregavam-se. A comunicação realizada
entre os integrantes das comissões sobre reuniões, e respectivas datas de realização das
mesmas, era feita através dos jornais locais, e, sobretudo pelo Diário Oficial do Estado.
Então, o resultado do esforço de alguns intelectuais foi alcançado, e, afinal a
Faculdade foi criada e em seguida, seu Estatuto, que foi publicado no Diário Oficial (DO)
do Piauí. Destaca-se que o estatuto foi publicado em partes. A primeira parte da
publicação foi no dia 07.04.1931, e as demais partes foram publicadas nos dias
subsequentes: 08,09 e 10.04.1931, respectivamente. Após esse ato de publicação, o
Estatuto seguiu para a Impressa Oficial, que providenciou compilação do todo, o qual
foi composto de 53 artigos distribuídos em doze capítulos que dispunha o seu
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98Constano Diário Oficial do Estado de nº 80, 12.04.1931. Registra a constituição de corpo de direção da
Faculdade, bem como aprovação de currículo e do corpo docente da mesma p. 56.
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de Carvalho, Ernesto José Baptista, Francisco Pires Gayoso de Almendra, Heli Fortes Castelo
Branco, Higino Cunha, Joaquim Vaz Falcão Costa, João Emílio Falcão Costa, João Osório
Porfírio da Mota, José de Arimatéia Tito, José Messias Cavalcanti, Mário José Batista, Pedro
Borges da Silva e Simplício de Sousa Mendes. Quadro de professores que implantou de fato
o ensino superior no Piauí. Embora implantada e funcionando, a faculdade apresentava
muitos problemas, entre os quais se pode destacar, em razão de a maioria do corpo docente
pertencer a área da magistratura, e que, muitas vezes, encontravam-se impossibilitados de
exercer as atividades de magistério, sem contar que os salários de professor não eram um
dos fatores mais atrativos, apesar de que todos esses professores, como já foi mencionado,
exerciam outra atividade laboral, auto sustentável.
100 Decreto Estadual nº 1.196, de 1º abril 1931, que declarou de utilidade pública a Faculdade, e declarava
válidos para todos os efeitos, no território piauiense, os diplomas por ela expedidos, e ainda no Art. 18 das
Disposições Transitórias da Constituição Federal de 16 de julho de 1934, que aprovou os atos do Governo
Provisório, Interventores Federais e demais delegados do mesmo Governo, excluindo tais atos e seus
efeitos de qualquer apreciação judiciária (FREITAS FILHO, 2003a, p.16).
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101 No projeto político educacional desenvolvido na década de 30, está presente a preocupação de
incorporar o jovem à estrutura de produção capitalista. Em relação ao ensino superior, isso fica claro,
quando assinala ser este de capital importância por se destinar “à formação dos grupos mais altos da
elite cultural do País (CAPANEMA,1937, p. 33).
102 Expressão latina usada atualmente como um título honorífico, que significa literalmente “por causa de
honra”. Normalmente é utilizada quando uma universidade de prestígio deseja conceder um título de honra
para uma personalidade de grande destaque ou importância por seu trabalho. Dado para uma pessoa
mesmo que ela não tenha um curso universitário, entanto tenha se destacado ou exercido grande influência
em determinadas áreas. No Brasil o primeiro título ofertado foi ao rei Alberto I, da Bélgica no final da 1ª
República, pela Universidade do Rio de Janeiro, atual UFRJ, Fávero questiona se a criação desta IES foi
especialmente para este fim.
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Considerações finais
Por tudo que foi exposto nesta narrativa pode-se reconhecer que a Faculdade de
Direito do Piauí representa o marco inicial para a implantação do Ensino Superior no
Estado do Piauí. Surgiu do empenho de homens próceres piauienses intelectuais e de um
corpo de bacharéis oriundos da Escola de Direito de Recife. Então, o Ensino Superior
implantado no Estado, mesmo que tenha se estabelecido em torno de grandes
dificuldades, conseguiu construir um perfil próprio de profissionais para os cargos
imediatos da gestão pública.
A Faculdade de Direito do Piauí, como narrado neste, durante seu percurso
histórico, para se estabelecer instalou-se em vários espaços, desde o Paço da antiga
Câmara Legislativa, em parte do prédio da antiga Secretária da Fazenda, no Grupo
Escolar Abdias Neves, sua sede definitiva, até ser incorporada à junção de cinco
Faculdades Isoladas do Piauí para a criação da Universidade Federal do Piauí, no início
da década de 1970.
Assim sendo, pode-se concluir que o esforço para a institucionalização do ensino
superior no Piauí ocorreu tardiamente, considerando o distanciamento entre a criação
dos primeiros cursos superiores no Brasil e a criação desta IES, proporcionando a criação
de uma identidade própria, plantada nos idos de 1931-1945, até os dias atuais.
Referências
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Unesp, 2007..
_____. Universidade do Brasil: das origens à construção. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/INEP, 2000,
v. 1
FREITAS FILHO, B. da R. Faculdade de Direito do Piauí (25 anos de sua história). Teresina: [s.n.],
2003a.
LOWENTHAL. D. Como conhecemos o passado. In.: Projeto História, São Paulo: 17.nov. 1998.
NUNES, Manoel Paulo. Depoimento concedido a Antonio Maureni Vaz V. de Melo. Teresina,
fev.2006.
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Introdução
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A abordagem quantitativa
A partir de uma prévia leitura das fontes, tornou-se preciso realizar uma descrição
do suporte e das condições destes documentos. As cartas, em sua maioria eram escritas
em papéis específicos para correspondências, outras em pequenos pedaços de papel ou
103
Atualmente denomina-se cidade de Herval, Rio Grande do Sul.
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Ainda sobre a mediação, Imízcoz (2011, p. 123) assevera que esta é responsável por
ligar grupos e subgrupos, por onde os mediadores atuariam como pontes que teriam o
controle da comunicação, revelando interações diretas – não mediadas
institucionalmente entre atores sociais (2011, p. 101). Essa situação é evidenciada a partir
dos números que demonstram a superioridade do número de cartas e telégrafos
recebidas pelo General Joca Tavares entre 1892 a 1895 sobre as enviadas, destacando a
sua atuação enquanto mediador dentro do grupo social no qual estabeleceu suas redes,
realizando a ligação entre grupos distintos, nesse caso em estudo, das diversas lideranças
e apoiadores federalistas de diversas localidades, atendendo seus pedidos e emanando
ordens.
Na busca por identificar as correspondências ativas e passivas para uma
compreensão quantitativa direcionou-nos a uma busca pelos principais nomes
envolvidos, a frequência com que eram enviadas as correspondências, a distância e o
tempo que estas demoravam para alcançar seu destino, os meios pelos quais eram
transportadas, os vínculos existentes entre os envolvidos e a natureza destes
correspondências. Essa metodologia permitindo-nos demonstrar constatando as
afirmações realizadas e assim atingir um dos principais objetivos dos dados quantitativos
que é auxiliar a realização de uma análise qualitativa, de modo que uma complemente a
compreensão da outra.
Dentre os principais nomes envolvidos, elencaremos alguns destes, tais como o
general legalista Inocêncio Galvão de Queiróz104 e o Coronel Carlos Telles105, os chefes
militares e civis federalistas Aparício Saraiva106, Gumercindo Saraiva107, Gaspar Silveira
104
General que assumiu em 1895 o Comando em Chefe das Forças do Exército Brasileiro em operação no
Rio Grande do Sul, o qual por ordem do Presidente Prudente de Morais, propôs e passou a tratar
diretamente com o General Joca Tavares da pacificação da Revolução Federalista de 1893 (MEDEIROS,
2005).
105 Irmão do General João Telles, comandou o 31º Batalhão de Infantaria, foi Comandante da Fronteira e
Guarnição de Bagé durante o cerco da cidade que durou de novembro de 1893 a janeiro de 1894, resistindo
às investidas federalistas (PORTO ALEGRE, 1917).
106 Importante caudilho e liderança política do Partido Blanco na República Oriental do Uruguai, comandou
assim como seu irmão de Gumercindo Saraiva, uma divisão do Exército Libertador durante a Revolução
Federalista de 1893 (DOBKE, 2015).
107 Importante caudilho e antigo chefe político Liberal na cidade de Santa Vitória do Palmar ainda no
Império. Na República sofreu perseguições e veio a comandar uma divisão do Exército Libertador, a qual
chegou até o Paraná (LOPEZ, 2005).
117
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108 Membro do Conselho de Estado ainda no Império, foi Conselheiro do Imperador, chegando a ser
Presidente da Província do Rio Grande do Sul. Com a República sofreu exílio, retornando em 1892, quando
fez parte da fundação ainda no mesmo ano, do Partido Federalista em Bagé. Foi importante caudilho e chefe
politico da Revolução (ROSSATO, 2014).
109 Almirante que se juntou aos federalistas após a dissidência com Floriano Peixoto, veio a ser Comandante
em Chefe do Exército Libertador em 1894 até ser morto batalha no ano de 1895 (AXT; COSTA, 2009).
110 ARRIOLA, A. T. Propuesta de definición histórica para región. Estúdios de Historia Moderna y
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112GRAHAM, R. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Tradução de Celina Brandt. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997. Para Graham, existiria um entendimento de que os laços familiares ultrapassariam os
laços consanguíneos. Essa família extensa do século XIX envolvia os apadrinhamentos, ser afilhado de
alguém importante, as relações de compadrio, o que implicaria a existência de obrigações entre os
envolvidos.
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da região conformada pelo individuo. Muitas destas poderiam ser enviadas, recebidas,
respondidas e reencaminhadas no mesmo dia, outras, porém, poderiam demorar diversos
dias para chegar ao seu destino principalmente devido à diversas variáveis, tais como o
tempo, o espaço geográfico e o posicionamento do inimigo.
O tempo que uma carta demoraria para achegar ao seu destinatário pode ser
analisado através de carta enviada por Joca Tavares no dia 18 de outubro de 1894, o qual
estava próximo a Dom Pedrito, ao Almirante Saldanha da Gama que se encontrava em
Montevidéu, diz: “Exmo. Sr. Almirante Saldanha da Gama. Estou de posse da carta de Vossa
Excelência, datada de 9 do corrente [outubro], da qual foi portador o Sr. Guarda-Marinha
Agérico de Souza [...]” (TAVARES, 2004, p. 115). Por ser uma guerra caracterizada pelo
movimento, dificilmente os comandantes militares permaneceriam muito tempo em
determinada localidade, logo o tempo nem sempre entre uma comunicação e outro
poderia ser igual. No caso em que carta que apresentamos acima, trocada entre Joca
Tavares que se encontrava no município de Dom Pedrito, e o Almirante Saldanha da Gama
que estava em Montevidéu, o tempo foi de 9 dias.
Quanto ao transporte das cartas, este era realizado através de mensageiros a cavalo,
de estrita confiança de seus comandantes, no caso em estudo, poderiam muitas vezes ser
seus próprios filhos. Estes deveriam também ser exímios conhecedores do terreno que
transitariam para evitar cair nas mãos do inimigo, e muitas vezes realizavam os percursos
à noite sem iluminação alguma. Estas questões podem ser percebidas através da carta
enviada por Marcelino Pina e recebida por Joca Tavares em 2 de outubro de 1894, na qual
assevera “[...] o portador, que é meu filho, vos informará de tudo e explicará as
circunstâncias” (TAVARES, 2004, p. 106. Grifos realizados pelo autor).
Diversas destas cartas eram cifradas e existiam maneiras de evitar que as
informações fossem obtidas pelo inimigo em caso de captura dos mensageiros. Esse
cuidado é evidenciado através de uma carta na qual Joca Tavares na qual afirma em carta
do dia 15 de setembro de 1894, a partir da carta enviada pelo o Almirante Saldanha da
Gama a este, na qual afirma que “[...] O General Piragibe completará o escrito e sentido
desta carta, dizendo-vos de viva-voz a Vossa Excelência o que não convém, neste
momento, confiar no papel” (TAVARES, 2004, p. 102. Grifos realizados pelo autor).
Quanto aos telegramas, devido a grande velocidade com que as informações eram
transmitidas à longas distâncias, as informações eram muito mais céleres. No entanto,
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Pudemos identificar onze temas diferentes nas cartas, muitos dos quais não
aparecem isolados e se interligam, como, por exemplo, as cartas com assuntos políticos,
geralmente aparecem sendo tratados juntamente a correspondências apresentam temas
sobre a estratégia e os destinos da revolução. Dentre os temas identificados estão:
Questões militares/ movimentações militares / ordens113; Reclamações; Questões
militares/ estratégia; Questões militares/ inteligência114; Vandalismo; Assuntos políticos;
Assuntos financeiros; Assuntos internacionais; Assuntos pessoais e outros assuntos.
É importante destacar o teor militar das correspondências, considerando o
período de guerra civil e da graduação de General ocupada por Joca Tavares. Nesse
sentido, concentravam-se neste personagem, além de preocupações militares, as
atribuições de uma atuação política, pois ainda sim era membro do Partido Federalista e
deveria comandar grandes efetivos de soldados, muitos destes correligionários políticos,
em determinados espaços geográficos, o que o levava a entrar em contato com outros
chefes militares e autoridades políticas a quem está subordinado ou que estão
subordinadas a sua pessoa. Somados a estes assuntos, estavam também as questões
pessoais e o forte envolvimento da família Silva Tavares no conflito.
113 Embora na contagem dos números tenhamos chegado ao número de 36 cartas para o ano de 1893, na
análise qualitativa chegamos a uma contagem diferente exatamente por em algumas cartas existiram
diversos assuntos que nos utilizamos para separar as temáticas em uma mesma missiva.
114 Quando utilizamos o termo inteligência, nos referimos às atividades que envolvem o conhecimento de
informações vitais, obtidas sem o conhecimento do inimigo, abrangem assuntos estratégicos, táticos ou de
operações desenvolvidas no âmbito político/militar/civil federalista ou legalista que possam ajudar as
lideranças na tomada de ações e coordenar as movimentações militares procurando obter vantagem sobre
o inimigo.
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Estas cartas possibilitam ter acesso a esse aspecto de sua vida pessoal, poderiam
ser de familiares, amigos, políticos em geral, ou mesmo de “protegidos” políticos deste
chefe. Em carta do dia 1 de novembro de 1893, o Cônego João Inácio de Bittencourt e
Pedro Rodrigues de Borba, escrevem ao General Tavares, além de passar informações,
colocando-se sob sua proteção:
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Porto Alegre, 5 de novembro de 1892. Tio Joca – [...] No dia 1º deste, ainda
não eram 5 horas da madrugada, acordamos, sobressaltados, com baques
horríveis na porta. Papai saltou da cama e levantou a janela do quarto
dele, que abria para a rua, para ver o que era e foi agarrado pelos braços
aos gritos de “Agarra! Agarra!” [...]”(MORITZ, 2005, p. 354-355).
Essa carta evidencia o terror que tomou conta do Rio Grande do Sul no período que
antecede a guerra civil, o qual levou a um êxodo de federalistas para o Uruguai e Argentina
ainda em 1892, diante da forte perseguição realizada pelos partidários de Júlio de
Castilhos contra os federalistas e oposicionistas ao seu governo. Essa carta também
apresenta o envolvimento da família e os interesses pessoais de Joca Tavares misturando-
se aos da Revolução, pois tentou por diversas vezes ao longo do conflito, fazer com que
seu irmão fosse solto por meio de diversas negociações, todas sem sucesso, somente no
final desta é que isso ocorreu.
Conclusão
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Introdução
A chegada dos açorianos no espaço que hoje compreende o Estado do Rio Grande
do Sul se deu em processo gradativo, além de indireto. Essa afirmação pode ser
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evidenciada a partir do início das tentativas entre metrópole e colônia para o envio dos
ilhéus.
Em 1716 ocorreu o que pode ser considerado como o primeiro movimento de
imigração açoriana ao novo continente, com os referidos ilhéus sendo enviados, pelo
desejo do Rei de Portugal D. João V, à Colônia do Sacramento, como transcreve Borges
Fortes em seu título “Casais”:
E como para se povoar, e haver nela moradores, que saibam da cultura,
fui servido mandar ir sessenta casais da província de Trás os Montes, os
quais vão da cidade do Porto, para este Rio de Janeiro, para dele se
embarcarem para a Nova Colônia com os materiais, munições, drogas, e
mais aprestos pertencentes a ela. (BORGES FORTES, 1999, p.7).
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coroa, onde a figura do casal representaria os costumes e a moral portuguesa nas novas
terras, como salienta Dante de Laytano:
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115 Hameister (2005) afirma que para os setores mais hierarquizados dessas sociedades migrar significava
a possibilidade de acessar os recursos e para os grupo chamados “segundões” migrara não lhes possibilitava
títulos de nobreza, no entanto, se projetava como novo começo no continente novo.
116 Sobre esse assunto parte da historiografia, Wiedersphan (1979), Queiroz (1987), considerou os ilhéus
como grupo coeso e homogêneo que supostamente teria trago consigo uma “identidade açoriana” e em seus
trabalhos sobre açorianos se referia a esses como tal.
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Porém, a guerra guaranítica foi um enorme empecilho para a realização deste desejo. A
oposição dos indígenas em deixarem suas moradas, e ainda inflados pelos padres jesuítas,
resultaria em uma revolta contra a desocupação do território, obrigando os açorianos a
serem realocados em outros locais da Capitania.
Segundo Adriano Comissoli (2009) o envio dos súditos ilhéus à América, para a
região das missões, seria:
117Essa ideia está presente na discussão de Martha Hameister no tópico “O Início da Povoação da Vila do
Rio Grande e a posse dos territórios de Sua Majestade” em artigo intitulado: A construção de uma
“identidade açoriana” na colonização do Sul do Brasil ao século XVIII. (2005).
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deu efetivamente da maneira como os projetos e edital assinalavam. Logo, qual foi a
realidade vivida pelos casais na América?
Além das dificuldades logo enfrentadas nas ilhas catarinenses, doenças e angústias
da viagem, desejo de instalar-se ali mesmo e a formação de laços familiares novos, os
imigrantes açorianos encontraram uma realidade não prevista nos projetos da soberania
portuguesa. A primeira delas proveniente do tratado de 1750, que resultou na Guerra
Guaranítica entre indígenas, espanhóis e portugueses.
Mediante esse cenário de instabilidade o encaminhamento dos migrantes
açorianos para o oeste, as antigas missões espanholas, acertado como território
português em troca da colônia do sacramento, teve de ser adiado e gerou o problema da
dispersão desses e também dos indígenas pelo continente de São Pedro118.
Segundo Cleusa Maria Gomes Graebin, “uma vida em trânsito pelos caminhos do
Rio Grande de São Pedro foi o que a maior dos casais açorianos enfrentou desde a sua
chegada” (2006, p.207). Ao acompanhar algumas trajetórias dessa nova população,
através de justificações de matrimônio e registros de batismo, essa autora apontou as
situações de arranchamento em que se encontravam os povoadores açorianos, na
primeira década da segunda metade do século XVIII.
O dispor dos casais e famílias açorianas que aguardavam por acomodações acabou
se dando inicialmente a margem dos rios Guaíba, Jacuí e Lagos dos Patos, como uma
medida provisória. No entanto, enquanto aguardavam fixação esses acabaram se
espalhando pelo continente e se envolvendo em um processo de espera pela posse efetiva
das datas de terra, que durou cerca de duas décadas. As “datas de terra” eram concedidas
pelo governador do Rio Grande aos casais açorianos, em principio, e também a lavradores
e compunham a política colonizadora do sul, no entanto, possuía um estatuto jurídico
próprio. Concedia-se desta forma propriedades que não excediam um quarto de légua em
quadra, ou seja, 272 hectares119. Segundo Paulo Silveira e Sousa:
118 O acomodamento dos indígenas no território português ocorreu com a criação da Aldeia dos Anjos e de
São Nicolau, após o fim da guerra, por ordens do então governador do Rio de Janeiro Gomes Freire de
Andrade. Ver mais em KÜHN, Fábio. O “Governo dos Índios”: a Aldeia dos Anjos durante a administração de
José Marcelino de Figueiredo (1769-1780).
119 Para melhor compreensão da legislação concessão de terras Brasil e sue emprego no Rio Grande do Sul,
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120 O projeto da coroa portuguesa compreendia que a posse do espaço só se organizaria a partir do trabalho
organizado, no qual o latifúndio de sesmarias e as pequenas propriedades se complementariam. Ver CESAR,
Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço. In: DACANAL, José H. GONZAGA, Sergius. RS: Economia e
Política. 2. ed, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1993
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demarcando e regularizando a posse legal das datas concedidas aos casais e filhos de
açorianos121. Segundo Borges Fortes:
A criação das vilas e freguesias, bem como a regularização das posses, via carta de
doação de datas aos migrantes açorianos, precisa ser entendida dentro de contexto de
definição de fronteiras políticas entre os impérios lusos na América meridional. Segundo
Helen Osório (2007) “a regulamentação da propriedade de terra visava a fixação dos
colonos para avançar sobre os campos, apropriar-se de terras e marcar soberania” (2007,
pg. 65). Os colonos referidos são em sua maioria casais migrantes e açorianos da colônia
de sacramento, já que em número de propriedades a categoria “lavrador” representavam
79% dos moradores do Continente em 1784, apesar de terem sido o grupo que menos
detinha terras e encontravam maior dificuldade em acessá-las e/ou ampliá-las.
Helen Osório (2007) demostrou que em uma região até então apenas
compreendida pelo domínio da pecuária extensiva havia uma ampla presença de
domicílios de pequenos produtores declarados como “lavradores”. Esses eram maioria de
origem açoriana e migrados a partir do Edital de 1747 e/ou antigos moradores da colônia
do sacramento, bem como filhos e descendentes desses. Seu sustento se dava a partir de
uma economia mista, na qual eram possuidores de pequenos rebanhos e praticavam a
agricultura de autoconsumo com a comercialização de excedentes para mercados
regionais e ou de exportação para o abastecimento do mercado interno colonial.
A participação dos lavradores na economia gaúcha se deu principalmente a partir
de 1780, momento do século XVIII de maior estabilidade em relação às disputas de
fronteira, através do trigo, produto que compôs as exportações do Rio Grande desde o
revigoramento e desenvolvimento econômico ocorrido no período tardo colonial. O cereal
121
Essa ação política nem sempre esteve de acordo com os princípios do Vice-rei, responsável pela doação
de sesmarias, que em alguns momentos confrontou diretamente com a demarcação das datas,
responsabilidade do governador.
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Considerações
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__. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino.
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acadêmico). Rio Grande, 2004.
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Introdução
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modo que é necessário levar em conta a dinâmica do processo histórico dessa região para
compreender parte da estrutura em que se desenrolaram os conflitos do período
independentista, inclusive a Guerra Grande.
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conflito, uma clara demonstração da fluidez dessa fronteira (VARGAS, 2013). De acordo
com as estimativas apresentadas por Hartmann (2002, p. 79), os farroupilhas mantinham
um exército bem menor que o imperial, e conseguiam fazer frente às suas despesas
através da venda de gado e charque para os países da Bacia do Prata, além dos
investimentos de dirigentes e simpatizantes da revolução. Os farrapos tinham alta
mobilidade por conhecerem bem o terreno, mas perdiam dos imperiais na capacidade
bélica.
Era fundamental ao Império vencer os farrapos, pois sabia-se que as ligações dessa
província com os países platinos era uma séria ameaça à integridade da última monarquia
da região. A Província de São Pedro era fundamental tanto ao Império quanto aos demais
países platinos. Enquanto independente, a República do Piratini abria várias
possibilidades de alianças: poderia unir-se a Entre Rios, Corrientes e Uruguai, para
enfrentar Rosas em Buenos Aires; poderia unir-se apenas ao Uruguai, e assegurar a
independência de Montevidéu e do Paraguai contra a Confederação Argentina; e mesmo
que não se unisse a outro país, serviria como mais um Estado-tampão a proteger a
Argentina dos propósitos imperialistas brasileiros. “Visto sob qualquer ângulo, um Rio
Grande do Sul independente significaria um Brasil mais fraco" (LEITMAN, 1979. p. 52).
Por isso a Revolta dos Farrapos foi um acontecimento bastante relevante para o
decorrer da Guerra Grande, já que a partir dessa revolta o apoio rio-grandense vinha não
apenas de interesses e relações pessoais, mas de estratégia de guerra de uma nova
república que lutava por sua independência. Nesse sentido as alianças ao longo dos
conflitos foram alteradas diversas vezes, em lentos processos de construção de
estratégias que nem sempre culminavam em posições que indicassem coerência. Até
1839, ano da declaração de Guerra que marca o início da Guerra Grande, pode-se dizer
que nesse complexo emaranhado de acertos, por linhas gerais os farroupilhas mantinham
relações preferencialmente com blancos uruguaios e federales argentinos (GUAZZELLI,
2010), enquanto Rivera procurava manter boas relações com o Império.
Uma aliança chegou a ser discutida entre o Império e Rosas contra Rivera, mas os
objetivos de cada parte eram bastante opostos, sobretudo com relação a manutenção da
independência do Uruguai (BANDEIRA, 2012, p. 115). Com Montevidéu sitiada pelos
blancos, em 1843 tanto Rivera quanto os farroupilhas perderam o acesso ao porto para
receber mercadorias como armas, munições, gado e carne. Essa situação era também
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prejudicial aos comércios franceses e ingleses na região, que sem conseguir derrotar
Rosas, acabaram por aceitar acordos de privilégios com o caudilho. O outro importante
porto da província de São Pedro, Rio Grande, estivera na maior parte do tempo da guerra
em mãos do Império. Com os conflitos entre Rosas e Oribe, de um lado, e Rivera do outro,
o Império teria de aproveitar essa divisão para pacificar São Pedro do Rio Grande antes
que qualquer um deles vencesse os conflitos.
Nesse contexto, e mais ainda, desde 1842, acreditava-se que a Guerra dos Farrapos
acabaria a qualquer momento. Por um lado, pelo enfraquecimento de Rivera que surtira
efeitos nos farrapos enquanto aliados, e por outro porque as divisões internas da
República farroupilha prejudicavam suas estratégias de sobrevivência. Assim os farrapos
iniciaram os processos de negociações com o Império, e em meio a isso deu-se o último
combate armado da Guerra: o combate de Porongos, ocorrido em novembro de 1844.
Desse modo, garantindo a integridade do território, a paz de Ponche Verde foi assinada
em 1845. Na mesma declaração em que o comandante farroupilha David Canabarro
comunica às suas tropas o Tratado de Paz, já declarava apoio ao Império contra Rosas. A
partir de então, o Império teria de volta seus “senhores da guerra” caso fosse necessária
uma intervenção na Guerra Grande, para impedir a anexação do Uruguai à Confederação
Argentina por Rosas e Oribe.
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fechou a fronteira proibindo a passagem de tropas de gado para a Província de São Pedro,
com vistas a garantir a produção de charque pelos saladeiros uruguaios (VARGAS, 2013).
Deste modo se intensificava o conflito entre o governo de Oribe e os estancieiros
de São Pedro. Estes foram buscar no Império a defesa que precisavam para suas
propriedades, reclamando a intervenção do Estado naquela região. Além disso, colorados
uruguaios se mantinham refugiados no lado brasileiro da fronteira após o domínio dos
blancos. Segundo Vargas (2013. p. 307), enquanto as reclamações de saques e agressões
eram feitas por proprietários menos prestigiados na região, o Império conseguia manter
o controle do clima de insatisfação, mas quando famílias importantes dessa elite rio-
grandense passaram a ser atacadas, “as retaliações tomaram proporções irreversíveis”.
Por conta própria, os estancieiros de São Pedro buscaram meios retomar as reses
e escravos que acreditavam que lhes era de direito, realizando incursões armadas no
Uruguai. Esses movimentos ficaram conhecidos como “califórnias”, ocorreram entre 1849
e 1850, e participavam não apenas os rio-grandenses, como também os uruguaios e
argentinos refugiados na Província. Entre março e abril de 1849, teriam passado seis
tropas de cerca de 1.000 cabeças de gado cada, segundo denúncia do Coronel blanco Diego
Lamas (FLORES, 2014). Outra denúncia feita por Lamas, em novembro de 1849, envolvia
uma “atividade subversiva” em que se planejava um ataque ao território uruguaio, de que
participavam argentinos unitarios, e colorados uruguaios, com apoio de brasileiros.
Um dos principais líderes das califórnias foi Francisco Pedro de Abreu, também
conhecido por Chico Pedro, Moringue, e Barão de Jacuí, título este que recebeu logo após
o fim da Revolta Farroupilha. Ele possuía várias estâncias na fronteira, tanto do lado
brasileiro quanto do uruguaio, e já vinha sendo denunciado porque estaria organizando
saques e transportes de gado, trazendo-os do território oriental para a Província de São
Pedro, o que o governo de Oribe havia proibido (FRANCO, 2006). Apesar de as arriadas
serem comuns nos conflitos de longa duração dessa região platina, essas “califórnias” que
ocorreram no contexto da Guerra Grande receberam mais atenção dos governos devido a
frequência com que estavam ocorrendo nesse momento, aliada a grande quantidade e a
participação do Barão de Jacuí (MENEGAT, 2015). Segundo a mesma autora, essas
incursões eram distintas do recorrente contrabando da fronteira, pois ao não buscar o
anonimato dos agentes, caracterizavam-se mais por expedições anunciadas.
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novos recursos financeiros, quatro dias após o acordo de paz que dera fim ao sítio de
Montevidéu, foram assinados os cinco Tratados de 12 de outubro de 1851. Um deles foi o
Tratado de Subsídios, pelo qual o Império do Brasil forneceria um valor mensal ao
Uruguai por “por tanto tempo quanto o governo de Sua Magestade (sic) o Imperador
julgar conveniente”, além de uma quantia maior que seria para cobrir as despesas
imediatas, enquanto em contrapartida o Uruguai reconhecia a dívida contraída com o
Brasil durante os anos anteriores (TRATADO, 1851). Essa relação de credor do Império
ficou conhecida como Diplomacia do Patacão, e ainda ocorria em meio à Guerra do
Paraguai, se estendendo para outros tomadores, como as províncias chefiadas por
Urquiza.
Diante da fragilidade uruguaia, os Tratados de 12 de outubro consolidaram a
dependência do Uruguai ao capital brasileiro. Nestes tratados, também se acordou que o
Império do Brasil estaria comprometido a intervir no Uruguai em caso de conflitos
internos. Garantiu-se a livre navegação no rio Uruguai e seus afluentes, e ambos os países
concordaram em não dar asilo a criminosos, prestando-se à extradição recíproca. Além
disso, o Uruguai, já tendo abolido a escravidão para integrar a população negra em seus
exércitos, se comprometia a devolver ao Brasil seus escravos fugidos. E o Tratado de
Limites definia, finalmente, os limites dos dois países, dando ao Brasil a posse exclusiva
da navegação da Lagoa Mirim e Rio Jaguarão.
Esses três últimos tratados, de comércio e navegação, de extradição, e de limites,
foram os que mais interessaram à Província de São Pedro do Rio Grande, segundo Zabiela
(2002). No Tratado de Comércio e Navegação, por exemplo, garantia-se que os uruguaios
no Brasil e os brasileiros no Uruguai estariam isentos de serviço militar, assim como de
empréstimos e impostos de guerra; e caso fosse retirada alguma propriedade deles (o que
só deveria ocorrer em situação de extrema necessidade por parte do Estado), esses bens
deveriam ser devidamente indenizados. Como havia muitos brasileiros no Uruguai, este
país não só perdia contingente como contava com uma ameaça em seu próprio território
(ZABIELA, 2002).
No caso do Tratado de Extradição de Criminosos e Devolução de Escravos, a
soberania do Uruguai foi fortemente atacada, demonstrando a fraqueza de seu Estado
naquele momento. Isso porque ao ter abolido a escravidão, escravos brasileiros que
atravessassem a fronteira contra a vontade de seus senhores deveriam ser livres, mas
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Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo articular algumas das conexões que ligaram a
Guerra Grande com a Província brasileira de Rio Grande de São Pedro, com vistas a
colaborar com a compreensão sobre o porquê a fluidez dessa fronteira ser tão importante
para os estudos acerca das intervenções e interesses do Império do Brasil na região da
Bacia do Prata. A Guerra Grande foi um importante conflito na região platina, e sua
compreensão é bastante difícil quando não se tem em vista as complexidades das
fronteiras dessa região, e a importância geopolítica dos rios da Bacia. Deste modo, pode-
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História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas., Pucrs, Porto Alegre, 2015.
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Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bolsista Capes.
122 Os registros encontram-se no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ), sob as notações
724, 727 e 732. (ACMRJ. Colônia do Sacramento. Livro 2º de óbitos de livres e escravos (1735-1747), fl. 91-
137v; livro 6º de óbitos de negros, índios, mulatos e cativos (1747-1774), fl. 1-54v).
123 Extraído do Compromisso da Mesa do Bem Comum do Comércio da Praça do Rio de Janeiro, de 1753
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Sacramento entre os anos de 1737 a 1752; nesses registros, encontramos os nomes dos
negociantes estudados, que estão assinalados como moradores do Rio de Janeiro e como
proprietários e/ou consignatários dos escravos que faleceram na Colônia do Sacramento.
Isso foi possível porque os padres responsáveis pelos registros atentaram à procedência
dos senhores e consignatários dos escravos que faleciam na localidade. Já as fontes
administrativas são compostas por diversos documentos do Arquivo Histórico
Ultramarino para a localidade do Rio de Janeiro124; nesses documentos, através de uma
busca pelos nomes dos negociantes, foi possível encontrar diversas informações
biográficas sobre esses agentes, como os cargos ocupados, negócios mercantis e, mais
raro, informações sobre suas famílias.
As fontes paroquiais permitem obter informações sobre o comércio ilegal de
escravos na Colônia do Sacramento. O contrabando, justamente por ser ilegal, não
costuma deixar rastros nas fontes, a não ser quando algum contraventor é processado.
Assim, o estudo do contrabando é possível por fontes alternativas, que permitem relances
de informações, como o são os registros de óbitos – embora sua função não fosse
denunciar o contrabando, mas sim registrar os falecimentos, essa fonte acaba por,
ocasionalmente, trazer informações sobre os agentes que praticavam o tráfico ilegal de
escravos. Os registros de óbitos possibilitam a reconstrução, com limitações, das redes
mercantis que ligam a Colônia do Sacramento com outros negociantes e traficantes de
diversas localidades, como o Rio de Janeiro. Embora esse tipo de análise não traga a
quantidade exata de escravos contrabandeados para a região, ela possibilita ter uma ideia
do que se passava, reforçando hipóteses construídas pela historiografia a respeito do
tráfico de seres humanos.
Os agentes estudados viviam em uma sociedade de Antigo Regime; essas
sociedades eram altamente hierarquizadas e estratificadas, sendo o lugar social do
indivíduo definido pelo nascimento e pela ocupação (cargo) que possuía125. O prestígio
124 Tive acesso à documentação do Arquivo Histórico Ultramarino para a capitania do Rio de Janeiro (AHU-
RJ) e do inventário de documentos da localidade feito por Castro e Almeida (AHU-CA) através do Projeto
Resgate, que tem por objetivo disponibilizar documentos relacionados à história do Brasil existentes em
vários arquivos, principalmente no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) de Lisboa. O projeto chegou às
universidades públicas do país através de um conjunto de CD-ROMs com o conteúdo do arquivo digitalizado.
Para maiores informações, acessar: http://www.cmd.unb.br/resgate_index.php.
125
A concepção de Antigo Regime aplicada para a América Lusa – que recebeu o nome, pela historiografia,
de Antigo Regime nos Trópicos – não é uma questão unânime entre os historiadores. Para acompanhar o
debate, sugiro a leitura de: SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra – Política e administração na América
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tinha papel central nas definições de poder e status; a sociedade era entendida como um
corpo que, para funcionar bem, precisava que todos os seus membros tivessem funções
definidas. Nesse sistema, os seres humanos escravizados “constituíam presenças
atemorizadoras, mas vistas como necessárias no Brasil” (VILLALTA, 2016, p. 33), pois
faziam parte da ordem hierarquizante que constituía a sociedade como tal – eram, nessa
lógica, vitais para o bom funcionamento da colônia. Conforme Fragoso, Bicalho e Gouvêa
(2000), o Império português era regido pela economia do bem comum, um conjunto de
bens e de serviços concedidos aos súditos na forma de privilégios, para a defesa do “bem
comum” – as possessões territoriais e seus tesouros. A conquista e a expansão territorial
permitem a Portugal atribuir cargos civis e militares e privilégios comerciais a indivíduos
ou grupos – as chamadas mercês reais –, formando uma aristocracia de beneficiários dos
favores da Coroa. Com a distribuição de mercês, a Coroa retribuía o serviço dos vassalos
na defesa dos interesses reais e, também, “reforçava os laços de sujeição e o sentimento
de pertença dos mesmos vassalos à estrutura política do Império, garantindo a sua
governabilidade” (FRAGOSO, BICALHO, GOUVÊA, 2000, p. 75).
***
portuguesa do século XVIII. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p. 27-77; HESPANHA, Antonio Manuel. “Depois
do Leviathan”. Almanack Braziliense, n. 05, maio 2007. pp. 55-66.
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Fonte: ACMRJ (Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). Colônia do Sacramento. Livro 2º de óbitos
de livres e escravos (1735-1747), fl. 91-137v; livro 6º de óbitos de negros, índios, mulatos e cativos (1747-
1774), fl. 1-54v).
126 É importante ressaltar que os números obtidos não expressam a totalidade do contrabando na região –
afinal, o contrabando não deixa registros detalhados por ser uma atividade ilegal; as conclusões feitas neste
trabalho referem-se aos registros analisados, e ajudam a compreender a realidade social de um entreposto
marcado pelas relações comerciais e pelo contrabando.
127 Domingos Ferreira da Veiga é um homem de negócios atuante na documentação analisada entre 1740 e
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despender recursos com o contrabando para a Colônia do Sacramento. Ademais, pode ter
sido uma escolha desse negociante direcionar seus esforços, neste momento de sua vida,
para esta atividade, aproveitando uma conjuntura favorável. Em uma análise micro-
histórica, Veiga era um indivíduo ativo e racional, que “opera escolhas num universo
caracterizado por incertezas e obrigações que dependem particularmente da distribuição
desigual das capacidades individuais de acesso à informação” (LEPETIT, 1998, p. 88).
Assim, ele soube aproveitar, dentro desse quadro e das possibilidades disponíveis,
oportunidades que o beneficiassem – o que não significa que os homens de negócio que
apareceram apenas uma vez não o fizessem; o que é melhor para um negociante não é o
melhor para todos, necessariamente.
Já ao analisar o período em que esses agentes aparecem nos registros, verifica-se
o seguinte: apenas um – Domingos Martins Brito128 – aparece no primeiro quinquênio
(1737-1741), enquanto que 16 comerciantes aparecem no segundo (1742-1746) e 14 no
terceiro (1747-1752), sendo que dois homens de negócio atuam tanto no segundo quanto
no terceiro quinquênio – Agostinho de Faria Monteiro129, que aparece cinco vezes nos
registros entre os anos de 1742 a 1751, e João Gonçalves da Costa130, que também aparece
cinco vezes, entre os anos de 1743 a 1750. O número elevado de comerciantes atuando
nos dois últimos quinquênios (1742 a 1752) pode estar relacionado ao fato de que é por
volta desse período, ou seja, metade do século XVIII, que ocorreu o auge do comércio na
região do Prata. Foram anos de poucas hostilidades entre as Coroas de Portugal e
Espanha, o que possibilitou maior aproximação e facilidade na realização do comércio e,
também, do contrabando na região. Estima-se que, entre 1740 e 1760, cerca de 1200
escravos entraram na Colônia do Sacramento por ano, devido ao contrabando praticado
quase sem repressão (KÜHN, 2012, p. 188).
No mundo colonial setecentista, o contrabando, apesar de ilegal, tinha regras bem
definidas e era estimulado pelas autoridades que deveriam combatê-lo; os
contrabandistas eram verdadeiros “empreendedores que pertenciam ao sistema, com
128 Domingos Martins Brito, homem de negócios e moedeiro, figura na documentação entre os anos de 1725
a 1749; foi Juiz da Alfândega do Rio de Janeiro e seu irmão, João Martins Brito, também era comerciante
destacado na praça fluminense.
129 Agostinho de Faria Monteiro é mencionado na documentação entre 1755 até 1757; foi Recebedor da
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boas conexões com as elites governantes” (KÜHN, 2012, p. 195). Através do contrabando
de escravos, os comerciantes conseguiam obter melhores lucros e os compradores
menores preços, visto que os seres humanos escravizados não passavam pela taxação da
Coroa; muitos funcionários da administração imperial se envolviam em esquemas de
contrabando, fazendo vista grossa em troca de ganhos materiais. Na Colônia do
Sacramento, o contrabando tinha frequência cotidiana: as autoridades e os comerciantes
“confundiam-se com os contraventores”; a região, conectada ao “complexo portuário rio-
platense, e fortemente vinculada ao comércio com portos da costa do Brasil”, acabava,
portanto, reproduzindo “localmente os valores e mecanismos das sociedades ibéricas do
Antigo Regime” (PRADO, 2002, p. 189). Isso significa dizer que, em sociedades de Antigo
Regime, os súditos deveriam se esforçar para realizarem o bem comum, defendendo os
interesses reais; o contrabando, em si, não feria o bem comum, pois “era recomendável,
ao menos tacitamente, participar das oportunidades da economia colonial amealhando
ganhos para o patrimônio familiar” (FIGUEIREDO, 2008, p. 177). Assim, as vantagens que
os funcionários obtinham em seus cargos não significavam, necessariamente, um
empecilho para o bom funcionamento do governo e da sociedade, sendo, então, toleradas.
***
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131O autor analisa os dados de entrada de escravos pelo porto do Rio de Janeiro de 1700 até 1799,
realizando uma projeção para os anos em que há lacunas dessa informação nas fontes, chegando ao
estarrecedor número citado acima.
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na rota para a Colônia (PRADO, 2002, p. 149-152). Mesmo sendo um comércio que
exigisse investimentos iniciais elevados para suprir as distâncias e os perigos de uma
região de fronteira em constante disputa, os negócios eram excepcionalmente lucrativos
para os grandes comerciantes fluminenses, que faziam questão, por isso, de manter os
laços com os sacramentinos.
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ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 174-182.
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VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822). Rio de
Janeiro: FGV Editora, 2016, p. 25-95.
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PARTE 2
Carlos D. Paz
Eliane Cristina Deckmann Fleck
Guilherme Galhegos Felippe
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A modo de introducción
Doktor en Philosophie, Universidad Católica “Nuestra Señora de la Asunción, PRONII-CONACYT.
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132 Se denomina traducción inversa, la que se hace del idioma del traductor a un idioma extranjero.
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para enseñar el idioma español a los indígenas. El pedido del arzobispo mexicano fue
atendido por Carlos III, el mismo expidió la cédula que firmó en Aranjuez, a 10 de mayo
de 1770, en la que ordenaba a todas las autoridades del Perú, Nueva España y Nueva
Granada que extiendan el aprendizaje del idioma español (Torre Revello, 1962, p. 524).
Sin duda, con esto pretendía que “de una vez se llegue a conseguir el que se extingan los
diferentes idiomas de que se usa en los mismos dominios y sólo se hable el castellano,
como está mandado por repetidas leyes, reales cédulas y órdenes expedidas en el”. (Torre
Revello, 1962, p. 524).
Mientras que, en Paraguay se hablaba y se escribía en guaraní en las Reducciones
de los jesuitas el tiempo que duró la misión, las pruebas son los escritos de los naturales,
aun sin prohibir el castellano a aquellos que deseaban aprenderlo, como lo ha anotado un
historiador del siglo XVIII: “En cuanto á la lengua española, en ningún tiempo ni de
ninguna manera se les ha impedido que la hablasen, como ni se les ha forzado á hablarla
en tiempo ni manera alguna”. (Charlevoix, /1756/, 1912, p. 57).
De todas maneras, urgía el aprendizaje de la lengua indígena, si querían encaminar
también la conquista espiritual. Frente a quienes afirmaban que las lenguas indígenas son
pobres y carentes de palabras apropiadas para expresar la nueva doctrina, el misionero
responderá con su práctica de traducción en guaraní, con la que muestra que esta lengua
es capaz de dar nombre a todo. Lo importante y necesario es simplemente dominar la
lengua. No obstante, esta posibilidad le ocasionará dificultades en la práctica pastoral,
como sabemos por la historia. (Melià, 2003, p. 209-260). Particularmente, los temas
refutados por Montoya en su Apología en defensa de La Doctrina Cristiana escrita en
Lengua Guaraní (p. 33ss.). En principio, tanto Bolaños como Montoya, y los misioneros en
general, habían aplicado ciertos términos cotidianos a lo sagrado, como se ha hecho en
muchas religiones. (Otazú, 2006, p. 98). No obstante, se debe admitir que muchos de los
términos cotidianos empleados en la misión con una connotación religiosa específica tal
vez no fueron asimilados de forma inmediata en su nuevo sentido.
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llamarse universales de cada idioma. En este sentido, vale resaltar esta opinión, en torno
a la traducción, bastante extendida desde tiempos pasados, y recogida por un lingüista del
siglo pasado “todas las lenguas debían comunicarse entre sí porque hablaban, todas y
siempre, del mismo universo, de la misma experiencia humana, analizada según
categorías del conocimiento idénticas para todos los hombres”. (Mounin, 1977, p. 58-59).
Por un lado, los distintos registros de la traducción dejan entrever, cuáles son los
motivos de la decisión de traducir palabra por palabra, lo términos que, en principio,
tendrían correspondencia en cada cultura. Por otro lado, podemos especular que esta sencilla
práctica podría haber generado cierta interrogación sobre su alcance y comprensión y tras una
profunda reflexión habrían sentido la necesidad de investigar las costumbres nativas,
especialmente, su sistema de parentesco y organización social. A continuación, van algunos
ejemplos que surgieron de la traducción por equivalencia en el catecismo:
Túva, padre; ta’ýra, hijo; memby, hijo (de mujer); menda o mendára, matrimonio; yvága,
cielo; kuái o kuaitáva, Los Mandamientos de la Ley de Dios; marangatu, Santo.
Al parecer no hubo ninguna dificultad para encontrar la equivalencia de la palabra
padre en guaraní que se expresa túva, pues, en cada cultura hay un padre; sin embargo,
cuando se trata transferir el concepto de Dios Padre a una cultura diferente, pudo haber
presentado cierta resistencia de parte de los misioneros y de los nativos para aceptar y
asimilar, aun cuando en la teogonía guaraní hay también un dios que es padre.
Consideramos que habrá sido más difícil llegar a un consenso para la resemantización del
uso de ta’ýra y memby para la traducción de hijo del padre o de la madre, de Dios o de la
Virgen María, respectivamente. En esta acción se separa la palabra de su contexto cultural
tradicional, se la aparta de su significado más común y viene conceptuada en un nuevo
nivel mediante la nueva analogía: Hijo de Dios Padre, que habitualmente será escrito en
mayúscula.
La creación de neologismo
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el sistema guaraní. Como también ha ocurrido con otras lenguas de América, durante la
primera evangelización, según los diversos documentos y afirmaciones de los estudiosos:
Los primitivos misioneros lingüistas del Paraguay optaron muchas veces por el
recurso de neologismo para adaptar la Doctrina cristiana a la cultura meta, la guaraní. Así
pues, procedieron a crear nuevas palabras para dar a conocer a los nativos los conceptos
básicos del cristianismo. Aunque, en dicho emprendimiento habría que reconocer
también la participación de los interpretes “lenguaraces”, de quieres los guaraníes
recibieron inicialmente el mensaje evangélico y como resultado se inauguró la práctica
cristiana guaraní.
Como ejemplo de neologismo citamos los siguientes:
Cristiano ñemoñangáva (neologismo híbrido), Bautismo.
Tupã, Dios. La palabra Tupã, como Dios, que adoptaron los misioneros implica una forma
de relación entre dos conceptos, al mismo tiempo que supone una arriesgada creatividad
misionera. Tupã en los textos cristianos será de hecho un neologismo propio e
independiente, una creación de sentido nuevo, que los indígenas sólo aprenderán a través
de una nueva educación y mediante los usos nuevos que harán del término.
Tupãsy, Madre de Dios. De este neologismo salen varias composiciones. La principal,
evidentemente, es Tupãsy: Tupã, Dios y sy, madre. Tupãsy, “Madre de Dios” (Montoya,
1639, p. 403v.) Luis Bolaños, ya la conocía y usaba, como se puede apreciar en su Doctrina
Cristiana: Sancta María, Tupãsy marane’ỹ mba’e, eñembo’e nde membýra upe, [lit.: Santa
María sin pecado o sin mancha, ruega a tu hijo] (Bolaños, 1607, p. 409).
Tupã rara, comunión.
Montoya al crear este neologismo para traducir el concepto de comunión: Tupã rara,
recoge un aspecto casi intimista del rito, dejando de lado su aspecto más eclesial y
comunitario. En la vida guaraní estaba la antropofagia, cuya memoria se procura
desterrar definitivamente. Sin embargo, llama la atención que Montoya haya ofrecido una
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traducción en su Tesoro (1639, p. 405) cuando dice: Che ro’o i’upy rete, “mi carne es
verdadero manjar” y, sobre todo, cuando pone la comunión en un contexto de convite con
reminiscencias antropofágicas, al decir: Tupã oñembopepy ñandéve, gu’o ho’ukávo,
“hácenos Dios convite con su carne” [lit.: Dios nos convida para darnos de comer su carne]
(Montoya, 1639, p. 268v).
Otros neologismos son: Tupã Gracia, la gracia de Dios; Jesu Cristo ñandejára, Nuestro
Señor; Jesu Cristo (Montoya, 1640, p. 16); Cruz ra’ãngáva, la Santa Cruz; Cruz pype
ikutupyre, fue crucificado; Hekove jevy, Resurrección (Montoya, 1640, p. 19). Avare
ñemoñangáva; Orden sagrado; Añaretã o Añaretãma, infierno, entre otros.
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402v.) y pudimos verificar que Paulo Restivo lo traduce por misa moñangára (Restivo,
1722, p. 68).
Tampoco fueron traducidos los términos: Apóstol; Cáliz; Crisma; Cristo y Cruz.
(Bolaños, 1607, p. 110); (Montoya, 1640, p. 186); Por su parte, la palabra Hostia
permanece en castellano tanto en la Doctrina Cristiana (Bolaños, 1607, p. 110) como en
el Catecismo de Antonio Ruiz de Montoya (Montoya, 1640, p. 222); (Montoya, 1640, p.
186), sin embargo, la traduce Montoya en su Tesoro por mbujape en la explicación de
Consagración: Montoya, 1639, p. 10.
La transformación semântica
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Con este amplio campo de aplicación y uso, no es extraño que haya pasado a la
Doctrina de Bolaños y al Catecismo de Montoya, precisamente, para traducir la virginidad
de María. Ella es ciertamente la intacta, la incorrupta, la pura y limpia, la inocente, buena
e inculpable, la no traqueada y la no usada. Marãnungápe osy marane’ỹgui i’ari ra’e?,
“¿Cómo pudo nacer de Madre Virgen?” [lit.: ¿por qué nació de su madre intacta o virgen?]
(Montoya, 1640, p. 55).
Otros términos que fueron transformados semánticamente están relacionados con
las prácticas rituales y preceptos: Hovasa, bendecir; jekoaku, Ayuno; Arete guasu, Fiesta, y
los referentes a conceptos cristianos desconocidos en la cultura guaraní, tales como:
Salvación, pysyrõ pecado, angaipa, entre otros.
Consideraciones finales
Referencias bibliográficas
BOLAÑOS, Luis. Doctrina Christiana en lengua guaraní, in Oré, Luis Jerónimo Rituale, seu Manuale
Peruanum. Nápoles, p. 408-413., 1607.
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CHARLEVOIX, Pedro Francisco Javier. Historia del Paraguay, t. II. Con las anotaciones y
correcciones latinas del P. Muriel. Traducida al castellano por el P. Pablo Hernández de la misma
Compañía. Madrid: Librería general de Victoriano Suárez, /1756/ 1912.
ENCINAS, Diego de (Recopilador). Cedulario Indiano, IV. Madrid: en la Imprenta Real, 1596.
Facsímil del original. Madrid: Ediciones Cultura Hispánica, 1945.
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SUÁREZ Roca, José Luis. Lingüística misionera española. Oviedo: PENTALFA Ediciones, 1992.
TORRE Revello, José. “La enseñanza de las lenguas a los naturales de América”, Thesaurus, XVII/3,
Bogotá, p. 501-526, 1962.
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As conclusões apresentadas nesse trabalho são fruto da dissertação defendida em Junho deste ano, na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), intitulada: “Jorge Benci e missão: A
reconstrução da trajetória de um jesuíta italiano na América Portuguesa”, pesquisa feita sob a orientação
do Professor Dr°. Anderson José Machado de Oliveira, e financiada pela CAPES durante todo o curso.
Agradeço publicamente ao professor Anderson Oliveira, pela orientação e dedicação. Agradeço também ao
meu professor de Latim Braulio Pereira, e a professora Márcia Amantino. E-mail para contato:
natalia_hist@yahoo.com.br
Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (2017). Integrante
do grupo de pesquisa ECCLESIA - Grupo de Estudos de História do Catolicismo, da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. Licenciada (2010) e Bacharel (2011) em História pela Universidade Gama Filho
(UGF), Pós-Graduada em História do Brasil Colonial (2013) pela Faculdade São Bento do Rio de Janeiro
(FSBRJ), e Pós-Graduada em Ciências da Religião (2016), também pela Faculdade São Bento do Rio de
Janeiro (FSBRJ).
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da Bahia, foi também Visitador Local e Secretário Provincial. Serafim Leite ressalta que
“nesta qualidade esteve em S. Paulo a tratar das administrações dos Índios.” (LEITE,
Serafim. 2004, tomo VIII, p. 234, 235). Pelos cargos ocupados entendemos que Jorge Benci
fez parte de uma elite intelectual italiana presente na América Portuguesa. Mais do que
isso, acreditamos, mesmo não havendo dados oficiais em Serafim Leite e Carlos
Sommervogel, que Benci fazia parte do seleto grupo de jesuítas que tinham professado o
quarto voto.
Para O´Malley no nordeste da Itália e em Portugal houve um número de jesuítas
maior oriundos de “famílias nobres, ricas e aristocráticas, mas isso não era verdadeiro para
outras partes da Europa. Porém, nas primeiras regiões mencionadas, praticamente,
ninguém, exceto os irmãos leigos, provinha de classes sociais mais baixas.” (O’MALLEY, John
W., 2002, p. 98). Jorge Benci nasceu na cidade de Rimini, no nordeste da Península Itálica,
fato este que nos permite cogitar o seu pertencimento a uma elite da região. Essa hipótese
nos permite compreender melhor a trajetória de Benci, entendendo não só o seu lugar
social de fala, mas também o grupo de quem e para quem ele falava.
Benci escreveu cronologicamente os sermões: O Sermão Sentimentos da Virgem
Maria N. S. em sua Soledad, O Sermão do Madato, o Sermão de S. Felippe Neri. Em 1700
Benci reuniu os sermões: “As Obrigações dos Senhores para com os Escravos”, e criou um
tratado intitulado de Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. Por fim, Benci
escreveu a obra De vera et falsa probabilitate opinionum moralium. Do mais, há as cartas
escritas e trocadas por Benci durante sua vida no interior da Companhia de Jesus. Estas
são escassas e com poucas informações, mas nos permitem compreender os meandros
das relações interpessoais e das políticas internas no seio da Companhia de Jesus.
A querela indígena
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Entre os anos de 1688 a 1691 o Padre Antônio Vieira ocupava o cargo de Visitador
da Província, e como já bem sabido, este saiu em defesa da liberdade dos indígenas, e deste
modo, desejava que a administração temporal e espiritual daqueles fossem obrigações
exclusivas dos inacianos, que deveriam ordenar os aldeamentos e as missões ao sertão.
Essa questão acirrou os ânimos com os paulistas, o que fez com que os jesuítas acabassem
expulsos do Colégio de São Paulo. Entretanto, ao assumir como provincial, em 1684, o
padre Gusmão não aceitou a ideia de que os jesuítas saíssem da Província, desejando criar
um acordo com os paulistas. Como nos aponta Serafim Leite, Alexandre de Gusmão, junto
com seu secretário o padre João António Andreoni, vão a São Paulo para ouvir o motivo
pelo qual o governador local e o bispo do Rio de Janeiro eram contra o fim do Colégio. Com
a oposição entre colonos e jesuítas mais uma vez polarizada, Gusmão criticou os seus
irmãos inacianos que usavam os indígenas para trabalhos domésticos. E nesse interim do
conflito, os paulistas já tinham autorização da Coroa para realizar o aprisionamento dos
indígenas, realizando diretamente sua forma de administração. Em função dessa querela,
Gusmão se predispõe a idealizar a solução para o conflito. Sua ideia era satisfazer os
desejos de todos os envolvidos, autoridades locais, jesuítas e colonos, e aos índios garantir
o que os inacianos consideravam liberdade possível135. Deste modo, Gusmão aceitou a
utilização dos indígenas pelos paulistas, indo contra Antônio Vieira, que diretamente o
acusava de permitir que padres estrangeiros decidissem uma questão tão importante,
questionando a participação no debate dos padres considerados estrangeiros, como, o
italiano Jorge Benci e o flamengo Jacob Rolland.
Jacob Rolland é considerado o autor do manuscrito Apologia Pro Paulistis, de 1684,
que foi conservado na Biblioteca Nacional de Roma e versa sobre o porquê de os
habitantes de São Paulo e das vilas adjacentes não deviam desistir dos índios do Brasil.
No documento fica nítida a importância de São Paulo no contexto colonial, sendo chamado
de reino paulista, e afirmando que os paulistas “devem ser absolvidos pelos nossos Padres,
135
Como definiu José Eduardo Franco, liberdade possível para os inacianos era: “Os jesuítas – homens do
seu tempo – em relação ao índio defendiam a “liberdade possível”, isto é, aquela que o pensamento político-
ideológico da época permitia, correspondente aos objetivos espirituais da igreja e os interesses temporais
do Estado Português. A liberdade do gentio no mato não era considerada pelos inacianos uma verdadeira
liberdade, pois uma só existia, segundo a Igreja, na comunhão com Cristo. O índio para ser livre precisa ser
cristianizado. Os padres da Companhia, no Brasil, mesmo defendendo a liberdade do indígena, não se
omitiam do respeito às leis régias que estipulavam as condições e a situação que a escravidão era
permitida.” In: (FRANCO, José . 2006. p.169).
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sem que mudem o seu costume, nem dêem a liberdade aos índios, seus escravos.” (ROLLAND,
Jacob, 2009, p. 389). É interessante a nosso ver observar que a justificativa do costume
paulista de utilizar a mão de obra indígena não é só apresentada pelos colonos, mas
também pelos jesuítas considerados como estrangeiros, opositores da tese de Antônio
Vieira, mostrando que, como afirmou John Monteiro, o costume teria uma força de
tradição naquele contexto136. Segundo Rolland, os paulistas não teriam como prosperar
sem a “ajuda” indígena, afirmando que nem com os africanos teriam sucesso em seu
desenvolvimento, pois além do alto preço dos etíopes, esses eram poucos e não dariam
conta do contexto paulista. Sendo assim, para aqueles que achavam que os paulistas
pecavam, Rolland afirmava que eles estariam absolvidos, pois agiam conforme o seu
costume.
A Apologia afirmava que as leis da Coroa e do Papa não poderiam interferir nos
costumes paulistas, não estando esses em estado de pecado, e deste modo o Breve Papal
de Urbano III deveria ser desconsiderado, sendo os paulistas absolvidos e devendo
receber os sacramentos. Entretanto Rolland ressaltava que essa consideração só tinha
validade para os paulistas, e não para os habitantes de outras regiões, como os do Rio de
Janeiro, da Bahia ou de Pernambuco, pois estes teriam meios financeiros de usar a
escravidão africana, além de não terem o costume de usar mão de obra indígena. Mais do
que questões políticas e econômicas, Rolland afirmava a importância cristã do trabalho
dos paulistas. Essa importância do governo cristão levou Carlos Alberto Zeron a pensar a
Apologia como sendo um pequeno tratado escolástico, o qual deve ter tido uma circulação
na Companhia de Jesus. (ZERON e RUIZ, 2009, p. 114).
Pela Apologia Pro Paulistis, conseguimos enxergar claramente o racha interno na
Companhia de Jesus, acerca da questão indígena. Para Rolland, os índios poderiam ser
escravizados pelos paulistas, contrapondo-se diretamente à posição de Vieira.
Conseguimos entender a posição de Rolland137 e dos demais dissidentes da posição oficial
136
Para Rolland, “as leis são estabelecidas quando promulgadas, mas se firmam quando comprovadas pelos
costumes dos que a praticam.” (ROLLAND, Jacob, 2009, p. 400). E o costume paulista já era tão inerente que
criou uma nova lei. Baseando-se em filósofos escolásticos, como por exemplo Francisco Suaréz e Paul
Layman.
137
Para Zeron, Rolland “constrói um argumento histórico, apoiado em razões teológico-jurídicas, que
empresta total legitimidade ao fundamento escravista da sociedade colonial paulistana, que se
particularizava pela escravização sistemática e indiscriminada da população indígena.” (ZERON e RUIZ,
2009, p. 124).
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Os índios do Brasil são naturais delas, de onde têm seu domicílio e vivem
em terra e pátria própria e de sua nação, pais avós, e como partes da
mesma comunidade e membros do corpo político que devem conservar e
aumentar, e não diminuir nem desfazer; e pelo contrário os índios
chamados de São Paulo, nenhuma obrigação têm àquela povoação e
república, donde saíram os que por suma violência e tirania os
arrancaram de suas terras e pátrias; e obriga-los a que conservem a dos
paulistas.(LEITE, Serafim. 2004, tomo VI p. 536).
A opinião de Vieira sobre a escravidão indígena é uma das suas opiniões mais
fortes e concisas, desde os primeiros textos ele mantém sua posição. Em 24 de Julho do
mesmo ano, escrevia Vieira ao Duque de Cadaval, reafirmando a sua posição relativa que
a administração dos indígenas, indo em oposição contrária aos demais jesuítas, pois:
Sobre a administração dos índios, concedida aos Paulistas, foi servido Sua
Majestade que eu também desse o meu voto, em que não me conformei
com os demais, por ver que todo o útil se concedia aos administradores,
e todo o oneroso carregava sobre os miseráveis índios, a quem em todas
as voltas ou mudanças que sempre a roda da fortuna leva debaixo. O
modo, que me ocorreu, de concordar com a sua liberdade com
consciência e interesse dos que tanto lhe devem, então terei por acertado,
quando saiba que não desagradou a Vossa Excelência, posto que a
esperança das minas, que eu não creio, pode ser que incline ao favor
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João Lúcio de Azevedo na biografia de Viera já havia feito alusão aos padres
estrangeiros, e segundo Serafim Leite, estes seriam Benci e Antonil, que influenciaram o
Padre Alexandre de Gusmão e também os padres Antônio Rangel e Domingos Ramos.
Segundo Viera, em carta datada de 21 de Julho de 1695, mesmo estes tendo boa ciência,
não tinham vivência para tratar de tamanha questão, “não se sabe que nenhum de todos
eles tratou, em toda a sua vida, com índios, nem lhes sabe a língua, expecto um, que fala
alguma palavra”. (VIEIRA, Antônio. In: FRANCO; CALAFATE; PRIORI, 2014. p.504).
Afirmava também que havia outros padres contra o tal acerto, que também não assinaram
o documento, pois assim como ele conheciam a prática e cotidiano das aldeias.
Vieira era contra o acordo, justificando novamente a sua experiência com as
aldeias, e contando ao padre Manuel Luis que quem havia escrito aquele texto era “um
padre italiano que nunca viu um índio, e só ouviu aos paulistas, como fez outro flamengo
chamado Rolando”. (VIEIRA, Antônio. In: FRANCO; CALAFATE; PRIORI, 2014. p.505).
Posteriormente, na mesma carta Vieira usa a expressão seita paulistana, realizando a
analogia dos paulistas com os calvinistas e luteranos.
Serafim Leite (LEITE, Serafim, 2004, tomo VI, p. 538) faz uma constatação que nos
interessa muito, afirma que o padre Jorge Benci ao saber da fala de Vieira sobre o padre
italiano que havia organizado o acordo, mas nunca tinha visto um índio, ficou estimulado
a estudar o cotidiano e a situação dos escravos, o que o levou a escrever a Economia Cristã
dos Senhores de escravos. Não temos acesso a documentos que nos permitam corroborar
a afirmativa de Serafim Leite, mas pela conjuntura do conflito interno da Companhia
acreditamos sua suposição.
Mesmo internamente enfraquecido, em função das articulações de Benci, Antonil e
Gusmão, Vieira tinha um poder singular, pois mantinha seu prestigio junto ao Rei,
independente da conjuntura interna da Companhia de Jesus. O que fez com que o seu voto
ressoasse e influenciasse diretamente as Cartas Régias de 26 de Janeiro e 19 de Fevereiro
de 1696 que determinavam uma divisão mais justa dos índios, e que estes trabalhassem
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alternadamente para os colonos e para si, podendo permanecer no máximo quatro meses
no sertão. Segundo Serafim Leite, mesmo na prática essas normas não sendo cem por
cento cumpridas, ficaram claros os novos métodos de missionar junto aos índios paulistas
e a influência direta de Vieira na América Portuguesa.
No decorrer dos anos, todos os colégios da Companhia de Jesus passaram a utilizar
a mão de obra escrava negra, com exceção dos Colégios de São Paulo e Santos, que
permaneceram com a indígena. Em 1700, já com a escravidão negra tomando corpo, nos
colégios de São Paulo ficou determinado que os indígenas poderiam ter um segundo
trabalho, caso o seu sustento não estivesse sendo suficiente.
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tridentinos, associados à realidade colonial. Esse seu desejo normatizador busca criar
uma disciplina, que possibilitaria uma prática colonial pautada em preceitos cristãos.
Tendo como base para seu projeto o problema do direcionamento das consciências, isto é
materialidade do poder indireto, onde a questão moral, a disciplina dos sacramentos e o
ensino da fé ganham força como instrumentos de um projeto.
Inicialmente achávamos que a querela entre os jesuítas, que opôs facções, seria
somente uma oposição entre italianos e portugueses, ou até entre Alexandristas e
Vieirianos. Mas no decorrer da pesquisa, observamos que mais do que uma questão de
naturalidade, essa contenda era política. O que estava em jogo era a forma que a missão
deveria funcionar. Mais do que personagens, o conflito revela diferentes visões de mundo
e formas opostas de realizar a missão. O problema para Vieira, mais do que os italianos,
eram os estrangeiros no geral. Sendo estrangeiros todos aqueles que não concordassem
com a sua visão a respeito da escravidão indígena.
Vieira em carta endereçada a Sebastião de Matos e Souza, datada de 27 de Junho
de 1696, afirma que não havia contenda entre Vieirianos e Alexandristas, mas que
“inventou-se a batalha para me levarem em estátua manietado e vencido no imaginário
triunfo”. (VIEIRA, Antônio. In: FRANCO; CALAFATE; PRIORI, 2014. p.515). Em diversas
cartas já analisadas por nós do Padre Vieira, percebemos que este a todo o momento
pontua o conflito, lamentando-se, pois depois de todo o trabalho realizado pela Província
do Brasil, sua voz não era única, e seu projeto missionário não era considerado o mais
sólido e funcional. Os vencedores desse debate teórico sobre os indígenas marcavam seu
lugar na hierarquia da ordem e legitimavam o funcionamento de seu método missionário.
Como já sabemos, Vieira era contra estrangeiros assumirem altos cargos, já Alexandre de
Gusmão era a favor de que se estabelecesse um clero local, formado pelos filhos da terra,
logo os italianos não teriam voz ativa? Sabemos que não foi bem assim, e por isso,
afirmamos que mais do que a naturalidade, o que importava era o avanço político de suas
teorias. Em termos do estabelecimento de uma voz ativa, podemos observar um jogo de
poderes, uma gangorra que oscilava entre os diferentes grupos.
A nosso ver a facção oposta a Vieira, mais do que estar preocupada com os colonos,
estava sim, interessada em compactuar com os jogos políticos e econômicos daquela
região, constituindo estratégias, que tinham como objetivo manter seu status e poder
dentro da Companhia. Vieira podia ser o centro norteador do conflito, mas este era muito
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maior do que ele. Ao copilarmos os dados do padre Serafim Leite, formulamos um quadro
que aponta que mais do que nacionalidades ou pessoas, o que estava em jogo era um plano
político missionário, pois diferentes naturalidades eram contrárias a Vieira, incluindo
portugueses e nascidos no Brasil.
138
Dados obtidos a partir da obra de Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil.
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BENCI, Jorge. Sermão de São Felippe Neri, na capa da fonte está escrito: “Sermam de S.
FELIPPE NERI”, e na fonte Benci chama o texto de sermão. Mas Serafim Leite e Carlos
Sommervogel, o chamam de Panegírico de S. Filipe de Néri. Panegírico de S. Filipe de Nerí
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LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomos I, II, III, IV, V, IV, VII, VIII,
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Carlos D. Paz
FCH-UNCPBA, Dpt. De História. paz_carlos@yahoo.com / ychoalay@gmail.com Agradezco el interés que
suscitó esta presentación así como los generosos comentarios que realizaron, entre tantos otros, Maria
Cristina dos Santos, Maria Regina Celestino de Almeida, Eliane Cristina Deckmann Fleck, Perla Chinchilla,
Giovanni José da Silva y Guilherme Galhegos Felippe. Dichas apreciaciones serán desarrolladas en un
próximo escrito de mayor extensión.
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la Historia. Uno de esos grandes problemas lo constituye las tan afamadas borracheras
indígenas.
Las reducciones en el espacio chaqueño, desde la justificación elaborada por los
miembros de la Compañía de Jesús, y luego canonizada por una historiografía por demás
atenta a la empresa reduccional aunque sin grandes cuestionamientos sobre el rol nativo
en aquellos espacios, parten de la necesidad, nativa e hispano-criolla de poner fin, o al
menos contener, a un largo período de enfrentamientos que ponían en jaque a los
establecimientos productivos y ciudades que circundaban el Chaco. En lo que concierne a
las poblaciones nativas, se hace referencia, siempre desde el cuerpo documental
elaborado por los dispositivos de poder coloniales, a cómo es que algunos grupos, v. g.
abipones y mocobíes, habían aceptado reducirse como una forma de alcanzar un
equilibrio social que brindara a aquellas comunidades la oportunidad de apartarse de
aquella idea romántica, propia de una historiografía del siglo XX, de un ser-para-la-guerra
(CLASTRES, 2001; 2008). La guerra, como función sociológica, estaba siendo cuestionada
por los mismos indígenas y fueron algunos líderes nativos los que encabezaron las
negociaciones que culminaron con la formalización de la reducción (CARDIEL, 1747a;
1747b; DOBRIZHOFFER, 1968).
La reducción, en el marco de este proceso, se fue conformando lentamente como
un espacio en dónde algunas prácticas nativas debían de ser dejadas de lado a los efectos
de alcanzar los logros que la práctica misional definía como prioritarios. Uno de los puntos
más importante era la conformación de una civitas cristiana en el Chaco y en ella no tenían
lugar prácticas comunitarias que contradijeran u ofendieran el sentido estético que la
acción reduccional jesuítica movilizaba. Para ello los sacerdotes impulsaban un profuso
esquema de sustitución de prácticas culturales así como la persecución, más retórica que
real, de formas sociales consideradas como contrarias a la Doctrina cristiana (MARTÍNEZ
SAGREDO, 2013). Dentro de este conjunto de hábitos es necesario referir a los intentos
por desarticular o bien desmovilizar aquellas prácticas sociales que, como las
borracheras, dotaban de sentido, articulaban y reproducían materialmente a diversas
redes parentales. Dichas redes parentales controlaban diversos territorios mediante el
ejercicio de la poligamia así como por medio de funciones rituales que tenían lugar en
distintas épocas del año. Práctica social, la borrachera, que, junto con algunos usos y
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tratamientos del cuerpo propio así como de aquellos enemigos abatidos en combate, era
condenada por los jesuitas y presentada como propia de salvajes.139
En este contexto la borrachera fue considerada por los miembros de la Compañía
de Jesús como aquel de los vicios morales sobre el que mayor atención debían de colocar
los sacerdotes. “Póngase especial cuidado y diligencia en que los indios no beban chicha
de noche”, expresaba el padre Felipe Suárez, el 5 de octubre de 1725 en el Pueblo de San
Ignacio de Chiquitos (PIANA-CANSANELLO, 2015, p. 198). Una mención documental que
puede hacerse extensiva a cualquiera de las reducciones del Chaco así como del Paraguay;
incluso mencionando poner atención denodada para impedir que hombres y mujeres
‘solteros’ bebieran en conjunto.
Según el cuerpo documental elaborado por aquellos misioneros cualquier
situación, así como contextos variables, parecía inflamar los ánimos de bebedores
empedernidos siempre ávidos de turbar sus sentidos. Uno de los contextos mayormente
referidos en dónde la borrachera se presentaba era cuando algún conflicto, categorizado
confusamente por la historiografía como guerras, dejaba como resultado la presencia de
cautivos que serían muertos de acuerdo a normas rituales. El padre Lorenzana, a
comienzos del siglo XVII, por intermedio del padre Boroa -encargado de escribir su
biografía- afirmaba para las doctrinas del Paraná
139
Un caso particular, que merece una atención que excede a este artículo, se presenta en el tratamiento
que se le brinda al cuerpo de los líderes muertos en refriegas contra diversos enemigos. En aquellas
ocasiones las borracheras adquieren un cariz ceremonial particular que las diferencia de las demás no sólo
por el tipo de bebida preparada si no por todo un ritual específico que cumple la función de pompa fúnebre.
Incluso el cuerpo del occiso es vuelto a tratar tiempo después de su muerte mediante una ceremonia que
incluye el descarnado de los huesos del cuerpo sepultado y su traslado hacia su morada definitiva. Al
respecto consultar, DOBRIZHOFFER (1968).
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presente desde una primera lectura del aquel cuerpo documental que hace referencia a
las tan afamadas juntas y borracheras presentándolas como omnipresentes en la vida de
los nativos.
Las borracheras, desde su preparación hasta su consumación, movilizaban casi
todos los sectores sociales de la vida comunal nativa y, para horror de los jesuitas en
algunas de ellas tomaban parte las mujeres. Desde los momentos previos a la misma,
cuando la bebida comienza a prepararse y los convidados son notificados de la nueva
reunión140, hasta los momentos álgidos de la misma –aquellos en dónde el sacerdote hace
mención a eventos repudiables desde su propio marco normativo-, se encuentran
alusiones que permiten explicar los usos y sentidos sociales del beber entre los indígenas;
incluso ya adscriptos a la vida reduccional. Indicadores que luego han de permitir discutir
en qué medida la borrachera imposibilitaba –desde la óptica ignaciana- la prédica del
Catecismo. Para alcanzar este punto es necesario dar paso a algunas precisiones sobre
qué cosa es una borrachera.
Una borrachera es una reunión de carácter ritual, realizada en un momento
particular del año, pudiendo congregar, según el tipo de la misma, a buena parte de la
comunidad; incluso a algunos niños.141 Participación que se define tanto por el sitial que
la persona detenta en el entramado comunal y por su vinculación con la celebración
específica así como por el rol en la fabricación de la bebida y como por el emplazamiento
de la persona en su consumo. Es decir, no todas las personas podían beber en las mismas
rondas de ingesta de bebidas así como no todos los miembros de la comunidad tomaban
parte de la preparación de distintos brebajes. A cada celebración correspondía una bebida
y cada bebida tenía sus destinatarios en función de un evento/ocasión particular.
140
Algunas borracheras parecen tener una recurrencia temporal constante. Aquellas que conmemoraban
sucesos particulares se realizaban con cierta asiduidad y por lo que indica la documentación el sistema de
cargo para la preparación de la bebida incluía algunos elementos que anuncian a la comunidad quién habría
de ser el encargado de preparar las bebidas dando lugar así a un nuevo ciclo de conmemoraciones y a una
circulación de función social del oferente de la bebida. Al respecto consultar, LOZANO (1941).
141
Por una cuestión de espacio no se brinda una descripción exhaustiva de las variaciones registradas en
los tipos de borracheras; las mismas que pueden expresarse dando cuenta de quiénes asistían a las mismas.
Algunos encuentros de bebida permiten la presencia de lo que parece ser la totalidad de la población. Allí
mujeres y niños pueden beber. En cambio, en otras de mayor boato la presencia parece reducirse a personas
portadoras de un rango social diferenciado. Para mayores detalles consultar LOZANO (1941) así como el
resto de aquellas etnografías culturales elaboradas por los misioneros que actuaron en el Chaco.
191
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Los tipos de borrachera que tenían lugar en el espacio del Chaco eran, a saber,
aquellas que se celebraban para festejar la llegada de un niño al mundo; las reuniones de
bebida que tenían lugar cuando una persona mudaba su status –por lo general se hace
referencia a instancias dónde los niños se transforman en hombres o aquellas en dónde
los hombres eran adscriptos al orden de los guerreros u höcheros como marca uno de los
principales cronistas para el Chaco y en el caso de los abipones; las borracheras
propiciatorias, es decir aquellas que se celebraban para augurar resultados favorables
ante alguna acción que se emprendiera y aquí es dónde los misioneros colocan al beber
como la antesala de los ataques y guerras a modo de consulta de oráculos- y, por último,
aquellas reuniones en dónde se bebía para conmemorar alguna acción. Tipos de
borracheras que, desde su descripción, permiten pensar en el comienzo de nuevos ciclos
estacionales de celebración de eventos del pasado así como del presente que habrían de
incidir el curso de los hechos de la política actual y por venir. Un claro ejemplo de ello eran
los ciclos de venganza en dónde un tipo de beber se llevaba a cabo, al menos durante una
porción del siglo XVIII. Aunque, dentro de este cuerpo de borracheras se pueden contar a
aquellas que a comienzos del siglo XVII algunos nativos promueven por la presencia de
sacerdotes jesuitas en sus unidades residenciales a los efectos de comenzar la empresa
reduccional.142
Las borracheras de este modo, se constituían como marcadores sociales y
temporales de la comunidad que la llevaba a cabo. Aquella breve y sumaria tipología sobre
las borracheras expone cómo las mismas representaban distintos momentos que poseen
un significado para la comunidad que celebra una posición social; conjura su porvenir o
bien conmemora eventos de un pasado que posee una proyección social sobre el futuro
de la comunidad. Dado el amplio conjunto de eventos sociales en dónde las borracheras
se hacen presentes rápidamente puede concluirse, erróneamente, que aquellas
sociedades estaban presas de un consumo excesivo de bebidas embriagantes y que por su
142 El padre Lorenzana, en la descripción que brinda de los primeros años de misión en las doctrinas del
Paraná, a comienzos del siglo XVII (PAGE, 2017), hace referencia a como algunos líderes se encuentran
realizando borracheras con el fin de celebrar su presencia con ellos. La descripción que se brinda del evento
si bien es breve parece indicar ciertas disputas al seno de la comunidad nativa por la presencia del jesuita,
lo cual torna necesario indagar sobre cómo incidió en el sector de los líderes religiosos la presencia
misionera desatando competencias entre aquellos especialistas de la comunicación con lo inmaterial así
como la acumulación de renovadas porciones de prestigio entre algunos de ellos así como entre aquellos
líderes que podríamos ponderar como adscriptos u ocupados de los sucesos civiles.
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momento. Aspecto que se corrobora cuando un jesuita hace mención a la inhabilidad para
guardar frutos para la preparación de bebidas. Prejuicio que, estimo, debe de ser pensado
desde la proposición ontológica y desde allí indagar en el por qué no almacenar algunos
granos o frutos más allá de las limitaciones existentes para la conservación de los mismos.
Tal como lo señalé anteriormente la crítica hacia la borrachera como práctica
social está mayormente asociada a una forma de escritura institucionalizada de la
Compañía de Jesús con objetivos específicos como la defensa de las tareas reduccionales
y, en menor grado forma parte de aquellas descripciones de carácter cuasi etnográfico
desde las cuáles se parte para ilustrar amplias porciones de la vida cotidiana durante el
período reduccional. Las menciones que realizan los sacerdotes sobre las borracheras
poseen la función heurística de justificar los vaivenes en el proceso de conversión de los
indígenas, sin una clara mención empírica justificada reducción por reducción (PAZ,
2017). Aspecto que es por demás llamativo.
La propuesta de este trabajo, entonces, se orienta a plantear que si bien sí los
indígenas consumían cantidades ingentes de bebidas con graduaciones alcohólicas
disímiles, en ocasiones particulares que imponían sus reglas tanto en lo que hace a la
participación de determinado sector social así como a normas de comportamiento dentro
de aquellas celebraciones, las denominadas borracheras poseen una especificidad tal, un
potencial sociológico, que excede en sí misma a la prédica jesuítica. Las borracheras no
pueden ser concebidas por lo tanto como una forma de expresión de cuestionamientos
hacia la presencia del jesuita tal y como los ignacianos lo expresan en su mayoría en su
intento de justificar la ausencia de modificaciones comportamentales señaladas como
necesarias entre los nativos como en el caso del ejercicio de las guerras.
La persistencia de las borracheras ya luego de estar en marcha la experiencia
reduccional debe de pensarse desde la misma condición en que se materializa la
reducción. Los asentamientos negociados entre jesuitas y algunos líderes indígenas no
imposibilitaban que los últimos continuaran accediendo a distintas porciones del
territorio; entorno que les proporcionaba materias primas para la elaboración de bebidas
que reforzaban la espacialidad nativa, entendiendo a ésta como un conjunto de
performances que brindan cohesión y sentido a una comunidad. Nuevas localizaciones
daban comienzo, resignificaban o reforzaban aquellas formas del beber que presenté
como tipologías.
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La prédica del catecismo era una más de aquellas prácticas culturales que
buscaban acercar e instruir en la Fe cristiana a los indígenas. La explicación de los
principios doctrinales del catecismo buscaban sustituir primero, y desplazar después,
formas de concepción del mundo nativo tales como las borracheras. Expresiones sociales
que se presentan en un determinado período del año, en un espacio particular y con un
grupo social preciso que asiste a la sesión de bebida. El catecismo, por su parte, intentaba
transmitir valores y principios de organización social por medio del exemplum y para ello
apelaba al santoral cristiano, en el cuál la Compañía de Jesús detentaba la presencia de
algunos pro-hombres, como San Ignacio; personajes a los cuáles se recurría, desde su
celebración, para ordenar anualmente las festividades que se realizaban en cada pueblo y
que apuntalaban la prédica del cristianismo.
La borrachera en su tiempo
143
Para las poblaciones nativas del Chaco, así como para las Amazónicas y Andinas, las bebidas
embriagantes son el resultado de una transformación operada por un sujeto/potencia que conoce el modo
de dialogar con el dueño de la especie a ser transformada. En el proceso que occidente califica como
producción el ‘espíritu’ que ‘vive’ dentro de las especies es liberado y pasa, mediante la ingesta de la bebida,
al bebedor, transformando al mismo. Por ello la borrachera también puede ser considerada, aunque no lo
he de abordar aquí, como un duelo, un desafío, una contienda en dónde se enfrentan las habilidades mágico-
religiosas de quien produce la bebida con aquellas cualidades encarnadas por el sacerdote en su intento por
poner fin a aquella práctica.
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Conclusiones
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con las autoridades coloniales residentes. En algo las crónicas jesuíticas sí resultan
veraces. Ante la mínima intimidación de reprender las borracheras de los chaqueños,
estos amenazaban al misionero con dejar la reducción. Lo cual expone un sutil arte de
manipulación de las necesidades y ambiciones jesuíticas. El Catecismo que los ignacianos
querían llevar a los nativos se encontró con una pedagogía nativa que fue mostrando
aspectos particulares al misionero y sobre los cuáles éste solo pudo reflexionar ya en
tiempos de la Expulsión. Sin embargo el punto de mayor relevancia aquí es que casi nunca
se les puede hablar de Dios, o bien son escasos los momentos que el sacerdote encontraba,
porque el tiempo para la chicha parece ser omnipresente, tanto como Dios o como la
naturaleza de la cual formaban parte los nativos.
Aventurar una salida a esta cuestión es por demás compleja desde el hoy –
pensando incluso en el hoy como un distanciamiento físico y geográfico que se funda en
una extrañeza que en más de una ocasión dificulta la reflexión sobre aquellos otros, ya
sean ellos los chaquenses o los jesuitas. Lo que sí es necesario es volver sobre el rol de la
naturaleza en la vida cotidiana de las reducciones y en el valor social del tiempo nativo en
el cual se inscribe la borrachera. Siempre con la salvedad de tener en cuenta qué clase de
borrachera tenemos enfrente y a la cual se accede por medio de descripciones que colocan
más el énfasis en problemas propios de la Orden de San Ignacio que del mundo nativo. No
propongo que el jesuita no haya comprendido la densidad narrativa del beber nativo,
aunque tampoco hay que suponer un tipo ideal de misionero parecido a un antropólogo
formado en cuestiones vinculadas con el perspectivismo amerindio. Mi propuesta es que
la escritura de aquellas borracheras posee un filtro notorio y esa noción tapón es aquello
que se conoce como escritura censurada –aunque bien deberíamos de comenzar a
reflexionar sobre una escritura corregida144; una narración que coloca un punto
metodológico cero difícil de transponer para dar cuentas de momentos pre-existentes a
la labor reduccional jesuítica sancionada por una norma precisa de escritura. No todo lo
que se conocía se podía referir plenamente en contexto poco afable a la Compañía de
Jesús, como lo era la segunda mitad del siglo XVIII. El tiempo de la chicha es, entonces,
144
Agradezco al Prof. Dr. Luiz Fernando Medeiros Rodrigues (UNISINOS) la mención sobre la necesidad de
comenzar a referir a la escritura revisada, y no censurada, dado que dicha mención se ajusta mejor a las
directrices propias de la Compañía de Jesús en lo referente a la práctica de la escritura. Comunicación
personal. 11 de septiembre de 2017. São Leopoldo-RS.
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cómo el sacerdote jesuita comprende al indígena desde el contexto europeo del siglo XVIII.
Las borracheras fueron formas de narración nativas de eventos pasados y por venir que
expresaban un movimiento que fue anulado por la misma escritura de la Orden. Una
práctica escrituraria que sí generó extrañeza como propone de CERTEAU (2007) y en esa
misma extrañeza es dónde debemos de inquirir en el uso social del tiempo. Si las
borracheras eran una pérdida de tiempo tal y como los sacerdotes sentenciaban, pues allí
debemos de ir. Porque cuando las sociedades ‘pierden’ su tiempo se muestran en
intensidad.
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Mauro Dillmann
Doutor em História pela UNISINOS. Professor do Departamento de História da UFPEL e do Programa de
Pós-Graduação em História da FURG.
145
Sobre conversão indígena na América, veja-se: POMPA, 2003; SANTOS, 2017.
202
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Cristina Araújo. A Biblioteca Nacional de Portugal guarda as edições de 1735 e de 1765. O livro ainda hoje
é publicado, com edições, em espanhol, de 2009 e 2010.
149 Esta edição, de 1765, foi consultada e analisada pela historiadora Mary Del Priore (1993). A Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro guarda a edição de 1765 em seu acervo de obras raras
203
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150
Na América portuguesa, os “vícios da carne” (incesto, poligamia, concubinatos e nudez) eram, segundo
Laura de Mello e Souza, aqueles que mais se destacam nos relatos dos cronistas e dos padres jesuítas que
se dedicavam à conversão dos indígenas (FLECK; DILLMANN, 2013, p. 301).
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manifestar mais claramente a verdade ao povo ignorante” (PERIER, 1724, p. 413). Embora
a obra não aponte para a autoria das imagens que ilustram sua narrativa, a historiadora
Ana Cristina Araújo, atribuí a autoria das gravuras ao belga Theodor de Bry (1528-1598).
Trata-se, portanto, de imagens produzidas no século XVI e acionadas pelo jesuíta no final
do século XVII (para missionação) e no início do século XVIII (para ilustrar seu livro e seus
argumentos).
Todas as imagens ilustram demônios, em maior ou menor proporção, com feições
humanas e características animalescas, e o pecador, com expressões de angústia, medo ou
desespero, sendo torturado com instrumentos cortantes ou perfuradores ou ainda por
animais. Segundo o historiador Keith Thomas (1988, p. 48) na época moderna, os homens
atribuíam aos animais os impulsos que mais temiam em si mesmos, como a ferocidade, a
gula e a sexualidade, daí talvez, a associação à figura demoníaca.
Se na primeira metade do século XVIII a obra foi bem aceita, tendo outras edições,
na segunda metade do século, censores já perceberam o livro de outra forma. Nesse
sentido, é interessante observar o parecer que frei Joaquim de Santa Ana e Silva, censor
da Real Mesa Censória, emitiu sobre o livro, em 1771, apresentando uma perspectiva mais
racional e cética: “o iletrado iria morrer de medo, o que podia despertar nele o fanatismo”
e “o letrado consideraria tudo ridículo, o que conduziria ao ruir dos fundamentos da
religião cristã”.151 O historiador Luiz Carlos Villalta (2011, p. 62-63) também destacou as
considerações feitas pelo censor Frei Joaquim de Santa Ana e Silva, para quem o livro
ultrapassava “as barreiras da verdade e da credibilidade”; a utilização das imagens,
também adjetivadas como “medonhas”, seriam efeitos da indiscrição, da ignorância e da
“culpável malícia” do autor, promovendo “uma crença errônea” ao povo rústico e
provocando o riso e o escândalo aos instruídos e prudentes.
As “ridículas estampas” eram outro argumento utilizado pelos censores na
condenação da obra. Como a obra descreve as penas infernais, inspirando temor no leitor
com auxílio de imagens, as mesmas foram consideradas “estampas medonhas” que
visariam a “aterrorizar o fiel, incutindo-lhe o medo do inferno”. O parecer emitido pelo
censor “revelou uma perspectiva que conciliava um propósito reformador, moderno,
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avesso às superstições e aos fanatismos, com a preocupação sobre os efeitos das leituras
diferenciadas que os leitores fariam dessas mesmas imagens”.152
Em síntese, então, tais foram os significados desta publicação em Portugal da
primeira do Setecentos: um período de ampliação de publicações religiosas, o uso de
imagens como recurso para ativar a imaginação dos leitores e atingir
analfabetos/ouvintes e o fato de existir mercado consumidor/leitor para livros de
espiritualidade e relatos de experiências catequéticas no Brasil.
152
Idem.
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entre os indígenas, nascia do temor a Tupã – encarado como o Deus católico, segundo
Perier – e da inclinação que tinha “em venerar a sua divindade” (FLECK, DILLMANN, 2017,
p. 313).
Os relatos do jesuíta Perier sobre o sucesso de conversão e sobre a adoção de
comportamentos cristãos pelos indígenas, são muito similares àqueles registrados pelos
missionários jesuítas que atuaram nos domínios coloniais espanhóis na América platina,
como os estudados e analisados por Eliane Fleck. A historiadora analisou as estratégias
de conversão adotadas pelos missionários jesuítas que atuaram junto às populações
indígenas que ocupavam a região denominada Província Jesuítica do Paraguai,
observando que esses religiosos registraram, não só a busca constante dos indígenas pela
confissão – pelo temor da não-salvação da alma –, como também a prática de penitências
– inclusive, de autoflagelação –, através das quais, segundo os religiosos, eles buscavam
purificação e benesses divinas. Entre as práticas de caráter penitencial adotadas pelos
indígenas já convertidos – e também pelos missionários – estavam os jejuns, as preces e
as procissões religiosas, que provocavam grande contentamento e admiração entre os
religiosos que as entendiam como “internalização da noção de pecado e de
responsabilidade moral” pelos nativos (FLECK, 1999, p. 83, 255).
Tanto na América portuguesa (SOUZA, 1993, p. 23), quanto na espanhola (FLECK,
2004, p. 269), os missionários jesuítas consideravam a conversão dos indígenas como
indicativo de sua redenção e como garantia da salvação de suas almas.
Como já destacado, para assegurar o êxito da missionação, Perier recorreu à
imagem do fogo do inferno,153 que, segundo ele, os levava a expressar sentimentos de
culpa e de medo da condenação de suas almas:
tinha (...) uma destas imagens, iluminada com a mesma cor do fogo. Não
é crível a impressão do inferno que fazia nos índios; tanto assim que
alguns vinham já alta noite a confessarem-se e perguntando-lhes eu,
porque não esperavam pela manhã, respondiam ter medo de morrer
aquela noite, com se lhes representar na imaginação aquele condenado,
que estava ardendo com os demônios no inferno (PERIER, 1724, p. 22,
Apud. FLECK, DILLMANN, 2015, p. 1167).
153
O historiador português José Pedro Paiva (1997, p. 56), valendo-se da mesma passagem de Perier,
procura demonstrar o quanto as imagens, no final do século XVII e início do XVIII, “causavam grande
impressão quando se tratava de convencer pelo temor”.
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(...) Direi mais que nas missões que eu fazia nas vilas e nos engenhos, por
muito que eu estudasse de representar ao vivo os insofríveis tormentos
eternos bem poucos e raros se moviam. Porém, eu mostrando do púlpito
a imagem de um condenado, logo todo o auditório se desfazia em lágrimas
e gemidos (PERIER, 1724, p. 24, Apud, FLECK, DILLMANN, 2013, p. 290-
291).
Considerações finais
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Introdução
Mestrando em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), bolsista CAPES/PROSUP.
Contato: eric.franz@hotmail.com;
155
“Qué palito era aquel y con qué fin le usaban?” (RUIZ, 1796, p. 5);
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156
Tendas populares de venda de artigos comestíveis.
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o esforço conjunto das coroas espanhola e francesa por classificar o mundo natural do
território americano, que no momento configurava-se como colônia espanhola.
Ruiz casou-se com a filha de Gómez Ortega, com quem teve um filho chamado
Antonio Ruiz. Segundo o texto escrito por seu filho, intitulado “Elogio histórico de don
Hipólito Ruiz Lopez”, Ruiz teria falecido em 1816, em decorrência de um derramamento
massivo de sangue pelas fossas nasais. Aparentemente, a debilidade de sua saúde foi algo
com que precisou lidar ao longo de toda sua vida. Quando eleito para encabeçar a
expedição, seu tio tentou impedi-lo, por acreditar que a viagem lhe seria penosa e
prejudicial, como de fato deve ter sido, pois, em seus diários e nos estudos biográficos,
não são incomuns as referências aos afastamentos de Ruiz por conta de problemas de
saúde.
Ao realizar a expedição aos reinos do Peru e do Chile, Ruiz deveria atender às
demandas propostas pelas instituições (a saber, os respectivos jardins reais da Espanha
e da França) e pelas Coroas que então financiavam o empreendimento. Assim sendo,
coube a ele – juntamente com os demais integrantes – a missão de encontrar plantas
medicinais com valor comercial, promover o reconhecimento da flora americana e formar
duas coleções idênticas para ambos monarcas.
Ainda que em um primeiro momento as diretrizes sobre as quais estes homens
balizaram suas atividades parecessem estar diretamente voltadas a uma produção de
conhecimento botânico com caráter muito descritivo, considerando o habitat, o
recolhimento, a dissecação, as virtudes e os usos medicinais, notam-se preocupações com
aspectos relacionados à farmacotécnica, à química e a ensaios clínicos das plantas
americanas, o que deixa transparecer a ênfase na exploração comercial das drogas
naturais. Naturalmente, o conhecimento sobre a natureza americana deveria servir à
metrópole.
Fator primordial para essa nova percepção da natureza foi a mudança de como se
concebe o exercício prático da Botânica. Até então tida como uma ciência através da qual
o homem intenta conhecer e classificar a flora como um exercício de poder sobre a
natureza, agora passa a tomar novos ares, sendo vista como uma ciência “auxiliar” a
serviço da Farmácia. Ruiz compartilhava dessa percepção e foi um forte difusor dessa
ideia. Devido ao seu posicionamento frente a esta questão, encontra resistência na figura
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do clérigo valenciano Antonio José de Cavanilles, para quem a ciência botânica era uma
área autônoma e autossuficiente.
O embate entre estes autores ganha espaço nas suas produções acadêmicas e
maior importância a partir do momento em que Cavanilles assume a direção do Real
Jardim, que esteve sob os cuidados de Ortega até 1801. Ainda assim, já se viam nuances
desse pequeno conflito, quando, por exemplo, em 1796, Ruiz publica sua Respuesta para
desengaño del público á la impugnacion que ha divulgado prematuramente el presbítero
don Josef Antonio Cavanilles: contra el pródromo de la flora del Perú é insinuacion de
algunos de los reparos que ofrecen sus obras botánicas, onde, ao referir-se à Botânica, deixa
bem claro seu posicionamento em relação à farmacologia:
[...] y esto se sin hacer la crítica de lo que falta [...] al discernimiento del
Género e de la Especie sin dar la menor noticia de los usos y vitudes, como
si este conocimiento no fuera el resorte del Botânico, á quien de poco
serviria la esteril habilidad de distinguir todas las plantas del Universo,
ignorando sus propiedades y usos que pueda hacerse con ellas. (RUIZ, 1796,
p. 37)
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Conclusão
Nesta comunicação propomo-nos a defender a ideia de que a comunidade científica
espanhola - em ascensão em fins do século XVIII - se valeu de um conhecimento prévio já
existente e consolidado empiricamente nas comunidades indígenas americanas, para se
afirmar frente às demais nações europeias. Em razão disso, compreendemos que o envio
de expedições científicas à América espanhola e a atuação dos homens de ciência neste
território, até então pouco explorado, esteve vinculado a um projeto de domínio do
mundo natural e de um melhor aproveitamento dos recursos existentes nas colônias,
projeto para o qual a Botânica enquanto ciência à serviço da Farmácia despontava como
área essencial de conhecimento.
O caso de Hipólito Ruiz Lopez, ainda que não deva ser tomado como via de regra
ou como um modelo estático da maneira como o conhecimento do mundo natural
transitava entre indivíduos e culturas, nos permite conceber com maior dinamismo estas
trocas de saberes. Observando o relato do botânico sobre a ratânia, podemos refletir
sobre a forma com que, a partir do contato com uma prática tradicional indígena, surge
um questionamento mais científico que, levado adiante, encontra apoio no viés de
exploração comercial ao qual servia a expedição. A ratânia que, já descrita em 1758 por
Pehr Löfling (um pupilo de Carl Von Linné), porém, só neste momento vista como fármaco,
exemplifica um caso de apropriação e resignificação do conhecimento nativo, o que entra
em consonância com o discurso que aqui procuramos defender.
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Mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (PPGH-UFRGS).
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vinculando-se a outros sujeitos além daquele que é indicado como seu produtor direto,
como se verá.
Nesta análise é enfatizada a dimensão dos usos da escrita, compreendendo-se essa
tecnologia enquanto um produto humano, social e histórico. Assim, no sentido do que é
argumentado por autores como Antonio Castillo Gomez (2003) e Armando Petrucci
(2003), esses usos são observados no âmbito das relações de poder, considerando quais
sujeitos possuíam acesso à capacidade de escrever, para quais fins instrumentalizavam
essa capacidade, de que forma os textos alcançam e são recebidos por públicos mais
amplos e, em última instância, são conservados e sobrevivem. Dessa maneira, para
examinar os produtos escritos é preciso considerar não apenas os sujeitos e fatores
envolvidos no momento da sua produção – ou seja, o momento em que uma
determinada pessoa escreve um texto –, mas também a maneira como esses textos
circulam, são lidos, copiados, traduzidos, citados – enfim, manuseados – por terceiros.
Todos esses fatores interferem na maneira como os textos serão conservados – ou
descartados –, e esse aspecto da conservação pode ser visto, portanto, como o da
configuração de uma “memória escrita”. A esse respeito, Armando Petrucci ressalta a
necessidade de observarmos os processos que concorrem para a configuração de um
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um Guarani da redução de São Luís, que teria sido produzido entre o segundo
semestre de 1754 e o início de 1755, e que conta, em primeira pessoa, as vivências
desse sujeito após ter sido capturado por portugueses em um conflito nas
proximidades do forte do Rio Pardo, a propósito da demarcação do Tratado de Madri.
Porém, não existe algo que possa ser considerado um “original” desse texto. O que se
tem são referências a uma primeira versão que teria sido escrita em idioma guarani,
por esse Crisanto, e da qual podem ou não ter sido feitas algumas cópias. Mas esse
documento – ou documentos – em guarani não foi encontrado até o momento.
Por outro lado, foram localizadas duas traduções diferentes ao idioma
espanhol. A primeira delas foi elaborada pelo jesuíta Bernardo Nusdorffer em janeiro
de 1755, e dela existem várias cópias que atualmente encontram-se espalhadas por
acervos diversos na Espanha157. E a segunda é atribuída ao intérprete correntino
Pedro Villanueva158 – agindo sob ordens do coronel e governador de Montevidéu
Joaquim Viana – e figura entre uma série de traduções de “papéis” em guarani que
teriam sido encontrados na redução de São Lourenço em 1756, quando as tropas
espanholas ocuparam o povoado. Dessa tradução, ao que tudo indica, também foram
feitas cópias por autoridades a serviço do Rei Católico. Além disso, partes extensas do
relato atribuído a Crisanto Neranda foram citadas em versões de uma relação
elaborada pelo jesuíta Juan de Escandón, entre 1755 e 1760, na qual ele transcreve
trechos do que parece ser a tradução de Nusdorffer159. No âmbito dessa análise, a
versão de Pedro Villanueva não será explorada, apenas aquelas atribuídas a jesuítas,
mas é importante mencionar a sua existência, pois isso ajuda a compreender como
esse documento circulou e foi manuseado por sujeitos variados.
157
Archivo Histórico Nacional (Madrid) - Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 56; Real Academia de la
Historia (Madrid) - Colección Jesuítas-Legajos, sign. 9/7284, c. 11-12-3-64; Archivo General de Simancas
(Valladolid) – Sección Estado, leg. 7424, n. 458.
158
Archivo General de Simancas (Valladolid) - Sección Estado, legajo 7410, n. 21.
159
Archivo Histórico Nacional (Madrid) – Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 54; Archivo Histórico
Nacional (Madrid) – Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 60; Real Academia de la Historia – Colección
Biblioteca de Cortes, sig. 9/2279, c. 9-11-5-151; Biblioteca Nacional de España – Sala Cervantes
(Manuscritos) – Ms. 4185.
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RELAÇÃO abreviada da República, que os religiosos jesuítas das províncias de Portugal e Espanha
estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias e da guerra que neles têm movido e
sustentado contra os exércitos espanhóis e portugueses. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, t. 4, p. 265-294, 1852.
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No caso dos habitantes das reduções, como apontado nas pesquisas de Eduardo
Neumann (2015), também é possível notar uma intensificação da escrita, empregada
pelos indígenas, entre diversos outros fins, para a comunicação em tempos de guerra. E
nesse processo, então, os habitantes das reduções também tomaram parte na
disseminação de versões, por conta própria ou por meio do emprego dos seus escritos por
outros personagens para afiançar a argumentação de um e outro lado da disputa – o que
eventualmente poderia subverter os objetivos iniciais desses “escritores indígenas” ao
produzir os documentos. Quanto aos jesuítas, esses religiosos, ao longo da sua atuação,
sempre fizeram um uso bastante intenso e exímio da escrita. Como observa Federico
Palomo (2013), os inacianos a empregavam não apenas para fins de comunicação e troca
de notícias, mas também como meio de reforçar os laços da ordem e, de certa forma, como
instrumento de “proselitismo”, de propaganda e memória, projetando documentos, ideias
e imagens que, em alguns casos, perduram até a atualidade. Esses aspectos, sobretudo o
último deles, são fundamentais para compreender o contexto e a documentação de que se
dispõe, visto que – diante de uma situação em que a Companhia de Jesus se via ameaçada
e constantemente questionada – os jesuítas empregaram amplamente a escrita como
arma de defesa.
Assim, os membros da Companhia de Jesus produziram cartas, relatos e
compilações de acontecimentos buscando disseminar versões que fossem favoráveis a
eles tanto entre os próprios jesuítas quanto diante de públicos externos, além de
“refutações” à Relação Abreviada, atacando minuciosamente esse panfleto acusatório.
Para tal, também divulgaram cópias de documentos que amparassem as suas
argumentações, traduzindo aqueles que haviam sido produzidos – em guarani – pelos
indígenas das reduções. E esse é o caso do relato atribuído a Crisanto Neranda, traduzido
por Bernardo Nusdorffer e disseminado por meio de diversas cópias, ao que tudo indica
entre ambos os lados do Atlântico. Esse religioso também se empenhou em reunir e
registrar informações acerca do que sucedia, a partir de diversas fontes, produzindo
compilações de acontecimentos conforme estes iam ocorrendo161, e também remetendo
essas informações a outros sujeitos.
161
RELAÇÃO do Padre Bernardo Nusdorffer sobre o plano de mudança dos 7 Povos, desde setembro de
1750 até fins de 1755 – Primeira à Quarta parte. In: Manuscritos da Coleção de Angelis – v. VII - Do Tratado
de Madri à Conquista dos Sete Povos (1750-1802). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional - Divisão de
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Outro caso relevante é o de Juan de Escandón, que elaborou uma extensa relação –
da qual existem versões ligeiramente diferentes, uma delas referente a meados da década
de 1750162, e as demais ao ano de 1760163 – não apenas para divulgar aos seus
contemporâneos uma “versão jesuítica” acerca dos conflitos relativos ao acordo de
limites, na qual ele enumerava provas contra as acusações à Companhia, mas também
para legar essa versão ao futuro, registrar e projetar uma memória. Nesse documento,
Escandón incorpora uma série de textos de terceiros, nem sempre indicando
inequivocamente a “autoria” deles. Um desses documentos é o relato atribuído a Crisanto
Neranda, do qual são citadas passagens extensas, intercalando-as com a argumentação do
próprio jesuíta. E, nesse caso, Escandón – assim como Nusdorffer – não apenas preserva
como enfatiza o nome da sua “fonte”, bem como a posição que ela ocupava no contexto
reducional e o caráter “autônomo” da decisão de Crisanto ao produzir um relato acerca
de suas vivências como prisioneiro. Essa preocupação em indicar o nome do autor do
relato, assim como a própria instrumentalização do documento por esses jesuítas, pode
ser associada ao episódio ao qual ele se refere e ao impacto que esse acontecimento
acabaria tendo no contexto missioneiro de meados do século XVIII.
Durante a “Guerra Guaranítica”, entre o final de 1753 e o mês de maio de 1754,
uma série de ataques à fortificação portuguesa do Rio Pardo foi levada a cabo pelos
indígenas sublevados. Esse forte – que, à época, cumpria a função de apoiar os trabalhos
demarcatórios –estava localizavado no território de uma estância da redução de São Luís
e próximo às estâncias de outras duas povoações – São João e São Lourenço. Com o início
da demarcação do Tratado de Madri, no entanto, as tensões se acirraram, de maneira que
os indígenas das missões – sobretudo aqueles cujas estâncias se situavam próximas à
fortificação – passaram a atacar a fortaleza. Em 1754, o último desses ataques foi
empreendido por indígenas de diversas reduções no final do mês de abril, e os eventos
que sucederam parecem ter adquirido bastante notoriedade no contexto. Assim, são
referidos e comentados por vários personagens em cartas e outros registros escritos,
Publicações e Divulgação, 1969; RELATÓRIO da Transmigração e Guerra dos Sete Povos do Rio Grande do
Sul (1750-1756), por Bernardo Nusdorffer – Quinta parte. In: TESCHAUER, Carlos (org.). História do Rio
Grande do Sul dos dois primeiros séculos, v. 3. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002.
162
Archivo Histórico Nacional (Madrid) – Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 54; Archivo Histórico
Nacional (Madrid) – Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 60.
163
Real Academia de la Historia – Colección Biblioteca de Cortes, sig. 9/2279, c. 9-11-5-151; Biblioteca
Nacional de España – Sala Cervantes (Manuscritos) – Ms. 4185.
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submetessem164; os jesuítas enfatizam os “motivos ocultos” que estariam por trás dessa
atitude do general português; e, nos escritos de autoridades espanholas, aparecem alertas
ao uso do episódio por Gomes Freire para se vangloriar e “engrandecer” a própria
figura165.
E existem, ainda, indícios de que versões sobre o episódio circulavam também de
maneira oral, entre os próprios indígenas e outros sujeitos envolvidos. Jesuítas como
Bernardo Nusdorffer166 e Tadeo Henis167 se referem ao fato de que, por volta de meados
de agosto de 1754, os prisioneiros libertados começaram a voltar às reduções. No
caminho, estes iam contando o que havia acontecido, dando conta das privações a que
haviam sido submetidos, dos interrogatórios, das ameaças e, também, de detalhes mais
pragmáticos, como tamanho das tropas portuguesas e os recursos de que elas dispunham.
São citados especificamente três indígenas de São Luís, um dos quais provavelmente era
Neranda. E em uma missiva redigida por um jesuíta anônimo168, um desses três “luisistas”
é inclusive descrito como “capaz”. Como se verá, esse foi um dos qualificativos
empregados pelos inacianos para caracterizar Crisanto Neranda.
Em meio a essa guerra de versões, o relato acerca do que acontecera durante o
cativeiro dos 53 indígenas das reduções, atribuído a Neranda, foi bastante utilizado como
“fonte” – e também como “prova” – pelos jesuítas, que o traduziram, copiaram,
disseminaram e citaram. Ao observar o conteúdo do relato, é fácil perceber o motivo para
tal: o texto corrobora a versão dos inacianos em vários pontos, e – sobretudo no que diz
respeito às descrições dos depoimentos – fornece elementos para refutar diversas
acusações feitas aos padres e ao trabalho desenvolvido por eles nas reduções, inclusive
com exposições relativamente detalhadas sobre a rotina dos religiosos e dos indígenas,
bem como das condições de vida nos povoados. Dessa forma, faz sentido que Nusdorffer
164
Esse aspecto se mostra bastante pronunciado na missiva enviada por Gomes Freire de Andrada aos
líderes da revolta indígena após a libertação dos 14 prisioneiros sobreviventes [Archivo General de
Simancas (Valladolid) – Sección Estado – Legajo 7430, n. 53].
165
CARTA del Marqués de Valdelirios a D. José de Andonaegui sobre Ingerencia de las tropas portuguesas
en las operaciones contra los Indios y noticia llegada a la Colonia de un supuesto ofrecimiento de España a
Portugal de dos Obispados en Galicia a cambio de los siete pueblos (Buenos Aires, Setiembre 1754). In:
Documentos Relativos a la Ejecucion del Tratado de Limites de 1750. Montevideo: Instituto Geográfico
Militar/República Oriental del Uruguay; El Siglo Ilustrado, 1938.
166
RELAÇÃO do Padre Bernardo Nusdorffer sobre o plano de mudança dos 7 Povos... 1969, p. 276.
167
Biblioteca Nacional de España – Sala Cervantes (Manuscritos) – Ms. 19242.
168
Archivo General de Simancas – Sección Estado, leg. 7424, n. 453-454.
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tenha se dedicado a traduzir o relato e a disseminar uma série de cópias dessa tradução
em contextos extra-reducionais. E, também, que Escandón o tenha empregado como
fonte, citando extensos trechos em um texto seu que possuía precisamente o objetivo de
contrapor as “calúnias” de que era alvo a Companhia de Jesus e de apresentar, registrar e
disseminar uma versão favorável acerca da atuação dos jesuítas nas reduções.
O emprego desse relato pelos jesuítas, além de – evidentemente – associar-se ao
fato de que o texto expressava uma versão bastante favorável aos propósitos dos
inacianos, também era pautado por uma série de justificativas que muitas vezes eram
explicitadas nos escritos dos religiosos, visando embasar o uso de um ou outro
“testemunho”, ou refutar outras versões. Como mencionado, o nome do autor do relato
não é omitido, e, qualificando esse personagem, Nusdorffer e Escandón – nos documentos
mencionados ou em escritos correlatos, como cartas a outros jesuítas – indicam que ele
era um “Indio Capaz”; que desempenhava a função de mayordomo – ou seja,
administrador – de São Luís, um cargo vinculado ao cabildo da redução169; e que ele havia
decidido registrar as suas vivências de maneira autônoma, para contar os acontecimentos
aos demais indígenas das missões.
O qualificativo de “capaz” pode ser associado às habilidades e características que
esse sujeito possuía – escrever, ler, contar, ser sensato e confiável, etc. –, e comportava,
além disso, uma dimensão de adesão ao modo de vida – cristão – que os jesuítas buscavam
construir nas reduções. Nesse sentido, é interessante mencionar que, ao longo do relato,
é revelado que Crisanto também fazia parte de uma congregação, denotando que era um
“bom cristão”. Esse sujeito inseria-se, assim, no âmbito de uma “elite” reducional,
indicando uma relação de proximidade aos jesuítas e à fé cristã. E as posições que eram
por ele ocupadas – letrado, atuante no cabildo, “capaz” – foram usadas pelos jesuítas para
afiançar esse relato e as “versões” expressadas por ele. De fato, a narrativa atribuída a
Neranda expressa pontos de vista que seriam coerentes com a posição de um cabildante
169
Aqui é interessante mencionar que Crisanto Neranda reaparece, no ano de 1768, entre os subscreventes
de uma carta enviada ao então governador de Buenos Aires – Francisco de Paula Bucareli y Ursúa – pelo
cabildo e caciques da redução de São Luís [CARTA al Señor Gobernador, San Luis, 1768 (British Library –
Add. MS. 3260). Documento transcrito, traduzido e publicado no âmbito do projeto LANGAS – Langues
Générales d’Amérique du Sud. Disponível em <http://www.langas.cnrs.fr/#/description>]. Nesse
momento, Neranda desempenhava a função de Alcaide de 1 o Voto, mantendo-se, assim, vinculado à
administração dessa povoação missioneira.
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em uma carta ao Marquês de Pombal, também se refere ao depoimento prestado por esse
personagem170, e, ao contrário de Muriel, enfatiza o seu caráter de fugitivo das reduções
justamente como indício da sua credibilidade e autonomia em relação aos jesuítas.
Essa forma de legitimar testemunhos na qual a atribuição de confiabilidade se
pautava pelo caráter dos sujeitos responsáveis por proferir determinada informação não
era inusitada para a época, como aponta Jorge Cañizares Esguerra (2007), e, assim, a
credibilidade de um relato ou interpretação podia ser medida por critérios “elitistas” e
hierarquias raciais e sociais, considerando a posição social dos sujeitos e o seu nível de
educação, além das suas motivações. E associava-se, evidentemente, às motivações e
pontos de vista do sujeito que avaliava o seu valor. Ainda no sentido do exposto por
Cañizares Esguerra (2007), esses critérios também poderiam remeter a certos debates do
século XVIII acerca do caráter e natureza dos indígenas, evocando concepções de Antigo
Regime acerca das distinções que permeavam as hierarquias sociais: enquanto os
“plebeus” eram degenerados, preguiçosos e “incapazes”, alguns poucos – aqueles que
pertenciam às elites – eram sábios, sensatos e “capazes”.
A análise desse caso permite considerar que os indígenas das reduções, além de
estarem produzindo versões escritas e provavelmente disseminando seus relatos de
maneira oral, também encontravam a valorização desses testemunhos por outras
pessoas, constituindo-se como personagens importantes em meio a essa “disputa de
versões. No entanto, isso se dava dentro de certos limites, introduzidos pelos
enquadramentos que esses outros sujeitos conferiam às “letras” e “vozes” indígenas, fosse
pelas maneiras de hierarquizar os seus emissores, pelos critérios que empregavam na
seleção e descarte dessas informações, ou pela própria decisão de atribuir ou não a
autoria a um indígena. Assim, trata-se de um texto que, ao que tudo indica, sobreviveu
apenas através das “manipulações” de que foi alvo, observando-se também uma
impossibilidade de responder se e até que ponto o relato foi de fato uma manifestação
“autônoma”, como certos jesuítas se empenharam em afirmar, ou se a produção dele se
deu em uma situação que apresentou – em maior ou menor medida – constrangimentos,
e se o relato sofreu interpolações ou edições mais “agressivas”.
170
CARTA de Gomes Freire de Andrada a Sebastião José de Carvalho e Melo (Rio Grande, 21 de junho de
1754). In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Demarcação no Sul do Brasil. Belo Horizonte, Imprensa
Oficial de Minas Gerais, v. 22 (1928), p. 201-324.
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Diante do exposto até aqui, o que se pode afirmar é que existe uma diversidade de
“produtores” envolvidos nos processos de elaboração desses registros, fornecendo uma
dimensão de “autoria compartilhada” na qual é possível inserir, também, sujeitos
indígenas. Desde os testemunhos orais que são vertidos à escrita, até, como nesse caso
específico, registros escritos. Trata-se de um relato que é atribuído – de maneira objetiva,
por mais de um personagem e em mais de um documento – a um Guarani chamado
Crisanto Neranda. Esse indivíduo tem o seu nome e a sua condição preservados e
associados a uma narrativa em primeira pessoa, uma ênfase que nem sempre se observa
na instrumentalização de testemunhos indígenas. E isso se deu, conforme o exposto, por
questões associadas à necessidade de valorizar e afiançar a versão que ele expressava.
Por esses motivos, Crisanto Neranda foi preservado como um “autor indígena”. Portanto,
esse caso se mostra bastante produtivo como foco de análise para pensar os
condicionamentos e motivações que agiam no momento de incorporar esses testemunhos
nos textos – atualmente são empregados como fonte pelas historiadoras e historiadores
–, e que poderiam acabar implicando na sobrevivência ou não dessas manifestações no
âmbito de uma “memória escrita”.
Referências Bibliográficas:
ANDRIEN, Kenneth; KUETHE, Allan. The Spanish Atlantic World in the Eighteenth Century.
War and the Bourbon Reforms, 1713-1796. New York: Cambridge University Press, 2014.
CAÑIZARES ESGUERRA, Jorge. Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo. Historiografías,
epistemologías e identidades en el mundo del Atlántico del siglo XVIII. Ciudad de México:
Fondo de Cultura Económica, 2007.
CASTILLO GOMEZ, Antonio. Historia de la cultura escrita: ideas para el debate. Revista
Brasileira de História da Educação, n. 5, p. 93-124, 2003.
GARCIA, Elisa. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas
no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.
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MURIEL, Domingo. Historia del Paraguay (desde 1747 hasta 1767). Madrid: Librería
General de Victoriano Suarez, 1918.
QUARLERI, Lía. Rebelíon y guerra en las fronteras del Plata: guaraníes, jesuítas e imperios
coloniales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009.
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Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.
171
No espaço do vice-reino do Rio da Prata (que abarcava, em parte ou inteiramente, os territórios dos
atuais países Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai), inicia-se no ano de 1810 o conflito com as
autoridades espanholas, num movimento encabeçado por Buenos Aires, o porto de maior relevância
comercial e capital do vice-reinado. Nesse sentido, de um lado o grupo dirigente dessa cidade propõe um
projeto de Estado unitário e centralista, enquanto algumas províncias – formadas, principalmente, em torno
de cidades de importância comercial e política durante o período colonial – reclamam maior autonomia e
igualdade de direitos. Ao longo dos conflitos, é construído o projeto federalista defendido por José Artigas
– que inicialmente lutou ao lado das forças de Buenos Aires – e que logra angariar o apoio de grande parte
da campanha rural até ser derrotado em 1820, através de uma aliança entre portugueses e o governo
portenho.
172
A documentação consultada constitui-se basicamente de correspondências entre autoridades militares
e políticas envolvidas nos conflitos, bem como de relatos de viajantes que estiveram presentes nesse espaço
durante os anos de 1810 e 1821. Ainda que sejam escassos, é possível encontrar informes e cartas escritas
por lideranças guaranis. Em sua grande maioria, as fontes analisadas estão compiladas no Archivo Artigas
que se trata de um compêndio de documentos relativos a José Artigas e ao movimento liderado por este.
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Dessa forma, acredito ser possível perceber nas fontes, uma leitura do conflito não
somente em termos de “americanos versus europeus” ou de “colônia versus metrópole”,
como repercutido por uma historiografia tradicional que não levou em consideração a
atuação de setores menos privilegiados da sociedade; e que houve, ao longo dos diversos
conflitos que assolaram a região do litoral do rio Uruguai entre os anos de 1813 e 1820,
um forte apelo a um pertencimento à categoria de “índio”173 como recurso mobilizador
em oposição à figura do “branco/europeu” opressor, em especial no discurso artiguista.
Contudo, é preciso pontuar que o apelo a esse tipo de pertencimento se dá em função da
conjuntura conflituosa que se vivia à época. Esse é um espaço de fronteira, em que os
vínculos sociais assumiam grande relevância e um indivíduo, a partir de seu
posicionamento em relação a essa rede de vínculos, poderia identificar-se com diversas
formas de pertencimento.
Composto por trinta e seis tomos, editados entre 1950 e 2003, essa coleção traz uma vasta gama de
documentos encontrados em arquivos de diversos países, como Brasil, Argentina, Uruguai, Portugal e
Espanha. O Archivo Artigas está totalmente disponível em domínio público
(http://www.bibliotecadelbicentenario.gub.uy).
173
Jacques Poloni-Simard deixa claro a necessidade de se tomar a categoria “índio” a partir de uma
perspectiva crítica, pois falar em “índios” é falar em uma categoria colonial, que surge e tem vigência durante
o marco da Colônia: “La definición exterior que se solía otorgar a los indivíduos en las colonias hispano-
americanas tiene la ventaja de oferecer una entrada clara para delimitar el objeto por estudiar, pero su
manejo acrítico es algo problemático puesto que reproduce el modelo de organización vigente durante el
período considerado, con el riesgo de reificar las repúblicas – y aun las castas –, dejando de lado no
solamente las diversas condiciones sociales mas allá del status jurídico, sino también los processos de
movilidad y de diferenciación así como las pertenencias múltiples” (POLONI-SIMARD, 2000, p. 88)
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orientado por José Artigas, Manduré tornou-se o principal “cabeça” das ações contra as
autoridades portenhas no Litoral174.
Passados dois anos, Manduré não figurava mais como o principal líder guarani
dentro do movimento artiguista. Em 1815, quando a Liga de Los Pueblos Libres alcança
sua maior adesão, José Artigas nomeia a Andrés Artigas como Comandante Geral das
Missões, cargo que exerceu até 1819, quando é aprisionado pelos portugueses. Durante
esse período, Manduré seguiu em comunicação com Artigas e até mesmo lutou contra os
portugueses no ano de 1816, mas não era mais o principal porta-voz do líder oriental nas
Missões, ainda que mantivesse o cargo de comandante de um dos povoados da região.
Neste sentido, é possível apontar essas duas figuras como os principais difusores
das ideais preconizados por José Artigas na zona do Litoral, em momentos distintos.
Ambos produziram documentos em que se dirigem aos indígenas da região e nos quais
pode-se perceber a utilização de um vocabulário típico da modernidade política mesclado
com uma gama de referências que dizem respeito, de forma mais específica, às
experiências vividas pelos indígenas missioneiros. Ao mesmo tempo, ao menos na
documentação consultada, são raros os ofícios trocados entre os próprios indígenas, o que
dá grande importância para estes documentos gerados por Manduré e Andresito.
Interessa, nesse primeiro momento, destacar quais eram os principais elementos
presentes nestes discursos para, posteriormente, entender-se de maneira mais complexa
a forma como foram compreendidas pelos habitantes dos povoados175.
Durante os conflitos do ano de 1813, Domingo Manduré trocou algumas
correspondências com o cabildo indígena do povoado de Yapeyú. Infelizmente, até o
174
A zona na qual se encontravam diversos povoados às margens do rio Uruguai (desde a Banda Oriental
até o território luso-brasileiro) é denominada na historiografia argentina e uruguaia como “Litoral”. Nesse
espaço a presença de povos de guaranis missioneiros era grande.
175
No entanto, essa não seria a primeira vez que os indígenas da região entrariam em contato com o
vocabulário político moderno. Capucine Boidin dedicou-se a examinar a Proclama a los Naturales de los
Pueblos de las Misiones, escrita pelo representante da Junta de Buenos Aires, Manuel Belgrano, em 1810,
bem como outros documentos escritos por este e que foram traduzidos para a língua guarani. O objetivo
principal da investigação empreendida pela autora é demonstrar como certos conceitos imprescindíveis do
vocabulário político moderno foram traduzidos para a língua guarani a partir da estratégia de tradução
sensus de sensu (o que indica que as traduções foram feitas por indígenas pertencentes à elite missioneira),
em que “no se procura traducir cada concepto (libertad, propriedad, seguridad, derechos naturales) sino
que se eligen palavras que tienen sentido para los traductores” (BOIDIN, 2014, p. 6). Dessa forma, seu foco
não é entender a tradução literal de cada uma das palavras escritas em castelhano nos documentos e sim
“examinar, desde la lógica própria de las versiones en guaraní, cualés son sus conceptos claves” (Ibidem).
Ver também: BOIDIN, 2016.
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momento só foi possível ter acesso direto a uma dessas cartas, com data do dia 8 de
setembro e que será tomada como referência para a análise. Nela, Manduré responde a
duas reclamações feitas pelos cabildantes, em relação a uma série de roubos e outras
desordens atribuídas às suas tropas. Em tom de conciliação e procurando convencer as
autoridades, faz um discurso em favor da causa que defende e rechaça as acusações: “[...]
nunca ha sido ni sera nuestro pensar declarar por enemigos a nuestros proprios
hermanos, quanto más el creer el que yo me interne donde no sea mandado, quando mui
distante es el pensar de nuestro Jefe”176. Já no início da carta se pode notar o apelo ao fato
de que, como indígenas, se encontram em condição de “irmãos” e não de inimigos, algo
enfatizado diversas vezes pelo autor do texto.
Ainda mais curioso é a insistência nas ideias de “liberdade”, de “autogoverno” e de
“igualdade”, questões sempre colocadas sob a bandeira da soberania particular de los
pueblos177 defendida por José Artigas. Para Manduré, a liberdade é algo que é conferido
aos indivíduos, por Deus, no momento em que nascem, configurando-se assim num direito
que cabe a todos:
[...] hermanos savemos que dios nos doto al criarnos con la liberdad, y
savemos que ante el somos iguales, y lo mismo ante la Lei, todas estas
reflexiones son las que me motivan decir a Vms. que llevan otro
fundamento178.
Manduré, demonstra neste trecho, a expressão de uma ideia de liberdade que está
arraigada na sociedade rioplatense desde pelo menos o século XVIII179. Como demonstra
176
AA. Domingo Manduré al Corregidor, Cabildo y Mayordomo de Yapeyú. Acampamento de Arapey, 8 de
setembro de 1813, p. 392
177
O respeito à soberania particular dos povos e os objetivos do projeto artiguista foram resumidos assim
por Ana Frega: “El proyecto artiguista contempló la unión de los pueblos de la Banda Oriental
del Uruguay bajo una autoridad común – la constitución de la Provincia Oriental – y postuló en
términos generales el derecho de los pueblos a constituirse en provincias, sosteniendo que la unión,
para ser firme y duradera, debía edificarse a partir del reconocimiento de las soberanias
particulares. Al interior de las provincias, a su vez, buscó defender la posición de “los más infelices”.
Fundación de una república en el Río de la Plata basada en el respeto de la soberanía de los
pueblos, la libertad civil y la igualdad: ese era el ‘programa radical’ de la revolución artiguista” (FREGA,
2002, p. 1).
178
AA. Domingo Manduré al Corregidor, Cabildo y Mayordomo de Yapeyú. Acampamento de Arapey, 8 de
setembro de 1813, Tomo XI, p. 392
179
Retomando as definições que aparecem no Vocabulário Português e Latino (1717-1727) de Rafael
Bluteau e também na edição de 1734 do Diccionario de la Real Academia Española (e que permanecerá
invariável nas edições de 1780, 1783 e 1791), Gabriel Entin e Loles Gonzáles-Ripoll afirmam que a liberdade
era entendida a partir de uma visão cristã, configurando-se numa faculdade outorgada por Deus ao homem
e que lhe dava o direito de fazer e dizer o que quisesse, a não ser que estivesse proibido por força ou por
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Capucine Boidin, esse conceito não era estranho aos guaranis missioneiros. Nas já
referidas cartas escritas por Belgrano em 1810, Boidin encontrou três conceitos chaves
nos textos: liberdade, propriedade e seguridade (BOIDIN, 2016). Estas três palavras são
traduzidas para o guarani por apenas uma expressão, qual seja ako libre pende-ko-háva180,
que significa, em castelhano, “está la libertad vuestra”. Esta expressão se referia a uma
categoria jurídica que já era conhecida pelos indígenas das missões há uma década, no
momento em que Belgrano publica sua Proclama, e está ligada a uma experiência coletiva
dos guaranis que se desenrola nos primeiros anos do século XIX: o processo de
liberalização de alguns indígenas do regime de trabalho de comunidades, a partir do
decreto do então vice-rei de Buenos Aires, marquês de Avilés, publicado no dia 18 de
fevereiro de 1800. Assim como nos textos de Belgrano, a palavra “libertad” e a palavra
“libre”, aparecem em cartas escritas em guarani no início do século XIX sem tradução,
sendo aplicada, geralmente, àqueles ameríndios que haviam sido liberados do regime de
comunidades. Desta forma, como demonstra Boidin, esta palavra “ya está integrada en el
hablar cotidiano y los juegos de etiquetas locales” (Ibidem, p. 42).
A novidade trazida pela concepção do líder guarani é de que a liberdade que
buscavam e o rompimento com essa situação de inequidade que se encontravam passava
necessariamente pela ideia de “autogoverno”. É justamente neste ponto que reside,
segundo Manduré, a diferença de “fundamentos” que guiam as suas ações e as ações dos
cabildantes de Yapeyú:
Veo que Vms, siguen una verdadeira defensa segun se dignan comunicarme,
pero lleva otro fundamento. [...] El derecho natural es uno, y el derecho de
libertad, que dicen Vms. otro la sujeción a nuestros superiores es mui justa,
pero es tiempo que conoscamos que unos trabajan de una suerte y otros de
otra, unos llevados del interes, y otros no; asi como muchos entre nosotros
mismos no procuran más que interpretarnos las cosas a su paladar. Asi
queridos Hermanos muchos años há que nos han governado otros, dirijanse
Vms. de por si y veran si es uno cierto lo que prevengo a Vms., pues en hacer
esto me parece ni es faltar a la obviedad181.
direito: “se trata de una libertad natural limitada por leyes – divinas y humanas –, que orientan la acción del
hombre de acuerdo a la razón” (GONZÁLES-RIPOLL & ENTIN, 2014, p. 18). A construção da noção de
liberdade se dá também em oposição à servidão em condição de escravo. No entanto, os indígenas estão
entre estes casos que a lei – muito mais humana que divina – irá cercear sua liberdade.
180
Capucine Boidin explica que o sufixo -hava que aparece na expressão se refere a uma situação que está
no futuro, ou seja, ako libre pende-ko-háva remete “àqueles que serão livres” e não aos que já gozam dessa
condição (BOIDIN, 2016).
181
AA. Domingo Manduré al Corregidor, Cabildo y Mayordomo de Yapeyú. Acampamento de Arapey, 8 de
setembro de 1813, Tomo XI, pp. 392-393
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Mais uma vez fica nítida a ideia de que os indígenas sob domínio português não
estão em liberdade. Ao contrário, encontram-se em condição de “escravidão”. Ainda que
considerados como vassalos livres do rei, os indígenas eram submetidos a trabalhos
182
Essa concepção de Artigas é expressa em diversos documentos. Em correspondência do ano de 1815
endereçada a José de Silva (à época governador de Corrientes), José Artigas afirma ter recebido reclamações
dos “povos de índios” de Santa Lucia, Itati e de las Garzas (sob jurisdição de Corrientes) sobre a má conduta
de seus administradores, ao que comenta: “Yo no lo crei estraño por ser una conducta tan inveterada: y ya
es preciso mudar esa conducta. Yo deseo que los Indios en sus Pueblos se goviernen por si para que cuiden
de sus intereses como nosotros de los nuestros” (AA. José Artigas a José de Silva. Paraná, 9 de maio de 1815,
Tomo XXIX, p. 57).
183
É importante ressaltar que diferentemente do ofício escrito por Manduré (que é dirigido às autoridades
do cabildo de Yapeyú), o texto de Andresito é destinado a um público mais amplo, o que implica a utilização
de recursos linguísticos grandiloquentes. Ainda assim, acredito que isso não impeça de pontuar
semelhanças interessantes nos discursos de ambos.
184
AA. Proclama de Andrés Guacurarí y Artigas, Capitán de Blandengues y Comandante General de Misiones a
los naturales de esa província (...). 1816, Tomo XXIX, p. 44
185
Ibidem.
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forçados e essa prática ainda é mantida ao longo do século XIX na região do Rio da Prata.
Não são poucos os documentos que dão conta da exploração de mão de obra indígena
nesse período. Em 1809, Francisco das Chagas Santos, português que assumira o cargo de
Comandante da fronteira das Missões neste mesmo ano, envia aos corregedores, cabildos
e administradores dos povoados uma série de determinações a serem cumpridas por
estes com o objetivo de
remediar no modo possível e coibir os muitos, e diferentes abusos, que
infelizmente se acham inveterados nesta Provincia de Missões em tão
considerável prejuízo, e grandíssimo atraso dos 7 Povos, e dos habitantes
Guaranis que pouco resta para sua total subversão a Vmces186.
186
Francisco das Chagas Santos aos Senhores Corregedor Cabildo e Administrador do Povo de.... publicado em
Revista do Museu Júlio de Castilhos e Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul, janeiro de 1952, n.
1, p. 419. Ao longo deste documento, Chagas Santos insiste principalmente na necessidade de acabar com o
“pernicioso costume” dos administradores de “disporem a seu arbítrio dos Guaranis assim homens, como
rapazes e raparigas, dando-se a quem lhe pede, sem nenhuma atenção ao desarranjo de sua [sic] famílias”
(Ibidem) e também dar fim ao trabalho forçado de guaranis nas estâncias da região.
187
AA. Proclama de Andrés Guacurarí y Artigas, Capitán de Blandengues y Comandante General de Misiones a
los naturales de esa província (...). 1816, Tomo XXIX, p. 44 [grifo meu]
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entre ameríndios e brancos/europeus, buscaram não somente tomar seus bens como
também assassinar àqueles que eram identificados como seus opositores. Alguns
acontecimentos envolvendo justamente os líderes Manduré (em 1813) e Andresito
Artigas (em 1818) são expressivos dessa leitura “nativa” dos conflitos.
Em abril de 1813, o português Francisco da Costa Leiria relata ao governador Diego
de Souza que encontrava-se no povo de Yapeyú e, a pedido do próprio governador, dava
notícias das movimentações dos inimigos. O português teve a “infelicidade” de presenciar
um motim neste povoado (que, como se pode inferir por outros documentos, era liderada
pelo já citado Domingo Manduré):
Logo se alçaram duas Companhias dos Indios fazendo muitas atrocidades,
reunindo assim todos os mais que se lhe apresentavam; por não enfastiar
mais a V. Ex.ª levantou-se a Indiada de Japeju. Apanharam-se as Cartas do
Comandante desta Partida para o Cabildo de Japeju, nelas assinalando o
dia que vinham ao Povo para todos se reunirem e matarem o Cura e
mais Espanhóis que houvesse, seguirem o Tenente Governador para
lhe fazerem o mesmo, e continuarem na matança de todos os
Espanhóis que estivessem pelos Povos, eu como comprador do Povo
não escapava, já tinham nomeado um para Rei, e viverem sobre si a
forma e maneira dos Minuanos188
AA. Francisco Soares da Costa Leiria a Diego de Souza. Passo de Yapeyú, 26 de abril de 1813, Tomo XI, p.
188
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poderiam ser identificados como brancos e europeus189, mas simplesmente que, nesta
conjuntura revolucionária, o impacto desse discurso político moderno levou os
ameríndios a constituir uma percepção de que a presença desses “estrangeiros” no
território que ocupavam era um empecilho ao exercício de sua autonomia, justificando
assim inclusive o assassinato destes indivíduos
Em segundo lugar, ao elegerem o “modo de vida minuano” como exemplo a seguir,
os guaranis que adentraram Yapeyú, em abril de 1813 deixam transparecer uma
interpretação bastante particular dos ideais trazidos pelo discurso político moderno. Não
se trata de afirmar que pretendiam adotar por completo os costumes e práticas dos
charruas e minuanos. No entanto, atrelam o exercício de sua soberania a uma forma de
organização política em que as lideranças nativas detinham autonomia nas decisões
relativas ao grupo e não necessitavam responder a nenhuma autoridade externa às suas
comunidades (a não ser quando travavam alianças com estas).
Da mesma forma, a atuação de Andrés Artigas quando de sua entrada na cidade de
Corrientes em 1818 a fim de restituir ao poder Juan Bautista Méndez, artiguista que
estava em posse do governo desta cidade e fora sacado do seu cargo através de uma
revolta da elite correntina, demonstra também o aparecimento de um dualismo que
opunha “índios” a “brancos/europeus”.
Quando já havia destituído o cabildo e se encontrava como autoridade máxima de
Corrientes, o líder guarani tratou de organizar duas ou três festas para as quais convidou
os “principais vizinhos” da localidade. Mrs. Postlewaite – filha de um rico comerciante
inglês radicado nesta cidade – descreve que, ainda que estivessem todos à mercê de
Andresito, os correntinos e especialmente as mulheres não conseguiam disfarçar o
menosprezo com que olhavam para os índios. Assim, no momento marcado para as
celebrações, os convidados não se fizeram presentes, o que, segundo a autora do relato,
deixa Andresito extremamente ofendido. Tendo perguntado o porquê da ausência, lhe
fora respondido: “¿Quién puede darse el trabajo de concurrir a bailes de índios?” (Ibidem,
189
Em relação a este ponto, acredito ser bastante esclarecedor o fato de que quando Andrés Artigas adentra
a cidade de Corrientes em 1818, apesar de tomar as medidas de prender os filhos dos “notáveis” da cidade
e de obriga-los, mais tarde, a limpar a praça sob um forte calor, o líder guarani mantem boas relações com
o pai da autora da carta, um rico comerciante inglês pertencente à elite local, inclusive visitando sua casa
por ocasião de uma janta que fora oferecida a ele e os oficiais de seu exército (ROBERTSON & ROBERTSON,
2000). Ao mesmo tempo, são diversas as referências nas fontes à manutenção de relações comerciais entre
indígenas, tanto guarani quanto charruas, com portugueses, bem como a sua união para outros fins.
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p. 173). A partir de então, Andresito busca castigar aqueles que o ofenderam e, mais uma
vez, recorre ao recurso da inversão simbólica da hierarquia social:
Andresito había soportado muchas demostraciones públicas de
menosprecio por parte de la ciudad, dando más pruebas de indulgencia que
las que hubieran podido esperarse, pero esto último lo onfedió mucho y
desde entonces se mostró decidido a castigar a sus enemigos.
‘- Entonces – dijo – ¿no quieren venir a los bailes de índios?... Muy bien,
vamos a ver...’
Y así, en la mañana siguiente (un día muy caluroso) los tambores tocaron a
las armas y todas las personas respetables – excepto don Isidoro Martínez,
el anciano Durán y mi padre – fueron reunidos en la plaza y obligados a
cortar hierbas hasta dejarla limpia de un extremo a outro. Tuvieron que
tabajar así todo el día bajo un sol abrasador y la verdade es que, no obstante
la compasión que provocaban los obreros forzados, la ocurrencia del índio
inspiraba risa también. Porque – según entiendo – la plaza no se vio nunca
tan limpia como entonces. Mientras los hombres trabajaban en esta suerte,
sus esposas e hijas fueron llevadas al cuartel y obligadas a bailar durante
todo el día con los índios, afrenta ésta mucho más imperdonable que la labor
manual impuesta a las personas del sexo masculino (Ibidem, pp. 173-174).
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a dançarem com os índios, estava virando “de pernas para o ar” o corpo social ali
estabelecido e não é difícil imaginar o quão estupefatos ficaram os habitantes da cidade.
Considerações finais
A partir da análise dos textos redigidos por Domingo Manduré (em 1813) e
Andresito Artigas (em 1816) fica expresso o apelo, com o objetivo de angariar apoio, ao
pertencimento a uma categoria de ordem colonial e, a qual, estavam inseridos todos os
interpelados por sua fala: a categoria “índio”190. Não se trata de afirmar que esses
indivíduos se identificavam única e exclusivamente como “índios” e que procuravam
atuar somente em função deste pertencimento, podendo se posicionar de formas distintas
de acordo com as mudanças durante os conflitos. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar
que muitos indígenas não se sentiram contemplados pelos discursos proferidos por essas
lideranças.
No entanto, é inegável que, em função da conjuntura que se impunha – de
questionamento a uma série de premissas antes dadas como “naturais” na sociedade a
partir das concepções modernas que estavam se difundindo –, a identidade indígena
assumia neste espaço, cada vez mais, um sentido social. E esse apelo social crescia em
oposição à figura de seu opressor, associada ao homem branco e, mais especificamente,
ao europeu. Dessa forma, quando Manduré declara a seus hermanos cabildantes de
Yapeyú que assim como são iguais perante a Deus, também o são perante a lei deixa
exposto senão o objetivo de romper com o estatuto jurídico dos indígenas na ordem
colonial, ao menos uma visão de que, diferentemente do que sua condição jurídica
expressava (ou seja, que eram “menores” e que necessitavam ser “governados”), os
indígenas podiam exercer seu próprio governo191.
190
Não é à toa a utilização das palavras hermanos e semejantes, além do fato de que Andresito sempre assina
como Andrés Guacurarí Artigas quando dirige a palavra aos ameríndios e como Andrés Artigas quando está
em comunicação com indivíduos não indígenas.
191
Guillermo Wilde ajuda a entender a contraposição da ideia de “ser índio” postulada por Manduré e
Andresito à condição jurídica ocupada pelos ameríndios na ordem colonial quando afirma que a Coroa
espanhola tentou, através de leis, impor “normativas tendientes a incorporar a las autoridades nativas al
sistema jerárquico de la Colonia, reconociéndoles sus privilegios preexistentes, pero también limitando su
ascenso” (WILDE, 2006, pp. 125-126). Nesse sentido, é expressiva a proibição contida na Recopilación de
Leyes de los Reynos de Las Indias, de 1681, a qual impedia os caciques de autointitularem-se “señores de sus
pueblos”, somente podendo chamar-se de “caciques” ou “principales” (Ibidem). É justamente em oposição
à essa intenção do Estado de controlar os indígenas e em oposição também à ideia de que não eram capazes
de se governarem que Manduré e Andresito construíram seus discursos, enfatizando a necessidade de
alcançar sua liberdade a partir da promoção do ideal de “autogoverno”.
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https://corpusarchivos.revues.org/1322, 2014. Acesso 18/07/2017.
__________. "Teko aguyjei, “derechos”, ‘vida buena’, un concepto político central de las
proclamas y oficios del general Belgrano traducidos al guaraní." Ariadna histórica.
Lenguajes, conceptos, metáforas. Universidad del País Vasco, Suplemento especial (1): 25-
51, 2016.
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ingleses en las Provincias del Plata. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2000.
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las misiones del Paraguay. In: Jahrbuch Fur Geschichte Lateinamerikas, pp. 119-145, 2006;
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PARTE 3
EMANCIPAÇÕES E PÓS-ABOLIÇÃO
Fernanda Oliveira
Paulo Roberto Staudt Moreira
Rodrigo de Azevedo Weimer
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Vinícius Finger
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constituíram, nas últimas décadas, tema para debates científicos e políticos sobre as
relações sociais no Brasil.
O apontamento da existência de diversas correntes de análise quanto as pesquisas
sobre movimentos quilombolas e de cultura quilombola, é corroborada, pela variação de
eixos de análise decorrentes da própria pesquisa acadêmica nacional. De acordo com
Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, as pesquisas sobre a identidade negra brasileira ou de
cultura afro-brasileira, tenderam, nas últimas décadas, a se identificarem entre dois eixos
paralelos de construções narrativas sobre o sujeito negro. Uma correspondente a
proposta multiculturalista de análise das relações sociais no Brasil e outra corroborada
por uma imagem pluriculturalista das relações sócio-raciais das comunidades e
identidades nacionais (GUIMARÃES, 2002). De modo que em termos gerais, haveria um
debate inerente nas pesquisas deste assunto, relativo ao próprio conceito de cultura. De
modo mais específico, um debate quanto aos processos de assimilação, de troca, conflito
e de afirmação das práticas culturais entre os indivíduos de determinada formação social
e das dinâmicas de subjetivação identitárias.
Problematizar tais formações teóricas, porém, não pode ser tomado como uma
ação determinista. O spectrum de produção de análises e de narrativas sobre as
movimentações culturais relativas as afirmações identitárias nacionais, não pode ser
considerado em termos tão primários. É necessário ter-se em mente que as diferenciações
entre os eixos e intentos de pesquisas relacionadas a problemáticas pluriculturais ou
multiculturais, são também produtos de posicionamentos específicos de análise (ADESKY,
2001). Isto, tanto em consideração a maleabilidade das pesquisas científicas em geral, em
termos de epistemes e de possibilidades metodológicas, quanto da variação das
movimentações sociais e subjetivas constituintes destes mesmos processos.
De fato, a exata plausibilidade do apontamento dessa divisão nas pesquisas deste
tipo, apenas se sustenta diante das dinâmicas políticas da nova democracia brasileira. É
possível observar na Constituição Brasileira, ambas as proposições corroboradas em
termos de seus princípios fundamentais da cidadania sobre os posicionamentos
relacionados a uma vigência multiculturalista, assim como de uma proposição
pluriculturalista. Isso porque a própria Constituição, “opta tanto por uma posição de
aceitação implícita, quanto por uma postura de proteção explícita das culturas” (ADESKY,
1997, p. 182). Indicando com isso, a inegável relevância política de pesquisas sobre os
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destes agenciamentos sociais, nas pesquisas sobre quilombos, é o debate científico sobre
os modos das práticas culturais no Brasil. A análise culturalista, ao se fundamentar na
dualidade “eu-outro”, criou uma aparente limitação de análise sobre os modos de
convivência social e relações culturais no Brasil. Entre plataformas políticas, com
interesses partidários e econômicos sobre os regimes de governamento populacional,
análises multiculturalista e pluriculturalistas confeccionam análises sobre os movimentos
quilombolas, dentro de diferentes propostas interpretativas sobre a sociedade brasileira.
Essa análise culturalista demonstra a emergência de interesses escusos ao próprio
fazer científico ao se limitar em uma dualidade de sentidos. Ao contrapor apenas dois
modos de possibilidades de análises sobre os movimentos quilombolas. De um lado, a
essencialização das práticas culturais de uma identidade étnica em relação com outras
(pluriculturalismo). De outro, a problematização destas essências, a partir do jogo
sincrético das formações culturais (multiculturalismo). Debate qual, pode ser contraposto
pelos estudos culturais desenvolvidos por Homi Bhabha. Já que sua problematização
sobre as relações culturais, podem ser destacados como proposições de análise cultural
em meio as movimentações do próprio processo de globalização da cultura de consumo
internacional.
Para Bhabha, o “trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que
não seja parte do continuum de passado e presente” (BHABHA, 1998, p. 27). Viver o novo
é viver “no além”, em um lugar onde o sujeito não mais habita o seu espaço de
territorialização que constitui sua identidade, mas que também não se está
necessariamente no espaço de um “outro” sujeito. Ou seja, um espaço laico/neutro de
encontros. A relação cultural em si habitaria esse espaço. Essa noção de “além”
fundamenta-se então em uma interpretação que pensa as trocas como um espaço e não
apenas numa relação entre diferentes elementos. A cultura se desenvolveria no espaço
“além” e não em espaços específicos que comportariam e limitariam sua especificidade e
diferença. A produção de cultura, assim, só seria possibilitada ao habitar um espaço “no
além”. Logo, a cultura não seria um “algo”, mas sim um espaço de percepção.
Especificamente, um espaço de percepção temporal. De modo que, sua vivência se dá a
partir de uma série de compressões de momentos temporais no espaço. O “momento
passado”, tal como o “momento futuro” habitariam, então, o mesmo espaço que o
“momento presente”. As tradições poderiam servir como exemplo dessa percepção de
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O que não só aponta as características de grande parte dos estudos culturais atuais
sobre quilombos, como declara suas implicações políticas no governamento destas
comunidades em relação a sociedade brasileira. Longe, desta afirmação se constituir como
uma censura a tais pesquisas, o que aqui se busca realizar são alguns apontamentos
metodológicos quanto aos meios de verificação do saber produzido sobre os movimentos
quilombolas. Desse modo, uma problematização dos meios de verificação do real sobre o
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interpretativo do pesquisador. Pois, além disso, sua análise deve dar conta de analisar os
elementos que constituem o seu fazer de pesquisa, no sentido de poder criar
interpretações cientificamente válidas para além de apenas um contexto social ou
institucional.
Reconhecendo as limitações dos modos de veridificação científicos sobre o
conhecimento produzido pelas pesquisas históricas atuais. E de que os métodos e
problematizações da (nova) História Cultural, avançaram no entendimento da
complexidade do universo e da multiplicidade pura. Existe a necessidade de que seja
realizada, a partir das características das ciências humanas, uma crítica sobre os meios e
práticas de alcance do real científico. Uma análise para além da razão, pela qual seja
construída novos valores éticos e estéticos sobre a experiência de pesquisa constituída
pela vivência dos seres na produção do saber. Não uma nova ciência, mas novos meios de
avaliação da produção do saber, dando conta da inerente relação nas ciências humanas
da multiplicidade dos seres viventes com a complexidade dos elementos formativos dos
fatos/eventos ou fenômenos do universo.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
FOUCAULT, Michel. De espaços outros. In: Estudos Avançados. São Paulo, v. 27, nº 79, p.
113-122, 2013.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio A. Classes, raças e democracia. São Paulo: Ed. 34, 2002.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2005.
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analisados a partir das perspectivas e das lógicas delegadas pelos envolvidos no processo,
ou seja, é preciso conhecer a visão da própria população negra.
A principal fonte empregada neste estudo foi o periódico negro A Alvorada, da
cidade de Pelotas, produzido entre os anos de 1907 a 1965, com diversas interrupções.
No entanto, foram analisados somente aqueles cadernos produzidos entre os anos de
1931 a 1935. A consulta a esse material se deu na cidade de Pelotas, no acervo da
hemeroteca da Bibliotheca Pública Pelotense, localizada no centro histórico da cidade. Tal
periódico era propriedade dos irmãos Penny, tendo sido vendido em 1946 para Rubens
Lima.
O jornal contou com a atuação de Rodolpho Xavier como um dos seus mais
importantes articulistas, escrevendo crônicas direcionadas a classe trabalhadora, mas
também trazendo outras narrativas, escrevendo, também, poesias. O semanário divulgava
assuntos relacionados à comunidade negra da região sul e sua atuação foi significativa
para que eles se vissem representados. A partir dessa fonte é possível conhecer mais
sobre os negros letrados de Pelotas e o grupo no qual eles se relacionavam, levando em
consideração as próprias percepções registradas por eles sobre suas vidas e o contexto
no qual estavam inseridos.
Em relação ao uso do vocábulo negro é necessário esclarecer alguns pontos.
Primeiro, a opção da autora pelo seu uso no texto é consciente de que ele pode vir a criar
uma falsa ideia de homogeneidade entre a população não branca, que de fato não existe.
No entanto, essa é uma escolha política, influenciada porque o termo não promove um
ocultamento do racismo (CUTI, 2010), ao tratar de um vocabulário racialmente instituído.
Além disso, outra grande influência para essa escolha é o fato de que assim se auto
identificavam esses personagens em sua imprensa, nesse caso, a autora optou por
respeitar a identidade assumida pelos sujeitos. No entanto, outros vocábulos de sentido
racializado não serão ocultos no texto, sendo invocados em alguns momentos.
Negro é uma construção histórica que está presente nas relações sociais e que tem
no processo diaspórico transatlântico o cerne de suas explicações. Determinar quem é
negro no Brasil não é uma tarefa fácil, mesmo para os dias atuais, como colocou Munanga
(2004). No entanto, dois são os elementos levados em consideração. O primeiro deles é a
cor da pele escura (que pode englobar diferentes tonalidades) e o segundo, a
autoafirmação, ou seja, a primeira mais voltada para como o sujeito é visto pela sociedade,
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já a segunda, como ele próprio se percebe e assume a sua identidade. As pessoas não
nascem negras, elas se descobrem e se tornam negras (SOUZA, 1983).
No cenário brasileiro atual a usurpação, por parte de pessoas brancas, em espaços
destinados as cotas raciais tem se tornado um grande problema social. A polêmica que
possibilita essa apropriação das vagas por parte de pessoas brancas consiste na
compreensão do negro enquanto autodeclarado como tal. Algumas pessoas que nunca se
declararam negras em outro momento (porque de fato não o são), acabando assim o
fazendo apenas para tirar proveito dessa política reparatória. Essa situação é uma entre
tantas que demonstra o quanto a cidadania do negro brasileiro é fragmentada. Mesmo
tendo alcançado essa conquista por meio de muitas lutas sociais eles continuam com a
incompletude de um direito conquistado em vista do privilégio de alguns brancos que não
aceitam a ocupação de determinados espaços sociais para a população negra.
Para Munanga a determinação de quem é negro no Brasil, geralmente, está
relacionada com a manifestação fenotípica da cor da pele escura (2004). Para Nogueira
(2006) estaria vinculada a aparência, ou seja, aos traços físicos e a fisionomia do sujeito.
As pessoas entendidas como negras podem possuir os mais variados tons de pele,
inclusive tons claros, tendo outras características que permitam a elas se identificarem e
serem identificadas como negras.
Essas variações demonstram a diversidade da população brasileira, mas também
acarretam em alguns impasses, entre eles, por exemplo, que o racismo se manifeste de
diferentes modos, sendo que o seu alvo principal acaba sendo aquelas pessoas que estão
mais longes dos padrões aceitos. Inclusive, entre os negros e os indígenas existem aqueles
que são mais aceitos pela sociedade em detrimento de outros, mesmo que pertencentes a
um grupo étnico, geralmente, os aceitos são aqueles cujas características negras ou
indígenas não sejam tão acentuadas, ou seja, que apresentem um maior grau de
mestiçagem.
No ano de 2015 o site Blogueiras negras publicou um texto explicando o termo
colorismo que posteriormente, foi transcrito no site do Geledés193. De acordo com a
publicação “quanto mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa
pessoa irá sofrer” em países pós-escravocratas. As inquietações na qual a autora se volta
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ao passado para tentar entender são reflexos do contexto social e político no qual estamos
inseridos. Dito isso, esse estudo ao se voltar para os anos de 1931 a 1935 se propõe a
observar os debates realizados por uma comunidade negra de Pelotas, através de seu
jornal, A Alvorada, no que diz respeito às variações de cor dentro dos coletivos negros, em
especial, dialogando com as ideias construídas em termos do mito das três raças na
formação de uma identidade nacional.
Como já apontado, um dos conceitos centrais para o campo de Emancipações e pós-
abolição e que também é essencial nesse texto é a racialização. A autora entende o
conceito como um processo de categorização social partindo de traços de distintividade
racial, expressos por uma noção generalizada de raça (SCHUCMAN, 2012), ou seja, como
a ideia de raça começa a operar e como ela acaba se ressignificando com o passar do tempo
desembocando no racismo.
As características físicas que atribuem o lugar social de um sujeito por denotar o
seu pertencimento a uma raça só fazem sentido em contextos sociais racializados (SILVA,
2010). Para o caso brasileiro a principal característica do pertencimento a uma raça é a
cor da pele (ROSA, 2014). Nesse sentido, a cor se tornou uma metonímia para explicar o
pertencimento racial. Para a imprensa negra, evocar a cor também era uma maneira de
aglutinar os negros de forma política e racial.
A preocupação “retórica” dos jornalistas negros era justificável; afinal, o
emprego das palavras não estava dissociado das relações de poder, ou
seja, da política; era preciso combater o emprego de um vocabulário
revelador de concepções de mundo, de desigualdades, de hierarquias e
de certas permanências. (ROSA, 2014, p.259)
PRETOS E MULATOS
O “preto” sempre desconfiou, e ainda desconfia, do “mulato”? Por quê?
Porque tal desconfiança vinha, e vem do sangue de seus avós... o “negro
mina”, “Nagô”, “Moçambique” e “Benguela”, (ainda alcançamos esse
tempo!) desde que a “crioula” aparecia com filho “mulato” a repudiava e
dizia que o neto tinha sangue de “judas”, tinha sangue de gato porque era
filho de “branco”!
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tonalidades de pele. Para Rodolpho Xavier não tinha mais sentido que as gerações atuais
nutrissem tais divergências, entendidas por ele como fruto de ignorância.
No entanto, nem todos dessa comunidade partilhavam dessa mesma percepção.
O semanário A Alvorada denunciou o caso de bailes de mulatos que não aceitavam a
presença de pessoas negras, por outro lado, as pessoas brancas não eram impedidas de
frequentar tais festas. Quem denunciou o ocorrido foi Humberto de Freitas. Em seu artigo
publicado na A Alvorada ele destacou que “somente uma pessoa de cor, mista, pretensiosa
e sem cultura, poderá deixar-se convencer que, por ter ‘abertinha’ a sua cor, não é negra!”
(A Alvorada, 14/02/1932, p.03). Em seu texto o autor retrata negros e mulatos como
“irmãos de raça”. Segue um trecho da denuncia expressa por Humberto no jornal negro:
Repercutiu dolorosamente no seio da sociedade etiópica pelotense, a
pretenciosa atitude dos dirigentes de certo grupo bailante que, deixando-
se embair por uma falsa maneira de selecionar, não observaram no
indivíduo, o valor moral, mas sim, como justificativa dos seus
“escrúpulos” sociais, basearam-se na diferença das cutículas. E, nas suas
condenáveis investigações etnológicas, acharam “defeitos” morais e
“contagiosos” nos negros de tez da cor do ébano... ser preto - no besunto
destas pessoas – é ser um indivíduo inferior aos indivíduos de outras
raças.
(A Alvorada, 14/02/1932, p.03)
Esse caso gerou muita repercussão no A Alvorada a ponto do jornal utilizar várias
edições para comentar o caso e aproveitar essa situação para promover a condenação a
esse tipo de atitude dentro da comunidade pelotense. A festa possui muitos significados,
mas aqui o que interessa é o seu papel de sociabilidade. Através desses espaços
destinados a sociabilidade, as pessoas poderiam conhecer os seus futuros companheiros.
Em relação à formação de famílias multiétnicas o jornal publicou que: “essa ‘seleção’ que
se observa em alguns elementos da raça negra indo constituir família em raça que julga
superior a sua, nada mais é do que um estado mórbido de pouca mentalidade que
pressupõe o negro “indigno” de constituir-se em família!” (A Alvorada, 19/02/1933,
p.01).
O I Congresso Afro-brasileiro, realizado na cidade de Recife, no ano de 1934,
contou com a participação de um representante do jornal A Alvorada. A proposta central
do evento era estudar a trajetória do negro e sua contribuição no processo de formação
da identidade sociocultural do país. Miguel Barros, representante da A Alvorada,
participou dos debates em torno da formação da identidade nacional dialogando com o
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conceito de raça. Sendo percebido enquanto mulato pela imprensa que cobriu o evento e
pelos seus, ele se une aos negros defendendo-os nos debates em torno da aculturação do
negro. Tendo sido feita uma cobertura pelo periódico em vista das correspondências
encaminhada pelo seu representante, o jornal apresentava e discutia junto com o seu
leitor o racismo.
Em uma crônica publicada na A Alvorada, cujo título era o Primeiro Congresso
Afro-brasileiro, o jornal rebateu: “não são de pigmentos, nem de indumentárias dos
indivíduos que se aquilatam as qualidades morais ou intelectuais” (A Alvorada,
23/12/1934, p.02). Na opinião do jornal o Congresso traria muitos esclarecimentos para
a população mestiça sobre a população africana, permitindo a sua valorização e um maior
reconhecimento daqueles enquanto negros, nesse caso, o jornal expressou: “as qualidades
fazem o indivíduo e não a cor”. Ainda, seguia o artigo: “raça considerada inferior, por
letrados e por analfabetos, o negro, indubitavelmente, tem de reagir ao preconceito
provindo das senzalas, das moendas e dos cafezais”.
A cor é uma das características que mais demonstra no convívio o caráter racial,
tanto nas relações sociais quanto nas crônicas escritas pela imprensa negra estudada. E é
principalmente em cima dessa característica física que o racismo se manifestava e ainda
se manifesta. O texto se propôs a analisar o início da década de 1930, no entanto, ainda é
um assunto bastante polêmico cujas discussões são inesgotáveis.
Fontes
Arquivo Histórico da Biblioteca Pública Pelotense
Fundo: Jornais
A Alvorada, de 1931 a 1935.
Referências
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Rio de Janeiro: Schimidt, 1933.
GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888-1937). Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
HOFBAUER, Andreas. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo:
Editora UNESP, 2006.
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LONER, Beatriz Ana. A rede associativa negra em Pelotas e Rio Grande. In: Silva, Gilberto
Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos. RS Negro: cartografias sobre a produção do
conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. pp. 246-261.
MUNANGA, Kabenguele. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. In: Revista
Estudos Avançados. São Paulo, jan./abr. 2004, vol.18, n.50. Pp.51-56.
SILVA, Sarah Calvi Amaral. Africanos e afro-descendentes nas origens do Brasil: raça e
relações raciais no II Congresso Afro-brasileiro de Salvador (1937) e no III Congresso sul-
rio-grandense de história e geografia do IHGRS (1940). Dissertação de Mestrado
(História). Porto Alegre: UFRGS, 2010.
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Aqueles nascidos de cor negra neste país posteriormente denominado de Brasil, ao olhar
para o passado, que história tem para contar? Quais histórias contam aqueles “cuja carne negra
fez e faz história segurando esse país no braço”? Nós negras e negros ao atentarmos para o
passado não temos “história para expor”194, o que temos (conhecemos na escola, ou através dos
meios de comunicação) são imagens de mercadorias (Willians, 2011) amarradas em um tronco
tendo seu corpo divido em partes por conta da quantidade ínfima das chicotadas a mando do
senhor branco. Esta é a história contada em todo livro didático de história do Brasil e também
a que aparece nas novelas e filmes, e este parece ser o lugar reservado para nós na historiografia
brasileira: a escravidão. O período da escravidão é o espaço das negras e negros na
historiografia brasileira, do mesmo modo que geograficamente nosso único lugar é África, e
culturalmente “nossa importância’’ é no samba e nas comidas, enfim “temos nossos lugares’’,
porém, é preciso problematizar estes “lugares”.
Segundo a historiografia a ditadura civil militar brasileira que iniciou em 31 de março
de 1964 terminou no ano de 1985, acontece que nasci dez dias depois do fim de vinte e um anos
de terror no Estado brasileiro, nasci em 10 de janeiro de 1986, ou seja, é um momento histórico
bem importante, pois se tratam dos dez primeiros dias de um processo de redemocratização do
Estado. Entretanto, há uma ausência da população negra na historiografia deste passado tão
principalmente no que se refere aos estudos emancipatórios e pós – abolicionistas. Entretanto, quando me
refiro a uma história ausente, estou tratando não daquela produzida na academia, mas sim na historiografia
que chega às escolas, e que é a história que a maior parte da população negra que vai a escola pode conhecer.
Sem contar da história brasileira contada nos meios de comunicação que ainda é a história em que o negro
aparece apenas como o escravo, e o branco sempre como o vencedor/o poderoso.
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doloroso e recente para nós. Ora, onde estão nossas memórias de vítimas e de militantes
exilados? Onde estão nossas lutas (resistências)? E nossa arte e cultura (como resistência)? Por
que não estamos nos livros de comemorações de 40 anos do golpe? Ou no de 50 anos do golpe?
Que significados têm estes silêncios (historiográficos)?
Com a difusão das ciências nasce o mito da neutralidade cientifica que se esparge entre
os mais distintos pesquisadores. No entanto, “nenhuma ação ou pensamento é apolítico, toda
ação é política, portanto a neutralidade não existe’’ (Freire, 1983) ainda que o positivismo e o
pensamento cartesiano tenham tido grandes influências entre os pesquisadores, presentemente
já compreendemos que a subjetividade define a escolha dos objetos de análise, e principalmente
a formulação dos problemas de pesquisa. Neste sentido, entender que as pesquisas são
subjetivas nos auxilia a perceber que os discursos produzidos por elas têm ideologias políticas
e sociais.
Se os discursos possuem ideologias políticas e sociais, eles produzem silêncios. Numa
sociedade hierárquica escreve a história aquele que está numa relação de dominação, e quando
se trata de uma sociedade em sua origem escravocrata, quem escreve a história do Brasil? Nossa
sociedade é de origem escravocrata, portanto, este é um elemento fundamental para
entendermos o silenciamento historiográfico da população negra nas produções científicas,
jamais podemos esquecer que foram longos quatrocentos anos de escravidão negra. Bem
sabemos que a modernidade não inventou a escravidão, no entanto, a expansão dos países
europeus alterou a sua relação com o mediterrâneo e inaugurou uma nova escravidão que serviu
ao capitalismo mercantil,
Os escravos negros eram “a força e a energia deste mundo ocidental’’. A
escravidão negra exigia o tráfico de escravos negros. Portanto, a preservação
e o aperfeiçoamento do tráfico na África eram “uma questão de extrema
importância para este reino e as fazendas pertencentes a ele’’. [...] A liberdade
concedida ao comércio de escravos só se diferenciava da liberdade concedida
a outras atividades num único detalhe: a mercadoria em questão era o ser
humano. (Willians, 2011, p 63-66)
O historiador ainda salienta que o tráfico de escravos era um fim em si mesmo, uma vez
que se tratava de mercadorias que geravam altos lucros com a venda para os reinos que não
tinham como executar o tráfico. E ao mesmo tempo em que essa rede capitalista mercantil se
constituía e se fortalecia, discursos tanto científicos, quanto políticos e religiosos eram criados
para justificar e sustentar a escravidão.
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A escravidão no ocidente irá se diferenciar por conta do uso do elemento fenotípico para
inclusão ou exclusão social. As teorias teológicas cristãs criam os ideais de perfeição através
das cores: branco e preto, e até mesmo definindo caracteres fenotípicos de beleza. Já as teorias
científicas ganham força com a publicação do livro Origem das espécies de Charles Darwin,
que irá originar o ‘’ darwinismo social’’, influenciando todas as áreas de conhecimentos, Lilia
Moritz Schwarcz no livro Espetáculo das Raças (1993), nos fala dos equívocos das várias
interpretações da obra de Darwin,
[...] não são poucas as interpretações de A origem das espécies que desviam
do perfil originalmente esboçado por Charles Darwin, utilizando as propostas
e conceitos básicos da obra para análise do comportamento das sociedades
humanas. Conceitos como “competição’’, “seleção do mais forte’’,
‘”evolução’’ e “hereditariedade’’ passavam a ser aplicados ao mais variados
ramos do conhecimento: na psicologia, com H. Magnus e sua teoria sobre as
cores, que supunha uma hierarquia natural na organização dos matizes de cor
(1877); na linguística, com Franz Bopp e sua procura das raízes comuns da
linguagem (1867); na pedagogia, com os estudos do desenvolvimento infantil;
na literatura naturalista, com a introdução de personagens e enredos
condicionados pelas máximas deterministas da época, para não falar da
sociologia evolutiva de Spencer e da história determinista de Buckle.
(Schwarcz, 1993, p 73)
195Poucos foram os negros que conseguiram conquistar um espaço na sociedade imperial. Houve os casos
daqueles que ingressaram na Marinha, na Guarda Nacional, que conseguiram cursar curso de Direito, de
Medicina, ver mais em SKIIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro; tradução de Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
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No Brasil, a escravidão foi o pilar econômico do período colonial até o golpe que deu
enceto da República. Ainda que no governo de D. Pedro II a Inglaterra tenha proibido o tráfico
de escravos, o a elite luso-brasileira passou a instituir uma rede de contrabando negreiro, uma
vez que
[os brasileiros] julgam os escravos indispensáveis à vida. No Brasil a lavoura
está na sua infância: uma foice, uma enxada e um machado é todo o
instrumento do lavrador [...] se a terra tem necessidade de alguma cultura, o
escravo, obrigado a trabalhos excessivos [...] em breve tempo perde a vida e
empobrece ao senhor: eis o que é mui frequente entre nós. Ora, neste estado
de atraso da nossa agricultura [...] acabar de um jato com a tráfico de pretos
africanos é querer o impossível. (Diogo Antônio Feijó apud Parron, 2011, p
98)
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desigualdades sociais. A estes sujeitos foi lhes negado a humanidade nos primeiros
quatrocentos anos em que aqui foram escravizados.
Direito de ser humano negado, depois lhes é negado um país, e por fim uma história.
Durante muito tempo as negros e os negros e o índios não estavam presentes na história do
Brasil, então nova onda historiográfica surgiu, e o país admitiu que no Brasil houve escravidão
(Cunha, 2005). Quando a sociedade admitiu que foram quatrocentos anos de escravidão, os
historiadores delegaram este lugar para as negras e negros na história brasileira. Isto significa
que há um hiato histórico, em que - nós considerados o “senso comum”196 - questionamos sobre
o que sucedeu em nossa história após a o período colonial e imperial brasileiro. Estes
movimentos discursivos produzem silêncios, criam sentidos e imagens que muito tem a dizer,
quando não falam. Hiatos históricos dizem muito quando se trata de uma sociedade construída
com base na escravidão negra. E um hiato pode ligar passado e presente em que o ausente do
silencio se faz presente ao longo de quase vinte uns anos de repressão política.
A realidade brasileira era (é) de uma sociedade plurirracial197, por conseguinte o “ideal
de branqueamento’’ era o que a elite e os intelectuais, a sociedade desejavam para o país, por
isso o Estado brasileira fará no início do século XX todo um trabalho político-econômico para
vinda dos imigrantes, pois era preciso instaurar o progresso, o Brasil republica queria ser
moderno, e principalmente queria esquecer seu passado depende de escravos. Era o Estado
fomentando a miscigenação que agora não tinha mais o cunho degenerativo, agora era a
possibilidade de embranquecer a nova sociedade brasileira.
Em suas relações externas o Brasil historicamente construiu o falso discurso de país
“do paraíso racial’’, e em meio ao processo de construção da identidade nacional a
“miscigenação pacífica” será um dos elementos para o cunho “democracia racial”, que através
de Freyre irá se difundir e se entranhar na sociedade brasileira de tal modo, que num primeiro
momento até militantes negros irão se apropriar desta representação discursiva.
Esta criação discursiva assegurou a população branca’ brasileira que a justiça havia sido
feita em relação às negras e negros, pois agora estávamos “em igualdade’’, e principalmente a
196 Aqui estou me referindo a senso comum aqueles que não estão dentro das universidades. Uma vez que
as novas historiografias infelizmente são compartilhadas em sua maioria dentro das universidades, em
eventos científicos e revistas cientificas. E assim a maior parte da população negra acaba por não conhecer
estas novas histórias. A maior parte da população negra que nem se quer consegue chegar ao Ensino Médio
acaba por conhecer somente a história da escravidão negra.
197 Desde o início das invasões dos europeus ao “novo mundo’’ um dos instrumentos de dominação foi o uso
da violência sexual, neste sentido no Brasil novos fenótipos foram gerados a partir destas violências.
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partir de tal imagem discursiva, foi nos determinado lugares sociais e na história. As
consequências sociais desta nova ideologia racista trarão agravantes para população negra,
Guimarães (2012) ao analisar o mito da democracia racial e as relações raciais no Brasil, aponta
para o fato que o uso do termo por Freyre não tinha relações com direitos sociais, mas sim se
tratava de uma “liberdade estética e cultura, e da criação e do convívio miscigenado’’.
A democracia racial criada numa sociedade remanescente da escravidão irá determinar
os espaços sociais “aceitáveis’’ e simbólicos que negras e negros deverão ocupar na sociedade
brasileira, neste sentido na história somos “aceitos’’ na condição de escravos, e no simbólico a
aceitação se dá na “promoção’’ da cultura afro-brasileira. Este “reconhecimento’’ oferecido
pela democracia racial, está longe de garantir os diretos sociais e civis à população negra,
O movimento negro ressurgiu, em 1978, como o fez em 1944, em sintonia
com o movimento pela redemocratização do país. Em sua agenda política
estavam três alvos principais: a) a denúncia do racismo, da discriminação e do
preconceito de que eram vítimas os negros brasileiros; b) a denúncia do mito
da democracia racial como ideologia que impedia a ação antirracista; c) a
busca de construção de uma identidade racial positiva através do afro-
centrismo e do quilombismo, que procuram resgatar a herança africana no
Brasil (invenção de uma cultura negra). (Guimarães, 2012, p 168)
Entender que o mito da democracia racial impede ações antirraciais, como um discurso
social que exclui negras e negros da sociedade em que a branquietude é o ideal e numa
sociedade em que uma efígie discursiva negra negativa foi historicamente construída,
sedimentada e disseminada, compreende-se quem pode tomar a palavra e fazer silenciar.
O mito da democracia racial que exclui uns, acaba por incluir outros e expõe as relações
raciais brasileiras, em que de um lado os excluídos alegam racismo e do outro lado os incluídos
alegam que no Brasil não existe racismo. Na década 50 a UNESCO patrocinou uma pesquisa
sobre relações raciais no país, quando os intelectuais brancos negavam a existência do racismo
que o Teatro Experimental do Negro denunciava, sobre esta discussão Guimarães (2012) mostra
o estudo realizado por Bastide e Fernandes (1955, UNESCO), em que os entrevistados “diziam
ter preconceito de ter preconceito, o que demostrava que o [preconceito racial] estava
arraigado’’ no meio social brasileiro.
A sociedade brasileira (ainda que muitas pessoas digam o contrário) tem arraigada em
si o preconceito racial. E é dentro deste ambiente que são produzidas as teses e dissertações
cientificas acadêmicas referentes ao nosso passado presente, que discursivamente foi
denominado ditadura civil-militar, portanto, eu pergunto: por que não há menções ao intelectual
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militante negro Abdias do Nascimento também exilado devido a regime militar? Onde estão as
memórias sobre ele para além do movimento negro? Onde estão as pesquisas sobre as lutas por
escolas nas periferias do Rio Grande do Sul durante os anos de 1964 a 1969198? E onde estão
as teses ou dissertações sobre as lutas por saneamento básico nos bairros periféricos de Porto
Alegre nos anos de 1964 a 1969? E as pesquisas sobre a resistência cultural negra em Porto
Alegre nos anos de repressão? Movimento estudantil só se faz na universidade?
O governo militar ao criar o inimigo – o comunismo – também pode continuar a
combater os “marginalizados sociais”, neste sentido a repressão e violência que negras e negros
já sofriam, foi então reestruturada pela Doutrina de Segurança Nacional, que tinha os meios e
o direito explicito ao uso da violência para reprimir militantes negros, e assim toda uma
violência foi institucionalizada e pontecializada pelo racismo,
“É difícil mensurar as diversas formas de violações sofridas pela população
negra durante o período da ditadura militar no país, basta rememorar notícias
de jornais, onde os negros e pobres figuravam em maior parte do noticiário
policial. [...] A discriminação racial contra os negros é muito mais antiga do
que a ditadura militar, remonta ao tempos coloniais e a escravidão.” (Relatório
Comissão da Verdade Rubens Paiva/SP)
Sabemos que o racismo não foi inventado pela ditadura, entretanto outro sentido lhe foi
dado. E assim como tráfico de escravos e o racismo era negado nos discursos do final do século
XIX e início do século XX, este também era negado pelos governos militares, de modo que
negando o racismo, foi possível evitar que a população negra criasse meios para denuncia-lo,
“[...] o governo não aspirava sofrer fiscalização internacional nessa área, o que levaria a um
desmascaramento da imagem que tentava impor de ter sido fruto de uma “revolução
democrática”199, e assim as denúncias de racismo eram tidas como invenções da esquerda,
198 As escolas dos bairros periféricos da cidade de Porto Alegre além da maioria ter entre 20 ou 30 anos [o
que mostra que elas são fruto de lutas de um passado presente], seus nomes são de presidentes ditadores
militares, afinal foram construídas no período militar.
199 Relatório Comissão da Verdade Rubens Paiva/SP. Tomo I Parte III – Perseguição a população e ao
Movimento Negro.
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A luta contra o racismo foi então mais um elemento de repressão ao Movimento Negro
que se reorganizou de modo mais político e nacional a partir de 1970, assim como também as
lutas por melhores condições sociais, muitos militantes associações de bairros, de escolas de
samba e outros clubes negros foram presos por lutar por direitos civis e sociais para população
negra, desta forma suas lutas foram consideradas lutas inimigas do governo. E tudo isto não
consta nas produções cientificas gaúchas sobre a ditadura civil militar. Quando o pesquisar
escolhe o seu problema de pesquisa, ou ao olhar para o passado e ao fazer as suas
problematizações, ele é subsidiado por teorias. Se todos os seres humanos fazem história, como
é possível problematizar o passado olhando apenas para uma parte dos agentes históricos?
Ao sair da escola básica a única história negra que conhecia era sobre escravidão, e ainda
hoje os estudantes que entram no curso de história da UFRGS conhecem a mesma história.
Será que não vale nos perguntar os motivos pelos quais ainda é esta a única história que
conhecemos na escola? A escola é instituição mais popular presentemente, é dentro dela que
aprendemos o que é a história do Brasil, e saímos desta escola sabendo que brancos são
conquistadores, vencedores de guerras, líderes, construtores, inventores, artistas, estudamos
sobre seus feriados, todavia referente as negras e os negros aprendemos que eles foram escravos
e ponto final, resumida a história brasileira que conheci, que meus atuais alunos conhecem, que
meus colegas no curso de história conhecem, e o mais triste é que mesmo quando resolvemos
fazer o curso de história, continuamos a aprender sobre grandes historiadores brancos e suas
histórias brancas, e se negros aparecem outra vez é na condição de escravos. Quando os
professores são questionados sobre a ausência de historiadoras e historiadores negros nos
programas, os relatos sempre são sobre como é difícil montar um programa, sobre como é novo
a inserção da população negra na universidade (pois nós não estamos aqui deste que o Brasil
foi invadido, o negro é algo novo no Brasil, por isso eles não estão preparados para ensinar
estudantes negros). Entretanto, há toda uma historiografia recente negra e que dentro da
academia também é excluída, de modo que caberão as negras e aos negros continuar no seu
devido lugar social histórico: a margem. Consequentemente, “a carne negra que faz história e
segurou este Brasil” continua fora da história.
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Referencias bibliográficas:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 13ª edição
GUIMARÃES, SÉRGIO, Antônio. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2012
[2ª edição]
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Relatório Comissão da Verdade Rubens Paiva/SP. Tomo I Parte III – Perseguição à população
e ao Movimento Negro
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil. – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993
WILLIAMNS, Eric. Capitalismo & Escravidão. São Paulo: Cia Das Letras, 2012 [1944]. Cap.
2, O desenvolvimento do tráfico de escravos. p. 63-88
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PARTE 4
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Introdução
A migração de descendentes de imigrantes da região das colônias velhas para
novas áreas é denominada por Jean Roche, em seu livro A imigração alemã e o Rio Grande
do Sul (1969), como enxamagem. É resultado de uma combinação de fatores, tais como o
esgotamento das terras e o aumento populacional. Esse crescimento não permitia que a
região das colônias velhas absorvessem as novas gerações de colonos. Assim, para os que
pretendiam seguir trabalhando na agricultura como suas famílias, era necessário migrar
para novas frentes agrícolas.
Essa migração voltada para a reprodução da pequena propriedade chega ao
Planalto principalmente durante a República Velha. Porém, Rückert (1997) destaca que
já na década de 1870 a oligarquia fundiária regional reivindicava um projeto de
colonização para as áreas de mata, mas essa reivindicação fora atendida apenas após a
Proclamação da República.
Ocorre, porém, que já se encontravam na região dois grupos, os indígenas e os
caboclos, além de grandes latifúndios, em grande parte não utilizados. Estes grupos,
apesar de já ocuparem as áreas de matas muito tempo antes do processo colonizador se
voltar para a região, não possuíam títulos de propriedade sobre suas terras, o que os
tornava posseiros das terras que cultivavam.
Os caboclos não podem ser considerados um grupo étnico; eles devem ser
entendidos como um grupo resultante do meio em que vivem, ou seja, o ambiente
sociocultural é o que forma os caboclos. São incluídos nesse grupo os homens pobres que
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Algo similar ocorreu no Norte do Rio Grande do Sul com o início da privatização
agrária. Caboclos/posseiros e indígenas, que utilizavam a terra desde muito tempo, mas
que não possuíam o título de propriedade, acabavam expulsos das mesmas, por conta de
ações dos grandes proprietários que possuíam meios e influências para aumentar ainda
mais suas propriedades e legitimá-las.
Ou seja, é possível perceber que tanto na Inglaterra quanto no Brasil, nesses
momentos de alteração da legislação agrária, quem se beneficiava eram os grandes
proprietários, que acabavam por prejudicar quem vivia do trabalho na terra, mas que não
a possuía legalmente.
Contudo, é importante frisar que posseiros não eram somente os caboclos que
viviam da agricultura de subsistência e da extração da erva-mate; posseiro também
poderia ser aquele grande proprietário que não possuía título definitivo sobre a área que
dizia ser sua. Apesar disso, Zarth afirma que de um modo geral, na documentação
analisada por ele, “o posseiro era um camponês que ocupava pequenas áreas e era vítima
constante de expulsão à medida que avançava a fronteira agrícola” (2002, p. 169).
Para esse trabalho é essencial a análise do conceito de intrusão. Esse conceito
começou a ser elaborado e utilizado a partir da criação das comissões verificadoras de
terras, que tinham como função discriminar as terras públicas das privadas, sendo
considerada como um trabalho de base para a colonização na Primeira República (SILVA,
2008). Zarth escreve que algumas fontes “denominam intruso ao camponês que ocupava
terras públicas ou privadas sem consentimento prévio de autoridade ou de proprietários.”
(2002, p. 170). Já Rückert (1997) discute que o posseiro passa a ser categorizado como
intruso quando, por não serem incorporados aos projetos de colonização, passam a
adentrar terras particulares.
Rückert segue afirmando que “a partir de 1890, é de interesse fundamental do
governo estadual dedicar toda a sua atenção à colonização do Norte, relegando, dessa
forma, os posseiros a um plano secundário.” (1997, p. 111). Porém, em nossas análises
dos relatórios produzidos pela Comissão de Terras e Colonização de Passo Fundo e pela
Comissão da Palmeira, é possível perceber um discurso de que, para iniciar de fato um
sólido projeto de colonização na região, seria necessário primeiramente resolver a
questão das posses dos elementos nacionais, pois somente assim se extinguiria qualquer
problema futuro envolvendo nacionais e colonos. É importante destacar, contudo, que o
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autor não utilizou em seu trabalho da documentação utilizada por nós e, portanto, não
teve acesso a tais dados para utilizar em sua pesquisa.
Há também o fato de que para a realização da divisão da terra em lotes coloniais,
seria necessário realizar medições em toda zona de ação das Comissões, separando terras
públicas de terras de particulares, e assim abarcando também as áreas apossadas por
nacionais, o que já delegaria um conhecimento sobre onde havia posses.
No período em análise nesse trabalho, os órgãos responsáveis pela verificação da
situação das terras públicas, da organização do serviço de colonização era, em âmbito
estadual, a Diretoria de Terras e Colonização – DTC –, e as Comissões de Terras e
Colonização – CTC – subordinadas à primeira, eram responsáveis por regiões do Estado.
Para o governo positivista do Estado, a organização da questão agrária era de suma
importância para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul, bem como o
acondicionamento dos colonos em suas propriedades e a regularização da questão dos
nacionais/caboclos. Pode-se afirmar que o governo estadual “tratava com muito rigor os
serviços de terras e colonização, bem como a questão da imigração” (CARON, 2009, p. 77).
Resolvendo-se a questão dos posseiros – legitimando suas áreas – se resolveria os
problemas que as posses causavam para a colonização.
Isso se deve em parte à doutrina positivista adotada pelo Partido Republicano
Riograndense – PRR –; é oportuno destacar também que por um longo período (1908-
1928), o diretor da Diretoria de Terras e Colonização foi Carlos Torres Gonçalves, grande
adepto do positivismo, que deixava transparecer isso em seu trabalho na Diretoria,
realizando trabalhos metódicos e mostrando uma grande preocupação na “condução dos
assuntos relativos à colonização e à imigração.” (CARON, 2009, p. 75).
Isso tudo influencia na ação das CTCs na organização da presença de nacionais em
terras públicas, a fim de resolver problemas, possibilitar o caboclo a ter o título de sua
terra, e ter espaço legal e sem ocupação para introduzir os colonos e imigrantes que
rumavam para a região Norte do Estado, em busca de novas terras.
As Comissões
As CTCs em questão foram criadas em momentos diferentes, como partes regionais
subordinadas à Diretoria de Terras e Colonização.
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situação de intrusão e que, por isso, requeria grande atenção da Comissão, que deveria
trabalhar para solucionar os casos de intrusão.
No trabalho para solucionar a intrusão, e na ação contra esse constante fluxo de
indivíduos que poderiam se tornar intrusos, a Comissão atendia rapidamente os
indivíduos/famílias que chegavam, direcionando-os para áreas já loteadas, a fim de eles
não irem se apossar de áreas ilegalmente.
Muito se discutia sobre os motivos que resultavam no problema que era a
intrusagem. Do ponto de vista da CTC da Palmeira, foi a ausência do Estado na região por
muito tempo que permitiu que a desordem se espalhasse pelas terras públicas. Isto posto,
é então compreensível toda a atenção dispensada pela Comissão ao assunto, já que
visavam resolver o quanto antes essa questão.
Essa preocupação com a organização legal dos intrusos – os tirando dessa situação
–, resultado do mote positivista seguido pelo governo rio-grandense, ordem e progresso,
pode ser percebida quando se afirma que “a discriminação e demarcação de lotes
favoreceria a localização e facilitaria a compra de lotes e terminaria a desordem que
reinava no momento.” (RELATÓRIO DE COLONIZAÇÃO, 1917, cópia nº2). Isto é, para que
se instituísse o “estado normal” das coisas, era necessário que cada família se tornasse
proprietária da área utilizada para sua subsistência.
Com a grande relação entre tratar a intrusagem, a colonização e as medições e
demarcações de lotes, quando ocorria atraso nessas duas últimas, os casos de intrusagem
e o assentamento de novos colonos eram prejudicados, visto que havia um grande número
de intrusos e era intensa a chegada de novos colonos.
Havia uma preocupação com o bem-estar dos grupos intrusados, pois o “trabalho
de demarcação das terras ocupadas pelos nacionais e sua legitimação ou concessão em
condições favoráveis, base inicial e única eficaz do serviço de proteção.” (RELATÓRIO DE
COLONIZAÇÃO, 1919, resenha anual dos trabalhos da Comissão). Os nacionais que
também não possuíam moradias eram atendidos pela Comissão, que se preocupava com
o bem-estar dos seus patrícios, indo de encontro às posições defendidas por Carlos Torres
Gonçalves, diretor da DTC e o governo positivista, que buscavam a ordem para conseguir
o progresso.
Um problema enfrentado pelos funcionários de ambas as CTCS era a grande
extensão da zona de ação das mesmas, além do fato de que o número de funcionários era
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definitivo das mesmas. Aqui então, há outro tipo de caso, onde os posseiros vão, por conta
própria, procurar o governo para legalizar a situação de suas terras, antes mesmo de a
Comissão entrar em contato com eles. Todavia, não foi possível acompanhar o resto desse
processo, por ele não constar junto com a documentação acessada no momento.
Considerações finais
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Fontes
Referências bibliográficas
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Luce, Rosa & Cia Ltda no Alto Uruguai gaúcho – 1915/1930. Dissertação (Mestrado),
Universidade de Passo Fundo – UPF, Passo Fundo, RS, 2009.
GERHARDT. Marcos. História Ambiental da Erva-Mate. 2013. Tese (Doutorado),
Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Florianópolis, SC, 2013.
ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969.
NASCIMENTO, José Antonio Moraes do. Derrubando florestas, plantando povoados: A
intervenção do poder público no processo de apropriação da terra no norte do Rio Grande
do Sul. 2007. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
PUCRS, Porto Alegre, RS, 2007.
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Rio Grande do Sul – 1827 – 1931. Passo Fundo: Editora UPF, 1997.
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Cândido Rondon, vol. 12, nº 2, p. 1-20. 2008.
THOMPSON, E. P. Costume, lei e direito. In: ________. Costumes em comum: estudos sobre a
cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 86–149.
ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX.
Ijuí: Unijuí, 2002.
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Considerações iniciais
Insta mencionar que no Sul do Brasil alguns fatores foram decisivos na formação
de uma sólida base para que o Projeto de Restauração da Igreja Católica alcançasse o êxito
almejado pelos líderes religiosos, dentre eles, o fluxo migratório contínuo de imigrantes
católicos alemães e italianos, os incentivos e reforços que as ordens e congregações
religiosas recebiam para atuarem junto ao contingente humano, em especial os Jesuítas.
É preciso destacar, ainda, que esses religiosos estavam “inteiramente comprometidos
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Bolsista Capes.
Contato: <maikel.gustavo.schneider@gmail.com>
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com o projeto da Igreja, definido no Concílio de Trento, reafirmado pelo Concílio Vaticano
I [...], sempre sob autoridade inconteste do Sumo Pontífice” (RAMBO, 2002, p. 292).
Desse modo, no intuito de coroarem de pleno êxito o projeto da Igreja Católica,
constata-se que os religiosos valeram-se de três instrumentos básicos, a saber: o
associativismo, a imprensa e a escola juntamente com o professor paroquial (KREUTZ,
1991).
Nosso objetivo, na presente escrita, repousa sobre a imprensa, uma vez que “sem
dúvida que a difusão da imprensa foi um fator importante para o desenvolvimento do
Projeto de Restauração Católica entre os teuto-brasileiros”. (KREUTZ, 1991, p. 66). Por
oportuno, apresentaremos algumas publicações, em jornais católicos alemães, que
versam sobre o projeto de colonização Porto Novo, fundado em 1926, na região extremo-
oeste do estado de Santa Catarina, planejado, organizado e promovido pela Volksverein
für die Deutschen Katholiken in Rio Grande do Sul - Sociedade União Popular para Alemães
Católicos no Rio Grande do Sul, fundada em 1912 pelos Jesuítas. Os habitantes dessa
região eram colonos alemães católicos, formando uma comunidade alicerçada no rígido
controle social exercido pelo clero.
Desta forma, a imprensa será compreendida, nesta escrita, como uma estratégia
dos Jesuítas e da Igreja no amplo projeto de Restauração Católica, utilizada dentro do
campo religioso, capaz de forjar uma visão de mundo defendida pela instituição, bem
como para publicizar as obras e feitos de projetos patrocinados pela igreja.
“Se Deus vos tiver comunicado o dom de falar e a ciência do escrever, a vossa voz
e a vossa pena estarão ao serviço da Igreja”. A partir dessas palavras, a carta pastoral
coletiva episcopal de 1890, convocava todos os clérigos e leigos a defenderem os
interesses da Igreja. Evidencia-se, com isso, a ciência dos bispos brasileiros diante da
grande importância que os meios de comunicação apresentavam, em especial a imprensa,
para a construção de ideias e visões de mundo, bem como para a formação de opiniões
públicas favoráveis à instituição.
“Destruidoras da família, da sociedade e da religião” (Pastoral Coletiva do
Episcopado Brasileiro, de 06 de janeiro de 1900), assim era classificada a imprensa que,
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Nessa primeira edição do jornal o redator Jakob Dillenburg, em um artigo publicado, deixa
claro que se “a tolerância e a equidade for lesada pelo lado oposto, o ‘Deutsches Volksblatt’
não pode ficar calado. Então será obrigado a defender seus princípios e irá defendê-los.”
(Deutsches Volksblatt, 1875, n.º 49. apud SCHUPP, SJ, 2004, p. 254).
Os católicos, em especial os Jesuítas, estavam em busca de um jornal que
representasse sua religião e sua religiosidade, objetivando a “verdade” nas informações,
além de notícias de cunho religioso, cultural, político e social, bem como, “com boa parte
reservada para a doutrinação” (KREUTZ, 1991, p. 66). Ademais, “sem dúvida que a difusão
da imprensa foi um fator importante para o desenvolvimento do Projeto de Restauração
Católica entre os teuto-brasileiros”. (KREUTZ, 1991, p. 66), além de servir como defesa
para os principais inimigos da Igreja Católica: como a maçonaria, a separação da Igreja e
do Estado, o ensino laico, o protestantismo e o positivismo.
Na obra “Cem anos de Germanidade no Rio Grande do Sul 1824-1924”, o autor Pe.
Theodor Amstad, SJ, deixa claro que, diante dos limites ultrapassados pela má imprensa,
“de modo especial em questões religiosas contra os católicos, estes terminaram perdendo
a paciência e fundaram um jornal próprio, o ‘Deutsches Volksblatt’, produzido em São
Leopoldo de 1871 a 1890 e depois transferido para Porto Alegre”. (AMSTAD, 2005, p.
295).
Diante disso, percebe-se que os Jesuítas conjugaram seus esforços na formação de
um jornal semanal, que buscava elencar um resumo das principais notícias da semana e
com grande parte de suas páginas reservadas para comentários e reflexões, que
objetivavam a doutrinação dos teuto-católicos, além de divulgarem seus projetos.
Presume-se que essa escolha [pelo jornal] possa estar ligada a fatores
como o custo mais reduzido para ser impresso e também para ser
adquirido, pois próximo às características de folhetins ou panfletos, seria
de fácil circulação e proliferação. Ao mesmo tempo, seria mais prático do
que livros ou revistas, mas mesmo assim algumas ordens religiosas
dedicar-se-ão a esse tipo de impressos (KLAUCK, 2009, 62-63)
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No ano seguinte, os anúncios veiculados nos jornais sobre a colônia Porto Novo
alteraram seu foco, aumentando a agressividade e a presença, ante a fundação da colônia
de São Carlos, considerada concorrente do empreendimento da Sociedade União Popular.
A nova colônia, além de também ser destinada aos teutos-católicos, prometia em sua
propaganda uma estrutura muito semelhante a colônia da Sociedade União Popular, com
o diferencial da construção de uma ferrovia em um futuro próximo.
Diante disso, Pe. Rick, SJ, conhecido como “pai dos colonos”, responsável direto
pela implantação do projeto Porto Novo, publicou um artigo na edição de 06/06/1928, do
jornal Deutsches Volksblatt, sob o título “Fünf Monate in Porto Novo” (Cinco meses em
Porto Novo), onde argumentava nitidamente contra a nova colônia tentando demonstrar
que a via fluvial, apresentada por Porto Novo, seria de grande vantagem para o
escoamento da produção:
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A partir dos anúncios aqui apresentados, é possível constatar que a Igreja utilizava
a imprensa não somente para transmitir sua palavra, doutrinando e informando seus
leitores, mas também para anunciar empreendimentos e obras que ela incentivava e
entendia como sendo primordiais para os católicos, a exemplo da colônia Porto Novo.
Podemos afirmar, ainda, que a imprensa tinha uma função pedagógica, doutrinária, e
informativa junto aos seus leitores, buscando preservar a família com ensinamentos
puramente cristãos.
Por derradeiro, com o estopim da Segunda Guerra Mundial a imprensa alemã foi
obrigada a adaptar-se à nova realidade, na medida em que foram obrigados a editarem
seus jornais em língua portuguesa, inclusive com alteração do nome. Aqueles que não se
adaptaram acabaram fechando as portas de suas redações. Desta forma, o Deutsches
Volksblatt passou a ser editado sob o nome brasileiro de “Gazeta Popular”, continuando a
atender aos leitores alemães católicos e, principalmente, aos interesses da Igreja, porém
com textos publicados em português.
Considerações finais
Muitos foram os papas que condenaram a má imprensa, aquela que estendia duras
críticas aos católicos e apresentava uma nova visão de mundo, alertando que ela é danosa
não somente para a Igreja, mas, principalmente, à família e à educação.
Para combater as “inverdades” divulgadas, “a Igreja Católica, em tempos
desfavoráveis, soube administrar os meios de gestar uma opinião pública favorável,
utilizando as armas que desde suas origens tinha acesso, como o púlpito e os
confessionários” (NEVES, 2013, p. 11). Com o advento da modernidade, foi obrigada a
combater com as mesmas armas daqueles que buscavam denegrir sua imagem, iniciando
o uso da imprensa.
Nesse aspecto, mister mencionar que o uso de jornais, almanaques, revistas e
folhetins não objetivam trazer instrução e conhecimento aos católicos, mas sim servirem
como profanadores das “verdades”, formando uma opinião pública regulada de acordo
com os preceitos ditados pelo clero. Desta forma, “a verdadeira função da religião não é
nos fazer pensar, enriquecer nosso conhecimento, acrescentar às representações que
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devemos à ciência, representações de outra origem e de outro caráter, mas nos fazer agir,
nos ajudar a viver”. (DURKHEIM, 1989, p. 493).
Diante disso, a partir do uso da imprensa dentro do Projeto de Restauração da
Igreja Católica, agindo na esfera pública como meio para formar opiniões, a Igreja buscou
afastar os fiéis da chamada má imprensa e longes de possíveis influências que pudessem
desvirtuá-los para outros caminhos - leia-se outras religiões/igrejas.
No que concerne ao Brasil, em especial na região Sul, os Jesuítas incumbiram-se
desse desafio, encabeçando e organizando uma imprensa alemã e católica completamente
alinhada com o amplo Projeto de Restauração da Santa Sé. Aproveitaram as publicações
não somente para a informação e doutrinação dos fiéis, mas também para divulgação de
obras e empreendimentos considerados como fundamentais para o futuro da Igreja nesta
região.
É o que podemos constatar a partir das propagandas e textos aqui apresentados e
vinculados pelos dois principais meios de comunicação dirigidos pelos Inacianos aos
alemães católicos: o Deutsches Volksblatt e o Skt. Paulusblatt. Ambos noticiários exaltavam
a Colônia Porto Novo, localizada no Extremo Oeste do Estado de Santa Catarina, pois os
Jesuítas há muitos anos sonhavam com a fundação de uma colônia homogênea,
direcionada exclusivamente para os alemães católicos, fato que não concretizou-se no
estado do Rio Grande do Sul. Assim, ao adentraram no estado Catarinense, conseguiram
concretizar seu principal sonho, formando uma comunidade de orantes que estava
voltada para os ensinamentos da Igreja, sem qualquer interferência externa.
Por fim, as propagandas veiculadas nos jornais e revistas foram o principal meio
de divulgação dessa colonização e de atração dos católicos, garantindo o capital humano
que a congregação necessitava para trabalhar. Acredito que a temática aqui esboçada
comportaria um amplo estudo acerca das publicações sobre a colônia Porto Novo na
imprensa alemã católica, algo ainda pouco explorado, buscando evidenciar as formas e os
argumentos que os Inacianos encontraram para atrair os colonos e concretizar seu sonho
utópico.
Referências Bibliográficas
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Patrícia Bosenbecker
Doutora em Sociologia/UFRGS. Contato: pbosenbecker@gmail.com.
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obras produzidas por Ernesto Pellanda, Jean Roche, Telmo Moure ou Eugênio Lagemann,
entre os nomes mais conhecidos. Naturalmente, esses autores possuem diferentes
concepções sobre a industrialização ligada a imigração alemã, como mostrou Gertz
(2014), e não podem ser classificados no mesmo grupo historiográfico, contudo, essas
questões não são necessariamente o objetivo desse artigo, que foca sua análise nos espaço
ocupado pela família Rheingantz na historiografia da imigração alemão no Brasil. A minha
pergunta é como exatamente os Rheingantz são caraterizados, mostrados ou tratados por
esses autores essenciais? A minha preocupação durante a leitura que aqui realizo
evidentemente é encontrar informações sobre os membros da família Rheingantz ou
sobre a fábrica União Fabril e a colônia São Lourenço nestes livros.
O primeiro texto a ser analisado é o livro de Jean Roche (1969). Entre as questões
trazidas por esse autor está a classificação da Colônia São Lourenço como “uma ilha
agrícola numa mancha florestal, no meio de uma zona luso-brasileira de pecuária, na
planície” (ROCHE, 1969, p. 179)201. Jacob Rheingantz pouco aparece nos volumes e tanto
Jacob e o quanto o filho Carlos Guilherme marcam a fusão de empreendedorismos na
região sul do Estado sob o nome Rheingantz. Roche (1969, p. 193), apesar de delinear que
a influência alemã na região sul não foi influência decisiva ou a mais importante,
demarcou a contribuição comercial dos alemães em geral e dos Rheingantz em particular
nas cidades de Rio Grande e Pelotas, como nesse longo trecho:
201Como já tratei na minha dissertação de mestrado: “Essa descrição define de maneira singular a situação
da referida colônia, fundada dentro dos limites do município de Pelotas, que era um pólo de colonização
portuguesa e o centro econômico da Província na época, posição demarcada pelo sistema de criação de gado
e de produção regional de charque, ou seja, pelas estâncias e pelas charqueadas. A expressão “ilha de
colonização” foi empregada no sentido de salientar o isolamento dos colonos, afastados dos grandes centros
de colonização e que, por tal razão, apresentariam diferenças sutis nas condições de vida comparando-se
com as dos colonos da região serrana do Rio Grande do Sul. No entanto, a multiplicidade de contextos e de
grupos que se entrecruzaram na região colonizadora mais ao sul do Estado gaúcho apagou a solidão da ilha
e a reconfigurou como espaço central de relacionamentos entre diferentes grupos étnicos.”
(BOSENBECKER, 2011, p. 6).
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O autor (ROCHE, 1969, p. 505) deixa claro que “A fundação da fábrica Rheingantz
marcara o início da indústria rio-grandense.”, contudo, o exemplo descritivo das grandes
empresas e empresários do ramo de tecidos (p. 534-537) é A. J. Renner. Anos mais tarde,
outro importante autor, Paul Singer (1977, p. 170-174) observou também que o início da
industrialização do Rio Grande do Sul teve seu centro em Pelotas-Rio Grande, antes da
década de 1890, e não em Porto Alegre, que se tornaria o maior polo industrial somente
após a Primeira Guerra Mundial, ressaltando ainda o importante papel exercido pelas
empresas Rheingantz no sul gaúcho para a consolidação dessa posição, mas não revelou
as ligações das gerações da família Rheingantz no extremo sul, a que coloniza e a que
industrializa, suas redes, nem como ela opera na metade sul. Claramente, não é este
objetivo do texto de Singer (1977), que foca sua análise no processo de desenvolvimento
de Porto Alegre, e, dessa forma, avalia a relação entre a industrialização da capital gaúcha
e colonização alemã da região norte do Estado.
Por outro lado, as cidades de Pelotas e de Rio Grande formavam o principal eixo
econômico do Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX, a economia local
baseada na produção e comercialização do charque e do couro dominou o Rio Grande do
Sul até o fim do século XIX. Com o crescimento da região norte da província, de
colonização alemã, através de um extenso processo de ocupação, do desenvolvimento da
agricultura e, do posterior incremento da agricultura comercial, o norte toma a posição
202 Jean Roche escreveu o referido livro durante a década de 1950, defendendo o trabalho como tese de
doutorado em 1962, na Universidade de Paris V, Sorbonne. O autor pesquisou e reuniu o material durante
estada de sua família no Rio Grande do Sul, entre 1945 e 1953. Veja mais informações em Dreher (2014).
203 Grifos nas citações dos autores são meus, demarcando os trechos que mais interessam na pesquisa pelos
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204 Segundo Singer (1977, p. 159) as colônias passavam por três fases de expansão colonial: a primeira fase
correspondia ao desmatamento e a agricultura de subsistência, a segunda fase se caracterizava pela
expansão agrícola e exportação de excedentes, e a terceira, correspondia à especialização agrícola, tendo
em vista a comercialização.
205 Podemos comparar a evolução econômica da família Rheingantz, investidores coloniais, comerciantes, e,
por fim, industriais, e seus investimentos no eixo Pelotas-Rio Grande, com a evolução e influência, em
especial referida por Singer (1977, p. 165 a 167), exercida por Henrique Ritter Filho, A. J. Renner e Frederico
Mentz, em Porto Alegre, que como grandes comerciantes expandiram suas atividades ao ramo industrial,
promovendo a industrialização da capital do Rio Grande do Sul a partir da exploração do comércio nas
colônias e com investimentos na área colonial do Vale dos Sinos e do Caí, como empresas de transportes,
pequenas indústrias, e comércios em geral, e, portanto, promovendo uma industrialização ligada às
“consequências da colonização alemã”.
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No mesmo volume, outro artigo publicado por Lagemann (1980, p. 132) corrige as
informações, já que foi “Carlos Guilherme Rheingantz, filho do comerciante Jacob
Rheingantz, fundador da colônia de São Lourenço, dedicou-se ao comércio em Pelotas
antes de associar-se a seu sogro e ao alemão Hermann Vater para fundar a empresa
Rheingantz e Vater [primeiro nome da União Fabril]...” Até o presente momento, é
possível notar que Jacob Rheingantz é o fundador da colônia São Lourenço, uma “ilha” que
está localizada em Pelotas, local estranhamente escolhido pela família Rheingantz para
construir seus negócios, já que era o centro da economia luso-brasileira ou da aristocracia
regional. Em Rio Grande, é Carlos Guilherme que se consolida como o fundador de uma
grande indústria têxtil, inaugurando a industrialização gaúcha.
À primeira vista, parece existir certa inconformidade por Rio Grande e Pelotas
terem sido os polos onde a indústria nasceu e não uma cidade do norte do Estado, mesmo
que tal processo tenha ocorrido pelas mãos de alemães e descendentes. Este é o primeiro
aspecto que é preciso considerar, pois é importante operar uma inversão no pressuposto
de análise, se a intenção for entender o papel da família Rheingantz e do
empreendedorismo produzido por ela no sul do Estado. Assim, é preciso refletir sobre a
própria dinâmica das cidades de Pelotas e Rio Grande, como polos econômicos
provinciais, como grandes espaços receptores de imigrantes de várias nacionalidades
durante todo o século XIX, como cidades importantes que recebem agentes e
comerciantes estrangeiros sejam pequenos, médios e grandes, inclusive os mais
importantes exportadores e representantes comerciais internacionais206, como
hamburgueses, bremenses, ingleses, americanos, entre outros.
O segundo aspecto é buscar entender que a colônia São Lourenço não é uma ilha,
na qual a família Rheingantz levou os imigrantes alemães. A colônia estava localizada no
206 Veja artigo de Torres (2010), no qual o autor reproduz as principais empresas estrangeiras de Rio Grande
a partir do texto Impressões do Brasil no século vinte: sua história, seu povo, comércio, indústrias e recursos,
editado por Reginald Lloyd, em 1913.
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4ª distrito de Pelotas, em uma imensa área da Serra dos Tapes, cercada por estâncias
(BOSENBECKER, 2011), campos que se limitavam pela margem leste com a Laguna dos
Patos, que dava a ligação para as grandes cidades Pelotas, Rio Grande e até Porto Alegre.
Entretanto, os Rheingantz não podem ser considerados construtores de uma “ilha” de
colonização, nem subentendidos como pertencentes a uma situação isolada de imigração
alemã, pois possuem uma ampla rede de relações com fazendeiros, comerciantes e
políticos brasileiros, disputando espaços centrais no jogo político e econômico do Rio
Grande do Sul, nas duas gerações aqui tratadas, e consolidando a colonização como
empreendimento no seio charqueador da província (BOSENBECKER, 2017). Sem avaliar
esses dois aspectos – que os Rheingantz possuem uma ampla rede social e comercial na
região e que o eixo Rio Grande-Pelotas é um dos mais importantes polos econômico,
político e social da província – não será possível perceber o grande impacto da instalação
da Colônia São Lourenço, nem a explosão nas disputas agrárias da região, ou o predomínio
dos comerciantes alemães de grande porte nas duas cidades locais e o papel da família na
industrialização gaúcha.
Assim, o lugar da família Rheingantz na conjuntura da historiografia tomada aqui
como a clássica parece ter começado como um lugar estranho. Os Rheingantz construíram
grandes empreendimentos, mas não sabemos como ou com quais condições essa situação
pode ocorrer. Esse lugar, essa posição de grandes colonizadores e empresários, mas ao
mesmo tempo de deslocados empreendedores alemães que os Rheingantz ocupam nos
textos, é constituído pelo lugar diferente, uma vez que não estão conectados com o espaço
e as redes que chamaremos de “tradicionais” das “dinastias germano-rio-grandenses” de
empreendedores. Contudo, essa condição da família Rheingantz está construída sob uma
base documental histórica e, consequentemente, uma pesquisa muito tímida sobre a sua
situação social, econômica, política e cultural no Brasil.
Em outro sentido, a historiadora Sandra Pesavento (1980), no volume aqui já
citado RS: imigração e colonização, também avaliou a participação política dos imigrantes
e descendentes, especialmente na primeira República. Conforme a autora (1980, p. 180):
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Começa nesse trecho a construção clássica sobre o lugar dos Rheingantz na sua
primeira geração. Bem mais distante era a Colônia São Lourenço é o primeiro
pressuposto. Como já tratamos neste artigo, a colônia está praticamente no lugar errado
do Estado, ou seja, no sul, no interior de municípios pouco importantes, e não na metade
norte. Evidentemente, há dados incorretos mesmo em curta sentença, pois São Lourenço
207Em outros dois textos de Pesavento, “História da Indústria sul-rio-grandense” (1985) e “A burguesia
gaúcha” (1988), novamente os Rheingantz são citados como grandes industriais e é possível acompanhar
vários dados sobre a produção das fábricas, a relação entre a direção das empresas e os trabalhadores e, de
certa forma, o papel que os empreendimentos possuíam em termos econômicos e sociais no Estado.
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Nesse longo trecho, está claro que o lugar construído para os Rheingantz no
referido texto não é um “não-lugar”, isto é, não é um espaço descaracterizado ou
desimportante, pois está representando o diferente, como o lado oposto ao que podemos
chamar de “lugar-ideal”, que, por sua vez, envolve justamente as noções de obra
germânica de pioneirismo e cultura, honestidade, guia econômico e espiritual, e sacrifício,
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entre outros termos utilizados pelo autor. Assim, a família Rheingantz parece não fazer
parte do “lugar-ideal”, estando afastados do ideal de “missão” colonizadora208.
A discussão promovida neste artigo tinha por objetivo refletir sobre a presença dos
membros da família Rheingantz em obras clássicas da história da imigração alemã no Rio
Grande do Sul. Infelizmente, as informações na maioria dos textos aqui citadas são
extremamente básicas, trazendo o nome de quem fundou qual empreendimento ou qual
a produção colonial e o número de imigrantes entrados em cada ano ou, ainda, o capital
social da fábrica Rheingantz e a produção da firma durante as guerras mundiais209.
Também procurei mostrar a dificuldade que encontrei, enquanto construía minhas
pesquisas com esse tema empírico, em dialogar com alguns autores e encontrar dados
mais precisos em textos clássicos da imigração alemã.210 Nesse sentido, a introdução de
outros pressupostos básicos e também teóricos é indispensável para a compreensão da
situação da família no interior do processo de colonização alemã no Brasil, como procurei
fazer na minha tese de doutorado ao utilizar a noção de empreendedorismo
transmigrante211.
A perspectiva do empreendedorismo transnacional, nos termos de Zhou, avança o
conceito de empreendedorismo étnico em quatro aspectos. No primeiro, mostra que os
empresários imigrantes não reagem apenas às desvantagens estruturais que enfrentam
nos países de acolhimento, pois procuram novas oportunidades ou nichos de mercado,
por exemplo, utilizando as suas competências biculturais e as redes étnicas. No segundo
aspecto, o empreendedorismo transnacional não impacta o grupo étnico ou imigrante da
mesma forma que impacta indivíduos ou famílias. O terceiro caso mostra que os efeitos
dos importantes recursos de capital social são desiguais. Por fim, o quarto aspecto
208 Ao que tudo indica, novas e aprofundadas análises podem ajudar a compreender esse lugar diferente
que a família Rheingantz ocupa, especialmente, a partir das concepções construídas pela família Oberacker.
Talvez esse processo possa ter início com a análise de um texto sobre a história de Jacob Rheingantz,
intitulado “Fahrt und Tat des Jakob Rheingantz”, que parece ainda não ter tradução para o português, escrito
por Oberacker (pai), que foi pastor entre 1910 e 1920, na região de colonização de São Lourenço,
precisamente em Arroio do Padre (atualmente município, emancipado de Pelotas, em 1996).
209 Veja, por exemplo, Roche (1969, p. 507), ao tratar da produção industrial durante a primeira guerra
mundial: “De 13 importantes fábricas de fiação, 10 fornecem 90% da produção total, e a União Fabril, que
vem na frente, 26% sozinha.”
210 Como Pellanda (1925), por exemplo, que apresenta uma série de dados empíricos, oriundos de relatórios
gerações de empreendedorismo: capital e laços sociais entre Brasil e Alemanha a partir do estudo de caso da
família Rheingantz, defendida em 2017, no PPG-Sociologia/UFRGS.
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evidencia que, mesmo existindo negócios no país de acolhida, a vida cotidiana desses
imigrantes pode estar fixada no país de acolhimento ou no de origem, sem prejudicar o
conjunto teórico (ZHOU, 2004, p. 1059).
A partir dessa perspectiva teórica, foi possível observar que a família Rheingantz
construiu seus negócios muito distante de possíveis desvantagens estruturais ou
discriminações vividas no país de acolhimento. Ao contrário, aproveitou as oportunidades
e aliou-se às elites locais (nacionais), compartilhando interesses econômicos, sociais e
políticos. Aqui é importante destacar o alinhamento de ideias e interesses, pois os
membros familiares aprenderam os movimentos do jogo político, da mesma forma que
construíam alianças e, em certa medida, criaram inimizades com os nacionais. Por outro
lado, fizeram uso de redes migratórias e conhecimentos e laços binacionais, que lhes
garantiam contatos confiáveis em relações de solidariedade e confiança que são
fundamentais para os negócios de caráter migrante em qualquer país (BOSENBECKER,
2017).
Entre grupos imigrantes alemães estabelecidos na região aqui analisada, a família
Rheingantz sempre conquistou benefícios, apesar de outros comerciantes e alguns
parceiros no interior da rede terem conquistado oportunidades de negócios com as
alianças envolvendo a família. Por fim, é preciso notar que a família Rheingantz operou e
sofreu uma forma de adaptação alternativa na sociedade brasileira. Perfeitamente
estabelecidos no sul do Rio Grande do Sul, tiveram ampla participação política e social na
vida local, apesar de resguardarem suas práticas alemãs para viveram, assim, como
alemães na Alemanha (BOSENBECKER, 2017). Talvez esses aspectos possam contribuir
para futuras análises que estejam interessadas em avaliar as posições dos autores
clássicos com os dados mais atuais das pesquisas realizadas até o momento, da mesma
forma que novas pesquisas podem ampliar o escopo de dados e análises sobre a situação
dos imigrantes alemães nos principais centros urbanos do sul do Rio Grande do Sul.
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Introdução
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Geografia (UFRGS). Bacharel em Ciências Econômicas (UFSM).
Pesquisador do Laboratório Estado e Território (UFRGS) e do Laboratório de Estudos Internacionais
(UFSM). Contato:< roberto.uebel@ufrgs.br>
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O breve relato, aqui condensado na forma de artigo, está dividido em cinco partes:
esta introdução, além de três seções descritivas, onde discorreremos os três termos
ligados às migrações – históricas e contemporâneas -, a saber: emigrações e seus desafios,
imigrações e suas abordagens, remigrações e suas histórias e geografias. Além destas
seções, em virtude da limitação de espaço para discussão, condensamos os resultados e
juntamos estes às considerações finais, que não encerram o debate e as ligações entre as
migrações do passado e as do presente, quase futuro.
Dentre os resultados encontrados, percebeu-se alguns fatores destoantes dos
processos migratórios considerados históricos: a) ressignificação das fronteiras
terrestres; b) velocidade do processo imigração, emigração, remigração; c) trânsito entre
as categorias de imigrante, refugiado, asilado político, expatriado e residente permanente.
Nesse sentido, a pesquisa encontrou não apenas novos desafios e abordagens à
Historiografia e à Geografia, mas também dinâmicas que demandam uma “atualização” do
debate destas ciências em relação às migrações na América Latina, notadamente
relacionadas à xenofobia, nacionalismo e separatismo.
Espera-se, portanto, com este texto e as discussões e críticas advindas da segunda
edição do Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-Americanos,
compreender e abrir o debate sobre os novos fluxos à Bacia do Prata – quais sejam de
haitianos, sírios, senegaleses, venezuelanos, bengalis, etc. – que certamente trazem ou
faceiam elementos das migrações históricas que compuseram e ajudaram a formar os
Estados platinos, bem como suas repercussões e contribuições à História e Geografia
latino-americana.
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alternativas são limitadas: via terrestre ou via aérea, esta normalmente mais cara e sem
conexões diretas.
Nesse sentido, aparece para o historiador e geógrafo um novo desafio relacionado
ao papel que as fronteiras terrestres platinas possui na personificação da emigração intra-
regional. Se antes eram apenas postos de controle migratório e alfandegário, ou ainda
pontos turísticos, como em Iguaçu ou Rivera-Livramento, hoje representam uma
dinâmica apontada por Dorfman, França e Assumpção (2015) como de múltiplas
representações e relacionamentos; a fronteira surge como uma importante categoria de
análise nos estudos migratórios.
A fronteira não apenas separa e divide os platinos de lá e cá, afinal, todos são
banhados pela mesma bacia hidrográfica e seus rios tributários, mas também oficializa a
categoria do emigrante, o seu papel na sociedade que lhe acolherá e suas remessas
financeiras que contribuirão para o seu país de destino e o seu país de origem; isto, à época
das migrações históricas dos séculos XVIII ao XX, era extremamente limitado a
correspondências, envios de mantimentos ou inexistentes. A comunicação tecnológica é
outro avanço da contemporaneidade que comporta um dual desafio ao estudioso das
migrações, não se trata mais de birds os passage (PIORE, 1979), mas sim de definitive birds.
Fronteiras, soberania, identidades, todos estão intimamente ligados aos desafios
de se olhar um fluxo sob a ótica do emigrante e não são exclusivos dos tempos atuais – no
começo do século XX, Sudhaus (1940) já estudava os porquês dos teutos migrarem para
o Brasil, a dita reforma agrária alemã era apenas um dos itens, quando não excluído –
entretanto, hoje possuem uma relevância política e econômica incomensurável para o
país emissor.
Este último desafio faz não apenas o geógrafo ou o historiador se questionar, mas
igualmente os governantes, policy makers e capitalistas (ou na linguagem contemporânea:
empresários/empreendedores): por que os nossos cidadãos estão emigrando para outros
países, longínquos como Austrália e Nova Zelândia, ou a poucos quilômetros de distância,
como Argentina e Uruguai.
A questão política se coloca assim de forma extremamente importante na análise
dos fluxos migratórios contemporâneos, como nunca se colocara, nem mesmo na época
de Guilherme Gaelzer Netto (FERNANDES, 2015), e nos debruçaremos sob esta questão
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nas próximas seções, além dos temas adjacentes, tais como nacionalismos, xenofobias e
regionalismos.
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212 Números obtidos junto aos órgãos oficiais de migração e estatística da Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai
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uma das capitais mais modernas da África Ocidental, aos olhos e padrões ocidentais,
obviamente.
Contudo, com a consecução de um ciclo de crises iniciado previamente à sua
chegada, ainda em outubro de 2014 e consumado em agosto de 2015, este migrante (ora
considerado econômico ora forçado) é um dos primeiros funcionários a ser demitido, por
ser estrangeiro, ante a iminente falência da empresa em que trabalhava. Quais as opções?
Ingressar na informalidade, vendendo produtos oriundos de contrabando e descaminho,
mercado já saturado, ou migrar para outro país: Uruguai, Argentina ou o longínquo
Canadá. Ele escolhe o segundo, após passar algumas semanas no primeiro, desejando o
terceiro, que não lhe concede visto de trabalho. A ele se somam mais de cinco mil
remigrantes (TEDESCO; KLEIDERMACHER, 2017) com Histórias semelhantes em novas
Geografias.
A remigração, assim, passa a ganhar um papel de destaque nos estudos migratórios
contemporâneos, como nunca recebera quando das migrações históricas do passado,
inclusive do passado recente após a Segunda Guerra Mundial. Este fenômeno, muito além
de migrações internas ou intra-regionais, serve como elemento de junção da História e da
Geografia para a compreensão das migrações do mundo pós-globalizado e da pós-
verdade.
Com a dinamização das economias, da informação e das próprias crises inerentes
a estas, o ato de remigrar – ou de migrar para um país segundo para um terceiro ou quarto,
que não o seu de origem – surge cada vez mais como um processo natural do que mera
consequência ou alternativa a uma imigração que não obtivera sucesso. Remigrar,
segundo Iaria (2011), aparece como um mecanismo de igual integração (ou fomento
desta) entre comunidades, regiões e países – os acolhedores, no caso.
Se o Brasil e seus atores governamentais e instituições passaram a estudar e
também legislar sobre os novos fluxos da história recente, já supramencionados, seus
vizinhos o fizeram da mesma maneira, com nuances diferentes, obviamente, e tônicas
dadas de acordo com a ideologia governamental vigente – não confundir com ideologia
político-partidária.
A partir do momento em que Brasília, Buenos Aires e também Montevidéu,
Assunção e La Paz passaram a tecer políticas públicas voltadas às migrações, uma nova
Geografia Política regional platina começou a criar forma e suscitar o debate nas próprias
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atingissem, com todo o aparato que citamos no segundo parágrafo destas considerações,
a um número incalculável de indivíduos descontentes e propensos à naturalidade do ódio;
o meu descontentamento com o emprego que perdi, com a epidemia do ebola, com o
governo central que não distribui corretamente os recursos aos estados, províncias e
departamentos ou que os utiliza com “estrangeiros” facilmente se torna alvo e fonte
vitamínica a movimentos separatistas (visíveis no Sul do Brasil, em Santa Cruz na Bolívia,
no Mapuche na Argentina, etc.), nacionalistas (vide-se as marchas de verde e amarelo de
múltiplas cores e ideologias no Brasil de 2015/2016) e xenofóbicas, cujo exemplo
trazemos nesta fala de um político do Rio Grande do Sul: “Eu não gostei nada desse pessoal
vir para cá. Não vieram trazer benefício para o Brasil coisa nenhuma. Vieram trazer mais
pobreza. Então eu não sou favorável a esses caras aqui, de jeito nenhum. O pessoal daqui
precisa de muito apoio também e não tem” (G1 RS, 2014).
A imprensa também permite que o discurso de aversão encontre amparo e, muitas
vezes, sustentação factual – ainda que sob um manto da destacada fake news -, não raro,
apresentando manchetes deste corte: “Crescimento brasileiro absorve pobres do Haiti,
por enquanto” (REVISTA VEJA, 2012), “Seis imigrantes haitianos desembarcam em Porto
Alegre (CORREIO DO POVO, 2015), “Medo do ebola leva servidores a negar atendimento
aos senegaleses no Acre” (O ALTO ACRE, 2014).
Talvez nossos antepassados, migrantes oriundos do Hunsrück, Vêneto, Pomerânia,
Açores, Galícia, Hiroshima, Guiné ou de outros lugares, não dessem a devida atenção aos
recém-chegados lituanos, russos, libaneses, coreanos, e a imprensa da época, muito pouco
registrasse tais movimentos imigratórios; talvez o aparato estatal, muito menos
democrático nos cinco estados platinos, considerasse todos filhos das suas novas pátrias
e optasse por proibir a expressão em alemão, italiano e japonês e obrigasse que todos
falassem em português (no Brasil) e espanhol (na Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai).
A questão que se apresenta, deste modo, é que as novas Histórias encontraram
novas Geografias, muitas vezes sem uma equivalência ou sem uma imediata identificação
e posterior aceitação. As migrações, entretanto, continuarão ocorrendo, ora mais
acentuadas, ora mais restritas, de acordo com as condições econômicas daqueles que
migram e dos países de destino, logo, é papel dos historiadores, geógrafos e outros
profissionais ligados a este tema, observar e apontar os desvios das abordagens da
imprensa, da política, das redes sociais, quando estes atingirem o inaceitável e o
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Introdução
Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Mestrando do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista Capes/DS. Contato: <
viannapauloh@gmail.com>.
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anteriores havia possibilitado o envio de agentes para regiõ es da Gré cia (1830), China
(1835), Africa (1836) e Japã o (1853). Outro aspecto importante do trabalho desenvolvido
no Seminá rio corresponde ao ví́nculo com Associaçõ es e Sociedades Missioná rias. O
diá logo entre as instituiçõ es parece ter sido importante para que estudantes da instituiçã o
teoló gica mantivessem o interesse pela criaçã o de missõ es religiosas fora do campo
religioso estadunidense. Apó s vá rios acontecimentos que ocorreram ainda nos Estados
Unidos, Lucien Lee Kinsolving e James Morris foram enviados para o trabalho missioná rio
no Brasil.
Em 26 de setembro de 1889, os agentes chegaram ao Rio de Janeiro. Apó s passarem
por Santos e Cruzeiro, Vale do Paraí́ba - “Mudaram-se entã o para a capital, onde
permaneceram durante seis meses, ou seja, até 12 de abril de 1890” (KICKHOFEL, 1995,
p. 54). Em 21 de abril, os agentes chegaram a Porto Alegre e estavam acompanhados de
Boaventura de Souza e Oliveira, sua esposa e seus dois filhos. Boaventura, o qual era
professor e leitor dos textos bí́blicos, havia sido nomeado catequista. Uma vez na cidade,
os missioná rios procuraram contatar o professor Vicente Brande. Este havia criado uma
escola mista que mais tarde foi incorporada a escola fundada por Kinsolving e Morris. Em
seus primeiros meses na cidade os missioná rios alugaram uma casa com a ajuda de
Vicente, participaram da sua pequena escola e visitaram famí́lias que estavam sob sua
direçã o. Alé m disso, os agentes també m participavam dos cultos realizados em sua
residê ncia aos domingos. Dessa forma, pode-se perceber, perceber atravé s da obra de
Oswaldo Kickhofel, que os trabalhos desenvolvidos no ano de 1890 permaneceram sem
muitas alteraçõ es, uma vez que, foi em 1891 que os missioná rios decidiram alterar sua
forma de atuaçã o.
Isto posto, a realizaçã o de cultos pú blicos foi iniciada na quadra da Trindade, em
1891, e as cerimô nias eram divulgadas em vá rios lugares. Para este trabalho os
missioná rios contavam com a participaçã o das crianças que frequentavam a escola
(possivelmente a escola organizada por Vicente Brande, citada a cima). Em 1891, Lucien
Kinsolving voltou aos Estados Unidos para a realizaçã o de seu casamento. No perí́odo em
que esteve fora do Brasil o trabalho missioná rio que estava sendo desenvolvido pelos
presbiterianos foi incorporado ao trabalho dos episcopais, sendo encarregado para o
pastoreio o professor Vicente Brande. No mesmo ano, 1891, outros agentes da Igreja
Protestante Episcopal dos Estados Unidos chegaram ao Brasil, Willian Cabell Brown, Mary
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Packard e John Gaw Meen. Nesse perí́odo, o trabalho vinha sendo desenvolvido nos
municí́pios de Porto Alegre, Santa Rita e Rio Grande e contava com o apoio de trê s
catequistas (KICKHOFEL, 1995, p. 56).
No ano de 1893, por solicitaçã o da American Church Missionary Society (Sociedade
Missioná ria da Igreja Americana), agê ncia responsá vel pela missã o no Brasil, a bispo
presidente da Igreja Protestante Episcopal dos Estados Unidos enviou o bispo diocesano
de West Virgí́nia para uma visita ao Brasil. George W. Peterkin, passou por todas as
congregaçõ es entã o existentes. Sua visita foi significativa por resultar no iní́cio da
organizaçã o institucional da Igreja Episcopal no Brasil, em decorrê ncia da presença do
bispo aconteceram as primeiras ordenaçõ es de ministros nacionais, confirmaçõ es e foi
elaborada uma declaraçã o de princí́pios. Em 1897, foi a vez do bispo inglê s Waite H.
Stirling visitar a missã o. Stirling residia em Buenos Aires, tinha sob jurisdiçã o o territó rio
das Ilhas Falkland (Malvinas) e as missõ es da Igreja da Inglaterra na Amé rica do Sul. As
visitas dos bispos, a integraçã o de leigos a membresia, a ordenaçã o de um corpo
sacerdotal e as Convocaçõ es214 representavam o desenvolvimento institucional da missã o
Episcopal no Brasil. Com o desenvolvimento das atividades, os agentes passaram a
trabalhar com a ideia de que a missã o possuí́sse um bispo responsá vel. Apó s alguns
acontecimentos a Câ mara dos bispos da Igreja Americana acabou por conceder o pedido
de eleiçã o e Kinsolving foi escolhido para a funçã o de bispo no Brasil. Nome que havia
sido eleito pela Convocaçã o extraordiná ria de 1898 ( KICKHOFEL, 1995, p. 93).
No ano de 1899, perí́odo em que os agentes da Igreja Episcopal chegaram a Santa
Maria, sua denominaçã o já possuí́a um percurso bastante significativo. Em 1897, sete
clé rigos desenvolviam atividades, 301 pessoas faziam parte da membresia oficial, haviam
6 escolas dominicais e 523 alunos. No mesmo perí́odo haviam igrejas nas localidades de
Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas, Viamã o, Santa Rita e Sã o José do Norte. Em 1907, ano
em que a missã o foi reconhecida como Distrito Missioná rio, o nú mero de clé rigos era de
13, os comungantes 1.366 e os alunos das escolas dominicais 1.046, divididos em 25
escolas (KICKHOFEL, 1995, p. 97). Segundo Oswaldo Kickhofel, os missioná rios haviam
percebido que outras denominaçõ es empregavam mal “sua influê ncia, seu poder e
dinheiro tentando atingir um grande nú mero de pontos isolados” (KICKHOFEL, 1995, p.
214 Reuniões compostas por clérigos e leigos nas quais eram discutidas questões pertinentes ao
desenvolvimentos dos trabalhos (KICKHÖFEL, 1995).
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70). Os missioná rios da Igreja Episcopal, por outro lado, buscavam estabelecer seus
trabalhos em centros mais populosos e alcançar as cidades vizinhas. A constataçã o de
Oswaldo parece correta quando observamos a atuaçã o dos agentes na cidade de Santa
Maria. A cidade passava por um surto de desenvolvimento215 e em pouco tempo as
localidades pró ximas foram alcançadas pela Igreja Episcopal.
215 Nas últimas décadas do século XIX a cidade de Santa Maria passou se tornou um centro em
desenvolvimento. As mudanças passaram a ocorrer de forma mais acelerada com a chegada da ferrovia em
1885 (KARSBURG, 2007).
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entre os quais 6 registram a cidade de Santa Maria como o local da realizaçã o216. Se
considerarmos as famí́lias das crianças batizadas, os padrinhos e os possí́veis convidados,
podemos considerar que neste perí́odo a populaçã o que manteve algum contato com os
missioná rios foi significativa.
James Morris esteve a frente dos trabalhos em Santa Maria até março de 1902,
quando foi substituí́do por George Wallace Ribble. O sucessor de Morris dedicou-se
també m a organizaçã o do grupo de mulheres. Em junho de 1902, foram reunidas as
mulheres para dar iní́cio a uma classe que ensinasse bordados e costuras para as alunas
da escola dominical. A chamada Filhas do Celeste Rei, deveria reverter os lucros das vendas
para a construçã o de um templo pró prio. No ano seguinte o grupo se reorganiza e funda a
Sociedade Auxiliadora de Senhoras - “desaparecendo a antiga Filhas do Celeste Rei, que
passou a ser simplesmente uma classe de bordados e costuras” (KICKHOFEL, 2000, p. 36).
Segundo Martin Dreher (2002), podem ser utilizadas cinco categorias para a
definição dos matizes protestantes encontrados na América Latina, são elas:
protestantismo de imigração, protestantismo de missão, pentecostalismo,
neopentecostalismo e transconfessionalidade protestante. Estas categorias são
contribuintes, uma vez que, possibilitam compreender os diferentes fenômenos
envolvidos na chegada das igrejas acatólicas/ protestantes ao Brasil. Contudo, como se
pode perceber, por meio do trabalho desenvolvido pelo historiador Émile G. Léonard
(2002), imigrantes estadunidenses favoreceram a chegada de missionários para atendê-
los e alguns dos agentes acabaram por desenvolver seu trabalho religioso em meio a
nacionais. Portanto, os movimentos que essas correntes mantiveram em meio ao campo
religioso brasileiro, não permitem que as categorias sejam tomadas de forma restritiva217.
Segundo a classificação, o protestantismo de imigração corresponde às
comunidades religiosas formadas a partir da entrada de imigrantes acatólicos e
protestantes. Inclui, portanto, os imigrantes ingleses anglicanos, chegados ao Brasil a
partir da abertura dos portos em 1808, as comunidades religiosas formadas por meio da
216 Livro 1. Batizados e enterros 1899. Arquivo da Catedral do Mediador. Igreja Episcopal Anglicana no
Brasil. Santa Maria-RS.
217Consultar Dreher (2002) e Calvani (2005).
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O Protestantismo de missã o, por sua vez, chegou ao paí́s por meio de missioná rios
estrangeiros que mantiveram o objetivo de desenvolver trabalhos religiosos entre os
nacionais. O mesmo, foi estabelecido, permanentemente, em 1855, com a chegada de um
missioná rio escocê s autô nomo chamado Robert Reid Kalley e sua esposa Sarah Poulon
Kalley. Anos antes, em 1836, missioná rios metodistas haviam buscado desenvolver uma
obra missioná ria, mas retornaram aos Estados Unidos. O trabalho desenvolvido pelos
agentes, em territó rio brasileiro, resultou na presença das igrejas congregacional (1858),
presbiteriana (1862), metodista (1886), batista (1881) e igreja episcopal (1891). As
missõ es foram enviadas por igrejas estadunidenses, em sua maioria (MENDONÇA, 2005;
MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 1990; DREHER, 2002) 219. Como bem percebeu Clara
218 Mendonça também chama a atenção para os grupos que chegaram ao pais no século XX (MENDONÇA,
2005, p. 53).
219Segundo se pode perceber há uma divergência no que corresponde a inclusão da Igreja Adventista nesta
categoria (DREHER, 2002; MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 1990).
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Mafra (2001), a respeito da atuaçã o dos missioná rios, pode-se identificar estraté gias
diferenciadas e o caso de Robert Kalley e Ashbel Simonton, demonstram este aspecto.
Enquanto o primeiro buscou uma atuaçã o moderada e segurança para seus fié is, o
segundo acreditava que suas intençõ es deveriam ser conhecidas por todos (LEONARD,
2002; MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 1990). As diferentes estraté gias nã o ficaram
restritas a açõ es pessoais dos agentes, mas as denominaçõ es acabaram por adotar
diferentes vias no desenvolvimento de seus trabalhos. Enquanto os presbiterianos e
metodistas, por exemplo, buscaram se afirmar na sociedade brasileira por meio das
instituiçõ es de ensino, os batistas, apostaram em um “estilo imediato e massivo de
propaganda religiosa” (MAFRA, 2001, p. 27).
Assim, como afirmou Mendonça (2005) até o final do sé culo XIX todas as
denominaçõ es protestantes, fossem elas tradicionais ou histó ricas, haviam se
estabelecido em territó rio brasileiro. A denominaçã o que encerra o ciclo da entrada das
missõ es pertencentes ao protestantismo de missã o é “a Igreja Protestante Episcopal, mais
adiante conhecida simplesmente por Igreja Episcopal” (p. 52).
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promover permanências ou rupturas no ethos dos agentes (BOURDIEU, 2015). Quanto aos
missionários protestantes, parece que o desenvolvimento de seus trabalhos esteve
associado a uma ideia de ruptura possibilitada pelo conceito de conversão.
Émile Léonard (2002), escreveu que no Brasil de 1855, “fora das colônias
estrangeiras, não havia protestantismo algum”. Em 1888, a realidade já se configurava de
outra maneira. Segundo o mesmo autor, a Igreja Presbiteriana, até então a denominação
com maior crescimento, possuía mais de cinquenta comunidades - “para apenas vinte
missionários” (p. 95). Taylor, missionário batista, calculou, em 1895, que o número de
brasileiros que poderiam dizer-se evangélicos chegaria “em perto de 30.000”. No ano de
1940, ainda segundo Léonard, os protestantes contavam 1.074.857, número que incluía
as colônias de imigrantes protestantes (p. 95). Segundo Dreher (1998), o conceito de
conversão, compreendido como uma decisão de fé que possibilitava romper com as
tradições religiosas familiares e também integrar-se a uma nova comunidade religiosa,
enquanto um elemento da religiosidade do mundo moderno, esteve presente entre os
imigrantes acatólicos e luteranos que haviam chegado ao Brasil, no início do século XIX.
Entretanto, uma vez que as igrejas formadas por imigrantes, de modo geral, não
promoveram ações próprias que resultassem na divulgação do protestantismo em meio
aos nacionais, se pode compreender que foi através do trabalho missionário que a prática
da conversão se tornou conhecida de maneira mais abrangente. Segundo Mafra, “[…] a
conversão significava uma quebra abrupta nos laços de pertencimento da pessoa, uma vez
que a fidelidade maior transferia-se das redes tradicionais de pertencimento para o rol de
membros da igreja, estes sim engajados em uma ética de santificação” (MAFRA, 2001, p.
18). A ruptura possibilitada pela conversão, segundo a autora, “fazia parte da tradição dos
evangélicos norte-americanos, formando organizações solidárias por iniciativa individual
marcada por um recorte ideológico, bem ao estilo da sociedade civil descrita por
Tocqueville” (MAFRA, 2001, p. 18).
Trabalhamos com a hipó tese de que o conceito de conversã o, associado as ideias
de ruptura e ordenaçã o do mundo, possibilitou que agentes rompessem com a sua religiã o
de origem e adotassem o protestantismo como confissã o. Desta maneira, teriam
acontecido rearranjos no campo religioso brasileiro, uma vez que muitos agentes, até
entã o cató lico romanos, passaram a integrar as igrejas protestantes. Neste sentido,
compreendemos esse fenô meno de adesã o ao protestantismo como um fenô meno
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migrató rio e nã o apenas de fluxo religioso220. Ainda que este nã o exclua um possí́vel fluxo
e o acionamento de outras identidades, possibilita que os agentes se mantenham
vinculados a um grupo especí́fico e os torna consumidores dos bens de salvaçã o ofertados
por sacerdotes de determinado grupo. Sendo assim, nã o sã o as “rá pidas idas e vindas
entre as religiõ es” (ALMEIDA, MONTEIRO, 2001, p. 92), o que mais nos chama a atençã o
no momento, mas as permanê ncias que ocorreram ao longo da inserçã o do
protestantismo em meio ao campo religioso brasileiro. Essa migraçã o seria caracterizada
pela saí́da dos agentes de seus lugares de origem no campo religioso e seu deslocamento
em direçã o a outro lugar (instituiçã o religiosa).
As reflexõ es de Abdelmalek Sayad (1998), apesar dos diferentes objetos de estudo,
possibilitam compreender os agentes (tanto os missioná rios, quanto os leigos) como
imigrantes e emigrados. No entanto, ao contrá rio de uma sociedade de imigraçã o, que
busca manter os agentes como imigrantes e nã o os inclui enquanto cidadã os, a migraçã o
religiosa causada pelas igrejas do protestantismo de missã o, buscariam inserir os
migrantes em seu interior. Estas sã o reflexõ es que necessitam de uma maior elaboraçã o,
contudo a discussã o parece pertinente para o estudo do tema.
Considerações finais
Assim sendo, entende-se que o desenvolvimento do trabalho religioso que resultou
na presença da Igreja Episcopal em meio ao campo religioso nacional iniciou em 1889. A
partir de 1890 os agentes iniciaram oficialmente os seus trabalhos e em 1899 o trabalho
desenvolvido havia apresentado um crescimento considerá vel. Neste mesmo ano os
missioná rios chegaram a cidade de Santa Maria-RS e nos anos seguintes buscaram
alcançar localidades pró ximas. Os registros de batismo demonstram que no ano de 1901
um nú mero expressivo de pessoas foram alcançadas pelos agentes. Os registros
encontrados na cidade de Santa Maria mostram que 74 batizados foram realizados
naquele ano.
220 Almeida e Monteiro se dedicaram ao estudo do trânsito religioso no Brasil e apresentam dados que
demonstram o fluxo de agentes entre diferentes manifestações religiosas. Afirmam que esse macroprocesso
de síntese e diferenciação convencionou denominá-lo como trânsito religioso. Essa noção aponta, ao menos,
para dois movimentos. O movimento de circulação entre as instituições e o movimento de “metamorfose
das práticas e crenças reelaboradas nesse processo de justaposições” (ALMEIDA; MONTEIRO, 2001, p. 93).
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Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Autora da obra:
Degredados e Imigrantes: Trajetórias de ex-prisioneiros de Mecklenburg-Schwerin no Brasil Meridional
(século XIX). Santa Maria: Editora da UFSM, 2013. Atualmente leciona História no Colégio Sinodal (Unidade
de Portão/RS). Contato: carolinevm7@gmail.com.
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“O que não está nos autos não está no mundo”221: os processos criminais como fonte
histórica
O processo criminal deve ser entendido como um “conjunto dos atos praticados
para que o Juiz possa emitir uma decisão segundo as ordens determinadas pela lei”
(BAJER, 2002, p. 9). Dito de outra forma, compõe-se de um “intricado mosaico” de peças
judiciárias, usando uma expressão de Paulo Moreira, através do qual a Justiça busca
reconstituir um acontecimento (crime), enquadrando-o ao Código Criminal vigente à
época e após seguir os trâmites legais, absolver ou condenar o(s) réu(s).222 Os autos, como
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bem lembra Boris Fausto, traduzem “o crime e a batalha que se instaura para punir,
graduar a pena ou absolver” (FAUSTO, 1984, p. 21). Dessa forma, quando “os atos se
transformam em autos” e “os fatos em versões” perde-se o acesso ao acontecido, em
decorrência do debate que se instaura entre os atores jurídicos (médicos, oficiais de
justiça, intérpretes, policiais, juízes, escrivães, advogados, testemunhas, jurados) ou
“manipuladores técnicos”223, onde cada um manipula os fatos de acordo com o seu ponto
de vista (CORREA, 1983, p. 25). A partir da leitura dos processos criminais, é possível
perceber a mediação dos “manipuladores técnicos” e a interferência desses agentes
judiciais nas relações e disputas de poder travadas entre as partes envolvidas,
reconstituindo-se, pois, “um modelo de culpa e um modelo de inocência” (SILVA, 2004, p.
56). Corroborando com essa premissa de que “os atos se transformam em autos”, Yvonne
Maggie (1992, p. 21) afirma que “o juiz julga o que está nos autos e não o que se passou
na verdade. Portanto, o que não está nos autos não pode ser levado em consideração”.
Assim, “o que está no processo está no mundo, isto é, os princípios que regulam e norteiam
o discurso dos juízes são também princípios ordenadores de discursos da sociedade de
um modo geral”.
Esse tipo de corpus documental, conforme aponta Maria Helena Machado atenta
para algumas peculiaridades importantes, no que tange aos cuidados necessários com a
analfabetos discutindo suas interpretações de eventos e imputando motivos aos outros” (MONSMA, 2005,
p. 163-164).
223
Categoria criada pela autora Mariza Corrêa (1983) para definir os profissionais do sistema jurídico e
policial que tinham a função de ordenar a realidade conforme as representações sociais propostas pela
máquina judicial.
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termos técnicos. Como bem lembra João José Reis, “a história dos dominados vem à tona
pela pena dos escrivães de polícia” (RIBEIRO, 1995, p. 21).
Nos depoimentos dos réus, das vítimas e testemunhas, fica evidente que suas falas
são orientadas e transcritas pelo escrivão com objetivo de torná-las uniformes e
homogêneas. A pessoa inquirida “só discorre sobre aquilo que lhe é perguntado, sua
palavra é cortada quando a narrativa, a critério das autoridades, não é pertinente para o
esclarecimento dos fatos”. Fausto afirma ainda que “ao ser transcrito, o discurso
eventualmente complexo da testemunha é remetido a um conjunto de regras altamente
formalizadas”, apagando-se “os traços da emoção mais autêntica” (FAUSTO, 1984, p. 23-
4). Portanto, o escrivão não publica na integra todas as informações concedidas pelos
depoentes, mas somente transcreve aquelas que julgar mais relevantes para o julgamento
do caso.
Outro desafio ou preocupação dos pesquisadores que utilizam os processos
criminais como fonte histórica é não confundir a “verdade formal” (aquela apresentada
nos autos) com a “verdade informal” (informações que circulam entre as pessoas e no
local de acontecimento) (ROSEMBERG, 2009, p. 165). Acerca da possibilidade de acessar
ou não a verdade dos fatos de um determinado acontecimento, Sidney Chalhoub (2001, p.
39 e 40) lembra: “é obvio que é difícil, senão impossível descobrir ‘o que realmente se
passou’(...). Existem, é claro, pelo menos tantas dúvidas quanto certezas (...). Mas, por
favor, devagar com o ceticismo: há certezas”. Para escapar dessa problemática,
pesquisadores sugerem primeiramente conhecer o funcionamento, a dinâmica e as
nuanças dos processos judiciais, tentar compreender o processo como um mecanismo de
construção de verdade e como “se explicam as diferentes versões que os diversos agentes
sociais envolvidos apresentam para cada caso” (CHALHOUB, 2001, p. 40), buscando, por
fim, entender o significado dessas versões, uma vez que, nesta disputa de forças, onde
cada um quer fazer valer a sua versão como verdade, estas estão carregadas de uma carga
ideológica. De acordo com Chalhoub (2001, p. 41-2, grifo do autor), o pesquisador deve
buscar
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informações novas eram apresentadas pelo réu. Por fim, o Juiz de Direito encaminhava os
autos criminais para a reunião do Conselho de Jurados que deveriam responder a algumas
perguntas e decidir pela absolvição ou condenação do réu, bem como o responsável pelo
pagamento das custas do processo.
O terceiro procedimento diz respeito à forma de leitura e análise da fonte criminal,
pois “a justiça, da mesma maneira que o antropólogo geertziano, produz interpretações
de interpretações’ (Geertz, 1973)”.224 A partir da leitura dos documentos, atentar para as
informações mais gerais e evidentes, bem como às entrelinhas e aos silêncios. Todas as
informações mais gerais e específicas foram anotadas numa ficha de dados. Sem tentar
solucionar os crimes, e amparados pela legislação da época, procuramos diminuir o risco
de cometer anacronismos e erros. Contudo, seria uma “expectativa inocente”, afirma
Sidney Chalhoub (2001, p. 41) acreditar que através da leitura dos processos criminais o
pesquisador poderia acessar aquilo que de fato ocorreu. Assim, a necessidade de incluir
outras fontes documentais e promover o cruzamento entre elas torna-se um
procedimento indispensável na pesquisa histórica (quarto procedimento). Cruzando os
dados genealógicos com os dados que emergem dos processos criminais, podemos
compreender as relações que se estabeleceram nesse grupo heterogêneo, composto por
luso-brasileiros, alemães e descendentes católicos ou luteranos.
224
“Como demonstram Marisa Corrêa (1983) e Boris Fausto (2001), as categorias da lei e os valores e
estratégias dos profissionais da justiça – delegados, escrivães, promotores, advogados e juízes – filtram o
que entra em um processo e modificam o vocabulário dos depoimentos, escritos em terceira pessoa. Em
geral, quanto mais adiantado o processo no percurso inquérito-julgamento-recurso, mais esses valores,
categorias e estratégias influenciam a reconstituição do conflito” (MONSMA, 2005, p. 159-160).
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fosse necessário, evidenciando-a como uma prática cotidiana e um habitus local dos
indivíduos.
O perfil social dos crimes e dos envolvidos permitiu identificar que não se tratava
de criminosos profissionais, e que o índice de criminalidade não estava associado à
delinquência, pobreza e falta de instrução das partes envolvidas, mas, sobretudo, ao
cotidiano em que estavam inseridos. Se alemães e seus descendentes (a maioria da
população de São Leopoldo era de origem alemã) compareceram com mais frequência à
Justiça, na condição de réus e vítimas, tal constatação também foi percebida naquilo que
tange à origem étnica das testemunhas inquiridas nos processos criminais, compondo-se,
preferencialmente, por indivíduos do sexo masculino, casados, com idade entre 22 a 50
anos, que possuíam uma ocupação ou eram proprietários de seu próprio negócio,
enquanto as mulheres aparecem em número muito inferior.
A análise dos crimes de homicídios, tentativa de homicídios, agressão física e
ferimentos e crimes de injúrias e calúnias, permitiu percebê-los como um reflexo do
funcionamento da sociedade em que os indivíduos estavam inseridos e constatar que não
eram praticados contra estranhos e desconhecidos, antes entre pessoas que possuíam
algum tipo de relacionamento solidificado por amizade, parentesco, afinidade, trabalho e
vizinhança. Dessa forma, as relações sociais podiam, por um lado, ser permeadas por
redes de amizade, solidariedade e reciprocidade, mas, por outro lado, essas redes podiam
ser rompidas, gerando inimizades, divergências, rixas e conflitos. Através dos processos
analisados, foi possível constatar que existiam problemas de convívio e de
relacionamento entre os vizinhos nos distritos, tendo como pano de fundo questões de
terra, propriedade e posse, sendo, porém, um reflexo das condições sociais, econômicas e
políticas vivenciadas pelos habitantes de São Leopoldo durante o período em análise. Mas,
quando fosse necessário, a comunidade local podia se unir contra a atuação, conduta e o
abuso de autoridades para defender os seus interesses e estabelecer laços de confiança.
Por fim, cabe salientar que os crimes e suas motivações devem ser entendidos
como um reflexo dos medos, das preocupações, condições e necessidades de
sobrevivências dos indivíduos, diante de uma cidade em transformação e das dificuldades
vivenciadas na Vila e Cidade de São Leopoldo, entre 1846 a 1871, tornando os habitantes
nesse jogo social, ora réus, ora vítimas do contexto e espaço analisado.
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PARTE 5
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Camila Silva*
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com Bernardina Barcellos de Lima, inseriu-o no círculo de uma família bem estabelecida na região sul da
Província. Conforme Menegat (2009), este matrimônio o inseriu em uma rede pertencente à elite
charqueadora pelotense. Quando participou da deflagração da Revolta Farroupilha, Almeida era deputado
na Assembleia Provincial. Posteriormente, exerceu o cargo de ministro da Fazenda e ministro do Interior,
na República Rio-Grandense (MENEGAT, 2009).
228 Através deste decreto o imperador D. Pedro I anistiava os farroupilhas e anunciava a pacificação,
declarando “maldição eterna a quem se recordar das nossas dissensões”. De acordo com Edna Gondim de
Freitas, este documento desapareceu dos arquivos oficiais, restando, porém, uma cópia preservada por
Domingos José de Almeida (BRASIL,1980).
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229 Cabe salientar que a finalidade do IHGPSP, declarada por Caldre e Fião, corresponde exatamente ao
artigo 1º do estatuto do IHGB, que determina: “O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tem por fim
coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a história e a geografia do Império
do Brasil (...)”. (IHGB, 1839 apud BOEIRA, 2013, p. 69)
230 O médico, jornalista e abolicionista, Caldre e Fião, foi presidente da Sociedade Partenon Literário e um
dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro. Em importante estudo sobre
a construção da história sul-rio-grandense nos periódicos porto-alegrenses com circulação entre os anos de
1856 e 1879, Gomes destaca o papel de Caldre e Fião na segunda geração de letrados da região. A autora
observa a existência de uma relação hierárquica entre a geração dos “homens de papel e tinta”, responsáveis
pela conservação da memória de um passado de lutas e guerras, e a dos “homens de terra e guerra”,
protagonistas deste legado. (2012, p. 219)
231 Trata-se de um decreto publicado na seção “Documentos” sobre a elevação da povoação de Nossa
Senhora da Conceição de Viamão à categoria de vila. (IHGPSP, 1860 apud BOEIRA, 2013, p. 143-144)
232 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
1978. CV-680, p. 149. De acordo com Menegat, Almeida foi diagnosticado com epilepsia tardia, sintoma
comumente confundido com outras doenças durante o século XIX (2009, p. 168).
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233 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
1978. CV-684, p. 151.
234 Expressões como “Amigo de meu Coração Amante”, “Bom Amigo de meu Coração”, “Receba o coração de
seu Amigo” são frequentes nas cartas trocadas entre Domingos José de Almeida e Bernardo Pires. Outro
indicativo do companheirismo entre os dois, foi a confiança depositada por Almeida em Bernardo ao
atribuir-lhe a responsabilidade de entregar dinheiro para sua esposa, Bernardina, em inúmeras ocasiões ao
longo da Revolução. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009.
CV-7397, p. 36. Do mesmo modo, Pires confiou o seu filho à Almeida, asseverando: “Conheço, e bem conheço
que V. Exa. trata a Manoel Pirez, como próprio filho, e isto basta para eu o entregar de bom grado a V. Exa.
(...)”. AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7405,
p. 42.
235 IHGRS, Fundo Bernardo Pires, BP 120, 1859.
236 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7425,
p. 54-55.
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Nota-se, nas palavras de Bernardo, uma preocupação em orientar o seu amigo para
uma interpretação que poupasse os generais David Canabarro e Manuel Lucas de Oliveira
de qualquer responsabilidade sobre as decorrências do episódio, que resultou no
massacre dos lanceiros negros. Para tanto, sugere ser a revelação da Reservadíssima uma
trama entre Francisco Pedro de Abreu, conhecido por Moringue ou Barão do Jacuí, e
Manuel Rodrigues Barbosa, aquele que teria lhe recomendado fazer uma cópia da carta.
De posse desta cópia, Almeida escrevera para alguns dos seus companheiros da
época da Revolução, a fim de averiguar algumas informações sobre o episódio. Para tanto,
foi solicitado a Bernardo Pires que ouvisse o relato do Capitão José Avelino da Silva Santos
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Custa com efeito crer que fosse combinado o último ataque de Porongos;
porém eu que aqui vi com antecedência duas cartas de Caxias anunciando
ao falecido Veador João Rodrigues Ribas o próximo termo da revolução;
pois que certos bichos, e que bichões! Estavam de acordo e podiam
prestar (formais palavras). E que se quisesse ver pedisse ao Moringue
parte do plano que tinha de executar para disso convencer-se. Este
precedente; aquele de não bolir-se no trem e arquivo de Canabarro;
aquele de serem mortos libertos somente e poucos homens de cor com
eles parecidos; aquele de se não seguir a ninguém na fuga como se
recomendara, escapando-se até a pé o Padre Chagas; e aquele finalmente
de prometer-me Canabarro um manifesto justificativo, quando lhe disse
eu que sua reputação escurecia por essa acusação, e nunca tratar de tal
manifesto; repito, ainda não deparei com meios de destruir tal acusação,
que desapareceria se Canabarro se apoiasse na alta política, asseverando
que para chegar a um acordo indispensável era uma derrota, visto que o
entusiasmo estúpido de muitos dos nossos companheiros obstruía todo
e qualquer arranjo (...). Se Canabarro se firmasse nisso acharia muitos
que, como eu, o acreditassem: de outra forma não sei como lavar-se de
nódoa de traidor. Esse terrível fato que tenho de descrever com fidelidade
e tantos outros que precederam a pacificação em desabono de
companheiros notáveis, me põem em terrível perplexidade acerca da
publicação do histórico de nossa revolução que prometi, que a todo custo
tenho de fazê-lo (...)243.
Apesar dos conselhos de seu amigo Bernardo, Almeida não parece ter
compartilhado, até o que se sabe, da versão de que teria sido a carta uma trama. No
239 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
1978. CV-725, p. 185.
240 Ibidem. CV-728, p. 186-187.
241 Ibidem. CV-732, p. 188-189.
242 Ibidem. CV-754, p. 202-203.
243 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
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ISSN 2527-1148
244 Ibidem.
245 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7732,
p. 63.
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mão, e em mim apagou o conceito que dele fazia, dele que tinha de figurar
em retrato no exórdio do meu projetado histórico!246
Manuel Antunes não respondera comentando os julgamentos proferidos por
Almeida nesta carta. No entanto, é importante observar a inter-relação entre os
indivíduos que selecionavam os documentos e os que neles estavam inscritos. Antunes,
como era chamado por Almeida, possuía um grau de parentesco com a família Gonçalves
Silva: sua esposa, Eleutéria Isabel Garcia, era irmã de Caetana Francisca Garcia, esposa de
Bento Gonçalves da Silva. Na posição de concunhado do já falecido Bento, Antunes, para
dizer o mínimo, provavelmente não estava em posição confortável diante das opiniões de
Almeida.
Posteriormente, Domingos retoma o tema com Antunes, explicando ter recebido a
cópia de uma carta endereçada por Bento Gonçalves à Caxias, na qual posicionava-se
contrário a anistia, asseverando: “Fui injusto, como acabo de ver, e por isso me apresso a
dissipar qualquer mau conceito que também dele concebeste”247. Somente após o recuo
de Almeida no entendimento de tal documento, Antunes manifesta-se sobre a questão:
Nesta mesma carta, Antunes declara não ter entregue o retrato de Bento Gonçalves,
solicitado por Almeida para a escrita de uma biografia do herói farrapo, devido as opiniões
emitidas sobre o mesmo. O retrato acabou sendo enviado a outro sujeito, chamado
Bonomé, a quem Antunes confiou a biografia de Bento. Percebe-se, com isso, uma certa
desconfiança em delegar à Almeida a tarefa de escrever as memórias do seu parente e
246 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
1978. CV-684, p. 151-152.
247 Ibidem. CV-714, p. 176-178.
248 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7546,
p. 140.
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companheiro na guerra civil. Cabe lembrar, que a honra era um elemento muito
valorizado neste contexto, como destacou Barbosa ao analisar a composição e
organização das famílias Almeida, Gonçalves da Silva e Fontoura. Segundo a autora: “Estas
famílias da elite farroupilha e seus membros pertenciam a um universo em que a honra,
o prestígio, a dignidade, a família e as suas estratégias eram fundamentais para sua
existência” (BARBOSA, 2009, p.44).
Assim, é plausível afirmar que a preocupação com a honra dos ex-farroupilhas, seus
filhos e netos, influenciou na reinterpretação de Almeida sobre a relação entre Canabarro
e o episódio de Porongos, bem como sobre Bento e o Decreto de 18 de dezembro de 1844.
Na preservação da memória destes heróis, parecia estar em jogo também a própria
manutenção da posição social destas famílias, que dependiam, em parte, da sobrevivência
desta herança imaterial. Neste rol, incluísse a família Almeida, a quem interessava não
somente a habilitação da memória da Revolução Farroupilha, como também a
preservação dos laços com seus correligionários e familiares.
Após a resolução da questão “Bento Gonçalves”, Porciúncula prosseguira
respondendo as demandas de Almeida por informações e documentos, inclusive enviando
longos relatos sobre eventos do decênio farroupilha, no entanto, ressalvando:
De fato, Almeida parece ter angariado alguns opositores com sua determinação em
narrar uma história documentada da guerra civil, ao menos é o que se pode observar na
arena da imprensa político-partidária. Em 1858, Almeida fundou em Pelotas o jornal
Brado do Sul, que, em 1859 anunciava uma seção destinada à história da epopeia
farroupilha e seus atores. De posição oposta ao Brado, o jornal Noticiador manifestou-se
contrário a tal iniciativa, afirmando que:
249 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7545,
p. 138-139.
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p. 164.
255 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
364
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Referências Bibliográficas
AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto
Estadual do Livro, 1978.
_________ . Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs,
2009.
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BARBOSA, Carla Adriana da Silva. A casa e suas virtudes: papéis familiares e a elite
farroupilha (RS, 1825-1845). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-
Graduação em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2009.
BOEIRA, Luciana Fernandes. Como salvar do esquecimento os atos bravos do passado rio-
grandense: a província de São Pedro como um problema político-historiográfico no Brasil
Imperial. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2013.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe B. Neves. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2000.
GOMES, Carla Renata Antunes de Souza. Entre tinteiros e bagadus: memórias feitas de
sangue e tinta. A escrita da história em periódicos literários porto-alegrenses do século
XIX (1856-1879). 2012. 349 p. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-
Graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS,
2012.
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Introdução
O século XX, de maneira geral, é significativo para os países periféricos do mundo,
surgindo com maior impulso à possibilidade de se resignificar os modelos de existência
ocidentais, legitimando conhecimentos e culturas ancestrais, tradicionais, populares,
locais. As sociedades das antigas colônias, através dos nacionalismos recentes, visam à
autodeterminação e fomento de outras visões de mundo que foram negadas e que não se
enquadraram no único modelo de modernidade/colonial: o ocidental eurocêntrico. “A
colonialidade e o lado obscuro e necessário da modernidade; e a sua parte
indissociavelmente constitutiva” (MIGNOLO, 2003, p. 30).
O objetivo central desse artigo é analisar como e por qual meio o pensamento
latinoamericano de Darcy Ribeiro e Leopoldo Zea resignificam o discurso epistemológico
da modernidade/colonial eurocêntrica. As culturas e o saberes pluritópicos tornam-se o
meio pelo qual os povos e as minorias dominadas irão reverter a colonialidade e construir
a decolonialidade nos seus diferentes aspectos. A colonialidade se reproduz em uma tripla
dimensão: a do poder, do saber e do ser. Tal conceito exprime uma constatação simples,
isto é, de que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não findaram
com a suplantação do colonialismo256. É através desta tensão politico-cultural e contra
FAED/UDESC, com o apoio do Instituto Federal do Rio Grande do Sul – IFRS. E-mail:
marcosapeccin@gmail.com
256Para Ramón Grosfoguel, “a expressão “colonialidade do poder” designa um processo fundamental de
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mantêm-se numa situação colonial, ainda que já não estejam sujeitas a uma administração colonial
(GROSFOGUEL, 2008, p. 126).
257O conceito de colonialidade se estendeu para outros âmbitos, para além do poder. Walter Mignolo (2010)
sugere que a matriz colonial do poder é uma estrutura complexa de níveis entrelaçados. A colonialidade do
poder passa e se expande pelo controle da economia, controle da autoridade, controle da natureza e dos
recursos naturais, controle do gênero e da sexualidade, controle da subjetividade e do conhecimento.
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Para Walter Mignolo, “já não estamos obviamente no inicio da era cristã e salvação não é um termo adequado
para definir o caráter prático do conhecimento, o mesmo se podendo dizer de sua pretensão à verdade. Mas
precisamos abrir o espaço que a epistemologia roubou à gnosiologia e tomar como seu objetivo não Deus, mas as
incertezas das margens. Nossos objetivos não são a salvação, mas a descolonização e a transformação da rigidez
de fronteiras epistêmicas e territoriais estabelecidas e controladas pela colonialidade do poder, durante o processo
de construção do sistema mundial colonial/moderno” (MIGNOLO, 2003, p. 35).
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eurocentrada não é mais um modelo a ser seguido, pois em nome da civilização ocidental
originou-se uma série de desastres e violências humanas, tais como: o Holocausto, os
campos de concentração, a 1ª e a 2ª Guerra Mundial, a Guerra Fria, os Colonialismos e
Imperialismos europeus e a Partilha do continente Africano e Asiático. Tais atrocidades
macularam para sempre o imaginário em torno da representação de ocidente enquanto
lugar civilizado, humanista e democrático em detrimento de um mundo bárbaro que
representa o hemisfério sul global. Nas palavras de Leopoldo Zea,
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259A discussão sobre o caráter civilizado ou bárbaro da cultura, da identidade e das nações latino-
americanas tem uma longa tradição, de meados do século XIX em diante, na discussão intelectual latino-
americana. Somente para citar algumas obras: Facundo: Civilización y Barbarie - Vida de Juan Facundo
Quiroga (1845) de Domingo Faustino Sarmiento (1811 – 1888); Ariel (1900) de José Enrique Rodó (1872 –
1917); Calibán (1971) de Roberto Fernández Retamar (1930).
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A perspectiva latinoamericanista de Darcy Ribeiro fará com que ele volte sua
atenção a configuração dos povos na América Latina, e principalmente aos povos
indígenas da nossa América. A produção intelectual de pensamento crítico voltado para a
América Latina se intensificou no seu período de exílio do Brasil. Leopoldo Zea trás uma
passagem de Darcy Ribeiro onde evidencia o impacto do exílio na sua antropologia das
civilizações. Ribeiro diz “me fiz latinoamericanista no exílio, os militares não sabiam que
estavam dando origem à integração de nossos povos. No meu exílio por Uruguai,
Venezuela, Peru e Chile e em minha passagem pelo resto dos povos que forma a América
Latina, minha visão de brasileiro se transformou em latinoamericana (RIBEIRO apud ZEA,
1996, p. 3)”.
Darcy Ribeiro vai pensar sua antropologia a partir dos encontros entre os povos
de diversas partes do mundo no continente americano, e da sua tensão dialética que levou
a conformação de novos povos e a quase extinção de outros. Em outras palavras, o
encontro entre culturas tradicionais e modernas e a conformação e remodulação dos
povos através dos choques interétnicos. Alguns críticos, que internalizaram a noção de
ciência do ocidente, vem no desenvolvimento desse tipo de interpretação antropológica
um peso grande da teoria evolutiva oriunda da antropologia de meados do século XIX.
Segundo Walter Mignolo,
Como “subalternização do conhecimento” pretendo, ao longo deste livro,
reconhecer e expandir um antigo conceito do “antropologiano” brasileiro
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Esse choque entre civilizações relegou aos povos colonizados a violência da matriz
colonial se articula nas sociedades conquistadas através da imposição de uma religião
única, da sexualidade heteronormativa, do racismo estrutural que ampara a diferença
colonial. Para Darcy Ribeiro o eurocentrismo trás consigo alguns contrabando
ideológicos,
O patrimônio cultural que herdamos da Europa se destacam três
contrabandos ideológicos, pelos imensos danos que nos causaram. O
primeiro deles, nossa herança hedionda, foi desde sempre, e ainda é, o
racismo como arma principal do arsenal ideológico de dominação
colonial. O segundo, se refere à suposta qualidade diferencial da
civilização ocidental, que seria sua criatividade. Outro vezo etnocêntrico,
este mais vetusto, é o de olhar como um caso de benignidade humanística
a expansão da cristandade (RIBEIRO, 2017, pp. 84-85).
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Darcy Ribeiro constrói uma critica que vai de encontro à concepção de civilização
que se restringe ao ocidente e ao discurso moderno. Com isso se reafirma o caráter
múltiplo das civilizações e de suas contribuições a grande civilização humana. De acordo
com Darcy Ribeiro,
Uma civilização – a ocidental europeia – declina, depois de concluir seu
ciclo, outra amanhece. Melhor diria outras, dado o caráter policêntrico
dos vastos mundos em que tantos povos, se lavam das feridas do
europeísmo para serem, afinal, eles mesmos. Suas velhas identidades
negadas desde sempre, de repente são reencontradas. Mas, então, cada
um deles percebe que não é, todavia, um ente. É apenas uma
possibilidade: a utopia de si mesmo que tem, ainda de ser construída
(RIBEIRO, 2017, p. 95).
Dito isto, alguns interpretes veem na teoria dos processos civilizatórios de Darcy
Ribeiro uma grande contribuição às epistemologias oriundas das civilizações e culturas
do hemisfério sul do mundo que ficaram à margem do discurso de ciência e conhecimento
hegemônico. Desculpem a longa citação, no entanto acreditamos que Walter Mignolo
sintetiza oportunamente a contribuição de Darcy Ribeiro a antropologia realizada nas
margens e fronteiras do ocidente. Nas palavras do autor,
Seria útil comparar o estudo de Norbert Elias e o de Darcy Ribeiro sobre
os processos civilizatórios. Há quatro aspectos da comparação que eu
gostaria de destacar. Primeiro, enquanto Elias concebe o processo da
civilização como um fenômeno particularmente europeu dos últimos
cinquenta anos, Ribeiro o concebe como um longo, diversificado e
complexo conjunto de processos da espécie humana. Segundo, enquanto
Elias se concentra no processo civilizador, que é ao mesmo tempo a
consolidação da Europa (Ocidental) como potência mundial hegemônica,
Ribeiro considera a Europa um resultado recente dos processos
civilizadores humanos que foram precedidos por potências hegemônicas
anteriores e que será também transformada e dissolvida num futuro
governado pelo que Ribeiro chama de “revolução termonuclear e
sociedades futuras”. Terceiro, embora tanto Elias quanto Ribeiro
permaneçam prisioneiros do arranjo temporal das histórias humanas
implantados na modernidade, a preocupação de Ribeiro com a
colonização e com a expansão europeia lhe permite abrir as portas para
uma conceitualização espacial dos processos civilizadores e das histórias
locais dispostas em torno de centros sucessivos e sobreviventes de
hegemonia mundial. Quarto, e finalmente, o fato de que as preocupações
e o foco geocultural de Ribeiro são as Américas e não a Europa (caso de
Elias) obriga-o a analisar o processo da civilização europeia como um
processo de subalternização das culturas do mundo. Ora, o que é
relevante nessa comparação para entender a “teorização bárbara” como
uma gnose liminar e como uma epistemologia que emerge das condições
criadas pela última e talvez mais radical etapa da globalização é a
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Considerações finais
Esta pesquisa ainda está em estágio inicial, longe de esgotar todas as possibilidades
de críticas, ressignificação e novas perspectivas. No entanto, buscou-se identificar no
pensamento de Leopoldo Zea e Darcy Ribeiro a construção de uma reflexão própria
latinoamericanista, que possibilitasse a superação do eurocentrismo, através da tomada
de consciência da identificação cultural e regional dos povos latinoamericanos. A
construção desse conhecimento e projeto político-cultural crítico para a América Latina,
visando à difusão de teorias que propiciassem a integração latino-americana, se deu
através das redes intelectuais e da produção acadêmica fomentada no interior da
Sociedade Latino Americana de Estudos sobre América Latina e Caribe – SOLAR.
Referências bibliográficas:
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RIBEIRO, Darcy. América Latina: a pátria grande. 3ed. São Paulo: Global, 2017.
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Doutor em História pela UFRGS
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260Da Revolução de 1917 até o simbólico ano de 1929, encontramos um cinema que pode ser caracterizado
como revolucionário. A arte foi responsável pela materialização do espírito da Revolução e consolidação do
socialismo. O tema central das películas gira em torno do sonho com a Revolução; sonho que com o
estabelecimento do regime se transformou num símbolo nacional, e aos poucos passou a ser visto como
uma recordação. A fase stalinista delineou o período de 1930 a 1953, centrando o foco na construção da
imagem de um grande líder e no contexto bélico com o advento da Segunda Guerra Mundial. A fase seguinte,
caracterizada como fase do degelo, vai de 1953 a 1967, e é marcada pela renovação artística e
antiestalinista,260 a ponto de serem cortadas as imagens de Stálin dos filmes antigos, tal como a exclusão de
Lênin e Trotsky, ocorrida trinta anos antes. De 1967 a 1985, a fase da estagnação foi marcada pelo
neoestalinismo dos anos Brejnev, e iniciou uma lenta transformação na produção cinematográfica e
artística. A fase da Perestroika, de 1986 a 1991, abriu a inserção do cinema soviético no plano mundial e
também foi responsável por coproduções. Reunidos no 5º Congresso dos Cineastas Soviéticos, a categoria
demarcou desejos (o reconhecimento do cinema como trabalho intelectual) e posturas (a ruptura
administrativa) para a produção dos anos vindouros, que se transformou com o cinema pós-soviético a
partir da dissolução da URSS em 1991.
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como um conceito de acento político e ideológico. Seus lócus era a escola literária e
pictórica que se opunha ao Romantismo do período. Na URSS, este Realismo ganhou o
complemento “socialista”, e, fundamentalmente, se opunha ao formalismo visto como
antirrevolucionário e burguês.
Quando nos dirigimos ao cinema, compramos um ingresso e sentamos na poltrona,
a intenção primária é assistir um filme. Esperamos que seja um produto acabado,
produzido ao longo de um período de tempo, editado e finalizado. Não é o que ocorre com
¡Que viva México! O filme em questão não foi concluído. Somente após longos anos seus
negativos foram acessados e organizados pelo codiretor Grigori Alekandrov. Este status
de filme/não filme é elemento fundamental para compreendê-lo, pois este fator compõe
um ponto de destaque na trajetória do cineasta. Sua volumosa produção cultural
enfrentou inúmeros reveses e obstáculos. Compreender essa História é fundamental para
entender seu interesse pelo México e sua interpretação produzida.
Natural da Letônia, Sergei Eisenstein tinha dezenove anos quando o Outubro de
1917 eclodiu. Estudava Engenharia civil, mas já nutria uma paixão pelas artes plásticas e
pelo teatro. Era um leitor voraz. Seu rol ia de Arthur Schopenhauer, Oscar Wilde, Sigmund
Freud a Emile Zola e outros. Naqueles fervilhantes dias de outubro, juntou-se aos seus
colegas no movimento que apoiava o novo regime. Cresceu em uma família de classe
média. O pai era arquiteto e a mãe filha de comerciantes. Era uma criança cosmopolita,
tendo viajado para vários países até a adolescência (BORDWELL, 2005). Com o divórcio e
a mudança de sua mãe para a França, passou a viver com o pai em São Petersburgo. A
Revolução colocou-os em lados opostos, e seu pai mudou-se para a Alemanha. Sergei
juntou-se ao Exército Vermelho, onde trabalhou ativamente na produção de propaganda.
Neste período, estudou japonês e intensificou sua relação com os pictogramas, elementos
chaves nas reflexões futuras. Em Moscou, a partir de 1920, começou a trabalhar com o
teatro, tendo aulas com Vsevolod Meyerhold, até estrear no cinema em 1923. É
justamente a relação do teatro com o cinema que marca sua estreia, com o curta-
metragem O dário de Glumov (Dnievnik Glumova) para apresentação na peça O Sábio.
Seu primeiro longa-metragem é realizado no ano seguinte. A greve (Statchka) teve
a produção e as filmagens realizadas no ano de 1924, com as primeiras exibições em
março de 1925. Em seguida, veio aquele que se tornaria um dos filmes mais conhecidos
da história do cinema, e que causou inquietações e surpresa ao redor do mundo. O
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ofereceu a possibilidade de filmar uma história no México. A trupe chegou a este país em
dezembro de 1930. Sua estada não foi tranquila, pois o rompimento das relações do
México com Moscou, neste ano, o obrigou a prometer que faria uma obra “artística”, e não
de “propaganda comunista” (DE LOS REYES, 2010, p. 169-207).
Na viagem de trem para o México, teve contato com o livro Los de Abajo (The
Underdogs, na versão em inglês), de Mariano Azuelas. A obra contava com ilustrações de
Orozco que impressionaram Eisenstein. Também no trem, leu a obra de Anita Brenner,
Idols Behind Altars. Baseado neste livro, o esboço do filme previa um prólogo, quatro
capítulos e um epílogo. O Prólogo homenagearia David Alfaro Siqueiros. O capítulo
intitulado “Sandunga” seria dedicado para Jean Charlot. Já “Maguey” seria para Diego
Rivera. O episódio “Soldadera”, para José Clemente Orozco. “Fiesta” seria dedicado para
Francisco Goya. Por fim, o Epílogo para José Guadalupe Posada. Estas influências literárias
somaram-se à leitura de John Reed ainda na Rússia.261 Também leu a obra de Ernest
Grüening, Mexico and is Heritage, uma síntese histórica sobre o México. Sua influência
musical também está presente na estrutura do filme, que foi inspirada em uma sinfonia,
onde cada capítulo desenvolve movimentos contrastantes. As partes são autossuficientes,
mas estão ligadas entre si (ROBERTSON, 2005).
No que tange as suas ideias, a ida ao México deslocou seu olhar e reflexão para a
questão do tempo. Após a viagem, intensifica seus estudos sobre mitologia e etnografia,
focando na troca primordial, que, de acordo com os trabalhos antropológicos lidos por ele,
eram o fato fundamental da vida deste tipo de comunidade. O matrimônio e suas regras
definem a estrutura social. Sua complicada relação familiar e o abandono pela mãe podem
ter exercido influência para seu foco na questão do feminino.
261
Disse Eisenstein: “Vengo a México a hacer una película sobre este país, de cuyo pueblo y de cuyo arte soy
un gran admirador; una película que muestre al mundo entero las maravillas que aquí se encierran. En estos
momentos existe en Europa gran interés por México, y quiero mostrarlo tal cual es para lo cual espero
obtener la cooperación del pueblo, y para el desarrollo de mi proyecto, deseo entrar en contacto, desde
luego, con artistas, fotógrafos, etcétera. Durante un mes aproximadamente me dedicaré a estudiar el
ambiente mexicano y después procederé a la manufactura de la película basada en un asunto local. Tras este
estudio decidiré si la obra la basamos en un argumento determinado o en una exposición fiel del país, de
sus costumbres y de su pueblo, documentándome previamente en visitas que realizaré al Distrito Federal y
regiones inmediatas, al Itsmo de Tehuantepec y a Yucatán, pues no omitiré por ningún motivo las ruinas de
Chichén-Itzá, y mi interés por el folclore local es enorme. En la película seguiremos la misma técnica
empleada en Bronenosetz Potiomkin, es decir, un realismo absoluto, sin emplear “estrellas” ni artistas
profesionales. Iremos al campo, a los centros industriales, a los círculos sociales, a todos aquellos sitios que
se haga necesario, como lo hacemos en las cintas rusas, y así obtendremos lo que deseamos, sin
adulteraciones ni fingimientos”. (DE LA VEGA, 1994, p. 33).
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262
Eisenstein expressou uma peculiar interpretação: “México es primitivo, apegado a la tierra. El mensaje
que propone puede dar por sí solo material para muchas películas. Para hacer una buena película debe
tenerse una actitud positiva. Eso es posible en un país como México, donde la lucha por el progreso es aún
muy real. En los Estados Unidos hay automóviles y golf en miniatura. En mi breve visita he presenciado toda
la historia de la humanidad. En los campos de golf de Pulgarcito está simbolizada la historia de la
humanidad. Primero el recorrido era simple, iluminado sólo por su utilidad. Después los hicieron más
complicados [...] El futurismo llegó y floreció, ¡Entonces vino el frío! Y con él vino la destrucción. La
decadencia y la peste escribieron un último capítulo en la historia”.
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263Sobre a questão do apocalipse na cultura Maia ver o artigo: GUAZZELLI; COPÉ, 2012. p. 20-32.
264O cineasta soviético Andrei Tarkovski também teve sua obra marcada pela reflexão sobre a figura da
mulher. “O universo de Tarkovski é fortemente centrado no homem e marcado pela oposição mulher-mãe.
A mulher provocante e sexualmente ativa (cuja atração se manifesta numa serie de códigos, como os cabelos
longos e despenteados de Eugenia em Nostalgia) é rejeitada como uma criatura histérica e falsa, e posta em
contraste com a figura maternal, com seu cabelo preso e penteado. Para Tarkovski, quando uma mulher
aceita o papel de ser sexualmente desejável, está sacrificando o que tem de mais precioso, a essência
espiritual do seu ser; ela desvaloriza a si própria e assume uma existência estéril. O universo de Tarkovski
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está impregnado de uma repugnância mal dissimulada pela mulher provocante; a essa figura, inclinada a
incertezas histéricas, ele prefere a presença tranquilizadora e estável da mãe”. (ŽIŽEK, 2009, p. 112).
265 Outro desafio à autenticidade proposta pela obra é que, ao invés do uso de amadores, o cineasta teria
trazido atores e atrizes de um cabaré que frequentou assiduamente na capital mexicana. (SALAZKINA, 2009,
p. 63).
266 Ironicamente, segundo um relato, a equipe de filmagem foi ameaçada por um grupo de homens que
acusavam seus equipamentos de enxergar através das roupas das mulheres. (SALAZKINA, 2009, p.88).
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Luciane Alves
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A reflexão do teórico evidencia a busca de uma origem que estaria sendo procurada
no lugar equivocado, baseada na semelhança com o conquistador, enquanto um início
autêntico estaria nas raízes culturais que foram extintas pelo processo de colonização.
Santiago afirma que “[a] maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental
vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza” (SANTIAGO, 1978,
p.16). Por esse motivo, o reconhecimento do hibridismo como produtor de uma nova
cultura é um fator determinante para que se entendam as produções pós-coloniais.
A formação dos discursos identitários se relaciona com uma parte importante da
obra ficcional e ensaística de Alejo Carpentier, principalmente no que é produzido após a
publicação de O reino deste mundo de 1949 e que finaliza com seu último romance, El arpa
y la sombra, de 1979. O autor cubano em suas reflexões sobre a produção literária latino-
americana expõe ideias bastante focadas nos temas regionais e na valorização da cultura
local. Seu projeto, no entanto, é marcado por uma visão ufanista do continente, que
procura defender a grandeza dos recursos naturais americanos como elementos de
superioridade em relação à cultura europeia. A visão unificadora da América vai ao
encontro dos projetos políticos defendidos na época, que triunfam com a Revolução
Cubana.
Um dos pontos mais importantes da produção de Alejo Carpentier é a teoria do real
maravilhoso americano, que surge como uma oposição ao surrealismo do grupo de André
Breton, do qual chegou a fazer parte enquanto vivia na França, mas posteriormente se
desiludiu. Há nas reflexões de Carpentier, uma tentativa de mostrar que o verdadeiro
maravilhoso pertence ao continente americano enquanto todos os postulados
surrealistas se baseariam em ideias fantasiosas e artificiais, apoiadas por criações
puramente ficcionais. Na América, o maravilhoso existiria na realidade cotidiana, na vida
das pessoas comuns e em cada prática resultante de uma mistura de culturas jamais vista.
O maravilhoso na América poderia ser encontrado naturalmente, sem a
necessidade de truques ou artimanhas como os jogos e técnicas dos surrealistas. No
continente ele estaria em estado bruto. Como afirma Carpentier,
[e]n América Latina basta abrir los ojos, abrir los oídos del
entendimiento, observar una cantidad de cosas nunca vistas, nunca
descritas que hay en torno nuestro, y ahí está todo un mundo surrealista,
al estado natural, normal, que es lo que yo he llamado lo real maravilloso.
(CARPENTIER, 1987, p. 158 - 159).
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Desde o principio, o texto mostra a tensão entre o mundo dos brancos (senhores)
e dos negros (escravos). Os primeiros representam a civilização, como sinônimo de
europeização, enquanto os segundos estão ligados ao primitivismo das tribos africanas,
com a dicotomia civilização/barbárie bastante presente. É interessante notar que o
narrador não representa nenhum deles como superior, pois nessa obra tudo depende da
perspectiva a partir da qual se percebe a leitura. Assim como os brancos se consideram
superiores, por serem civilizados e escravizarem os africanos, estes não respeitam a
cultura dos europeus e os consideram fracos.
No primeiro capítulo, há uma passagem bastante representativa do olhar dos
escravos em relação aos senhores. Ti Noel, ao acompanhar seu amo, o senhor Lenormand
de Mézy ao barbeiro, se diverte observando as cabeças de cera que sustentam as perucas
da moda europeia da época, e as compara às cabeças de porco que estão expostas no
açougue ao lado:
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Aquella tarde los esclavos regresaron a sus haciendas riendo por todo el
camino. Mackandal había cumplido su promesa, permaneciendo en el
reino de este mundo. Una vez más eran burlados los blancos por los
Altos Poderes de la Otra Orilla. Y mientras Monsieur Lenormand de Mezy,
de gorro de dormir, comentaba con su beata esposa la insensibilidad
de los negros ante el suplicio de un semejante —sacando de ello
ciertas consideraciones filosóficas sobre la desigualdad de las razas
humanas, que se proponía desarrollar en un discurso colmado de citas
latinas— Ti Noel embarazó de jimaguas a una de las fámulas de cocina
(...). (CARPENTIER, 1983, p. 43).
Para o autor cubano, a história da América é uma crônica do real maravilhoso, por
ser um lugar onde se misturam culturas heterogêneas, onde ainda permanecem muitas
mitologias e crenças associadas a elementos mágicos. A história de O reino deste mundo
não poderia situar-se na Europa porque a fé, que segundo Carpentier é necessária para
que aconteça o maravilhoso, só pode ser encontrada na América, onde o maravilhoso
ainda é aceito como verdade.
O autor ainda comenta que “de Makandal [...] ha quedado toda una mitología,
acompañada de himnos mágicos" (CARPENTIER, 1983, p. 17), pois, como se comentou
antes, ainda existem seguidores de suas doutrinas. Esse fato justificaria a visão de
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Carpentier em relação aos artistas europeus, de acordo com Paz Soldán "el artista que no
tiene la fe que tienen los habitantes de América Latina, que no cree en el milagro y la
magia, no podrá captar la compleja realidad del continente, su inagotable caudal de
mitologías. Sin esa fe, los europeos están destinados a concebir un arte artificioso" (2008,
p. 38).
É possível concluir, que a oposição que existe entre os brancos e os negros na
narrativa de O reino deste mundo é mesma que Carpentier estabelece entre o surrealismo,
sinônimo de europeu, e o real maravilhoso, a expressão da América. Os americanos
simbolizam a fé, enquanto os europeus são a falta dela.
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I
A fim de ultrapassar a análise estética e formal das pinturas e desenhos de Edoardo
de Martino devemos levar em conta as individualidades e singularidades do artista.
Mestranda do PPGH - UNISINOS.
267 O Decreto-lei número 4.116 de 14 de março de 1868 estabelece a criação do Museu Naval com a
finalidade de recolher objetos que interessavam à cultura naval.
268 Em um estudo sobre a obra de Edoardo de Martino, é importante reputar o modo como a fronteira entre
os diversos gêneros da pintura ocidental é extremamente móvel (MORAIS, 1995). No Brasil, esta mobilidade
gerou uma taxonomia muito imprecisa. Tal fato nos leva a necessidade de um breve esclarecimento sobre o
termo pintura de marinha , entendido por “ todo e qualquer assunto que, no âmbito do paisagismo do século
XIX até meados do século XX, faça referencia primordial (e não necessariamente explicita) ao elemento
água” (LEVY, 1982, p.16).
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Entendido como um sujeito histórico e agente de mudanças que utiliza a arte para
produzir o novo em uma dinâmica relação com a sociedade (KERN, 2010). Essas
particularidades precisam ser reputadas em um estudo que envolva obras de arte, pois “a
criação artística é para Warburg um processo que oscila entre a imaginação e a razão”
(WARBURG, 1990 apud SAMAIN, 2012 p. 57). Orientados pelo pensamento do autor
alemão, vemos a importância de ter em mente que: o sentido do ato estético da empatia –
em seu constante devir – proporciona a força figuradora do estilo (WARBURG, 1990). Isto
nos leva a pensar as obras de Edoardo de Martino como o resultado de um trabalho
repleto de subjetividades.
Tendo em vista tais considerações é importante sabermos que Edoardo de Martino
nasceu em Meta di Sorrento no ano de 1838, estudou na Escola Naval de Nápoles, onde
obteve formação em desenho. Veio para a América do Sul como segundo tenente da
Marinha de Guerra Italiana. De acordo com Ana Maria de Morais Belluzzo (1988),
abandonou seu posto em 1868, devido ao acidente ocorrido próximo a Montevidéu em 07
de maio de 1866, pelo qual o pintor foi responsabilizado. Por isto, passou a se dedicar a
atividade artística nas cidades de Montevidéu, Buenos Aires e Porto Alegre.
No período em que esteve no Brasil, o artista teve uma carreira bastante prolífica.
Durante a Guerra do Paraguai, foi nomeado pintor oficial por dom Pedro II, o que lhe
garantiu o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa (PEREIRA, 1999). Participou das
importantes exposições da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, e
representou o Brasil, ao lado do famoso pintor Pedro Américo, na Exposição Universal de
Viena de 1873 (CARDOSO, 2007).
Apesar do sucesso profissional e de ter se casado com uma brasileira, Edoardo de
Martino partiu para a Inglaterra por volta do ano de 1875, onde faleceu em 21 de maio de
1912. Sua carreira na corte britânica também foi notória, em 1889 ele foi nomeado Marine
Painter in Ordinarice to Her Majesty Queen Victoria, após a morte da rainha continuou
sendo pintor da corte de Eduardo VII e Jorge V (BELLUZZO, 1988).
Atualmente, parte da produção deste pintor está sob a tutela da Diretoria do
Patrimônio Histórico e Documental da Marinha. Também existem trabalhos do artista em
outras instituições como: o Instituto Moreira Sales, a Biblioteca Nacional, o Museu
Histórico Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu de Arte de São Paulo, a
Pinacoteca de São Paulo e o Museu Mariano Procópio (VALE 2006).
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II
Para levar em consideração o impacto das pinturas e desenhos produzidos por
Edoardo de Martino na imaginação dos homens que estavam ligados a Marinha Brasileira
nós utilizaremos a ótica de Schmitt (2007), que entende por imagem:
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III
Para entender a obra de Edoardo de Martino – inserida no contexto oitocentista, e
em paralelo às outras medidas tomadas pela Marinha Nacional, com o intuito de construir
e concretizar sua memória cultural – nós devemos considerar a arte correlata à vida e
reflexo do meio físico e moral (BAUDELAIRE, 1996). Este fato enfatiza a necessidade de
uma explanação sobre o panorama do século XIX, pois ele imprimiu sensações que foram
refletidas em toda a obra do pintor (BAUDELAIRE, 1996).
Durante o germinar dos séculos XVI e XVII, o advento das grandes navegações
proporcionou a interação entre as diferentes sociedades. Assim, as rotas marítimas
constituíram importantes artérias que unificaram a Terra (BAUMER, 1977). Isto levou
Franklin L. Baumer (1977) a acreditar que o núcleo do espírito moderno está no sentido
do devir – um modo de pensar que engloba tudo e permanece em constante mudança ao
evoluir para algo novo e diferente. Este modo de pensar substituiu a concepção do
absoluto ao relativo e da imobilidade ao movimento (RENAN, 1890 apud BAUMER, 1977).
A nova ordem econômica e social, decorrente das navegações, fez o Brasil emergir
no início do século XIX em proporções nunca vistas anteriormente (BARREIRO, 2005).
Como na Europa, o cenário artístico nacional do século XIX também foi marcado pela falta
de unidade nos modos de pensamento. Neste contexto o neoclassicismo esteve vinculado
ao academicismo dos projetos oficiais. Enquanto o romantismo ganhava espaço nas obras
dos artistas mais independentes (FERNANDES, 2007).
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Desta maneira, os anos de 1800 estiveram marcados por uma infinidade de modos
de pensar (BAUMER, 1990) e foram bastante promissores para a produção cultural
brasileira. A vinda da família real para o Rio de Janeiro, devido à fuga das invasões
napoleônicas, também ajudou a abrir novos horizontes ao país. Grande parte das
mudanças políticas, econômicas e culturais realizadas pelo monarca D. João VI visavam
adaptar e consolidar o Brasil como sede do império português (BISCARCI e ROCHA, 2006).
É importante destacar que neste cenário, diferente de uma simples absorção passiva dos
padrões europeus a sociedade brasileira também foi atuante e responsável pelas
operações que moldaram seu ínterim (AGUILAR, 2000).
Dentre as medidas de aparelhamento do Estado podemos destacar a contratação
da Missão Artística Francesa. Esta iniciativa, deslocada da realidade local, trouxe uma
colônia de artistas e artífices com clara orientação neoclássica. Ela visava adequar a
produção de arte colonial ao século das luzes e instituir o ensino oficial das artes. Assim,
foi fundada a Escola Real de Ciências Artes e Ofícios, instituição que originou a Academia
Imperial de Belas Artes (FERNANDES, 2006).
Sob a proteção do imperador e mecenas, D. Pedro II, a Academia Imperial de Belas
Artes seguiu a laica estética neoclássica. Recebeu várias encomendas de pinturas oficiais
que objetivavam representar a nação. Estas pretendiam embasar a autonomia cultural e
a identidade da nação. Assim a instituição adotou uma “produção artística de temática
autóctone, que realçasse as potencialidades naturais do país, o índio como habitante
genuíno e elemento da brasilidade, e os temas históricos nacionais” (BISCARCI e ROCHA,
2006, p.1). A preocupação com a representação nacional e a institucionalização de um
tipo de saber específico, observada no meio artístico também pode ser percebida no
processo que levou a história a se tornar um saber autônomo guiado pelo signo da
cientificidade (GONTIJO, 2011). Assim:
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envolvia o mar e os próprios homens. Tais valores não foram divulgados apenas por meio
das pinturas de Edoardo de Martino. Em 1868 a instituição militar legislou sobre a criação
do Museu Naval por meio do Decreto-lei número 4.116 de 14 de março do mesmo ano.
No ano de 1901 o Museu Naval expôs vinte obras, sendo quinze de Edoardo de
Martino (AMZALAK, 1901). Este dado pode ser ligado ao pensamento de Schmitt (2007).
Nele, o autor desconstrói a ideia de imagem como expressão de um significado pré-
existente, para enfatizar a participação imagética na construção desse significado. Tal
associação nos leva a interpretar a exposição de várias obras do artista no Museu Naval,
criado com o intuito de recolher todos os objetos que interessava à Armada Nacional como
indício de um vínculo entre a produção de Edoardo de Martino e um projeto ideológico da
Marinha Brasileira.
Se pensarmos que as obras de Edoardo de Marino foram produzidas em uma
dinâmica relação com a sociedade, devemos levar em conta a possibilidade de elas
expressarem: a intenção do artista, do financiador e de todo o grupo social envolvido em
sua produção (SCHMITT, 2007). Isto nos remete ao contexto do século XIX, onde
“campanhas externas como as que o Brasil travou nas Guerras da Cisplatina e do Paraguai
reforçariam a consolidação da ideologia nacionalista (…) em pleno processo de
constituição, envolvendo a criação de múltiplos imaginários” (BARREIRO, 2005, p.3).
Ao considerarmos a existência de ideias prevalecentes no meio que são absorvidas
quase automaticamente pelos indivíduos em seu ambiente mental, o diálogo entre as
pinturas de Edoardo de Martino, a Criação do Museu Naval e o surgimento de uma
imprensa militar torna-se ainda mais significativo. À medida que o pesquisador aborda,
não só o pensamento privado do artista, mas também o pensamento público e os estados
de espírito coletivo que existiram nesta memória cultural, tem-se um importante
indicativo sobre o modo de pensar desses homens do mar a respeito de si próprios e de
seu universo (BAUMER, 1977).
A existência de determinadas doutrinas ou ideias no seio da força armada também
pode ser observada por meio de outras medidas que foram tomadas pela Marinha. Dentre
essas medidas, que carecem de maior espaço para análise, podemos citar a reforma do
currículo das escolas de formação (DIAS, 1910), a compra das pinturas Batalha Naval do
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IV
Olhar detalhadamente (DIDI-HUBERMAN, 2013) a produção de Edoardo de
Martino é importante não apenas pela relevância que o mar exerceu nas transformações
da história moderna (BAUMER, 1977), mas também por nos possibilitar compreender
como estas obras ajudaram a fomentar uma imagem associada à memória cultural da
Marinha Brasileira. Assim, as medidas tomadas pela força armada precisam ser olhadas
269 A encomenda e compra das pinturas de Victor Meirelles aparece no processo número
06.33 do Museu Histórico Nacional, disponível:
http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=MHN&pasta=Processos%20de
%20Entrada%20de%20Acervo&pesq=06.31.
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Mestranda em História pelo PPGH – Unisinos.
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270 Não se sabe e não estava descrito na revista Amazonas Médico a descrição destas siglas.
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“comissões de saneamento” é que esta não ficou restrita à capital do Estado, mas se
estruturou em uma rede de postos rurais e itinerantes.
Vale ressaltar que no Amazonas seguindo as prerrogativas já adotadas em outros pontos
do país, somente na década de 1920 os poderes públicos, começaram a entrar na
campanha sistemática contra as doenças venéreas através da estrutura criada com o
Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural do Estado do Amazonas obedecendo às
determinações das diretrizes nacionais do Departamento Nacional de Saúde Pública –
DNSP – com sede no Rio de Janeiro.
Segundo os relatórios médicos consultados do Dr. Samuel Uchôa, Manaus por ser
uma cidade cosmopolita devido a economia adquirida com a goma elástica e os atrativos
de enriquecimento, fez com que surgisse o seguinte cenário: o desenvolvimento da cidade
trouxe as doenças, devido à falta de estrutura para receber um grande contingente
sobretudo de migrantes desempregados propiciando pobreza somada à falta de higiene,
aglomeração populacional e áreas não apropriadas com falta de saneamento.
Neste contexto, para implantar os trabalhos na luta anti venérea em Manaus,
Samuel Uchôa inaugura em 21 de Abril de 1922, o Dispensário Oswaldo Cruz com o
objetivo de dar assistência aos que sofriam dos males venéreos e da pele.
A “crise amazônica”, segundo Uchôa, trouxe uma outra consequência, além da
econômica, a substituição das “mercadoras estrangeiras, mais ou menos conscientes das
necessidades da higiene, substituindo-as por desgraçadas paupérrimas e ignorantes, que
a fome e a nudez se forjam na escuridão” (UCHÔA, 1922b, p. 74). A preocupação dos
sanitaristas com a prostituição era pela disseminação da sífilis, o seu controle e as
consequências para as pessoas. A profilaxia individual, social e sanitária era condição para
o controle da doença, diminuindo os riscos para a saúde pública. A prostituição estava
sendo tratada não pelo seu aspecto criminal, pois se sabia que, na prática, não havia como
eliminar a cultura da prostituição, até porque ela fazia parte de todos os estratos sociais.
O Serviço adotou os princípios da política francesa, que era: “fiscalizar a
prostituição, tratando as meretrizes em que se manifestar a sífilis”. A abordagem do
problema das doenças não ficava somente no aspecto clínico e nos aspectos terapêuticos,
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mas a discussão passava por princípios de uma medicina social, em que os aspectos da
vida cultural, econômica e política também precisavam ser considerados. O tratamento
das doenças venéreas obedecia ao programa do Departamento Nacional de Saúde
chamado “open door”: “Educação, propaganda, tratamento gratuito, pesquisas científicas
rigorosas, boas estatísticas, tudo realizado com o máximo respeito ao doente” (MATTA,
1922b, p. 314).
O Dr. Uchôa tinha uma preocupação em eliminar as “pseudo-curas”, no tratamento
das doenças venéreas, pois a população fazia uso da chamada “botica da floresta”, e dos
medicamentos preparados por curandeiros populares. No combate à doença, os métodos
de cura (remédios e terapêutica) utilizados assim como as demais doenças venéreas eram
temidos e muitas vezes causavam malefícios físicos aos pacientes tão nocivos quanto o
problema da exposição pública por ser portador de uma doença venérea. Segundo
Carrara, “a vergonha da doença dificultava também a procura do médico ou, o que parecia
ser a mesma coisa, impedia que o doente adotasse uma “atitude racional” ante a doença.”
(CARRARA, 1996; 135). Portanto, a vergonha agia muitas vezes como aliada da
propagação da doença visto que era um forte freio que impossibilitava ou dificultava que
o (a) enfermo (a) buscasse um tratamento adequado para o mal que o (a) afligia. Essa
pressão se tornava ainda maior se as doentes fossem as prostitutas.
O movimento entre Manaus e importantes centros, como Liverpool, Hamburgo,
New York, Paris, também permitiu que médicos circulassem e tivessem contato com as
novidades da ciência. As intervenções profiláticas realizadas na capital amazonense
refletem as pesquisas científicas em processo tanto na cidade como em outras partes do
mundo, principalmente em relação aos mecanismos de transmissão das doenças
venéreas. Dessa forma, os médicos do Amazonas não somente acompanham as pesquisas
da área, como aplicavam os seus conhecimentos para o combate à sífilis. Nesse sentido,
Manaus estava no centro dos debates que se realizavam em torno do mal venéreo.
Foi verificado no “Livro de registro e fiscalização do meretrício em Manaus de 1925
a 1934 do Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural do Amazonas”, que a grande maioria
das mulheres cadastradas nele eram casadas ou viúvas, analfabetas; talvez isso seja
explicado porque muitas ajudavam na economia em casa com seus maridos ou
companheiros como aponta segundo Edneia Mascarenhas, preservação da moral e da
ordem públicas é a meta perseguida nesse novo contexto. A prostituição era um problema
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que preocupava os setores dirigentes naquele momento. O cuidado principal era com uma
maior vigilância sobre as prostitutas, a fim de que não viessem a ofender a moral pública.
Eram mulheres de todas as nacionalidades que para cá se deslocavam, atraídas pelo fausto
da cidade (MASCARENHAS, 2007). Várias eram as denominações pejorativas para as
mulheres que exerciam o oficio da prostituição- “decaídas”, “marafonas”, “rameiras”,
“horizontais”, “cocottes” , “polacas”, “cuínas”, “bacantes” e “ratuínas”- , reflexos dos
confusos sentimentos que a prostituição despertava na mente de homens e mulheres.
Assim como nos outros segmentos sociais, entre as prostitutas havia uma marca da
hierarquia social. A célebre imagem da prostituta em luxuosos cabarés, mantida pelos
ricos seringuais, só era real a um reduzido número de mulheres. Em Manaus a prostituição
mais comum era aquela ‘de rua’, de maior visibilidade e vulnerabilidade, alvo constante
de ataques por parte da imprensa local e das ações governamentais destinadas a coibi-la.(
DOS SANTOS, 2007).
Havia, no caso das meretrizes europeias, um forte componente etnorracial:
mulheres alvas e com sotaques estranhos foram logo associadas a um dos signos de status
dos poucos que enriqueceram com a borracha. Podiam vestir-se conforme a última moda
de Paris, e eram várias as casas comerciais especializadas na importação de roupas e
demais artigos de luxo do ‘mundo civilizado’. É o caso tradicional Au Bom Marché, loja
roupas para senhoras, existente até os dias atuais, na avenida Sete de Setembro (antiga
rua Municipal), não por acaso batizada com um nome em francês para combinar com a
ideia de elegância que a loja queria transmitir. A partir desse culto instituído à França, não
é difícil imaginar como a companhia de uma cocotte era valorizada (DOS SANTOS, 2007).
A “crise amazônica”, segundo Uchôa, trouxe uma outra consequência além da economia,
a substituição das “mercadoras estrangeiras, mais ou menos conscientes das
necessidades da higiene, substituindo-as por desgraçadas paupérrimas e ignorantes, que
a fome e a nudez se forjam na escuridão (Uchoa, 1922b, p.74).
Em Manaus o discurso sobre a prostituição vinha sempre associado à transmissão
de uma série de moléstias, e a intervenção do governo era propagada como uma forma de
proteger a saúde do povo e manter a moralidade. As opiniões podiam divergir em alguns
pontos, mas de modo geral a tendência era a opção pela manutenção da situação sem a
ingerência do Estado. Conforme aponta Gómez sobre modernidade como “projeto” que se
refere à existência de uma instancia central, que é entendida como a esfera em que todos
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Segundo George Vigarello, “os dispensários eram ‘vigias’ e graças a eles, que foram
elaborados discursos e práticas que confundem proteção da saúde com controle moral e
social, pesquisa de bacilos e estigmatização dos enfermos.” (VIGARELLO,2006;52). Nas
fontes encontradas é bem explícito tal passagem, Samuel Uchôa (chefe do Serviço de
Saneamento e Profilaxia Rural do estado do Amazonas) descrevia o seguinte: “os
dispensários se tornarão desse modo o eixo de todo o mecanismo da assistência, da
profilaxia individual e da coletividade, em seus aspectos múltiplo, produzindo a confiança
e a coordenação metódica e eficiente nos serviço em proveito do povo e da eugenesia”
(Relatório apresentado ao professor Dr. Eduardo Rabelo, Inspetor da Profilaxia da Lepra
e Doenças Venéreas, pelo Dr. Samuel Uchoa- Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas;
1923: 214).
Os médicos-cientistas sociais não somente aplicavam as leis, mas também eram os
responsáveis por sua criação. Além disso, foram planejadores e criadores de instituições
(CORRÊA, 1998). Podem-se atribuir-se essas mesmas características aos profissionais
médicos no Amazonas, pois foram ativos na organização da cidade, na elaboração de
políticas públicas de saúde e saneamento, na criação de instituições e na administração
da saúde pública.
Relacionar os nomes com as suas ações ajuda a dar sentido ao presente, e merece
um trabalho mais extenso e específico; mas, por ora, são apresentados como participantes
do grande cenário amazônico, cujo enredo tem a sífilis ligada à prostituição. Evidenciamos
a área médico-científica por razões de trabalho, mas podemos dizer que este ator estava
envolvido nos projetos de migração, extrativismo, economia da borracha, moradia e
criação de instituições. A cidade de Manaus era o palco onde se desenrolavam estas ações,
tendo como contexto a riqueza deixada pela economia da borracha, que mesmo com a sua
crise a imagem da belle époque permaneceu como um símbolo marcante na história da
cidade e de sua intelectualidade.
A propaganda e a educação higiênica estavam inseridas no discurso mais amplo do
movimento de saneamento. A educação higiênica era entendida como um dos caminhos
para o “melhoramento da raça”, pois a condição de doente e de atrasado era um
condicionante histórico e social, mais do que biológico, e que poderia ser superado pela
educação (HOCHMAN & LIMA, 2004, p. 502).
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Tiago Conte
Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, bolsista
Capes/PROSUC.
271 Joel Rufino dos Santos, Maurício Martins de Mello, Pedro de Alcântara Figueira, Pedro Celso Uchôa
Cavalcanti Neto, Rubem César Fernandes, Francisco Falcon e Nelson Werneck Sodré. Apesar de ter escrito
o primeiro volume da série, o nome de Francisco Falcon não foi publicado na relação de autores da HNB,
segundo Pedro Cavalcanti Neto (SANTOS et al., 1993, p.53).
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pelo ISEB, eram vistos como manifestações das reformas em curso: “Desafiar as chamadas
“estruturas arcaicas” estava na ordem do dia [...] O momento, portanto, também se
mostrava oportuno para ensaiar uma reforma no ensino da história pátria” (GUIMARÃES
e LEONZO, 2003, p.236-237). Nesse sentido, a HNB representava um projete de reforma
no ensino de história do Brasil, conforme Sueli Mendonça:
O clima político da época não permitia somente a crítica ao que se julgava
errado. Era necessário, também, buscar a realização das reformas sociais.
Portanto, não bastava questionar e demonstrar a péssima qualidade dos
livros didáticos; algo teria de ser oferecido como alternativa ao retrógado.
[...] Produzir um material didático alternativo à historiografia oficial [...]
passou a ser a tarefa central do grupo, ou seja, elaborar uma nova análise
da História do Brasil (MENDONÇA, 2006, p.337-338).
No caso da HNB, a trama institucional que permitiu sua elaboração remete a pelo
menos três locais: o ISEB, a Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) do Rio de Janeiro e o
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sem um levantamento essas relações, torna-se
impossível compreender os significados atribuídos à HNB no momento de seu
lançamento, que lhe conferiram uma dimensão política talvez imprevista por seus
autores.
Já se disse que a coleção foi composta no ISEB, mas a influência do instituto não se
resumiu a isso. Criado em 1955, o ISEB era um centro de estudos que visava formular uma
teoria nacional-desenvolvimentista para o Brasil, mobilizando para tanto especialmente
as ciências sociais (TOLEDO, 1977, p.32). Essa preocupação com um conhecimento
relacionado à sociedade brasileira levou o ISEB a se engajar nas questões políticas do
momento. Neste sentido, os isebianos promoviam cursos em sindicatos e outras
associações, escreviam artigos na imprensa e publicavam livros destinados ao público em
geral (LOURENÇO, 2008, p.390-391). Sobretudo a partir de 1961, a influência das
esquerdas se tornou mais marcante no instituto, que passou a defender a implantação de
pautas como as reformas de base. A posição em favor de um saber engajado e do
nacionalismo, por sua vez, foi expressa pelos próprios autores da HNB em sua introdução:
O que mais os repugna é o estudo desinteressado, a pesquisa atraente
mas inútil, a indagação do passado sem a resposta do presente. O que
mais temem é que suas linhas não sirvam ao nosso povo, na
democratização de nossa sociedade e na exploração nacionalista das
nossas riquezas (SANTOS et al., 1965, v.4, p.4).
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Segundo Pedro Cavalcanti Neto, essa elaboração dos textos era uma forma de
evitar que o grupo se tornasse um “papel carbono” de Sodré, meros reprodutores de suas
ideias (SANTOS et al., 1993, p.59). E tal preocupação era expressa pelo próprio Sodré, que
fez questão de ter seu nome posto em conjunto com os demais autores, sem maior
destaque. Em vez de ser uma coletânea de textos compostos por vários autores
separadamente, por esse método a obra adquiriu um caráter coletivo. Dessa forma, a
relevância da FNFi enquanto local de formação profissional da maioria de seus autores é
um dado que não deve ser subestimado ao se analisar a realização da HNB.
Tal relevância, semelhante ao que se observou no caso do ISEB, remete a um
cenário permeado de projetos e concepções específicos. Reunidos no Centro de Estudos
de História da faculdade, era ali onde se encontravam “não só os maiores responsáveis
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pela realização do projeto da História Nova, mas também o ambiente gerador das
inquietações que as reformas do projeto impunham” (COSTA PINTO, 2006, p.345). Um
diferencial da faculdade em relação à maioria das universidades brasileiras da época era
a existência de uma revista acadêmica dirigida pelos alunos, o Boletim de História. Nessa
publicação, o corpo discente defendia mudanças tanto no ensino quanto na escrita da
história brasileira, que deveria estar engajada nas questões do presente:
A relação entre os programas defendidos acima com a HNB é relevante, pois cinco
dos sete autores da coleção participaram de números do Boletim272. Em sentido
semelhante, Pedro Cavalcanti Neto chegou a afirmar que a HNB foi uma consequência da
revista, um projeto de história militante para além dos limites da faculdade (idem p.54;
p.91). E nesse mesmo trecho é possível notar um discurso em favor do desenvolvimento
e das reformas que remete tanto aos isebianos quanto às plataformas do governo Goulart.
Neste mesmo contexto, a defesa por reformas no ensino e na escrita da história não
foram reivindicações gratuitas. Afinal, na FNFi a disciplina de história do Brasil era
comandada por Hélio Viana, catedrático que impedia quaisquer mudanças no ensino ou
nos conteúdos ministrados em aula. Por consequência, a formação dos alunos nesta área
era bastante precária, conforme os autores da HNB (SANTOS et al., 1993, p.16-17; p.52-
53). Isso em parte explica o porquê da HNB ter sido elaborada no ISEB, apesar da maioria
dos autores serem egressos da FNFi. Pois diante dos entraves impostos à pesquisa, as
propostas de inovação na área foram deslocadas para fora do ambiente acadêmico. Essas
diferenças se estenderam até ao uso de obras de referência na HNB, pois autores como
Caio Prado Jr., Celso Furtado e Nelson Werneck Sodré não constavam nas ementas dos
cursos universitários da época (PEREIRA, 1998, p.95; FERREIRA, 2013, p.378). Portanto,
a realização de uma historiografia com outros aportes teóricos e abordagens estava
vedada na FNFi, embora estivesse permeada de projetos surgidos naquele local.
272 Os únicos
autores da HNB sem publicações no Boletim de História foram Nelson Werneck Sodré (que não
tinha formação acadêmica em história) e Maurício Martins de Mello .
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Por seu turno, avaliar a influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) sobre a
HNB é algo um tanto mais complexo, pois a ilegalidade imposta ao partido impedia a livre
circulação de suas ideias. Sabe-se, porém, que no começo dos anos 1960 o PCB se
encontrava num período de revisão de práticas e princípios suscitado pela divulgação dos
crimes cometidos durante o stalinismo. O impacto do relatório divulgado no XX Congresso
do Partido Comunista da União Soviética em 1956 causou debates e mudanças na atuação
do PCB. Isso culminou na “Declaração de Março de 1958”, na qual o partido passou a
defender a participação no regime democrático, procurando formar uma frente com
outros grupos e partidos em favor de posições nacionalistas (SEGATTO, p.79, 1995). Mais
uma vez, nota-se que o nacionalismo serviu de causa e orientação para a ação política,
num ideário até certo ponto comum com as instituições analisadas anteriormente.
No entanto, a relação do PCB com a HNB também remete às trajetórias de seus
autores. Em depoimento, Joel Rufino dos Santos comenta como foi chamado a participar
do projeto: “Desse jeito, quando Nelson Werneck Sodré pediu ao Centro de Estudos de
História um assistente para sua cadeira no ISEB e o Partido, que o controlava (o Centro)
reuniu-se para votar a indicação, meu nome ganhou por pouco” (SANTOS et al., 1993,
p.15). Nessa declaração, nota-se que o PCB era influente no meio estudantil, mas nem
todos tinham o mesmo status dentro do partido273. E houve mesmo resistências internas
quanto à relevância de se elaborar uma nova história do Brasil, segundo Rubem César
Fernandes:
O pessoal favorável à linha chinesa é radicalmente contra. Eles acham que
não é hora de ficar estudando história, escrevendo história. [...] A teoria
está basicamente pronta, está feita, o problema é aplicá-la no Brasil. E,
para isso, não é no estudo, mas na ação (MENDONÇA, 1990, p.31-32).
273Elaine Lourenço destaca que, no livro alusivo aos trinta anos da HNB publicado em 1993, apenas Joel
Rufino menciona sua militância no PCB, dado que talvez não parecesse tão relevante para os demais
depoentes. Noutra entrevista, Pedro Cavalcanti Neto afirma que abandonou qualquer participação no
partido em 1962, portanto antes mesmo da HNB ter sido elaborada.
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HNB, essa relação ajudou a reunir os autores para a realização do projeto, mas tornou-se
motivo de censura e perseguição após o golpe de 1964.
Mas o principal vínculo entre a HNB com o PCB foi percebido pela participação de
Nelson Werneck Sodré na coleção. Conforme Leandro Konder, Sodré foi “O historiador
marxista afinado com a perspectiva do PCB que se destacou e alcançou respeitabilidade
nos anos 50” (KONDER, 1998, p.370). Professor de história do Brasil e diretor do
Departamento de História do ISEB na época (MENDONÇA, 2006, p333), seus cursos eram
muito prestigiados pelos universitários de então (PEREIRA, 1998, p.53). Foi num desses
cursos que Sodré convidou Pedro Cavalcanti Neto a participar na elaboração da HNB, e de
onde vieram os contatos para que outros egressos da FNFi fizessem parte do projeto.
Sabe-se também que Sodré era membro do Comitê Cultural do PCB, que
influenciou na composição dos departamentos culturais do ISEB a partir de 1961, época
em que o instituto esteve mais próximo das esquerdas. No entanto, as atividades desse
comitê não eram coordenadas pela direção do partido, relativizando o controle que o PCB
exercia no instituto:
Por mais que o referido comitê fosse endossado pelo partido, ele não era
um órgão subordinado e dirigido pelo partido. O que importa afirmar até
aqui é que, apesar da influência do ideário pecebista no interior do ISEB,
não havia uma política cultural dirigida ao instituto coordenada nem pelo
PCB nem pelo seu Comitê Cultural (CZAJKA, 2009, p.112).
Autor de intensa atividade na época, Sodré foi a principal referência para os demais
autores da HNB, tanto por reunir o grupo no ISEB quanto num plano teórico. Seus livros
sobre história do Brasil eram dos principais trabalhos a serem utilizados na elaboração
da série, mas os vínculos do autor com o PCB influenciaram na trajetória editorial da obra
e suas avaliações.
Lançada às vésperas do golpe de 1964, a primeira edição da HNB foi produto do
convênio entre o ISEB e a Cases, como mencionado anteriormente. Vinculada ao MEC e
dirigida na época por Roberto Pontual, que havia sido ex-estagiário no ISEB (SODRÉ,
1987, p.121), a Cases encomendou os volumes ao instituto e se encarregou de distribuir
os exemplares, que podiam ser solicitados gratuitamente pelo correio por professores em
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todo o país (SANTOS et al., 1993, p.61) 274. Dos dez fascículos inicialmente previstos, cinco
haviam sido lançados até o golpe de 1964, quando a coleção foi suspensa e seus autores
presos ou exilados. Objeto de editoriais na imprensa e mesmo de uma passeata contra sua
possível utilização nas escolas275, a HNB foi acusada de ser obra de propaganda marxista.
Por esse motivo, logo após o golpe a coleção foi submetida a um parecer do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), encabeçado por Américo Jacobina
Lacombe. Nele, os autores foram acusados de serem “mais materialistas que Marx”, que
“varrem da História do Brasil a influência de qualquer personalidade, qualquer corrente,
qualquer fator que não seja exclusivamente mercantil” (LACOMBE et al., 1964, p.291).
Desqualificando os autores da obra enquanto historiadores, o parecer recomendava o
cancelamento do vínculo entre a HNB e o MEC.
Uma segunda edição, lançada pela editora Brasiliense em 1965, previa um total de
seis volumes. Destes foram lançados os volumes 1 e 4, quando a edição foi apreendida e
submetida a um Inquérito Policial-Militar (IPM) específico que incriminou tanto os
autores quanto os livreiros que venderam exemplares da obra. Os livros lançados pela
Brasiliense reuniam sete das dez monografias planejadas na edição original, quando o
projeto da HNB já havia se expandido para dezesseis capítulos em função do grande
sucesso inicial (SANTOS et al., 1993, p.63). Diante das apreensões dos livros e da
perseguição sofrida pelos autores, Sodré destacou a contradição entre a desqualificação
da HNB e o potencial subversivo do qual ela foi revestida pelas autoridades:
Sobre essa coisa desimportante, errada, desqualificada, manifestaram-se,
em “pareceres”, o Estado Maior do Exército, o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, a Comissão Nacional do Livro Didático, etc. É muita
força para tanta fraqueza (SODRÉ, 1987, p.142).
274 Joel Rufino dos Santos comenta que cinco mil exemplares da primeira edição haviam enviados a
professores registrados no Ministério da Educação e Cultura, o que representava uma grande tiragem para
os padrões nacionais.
275 O Estado de S. Paulo dedicou cinco editoriais contra a HNB em março de 1964, além de editoriais
publicados no O Globo e no Jornal do Brasil. A passeata ocorreu em Curitiba no dia 24 de março de 1964,
reunindo um público entre 4 e 30 mil pessoas, segundo estimativas da época. Mais informações sobre a
organização da passeata, a cobertura da imprensa local e as motivações políticas do evento podem ser
encontradas nos artigos de João Bertolini e no de Adriano Codato e Marcus Oliveira.
276 O ISEB teve sua sede depredada, os arquivos incendiados e foi oficialmente extinto por um decreto
publicado em 13 de abril de 1964, portanto logo nos primeiros dias após o golpe.
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de ser um cento de conspiração comunista, enquanto que a coleção foi considerada apenas
como obra de doutrinação que poderia chegar até as escolas secundárias, influenciando
assim um grande contingente de alunos pelo país. Nesse cenário, a contradição entre a
desqualificação da HNB e a repressão que se seguiu sobre os autores explica-se pela trama
de relações institucionais nas quais a coleção foi elaborada:
Ou seja, ainda que todas as acusações de despreparo, inabilidade e má
formação intelectual recaíssem sobre eles, o peso maior estava no fato
deles estarem associados ao comunismo (leia-se: PCB), por intermédio de
Nelson Werneck Sodré, elo de ligação dos autores com o ISEB – instituição
que, por sua vez, também estaria a serviço do comunismo internacional
(CZAJKA, 2012, p.305).
As primeiras análises atribuíram a HNB sobretudo a Sodré, por ser ele a figura mais
reconhecida no grupo e por ter sido dele a iniciativa de reunir os autores no ISEB. Seus
vínculos com o PCB eram notórios, e por esse conjunto de associações a HNB foi vista
como obra de propaganda comunista. Contudo, procurei demonstrar que essa relação não
era tão simples, pois a coleção continha projetos que vinham de outros locais, como a
FNFi. E embora um ideário reformista e nacionalista estivesse presente na HNB, seria
superficial tratar a coleção como produto de apenas uma organização específica, seja do
ISEB ou do PCB. Além disso, a dimensão historiográfica da obra ficou em segundo plano
diante das interpretações políticas sobre seu conteúdo. Seria a História Nova do Brasil
uma autêntica novidade em relação ao material utilizado na época, quais foram as
principais concepções teóricas sobre história que orientaram o trabalho? Seria a HNB a
primeira obra a interpretar a história do Brasil conforme o materialismo histórico 277 ou
essa leitura foi resultado da polarização política da época que regia as discussões? São
aspectos que ainda estão por serem abordados, pois até o momento a HNB não foi tema
de uma pesquisa de fôlego.
Referências bibliográficas:
BERTOLINI, João Luis da Silva. Passeata contra o Livro de História único: Curitiba, 24 de
março de 1964. In: ABUD, Kátia; SCHMIDT, Maria Auxiliadora (Org.). 50 anos da Ditadura
277 Essa questão é controversa mesmo entre os autores da HNB. Numa terceira edição, lançada em 1993 por
alusão aos trinta anos da série, Joel Rufino dos Santos e Pedro Cavalcanti Neto corroboram essa perspectiva
em seus depoimentos sobre a obra. Por outro lado, Nelson Werneck Sodré nega que a coleção utilizasse o
materialismo histórico “na plenitude de sua significação”, inclusive porque o trabalho era uma encomenda
feita pelo MEC. Assim, Sodré avalia que o uso de categorias associadas ao marxismo serviria de ataques
contra a HNB e o governo naquele contexto, reiterando a dimensão política que permeava a obra.
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Militar: Capítulos sobre o Ensino de História no Brasil. Curitiba: W&A Editores, p.83-105,
2014.
COSTA PINTO, João Alberto da. A origem e o sentido político do projeto História Nova do
Brasil (1963-1965). In: CUNHA, Paulo; CABRAL, Fátima (Org.). Nelson Werneck Sodré:
entre o sabre e a pena. São Paulo: Editora Unesp, 2006, p.343-357.
KONDER, Leandro. História dos intelectuais nos anos cinquenta. In: FREITAS, Marcos
Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p.355-
374.
LACOMBE, Américo Jacobina et al. História Nova (Parecer). In: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, v.263, p.283-302, 1964.
LOURENÇO, Elaine. História Nova do Brasil: revisitando uma obra polêmica. Revista
Brasileira de História, v.28, nº 56, p.385-406, 2008.
SANTOS, Joel Rufino dos et al. História Nova do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1965, v.4.
_______. História Nova do Brasil (1963-1993). São Paulo: Loyola, Giordano, 1993.
TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias.São Paulo: Ática, 1977.
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Mariana Schossler
Doutoranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Bolsista PROSUP/CAPES.
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relações entre projetos coletivos e individuais dentro de um mesmo grupo, bem como a
inserção destes do contexto argentino onde se dão estas discussões.
Para iniciar esta discussão, acredito que seja importante caracterizar, de maneira
muito rápida e concisa, o surgimento da Nueva Escuela Histórica em si. Entre o final do
século XIX e inícios do XX, a Argentina vivia um momento específico de sua história,
denominado por Félix Luna (2010), de “los años de prosperidad”, já que, desde finais do
século XIX e nas primeiras décadas do XX, o país viu a ascensão da política e economia
liberais, predomínio rompido apenas com o golpe de Estado de Uriburu, em 1930.
É durante estes anos de prosperidade, também, que surge uma das principais
correntes historiográficas argentinas da primeira metade do século XX, a qual alguns
críticos denominaram em tom pejorativo historiografia liberal, e que ficou conhecida
como Nueva Escuela Histórica (NEH). Embora não fosse um grupo homogêneo, os
historiadores “filiados” à NEH tinham seu ponto de união no “[...] hecho de haber nacido
entre 1885 y 1889 en el seno de familias aluviales y por ello sin vínculos con el pasado
que aspiraban a estudiar, su paso por la Facultad de Derecho, así como cierta sociabilidad
político-académica” (DEVOTO; PAGANO, 2009, p. 140).
As ideias vigentes na Argentina, entre o final do século XIX e início do XX, e as
discussões historiográficas motivadas pelo Centenário de Maio, em 1910, ajudaram a
moldar a historiografia construída por esta corrente. A NEH se destacava, em primeiro
lugar, por sua vinculação tanto com universidades, onde seus membros atuavam como
professores, quanto com instituições leigas que valorizavam o conhecimento histórico,
como o Instituto Ravigani e a Academia Nacional de la Historia. E, em segundo lugar, pela
campanha de profissionalização da disciplina histórica, o que explica as reivindicações
para que somente historiadores, com a devida formação acadêmica, ocupassem postos de
ensino e de pesquisa.
Os membros da NEH buscavam suas principais referências teórico-metodológicas
em autores como Rafael Altamira, Xenopol, Langlois e Seignobos, e Bernheim, cujas obras
tinham como principal característica o rigor metodológico e a crítica às fontes. Além disso,
observa-se que os historiadores da NEH buscavam realizar as discussões acerca dos
conteúdos e resultados de suas obras, corroborando ou rechaçando hipóteses, não apenas
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278 Essas “redes de crítica” nos auxiliam na reconstituição do ambiente intelectual a partir das discussões
suscitadas pela publicação de uma determinada obra, uma vez que resenhas e críticas apontam tanto para
concordância, quanto para os rechaços das ideias por ela divulgadas.
279 Um dos autores que dedicou trabalhos de maior fôlego à temática, Fernando Devoto (1993; 2009),
questiona a legitimidade de agrupar historiadores sob o rótulo de Nueva Escuela Histórica: “[...] un segundo
problema que surge en forma evidente es el de la legitimidad de agrupar a ese conjunto, en tantos aspectos
heterogéneo, bajo un mismo rótulo. El grupo de jóvenes historiadores [...] compartía ciertamente un
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conjunto de rasgos comunes que han permitido sobrevivir al paso del tiempo a la margen de que constituían
una escuela, más allá de diferentes opciones políticas, ideológicas e institucionales y de no desdeñables
enemistades personales que los enfrentaron a lo largo de la prolongada hegemonía académica que
ejercieron en la historiografía profesional argentina.” (DEVOTO, 1993, p. 10-11). Para o autor, deve-se
considerar, também, aspectos relativos à prática historiográfica dos membros do grupo para que se tenha
uma ideia de unidade, para além de questões exteriores à produção.
280 Entre suas principais obras estão Introducción a la historia del derecho indiano (1924), Lecciones de
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282Lavisse (1842-1922) foi um dos principais nomes da escola metódica francesa. Dedicou-se, a partir do
ano 1900, à publicação da monumental coleção intitulada Histoire de France, que serviu de modelo a
diversos historiadores, inclusive o próprio Levene. Lavisse também escreveu manuais escolares de História.
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283 No tocantea tal correspondência, seria interessante realizar um estudo sobre os conteúdos das mesmas,
o que elucidaria aspectos relativos às trocas realizadas entre os historiadores. Parte das correspondências
de Levene se encontram no acervo da sede da Academia Nacional de la Historia, em Buenos Aires.
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A partir destas questões, postas de forma clara pelo grupo dos hispano-
americanistas e, de certa forma, capitaneadas por Altamira, surgiram diversas discussões,
algumas delas do outro lado do Atlântico, tendo como referência o historiador argentino
Ricardo Levene (SILVA, 2011), que assim como o espanhol, era um dos principais
historiadores de seu país na primeira metade do século XX. Levene levou as problemáticas
284Conjunto de medidas imposto pela metrópole no reinado de Carlos III (1759-1788) que tinham por
objetivo estabelecer um maior controle sobre as colônias. Dentre elas cabe destacar a criação do Vice-reino
do Rio da Prata em 1776, bem como o Regulamento de Livre Comércio entre Espanha e as Índias de 1778,
a instalação de burocratas de origem espanhola e sem vínculos com as elites locais e uma maior
centralização da administração partir da criação de intendências. Enquanto Fradkín & Garavaglia (2009, p.
177) consideram que “las innovaciones no fueran parte de un plan previamente elaborado, sino que se
fueran definiendo a través de iniciativas que tuvieron ritmos desiguales y muy disímil capacidad de
ejecución”, Lynch (1991, p. 6, grifos meus) argumenta que “La política borbónica alteró la relación existente
entre los principales grupos de poder. La propia administración fue la primera en perturbar el equilibrio. El
absolutismo ilustrado fortaleció la posición del Estado a expensas del sector privado y terminó por
deshacerse de la clase dominante local. Los Borbones revisaron detenidamente el gobierno imperial,
centralizaron el control y modernizaron la burocracia; se crearon nuevos virreinatos y otras unidades
administrativas; se designaron nuevos funcionarios, los intendentes, y se introdujeron nuevos métodos de
gobierno. Éstos consistían en parte en planes administrativos y fiscales, que implicaban al tiempo una
supervisión más estrecha de la población americana.”. Neste sentido, Lynch (1991) concorda com Halperín
Donghi (2015), afirmando que as reformas tinham por objetivo modernizar o império e tornar a
administração das colônias mais eficiente, embora não tenham apresentado o resultado esperado.
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285Me referirei a esta obra, a partir daqui, apenas como Ensayo (1920).
286 Sabe-se que Moreno era formado em Direito pela Universidade de Charcas, e teve seu pensamento
bastante influenciado por ideias ilustradas. Por conta disso, Guillermo Furlong SJ considera seu
posicionamento político “exaltado”, em contraposição à moderação de outros líderes revolucionários, como
Cornelio Saavedra, embora o personagem seja considerado, até os dias de hoje, um dos principais
pensadores da questão independentista no Rio da Prata do início do século XIX (SHUMWAY, 2009; GAUT
VEL HARTMAN, 2010). Em 1805, assumiu cargos na Audiência e no Cabildo de Buenos Aires. Eleito
secretário da Primeira Junta, exprimiu sua concepção de governo para a nova nação em sua obra intitulada
Plan de Operaciones (1810). Segundo Gaut vel Hartman (2010), Moreno procurava, neste texto, estabelecer
as bases para uma revolução profunda das estruturas políticas do Vice-reino do Rio da Prata, o que levaria
em consideração não apenas a remoção das autoridades coloniais dos postos mais altos do governo, mas,
também, a obtenção da independência e a escrita de uma Constituição. Faleceu em 1811, durante uma
viagem à Grã-Bretanha, onde deveria atuar como embaixador. Apesar de considerá-lo um dos mais
importantes líderes de Maio, alguns autores consideram suas ideias pouco práticas. Um deles é Furlong, que
comenta: “Era, sin embargo, de un temperamento impulsivo, y era terco en sus opiniones y en los pocos
meses de actuación al lado de Saavedra, creyó que éste era poco enérgico. Quería llegar al fin cuanto antes,
sin etapas, contrariando así las leyes de la naturaleza, y las de la historia”. E, diferentemente de Saavedra,
suas ações não seriam condizentes com suas ideias políticas: “El renunciar a su puesto en la Junta, por la
incorporación de los diputados, y alejarse del país en un momento de los más trascendentales de nuestra
historia, no dice bien de él” (FURLONG, 1979, p. 122).
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Acredito que o capítulo em que Levene melhor discute esta questão encontra-se no
Tomo 2 e é intitulado La Revolución sin sangre. Neste capítulo em específico, o historiador
argentino disserta não apenas sobre o período da Revolução em si, mas também sobre as
intenções dos seus líderes e de como o movimento foi lembrado quando do período das
comemorações do centenário, em 1910.
Note-se, em primeiro lugar, que havia uma preocupação por parte de Levene em
demonstrar que a Revolução tinha um significado para aqueles que dela participaram.
Embora, durante seu texto, aponte as inovações dos escritos de Mariano Moreno e
tente colocá-lo na posição de pensador do movimento, Levene deixa evidente que a
questão revolucionária, para a maioria dos vecinos do Cabildo Aberto, girava em torno da
manutenção ou não do vice-rei no governo de Buenos Aires. Ao mesmo tempo, não havia
um projeto de governo definido, sendo que este teria sido elaborado durante o mandato
da Primeira Junta.
No tocante a esta questão, do significado da Revolução de Maio, coloca a
possibilidade de o período ser visto em um contexto maior das revoluções do final do
século XVIII, considerando que “si se eleva el punto de mira extendiendo la contemplación
del movimiento de mayo, en el espacio, como formando parte de una revolución más vasta
que había sacudido a Europa y conmovía a la América española, y en el tiempo,
reconociendo su laboriosa e intensa gestación” (LEVENE, 1920, p. 96), evidenciando as
influências estrangeiras do momento em questão.
Acredito que, ao lermos com maior atenção o Ensayo (1920), fica claro que as
influências estrangeiras são intensamente reafirmadas por Levene em seu texto. A
intenção de Levene, com seu Ensayo (1920) é, assim, muito bem definida, e já adiantada
pela última página do prefácio intitulado Una palabra:
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A partir da discussão exposta até o momento, cabe perguntar: afinal, havia alguma
relação entre os demais membros da Nueva Escuela Histórica com o modelo explicativo
do hispano-americanismo historiográfico ou seria este um projeto pessoal de Levene? Ė
interessante notar, como afirmei anteriormente, que, com a vinda de Altamira para a
Argentina em 1909, não apenas Levene, mas outros membros da NEH tiveram contato
com o espanhol. Entretanto, o historiador argentino parece, por sua proximidade com o
espanhol, ter construído, ao longo do tempo, uma relação mais sólida com este modelo
explicativo chegando, inclusive, às suas proposições mais extremas nas décadas de 1940
e 1950. Note-se, ainda, que historiadores como Beired (2009), Silva (2011), Tau
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Referências bibliográficas:
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FRADKÍN, Raúl Osvaldo; GARAVAGLIA, Juan Carlos. La argentina colonial. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno, 2009.
LEVENE, Ricardo. Ensayo histórico sobre la Revolución de Mayo y Mariano Moreno. Buenos
Aires: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, 1920.
LUNA, Félix. Historia integral de la Argentina. Vol. 8. Los años de prosperidad. Buenos
Aires: Booket, 2010.
SHUMWAY, Nicolas. A invenção da Argentina. História de uma ideia. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo; Brasília: Editora UnB, 2008.
SILVA, Ana Paula Barcelos Ribeiro da. Diálogos sobre a escrita da história: ibero-
americanismo, catolicismo, (des)qualificação e alteridade no Brasil e na Argentina (1910-
1940). Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2011.
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PARTE 6
Carla Brandalise
Charles Sidarta Machado Domingos
Marluza Marques Harres
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Michele de Leão
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
CAPES. Contato: <micheledeleao@gmail.com>
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O nobre deputado por Sergipe, o Sr. Prado Pimentel, cujo talento aprecio,
e de cuja eloquência sou um dos admiradores, chegou até a dizer-nos, que
elevar o censo seria promover a mais estúpida das democracias, a do
dinheiro. Eu poderia simplesmente responder: que entregar o direito de
voto, cuja responsabilidade é tão grande, à ignorância e ao pauperismo é
que seria criar a mais degradada das democracias. (ABREU E SILVA, 1879,
p.319).
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A respeito do exercício do voto, Lucas (1985, p.134) reflete que ele se configura
como uma responsabilidade grande, pois: “Conceder o direito de voto às pessoas tem
valor simbólico – o de mostrar-lhes que a sociedade reconhece sua importância. Exercer
o direito de voto tem um valor simbólico - de permitir ao indivíduo identificar-se com a
sociedade”. Dessa forma, ao defender a proibição de voto ao analfabeto, o deputado
Florêncio de Abreu está negando ao indivíduo a oportunidade de ser reconhecido pela
sociedade e de identificar-se com ela.
Em meio a esses debates, dias antes de o projeto ser apresentado à Câmara, ocorre
uma reorganização ministerial com a retirada do governo dos ministros Gaspar da Silveira
Martins e Domingos de Sousa Leão, o Barão de Vila Bela. Os ministros rompem com o
Gabinete por não concordarem com a manutenção da inelegibilidade dos cidadãos
acatólicos à Câmara dos Deputados.
Em 13 de fevereiro de 1879 o Projeto Sinimbu é apresentado à Câmara dos
Deputados:
289De acordo com o artigo 95º da Constituição de 1824 estavam proibidos de serem nomeados deputados
aqueles que não professassem a religião Católica.
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José Antônio Saraiva defende o seu projeto dizendo que, conforme o projeto,
apenas se exige o necessário para dar regularidade à eleição, como a assinatura.
(SARAIVA, 1880, p. 29-34).
Saraiva, em sessão no dia 07 de junho de 1880, alega que o indivíduo que não sabe
ler e escrever pode ser qualificado eleitor, mas não vota porque não sabe assinar seu voto,
pois:
É um eleitor qualificado que pode exercer o seu direito, mas que não o
exerce efetivamente enquanto não faz o que todo o cidadão deve fazer,
que é aprender alguma coisa para ser digno membro de uma sociedade
política. (Muito bem.). (SARAIVA, 1880, p. 92).
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Saraiva alega que o projeto não exclui a grande massa dos cidadãos do país: “[...] o
que o projeto exclui é a ignorância absoluta, os homens que não tem meios de viver, e nos
quais não se presume a menor inteligência e independência para a escolha do deputado
ou senador”. (SARAIVA, 1880, p. 196). Assim, para o chefe do governo, qualquer cidadão,
que por seu trabalho adquira uma diminuta renda ou qualquer instrução, entra no
eleitorado.
Quanto à elegibilidade dos acatólicos à Câmara dos deputados, o senador Silveira
Martins, que em 1879 optou por deixar de fazer parte do Governo Sinimbu justamente
pela não inserção da ideia de elegibilidade dos acatólicos, agora, no Senado em 1880,
continua com seu posicionamento favorável à proposta. Silveira Martins destaca que no
seu entendimento essa matéria é de grande importância para promover a vinda de
imigrantes para o Brasil. De acordo com o mesmo:
Art. 2.º: É eleitor todo o cidadão brasileiro, nos termos dos arts. 6º, 91º e
92º da Constituição do Império que tiver renda líquida anual não inferior
a 200$ por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego.
[...]
Art. 8.º: No primeiro dia útil do mês de setembro de 1882, e de então em
diante todos os anos em igual dia, se procederá a revisão do alistamento
geral dos eleitores, em todo o Império, somente para os seguintes fins:
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A Lei Saraiva apesar de ser percebida por muitos como um avanço democrático ao
introduzir o voto direto e permitir a elegibilidade dos acatólicos, trouxe no seu âmago
medidas excludentes. Pois, a partir da promulgação da Lei, o modo de espoliar o povo de
participar das eleições se aprimorou, deixando de ser exclusivamente a pobreza (a renda
insuficiente ou a dificuldade de comprovação da mesma). Mantendo o censo pecuniário
da Constituição de 1824, à Lei Saraiva ainda foram acrescentadas duas medidas de
resultados demasiadamente excludentes: rigidez dos mecanismos de comprovação da
renda; e, a exigência do saber ler e escrever. O limite de renda de 200 mil réis não era
muito alto. Porém, a Lei tornou muito rigorosa a maneira de comprovar a renda. (LEÃO,
2013, p.105).
Nas eleições que seguiram à Lei Saraiva, muitos cidadãos com renda suficiente para
serem eleitores não votavam por não conseguirem comprovar sua renda ou por não terem
disposição de encontrar os meios de prová-la. No entanto, onde a lei de fato limitou o
eleitorado foi ao retirar o direito de voto dos analfabetos.
A reforma eleitoral não encaminhou a uma ampliação do eleitorado, muito pelo
oposto, provocou uma redução de 1.114.066 para 145.000 eleitores, representando 1,5%
da população total, ou seja, 1/8 do que era antes, já que em 1872, o número de votantes
fora superior a um milhão. Muito grave foi que este retrocesso continuou por muitas
décadas. O número de eleitores veio a ultrapassar o número de votantes de 1872 apenas
nas eleições de 1945, ano em que compareceram às urnas 13,4% dos brasileiros.
(CARVALHO, 2004, p. 38-40).
No que diz respeito à elegibilidade dos acatólicos a Lei Saraiva acabou provocando
uma incoerência ao permitir que estes fossem eleitos à Câmara dos Deputados, mas não
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suprimindo o artigo 17 do regimento interno daquela casa. Este artigo estabelecia que o
deputado eleito deveria prestar juramento “[...] aos Santos Evangelhos, manter a Religião
Católica, Apostólica Romana, observar e fazer observar a Constituição, sustentar a
indivisibilidade do Império, a atual Dinastia Imperante, ser leal ao Imperador, zelar os
direitos dos Povos e promover, quanto em mim couber, a prosperidade geral da Nação”
(PORTO, 2004, p. 395).
A contradição criada pela Lei só foi colocada em discussão quando em 06 de
setembro de 1888 o deputado eleito Antônio Romualdo Monteiro Manso declarou à
Câmara que não podia prestar juramento: “Não posso prestar juramento, porque é contra
as minhas convicções”. (MANSO, 1888, p.71). Manso foi convidado a se retirar da Câmara
para que a mesma decidisse o que fazer. O assunto foi discutido pelos deputados. No dia
11 de setembro de 1888 decidiu-se que ficaria dispensado do juramento o deputado que
declarasse ser aquele juramento contrário à suas crenças e opiniões políticas. (BRASIL,
1888, p. 139).
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MARTINS, Gaspar Silveira. [Discurso]. In: BRASIL. Senado. [Anais do Senado]. 1880. Sessão
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&Livro=8&Tipo=9&PagMin=1&PagMax=441&Pagina=239 Acesso em: 31/05/2015.
PORTO, Walter Costa. Católicos e acatólicos: o voto no Império. Brasília. a.41, n. 162.
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Anacleto Zanella
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Contato:
<anacletoverpt@yahoo.com.br>
290 Voltaremos ao tema mais adiante.
291 Conforme Boff, a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellin, na
Colômbia, em 1968, foi marcante para a Igreja Católica, pois fez uma opção histórica “em favor dos pobres,
pela sua libertação integral e pelas Comunidades Eclesiais de Base”. Segundo o teólogo, “aqui se erige o
marco básico e oficial da nova Igreja que se propõe encarnar-se nas classes dominadas e mantidas
subalternas”. (BOFF, 1998, p.66).
292 Também trataremos sobre isso posteriormente.
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instituições em crise que abrem espaços para novas elaborações: 1) “Da Igreja Católica,
sofrendo a perda de influência junto ao povo, surgem as comunidades de base”; 2) “De
grupos de esquerda desarticulados por uma derrota política, surge uma busca de novas
formas de integração com os trabalhadores”. 3) “Da estrutura sindical esvaziada por falta
de função, surge um novo sindicalismo”. (SADER, 1988, p. 144).
Muitos pesquisadores já se debruçaram sobre esses novos movimentos sociais,
inclusive estudando o sindicalismo rural. No entanto, somos da opinião que esse debate
não está esgotado. Pelo contrário. No cenário atual marcado pelas crises política,
econômica, social e ambiental, esse debate precisa acontecer constantemente. Por isso,
este artigo procura identificar a importância que o sindicalismo rural cutista teve para a
ampliação dos direitos dos trabalhadores rurais no Rio Grande do Sul. Além disso, busca
elencar a sua contribuição para o processo de redemocratização que ocorreu nessa época
no País e o que essa experiência pode ensinar para o processo de fortalecimento da
democracia no Brasil nos dias atuais, nesse cenário de crise. É necessário ressaltar, no
entanto, que não temos a pretensão de trazer posições definitivas, pois vivemos um
cenário cada vez mais complexo e carregado de incertezas. O objetivo, portanto, é dar
nossa opinião nesse importante debate. Iniciaremos através de uma pequena análise em
relação aos conceitos de democracia, cidadania e movimentos sociais.
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E para o autor, “um Estado democrático é aquele que considera o conflito legítimo.
Não só trabalha politicamente os diversos interesses e necessidades particulares existentes
na sociedade, como procura instituí-los em direitos universais reconhecidos
formalmente”. (VIEIRA, 1999, p. 40). (Grifos do autor). E prossegue: “Os indivíduos e
grupos organizam-se em associações, movimentos sociais, sindicatos e partidos,
constituindo um contrapoder social que limita o poder do Estado”. E conclui: “Uma
sociedade democrática não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, e está
sempre aberta à ampliação dos direitos existentes e à criação de novos direitos”. (Grifo
nosso).
Ao falarmos em democracia, cidadania e movimentos sociais, portanto, e em pleno
acordo com a visão defendida pelos autores acima citados, é possível concluir que há uma
relação muito direta na construção desses conceitos, ou seja, existe complementaridade
entre si. Ambos se completam. Um não vive sem o outro. No entanto, nos últimos anos,
com a queda do socialismo no leste europeu (simbolizado pela queda do muro de Berlim
em 1989), com a crescente globalização da economia e com o avanço do ideário neoliberal
no mundo, a democracia e a cidadania estão vivenciando uma profunda crise.
A crise da democracia
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os trabalhadores negros raptados junto a vários povos da África até quase o final do século
XIX:
Por isso, levando em conta as reflexões dos autores acima citados (José Murilo de
Carvalho, Boaventura de Sousa Santos, Norberto Bobbio, Liszt Vieira e Alain Touraine),
ficam evidentes duas constatações: 1) a democracia e a cidadania precisam caminhar
juntas, ou seja, uma não vive sem a outra; 2) e, infelizmente, com a hegemonia do
pensamento neoliberal, ocorrida nos últimos anos em todo o mundo, esse conceito de
democracia está numa situação de grave crise e em perigo. E as grandes chagas humanas
– fome, desigualdade, exclusão social, guerras, violência, destruição ambiental, entre
outras - estão longe de serem superadas. Assim, consideramos fundamental o estudo dos
Movimentos Sociais, pois, em nossa opinião, possuem um papel significativo no processo
de resistência e de ampliação dos direitos sociais e políticos das classes subalternas em
todo o mundo.
Para a autora, existem movimentos sociais conservadores e progressistas. Entre os conservadores estão
293
aqueles que não querem as mudanças sociais emancipatórias, mas impor as mudanças segundo seus
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propostas”. E prossegue: “atuando em redes, articulam ações coletivas que agem como
resistência à exclusão e lutam pela inclusão social”. (GOHN, 2013, p. 14-15).
A educadora Conceição Paludo escreve que, nas décadas de 1970 e 1980, se
constituiu no Brasil um “Campo Democrático e Popular (CDP)” que atuava, “de um lado,
em contraposição aos desdobramentos do projeto de modernidade e, de outro, na
continuidade do aprofundamento de concepções e práticas que procuravam articular a
democracia com a justiça social e com a construção de um projeto alternativo de
sociedade.” (PALUDO, 2001, p. 45). Para a autora, nesse período, ocorre um alargamento
substantivo da Sociedade Civil brasileira e constituem-se novos movimentos sociais:
A cientista política Evelina Dagnino, por sua vez, endossa a concepção de que os
movimentos sociais brasileiros dessa época vão trabalhar com a visão de cidadania
ampliada: “A então chamada nova cidadania ou cidadania ampliada começou a ser
formulada pelos movimentos sociais que, a partir dos anos 70 e ao longo da década de 80,
se organizaram no Brasil (...)”. A autora continua: “A disseminação dessa concepção de
cidadania (...) orientou não só as práticas políticas de movimentos sociais de vários tipos,
mas também mudanças institucionais, como as incluídas na Constituição de 1988,
conhecida como a Constituição Cidadã.” (DAGNINO, 2004, p. 153-155). (Grifo nosso).
Em outro texto, Dagnino et al. (DAGNINO et al., 1998, p. 21) afirmam que: “a
experiência concreta desses movimentos incluiu um conjunto de processos que
introduziu uma concepção alternativa de democracia (...) e uma noção nova de cidadania”.
E ressaltam que tais processos foram caracterizados por: “a construção de identidades
coletivas, o desejo de autonomia, a busca de novas práticas organizacionais que
enfatizassem formatos mais democráticos e a constituição de sujeitos sociais, baseada no
desenvolvimento de uma noção de direitos”. E, mais adiante, falam sobre o significado da
interesses particularistas, muitos deles fundamentados em xenofobias nacionalistas, religiosas, raciais etc.
(GOHN, 2013, p. 14).
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luta pela cidadania dos movimentos: “O significado dessa luta se relaciona com a
percepção de que os direitos não constituem mera dádiva, mas devem ser conquistados
pelos cidadãos e pela sociedade como um todo”. (DAGNINO et al., 1998, p. 48).
Vamos concluir esta parte com o posicionamento de Eder Sader a respeito dos
movimentos sociais: “Eles mostravam que havia recantos da realidade não recobertos
pelos discursos instituídos e não iluminados nos cenários da vida pública”. E acrescentou:
“Através de suas formas de organização e de luta, eles alargaram as fronteiras da política”.
(SADER, 1988, p. 314). É nesse contexto, portanto, que analisaremos a experiência do
sindicalismo rural cutista no Rio Grande do Sul nas páginas a seguir.
A FAG fora criada não apenas para disputar a organização sindical, mas,
fundamentalmente, para combater o comunismo. No discurso de criação
da FAG fica claro que o objetivo premente era o combate ao comunismo,
representado pelo movimento dos Agricultores Sem Terra que se
manifestava no interior do estado, principalmente em regiões de pouca
influência da Igreja Católica, e que poderiam se tornar uma ameaça nas
regiões onde a Igreja exercia maior controle, como a zona colonial.
(BASSANI, 2009, p. 50).
294O Movimento dos Agricultores Sem Terra do Rio Grande do Sul – MASTER – surgiu como uma iniciativa
de membros do PTB gaúcho, com a liderança do governador Leonel de Moura Brizola (BASSANI, 2009, p.
47).
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eram controladas pelo MASTER”. Dessa forma, conforme o autor, “a Igreja passa a agir de
maneira absoluta, condicionando a criação dos sindicatos sob sua tutela”. E conclui:
Dessa forma, conforme o autor, a FAG, entre 1963 e 1977, organizou 224 sindicatos
de trabalhadores rurais no RS, pois seu caráter conservador não se contrapunha à agenda
do regime militar. Conforme Schmitt, “a representação sindical outorgada pelo Estado
institucionaliza-se, portanto, no meio rural (...)”. E prossegue: “No plano legal, a tutela do
Estado se manifesta na imposição da unicidade sindical, no controle sobre a vida
financeira dos sindicatos, na imposição do estatuto padrão, no poder de intervenção das
Delegacias Regionais do Trabalho (DRTs) sobre eleições sindicais (...)”. (SCHMITT, 1996,
p. 191). Além disso, a autora registra que os STRs institucionalizam nessa época o “balcão
de atendimento ao associado” e assumem o papel de “executores de políticas
governamentais”:
Portanto, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, quando surge o
sindicalismo rural ligado à Central Única dos Trabalhadores (CUT) no RS, eram grandes
as barreiras a serem superadas para construir um novo sindicalismo. Por outro lado, a
partir de vários fatores favoráveis e de forte trabalho de base, como será visto em seguida,
aconteceram importantes transformações no sindicalismo rural nessa nova fase.
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Conforme estudo que realizamos, a retomada das lutas sociais no meio rural, no
final da década de 1970 e no decorrer dos anos 1980, caminhou de mãos dadas com o
ressurgimento do sindicalismo brasileiro de contestação em todo o País. A CUT, fundada
em 1983, procurou integrar todos os trabalhadores reunindo, sob uma mesma estrutura
sindical, diferentes vertentes de enfrentamento ao sindicalismo oficial surgidas no
processo de desintegração do regime militar, tanto no campo como na cidade. (ZANELLA,
2004, p. 183).
No bojo das grandes greves dos metalúrgicos do ABC paulista no final dos anos
1970 e da retomada das mobilizações dos trabalhadores em todo o país, desenvolve-se
uma nova concepção sindical denominada novo sindicalismo que terá papel decisivo na
criação da CUT. Para entendermos essa proposta sindical, trazemos o registro de
Rodrigues, que destaca duas importantes ideias – da demanda geral das classes populares
pela ampliação dos direitos democráticos e da luta e organização dos trabalhadores no
local de trabalho:
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295 Segundo Leonardo Boff, “o ponto de partida da Teologia da Libertação é, pois, a luta dos oprimidos que
fazem de sua fé uma inspiração especial para o engajamento social em vista da mudança da sociedade,
portanto, da libertação e não apenas do desenvolvimento desigual e associado ao desenvolvimento dos
países centrais”. E continua: “a palavra libertação quer designar um desenvolvimento autossustentado, não
mais vinculado a relações de opressão e de dependência, mas relações de equidade e solidariedade”. (BOFF,
1998, p. 200). O autor faz também uma diferenciação entre a Teologia da Libertação e o Marxismo: “A
Teologia da Libertação representa a primeira construção teórica da fé elaborada no Terceiro Mundo com
significação universal. A considerar-se bem, ela forneceu a melhor refutação prática do ateísmo moderno e
da crítica marxista da religião-ópio”. Conforme Boff, “o ateísmo moderno se dizia humanitário, pois negava
Deus em nome da liberdade das pessoas. A Teologia da Libertação tem mostrado que não necessitamos
negar Deus para afirmar a liberdade dos oprimidos. O Deus bíblico é um aliado dos oprimidos. Sua atuação
na história é em função da libertação dos que estão gritando sob a opressão”. (BOFF, 1998, p. 210).
296 Os quatro movimentos sociais que Navarro se refere são: Movimento Sindical Rural ligado à CUT;
Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST); e o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), todos com forte atuação no RS. Além
disso, atuavam de forma articulada com os novos Movimentos Sociais Rurais nos três estados do Sul do país.
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Considerações finais
Nesse período, a partir dos estudos dos autores citados, consideramos que o
movimento sindical rural cutista no RS, especialmente no norte do estado, vivenciou um
processo extremamente positivo em seu desenvolvimento. Ressurgiu com força política e
organizativa e se transformou em importante ator social na luta pelos direitos dos
trabalhadores/as rurais , tanto na busca de melhores políticas agrícolas como na
conquista de direitos sociais como a aposentadoria rural, garantidos na Constituição de
1988.
Além disso, fruto de um trabalho intenso de formação religiosa, social e política,
muitas lideranças, especialmente da juventude rural, participavam de diversos
movimentos ao mesmo tempo: Sindicalismo cutista, MST, CRAB, MMTR. As grandes
mobilizações que vão ocorrer nesse período – luta pela terra, contra a construção das
barragens, em defesa dos direitos sociais na Constituinte, por melhores preços aos
produtos originários da agricultura, pelo seguro agrícola, entre outras, todas eram
apoiadas entre si.
Aos poucos, essas novas lideranças, em sua maioria, vão assumir também o
trabalho de organização partidária, especialmente do Partido dos Trabalhadores (PT),
inclusive vários líderes concorreram nas eleições municipais de 1988 e nos anos
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seguintes. Dessa forma, muitos líderes rurais vão ocupar cargos públicos de Vereador,
Secretário, Prefeito, Vice-prefeito, Deputado Estadual, Deputado Federal, entre outros.
Concluímos, portanto, que o movimento sindical rural cutista do RS - em conjunto
com outros movimentos sociais rurais e apoiados especialmente por mediadores
religiosos -, contribuiu decisivamente pela ampliação da democracia e da cidadania no
Brasil. Entre as contribuições dadas, destacam-se: o processo organizativo, o trabalho de
base, a formação de novas lideranças, a atuação na luta por mais direitos, a participação
na política, dando voz e vez às pessoas humildes (homens e mulheres) que vivem nas
pequenas comunidades rurais. No cenário atual em que a democracia corre perigo, essa
experiência deve ser estudada.
Referências Bibliográficas:
BOFF, Leonardo. O caminhar da igreja com os oprimidos: do vale de lágrimas rumo à terra
prometida. -2ª ed.- Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
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RODRIGUES, Iram Jácome. A trajetória do novo sindicalismo. In: RODRIGUES, Iram Jácome
(Org.). O novo sindicalismo: vinte anos depois. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 73-94, 1999.
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SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos
trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. - 2ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Doutorando do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista do CNPq. Contato: <
douglasangeli@hotmail.com>
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297 CAMPANHA do candidato do PSD. Folha de Canoas, Canoas, 04/04/1959, p. 07. [UPHAM].
298 SERÁ prestada uma homenagem. Folha de Canoas, Canoas, 26/07/1959, capa. Hemeroteca da Unidade
de Patrimônio Histórico e Arquivo Municipal de Canoas [UPHAM].
299 COMITÊ para o Sr. Israel Alves. Folha de Canoas, Canoas, 26/07/1959, capa. [UPHAM].
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oficial de campanha teria início somente em 08 de agosto, ou seja, duas semanas depois
da referida inauguração300.
Assim, se por um lado a presença dos candidatos nas vilas era um sinal da
necessidade, gerada pela democracia, da conquista do voto das camadas populares, por
outro há indícios do oferecimento de bens e vantagens em troca deste mesmo voto. A
partir desse ponto, a pesquisa do mestrado começou a trazer indícios de algo que não
havia aparecido nas fontes utilizadas no início do trabalho: as práticas de campanha
eleitoral que se davam à margem da lei. Assim, na parte final da dissertação houve atenção
para estes indícios. Antes de passarmos a esta questão, um quadro com as práticas de
campanha eleitoral identificadas em Canoas:
300Conforme a lei n.º 1.164, de 24 de julho de 1950, que instituiu o Código Eleitoral, parágrafo 6º do artigo
151, a campanha “compreenderá em todo o país os três meses anteriores às eleições para Presidente e Vice-
Presidente da República e, em cada circunscrição eleitoral, os três meses anteriores às suas eleições gerais”.
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insistido para que o idoso trocasse as cédulas com as quais pretendia votar por outras, de
candidato diverso. Conforme o vereador, o ocorrido teve o seguinte desfecho: “Como
afirmasse que seus candidatos já estavam escolhidos, naquele momento o cidadão de
avançada idade foi convidado a descer da condução aos empurrões”. Longoni solicitou o
apoio da Câmara no sentido de repudiar o ocorrido com veemência304.
Nas eleições seguintes, em 1959, novamente o plenário da Câmara Municipal seria
palco de discussões acerca da campanha eleitoral. Em 16 de novembro de 1959, ainda
repercutia a nota publicada pelo prefeito Sezefredo Vieira (PRP) nos jornais Correio do
Povo e Folha da Tarde – na qual acusava os candidatos petebistas de haverem difamado a
sua administração. O vereador Ariovaldo Aguiar (PTB) ressaltou que em sua campanha
eleitoral não havia proferido nenhum ataque aos adversários e que os vereadores eleitos
pelo PTB e que haviam sido mencionados por Manoel Calbo (PSD) na sessão anterior
estariam na Câmara a partir do ano seguinte e poderiam se defender. Em resposta, o
vereador Armando Würth (PSD) declarou que o prefeito eleito, José João de Medeiros, não
teria proferido os ataques durante os comícios, mas sim nas casas dos eleitores, onde
havia distribuído jornais difamatórios contra o orador. Conforme o registro em ata, Würth
ainda acusou o núcleo local da Legião Brasileira de Assistência de haver distribuído
alimentos e colchões, às vésperas das eleições, juntamente com propagandas do J. M. e de
seu filho E. M.305. E. M. seria criticado novamente quatro anos mais tarde, quando os
vereadores, em nova oportunidade, avaliavam os resultados eleitorais em sessão da
Câmara Municipal. Na ocasião, o vereador Melton Both (PRP) acusou E. M. de haver se
utilizado de “expedientes demagógicos às vésperas das eleições”, tais como a distribuição
de cobertores aos pobres306.
Assim, tivemos mais indícios de que a mobilização eleitoral empreendida pelos
partidos, candidatos e seus apoiadores era, por um lado, caracterizada pela divulgação da
imagem dos candidatos e de suas propostas, por meio da propaganda, dos comícios, dos
comitês, das visitas e de outras práticas pelas quais se buscava conquistar
democraticamente o voto do eleitor, mas, por outro lado, também era permeada por
304 CÂMARA MUNICIPAL DE CANOAS. Ata 491. 04/10/1955. Arquivo Câmara Municipal de Canoas [ACMC].
305 CÂMARA MUNICIPAL DE CANOAS. Ata n.º 859. 16/11/1959 [ACMC].
306 CÂMARA MUNICIPAL DE CANOAS. Ata n.º 84/63. 18/11/1963 [ACMC].
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As eleições de 1945 foram regradas por decreto assinado por Getúlio Vargas e
chamado de Lei Agamenon, em homenagem ao ministro da Justiça Agamenon Magalhães
– responsável pela elaboração do decreto. Em 1950 seria aprovada a lei n. 1.164,
instituindo novo Código Eleitoral – que seria vigente até 1965. Conforme Luciana Ghiggi
(2014), que analisou a legislação eleitoral do período 1945-1964, a lei eleitoral de 1945
favoreceu o continuísmo varguista, mas a experiência democrática pode ser considerada
bem sucedida do ponto de vista do sistema eleitoral – especialmente a partir do Código
Eleitoral de 1950. Conforme a autora, a legislação eleitoral buscou tornar o sistema
político-partidário mais justo, representativo e independente (GHIGGI, 2014, p. 35).
Quanto às infrações e crimes eleitorais, a Lei Agamenon previa a coação e a fraude
como motivos pelos quais a votação poderia ser anulada. Além disso, o item intitulado Das
Garantias Eleitorais estabelecia que a propaganda eleitoral (por meio de comícios,
radiodifusão ou reuniões públicos) deveria cessar 48 horas antes do pleito. O item onde o
tema aparecia diretamente era intitulado Disposições Penais, cabendo ao artigo 123
definir as infrações. No quadro abaixo, foram listadas as infrações relacionadas às
campanhas eleitorais:
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cargo de prefeito. A partir disso, o interventor federal gaúcho “encaminhou à maioria dos
prefeitos um telegrama solicitando o seu afastamento e determinando que os juízes de
direito assumissem as prefeituras” (OLIVEIRA, 2008, p. 49). Para destacar o peso da
máquina pública municipal, sistematizamos os dados coletados pela autora, na
correspondência dos governantes sob a guarda do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
e também no jornal Diário de Notícias, no gráfico a seguir:
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Sobre as eleições de 1947, Lisandre Oliveira (2008, p. 174) chega a dizer que o
elemento decisivo na campanha eleitoral de Walter Jobim, vencedor do pleito, foi o uso da
máquina pública municipal. A autora destaca que as medidas legais relativas aos prefeitos
que seriam candidatos foram tomadas apenas em novembro de 1946, com alguns
prefeitos sendo afastados de seus cargos mas sendo substituídos, em muitos casos, por
pessedistas (OLIVEIRA, 2008, p. 174). Assim, daremos atenção às denúncias que foram
encaminhadas ao interventor Cylon Rosa (PSD) na campanha eleitoral visando às eleições
de janeiro de 1947 e às encaminhadas ao governador Walter Jobim (PSD) durante a
campanha eleitoral de 1950.
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localizar os telegramas enviados ao interventor Cylon Rosa em janeiro de 1947, razão pela
qual contamos com fontes somente dos meses de outubro, novembro e dezembro de
1946. Foram localizados também telegramas enviados ao governador Walter Jobim de
julho a outubro de 1950, correspondendo ao período da campanha visando às eleições de
03 de outubro daquele ano. Assim, contamos com 28 denúncias de 1946 e 17 de 1950,
sendo o seguinte panorama:
Outros 3
Ameaças e coerção 6
Outros 2
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têm explicações distintas. Primeiro, é preciso notar que em 1947 os prefeitos ainda eram
nomeados pelo interventor federal e, portanto, as prefeituras estavam nas mãos do PSD.
As eleições municipais ocorreriam em 15 de novembro de 1947. Assim, em 1950, os
prefeitos municipais já eram eleitos. Embora o PSD tenha sido vencedor na maioria dos
municípios, já não possuía a totalidade devido a vitórias do PL, UDN e PTB. Oliveira (2008)
identificou 81 municípios onde o PSD concorreu nas eleições municipais de 1947. Nestes,
obteve vitória concorrendo sozinho em 38 (47%), foi vitorioso coligado com outros
partidos em 13 (16%) e derrotado em 30 (37%) (OLIVEIRA, 2008, p. 182-194). Isso
também explica que as denúncias de impedimento da propaganda por autoridades
apareça em 1946 mas não em 1950.
Quanto às denúncias de participação de delegados na campanha eleitoral de 1950,
que não constam nos telegramas de 1946, é preciso salientar que o artigo 235 da
Constituição Estadual de 1947 passa a vedar às autoridades e funcionários policiais o
exercício de atividade político-partidárias. A definição da prática como ilegalidade pode
explicar seu aparecimento com destaque entre as denúncias de 1950, visto que mesmo
nos dados coletados por Lisandre Oliveira (2008) sobre 1945, a participação de delegados
de polícia na campanha eleitoral é bem menos recorrente do que a de prefeitos e juízes.
Quanto ao número de denúncias encontradas, uma explicação possível diz respeito à
identificação partidária de quem as subscrevia:
UDN 7
0
PL 6
2
PTB 5
12
PCB 4
0
ED 1
0
Diversos 3
1
Sem partido 2
2
1946 1950
Em 1946, temos uma divisão mais equânime da origem partidária das denúncias
entre a UDN, o PL, o PTB e o PCB. É preciso destacar a ausência de denúncias advindas de
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partidários do PSD, partido governista: o PSD e as autoridades locais ligadas a ele são
geralmente os alvos das denúncias. Já em 1950, há o predomínio de petebistas como
denunciantes, seguido de longe pelos libertadores do PL. O PCB, já na ilegalidade,
desparece dessas fontes. Já a UDN, em 1950, estava coligada com o PSD, não sendo
encontradas denúncias cujos signatários fossem udenistas. Assim, dois fatores ligados a
tal divisão podem explicar a diminuição numérica das denúncias em 1950: a coligação da
UDN (responsável por 25% das denúncias de 1946) com o PSD e o PCB (responsável por
14% das denúncias em 1946) na ilegalidade. O acirramento da oposição entre PTB e PSD,
com maior estruturação do primeiro, podem explicar o aumento das denúncias
provenientes de petebistas307.
Em termos qualitativos, a descrição de algumas destas denúncias nos ajuda na
compreensão destas práticas e de seu papel na competição política (mesmo que definidas
como infrações pela legislação). Devido ao espaço reduzido do texto, destacamos apenas
algumas.
No que diz respeito a formas diversas de impedimento das campanhas
oposicionistas, denúncia recorrente nos telegramas de 1946, destacamos dois casos. Em
16 de novembro, o presidente estadual do PTB, José Vécchio, encaminhou denúncia ao
interventor acerca da prisão do trabalhista José Fernandes Sá, em Taquari, no “momento
[em que] afixava [em] via pública propaganda deste partido”308. Em telegrama de 10 de
dezembro, Vécchio faria outras duas denúncias: uma, relativa ao subdelegado e
subprefeito do 6º distrito de Porto Alegre que estaria ameaçando “eleitorado que se filia
[a] partidos independentes”; outra, dizia respeito ao prefeito de Quaraí, que estaria
tomando parte nos comícios buscando “cercear propaganda [em] alto-falantes [do] nosso
diretório só permitindo irradiações em hora e dia por ele marcados”309. Membro do
Comitê Estadual do PCB fez denúncia semelhante contra o delegado também de Quaraí:
“Companheiros nossos [de] Quaraí foram impedidos [pelo] respectivo delegado [de]
realizarem reunião interna [da] direção legal sob alegação [de] determinação superior
exigindo solicitação prévia [de] autorização”310.
307 As informações sobre as eleições, coligações e a dinâmica político-partidária do período tem como
referência o estudo de CÁNEPA (2005).
308 Telegrama de José Vécchio ao interventor Cylon Rosa. 16/11/1946. [AHRS].
309 Telegrama de José Vécchio ao interventor Cylon Rosa. 10/12/1946. [AHRS].
310 Telegrama de Sérgio Holmos ao interventor Cylon Rosa. 10/12/1946. [AHRS].
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No que se refere a categoria mais comum nas denúncias de 1946, uso da máquina
pública para a campanha eleitoral, destacamos alguns exemplos. Dirigentes do Partido
Libertador em Rio Grande encaminharam denúncia contra o prefeito: “Faz trafegar auto
caminhão municipal somente [para] campanha política cessando por completo [os]
serviços [nas] estradas”311. De Soledade, chegava a denúncia: “O subprefeito da cidade [...]
fundos centro qualificação eleitoral subscreve boletins [de] propaganda e percorre
interior do município em ostensiva campanha política acompanhado [pelo] Dr. Promotor
Público e professoras”312. De forma geral, este tipo de denúncia girava em torno do uso de
automóveis das prefeituras nas campanhas e do fato de autoridades municipais estarem
percorrendo os municípios em campanha – em detrimento dos serviços e dos cofres
públicos.
As denúncias de ameaças e coerção aparecem tanto em 1946 quanto em 1950.
Como exemplo, podemos citar o caso de Ijuí: o presidente local da UDN denunciava que o
delegado havia instruído inspetores de polícia a intervirem na eleição, “coagindo assim os
colonos, elementos acanhados para reagirem [devido ao] receio de perseguições” 313.
Semelhante à denúncia com relação ao prefeito de Bento Gonçalves: “Prega necessidade
[de] todos votarem [no] PSD impressionando elementos [da] colônia tal sentido chegando
avançar determinada estrada não seria melhorada caso moradores não acompanhassem
[o] PSD”314. O tema das ameaças aos “colonos” reaparece em 1950. João Goulart, como
presidente do PTB, encaminharia denúncia contra o subprefeito de Cerro Branco
(Cachoeira do Sul): “Anda de casa em casa [em] seu distrito entregando títulos e fazendo
propaganda e pressão [nos] colonos”315. Já o presidente municipal do PTB em Iraí
denunciava: “Verificam-se violências contra trabalhistas [no] interior [do] município.
Para quem se pronunciar trabalhista ou getulista. Promessa e relho. Foi violentamente
espancado um companheiro de Saltinho”316.
*****
311 Telegrama de Alfredo Allan e Antonio Pereira ao interventor Cylon Rosa. 23/11/1946. [AHRS].
312 Telegrama de Ruy Vilasboas ao interventor Cylon Rosa. 20/11/1946. [AHRS].
313 Telegrama de José Frederico ao interventor Cylon Rosa. 19/12/1946. [AHRS].
314 Telegrama de Achylles Mincarone ao interventor Cylon Rosa. 19/12/1946. [AHRS].
315 Telegrama de João Goulart ao governador Walter Jobim. 18/09/1950. [AHRS].
316 Telegrama de Vergílio Radaelli ao governador Walter Jobim. 19/09/1950. [AHRS].
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Referências bibliográficas:
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OLIVEIRA, Lisandre Medianeira. O PSD no Rio Grande do Sul: o diretório mais dissidente
do país nas “páginas” do Diário de Notícias. Tese [Doutorado em História]. Porto Alegre:
PUCRS, 2008.
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Introdução
A formação dos partidos políticos no Rio Grande do Sul317 pode ser entendida por
meio da identificação das bases de sua economia e sua origem sócio-política. Além disso,
é imprescindível compreender a sua relação intrínseca à dinâmica nacional, ou seja, na
sua condição de Estado membro de uma Federação. Portanto, identifica-se o processo
histórico estadual pela inserção no sistema econômico brasileiro.
A estruturação e a dinâmica da economia sul-rio-grandense baseavam-se
principalmente na produção agropecuária, sendo constituída por três zonas
diferenciadas: zona rural da pecuária, zona rural da pequena produção e zona rural
Doutorando do programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
PROSUC/CAPES. Mestre em História Regional pela Universidade de Passo Fundo. Professor de Ensino
Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal Farroupilha – Campus Frederico Westphalen. Contato: <
mjasturian05@hotmail.com>
317 Entendemos que a formação inicial do sistema partidário – no Rio Grande do Sul – estende-se de 1945 a
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caracterizada pelas explorações em grande escala de arroz, trigo e gado (MÜLLER, 1979,
p. 365). Já, o desenvolvimento industrial era caracterizado em uma relação de
dependência do setor primário local e se apresentava disperso em pequenas unidades
produtivas. Enfim, o panorama econômico estadual era dependente dos mercados
externos, sobretudo do mercado nacional. 318
Assim, o panorama econômico-social do Rio Grande do Sul fez com que os grupos
políticos buscassem medidas concernentes à dinamização da economia local. A situação
318“[...] dependência do mercado externo, para o qual se destinam 60% da produção de bens, somados os
setores primário e secundário, sendo importante lembrar que 80% dessas exportações dirigem-se ao
mercado nacional” (CÁNEPA, 2005, p. 76).
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de dependência passou a exigir profundas mudanças, o que vai coincidir com a formação
dos partidos políticos em âmbito nacional e repercutir diretamente no caráter político-
partidário do Estado (CÁNEPA, 2005, p. 77).
Conforme Serge Berstein (1996), os partidos políticos nascem somente quando a
sociedade atinge um determinado estágio de desenvolvimento, ou seja, quando congrega
algumas condições de modernidade, tais como: a existência de uma especialização
profissional, a constituição de um conjunto nacional e de uma consciência nacional pela
expansão do mercado interno, o progresso dos meios de informação e, acima de tudo, a
mobilidade espacial e social.
Além disso, no interior do respectivo desenvolvimento, é necessário que ocorra
uma crise, uma ruptura para justificar a emergência de um partido. Logo, um partido
surge como a solução para problemas: no espaço entre um problema e um discurso é que
se situa a mediação política (BERSTEIN, 1996, p. 67-68).
Serge Berstein (1996, p 62-63), pautado nos cientistas políticos americanos,
estabelece critérios que permitem definir os partidos políticos:
[...] a duração no tempo, que garante ao partido uma existência mais longa
que a vida de seus fundadores, e implica que ele responda a uma tendência
profunda da opinião pública. Restaria tentar definir exatamente essa
duração mínima [...] tal definição exclui de fato as clientelas, as facções, os
partidos ligados unicamente a um homem; - a extensão no espaço, que
supõe uma organização hierarquizada e uma rede permanente de relações
entre uma direção nacional e estruturas locais, abrangendo uma parte da
população. Este segundo critério exclui do campo dos partidos os grupos
parlamentares sem seguidores no país e as associações locais sem visão de
conjunto da nação; - a aspiração ao exercício do poder, que necessita de um
projeto global que possa convir à nação em seu conjunto, e que, por isso,
implica a consideração de arbitragens necessárias aos interesses
contraditórios que aí se manifestam. Esta característica, função direta da
mediação política de que falamos acima, exclui os grupos de pressão
representativos de uma categoria definida, como os grupúsculos restritos
à defesa intransigente de uma ideologia, mesmo quando traduzem o nome
de “partidos”; - enfim, a vontade de buscar a apoio da população, seja
recrutando militantes, seja atraindo o voto dos eleitores, condição
indispensável para a realização do objetivo anterior.
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rompeu com a velha tradição brasileira de estruturação partidária regional que durante
anos beneficiou as oligarquias estaduais.
Concernente aos partidos políticos é necessário analisar as composições sociais
que eles representam. Existe uma ponderação que eleva a representação de certas
categorias socioprofissionais em função da imagem que o partido passa de si mesmo, de
dados culturais e de interesses sociais. Não obstante, é notório que os partidos também
são interclassistas em sua composição. E, mesmo que uma categoria seja representada
majoritariamente entre o eleitorado, ainda é essencial, para um partido que almeja o
poder, conciliar interesses diversos, ou seja, de outras composições sociais (BERSTEIN,
1996, p. 76-77).
O PTB, por exemplo, apresentou uma proposta mais diretamente dirigida à classe
trabalhadora, sobretudo urbana, apontando para a articulação de um partido de massas
com bases sindicais. Contudo, a aspiração ao exercício do poder, que passa por um projeto
global, fez com que o partido tivesse propostas para outros segmentos sociais, como o
pequeno produtor rural, o profissional liberal, etc.
Para Mercedes Cánepa (2005, p. 66), no Rio Grande do Sul,
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Cylon Rosa, Oscar Fontoura, Osvaldo Vergara e José Coelho de Souza. A comissão
pessedista congregou, em sua composição, a confluência de três diferentes origens
partidária anteriores ao Estado Novo. “José Diogo e Osvaldo Vergara, provêm do Partido
Republicano Rio-Grandense. Protásio Vargas, José Coelho de Souza e Cylon Rosa
pertenciam à dissidência de abril de 1937 do Partido Republicano Liberal. Jobim e Oscar
Fontoura provieram do Partido Libertador” (ALBERNAZ, 2006, p. 108).
No Rio Grande do Sul, um mês após ter sido formada a comissão diretora estadual
pessedista, o partido já contava com aproximadamente dez diretórios municipais
distribuídos por diversas zonas do estado. O PSD tornava-se o partido com maior
organização no período. Em julho, o PSD realizou, em Porto Alegre, a primeira convenção
estadual do partido, onde lançou, oficialmente, a candidatura do general Eurico Gaspar
Dutra à Presidência da República e de Walter Jobim para o governo estadual.
Bodea (1992, p. 19), assim analisa as implicações da convenção estadual do PSD:
Considerações Finais
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no cenário estadual, pode ser entendida por meio da identificação das bases de sua
economia e sua origem sócio-política.
No Rio Grande do Sul, sobre a reorganização dos partidos políticos, observam-se,
de um lado, as especificidades regionais e, de outro lado, a sua relação intrínseca à
dinâmica nacional, isto é, o processo histórico estadual pela inserção no sistema
econômico brasileiro. O Partido Social Democrático (PSD) – fundado em 1945 – surgiu no
cenário sul-rio-grandense sob a liderança dos interventores, congregando prefeitos,
membros da administração estadual e outras forças que apoiavam o governo
estadonovista: como proprietários rurais, industriais, comerciantes, funcionários
públicos e outros.
Referências bibliográficas:
BERSTEIN, Serge. Os Partidos. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
BODEA, Miguel. Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ediufrgs,
1992.
CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros: discurso e práxis dos seus programas.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. História e Teoria dos Partidos Políticos no Brasil. São
Pulo: Omega, 1974.
MÜLLER, Geraldo. A Economia Política Gaúcha dos Anos 30 aos 60. In: DACANAL, J. H;
GONZAGA, S. (Org.). RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 365.
OLIVEIRA, Lisandre Medianeira. O PSD no Rio Grande do Sul: o diretório mais dissidente do
país nas páginas do Diário de Notícias. Programa de Pós-Graduação em História. PUCRS
(Tese). Porto Alegre, 2008.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1990.
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Considerações iniciais
Na segunda parte do livro O Parlamento em Tempos Interessantes (2005), obra
organizada por Flávio Heinz, é realizada uma pesquisa de caráter prosopográfico que tem
como recorte de análise os deputados estaduais da Assembleia Legislativa do Rio Grande
do Sul. O espaço temporal do trabalho assinalado é definido pela reabertura das
assembleias legislativas em 1947 até o ano de 1982. Uma das informações relevantes
sobre o perfil da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul que a pesquisa nos
apresenta é a hipótese de que a partir da Constituinte Estadual de 1947, aquele grupo de
políticos eleitos naquele pleito encerrariam as suas vidas no parlamento estadual e
dariam lugar para uma nova geração (HEINZ, 2005). O Partido Social Democrático (PSD),
por exemplo, reelegeu apenas um deputado estadual para a legislatura de 1951, a saber,
o montenegrino Jacinto Marinho Fernandes da Rosa (AITA, AXT e ARAUJO, 1996).
Neste trabalho temos por objetivo apresentar um levantamento dos dados
eleitorais relativo aos candidatos do PSD às cadeiras da segunda legislatura da Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul durante a experiência democrática319, focando em fatores
específicos que serão elencados posteriormente. Antes, porém, faz-se necessário
esclarecer algumas questões: Em primeiro lugar, o presente trabalho não tem a pretensão
de “inventar a roda”, antes faz parte de um projeto maior de mestrado em que serão
estudados os deputados estaduais do PSD – dentro e fora da Assembleia Legislativa do
Rio Grande do Sul – durante as duas primeiras legislaturas pós estado-novo (1947-1951
e 1951-1955). Nesse sentido, apenas iremos apresentar dados não contemplados pelas
pesquisas publicadas pelo Memorial da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul
Mestrando do programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
CAPES/PROSUP. Contato: < tiagodekieffer@gmail.com>
319 Eleição realizada em 03 de outubro de 1950. Legislatura iniciada em março de 1951 e finalizada em
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(HEINZ, 2005; PESAVENTO, 1992; SOARES e ERPEN, 2013; DUARTE, 2003; TRINDADE e
NOLL, 2005) ou pelos já consagrados trabalhos na historiografia sobre o período (BODEA,
1992; CÁNEPA, 2005; CORTÉS, 2007; NOLL e TRINDADE, 2004)320.
Em segundo lugar, os dados aqui apresentados foram produzidos pelo Núcleo de
Pesquisa e Documentação da Política Rio-grandense (NUPERGS) e para nossa pesquisa
foram organizados e divididos pelas juntas eleitorais com a finalidade de perceber
números específicos relacionados ao PSD nas diferentes regiões do estado. Portanto, esse
trabalho será divido em 5 pequenas partes: 1) uma breve explicação sobre o quociente
eleitoral e mecanismos das sobras, para que se entenda o porquê de um deputado com
determinados número de votos seja eleito em um partido e em outro não; 2) número de
votos por candidato, tendo sido eleito ou não; 3) influência nos municípios; 4)
porcentagem em relação ao público votante no período 5) porcentagem em relação aos
outros partidos. Necessário lembrar que pela estrutura deste trabalho não será possível
apresentar todos os dados coletados, mas os principais deles, fazendo com que o mesmo
seja menos uma amostra de resultados do que uma demonstração de um caminho de
pesquisa.
320Há uma emergência sobre a necessidade de trabalhos que foquem especificamente o PSD no Rio Grande
do Sul. Grande parte do que se produziu teve como foco de análise o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
com destaque para o trabalho de Miguel Bodea (1992). Por causa dessa lacuna, não podemos deixar de citar
a pesquisa de Lisandre Medianeira de Oliveira (2008) que realiza uma reflexão sobre a relação do jornal
Diário de Notícias do grupo de Assis Chateaubriand com o PSD.
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321 O nome da lei deriva de seu redator, o ministro da justiça Agamenon Magalhães. Entre outras coisas, a
lei eleitoral previa sobre o eleitorado, criação de partidos políticos e a criação de uma justiça eleitoral
(ANGELI, 2015).
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322 Em relação aos dados eleitorais coletados no banco do NUPERGS, temos que ter o cuidado de analisarmos
separadamente as juntas eleitorais, haja vista que as informações sobre o PSD, por exemplo, estão
duplamente inseridas, logo o resultado de 211.424 votos no estado para a assembleia legislativa aparece na
plataforma como 422.848 votos. Ora, se não houvesse o cuidado de dividir esse resultado por 2, obtendo o
número correto, a lei do quociente eleitoral e quociente partidário não faria sentido, haja vista que o PSD
assumiria com o maior número de votos, mas não o maior número de cadeiras. Em relação aos candidatos
com votos válidos, a UDN inscreveu 53; o PTB (73), o PSP (61), o PSD (75), o PSB (26), o PRP (43), o PR (27)
e o PL (58) (NUPERGS, UFRGS, 2017).
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Essa lógica de maioria de votos nos municípios de atuação política se revela uma
lógica nas eleições para o parlamento gaúcho desse período: a problemática que se abre
é se essa influência revela práticas de mobilização eleitoral ou de utilização da máquina
pública em campanhas eleitorais anteriores, a partir da formação de uma elite durante o
Estado Novo. Essa hipótese é possível a partir da tese de doutorado defendida por Sandra
Maria do Amaral em O Teatro do Poder (2005). Nessa pesquisa de caráter prosopográfico,
Amaral (2005) identifica permanências das elites políticas durante o Estado Novo e
posteriormente na experiência democrática iniciada em 1945. Outra questão interessante
a ressaltar é que essas personagens citadas foram, salvo exceções que foram eleitos
democraticamente, prefeitos nas suas cidades de origem a partir de nomeações pelos
interventores do Estado nomeados por Vargas durantes o Estado Novo, indo ao encontro
da formação original do PSD, informação já consolidada pela historiografia sobre o tema
(OLIVEIRA, 2008). O que não é discutível, porém, é que foram eleitos para a segunda
legislatura, ou pelo menos concorreram, a partir do voto democrático permitido a partir
da Lei Agamenon em 1945.
Mais problemático ainda é pensar questões relacionadas com zonas de influência
eleitoral. Se somarmos a população votante nesse período, temos um total de 716.936
eleitores que foram às urnas, com um total de 95,75 % desse total de votos válidos. Se a
comparação for feita a partir do número de votos válidos para cada partido, Porto
Alegre323 tem um total de 12.437 votos, o que representa 12.50 % dos votos válidos na
cidade e 5,88 % dos votos totais do PSD no estado (NUPERGS, 2017). Sem dúvida
nenhuma, as zonas eleitorais relativas à capital são vencedoras em número de votos, mas
também são vencedoras em número de votantes, o que explica o porquê do resultado. Em
Antônio Pardo, por exemplo, o PSD fez apenas 1.308 votos, mas em números percentuais
um total de 47,84 % dos votos válidos, haja vista que o município tinha 2.734 votantes. A
análise fica mais complexa quando se constata que 1.249 votos foram realizados por
apenas um candidato, isto é, Luiz Marcantonio Grezanna, representando 45,68% totais e
95,48 do PSD (NUPERGS, 2017). Por sua vez, em Porto Alegre o candidato mais votado foi
Walter Peracchi Barcellos com 2.561 votos. Diferentemente da região de Antônio Prado,
323 Naanálise sobre Porto Alegre foi ignorada a junta conjunta de Porto Alegre, Canoas e Gravataí, o que não
comprometeu na análise, haja vista que se fossem somados os votos nessa junta o candidato Walter Peracchi
Barcellos continuaria como o mais votado.
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não houve uma maioria de votos muito grande em relação aos outros candidatos, haja
vista que 9 deles garantiram mais de 500 votos em Porto Alegre: Alfredo Augusto Barros
Hofmeister (1062); Antonio Cesar Alves (509); Candido Diderot Machado Carrion (531);
Eloi José da Rocha (551); Helio Carlomagno (713); Luiz Maluf (630); Mario Ignacio
Fernandes (978); Nicomedes de Freitas Beccoh (709) (NUPERGS, 2017). A partir desses
dados apresentados surge a questão que poderá ser respondida em futuras análises: é o
partido que é influente nos munícipios ou é o candidato?
Resultados eleitorais
Após a eleição de 03 de outubro de 1950 a bancada do PSD na Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul ficou assim organizada por ordem alfabética: Aldo Angelo
Arioli (5.165 votos, 89,50% na junta eleitoral de Erechim e Marcelino Ramos); Ariosto
Jaeger (4.255 votos, 3.483 na junta de Santa Rosa); Helio Carlomagno (5.540 votos, 24.89
% na junta de Cruz Alta); Jacinto Marinho Fernandes da Rosa (4.135 votos, 79,51% na
junta de Montenegro); João Batista Marchese (4.243 votos, 86,80% na junta de Estrela e
Encantado); José Marques da Rocha (5.026 votos, 37,88% na junta de Santa Maria e São
Pedro do Sul); Leodegario Adail de Moraes (4.730 votos, 18.78% na junta de Camaquã e
Tapes), Liberato Salzano Vieira da Cunha (6.328 votos, 77,46% na junta de Cachoeira do
Sul), Maryo Lampert (4.769 votos, 91,61% em Lajeado e Arroio do Meio); Miguel de Castro
Moreira (4.169 votos, 59.69% na junta de Rio Grande e São José do Norte) , Odalgiro
Gomes Corrêa (5.384 votos, 77,74% na junta de Passo Fundo e Getúlio Vargas), Pio Muller
da Fontoura (4.587 votos, 84,82% na junta de Santo Ângelo), Pompílio Gomes Sobrinho
(6.796, 97,95% na junta de Palmeira das Missões, Iraí e Três Passos); Porcínio Gomes
Sobrinho (4.413 votos, 84.82 na junta de Vacaria e Aparatos da Serra), Procopio Duval
Gomes de Freitas (5.185 votos, 56,10% na junta de Pelotas e São Lourenço do Sul), Romeu
Roese Scheibe (5.056 votos, 82,95% na junta de Carazinho e Sarandi) e Walter Peracchi
Barcellos (6.407 votos, 39,97 % na junta de Porto Alegre). Os suplentes foram Ernesto
Protásio Wunderlich (3.907 votos, 53,57% na junta de Rio Pardo); Flavio Mena Barreto
Matos (4.111 votos, 30,21% na junta de Livramento) e Lauro Franco Leitão (3.824 votos,
46,63% na junta de Palmeira das Missões, Iraí e Três Passos) (NUPERGS, 2017).
Nesse primeiro momento não podemos afirmar se nessa eleição houve casos de
mudança de partidos na hora de inscrição. Conforme Lucia Hippolito (2012) ao se referir
ao Congresso Nacional, a legislação eleitoral permitia que um candidato se elegesse por
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de Lisboa aos nossos dias (1821-1996). Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul, 1996.
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CORTÉS, Carlos E. Política Gaúcha: 1930 -1964. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.
NOLL, Maria Izabel. TRINDADE, Hélgio (Org.). Estatísticas Eleitorais do Rio Grande da
América do Sul: 1823/2002. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Assembleia Legislativa do
Estado do Rio Grande do Sul, 2004.
SOUZA, Maria do Carmo C. Campello. Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930 a 1964).
São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1983.
TRINDADE, Hélgio. NOLL, Maria Izabel (Org.). Subsídios para a história do Parlamento
Gaúcho (1890-1937). Porto Alegre: CORAG, 2005.
Fontes
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Considerações Iniciais
O ano de 1964 foi derradeiro para a polarização vivida no Brasil: O presidente da
República João Goulart, para superar o isolamento324 que se encontrava acabou optando
por aproximar-se da FMP e das demandas da esquerda nacional-reformista aglutinada
naquela frente. Por outro lado, os seus adversários políticos, tanto civis como militares,
viram tal movimentação como prova definitiva das intenções “comunistas” do presidente.
A radicalização ficava ainda mais patente.
Como Fico (2014) afirmou, já não estava mais em andamento uma campanha de
desestabilização do governo, mas sim, de articulação de uma conspiração contra Goulart
e o trabalhismo325. Como se encerraria esse processo? As respostas viriam no mês de
março daquele mesmo ano, quando ficou clara as estratégias dos dois lados do campo
político daquele momento.
Canoas, uma cidade em pleno processo de industrialização naquele período e com
uma presença trabalhista marcante326, mudou de administração em 1964, assumindo a
prefeitura um político do PSD, Hugo Lagranha, que demonstrou ser parte da engrenagem
que articulava a queda do governo federal. Por outro lado, o PTB, antes governo naquele
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: < a.vtorres@hotmail.com>
324 De acordo com Ferreira (2011), Goulart isolou-se devido sua tentativa de aprovar as reformas de base
pela via institucional, ou seja, aliando-se a partidos de centro e com projetos moderados. Grupos de direita
não aceitavam alterações que ferissem benefícios e privilégios, enquanto as esquerdas julgavam que
Goulart deveria abandonar a luta institucional e colocaras reformas na prática de forma mais radical.
Goulart precisou tomar uma posição e essa foi ao lado das esquerdas nacional-reformistas.
325 Segundo Fico (2014), a desestabilização ocorreu entre 1961 e 1963 e visava enfraquecer Goulart e o PTB
para o pleito de 1965. O processo de desestabilização teve o protagonismo de setores da sociedade civil
anti-trabalhistas como os empresários, muitos vinculados aos institutos do complexo IPES/IBAD. A
conspiração tornou-se mais efetiva a partir de meados de 1963 e contou com a atuação de setores civis, mas
também militares, e tinha como alvo a derrubada do governo Goulart.
326 Sobre Canoas entre os anos 1940 e 1960 no campo político e social, ver Angeli (2015), Viegas (2011) e
Torres (2016).
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município e que naquele momento passava a ser oposição local, dividiu-se entre apontar
as ações antidemocráticas de Lagranha - aquilo que ele nomeou como sua "pequena
revolução" - e defender Goulart, tomando posição frente aos eventos que acabaram
culminando com o golpe de Estado civil-militar contra o presidente da República e o
governo trabalhista. Tais situações serão vistas nesse artigo.
O Ano de 1963 findou em Canoas com a posse do novo prefeito municipal, Hugo
Simões Lagranha (PSD), e da nova legislatura da Câmara Municipal no último dia do ano.
Conforme já visto, o PTB local havia saído fragilizado do pleito do ano anterior: além da
derrota com uma diferença significativa de votos, os vereadores que assumiriam, a partir
daquele instante, o papel de oposição eram minoria na Casa. Enquanto o prefeito eleito
tinha 8 vereadores aliados (PSD, PL e PDC elegera dois vereadores, enquanto PRP e MTR,
um cada) na Câmara, os petebistas teriam 5 legisladores.
Somando-se a tal situação, o novo administrador não escondia o seu lado no jogo
político vivido no país naquela conjuntura. Lagranha era um ferrenho antitrabalhista,
ainda que buscasse construir uma imagem de apartidarismo, ou, dito de outra forma, de
interessado apenas em cuidar da cidade e da sua população, conforme lembra Angeli
(2015). Mas Lagranha tinha vínculos políticos estreitos com a cúpula estadual do seu
partido: basta lembrar que, ao longo do ano de 1963, havia sido assessor do governador
Ildo Meneghetti.
Todavia, a representação para os eleitores e a população como um todo da cidade
era a de que havia chegado à prefeitura um administrador. Assim era afirmado por aliados
como o vereador Dinarte Araújo, ao comemorar a vitória do pessedista:
(...) de imediato concedeu a palavra ao Vereador Dinarte Andrade Araújo
—Salientou (...) que a vitória dêstes dois homens públicos (Hugo
Lagranha e o seu vice, Jacob Longoni), não foram estritamente suas, mas
sim, a vitória da própria população de Canoas. (...) ponderou o Vereador
Dinarte Araújo que o povo já aprendeu a escolher os seus candidatos, e
que não mais adianta a demagogia. (...). Finalizando, declarou (...) que
podem todos ficarem certos de que a partir de 1° de janeiro de 1.964, tudo
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Na luta política daquele momento, havia uma disputa em torno do que era ser
patriota: para as esquerdas, era fazer as reformas e alterar a estrutura socioeconômica
nacional. Para as direitas, era a manutenção da ordem e o combate aos "comunistas",
colocando no mesmo patamar grupos tão diversos politicamente como os comunistas e
os trabalhistas. Nessa disputa, Lagranha mostrava sem maiores receios a sua posição.
Para ele, a radicalização política nacional era responsabilidade do impatriotismo dos
grupos políticos reformistas. Era o que estava levando ao descontrole do país e que atingia
até mesmo Canoas. Cabia, para bem administrar a cidade, combater as "orgias e delírios
dos audaciosos", assim vistos por Lagranha os grupos políticos nacional-reformistas.
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Após insistir que lutaria por uma cidade com menos dissabores e orgulhosamente
servir ao povo canoense, Lagranha voltava sua carga aos seus opositores, tanto na esfera
nacional, como na local:
O Brasil, assim como esta cidade, está repleto de salvadores, de messias que
na realidade, apenas, querem é satisfazer seus egocentrismos, galgar
posições avantajadas; não creiam nessa espécie perigosa, não irão além do
que são, não tem essência, são vazios e oportunistas. (...) A inquietude da
época propicia alardes mirabolantes, não tentemos experiências, poderão
trazer duras penas, o desvelo demonstrará, em última análise, defesa e
amor à pátria.329
garantir no poder e conclamava, assim, as forças de oposição a reagir com armas (FIGUEIREDO, 1993).
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declarações teriam sido feitas em uma visita do administrador de Viamão a uma fábrica de Canoas.
335 CÂMARA DE VEREADORES DE CANOAS. Ata 12/64, Canoas, 02/03/1964. (grifos meus).
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simpatia pelos trabalhistas e possivelmente agiu para exonerar quem tivesse relação com
eles:
(...) vamos falar no Lagranha que eu conheci mais, o Lagranha era contra
o PTB. (...). É possível, é possível porque o Lagranha, ele era uma pessoa
honesta, mas muito dura, durão, e político. Quem não é a meu favor, é
contra mim. Então é possível que ele tenha exonerado muita gente por
pertencer ao partido.336
Um dos funcionários exonerados por Lagranha era Nilton Leal Maria. Maria fora,
posteriormente, vereador na cidade em duas legislaturas, entre 1973 e 1982, sempre
eleito pelo MDB. Antes, segundo seu relato a Ranincheski (1998), militou pelo PTB,
fundando a Ala Moça do partido na Vila Niterói. Segundo ele, esse foi o seu melhor
momento político na vida: "A melhor parte da minha vida foi quando não tinha cargo
eletivo, quando não era vereador. Eu fazia política de base, fazia política nas casas, nos
clubes, no colégio." (RANINCHESKI, 1998, p.123).
De acordo com Maria, Lagranha já havia chegado na sede da prefeitura ao lado do
seu antecessor, o Cel. Medeiros, em 31 de dezembro de 1963, dia da posse, disposto a não
manter funcionários trabalhistas:
Maria também relatou que a alegação do prefeito para a sua exoneração era uma
foto de Brizola que tinha na gaveta de sua sala na sede da administração municipal:
SOUZA, Luís Pereira de. Depoimento (setembro/2012). Entrevistador: Anderson V. Torres. Canoas: (s.l.),
336
2012.
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E ele disse: Mas agora quem manda é a revolução, agora tu vai embora
bem quietinho. (RANINCHESKI, 1998, p. 123-124).
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Com relação a Maria, sua exoneração foi confirmada em 1966 por razões
políticas,338 e teve sua atuação investigada pela Comissão de Investigação do Estado em
1969.339 Alegava-se que havia militado no PCB e que poderia ser "subversivo". Reaparecia
nesses documentos a associação entre as esquerdas e o comunismo.
Um episódio ocorrido em Canoas nos fins de fevereiro de 1964 demonstrou o
quanto Lagranha estava vinculado a um pensamento político mais conservador,
identificado, por tanto, com os grupos antirreformistas na luta política daquele momento.
O caso de um grupo sem-terra de Canoas que se dirigia a uma cidade, pois haviam
prometido a eles um pedaço de terra. O trajeto dos camponeses foi interrompido em
Canoas pela ação da polícia e do DOPS, conforme noticiou a Última Hora: de acordo com a
matéria do periódico, os agricultores locais teriam sido parados, sob a justificativa de
estarem desrespeitando regras de trânsito. Todavia, a crise levou ao impedimento da
viagem daqueles sem-terra, e ainda tiveram vários líderes camponeses locais sendo
presos pelo DOPS340:
(...) sob o pretexto de que os caminhões trafegavam com pessoas na
carroçaria, policiais do DOPS, que levaram inspetores de trânsito para dar
cobertura à arbitrariedade, impediram, ontem, pela fôrça, que 400
famílias de camponeses de Canoas se transportassem para as terras que
lhes haviam sido doadas pelos herdeiros da sra. Gertrudes Xavier, no
município de Encruzilhada do Sul.
A apreensão dos veículos e a prisão de todos os líderes dos "sem terra" —
dirigentes da Associação dos Camponeses e do Sindicato de Canoas -
ocorreu pela manhã, no pôsto policial da BR-2, onde o DOPS já se
encontrava desde às cinco horas, decisivamente com objetivos outros que
não os de fazer cumprir o Código Nacional de Trânsito.341
338 PREFEITURA MUNICIPAL DE CANOAS. Gabinete do Prefeito. Ofício 87/492/69, Canoas, 19/06/1969.
339 GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria dos Negócios da Administração, Comissão
de Investigações, Porto Alegre, n°. 354, 13/06/1969.
340 Última Hora, Porto Alegre, 20 de fevereiro de 1964, n° 1223, p.7.
341 Última Hora, Porto Alegre, 20 de fevereiro de 1964, n° 1223, p.7.
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visando atingir vereadores que não o apoiavam na Câmara, e que fora enviado ao
governador do Estado naquele momento, Walter Peracchi Barcellos, deixava claro o papel
do gestor canoense naquele evento: a ação foi articulada entre os governos municipal e
estadual. Mais ainda, mostrava que a prefeitura agia vigiando e controlando os seus
opositores trabalhistas, relatava a participação de um vereador do MDB, Alcides
Nascimento — que, em 1963, tentou se reeleger para a Câmara, mas se classificou apenas
como suplente —, e como tentou impedi-lo de auxiliar os camponeses.
Êste cidadão, candidato em 1963, não se elegeu, mas como à época já
havia demonstrado os seus pendores e se manifestado expressamente em
favor de Jango e Brizola (...) entitulou-se também "sem-terra", para ajudar
a tumultuar esta cidade. Com habilidade, conseguimos às 23:00 horas do
dia 21.02.64, levá-lo para o local onde estavam concentrados, por
determinação nossa, os "sem-terra" de Canoas (...), depois de muita luta e
com a reportagem na Fôlha da Tarde de 22.02.64, conseguimos
caracterizar sua presença e classificá-lo de subversivo.342
O prefeito, ao relatar as suas ações naquele momento, mostrava que suas intenções
eram fruto da radicalização: caracterizava Nascimento como adepto de Goulart e Brizola
e, logo, um agitador, alguém que pretendia "tumultuar a cidade". Para inibi-lo, lançou mão
de métodos repressivos, como encaminhá-lo para próximo dos sem-terra e, assim, poder
qualificá-lo como "subversivo". Contudo, a julgar pela memória do prefeito canoense, foi
insuficiente para controlar Nascimento:
342 PREFEITURA MUNICIPAL DE CANOAS. Gabinete do Prefeito, Ofício 87/523/69, Canoas, 26/06/1969.
343 PREFEITURA MUNICIPAL DE CANOAS. Gabinete do Prefeito, Ofício 87/523/69, Canoas, 26/06/1969.
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estivesse vigente desde o inicio dos eventos. De qualquer forma, o suplente da Câmara
seguia desafiando o cerco da prefeitura:
Retornando os "sem terra" ao local de origem (..) o sr. Alcides Nascimento,
coadjuvado e auxiliado pelo sr. João Lopes da Silva (...) conseguiram furar
a nossa vigilância e observações, e, por informes e informações,
soubemos que (...) fizeram com que as famílias que estavam na Rua
Primavera, Vila Rio Branco, se deslocassem para a BR-116 (...) numa
espécie de desacato aos nossos côntroles, reunindo-se defronte a
indústria Forjasul, instalando e transferindo o núcleo subversivo numa
demonstração e mostra para os que lá passassem, vissem o movimento
de protesto dos "sem terra".
Nessa altura dos acontecimentos, só nos restou uma solução, ou seja,
apelar, em 07.03.64, para o DOPS expulsar do local onde se encontravam
os comunistas e agitadores (...).344
O uso da repressão foi, ao fim, o expediente usado pela prefeitura, com o suporte
do governo estadual, ao ceder o DOPS para a ação, para encerrar a crise e afastar os
"agitadores". Lagranha seguia, dessa forma, o modelo de governo do seu correligionário e
ex-chefe durante o ano de 1963, Ildo Meneghetti. Conforme Cánepa (2005, p.394), o
governo de Meneghetti sempre se apresentou como o oposto do governo trabalhista de
Leonel Brizola. Este, administrara o estado interpelando os movimentos sociais,
especialmente agrários, e contava com a mobilização de amplos setores populares. Para
Meneghetti, a forma de governar do antecessor tratava-se de demagogia e descontrole.
Por seu turno, governou o Rio Grande do Sul fazendo uso frequente das forças de
repressão contra movimentos e mobilizações sociais345. Para tal, muitas vezes o governo
estadual contava com os aliados locais para denunciar possíveis movimentações nesse
sentido. Lagranha, dessa forma, agiu de modo condizente com as práticas estabelecidas
em nível estadual. Como o próprio prefeito declarou anos depois, no excerto de sua
entrevista ao jornal Folha da Tarde, havia "encurralado os sem-terra" na cidade e dessa
forma participava da desmobilização daquele movimento social.
O episódio não passou despercebido entre os vereadores canoenses,
especialmente os trabalhistas, muitos deles vinculados ou simpatizantes daqueles grupos
atingidos pela repressão da polícia do estado rio-grandense. Alvarez condenou o uso da
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Considerações Finais
Conforme afirmam autores como Reis (2014), a conspiração348 contra Goulart e,
consequentemente, o golpe que ocorreu em março/abril de 1964, tinham funções
defensivas, de combater qualquer possibilidade de avanço e vitória das forças nacional-
reformistas. Para tal, assim que o golpe se consolidou, os militares e os seus aliados civis
colocaram em prática algo que já ocorria em estados e municípios com administrações
antitrabalhistas, mas que só ganharam legitimidade após o golpe. Tais movimentos, como
vigiar e perseguir adversários políticos, já estavam presentes em Canoas desde a posse do
prefeito do PSD. Lagranha colocou em prática as exonerações aos funcionários públicos e
o cerco aos movimentos sociais na sua gestão. O dossiê de 1969 assinalava com mais
ênfase o papel de Lagranha no controle e na vigilância da oposição trabalhista.
Lagranha, portanto, era parte, como liderança política local, de uma engrenagem
maior: a conspiração civil-militar para derrubar o governo trabalhista e impedir qualquer
avanço social e político que as lideranças vinculadas a aquela ideologia representavam.
Como afirma Wassermann (2010), os estudos sobre o golpe civil-militar de 1964 precisam
começar a atentar para o papel dos governos estaduais e as peculiaridades e
especificidades de cada caso. Parece aqui que, no caso gaúcho, pesou a articulação entre
o Estado e as forças políticas locais, que, no caso canoense, eram representadas pela
administração Lagranha. O golpe, argumentavam seus proponentes, era contra a
"subversão" e o "comunismo". Todavia, o alvo era o trabalhismo e o que essa cultura
primeira ocorreu durante os anos de 1961 e 1963, e consistiu em campanhas de grupos anti-Goulart para
desestabilizar e enfraquecer o governo trabalhista. Tais campanhas eram lideradas pelo IPES e IBAD, e
contavam com auxílio financeiro dos Estados Unidos, com pouca atuação de militares. Já a conspiração
visava derrubar o presidente da República e contou com a atuação decisiva dos castrenses.
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política representava, e para tal foi necessário o suporte e articulação de diversas forças,
não apenas sociais — políticos conservadores, setores empresariais, militares, etc. —, mas
também regionais e locais.
Não é por acaso que, no dossiê já citado, Hugo Lagranha descreve na introdução
que antes do dia 31 de março de 1964, quando o golpe iniciou e rapidamente se
consolidou, ele já havia instaurado uma "pequena revolução"349 no município:
Ao correr de nossas explanações, Vossa Excelência terá oportunidade,
com documentos anexos, constatar nossas afirmativas que são tôdas
baseadas em documentário que vem ser anterior a 31 de março de 1964,
iniciada a nossa ação logo após termos assumido o Gôverno Municipal
desta cidade, no dia 02 de janeiro de 1964.
Sem falsa modéstia, Senhor governador, iniciamos em nossa
administração uma pequena revolução que foi conjugada com o
movimento de redenção da Pátria Brasileira, em 31 de março.350
349 O termo "revolução" foi consagrado nos os meios militares e civis apoiadores do golpe logo após o dia
31 de março de 1964, como forma de legitimar politicamente aquele evento. Segundo Chaves (2014), os
militares utilizaram — e ainda utilizam — esse vocábulo como arma na disputa pela memória do período
ditatorial, apresentando os governos militares como "democráticos" e como salvadores do Brasil do "perigo
vermelho": "Essa memória construída após 1964 e consolidada nas Forças Armadas cristalizou a imagem
dos militares como "bons homens" que lutaram contra a tirania das esquerdas. (...) Em suma, tal construção
memorialística desenhou a ditadura civil-militar como um período de prosperidade, de abundância, de paz,
de seriedade, em que os governos dos cinco generais residentes fizeram o melhor que puderam à nação."
(CHAVES, 2014, p.58).
350 PREFEITURA MUNICIPAL DE CANOAS. Gabinete do Prefeito, Ofício 87/523/69, Canoas, 26/06/1969.
351 Folha da Tarde, Porto Alegre, 23 de junho de 1970, n°, p.16.
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Rio Grande do Sul, mas de todas as unidades da federação, também tiveram atuação
conectada aos eventos nos níveis estadual e nacional, cada um guardando suas
particularidades. O plano local era um elemento importante, e os poderes desses também
agiram visando — como demonstrado em Canoas — favorecer ou a conspiração e o golpe
ou a defesa das forças nacional-reformistas. Havia, dessa forma, um vínculo entre as
diferentes esferas políticas. Mais do que um reflexo ou microcosmo do Estado e da nação,
muitos municípios — e o caso de Canoas evidenciou tal situação — foram uma variável
fundamental na polarização política e nas suas consequências.
Referências Bibliográficas
ANGELI, Douglas. Como atingir o coração do eleitor: partidos, candidatos e mobilização
eleitoral em Canoas/RS (1947-1963). Dissertação (Mestrado em História). Unisinos: São
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CHAVES, Eduardo dos Santos. Os militares e a batalha pela memória da ditadura: "o golpe
que virou revolução". In: GALLO, C. A.; RUBERT, S. (orgs.). Entre a memória e o
esquecimento: estudos sobre os 50 anos do golpe civil-militar no Brasil. Porto Alegre:
Editora Deriva, 2014.
FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
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WASSERMANN, Cláudia. O golpe de 1964: Rio Grande do Sul, o “celeiro” do Brasil. In:
PADRÓS, E.; BARBOSA, V.; LOPEZ, V.; FERNANDES, A. (orgs.). A Ditadura de Segurança
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Legalidade ao golpe de 1964. Porto Alegre: CORAG, 2010, p. 51-70.
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O apelo visual é, sem dúvida, um meio poderoso para legitimar discursos e inseri-
los com eficácia no tecido social. No início dos anos sessenta, mais precisamente entre
1962 e 1963, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), “seguindo o princípio de
que a propaganda audiovisual tinha grande poder” (ASSIS, 2001, p.26), difundiu uma série
de documentários destinados a desestabilizar o governo democrático do então presidente
João Goulart, o Jango como ficou conhecido. O IPES efetivou a sua existência em 29 de
novembro de 1961, e seus fundadores vieram de diferentes backgrounds ideológicos, “o
que os unificava, no entanto, eram suas relações econômicas multinacionais e associadas,
o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado”
(DREIFUSS, 1981, p.163). As premissas desta entidade visavam a manipulação da opinião
pública para determinados fins, para tanto, além de documentários foram concebidas
outras formas midiáticas de propaganda, relevando uma metodologia que configurou-se
em uma extensa rede de relações composta de diversos setores da sociedade.
A estimativa é de uma produção de vinte documentários, mas somente quinze, de
aproximadamente oito a dez minutos cada, foram recuperados. São eles: O Brasil precisa
de você, Nordeste: problema número um, História de um maquinista, A vida marítima,
Depende de mim, A boa empresa, Uma economia estrangulada, O IPES é o seguinte, Portos
paralíticos, O que é o IPES?, Criando homens livres, Deixem o estudante estudar, O Que é
democracia, Conceito de empresa e Omissão é crime, além de um desenho animado
intitulado : O homem e sua liberdade. O IPES também, patrocinou outros tipos de filmes e
edições de livros. A exibição destes documentários visava locais que abrangessem um
certo público, um público alvo, como por exemplo: nas sessões de cinema, em fábricas no
horário de almoço dos operários, nas praças em cidades do interior para a comunidade
campesina, favelas, sindicatos, universidades, entre outros espaços. A mensagem contida
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Contato:
< dripicheco@gmail.com>
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Ao falar sobre controle da mídia audiovisual, é preciso relevar que a imagem pode
configurar, dependendo da proposta, um poderoso instrumento de doutrinação de massa,
levando em consideração o tempo em que se leva para digerir discursos implícitos e
conectar os fatos com a realidade, na compreensão dos mecanismos do mesmo. Quando
as imagens vêm associadas a um discurso ideológico, atentando ao sentido moderno do
conceito, “como um conjunto de ideias que surgem de um dado conjunto de interesses
materiais ou, em termos mais gerais, de uma classe ou grupo definido” (WILLIAMS, 2007,
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p.215), geralmente por pressa, quem sabe, os homens tendem a não buscar conhecer os
seus pormenores, depositando sua crença em notícias demasiadas prontas, pois “o
homem comum, por norma, não se preocupa com aquilo que é ‘real’ para ele e com o que
‘conhece’, a não ser que tropece num problema qualquer. Tem como certa a sua ‘realidade’
e o seu ‘conhecimento” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p.14).
Durante o conturbado período entre a renúncia do presidente Jânio da Silva
Quadros e a posse do seu vice João Goulart, mais precisamente em outubro de 1961, era
fato de que uma propaganda opositora já se encontrava em movimento. O argumento
explorado pela oposição era o de que Jango estaria inclinado a aderir ao modelo de
comunismo soviético, fato muito explorado quando da renúncia de Quadros, este se
encontrava em viagem à China comunista. Assim criou-se um clima propício para
especuladores alardearem seu provável alinhamento aquele modelo doutrinário, para
tanto, tornou-se imperativo demonstrar que sua política de governo era inepta para a
nação.
O comunismo, desde antanho, foi o medo do outro, um medo que não encontrou
fronteiras, se havia a iminência do Brasil aderir a esta doutrina, um tanto amedrontada a
sociedade brasileira viu nesta possibilidade a materialização dos incontáveis horrores
soviéticos narrados pelas nações capitalistas. Neste ínterim, tornou-se fecundo para os
ipesianos ocupar o seu espaço na cena política e no meio social e também, “informar”
sobre os perigos que um abalo a democracia traria, com Jango no poder. Mesclando pavor,
falta de informação e propaganda as narrativas dos documentários do IPES puderam
simular no imaginário popular, um Brasil fora de ordem.
Segundo Ramos (2005, p. 20):
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A URSS era perigosa não apenas por ser fonte para construção do
imaginário comunista. Ela passou a ser vista, sobretudo depois de 1935,
como potência agressora, Estado inimigo responsável por treinar,
financiar e infiltrar agentes subversivos no Brasil, devotados à destruição
da pátria e de seus valores básicos (religião, família e, dependendo do
autor do discurso, a liberdade).
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Pressupondo que as relações com a União Soviética não eram bem vistas e que em
1935 houve um levante comunista no Brasil352, é precípuo e fundamental compreender
que o sentimento anticomunista remonta de outros contextos em outras décadas e supõe
uma estrutura mais complexa em sua construção.
352
Movimento chamado de “Intentona Comunista de 1935”.
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As manifestações sociais, e porque não as culturais, embora pareça aos mais leigos
não terem ligação direta com os acontecimentos políticos, eles são sem dúvida um indício
de que os padrões vigentes estão em declínio, ou seja, estão em questionamento. Se há
problemas econômicos, há também uma procura por uma acomodação social e de
comportamento na vida cotidiana, segundo Berger e Luckmann (2004, p.33), “entre as
múltiplas realidades há uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência: é a
vida cotidiana. A sua posição privilegiada confere-lhe o direito à designação de realidade
predominante”.
Unindo contestações de comportamento e emergentes movimentos sociais com a
ameaça de adesão a um modelo comunista, estes tempos foram propícios para assombrar
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A partir disso, achar um culpado configura uma tarefa bastante fácil, quando já se
tem um contexto de crise devidamente trabalhada pela ferramenta midiática. Não é
possível tratar de inimigos quando não se tem um rosto, um nome e talvez uma
agremiação. Ao dar nome para o problema e sugerir a solução, seja através de filmes e
fotografias, de propagandas com legendas atraentes e até ameaçadoras, a sociedade tende
a identificar mais rapidamente quem e o que deve evitar. O meio social é permeável, no
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que diz respeito aos abalos do seu status quo, se há uma presença a subverter os modelos
que se conhece e por sorte já se acostumou, a população não vai medir o quanto estes
abalos podem lhe causar ou afetar, um tanto cega irá buscar a força naquilo que lhe resta:
uma adesão a projetos de ação transferindo a sua atuação para outros agirem em seu
nome.
O filme documental interage com uma massa atenta a sua verbalização, que a
absorve como verossímil, a problemática apresentada a legítima como tal, pois “a
legitimação produz novos significados que servem para integrar os significados já ligados
a processos institucionais díspares” (PETERS; LUCKMANN, 2004, p. 101). Confinados em
um espaço social como as praças, fábricas, sessões de cinema, entre outros, está a
população, a propaganda ipesiana, os problemas econômicos e sociais do Brasil, o inimigo
culpado por tudo e, o gran finale, um novo modelo de ação que defenderá os princípios
democráticos do país. Este perlocutório de medidas extremamente míopes, atuou na cena
pública, pois segundo Scott (2013, p. 89-90), “ao controlar a cena pública, os dominadores
criam uma realidade aparente que se aproxima, idealmente, daquilo que pretendem que
seja visto pelos subordinados”.
O IPES como organização, preparou-se para ocupar um espaço dentro do Estado,
compreendendo este, como um Estado restrito voltado para o interesse de uma única
classe. Esta classe, a elite orgânica, amparou-se em um processo de doutrinação midiática
e de uma rede de relações através da consolidação de um conservadorismo moral,
travestido como defensor da democracia, empenhado em incutir no meio social a sua
verdade. O uso dos meios de comunicação de massa foi fundamental para que a população
acreditasse que o país estava prestes a ser destituído da sua democracia, tomando um
rumo adverso, cujo perigo sinalizava para uma ditadura comunista. Diversos estudos
debruçaram-se sobre a temática dos documentários do IPES, principalmente relevando-
os como uma propaganda desestabilizadora do governo de Goulart, porém sobre o seu
conteúdo, podemos acrescentar algo a mais, pois a difusão desta mídia foi também um
alerta, uma preparação da população para receber um novo governo, com uma nova
proposta e que consolidaria em 1964 com os militares no poder, apoiados é claro, pela
elite orgânica do IPES.
Os meios midiáticos e audiovisuais, com o formato preciso, de fácil recepção e
ideológicos, apresentaram uma verdade ao meio social, carregada de distintas ameaças.
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No que diz respeito as mensagens contidas nos filmes do IPES, muitas foram as
consequências desta doutrinação em nome da defesa da democracia. Inseridos em um
contexto de ebulição cultural e mudanças de comportamento social, no Brasil e no mundo,
os alertas da propaganda ipesiana irradiaram um medo referente ao futuro do país,
reforçaram o sentimento anticomunista, destituíram o valor do funcionamento da
máquina pública, obstruíram a participação popular, conduzindo-a a adesão de um
discurso pronto, entre outros fatores.
Entretanto, não nos iludamos com a ingenuidade popular frente a salvação da
nação em aderir a este discurso pronto, porque também pode indicar uma certa
acomodação do indivíduo em mobilizar-se perante as mudanças relacionadas ao tão
problemático cotidiano do cidadão brasileiro. Não podemos deixar de relevar que os
documentários do IPES, trazia uma solução, mesmo que conduzida, para a manutenção da
ordem, pela destituição de um Estado espúrio, no que condiz a gerência dos serviços
públicos e pela expulsão do demônio do comunismo. A mensagem maior era colaborar
para proteger-se, pelo menos, em seu modo de apresentá-lo, eloquentes e quase
fanatizados, é assim que os filmes/documentários do IPES, tencionam ser, acredite ou não,
sem perder o embuste, pois: o Brasil precisa de você!
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O QUE É O IPÊS?. In.: Documentários do IPES. São Paulo: Jean Manzon. 1962/1963.
Disponível em:
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O contexto
A instituição policial moderna é fruto das transformações da sociedade urbana e
industrial, principalmente, a partir do século XIX e, se insere dentro de um contexto, de
crescimento das cidades, urbanização acelerada e uma necessidade de controle e
vigilância por parte do Estado e da sociedade. “Em seu sentido original, a expressão polícia
estava relacionada à manutenção da unidade da cidade e, portanto, a arte de governar”
(MOTTA, 2006).
Neste contexto, a medida que a sociedade torna-se mais complexa o ato de
controlar, vigiar e reprimir acaba por definir-se por uma das principais tarefas da polícia,
e este controle social tem a função de enquadrar e adequar os sujeitos a um modelo ou
status social tido como padrão aceito socialmente, de acordo com Foucault, instituições
como a polícia configuram-se em uma combinação de controle social e moral, sob o olhar
vigilante do Estado, da sociedade, pois a medida que a burguesia se constitui como classe
dominante, busca mecanismos de controle mais eficazes (FOUCAULT, 1986). Para
Norberto Bobbio, a polícia por ter este poder legitimado pelo Estado utiliza-se de
ferramentas de intervenção direta que são acionadas quando o indivíduo não se dispõe à
uniformidade do comportamento geral, neste ponto será papel da polícia colocar em
prática sanções, punições e outras formas de intervenção para garantir que o sujeito se
submeta ao seu contexto (BOBBIO, 2000). E, cabe a ela polícia administrar este monopólio
da força.
Desta forma as polícias especializadas começam a ser organizadas durante o
Império no Brasil, e com a Proclamação da República se acelera a necessidade de
estruturação de policias estaduais. Já em 1896, ocorre um processo de remodelação do
Mestra em História do Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos. Bolsista Capes/Prosup. Contato: < vsvanderster@gmail.com>
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sistema policial no Rio Grande do Sul, definisse as funções da chamada Polícia Judiciária
e Polícia Administrativa (MAUCH, 2011). A primeira tinha uma abrangência estadual e sua
função era investigativa, reunir elementos necessários para a instrução criminal e
julgamento; a segunda era municipalizada, sua tarefa era preventiva.
Nas primeiras décadas do século XX, permanece o processo de reorganização da
instituição policial, em nível nacional e regional. Em 1937, no início do Estado Novo
institui-se o decreto 6.880 que organiza a Carreira da Polícia e cria a Escola de Polícia. Um
ano depois, 1938, através do decreto 7601 se oficializa o DOPS (Departamento de Ordem
Política e Social), além de outras delegacias: Delegacia de Entrada, Permanência e Saída
de Estrangeiros; Delegacia Especial de Segurança e Vigilância e Delegacia Especial de
Costumes.
Entende-se que o contexto autoritário, ditatorial que vivíamos justifica o
aprimoramento do poder de polícia e, paralelo a isto o processo de modernização urbana,
crescimento das cidades e novos atores a esta realidade social. Todavia, a polícia política,
através de seu órgão DOPS permanecerá inserida na sociedade brasileira, oficialmente,
até 1983 e em alguns estados como o Rio Grande do Sul será extinta somente em 1986.
O que questiono, é a permanência de uma instituição de traços autoritários e
evasivos por tantos momentos na história política e social do nosso país. É certo que nos
períodos de ditaduras, 1937-1945 e 1964 a 1984, se fez mais explícita e atuante na
sociedade, porém isto não invalida sua ação nos momentos de abertura política. Minha
hipótese é que tal fato se deve a formação das forças de segurança por parte do Estado e
nossa tradição truculenta no trato social. Assim, esse DOPS desempenha uma ação de
profilaxia social, atua sobre os indesejados, vadios e subversivos, não se restringindo
somente aos opositores políticos do Estado/governo.
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políticas oposicionistas ao poder vigente. Pode utilizar ou não a força armada, mas sua
principal função é manter e assegurar a ordem pública., “a formação do DOPS se deu num
momento de afirmação do federalismo, em que se procurava consolidar a autonomia dos
Estados e evitar o fortalecimento do poder federal”(MOTTA, 2006). Durante o governo
Vargas esta organização é mantida e reforçada. Com a abertura política, nenhum governo
democrático extinguiu o DOPS, inclusive após 1945, dado ao contexto de Guerra Fria, o
inimigo comunista parecia mais perigoso que nunca, e o “saber” acumulado pelos homens
de polícia, tornaram-se particularmente valiosos.
Neste contexto a Delegacia de Costumes, protetora da ordem e da moral e bons
costumes que têm por competência atuar nas chamadas contravenções penais de caráter
moral, tendo como alvo prostitutas, vadios, meliantes, atua em parceria com o DOPS. Para
a historiadora Erica-Marie Benabou, “a polícia de costumes francesa, durante o século XVIII,
tinha como função vigiar “aqueles que constituem o mundo galante”, mas também e por
meio deles, certas categorias da população masculina as quais a polícia dirige um interesse
particular”. E, este interesse se expressa na ação da polícia de costumes também no Brasil.
A figura perigosa pode estar travestida de homem ou mulher, estrangeiro ou brasileiro,
mas a questão moral atravessa seus atos criminosos.
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Entre os anos de 1946, e de forma mais intensa a partir de 1950, a ação do Dops
nos espaços marginais da cidade de Porto Alegre ocorreu de forma intensa, as delegacias
que se localizavam na área da central cidade, 3 e 4 DP eram a principal fonte de
informações para o DOPS e seus agentes. A delegacia de costumes, que também se
localizava nesta região realizava, em alguns casos a peneira do que seguiria para o DOPS,
ou ficaria retido em seu espaço carcerário. Em muitos casos, a situação era de averiguação,
todavia percebe-se que tal filtro era uma das estratégias de localizar e prender possíveis
comunistas, subversivos, opositores políticos.
Como neste caso:
Tabela de prisões e encaminhamentos das delegacias centrais de Porto Alegre para as delegacias
de Costumes /DOPS
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DOPS ou delegacia de costumes, como no caso destes cinco operários apreendidos pela
delegacia de costumes em um bar da zona boêmia de Porto Alegre.
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Américo Italo Gostaldi, 29 anos, solteiro, argentino, comerciante, entrada dia 05/04 – saída
12/04; Rafael Antônio Echeverry Holguim, 26 anos, colombiano, marinheiro, entrada dia
05/04 – saída 12/04; Eduardo Machado, solteiro, uruguaio, bailarino, entrada dia 05/12 –
saída 16/04 (Livro de prisões e detenções 23) . Nos registros policiais sempre se
destacava o nome, estado civil, nacionalidade, idade, profissão e, outras observações
ficavam a critério de quem realizava o auto de apreensão ou se outro agente considerasse
necessário, os dados mais detalhados ficavam restritos aos boletins de ocorrência.
Contudo, é possível perceber a necessidade de enquadramento dos recém chegados ao
país por parte polícia. Todos estes homens permaneceram mais de 48hs reclusos para
averiguação, mesmo não tendo nenhum tipo de registro que os vinculasse a partidos
políticos, sindicatos ou agremiações em seu país de origem. Ou uma possível entrada no
país de forma clandestina. Faço tal ressalva, pois nas anotações dos Livros de Entrada de
Estrangeiros e, do DOPS, não aparece uma acusação formal sobre tais indivíduos, mas sim,
a recomendação quanto a necessidade de se manter sob vigilância, e a busca de informações
junto aos órgãos competentes sobre tais indivíduos.
Nestes casos, a postura de vigiar e prevenir torna-se uma das principais tarefas
destas duas delegacias, em relação aos estrangeiros e brasileiros. Em períodos
democráticos, como vivíamos entre os anos de 1946-1964, a estratégia adotada pela
polícia política, através de seu departamento o DOPS em conjunto com outras delegacias,
principalmente Costumes será, também a vigilância e prevenção. Nos anos analisados são
poucos os casos de reclusões longas ou diligências policiais com o objetivo específico de
prender subversivos, comunistas através de atos discricionários. Tais ações só eram
realizadas quando os agentes da polícia tinham uma “certeza” do que iriam encontrar ou
subsídios que poderiam levar a uma prisão, como neste caso:
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Neste caso não fica muito explícito o que é o subversivo, porém é provável que
fossem documentos, livros que versavam sobre o comunismo, que neste momento era o
principal inimigo da democracia no mundo, e claro também no Brasil. Nestas buscas e
apreensões que eram realizadas, todos os bens eram recolhidos, pois poderiam se tornar
provas contundentes contra o acusado, porém existia um cuidado em averiguar e ter
testemunhas dos atos empregados pela polícia, no caso relatado acima, o próprio acusado
abriu à porta, acompanhado pela polícia e mais três testemunhas que eram residentes
próximos a sua casa (Livros de Ocorrências 868). Isto demonstra um cuidado em buscar
as provas e também construir uma acusação e uma possível prisão.
As relações entre DOPS e a Delegacia de Costumes sempre foram muito próximas,
ambos departamentos surgem no Rio Grande do Sul no mesmo ano e tratam de crime,
criminosos e delitos que nem sempre foram considerados como crimes pela sociedade.
Vadiar, se embriagar, prostituir, posicionar-se politicamente, ser sindicalizado... A
sociedade industrial e urbana, moralizou e instituiu leis e regras que deveriam ser
policiadas e reprimidas. Então, mesmo em períodos que a democracia se faz presente em
nossa sociedade, instituições como a polícia desempenham também uma função
moralizadora.
Neste estudo, o DOPS e a Delegacia de Costumes são os principais elementos
catalizadores do que deve ser enquadrado como adequado para a sociedade brasileira. Se
em um período anterior da política brasileira, durante os anos do Estado Novo, esta
polícia política se legitimava por estarmos em uma ditadura, a partir do final de 1945 o
cenário muda. O Brasil inicia um processo de transição para a democracia, convoca-se
eleições legislativas destinadas a escolher uma assembleia constituinte (CARVALHO,
2012), e muitos dos avanços que haviam sido conquistados durante os anos de 1937-1945
são mantidos e outros são incorporados. Liberdade de imprensa, garantia dos direitos
civis, entre outras conquistas que legitimam uma democracia. Todavia, a polícia política
permanece atuante neste cenário, seja através da simples vigilância, controle dos
comunistas, estrangeiros, prostitutas... Ela está ali, pronta para atuar nos bastidores do
poder. E sua ação para o Estado se justifica, também pelo contexto de guerra fria, o avanço
do comunismo no mundo; tanto que o Partido Comunista brasileiro terá seu registro
cassado em 1947 e muitos dos membros serão perseguidos durante este período.
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Todavia nem sempre o crime de subversão está explícito, em muitas situações era
necessário buscar as informações, ir de encontro aos locais e pessoas que poderiam ser
enquadradas em crimes políticos, sociais. E, neste sentido as delegacias centrais fazem a
varredura para que o DOPS e a delegacia de costumes possam atuar. E a porta de entrada
de muitos destes meliantes políticos será a delegacia de costumes, o ato de vadiar pode se
tornar um ato de subversão, assim como o meretrício, a vadiagem, os lugares perigosos.
Assim, estes dois órgãos se tornam os “guardiões” da democracia, da moral e da sociedade
brasileira. Desta forma, a violência mais explícita nem sempre será utilizada, nos registros
e documentos encontrados não havia relatos que deem conta de tais estratégias, porém
se vigia e controla muito. Todos os espaços supostamente perigosos da cidade deveriam
ser monitorados: os bares, zonas de prostituição, área portuária, espaços de jogatinas.
Nestes lugares, acreditava-se que o inimigo estava presente, disfarçado de trabalhador,
imigrante, portanto, a presença e ação da polícia era essencial.
A estratégia da vigilância e controle foram uma das alternativas do Estado através
da instituição policial de manter a ordem e afastar os supostos inimigos. Percebe-se que
está ação sempre ocorreu procurando respeitar os princípios legais que caracterizam uma
democracia, porém não impediu ações e prisões sem justificativas, o princípio da
averiguação neste momento estava à frente de todos os outros. Muitos poderiam ser
suspeitos, assim a polícia poderia encaminhar e prender todos aqueles que se
enquadrassem em um perfil perigoso.
Fontes Primárias
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Referêncas bibliograficas:
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1987.
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro, Ed.
Civilização Brasileira, 2012.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Ed. Vozes, 1986.
MOTTA, Rodrigo Patta Sá. O ofício das sombras. Revista do Arquivo Público Mineiro. V. 1,
p.53-70, 2006.
MATTOS, Maria Zilda Santos. Entre suspeitos e perseguidos expulsos: SP 1934-1940. IN:
VIANNA, Marley de Almeida Gomes (org.) Presos políticos, perseguidos estrangeiros na era
Vargas. Rio de Janeiro: Ed. Mauap, 2014.
MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre, 1986-1929.
Tese (Doutorado), UFRGS, Porto Alegre, 2011.
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De uma forma geral, a Guerra Fria não tem tido ênfase como componente
explicativo pela historiografia que se preocupa com o governo Goulart, suas opções
políticas nacional-reformistas e o fim da democracia representado pelo Golpe de 64 no
Brasil. Em razão disso, pretendo descortinar de forma mais detalhada a relação bilateral
entre Brasil e Estados Unidos (EUA) ao longo do ano de 1962 tendo como ápice o evento
conhecido por Crise dos Mísseis. Para tanto, nossos interlocutores serão a documentação
oficial produzida pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro, pronunciamentos do
presidente João Goulart, grande imprensa, cartas trocadas entre os presidentes Goulart e
Kennedy e documentos produzidos pelo governo dos EUA.
Logo no início do ano de 1962, em Punta del Este, no Uruguai, foi realizada a VIII
Reunião de Consulta dos Chanceles Americanos que tinha como objetivo principal discutir
acerca das escolhas políticas de Cuba e sua relação com o restante do continente. Nessa
reunião, a posição do governo brasileiro constituiu – juntamente com o governo mexicano
- o maior obstáculo para os interesses dos EUA que, apesar da resistência enfrentada,
logrou êxito em sua intenção de excluir o governo cubano do convívio dos demais países
da OEA.
Dois meses após a Conferência de Punta del Este, o presidente Goulart partia em
missão oficial aos Estados Unidos. Goulart fora recebido pelo presidente John Kennedy
em Washington e na mesma cidade esteve na OEA; em Nova York, esteve na ONU; e em
Omaha esteve no Comando Aéreo Estratégico de Defesa dos EUA.
Após dois encontros com o presidente John Kennedy, um “comunicado conjunto
dos presidentes dos Estados Unidos do Brasil e dos Estados Unidos da América” foi
divulgado à imprensa. Nessa declaração, era enfatizado que as reuniões entre os dois
Doutor em História/UFRGS. Professor no IFSUL. Contato: < csmd@terra.com.br>
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Portanto, temas que se mostravam importantes aos dois países estavam presentes
na declaração, como o respeito à democracia, a busca pelo desenvolvimento social e a
defesa da paz. Isso gerava uma ideia de aproximação, tanto entre os dois países quanto
entre seus dois presidentes. Além disso, também houve espaço na declaração para a
“democracia política, a independência e a autodeterminação nacional, a liberdade
individual”357 como princípios políticos que ambos os países comungariam. Dessa forma,
valores muito caros a ambos os governos estavam presentes. Sem mencionar Cuba ou a
VIII Reunião de Consulta, aparecia o princípio de autodeterminação, o que representava
que o governo brasileiro não recuara em sua Política Externa Independente. Ao mesmo
tempo, as noções de democracia política e liberdade individual, extremamente caras ao
governo dos EUA, também representavam que aquele país não retrocedera em relação ao
seu entendimento a respeito de Cuba.
O comunicado conjunto também mencionava a importância que Estados Unidos e
Brasil conferiam à Aliança para o Progresso, à ideia do desarmamento, e
à Carta da OEA. Também era mencionado, ainda que indiretamente, o problema das
encampações de empresas estadunidenses:
o Presidente do Brasil declarou que nos entendimentos com as
companhias para a transferência das empresas de utilidade pública para
a propriedade do Brasil será mantido o princípio de justa compensação
com reinvestimento em outros setores importantes, para o
desenvolvimento econômico do Brasil. O Presidente Kennedy manifestou
grande interesse nessa orientação.358
355 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados
Unidos da América e ao México. Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 33.
356 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados
Unidos da América e ao México. Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 33.
357 Idem.
358 Idem, p.35.
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359BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados
Unidos da América e ao México. Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 11-12. Grifos meus.
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Em que pese os resultados financeiros da viagem aos Estados Unidos terem sido
insuficientes – algo em torno de 30 milhões de dólares360 – em termos políticos parecem
ter sido benéficos para o governo Goulart. Publicação oficial do Itamaraty demonstra a
repercussão da viagem nos principais jornais do país: Jornal do Brasil, Correio da Manhã,
O Jornal, Diário Carioca, O Globo, Diário de Notícias, Jornal do Comércio, Folha de São Paulo,
O Estado de São Paulo, Última Hora.361Na grande maioria das matérias – inclusive em
muitas de O Estado de São Paulo – se observa o apoio e o contentamento com a postura
exercida pelo presidente brasileiro nos EUA.
Ao regressar para o Brasil. depois de ter se encontrado com o presidente do México
Lopez Matteos, João Goulart foi recebido em um clima muito positivo. Afinal, era o
presidente brasileiro que conversara de igual para igual com o presidente dos EUA, que
naquele momento ainda contava com grande admiração tanto em seu país quanto no
Brasil.362
Assim, a visita do presidente dos Estados Unidos era esperada para breve, já no
mês de julho, mesma época em que o secretário-geral da ONU, U-Thant, estivera no país e
fora recepcionado com as devidas honrarias pelo presidente Goulart. O primeiro-ministro
era Brochado da Rocha e o governo Goulart começava a se preparar paras as eleições de
outubro e acreditava que a presença do presidente dos EUA seria importante para obter
bons resultados naquele pleito – pois a campanha de desestabilização política do governo
já vinha em grande desenvolvimento, principalmente através do IPES e do IBAD. O que o
governo Goulart não sabia, entretanto, era que muito do financiamento desses órgãos
provinha de dinheiro do governo dos EUA!(MONIZ BANDEIRA, 2001, p. 83; FICO, 2014, p.
77). Carlos Fico traz a dimensão dessa campanha de desestabilização:
360Idem, p. 179.
361Idem, p. 63-193.
362Até então, a única ação que desabonava a imagem de Kennedy era sua participação nos episódios da Baia
dos Porcos. Ele era tido como um jovem, idealista e competente líder político de ideias progressistas – tais
quais a Aliança para o Progresso e sua política para os direitos civis em seu país. Sua verdadeira política
para Cuba; a máfia orbitando seu governo; as denúncias a respeito de sua eleição; sua participação na
política para o Vietnã seria de conhecimento público apenas na década seguinte ao seu assassinato, em
especial a partir de 1975, quando foi instaurada a Comissão Church (seu presidente era o senador Frank
Church)no Senado dos EUA para investigar ações da CIA (HERSH; 1998, p. 194-210).
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Além desse apoio ilegal aos candidatos de oposição ao governo Goulart e sua
Política Externa Independente, o presidente John Kennedy resolvera adiar sua vinda ao
Brasil para depois das eleições – com isso, impedindo que Goulart obtivesse ganhos
eleitorais com sua presença, estando de acordo com a “preocupação de Gordon de que a
vinda de Kennedy, tão popular entre os brasileiros, mesmo favorecendo a imagem dos
EUA, pudesse beneficiar Goulart, que insistia para que ela se realizasse” (AZEVEDO, 2007,
p. 161).
Discurso do Presidente João Goulart durante comemorações do Dia do Trabalho em 1º de maio de 1962
363
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hospedado no Palácio do Alvorada. No dia seguinte, John Kennedy passaria por São Paulo
e pela Guanabara para encontros com os governadores daqueles estados. No dia 14 iria
para Natal, onde “Kennedy deverá firmar acordo com o governador Aluísio Alves, pelo
qual o Rio Grande do Norte receberá 3.600.000 dólares da ‘Aliança para o Progresso” e
depois retornar para seu país.365
Na noite de segunda-feira, 22 de outubro, o presidente dos EUA realizara um
pronunciamento na televisão anunciado que a URSS estava instalando armamentos
nucleares em Cuba e que o seu país reagiria a essas ações. Enquanto isso, no dia 23 de
outubro, o secretário de Imprensa dos EUA, Salinger, em resposta aos questionamentos
sobre a crise com Cuba e seus desdobramentos, afirmava “que não foram alterados os
planos para a visita do presidente Kennedy ao Brasil de 12 a 14 de novembro”. 366 No
mesmo dia, o primeiro-ministro Hermes Lima recebendo o mesmo questionamento
afirmara “que, até ontem, o Governo não recebera informe algum de Washington sobre
um possível adiamento ou suspensão da viagem do presidente norte-americano”.367
No dia 25 de outubro, a Casa Branca informava que “devido à tensão internacional,
foi anulada a visita oficial do presidente Kennedy ao Brasil”. 368Também era mencionado
que o embaixador Lincoln Gordon “entregou hoje ao sr. João Goulart carta do presidente
dos Estados Unidos , informado-o de que precisou adiar a vistita que faria ao Brasil em 12
de novembro deste ano, prometendo marcar nova data em janeiro de 1963”.369
No mesmo dia, o presidente brasileiro respondia à carta do presidente dos Estados
Unidos. Aludindo às causas apresentadas pelo presidente Kennedy, o presidente Goulart
assim respondera:
Reconhecendo que a gravidade da conjuntura não lhe permite outra
alternativa, só me cabe dizer-lhe que minha esposa e eu fazemos sinceros
votos para que, o mais depressa possível, cessem os motivos que estão
determinando o adiamento da visita de v. exa.e da sra. Kennedy ao nosso
país.370
Além de demonstrar a boa relação entre os dois presidentes – algo muito caro ao
presidente Goulart – essa troca de correspondência também era bastante útil no sentido
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371 Telegrama da Embaixada em Washington. Num. 815. SECRETO. URGENTE. Assunto: Questão de Cuba.
Data: 01de novembro de 1962. AHMRE, Palácio do Itamaraty. Brasília/DF. Grifos nossos.
372 “A posição brasileira na crise dos mísseis cubanos foi intolerável para Kennedy” (FERREIRA, 2011, p.
320).
373 “Se o presidente norte-americano assassinado em Dallas, desde a crise dos mísseis cubanos, afastara-se
de João Goulart, por considerá-lo um perigo á segurança nacional dos Estados Unidos, seu sucessor, Lyndon
Johnson, manteve idêntica avaliação. Para eles, a recusa de Goulart em apoiar a intervenção militar em Cuba,
bem como romper relações diplomáticas e comerciais com a ilha, foi imperdoável” (FERREIRA, 2011, p.
400).
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tal ponto que não seria exagero ver aí a ruptura da dualidade existente no governo
estadunidense entre negociação/desestabilização e Aliança para o Progresso/Doutrina
da Contrainsurgência, passando a ter largo predomínio na política de Kennedy o segundo
elemento de cada relação em detrimento do primeiro.
Em 16 de novembro, o embaixador Lincoln Gordon encontrara-se
“demoradamente” com o presidente João Goulart e o primeiro-ministro Hermes Lima. A
grande imprensa ainda insistia para saber a respeito da visita de John Kennedy ao país –
assim como Goulart, que precisava melhorar suas relações com o governo dos EUA.
Porém, o tempo da política se modificara e o governo dos EUA perdera o interesse em
negociar com o país e ter o governo central como parceiro da Aliança para o Progresso.
O embaixador, por sua vez, disse que nem com o sr. Goulart nem com o
primeiro-ministro debateu aspectos da visita do presidente Kennedy ao
Brasil. As conversas a esse respeito, acrescentou, só serão iniciadas em
janeiro, isto é, depois do plebiscito “quando o regime estiver
consolidado”.374
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João Goulart. O que ele não sabia, no entanto, é que o interesse pelo Brasil tinha motivado
uma reunião do Comitê Executivo do Conselho de Segurança Nacional – o mesmo órgão
que assessorou o presidente no transcorrer da Crise dos Mísseis – no dia 11 de dezembro
na qual o país foi o único assunto da pauta.376
Nessa reunião, o ExComm se preocupou tanto com a política interna quanto a
política externa que o Brasil vinha desenvolvendo sob o governo de João Goulart. Na
avaliação que predominou na reunião, era uma “condição necessária” a de que o governo
brasileiro alterasse essas políticas para obter a “colaboração dos Estados Unidos”. Já
sabendo que ocorreria um encontro de Goulart com representante estadunidense, os EUA
apresentariam as seguintes posições para o governo brasileiro:
Dentro das próximas duas semanas, antes do natal de 1962, haverá uma
discussão com o presidente Goulart em termos gerais, que refletirá os
pontos de vista do presidente Kennedy e que enfatizará (a) as
preocupações dos Estados Unidos com os desenvolvimentos políticos e
econômicos do Brasil; (b) o desejo de colaboração dos Estados Unidos
com o Brasil nas áreas econômica e política; e (c) a convicção dos Estados
Unidos de que tal colaboração será prejudicada enquanto persistirem
certas dificuldades.377
Desse modo, o governo de Kennedy queria deixar claro para o governo Goulart que
mesmo que esse mantivesse sua Política Externa Independente os Estados Unidos não
376 Nessa reunião, além do presidente dos EUA, participaram o vice-presidente Lyndon Johnson, o secretário
de Defesa Robert McNamara, o secretário de Estado Dean Rusk, o secretário do Tesouro Douglas Dillon, o
procurador-geral Robert Kennedy, o diretor da CIA John McCone, o chefe da Junta Militar Maxwell Taylor, o
conselheiro especial de Segurança Nacional McGeorgeBundy, o secretário assistente de Assuntos
Interamericanos Edwin Martin, os conselheiros especiais Ralph Dungan e Arthur Schlesinger Jr e o
embaixador no Brasil Lincoln Gordon (SILVA, 2008, p. 197).
377 Políticas de Curto Prazo dos Estados Unidos para o Brasil apud SILVA, op.cit., p. 198.
378Políticas de Curto Prazo dos Estados Unidos para o Brasil apud SILVA, op.cit., p. 198.
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deixariam de manter sua política externa para Cuba. Não deixava de ser uma ameaça ao
governo brasileiro, procurando enfraquecer sua posição em relação a questão de Cuba,
pois Kennedy fazia questão de ressaltar que os EUA não recuariam no assunto. Nem em
Cuba, nem em qualquer outro país que ousasse desafiar, mesmo que minimamente, sua
hegemonia nos quadros da Guerra Fria.
Bibliografia
AZEVEDO, Cecília. Em nome da América: os Corpos da Paz no Brasil. São Paulo: Alameda,
2007.
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente,
pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2014.
FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. 3ª
ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O Governo João Goulart – As lutas sociais no Brasil 1961-
1964. 7ª ed. ver. eampl. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
SILVA, Vicente Gil da.A Aliança para o Progresso no Brasil: de propaganda anticomunista
a instrumento de intervenção política (1961-1964). 248 f. Porto Alegre: UFRGS, 2008.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2008.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
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Doutorado em História. Pesquisadora do GECIG-IFPR/NEG-UFPR. Professora do IFPR, Campus Telêmaco
Borba. Contato:< aschactae@gmail.com>
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guerra é uma prática produz uma ruptura nessa ordem. As soldados e as guerrilheiras são
ao mesmo tempo legitimadoras e transgressora da ordem. Elas subvertem a ordem por se
constituírem em guerrilheiras e a legitimam ao colocarem os homens no centro e como
modelo de guerrilheiro, o qual é referência para homens e mulheres.
No primeiro parágrafo da matéria – identificada pelo título: “Pelotón Mariana
Grajales” – há seguinte afirmação: “Mujeres guerrilleras y estirpe de Mariana. Partes de la
historia independentista que desemboco en una batalla decisiva de emancipación social,
económica e política: la Revolución.” (REVISTA MUJERES, dez. 1971:13) Essa cololocação
confirma o ideal de feminilidade buscado pela Revolução, o qual é constituido pela
guerrilheira e pela mãe – mães que devem educar seus filhos como Mariana Grajales.
O discurso da revista reafirma o ideal de feminilidade que se constituiu no espaço
da guerra, a relação entre a guerreira e a maternidade, pois a construção de heroína
Mariana Grajales, destaca-se seu papel de mãe dos “grandes guerreiros”, os Maceos. As
marianas representam esse ideal e também assumem outros papéis sociais, conforme
apresenta o texto. Pois, atuaram como: enfermeiras, guias de mulas, abastecedoras de
alimentos para a os combatentes, transportadoras de munições e armas, professoras e
mensageiras. Essas práticas são definidoras da multiplicidade de papéis e identificações
que essas mulheres “marianas” desempenharam no espaço da guerra. Portanto, todas as
mulheres cubanas também são capazes de assumirem essas múltiplas atividades,
inclusive atividades tidas como pertencentes aos homens, o combate na guerra. Essa é a
idéia que norteia a construção do discurso apresentado pela Federación de Mujeres
Cubanas.
A matéria prossegue informando sobre as dificuldades que Fidel teve para realizar
seu projeto, pois muitos homens se posicionaram contra. Entendiam que o combate era
papel de homens. O posicionamento de Fidel, segundo a Revista Mujeres indicava que ele
“Queria que la mujer combatiera, pues ésta no era sólo para los menesteres
domésticos y como madre, sino como parte integral de la guerrilla. Que no
sólo era para cocinar, atender a los herido, buscar agua, sino que era
preciso reivindicar suposición social.(…).El comandante en Jefe, al defender
la presencia de la mujer en lucha de liberación, defendía el papel que debla
ocupar posteriormente.” (REVISTA MUJERES, dez. 1971:13)
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construir uma nova ordem social, na qual homens e mulheres teriam direitos iguais e o
ocupar todos os espaços sociais.
Para serem reconhecidas como iguais as mulheres lutaram lado a lado com os
homens. Com o objetivo de legitimar essa idéia e de demonstrar que mesmo os homens
resistentes acabaram reconhecendo a capacidade das soldados, são citados trechos de um
informe do Comandante Eddy Suñol, elogiando a ação das guerrilheiras, e um do discurso
de Fidel, do ano de 1959. Parte do discurso de Fidel afirma que, “las mujeres son tan
excelentes soldados como nuestros mejores soldados hombres.” (REVISTA MUJERES, dez.
1971: 14)
Vale destacar, as colocações de Fidel e de Suñol são indicativas da necessidade de
comparar as soldados com os soldados. Para elas serem aceitas elas deveriam lutar igual
aos melhores soldados, pois se elas fossem com a maioria não seria possível legitimar sua
presença na guerra. Portanto, o espaço das armas permanece como espaço de poder dos
homens e eles sedem parte dele para as melhores soldados.
Ao lado do discurso de Fidel, está uma foto, na qual figuram algumas guerrilheiras
- Célia Sánchez, Lidia Rielo, Téte Puebla e Isabel Rielo (dispostas da esquerda para direita).
As mulheres com suas armas legitimam seu espaço na guerra e a identificação de
guerrilheira. Portanto, legitimam um espaço de poder dentro do Estado Cubano que
estava sendo construído pelos rebeldes.
Nas duas matérias analisadas são citados 17 nomes de mulheres que fizeram parte
do Pelotón Mariana Grajales – 1) Isabel Rielo, 2) Lidia Rielo, 3) Norma Ferrer, 4) Rita
Garcia, 5) Teté Puebla, 6) Olga Guevara, 7) Dolores Feria, 8) Angelina Antolin, 9) Eva
Rodrigues, 10) Juana Peña Hernandez, 11) Aurora Quiñones Rodriguez, 12) Isabel Rivero
Nuñez, 13) Bertha Arnau Ojito, 14) Laura Perez Rencol, 15) Orosia Soto Sardinas, 16)
Benita Ramos Osorio e 17) Vicenta Duret Sarmiento – entre as quais está a Capitã Teté
Puebla, atualmente General de Brigada das FAR. Foram realizadas entrevistas com as 08
últimas mulheres citadas, todas agentes das FAR.
Nos depoimento as mulheres falam sobre suas atividades no Movimiento 26 de Julio
e na Sierra Maestra. O conjunto dos depoimentos indica que para a Revista Mujeres o
Pelotón Mariana Grajales não se limitou as mulheres que participaram dos combates, após
a criação da unidade feminina, mas todas as mulheres que atuaram em diferentes ações
ao longo de todo o processo, isto é de 1956 até 1959.
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Portanto, o espaço de luta tende a ser percebido como um lugar onde se constitui
homens. Essa construção discursiva, presente no Estado Cubano nos anos de 1970, tende
a reproduzir as relações de poder generificadas, presentes em outros Estados
militarizados no Ocidente, no mesmo período.
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Mestranda do programa de pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Bolsista CAPES. Contato: < renatasmattos.rm@gmail.com>
379 CHILE. Bando nº5. Archivo Chile.
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esse órgão existiam outros três artigos, 9, 10 e 11 publicados somente no Diário Oficial
com circulação restrita, o que indica possíveis atribuições extras aos agentes da DINA e
desconhecidas da população, como as detenções.
Contreras e a DINA
Manuel Contreras, artífice do aparato repressivo no Chile, foi o "arquiteto de um
sistema de Inteligência singular" (DINGES, 2005, pp.108-109). Auxiliado por civis e
militares chilenos e estrangeiros, e independente dos demais setores das Forças Armadas,
construiu em um curto período de tempo uma complexa estrutura. Já no início de 1974 a
DINA contava com uma direção, Estado Maior, uma subdireção e quatro departamentos,
sendo eles: Governo do Interior, Contra-inteligência, departamento Econômico e de
Operações Psicológicas. Ao longo do mesmo ano foram adicionados o departamento de
Operações Exteriores e as direções de operações, administrativa, logística e de
documentação e assim, conforme as necessidades operacionais foram criados novos
setores. Estima-se que pela Dirección de Inteligencia chilena tenham passado mais de mil
agentes responsáveis direta ou indiretamente pelos centros de detenção, tortura e
extermínio de opositores políticos. (SALAZAR, 2013, p.114)
Tendo em vista organização interna da DINA, detalhada por Salazar, vale destacar
a existência da direção exclusivamente dedicada aos documentos produzidos por esse
órgão, indicando a presença de memorandos, correspondências, fichas ou qualquer tipo
de documento administrativo capaz de comprovar as ações e o seu modus operandi. No
entanto, é a ausência dessas fontes que marcam o período de transição para a democracia,
assim como a negação dos crimes cometidos pelos agentes da DINA e a localização de
desaparecidos, sendo necessário investir nos testemunhos de sobreviventes e
documentos de outras esferas da administração estatal para elucidar a história do tempo
presente do Chile. Recentemente, em 11 de setembro de 2013, 40 anos após o golpe de
Estado, foi enviado pelo historiador Danny Monsalvez da Universidade de Concepción ao
site The Clinic384, um documento intitulado “Manual de Operaciones Secretas” e a partir da
leitura dessa significativa fonte, a qual Monsalvez teve acesso, mantendo sigilo sobre sua
origem, é possível compreender mais profundamente no que consistiu o aparato
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Ainda nos anos 1960, percebendo as articulações entre partidos de esquerda nas
eleições chilenas e países ao redor, John F. Kennedy expande o programa “Aliança para o
Progresso” para toda a América Latina. A partir desse momento, o Chile passou a sofrer
crescente ingerência da CIA e outros órgãos de inteligência com o objetivo de garantir a
vitória de Eduardo Frei - alinhado ao programa de Kennedy - na disputa eleitoral de 1964
contra Salvador Allende. A movimentação em direção ao golpe de Estado, que derrubou
Allende alguns anos depois, se deu através do financiamento dos partidos Nacional (PN)
e Democrata-cristão (PDC) pela agência de inteligência estadunidense, além das
chamadas covert actions388, que visavam desestabilizar o Chile econômica, social e
politicamente, a ponto de apenas uma intervenção militar solucionar o caos instaurado. A
nítida antipatia do chefe de Estado dos EUA, Richard Nixon e seu assessor Henry
Kissinger, pela América Latina somada aos interesses econômicos no Chile e o temor de
que o socialismo fosse levado adiante pelos países do Cone Sul gerou nos Estados Unidos
a tomada de uma dura postura contra Allende, sendo para eles "um dos maiores desafios
já enfrentados no hemisfério".389
Os EUA associados aos setores civis, militares, empresariais e midiáticos, como o
jornal El Mercúrio de Agustín Edwards, desenvolveu o que Moniz Bandeira intitulou de
“fórmula para o caos”, levando o Chile, por meio de ações encobertas, boicotes
econômicos, contrapropaganda e estímulo à violência ao golpe de Estado. A Comissão
Church do Senado norte-americano, composta por senadores e coordenada pelo
representante democrata de Idaho, Frank Church, ao investigar as operações
governamentais referentes às atividades de inteligência, lançou em 1975, relatórios e
posteriormente, um informe com a investigação das ações encobertas independentes
realizadas pela CIA no Chile, confirmando a presença da agência, a forte conexão
estadunidense com o golpe de 1973 e a manutenção de estreitas relações também nos
388De acordo com a própria Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, “covert actions” ou ações
encobertas são atividades que a CIA pode empreender em outros países para alcançar um objetivo ligado à
política externa dos Estados Unidos, porém sem deixar explícita para outros países a participação do
governo estadunidense. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/center-for-the-study-of-
intelligence/csi-publications/books-and-monographs/agency-and-the-hill/12-
The%20Agency%20and%20the%20Hill_Part2-Chapter9.pdf> Acessado em: 27/09/2016.
389"The election of Allende as President of Chile poses for us one of the most serious challenges ever faced
in this hemisphere". Foreign Relations of the United States 1969-1976, Volume XXI. Cool and Correct: The U.S.
Response to the Allende Administration, November 5, 1970– December 31, 1972. Memorandum from the
President’s Assistant for National Security Affairs (Kissinger) to President Nixon. November 5, 1970. p.439
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390“Covert activities
in Chile following the coup were either continuations or adaptations of earlier projects,
rather than major new initiatives”. In: Church Committee, v.7, covert actions, Post-1973, p. 187.
Disponível em: http://aarclibrary.org/publib/church/reports/vol7/html/ChurchV7_0096a.htm Acessado
em: 24/09/2017.
391 Navy Section. United States Military Group, Chile. 1st October 1973. Disponível em:
<http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB8/docs/doc21.pdf> Acessado em: 24/09/2014.
392La CIA instruyó a la DINA. Entrevista de Nancy Guzmán a Manuel Contreras, ex-chefe da DINA. Archivo
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393Informe Hinchey.
Disponível em: <http://www.archivochile.com/Imperialismo/us_contra_chile/UScontrach0005.pdf>
Acessado em: 24/09/2017.
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como Contreras o fez reiteradas vezes. Outra fonte que colabora para o conhecimento dos
eventos que se passavam no Chile com profundo conhecimento da CIA são alguns dos
documentos desclassificados do Departamento de Estado do EUA intitulados “Lists of
dead and disappeard chilean extremists”394, “Assassionation of general Prats”395 e “DINA
operations”396.
A relação entre os EUA e o Chile se pautou também pela estreita amizade entre
Pinochet e Henry Kissinger, homem importante do cenário político mundial. Conforme
Chistopher Hitchens, que se dedicou a escrever um livro sobre esse proeminente
personagem estadunidense, paradoxalmente vencedor do prêmio Nobel da Paz, diz que
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Considerações finais
397Information report. Dina, its operations and Power. 8 February 1974. Freedom of Information Act.
Disponivel em: <https://foia.state.gov/searchapp/DOCUMENTS/pdod/9c02.PDF> Acessado em:
28/09/2017.
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Ericson Flores
INTRODUÇÃO
Este artigo pretende mostrar a trajetó ria dos membros dos governos estaduais do
Rio Grande do Sul entre os anos de 1967 e 1975. Foram, respectivamente, os governadores
Peracchi Barcellos e Euclides Trichê s. Ambos foram eleitos durante o regime bipartidá rio
e atravé s do sufrá gio indireto, conforme determinado pelo regime federal autoritá rio
vigente a é poca. A pesquisa consiste na apresentaçã o da trajetó ria polí́tica, seja nos
Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciá rio, e na experiê ncia administrativa pré via dos
secretá rios estaduais. Trata-se de um grupo de indiví́duos, cerca de trinta e trê s pessoas,
que formaram a elite polí́tico-administrativa do regime militar no Rio Grande do Sul, a
frente do Poder Executivo estadual durante oito anos. O trabalho consiste numa
prosopografia e procura verificar se estes agentes já possuí́am experiê ncia polí́tica no
momento em que passaram a fazer parte do governo ou se a entrada nos postos de
comando serviu para alavancar futuras carreiras polí́ticas. Os resultados da pesquisa
colaboram para ampliar o conhecimento sobre a atuaçã o do partido de sustentaçã o ao
regime militar (ARENA) e sobre os governos estaduais do perí́odo, ainda carentes de
pesquisas, pois a maioria dos estudos sã o sobre a oposiçã o.
Devido a relevâ ncia em pesquisar o perí́odo ditatorial civil-militar no Brasil (1964-
1985) e as lacunas historiográ ficas ainda existentes neste quesito, este trabalho procura
estudá -lo na perspectiva dos governos do estado do Rio Grande do Sul, seus protagonistas
e suas polí́ticas pú blicas.
Carla S. Rodeghero indica que
Mestre em História. Professor no Instituto Federal Farroupilha (IFFar). Doutorando do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista CAPES. Contato:
<ericson.flores@terra.com.br>
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A autora indica que faltam estudos sobre a atuaçã o do Poder Executivo estadual,
na figura dos governadores Ildo Meneghetti, Peracchi Barcelos, Euclides Triches, Sinval
Guazzelli e Amaral de Souza. Com exceçã o do primeiro, os demais foram eleitos
indiretamente por um colé gio eleitoral, conforme determinado pelo Ato Institucional n.º
2. A maioria dos trabalhos acadê micos sobre o perí́odo aborda a temá tica dos perseguidos
pelo regime militar, torturados e desaparecidos. Nã o há muitos estudos historiográ ficos
acerca dos governos estaduais daquele perí́odo.
Entende-se que o objeto do artigo seja a elite, tomada na definiçã o de Raymond
Aron como, “a minoria que, numa sociedade qualquer, exerce as funçõ es diretrizes da
coletividade” (PERISSINOTTO et al. 2007, p. 113). Em relaçã o as formas de recrutamento
desse grupo dirigente, ou seja, a forma de escolha dessa minoria governante, incluiu-se
duas dimensõ es: a seleçã o só cio-econô mica dos indiví́duos e a seleçã o polí́tico-
institucional. Esta pesquisa levantou os tipos de cargos e posiçõ es que os indiví́duos
ocuparam antes de assumirem os postos no 1º escalã o do governo estadual. Tratou-se de
investigar se existiu um caminho tí́pico para o acesso a essas posiçõ es. Quais eram os
atributos (polí́ticos, pessoais, etc) que os indiví́duos deveriam possuir para serem
recrutados ao governo estadual? Em que medida estes agentes eram “profissionais” da
polí́tica? Qual a relaçã o entre a trajetó ria polí́tica dos secretá rios e o perfil e/ou ideologia
do governador?
Como o cargo de secretá rio estadual nã o é eletivo, mas de livre indicaçã o e
nomeaçã o do chefe do Poder Executivo, será importante observar se tais indiví́duos
“entraram na polí́tica” somente quando efetivamente passaram a fazer parte do governo
ou o cargo foi apenas uma continuaçã o ou até mesmo o final de uma carreira polí́tica de
maior extensã o. A fim de verificar esta questã o, deve ser analisado o tempo (nú mero de
anos) de exercí́cio e os tipos de postos ocupados nos trê s setores pú blicos, Executivo,
Legislativo e Judiciá rio.
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Entre os 18 secretá rios que atuaram no governo Peracchi, foi possí́vel identificar a
trajetó ria polí́tica de quinze. Nã o foram obtidas informaçõ es sobre os seguintes
indiví́duos: Joã o T. Gonçalves Tamer, o primeiro ocupante da Secretaria da Administraçã o,
que foi transferido para a pasta da Fazenda na metade do terceiro ano do mandato de
Peracchi. Luí́s Lesseieneur de Faria, da Secretaria de Educaçã o e Cultura. Completa o
grupo A. C. Ferreira de Melo, o segundo a ocupar a pasta do Trabalho e Habitaçã o.
Dos quinze indiví́duos cujos dados permitem avaliar a experiê ncia polí́tica pré via,
apenas quatro nã o a possuí́am antes de assumir seus cargos. Poré m, destes quatro, trê s
eram militares, carreira profissional em que a atividade polí́tico-partidá ria nã o era
comum. Trata-se de Leovaldo (ou Leonardo) Vargas e Augusto Alvaro Leitã o, que
ocuparam a Casa Militar. Outro militar era Ibá Mesquita Ilha Moreira, general do Exé rcito
que ocupou a Secretaria da Segurança Pú blica. Apenas Henrique Anawate, o secretá rio de
Minas, Energia e Comunicaçõ es, era novo na polí́tica e permaneceu sem cargos eletivos
durante toda a carreira pú blica.
Dos outros onze secretá rios que já possuí́am experiê ncia polí́tica anterior ao
exercí́cio do cargo, quatro tinham menos de cinco anos. O menos experiente foi Hé lio de
Souza Santos, o segundo ocupante da Secretaria da Administraçã o. Nomeado em julho de
1969, substituindo o anterior. Tinha sido diretor da CORSAN da pró pria gestã o, durante
dois anos e meio. Anteriormente era do Partido Libertador e foi candidato a deputado
estadual em 1962, sem obter a eleiçã o.
Outros dois secretá rios tinham quatro anos de experiê ncia polí́tica pré via.
Umberto Pergher, titular da pasta de Obras Pú blicas, havia sido membro do 2º escalã o no
governo anterior, como chefe de gabinete do IPE (Instituto de Previdê ncia do Estado). Cid
Furtado, secretá rio do Trabalho e Habitaçã o, havia exercido o mandato de deputado
federal no quadriê nio anterior e tentou a reeleiçã o, sem obter sucesso. Este é um dos casos
tí́picos, quando o candidato a um cargo polí́tico-eleitoral qualquer nã o consegue eleger-
se, é “premiado” com um cargo de livre nomeaçã o. Neste caso a pasta foi um “prê mio de
consolaçã o”, soluçã o tí́pica no meio polí́tico. Importante mencionar que este indiví́duo,
apó s o exercí́cio do mandato na secretaria, conseguiu voltar a Câ mara dos Deputados,
obtendo mais dois mandatos nas eleiçõ es de 1970 e 1974.
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Joã o M. A. Dentice, chefe da Casa Civil, havia sido prefeito municipal de Bento
Gonçalves durante cinco anos, nomeado por Getú lio Vargas no perí́odo do Estado Novo.
Pode-se dizer, portanto, que um pouco menos da metade do secretariado tinha pouca
experiê ncia polí́tica, mas nã o eram novatos.
Nicanor Kramer da Luz, o secretá rio da Fazenda, tinha exercido um mandato de
deputado estadual pelo antigo PSD e havia sido prefeito de Vacaria. Um tempo de oito anos
em cargos eleitorais. Trê s membros do 1º escalã o tinham, pode-se dizer, larga experiê ncia
polí́tica e eram bem conhecidos no cená rio. Luciano Correia Machado, o secretá rio da
Agricultura, já havia sido prefeito municipal de Trê s Passos, por dois anos, no iní́cio da
carreira. Depois exerceu dois mandatos de deputado estadual e um de deputado federal,
totalizando 14 anos de exercí́cio polí́tico, sendo 2 anos no executivo e 12 anos no
legislativo, sempre pelo PSD.
Jair de O. Soares, o ú ltimo dos trê s que foram titulares da secretaria da
Administraçã o també m tinha larga experiê ncia administrativa. Era servidor pú blico
estadual, lotado na secretaria de Obras. Antes de assumir a pasta acima referida, havia
exercido vá rios cargos nos escalõ es inferiores da administraçã o estadual, totalizando nove
anos, intercalado com seis anos e meio na Assembleia Legislativa. Tinha, portanto, quinze
anos e meio de experiê ncia anterior ao exercí́cio do secretariado.
O secretá rio com mais tempo de experiê ncia polí́tica foi també m o que menos
tempo permaneceu a frente da sua pasta. Francisco Solano Borges permaneceu apenas
quatro meses e quinze dias na Secretaria do Interior e Justiça. Já havia exercido 4
mandatos de deputado estadual pelo Partido Libertador (PL), somando, portanto, 16 anos
de experiê ncia parlamentar. Cabe destacar ainda, que seu sucessor, José Danton de
Oliveira, era magistrado estadual e foi presidente da AJURIS (Associaçã o dos Juí́zes do RS)
por dois anos, antes de assumir a secretaria. També m possuí́a experiê ncia, mas no poder
judiciá rio.
Ainda no tocante a formaçã o do secretariado de Peracchi Barcelos, cabe ressaltar a
heterogeneidade partidá ria de origem dos titulares das pastas. Basta lembrar que entre a
implantaçã o do bipartidarismo e a eleiçã o indireta do governador, ainda nã o havia
passado um ano. Era natural, portanto, que as lembranças do perí́odo pluripartidá rio
eram bem vivas. Foi possí́vel identificar sete membros do secretariado que possuí́am
filiaçã o partidá ria no perí́odo anterior a existê ncia da ARENA. Eram trê s do PSD, 2 do PL,
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1 do PRP e 1 do PDC. Com esses representantes, todos filiados a ARENA, Peracchi procurou
manter o equilí́brio de forças do perí́odo pluripartidá rio. Isso fica percebido na citaçã o
abaixo, extraí́da do trabalho de Angela Flach:
Nesse sentido, Umberto Pergher, que foi Secretá rio de Obras Pú blicas no
governo de Walter Peracchi Barcellos, comentou a questã o da identidade
partidá ria entre os membros que compunham o Secretariado estadual
naquele momento. Ele enfatizou que, ‘até o Peracchi disse quando formou
o secretariado: “eu nã o quero ressuscitar os partidos antigos. Mas, como
sã o parcelas importantes dos que me apoiaram, eu vou contemplar essas
parcelas do eleitorado, poré m, sem que isso signifique o ressurgimento
dos velhos partidos, mesmo porque eu acho que eles nã o vã o surgir, e eu
nã o quero saber dessas antigas siglas”. E de fato, ele foi sempre de evitar
que houvesse qualquer surgimento (...) que os partidos se mantivessem
dentro da ARENA, porque o partido se criou, inclusive para dar
sustentaçã o ao Peracchi. Mesmo antes da sua eleiçã o nó s já
participá vamos e assim como os demais sempre havia a identidade. Quem
era da UDN se considerava da UDN, quem era do PSD se considerava do
PSD, quem era do PL se considerava do PL e quem era do PRP nã o tinha
porque nã o se considerar do antigo PRP. Havia aquela (...) aquela capa,
aquela tintura ideoló gica permanecia. E até hoje, as vezes a gente fala: “ah,
você é do antigo PRP”, embora já o partido tenha desaparecido há muitos
anos.’Essa ideia demonstra que, apesar das tentativas de dar a ARENA um
aspecto de coesã o, os seus membros continuavam atuando em prol de
interesses que beneficiariam seus pares, oriundos dos antigos partidos.398
Pode-se concluir, quanto ao governo Peracchi, e com base nos dados obtidos, que o
seu secretariado era formado por elementos heterogê neos no que diz respeito a
experiê ncia polí́tica pré via ao exercí́cio do cargo. Considerando os 15 secretá rios cujos
dados foram analisados, um pouco alé m da metade (oito) possuí́a pouca ou nenhuma
experiê ncia anterior a entrada no governo. Isso denota um governo que procurou renovar,
no espí́rito da “revoluçã o”, ou seja, do movimento protagonista do golpe de 1964. Por
outro lado, um pouco menos da metade (sete indiví́duos) já possuí́a largo tempo de
exercí́cio polí́tico e já fazia parte da elite estadual quando assumiu o cargo. Ou seja, o
governo Peracchi buscou, por um lado, a renovaçã o, mas por outro, continuou a prá tica
corrente de contemplar os aliados com cargos no 1º escalã o. Nesse sentido, nã o diferiu
dos governos anteriores.
398Citaçã o
do depoimento de Umberto Pergher, secretá rio de Obras Pú blicas do governo Peracchi Barcellos,
in FLACH, Angela, 2003, p. 190.
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antes de assumir o cargo já tinha exercido trê s mandatos de vereador em Porto Alegre e
dois mandatos de deputado estadual, o primeiro como suplente, mas assumindo vá rias
vezes. Para exercer o secretariado, licenciou-se do terceiro mandato de deputado estadual.
Tinha, portanto, vinte anos de atuaçã o pré via ao secretariado, aos 46 anos de idade.
Outro secretá rio com boa experiê ncia polí́tico-administrativa era Jair de Oliveira
Soares. Bem mais jovem, com 37 anos, també m começou no PSD. O titular da pasta da
Saú de já possuí́a 16 anos de atuaçã o. Havia sido chefe de gabinete da Secretaria Estadual
de Obras no 1º governo Meneghetti, quando Trichê s era o secretá rio. No perí́odo em que
Brizola foi governador, ocupou a chefia de gabinete da presidê ncia da Assembleia
Legislativa, onde era servidor concursado. No 2º governo Meneghetti, foi chefe de gabinete
do presidente do IRGA e voltou a ALERGS no mesmo cargo anterior. Na gestã o Peracchi
ocupou a chefia do Depto. Estadual de Compras até ser nomeado secretá rio estadual da
Administraçã o, cargo que ocupou por sete meses. Ressalta-se que todos os cargos eram
de livre nomeaçã o. Neste caso, a larga experiê ncia foi adquirida com idade pouco
avançada. Certamente o convite para a pasta da Saú de ocorreu porque já era “pessoa de
confiança” do governador há um bom tempo e possuí́a experiê ncia em cargos de gestã o
pú blica.
O secretá rio dos Transportes era Paulo Nunes Leal. Possuí́a 12 anos de atuaçã o
polí́tico-administrativa pré via. Chegou a ser governador do antigo territó rio de Rondô nia
por seis anos, em dois mandatos. Este cargo na é poca era indicado pelo presidente da
Repú blica. O curioso é que sua origem partidá ria era o PTB e fora nomeado pelo
presidente Juscelino Kubitschek. Era engenheiro militar do Exé rcito, como Trichê s, e
havia sido, por dois anos, superintendente de ferrovia federal. Alé m disso, fora colega do
governador na Câ mara dos Deputados no quadriê nio anterior. Provavelmente por esses
motivos, foi convidado para a pasta dos Transportes. Com 55 anos, era o veterano do
secretariado. Percebe-se com isso que o grupo escolhido por Trichê s era mais jovem. De
fato, dos quatro governos, foi o que teve a mé dia de idade mais baixa entre o 1º escalã o.
Com oito anos de experiê ncia pré via havia trê s secretá rios. A pasta da
Administraçã o era ocupada por Dolmy Antô nio Tarasconi, com 43 anos de idade.
Anteriormente era ligado ao PRP, partido que abrigava os integralistas. Havia ocupado
postos de escalõ es inferiores nos governos Meneghetti e Peracchi Barcellos. Sua trajetó ria
era, entã o, em cargos comissionados. Fato interessante é que esta secretaria, foi també m
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ocupada por pessoas ligadas ao antigo PRP nos dois governos que sucederam a gestã o
Trichê s.
O chefe da Casa Civil, Victor José Faccioni, era o segundo com oito anos de atividade
polí́tica, embora tivesse apenas 29 anos de idade, o mais jovem do grupo. Oriundo do PDC,
havia sido vereador e deputado estadual. Foi reeleito para a Assembleia Legislativa
quando convidado para a secretaria. Era, como o governador, de Caxias do Sul, fato que
pode ter contribuí́do para sua escolha.
O ú ltimo do grupo com oito anos de atividade anterior ao cargo era Guilherme
Socias Villela, o secretá rio de Coordenaçã o e Planejamento. Com 35 anos, já havia
acumulado alguns cargos nos escalõ es inferiores, sendo um no governo estadual
(Meneghetti) e outros no federal (ministé rios) antes de assumir a referida pasta.
Roberto Geraldo Coelho Silva assumiu a Secretaria do Trabalho e Açã o Social com
42 anos de idade. Nã o tinha muito tempo em cargos de natureza polí́tico-administrativa.
Foram trê s anos como prefeito de Rio Pardo. Ocupou ainda os cargos de diretor da COHAB
e do DEMHAB no quadriê nio do governo Peracchi. Portanto, com sete anos de exercí́cio
em cargos polí́ticos. O diferencial neste caso é que era promotor de justiça e professor,
portanto, com outro tipo de experiê ncia profissional.
O secretá rio de Energia, Minas e Comunicaçõ es era Henrique Anawate, o mesmo
que havia ocupado a pasta no governo anterior. Era um té cnico com boa experiê ncia na
á rea metalú rgica e administrativa. Nã o havia exercido cargos polí́ticos antes do mandato
no secretariado de Peracchi. Tinha 48 anos quando assumiu o cargo no governo Trichê s.
O secretá rio de Obras Pú blicas era o engenheiro Jorge Englert. Tinha 47 anos.
Nomeu sua irmã Carmen Englert para a chefia de gabinete da pasta, tí́pico caso de
nepotismo. Sua experiê ncia era té cnico-administrativa, pois desde 1962 era responsá vel
pelas obras civis da Aços Finos Piratini, empresa estatal a é poca, e coordenador-geral da
Diretoria Té cnica. Foi eleito vereador de Porto Alegre em 1969. Quando assumiu a pasta,
já era, portanto, um nome parcialmente conhecido no meio polí́tico.
Por fim, Mauro Costa Rodrigues, era o secretá rio da Educaçã o. Militar da carreira
do Exé rcito, exercia o magisté rio na caserna. Ocupava a patente de tenente-coronel
quando assumiu a secretaria. Havia exercido vá rios cargos no Ministé rio da Educaçã o e
Cultura, poré m, nã o por muito tempo nessas funçõ es. Aos 35 anos, era dos mais jovens
dentre os secretá rios estaduais do governo Trichê s.
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No que diz respeito ao governo Trichê s a presença de novatos foi expressiva. Dos
dezoito secretá rios estaduais, quinze possuí́am menos de dez anos de atividade polí́tico-
administrativa. Oito deles tinham até cinco anos de experiê ncia pré via. Sete indiví́duos
possuí́am entre 5 e 10 anos de atividade pú blica e somente trê s secretá rios eram polí́ticos
com larga experiê ncia (mais de 10 anos). Esses nú meros demonstram um governo mais
“renovador” do que o anterior. Parece mais o perfil do governador. Ele era, obviamente,
um polí́tico. Mas, como militar e, principalmente, engenheiro, Trichê s demonstrava sua
atuaçã o como té cnico.
Considerações Finais
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Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
PROSUP/CAPES. Contato: <vianajuchem@bol.com.br>
399 Com a reforma partidária de 1979, o partido governista foi rebatizado de Partido Democrático Social
(PDS), enquanto o MDB acrescentou o P em sua sigla. Com a anistia, Leonel Brizola voltou ao Brasil disposto
a continuar na política. Disputou com Ivete Vargas no STF (Supremo Tribunal Federal) o direito de utilizar
a sigla PTB, partido fundado por Getúlio Vargas, mas não foi bem sucedido. Brizola fundou então o Partido
Democrático Trabalhista (PDT). Além desses partidos, surgiram também o PT (Partido dos Trabalhadores)
e o PP (Partido Popular). Esse último, um partido montado por políticos oriundos da ARENA e moderados
do MDB, contava com a liderança de Tancredo Neves.
400 Considerado um dos símbolos da repressão política, a carreira de Fleury foi marcada por denúncias de
corrupção, tortura e assassinatos (ele foi processado, nos anos 1970, por integrar o Esquadrão da Morte).
Sua incorporação pelo DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social) fez parte da política de recrutar policias
da Delegacia de Roubos, uma vez que tais quadros possuíam experiência no combate ao crime nas grandes
cidades. Em vez de investigarem criminosos comuns, agora os alvos eram os guerrilheiros. Para Gaspari
(2014, p.67) o comportamento de Fleury “[...] projetava a imagem de machão valente, quando na realidade
sua fama derivava da bestialidade do meio que vivera e sua ascensão ao posto chefe dos janízaros da
ditadura militar, do declínio dos padrões éticos dos comandantes militares da ocasião. Nunca na história
brasileira um delinquente adquiriu sua proeminência.”.
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No final dos anos 1970 e começo da década seguinte, ocorreram atentados que não
foram cometidos pela esquerda e sim por grupos de direita que não concordavam com os
rumos da redemocratização. Para Couto (1999), ocorreram três atentados terroristas
atribuídos a organizações de direita em 1979; no ano seguinte, quarenta e seis. Mas o
atentado do Riocentro, em 30 de abril de 1981, é o exemplo mais notório do terrorismo
praticado pelas Forças Armadas. De acordo com D’Araujo (2005, p.75), o Riocentro
representa “[...] uma história de impunidade que desmoralizou as Forças Armadas frente
à inteligência e aos meios de comunicação do país.” Uma bomba explodiu no colo do
sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário que estava dentro de um carro. O
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plano era causar pânico e confusão durante um show da cantora Elba Ramalho e culpar a
esquerda. Os desdobramentos das investigações não chegaram a apontar culpados que
integrassem as Forças Armadas. Já para Couto (1999, p.302), o episódio representou “[...]o
fim do projeto presidencial da linha dura e do terrorismo de direita. Na verdade, ele inibiu,
bloqueou a extrema direita, inclusive seu projeto de poder. Paradoxalmente, portanto,
contribuiu para dar maior consistência à abertura política.” Nos quatro anos seguintes, os
brasileiros se frustariam com a derrota do movimento das Diretas Já, comemorariam a
eleição presidencial indireta de Tancredo Neves e se entrisceceram com a sua morte antes
da posse.
401Para Leme (2013, p.18), o filme “[...] ficou pouco conhecido por pertencer ao âmbito da Boca do Lixo, a
uma modalidade de cinema cuja produção e consumo pode ser denominada de ‘marginal’, já que se realizava
à margem do circuito cinematográfico ‘oficial’, socialmente consagrado. Essas características também
podem ter colaborado para a liberação do filme pela censura, pois E agora, José, em sua precariedade de
produção, ficaria circunscrito ao público da Boca do Lixo, formado por consumidores de cinema erótico;
não concorreria em festivais nacionais e internacionais e não seria ‘digno’ de debates, não tendo
repercussão na imprensa.”
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quilômetros por hora (1971) e Trapalhões no Alto da Compadecida (1987), sendo este o
seu último trabalho para o cinema até o presente momento. Na Rede Globo, dirigiu
minisséries como As noivas de Copacabana (1992), Memorial de Maria Moura (1994) e
Decadência (1995). Irmão de Reginaldo Farias (protagonista de Pra frente, Brasil), ele
também presidiu a Embrafilme402 de 1974 a 1979.
Foi no Festival de Cinema de Gramado, em março de 1982, que ocorreu a primeira
apresentação pública de Pra Frente, Brasil. Venceu o prêmio de Melhor filme (Roberto
Farias) e Melhor montagem (Roberto Farias e Mauro Farias). O filme também foi
agraciado com o Prêmio da “Associação dos Cinemas de Arte da Europa” de Melhor Filme
no Festival de Berlim, Prêmio da Crítica no Festival Íbero-Americano de Huelva, na
Espanha, e o Troféu “Margarida de Prata”, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB). Após receber pareceres favoráveis a liberação, a diretora do DCDP/DPF (Divisão
de Censura de Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal), Solange Maria
Teixeira Hernandes, interditou Pra frente, Brasil. A justificativa foi o Decreto nº
20.493/46, mais especificamente o artigo 41, que proibia a exibição caso o conteúdo fosse
“capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades
e seus agentes.” Numa entrevista cedida a revista Veja, Roberto Farias se manifestou à
respeito dos motivos da interdição de Pra Frente, Brasil:
[...] o filme Pra Frente Brasil deve ser compreendido como uma obra de
inegável valor estético e como uma versão da História que adaptou
parcial ou livremente algumas memórias sobre um período dramático do
nosso passado. Sendo uma obra de ficção, seu autor possuí licença para
402Criada em 1969, a Empresa Brasileira de Filmes S/A (Embrafilme) era uma entidade de economia mista
na qual a União era a maior acionista. De acordo com Amancio (2007, p.173), durante os anos de 1970 e
1980 foi instaurado um “[...] projeto de um cinema financiado essencialmente pelo Estado, de cunho
nacional e popular, distante de uma independência estética, e majoritariamente voltado para a busca de
uma eficiência mercadológica.” Quando a Embrafilme foi extinta pelo presidente Fernando Collor, em 1990,
a produção e distribuição de filmes no Brasil sofreu uma diminuição drástica.
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A ampliação das fontes no campo da história foi uma das principais características
no decorrer no século XX. De acordo com o Rosenstone (2010, p.16-17), “O desejo de
expressar a nossa relação com o passado usando formas contemporâneas, bem como o
desejo de agradar uma sensibilidade contemporânea, mais cedo ou mais tarde tinham de
nos direcionar para as mídias visuais.” Os historiadores que se dedicam a aprofundar a
relação entre o cinema nacional e a ditadura possuem uma extensa lista de filmes que
podem ser incorporados fontes de pesquisa. Além de Pra frente, Brasil, podemos citar
como exemplos os seguintes filmes: Que bom te ver viva (1989), Lamarca (1994), O que é
isso, companheiro?(1997), Ação entre amigos (1998), Cabra cega (2005), O Ano em Que
Meus Pais Saíram de Férias (2006) e Batismo de sangue (2007).
Dentre os historiadores que abordaram a relação entre cinema e a História, Marc
Ferro é certamente um dos mais destacados. Para ele, maioria dos cineastas
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Achava que era um conflito que era preciso enfrentar. Achava que era
uma questão que tinha que ser liquidada. O Brasil não podia estar vivendo
situações como a de meia dúzia de esquerdistas seqüestrarem um
embaixador! Ou roubarem bancos! [...] Havia líderes tradicionais, como
Marighella. Mais tarde surgiu Lamarca, com suas guerrilhas, e que teve de
ser liquidado. Era essencial reprimir. Não posso discutir o método de
repressão: se foi adequado, se foi o melhor que se podia adotar. O fato é
que a subversão acabou. (1997, p.223-224)
403O título do filme é o mesmo da canção composta por Miguel Gustavo e que foi o Hino da Copa do Mundo
de 1970, no México: Noventa milhões em ação/Prá frente Brasil, do meu coração/Todos juntos vamos prá
frente Brasil/Salve a seleção!!/De repente é aquela corrente prá frente/Parece que todo Brasil deu a
mão!/Todos ligados na mesma emoção/Tudo é um só coração!/Todos juntos vamos prá frente Brasil!/Salve
a seleção!!/Todos juntos vamos prá frente Brasil!/Salve a seleção!!/Gol!//Somos milhões em ação/Prá
frente Brasil, no meu coração/Todos juntos vamos prá frente Brasil/Salve a seleção!!/De repente é aquela
corrente prá frente/Parece que todo Brasil deu a mão!/Todos ligados na mesma emoção/Tudo é um só
coração!/Todos juntos vamos prá frente Brasil/Salve a seleção!! Todos juntos vamos prá frente Brasil.
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404De acordo com Souza (2000), um homem que utilizava o codinome de Gama 10 tinha livre acesso às
dependências do DOI-Codi e intermediava as ofertas de ajuda: “As gratificações chegavam como salário
complementar, emprego paralelo, vantagens pessoais e ajuda de materiais [...] Tudo funcionava como
estímulo para o empenho e a dedicação desses homens do poderoso aparelho repressivo instalado na Casa
da Vovó [...] Empresários [...] comprometiam-se a financiá-los. Os valores eram secretos, mas suficientes
para a autonomia financeira de muitos. Havia apoios paralelos, visitas e até almoços reservados com
simpatizantes dos métodos empregados que iam ao local ‘dar uma força’ para os militares e civis do DOI-
Codi. (2000, p.13)
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favorável. Assim como Batismo de sangue, Pra frente, Brasil não retrata os guerrilheiros
como próximos de alcançar seus objetivos e sim acossados pelo perigo da repressão.
A execução do ex-patrão de Miguel, um empresário que colabora com repressão, é
inspirado num caso real que foi abordado no documentário Cidadão Boilesen (2009), que
inclusive conta com a participação de Roberto Farias. O foco é o envolvimento do
empresário dinamarquês Henning Boilesen, presidente da Ultragás no começo dos anos
1970, que colaborava financeiramente para a OBAN e o DOI/CODI e tinha o hábito de
assistir a sessões de tortura. Ele foi executado a tiros por membros da Ação Libertadora
Nacional (ALN) e o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) em 15 de abril de 1971.
Considerações finais
Inicialmente, abordamos questões relacionadas ao contexto histórico do Brasil no
governo de João Figueiredo, como o fim do bipartidarismo, a crise econômica e os
atentados cometidos pela direita, com destaque para o incidente ocorrido no Riocentro.
Em seguida, abordamos aspectos específicos sobre o filme de Roberto Farias: a biografia
do diretor, os prêmios recebidos e a polêmica sobre a sua interdição. Produzido pela
Embrafilme e lançado sob o olhar da censura, Pra frente, Brasil evita uma crítica frontal ao
governo federal: a repressão não é creditada ao Estado e sim a grupos clandestinos que
são financiados pela burguesia nacional. Os métodos dos agentes envolvem
principalmente o uso desmedido da violência. Não são mostradas investigações, ou seja,
eles são truculentos e também incompetentes, uma vez que sequestram e matam um
inocente. Já a luta armada é mostrada como uma batalha na qual os jovens personagens
parecem constantemente acossados pelas forças policiais. Após o confronto final com o
grupo que sequestrou Jofre e a morte do Dr. Barreto, os guerrilheiros são assassinados.
A perspectiva histórica de Pra frente, Brasil sobre a ditadura militar está
totalmente distanciada do ufanismo que marcou o período do chamado “Milagre
econômico”. Mesmo com um enredo ficcional, o filme assume uma posição que não pode
ser definida como de alinhamento ao governo militar (tanto que foi censurado), mas que
é comedido ao abordar a repressão e as Forças Armadas. O que fica nítido é a condenação
do uso da violência por parte dos agentes que combatiam a guerrilha urbana e
assassinaram Jofre. Neste sentido, a hipótese de pesquisa se mostrou correta: não é uma
crítica contundente ao governo militar, mas propõe questões que podem gerar debates
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sobre como o cinema interpreta os “anos de chumbo”. Passado mais de trinta anos do seu
lançamento, Pra frente Brasil é uma tentativa válida de produzir um cinema de cunho
político vigoroso e que também pode ser considerado um bom entretenimento
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de fev. 1983. Entrevista concedida a Paulo Moreira Leite.
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2010.
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PRA frente Brasil. Direção:Roberto Farias. Brasil. Globo Filmes, 1982. 1 DVD (105 min.),
son., color.
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“A democracia racial brasileira talvez exista, mas em relação ao negro inexiste.” (RATTS;
NASCIMENTO,2007, p.94) Assim pensava a intelectual negra Maria Beatriz do Nascimento
sobre o mito da democracia racial predominante no país e fortemente defendida no
discurso dos ditadores no período da ditadura civil militar no Brasil. Para que seja
possível compreender o objetivo central desta pesquisa, que visa mostrar o apagamento
da população negra nas páginas do relatório da Comissão Nacional da verdade, publicado
no ano de 2014, pretendo mostrar intelectuais negras e negros contemporâneos a
ditadura civil-militar que denunciavam em suas obras o mito da democracia racial, a
repressão e o racismo contra a população negra em território nacional, trazendo a tona o
que era proibido falar: que certamente o Brasil não era a terra da harmonia racial tão
defendida pelo Estado e alguns autores cânones da época.
Para esta pesquisa trago três intelectuais negras e negros para contrapor o
discurso do Estado em prol do mito da democracia racial, que são: Abdias do Nascimento,
Lélia Gonzalez e Maria Beatriz do Nascimento. Eu poderia ter trazidos tantos outros tão
importantes na luta antirracista quanto estes intelectuais, mas acredito que eles tenham
muito fatores em comum que fazem com quem seja evidente a atuação da população
negra neste período e que um documento oficial não foi capaz de visibilizar e dar o devido
reconhecimento a esta parcela da população brasileira. É importante ressaltar aqui a
importância social e histórica do intelectual perante a sociedade para uma melhor
compreensão dos processos históricos com o passar do tempo e o autor contextualiza bem
dizendo que,
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Abdias do Nascimento
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poderiam ser debatidas com suas iguais. Lélia publicou vários artigos, periódicos,
entrevistas em jornais, além de dar palestras internacionais em universidades, congressos
relacionadas a mulher negra (RATTS, 2010). Uma de suas obras em destaque foi publicada
em parceria com o pesquisador argentino Carlos Hasenbalg chamado Lugar de Negro,
publicado no ano de 1982. O livro traz contribuições sobre a questão da população negra
nos anos de chumbo, de repressão, além de falar do movimento negro brasileiro. É
importante ressaltar que a mesma foi uma das idealizadoras do Movimento Negro
Unificado, fundado em 1978 e foi ativista deste movimento até o fim de seus dias. Lélia
faleceu no ano de 1995 em decorrência de problemas de saúde.
Lélia Gonzalez
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Sobre suas produções acadêmicas pouco se sabe ou são de difícil acesso, porém no
ano de 2007 o professor doutor e antropólogo Alex Ratts lançou a biografia sobre a vida
de Maria Beatriz do Nascimento intitulada Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de
Beatriz do Nascimento, onde estão reunidas todas as obras da pesquisadora como artigos,
periódicos e seus poemas todos relacionados às questões raciais, da população negra,
mito da democracia racial e questões sobre uma nova maneira de pesquisar os sujeitos
negros.
A questão é: O que estes intelectuais negras e negros têm em comum e por qual
razão decidi trabalhar a partir de suas ideias? Primeiramente é importante ressaltar que
estes intelectuais estavam inseridos no espaço acadêmico e produzindo pesquisas em
prol das temáticas raciais e da população negra no período da ditadura civil-militar, além
de acadêmicos todos eles eram ativistas e militantes do movimento negro. Eles
denunciavam em suas obras a questão do mito da democracia racial, discurso defendido
pelo Estado e reproduzido na sociedade brasileira com a ilusão de que brancos, negros e
indígenas viviam em verdadeira harmonia e paz. Nesse sentido, Abdias do Nascimento
trás de maneira genial como era pautada a questão da democracia racial no Brasil
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Trazer à tona a questão do mito da democracia racial é crucial para que se entenda
as relações raciais no Brasil e compreender as fortes repressões policias sofridas pela
população negra no período em questão. Nesse sentido abordo neste trabalho o quão
prejudicial foi (e ainda é) a perpetuação desse discurso até mesmo no que tange as
questões de políticas de reparação, como é o caso do relatório final da Comissão Nacional
da Verdade que é minha fonte principal de analise para este trabalho. A proposta da
criação de uma Comissão da Verdade é de apurar graves violações de direitos humanos
em países que passaram por governos ditatoriais, além de ser uma medida de reparação
do Estado com suas vitimas (WEICHERT, 2014).
Aqui no Brasil, a CNV publicou seu relatório final no ano de 2014, com a proposta
de reparar familiares das vitimas mortas e desaparecidas em decorrência da repressão da
ditadura civil-militar. O relatório está dividido em três volumes, onde no primeiro volume
tem a proposta de apresentar a Comissão Nacional da Verdade como a criação, as
atividades que foram realizadas, além de uma contextualização histórica do período da
ditadura civil-militar. O segundo volume fica encarregado de apresentar os textos
temáticos com as graves violações de direitos humanos sofrida por diversas camadas
sociais brasileiras e o terceiro e último volume trás a lista de mortos e desaparecidos que
totalizam em 434 mortos e desaparecidos. Neste trabalho eu utilizo o segundo volume do
relatório que trás a lista de textos temáticos com relação as violações de direitos humanos,
onde trago na imagem abaixo o sumário para que seja visível o esquecimento da Comissão
Nacional da Verdade de abordar as violações de direitos humanos com relação a
população negra:
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Fonte: Retirado do índice do volume 2 do Relatório da Comissão Nacional da Verdade.
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Considerações finais
Negras e negros por muito tempo foram utilizados apenas como objetos de
estudos, o que acabou por retirar desses sujeitos seu papel agencia e ação. Apagamentos
e silenciamentos de nossas histórias como já foi mencionado ao longo do trabalho não são
sem querer e como ficou evidente nas linhas deste artigo, é que houve e ainda há um
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Referencias Bibliográficas:
GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo. Lugar de negro. Editora Marco Zero, 1982.
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GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo:
Expressão Popular, 2014.
NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto,
2014.
RATTS, Alex; NASCIMENTO, Maria Beatriz. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de
Beatriz Nascimento. Instituto Kuanza, 2007.
REIS, Daniel Aarão. 1964: golpe militar ou civil?. In: FIGUEIREDO, Luciano (org). História
do Brasil para ocupados. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013, p. 197-201.
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Introdução
O presente artigo é resultado das discussões travadas no Curso de Doutorado em
História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS e do Programa de
Concessão de Bolsas de Iniciação Científica para Instituições de Ensino Superior Privadas
da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do
Maranhão – FAPEMA em parceria com a Faculdade de Ciências e Tecnologia do Maranhão
– FACEMA, no qual é desenvolvido um estudo sobre a propaganda utilizada por
candidatas eleitas ao legislativo de Caxias, estado do Maranhão nas eleições de 2004, 2008
e 2012. Importante enfatizar que o presente artigo é apenas um recorte da pesquisa que
ainda está em andamento e que traz resultados preliminares do estudo.
O artigo utiliza os trabalhos de Michel de Certeau, de modo especial, a obra “A
invenção do cotidiano”, deslocando a pesquisa para o enfoque dos conceitos de
estratégias e táticas, assim como as análises referentes às estruturas narrativas alinhadas
aos discursos, observando que estes sempre levam o sujeito a algum lugar.
Certeau se mostra um importante teórico nos estudos do cotidiano, e, portanto, das
pesquisas em âmbito regional ou local. O objetivo do trabalho é analisar, através do
conceito de táticas, um dos mecanismos utilizados pelas mulheres para o ingresso no
legislativo municipal. O mecanismo analisado é o jingle publicitário.
Este é um produto de cunho publicitário, cuja palavra deriva do inglês e se trata de
música feita para promover uma marca, produto ou pessoa (no caso as campanhas
eleitorais) em publicidades veiculadas em carros de som, rádio e/ou televisão. O jingle
publicitário tem como objetivo seduzir o público. No geral são curtos e possuem letras e
Doutoranda do programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia do Maranhão, FACEMA. Contato:
< valdeniamenegon@hotmail.com>
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405 Thaís Coutinho é natural de Caxias, está no terceiro mandato no Legislativo municipal; é sobrinha do
atual presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão; Filha do atual prefeito do município de
Matões; sobrinha da ex-deputada Cleide Coutinho. Entrou na política representativa a partir da indicação
do pai e do tio. Anterior ao mandato de Caxias foi vereadora em Matões, MA.
406 Irmã Nelzir é natural de Aldeias Altas, no Maranhão. Está no segundo mandato. É esposa do ex-vereador
Irmão Assis. Lançou candidatura após o mandato do marido. Foi indicada por ele nas eleições de 2012.
407 Ana Lúcia Ximenes é natural de São João da Serra no Piauí, teve dois mandatos. Foi a primeira mulher
presidente da Câmara Municipal de Caxias. É esposa do vereador Antônio José Ximenes, que teve seu
primeiro mandato em 1989, acumulando em seguida mais outras quatro legislaturas, sendo substituído por
Ana Lúcia na campanha eleitoral de 2004. Ela permanece na legislatura um mandato e é novamente
substituída por Ximenes na eleição de 2008. Ela retoma à Câmara Municipal em 2013, elegendo-se
presidente da Câmara, mas ao fim do mandato, deixa a legislatura e Ximenes é eleito para o seu sexto
mandato de vereador em Caxias.
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Certeau é conhecido pela densidade de suas produções que provoca aqueles que
se interessam por compreender sua teoria, rica para os estudos das ciências humanas e
de modo especial sobre temas relacionados ao cotidiano e ao estudo da religião.
A noção desenvolvida pelo autor sobre as questões relativas a lugar, tempo, táticas
e estratégias compõem-se de forte teor de análise de diversas práticas envolvendo grupos
e pessoas. Nesse sentido, a operação historiográfica é marcada pelo tempo que é analisado
– o passado morto e o lugar ocupado por aquele que escreve: o historiador. Esta relação é
intermediada pela escrita. É em função do lugar ocupado pelo historiador que são
definidos seus métodos e técnicas de pesquisa. A escrita, por sua vez, é uma operação que
provoca uma clivagem de textos, incluindo sua organização e direção, que passa da
desordem à ordem, no intuito de garantir uma inteligibilidade.
Já os conceitos de táticas e estratégias aparecem a partir do estudo sobre consumo,
no entanto é possível fazer uma série de inferências a partir do seu significado. Táticas se
constituem em mecanismos engendrados a partir do cotidiano e se estruturam por meio
da antidisciplina (capacidade inventiva de indivíduos fracos de se posicionarem diante
das normas da sociedade) e de operações multifacetadas e fragmentadas organizadas por
pessoas que não possuem um lugar específico, mas que agem em função do outro.
As estratégias são concebidas a partir de um lugar específico, sendo estruturadas
a partir:
[...] do cálculo das relações de força que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder [...] pode ser isolado. [...]
toda racionalização estratégica procura em primeiro lugar distinguir de
um ‘ambiente’ um ‘próprio’, isto é, o lugar de poder e do querer próprios”
(Certeau, 1998, p. 99).
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o legislativo, que tem se constituído como um espaço masculino por excelência. O lugar se
refere à ordem segundo qual se distribuem elementos nas relações de coexistência,
representando, portanto, a configuração instantânea de posições.
O legislativo é esse lugar, caracterizado pelo debate, campo de disputas e de poder,
bem como de decisões que interferem na vida das pessoas. Já a Câmara Municipal é o
espaço em que legisladoras e legisladores se cruzam, movem-se. “É animado pelo
conjunto de movimentos que aí se desdobram”. Esse espaço é o lugar praticado. O lugar
relaciona-se à posição ocupada pelos indivíduos em um dado espaço.
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afazeres domésticos e familiares, aos cuidados com as crianças enquanto os homens são
mais racionais, e, portanto, mais próximos dos cidadãos.
De acordo com Guionnet (2002), a mulheres são chamadas a abraçar a disputa
eleitoral pela necessidade de renovação das práticas políticas e são indicadas pelos dotes
que, supostamente, estão atrelados ao feminino:
[...] Là où les femmes expliquent qu’elles sont plus proches des citoyens,
plus humaines et plus pragmatiques parce qu’elles s’occupent des
enfantes, entretiennet les relations familiales et doivent mener une
double vie de labeur (domestique et remunere), les ouvriers vantaient
leurs qualités de travailleurs énergiques, honnêtes, simples,
désintéressés, généreux et dévoués.
Deste modo, a prática feminina, no modo de fazer política estaria mais próxima da
humanidade, do zelo, apresentando na sua proposta política, o fato de que estão mais
próximas das causas sociais e destacando como experiência, a participação anterior em
campanhas políticas dos esposos, pai ou outra liderança do sexo masculino.
Isso corrobora com a afirmativa de FERREIRA (2010), de que no geral, se considera
“que o fato de vivermos numa sociedade vista sob a ótica do masculino tende a nos fazer
pensar a sociedade tendo o homem como sujeito”. O próprio de Certeau.
Dessa maneira, as mulheres candidatas criam para si um espaço no jogo, maneiras
de utilizar a ordem imposta do lugar ou da língua. Sem sair do lugar onde tem que viver e
que lhe impõe uma lei, ele aí instaura pluralidade e criatividade. (Certeau, 1998, p. 92-93).
Ainda não imbuídas de poder propriamente dito, já que este tem sido associado
aos homens, as mulheres usam de táticas, que é, segundo Certeau, “a ação calculada que é
determinada pela ausência de um próprio”, isto é, as mulheres muitas vezes são usadas
como candidatas nos momentos de crise, quando há a necessidade de renovação das
figuras e dos discursos políticos, “a ausência do próprio”, que se configura variadas vezes
pela impossibilidade do cônjuge, pai, tio, concorrerem à disputa eleitoral.
Neste sentido, podemos entender que quando lançadas como candidatas, as
mulheres o são pela ausência do próprio (marido, irmão, pai, tio), o que intitula uma
estratégia daquele que exerce o poder: “apontam para a resistência que o estabelecimento
de um lugar oferece ao gasto do tempo”. Já quando estão na posição de candidatas em si,
as mulheres usam de táticas que “apontam para uma hábil utilização do tempo, das
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ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder”
(CERTEAU, 1998, p. 102)
Deste modo, as mulheres, ao que parece, não possuem meios para se manterem no
poder a não ser quando estão apoiadas em uma figura masculina. Neste sentido, elas “não
têm, portanto, a possibilidade de dar a si mesmas um projeto global nem de totalizar o
adversário num espaço distinto, visível e observável” (CERTEAU, 1998, p. 102). Ainda que
pesem seus projetos e suas redes de sociabilidades, as mulheres ainda dependem muito
da projeção política garantida pelos laços de parentesco ou de conjugalidade.
Ao entrarem na disputa eleitoral as mulheres costumam focar em características
consideradas femininas, ligadas, principalmente ao cuidado, à competência, à
determinação, à honestidade, ao pertencimento a determinada família considerada
tradicional na região ou sua ligação pessoal (pai, marido, tio) com determinado político já
com carreira consolidada.
Aqui aparece o conceito de tática:
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quem está mais próximo de Deus, em tese, poderá incorrer em menores riscos de pecar,
já que pessoas com envolvimento religioso "não pecam", "não erram" ou “eram menos”.
É possível perceber uma similaridade entre as mensagens veiculadas nos dois
jingles anteriores, a idealização de uma mulher perfeita, capaz de melhorar a situação do
espaço, nesse caso, o município de Caxias.
O jingle também faz um apelo ao lócus onde a campanha é realizada: o Município.
A mensagem atrela a luta da candidata à sua vinculação com a terra natal. “Vamos lá
Caxias/ na palma da mão/Eu voto 40888”, ou ainda “Sua luta/jamais desistir/para
Câmara de Caxias melhorar”.
Outra característica poderosa utilizada nas campanhas é a vinculação das
candidatas a cargos políticos anteriormente exercidos ou sua vinculação profissional:
saúde, educação ou ainda pode exaltar seu grupo religioso de origem. No caso de Thais
Coutinho, vincula-se a figura da candidata ao fato de ser mãe, mulher, leal, simples,
próxima dos eleitores.
No jingle da campanha de Ana Lúcia Ximenes, é perceptível a vinculação ao
consorte e padrinho político, além do fato de ter exercido o cargo de gestora na Secretaria
Municipal da Mulher.
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Conclusão
A análise da participação política das mulheres possui diferentes vieses. Certeau
se constitui um importante teórico na compreensão dos mecanismos utilizados pelas
mulheres para a ocupação de espaços de poder e decisão.
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Referências bibliográficas:
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 5ª ed. Petrópolis: Vozes,
1998.
GONÇALVES, Beatrice Corrêa de Oliveira. O alimento enquanto tática e estratégia. In: 29ª
Reunião de Antropologia. Diálogos antropológicos – expandindo fronteiras, 2014.
Natal/RN. Anais... Natal/RN: ABA, 2014.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948. Tradução de: Fábio Landa; Eva Landa. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
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pelo poder, principalmente o político. Conforme Le Goff (1996, p. 426) a memória coletiva
foi colocada como um importante instrumento na luta das forças sociais pelo poder.
Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações
dos grupos sociais e as ativações ou esquecimentos são mecanismos da memória coletiva.
Ainda sobre a memória coletiva, Nora (apud LE GOFF, 1996, 472) a define como sendo “o
que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado”.
Na relação que se estabelece entre memória e patrimônio Guillaume apud Candau
(2016, p. 158-159) defende que o patrimônio funciona como um aparelho ideológico da
memória, pois a conservação sistemática dos vestígios serve de reservatório para
alimentar as ficções da história que se constrói a respeito do passado. Na mesma linha,
Poulot apud Candau (2016, p. 159) afirma que a história do patrimônio é a história da
construção do sentido de identidade e dos imaginários de autenticidade que inspiram as
políticas patrimoniais. Assim, o relicário da memória se transforma em um relicário de
identidade que se busca no passado. (CANDAU, 2016, p. 159).
De acordo com Dias (2006, p. 50) o patrimônio cultural simboliza a identidade
cultural de uma comunidade, sendo a expressão mais explícita desta, pois ao se
identificarem com determinada expressão do patrimônio os membros de um grupo social
se filiam a um mesmo agrupamento, compartilhando significados e símbolos e facilitando
a produção de identidades coletivas. A memória é instância construtora e cimentadora de
identidades mediante a seleção do que se recorda e do que, consciente ou
inconscientemente, se silencia. (CATROGA, 2015, p. 74). Nesse sentido, é importante
pensar as questões que envolvem a memória no que se refere à Coluna Prestes e a
construção social do Memorial Coluna Prestes como patrimônio cultural, tendo em vista
que foi um processo litigioso em que grupos sociais buscaram evidenciar e representar o
passado da Coluna distintamente, ora o legitimando, ora o negando, tentando silenciá-lo.
Dando-nos suporte para essas afirmações em relação aos lugares de memória,
Pierre Nora vem afirmar que estes são criados porque não há memória espontânea. Eles
são construídos, pois o que defendem apresenta-se ameaçado e sem vigilância
comemorativa. A história rapidamente os varreria. Para o autor, se realmente vivêssemos
as lembranças que os lugares de memória envolvem eles seriam inúteis. E, também, se a
história não se apoderasse deles para transformá-los, eles não se tornariam lugares de
memória (NORA, 1993, p. 13). Cabe ao Historiador encontrar os lugares ativos para
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reencontrar os discursos dos quais estes lugares foram os suportes. O que faz o lugar de
memória é que ele seja um entroncamento onde se cruzaram diferentes caminhos de
memória, de modo que somente ainda estão vivos os lugares retomados, revisitados,
remodelados. (HARTOG, 2015, p. 165).
François Hartog (2015, p. 193), trata o patrimônio como uma espécie de alter ego
da memória, questionando o que se tem chamado de patrimonialização no que se refere
às políticas de memória, idealização e construção social do patrimônio cultural nas
últimas décadas. De acordo com ele, se inventariou todo tipo de novos patrimônios e se
declinaram novos usos do patrimônio. Assim, se percebe o quanto o patrimônio se tornou
um instrumento não apenas de afirmação e reafirmação de identidades, mas também um
instrumento político e alvo de disputas políticas. Cabe inserir nessa discussão, os escritos
de Llorenç Prats (1997, p. 20) acerca do patrimônio como o resultado de um processo de
construção social. De acordo com ele, o patrimônio não existe na natureza, não é algo dado
e nem um fenômeno universal, mas um artificio idealizado por alguém em lugar e
momento para determinados fins.
Em se tratando de invenção e da construção do patrimônio, Prats destaca que não
são processos antagônicos, opostos, mas fases complementares. De acordo com ele,
invenção se refere, sobretudo a processos pessoais e conscientes de manipulação,
enquanto a construção social se associa a processos inconscientes e impessoais de
legitimação. Nesse caso, a invenção, para se arraigar e perpetuar necessita converter-se
em construção social. Reside aí o papel importantíssimo que desempenham as
representações sociais como postulou Roger Chartier, na medida em que são capazes de
tornar presente um objeto ausente, principalmente no que se refere ao passado,
legitimando-o como parte essencial de um projeto de nação, de identidade ou como trata
Llorenç Prats, de patrimônio cultural. Segundo Canclini (1999 apud DIAS, 2006, p. 83-
84), o patrimônio cultural deve ser analisado como um espaço, não apenas de unidade,
mas também de disputas materiais e simbólicas entre classes, etnias e grupos sociais.
Portanto, no universo da presente análise, é de suma importância verificar que a
memória e o patrimônio são campos semânticos construídos socialmente de acordo com
interesses específicos de quem pretende representar o passado, tornando-se alvo de um
processo litigioso entre o que se quer lembrar ou esquecer, patrimonializar ou não.
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A coluna prestes na região das missões do Rio Grande do Sul: disputas em torno
do passado, da memória e do patrimônio
A Coluna Prestes foi um movimento rebelde da década de 1920 significativamente
marcante no processo de desestabilização do sistema político da Primeira República. Na
região das Missões do Rio Grande do Sul, assim chamada em função do seu passado
jesuítico guarani dos séculos XVII e XVIII, especialmente nos municípios de Santo Ângelo
e São Luiz Gonzaga o movimento rebelde que deu origem a Coluna Prestes foi articulado
e organizado por Luiz Carlos Prestes, então capitão engenheiro do exército que havia sido
transferido para Santo Ângelo depois de revoltas tenentistas408 ocorridas em julho de
1922 no Rio de Janeiro.
Em Santo Ângelo Luiz Carlos Prestes liderou as ações rebeldes em outubro de 1924
a partir de outros levantes tenentistas iniciados em julho do mesmo ano, principalmente
em São Paulo. Prestes sublevou o 1º Batalhão Ferroviário deslocando-se e concentrando
seu efetivo rebelde na cidade de São Luiz Gonzaga, também na região das Missões do Rio
Grande do Sul. Posteriormente, grupamentos de outras guarnições que também se
rebelaram no estado vieram a São Luiz Gonzaga onde o efetivo rebelde do Rio Grande do
Sul foi organizado.
Em 1925 rebeldes do Rio Grande do Sul e de São Paulo reuniram-se no Paraná e a
partir dali formou-se um movimento de oposição ao presidente Artur Bernardes que tinha
como grande objetivo destitui-lo do poder e promover aquilo que chamavam de
moralização da politica brasileira. Para tanto, o movimento passou a empreender uma
marcha pelo interior do Brasil, a qual teve a duração de dois anos e três meses. Entre
outubro de 1924 e fevereiro de 1927, os rebeldes do movimento que passou a ser
denominado e conhecido como Coluna Prestes, principalmente em alusão a um dos seus
principais lideres, Luiz Carlos Prestes, percorreram aproximadamente vinte e cinco mil
quilômetros passando por todas as regiões do Brasil até se exilar na Bolívia.
Passados mais de 70 anos do fim da marcha da Coluna Prestes foi inaugurado em
Santo Ângelo, em dezembro de 1996, o Memorial Coluna Prestes, espaço dedicado a
rememorar, representar e demarcar a cidade de onde teria partido a marcha da Coluna
408O movimento Tenentista se desenvolveu principalmente a partir de 1922 em oposição aos governos dos
presidentes Epitácio Pessoa e, posteriormente, Artur Bernardes. Levava esta denominação pelo fato de seus
participantes serem, em sua maioria Tenentes e Capitães do Exército. (PRESTES, 1997, p. 69).
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Prestes em 1924. Porém, houve muitas disputas em torno do passado, das memórias e do
patrimônio oriundo da Coluna Prestes, o que evidencia o quanto são significativas estas
questões das relações entre passado e presente para que possamos compreender os
impactos que isto possui nos discursos, nos imaginários, na criação de espaços voltados
para a construção e representação das memórias e do patrimônio cultural.
Quando da inauguração do Memorial Coluna Prestes, o Prefeito da época e um dos
idealizadores do projeto era o senhor Adroaldo Mousquer Loureiro, do Partido
Democrático Trabalhista – PDT. Loureiro recorda que “[...] como prefeito, inclusive eu
conversava muito com a Gládis (Diretora do Museu Municipal) sobre isso. Resgatar essa
história toda que é uma coisa importante, pra cultura, até mesmo pro próprio turismo
nosso [...]”. 409
Apesar de na década de 1990 a democracia estar restabelecida, havia ainda a
manifestação contrária de grupos políticos quanto aos assuntos ligados à Coluna Prestes
e a Luiz Carlos Prestes, especialmente pelo fato de Prestes ter sido uma das principais
figuras politicas do Partido Comunista Brasileiro – PCB durante mais de quatro décadas.
Em 1984 Prestes esteve em Santo Ângelo para um evento em rememoração aos 60 anos
da Coluna Prestes, o qual ficou marcado por forte embate entre setores políticos que ora
apoiavam a figura politica de Prestes, ora o repudiavam por sua ligação com o comunismo.
A vinda de Prestes a Santo Ângelo acontecia em um período marcado pelo processo
de transição do regime militar para a redemocratização política no Brasil. Dessa forma, as
disputas políticas entre setores que divergiam estavam acirradas em todo território
nacional. É neste contexto em que Prestes foi convidado a vir até Santo Ângelo. “A
iniciativa de convidar Prestes para um encontro em Santo Ângelo foi idealizada,
inicialmente, pela Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos de Santo Ângelo (SENASA)
[...]”(MEIHY; BIAZO, 2002, p. 13). O objetivo do encontro com Prestes era o de evidenciar
as obras de infraestrutura realizadas por ele quando de sua atuação como capitão
engenheiro em Santo Ângelo entre 1922 e 1924. Entretanto, tendo em vista o contexto
social da época e a importância política de Luiz Carlos Prestes, o evento acabou ganhando
proporções maiores.
409Arquivo de Entrevistas do Centro de Cultura Missioneira (CCM), de Santo Ângelo/RS. Depoimento oral
concedido por Adroaldo Mousquer Loureiro à Claudete Boff e Dione Mello Lenz, em 06/11/1998.
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Dessa maneira, o evento que era para discutir assuntos ligados à engenharia,
passou a ser direcionado para outro tema, o qual teve como foco e objetivo rememorar os
acontecimentos revolucionários de 1924 e que deram origem a Coluna Prestes, através
das palavras do próprio Luiz Carlos Prestes. Tal evento passou a ser divulgado como
“Coluna Prestes – 60 anos depois”. Se inicia neste momento a iniciativa de grupos políticos
da sociedade santo-angelense em utilizar a representatividade política de Prestes, pois,
“[...] aquele era um momento em que a presença de Prestes era requisitada em vários
lugares do Brasil, por várias instituições, meios de imprensa e intelectuais, preocupados
com os desdobramentos políticos do país [...]”(MEIHY; BIAZO, 2002, p. 14). Assim,
começaram a ser produzidas as representações em torno das ações políticas de Luiz
Carlos Prestes. Porém, “[...] era um período, pois, ainda desconfortável para a
implementação de propostas que pretendiam enfrentar os setores conservadores da
sociedade que apoiavam a permanência do regime ditatorial” (MEIHY; BIAZO, 2002, p.
14).
Por outro lado, grupos políticos ligados ao Partido Democrático Social - PDS, eram
a maioria na Câmara de Vereadores do município em 1984. Dessa forma, “[...] o retorno
de Prestes a Santo Ângelo foi, contudo, um evento polêmico em nível local, pois havia sido
marcado pela resistência das alas mais conservadoras da cidade [...]”(MEIHY; BIAZO,
2002, p. 14). A negativa deste grupo ficou explícita quando, “[...] a Câmara Municipal de
Vereadores negou o título de cidadão santo-angelense a Prestes, durante aquela sua visita
a cidade” (MEIHY; BIAZO, 2002, p. 15). Sobre esta negativa, compreende-se por parte
deste grupo político, a produção de uma representação contra Prestes, baseada em sua
atuação política, principalmente frente ao PCB. De acordo com Meihy e Biazo (2002, p.
15): “[...] a petição idealizada pela vereadora Denise Galeazzi e encaminhada, a seu pedido,
pelo vereador Adroaldo Mousquer Loureiro, não tinha conseguido aprovação, tendo
recebido dez votos favoráveis, nove contrários e uma abstenção. [...]”.
Naquela visita de Prestes a Santo Ângelo ficava claro o quanto sua figura politica
era interpretada de maneira controversa e representada conforme grupos políticos
identificavam-se, ou não, com o passado da Coluna Prestes, sua militância politica no
Partido Comunista Brasileiro e com o que ele simbolizava enquanto figura politica na
situação que o Brasil vivia em 1984. Prestes faleceu aos 92 anos em março de 1990.
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[...] o filho do líder comunista, Luiz Carlos Prestes Filho, leu o manifesto
que seu pai, Capitão Luiz Carlos Prestes, assinou em 28 de outubro de
1924 e que fora o primeiro documento político da sua vida. O Governador
Britto enfatizou que o gaúcho é um povo motivado a construir o seu
futuro e cultivar o seu passado, mas o Rio Grande do Sul somente será
grande se tiver orgulho dos seus ancestrais (A TRIBUNA REGIONAL,
1996, p. 14).
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Mesmo que o Memorial Coluna Prestes esteja afirmado na cidade de Santo Ângelo
enquanto um espaço de memória, de ressignificação do passado, de usos culturais,
econômicos ou políticos, ele ainda é um espaço em debate, o que gera e pode gerar
representações a favor ou contra o local, evidenciando o quanto a memória e o patrimônio
são campos de litígio, de disputas.
Considerações finais
Os campos da memória e do patrimônio são multifacetados, envolvem uma série
de elementos que devem ser levados em consideração, tendo em vista a abordagem que
se faz acerca destes campos semânticos. Nossa proposta foi buscar compreender estes
campos a partir de uma perspectiva histórica que pudesse evidenciar o quanto o passado
pode ser interpretado, reinterpretado e representado a partir de interesses específicos,
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seja de pessoas, grupos sociais e instituições, e o quanto isso pode vir a transformar o
campo da memória e do patrimônio em alvos de disputa por legitimidade.
Entendemos que no caso no caso do passado da Coluna Prestes e do Memorial
Coluna Prestes implantado mais de setenta anos depois dos acontecimentos, as questões
relacionadas à memória histórica da Coluna e da atuação politica de Luiz Carlos Prestes
suscitaram diferentes interpretações e representações acerca deste passado, tendo em
vista fazer lembrar ou esquecer, tudo isso motivado por ideologias e interesses distintos
na memória e no patrimônio que pudesse ser construído socialmente tendo como
referência o passado da década de 1920. Neste caso, ora se representava a atuação
libertária e revolucionária da Coluna Prestes, ora o perigo comunista da figura politica de
Luiz Carlos Prestes.
A memória e o patrimônio ligado a Coluna Prestes em Santo Ângelo e na região das
Missões constitui-se num campo litigioso, onde as representações sociais assumiram um
papel importante no sentido de legitimar o que deveria ser lembrado ou esquecido, o que
poderia ou não tornar-se patrimônio. Provavelmente situações deste tipo são muito
recorrentes na medida em que a memória e o patrimônio são campos construídos
socialmente, selecionados a partir de um processo de negociação com o passado, e na
mesma proporção em que existem memórias e expressões patrimoniais valorizadas,
dimensionadas e transformadas em espetáculo, existem outras silenciadas,
escamoteadas, esquecidas.
Nesse sentido, cabe ao historiador dar visibilidade e analisar estas questões. Muito
mais importante do que hierarquizar memórias e expressões do patrimônio cultural, é
necessário entender como se dá o processo de seleção destas memórias e destes
patrimônios, o que está por trás disso, quem está por trás disso e que impactos isso possui
na construção das identidades e na maneira como as sociedade enxergam seu passado.
Mais do que romantizar a memória e o patrimônio é fundamental entender sua
complexidade enquanto campos de seleção e disputa.
Referências bibliográficas:
A TRIBUNA REGIONAL. Memorial à Coluna Prestes será inaugurado no dia 17. A Tribuna
Regional. Santo Ângelo, 14-15 dez. 1996, p. 07.
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CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução de Maria Leticia Ferreira. São Paulo:
Contexto, 2016.
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: À beira da falésia: a história entre
incertezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
JORNAL DAS MISSÕES. Editorial. Memorial a Prestes resgata a História. Santo Ângelo, 28
nov. 1996. p. 02.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão. 4. ed. Campinas: Editora
da UNICAMP, 1996.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; BIAZO, Glauber Cícero Ferreira. O retorno de Luiz Carlos
Prestes a Santo Ângelo. Santo Ângelo: Ediuri, 2002.
MEOTTI, Fabiane. “Ele nunca se conformou em aceitar a situação”. Jornal das Missões.
Santo Ângelo, 25 jul. 2009. p. 05.
MULLER, Érico. Coluna Recanto do Sabiá. A Tribuna Regional. Santo Ângelo, 12 dez. 2009.
Cad. Cultura, p. 06.
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NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto História,
São Paulo, PUC, n. 10, p. 07-28, dez. 1993.
PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
TAVARES, Gládis Pippi. Coluna Prestes inaugura seu Memorial na terça-feira. A Tribuna
Regional. Santo Ângelo, 14-15 dez. 1996. Cad. Turismo, p. 04.
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Carlos E. Brizuela*
Introduccion
En el Museo Inca Huasi de la ciudad de La Rioja, República Argentina, se encuentra
un texto manuscrito, con tapas de cuero, de 93 páginas, a tinta en papel con sello de agua.
Si bien al final de la última página hay una identificación, de la que podemos distinguir el
nombre “Javier” y un apellido ilegible, consideramos que es de autor anónimo. A este texto
lo llamamos El Libro de las Recetas (LR) ya que su contenido trata de recetas para curar
distintas enfermedades y afecciones, pero también sugerencias para otras cuestiones de
la vida doméstica. Hemos tomado contacto con el LR en nuestras visitas con alumnos de
la cátedra de Historia de la Medicina y Antropología Médica del Instituto Universitario de
Ciencias de la Salud. Del texto LR existe una transcripción realizada por Manuel Barrios,
con la colaboración de los frailes franciscanos que administran el Museo.
Esta tarea exploratoria nos plantea inicialmente algunos interrogantes respecto a
la antigüedad del LR, su autor o autores, motivaciones para escribirlo, destinatarios. No
tenemos las respuestas a estas incertidumbres; más bien, algunas pistas. Sin embargo,
hemos logrado un nuevo conocimiento de la historia de América desde la perspectiva de
las prácticas curativas, las epidemias, la intervención religiosa en la configuración de la
identidad cultural de los pueblos, entre ellos los del noroeste donde se halla La Rioja.
alto. Su uso medicinal es para relajante de las fibras musculares lisas, con un efecto espamolítico, sobre las
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los que tienen dolor de estómago y lanzan las comidas: Lanzar la comida
es muy mala enfermedad para lo cual se puede tomar semilla de emelda
y tostadas, pues está en la nariz, eso quitará las vascas412 y preservará de
lanzar (vomitar). Tomen orégano verde o seco y pisado bébanlo con agua
y quitará el dolor de estómago y vascas.
arterias coronarias y las vías respiratorias y urinarias. Con ella se combaten los cólicos nefríticos, asma
coronaria, arritmias, litiasis urinarias, etc. También es sedante y diurético. Lonicerus escribió que la planta
Ammi era caliente y seca y por lo tanto, podría ser utilizada para las "dolencias frías", destacando su eficacia:
"contra la irritación de estómago y matriz, estimula la orina y el ciclo menstrual". Las semillas de esta planta
también fueron utilizadas para tratar la esterilidad, espasmos en la uretra y piedras en el riñón, tales
dolencias fueron denominadas "dolencias frías". Al largo de los años, la investigación científica ha ido
confirmando estos efectos (www.vogel.es).
412 Vasca: Malestar, impulso a vomitar.
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en el canal clave por medio del cual el material originalmente incluido en historias
naturales y escritos de investigadores llegó a un mayor público como conocimiento
médico práctico y útil”. Menciona este autor los escritos de Bernabé Cobo413, fraile jesuita,
autor de un texto titulado Historia del Nuevo Mundo, algunas de cuyas partes se
difundieron en el Bajo y Alto Perú durante el siglo XVIII bajo la forma de guías médicas
caseras para uso entre los pobres (WARREN, 2009, p. 14-20)
La divulgación del conocimiento y las prácticas curativas locales se encuentra
claramente en el texto del fraile Agustín Farfán, cuyo Tratado de todas la enfermedades …
”está destinado a cirujanos romancistas, barberos sangradores y todos los que estuvieran
apartados de ciudades y pueblos grande”s, según se lee en su portada. Y agrega en el libro
1: “No escribo para ellos, sino para los que están donde no los hay”, y además: “Procuraré
con el favor de Dios ser claro, para que todos me entiendan, y los remedios serán los mas
caseros, porque se puedan hallar y hacer”.
También el jesuita Juan de Esteneyffer escribe Florilegio medicinal de todas las
enfermedades sacado de varios, y clásicos autores, para bien de los pobres y de los que tienen
falta de Médicos, en particular en las Provincias remotas, en donde administran los RR. PP.
Misioneros de la Compañía de Jesús, de donde se deduce que en este texto reúne material
de otros autores y su propósito es de acercar a los jesuitas de distintos lugares de América
el conocimiento médico existente. Recordemos que Esteneyffer era “Coadjutor formado
de la Sagrada Compañía de Jesús” y la publicación de la obra data de 1712. Mas aún: en el
prólogo, Juan Francisco de Castañeda, escribe: A los M. RR. Padres Misioneros de la
Compañía de Jesús de las Provincias del Gran Río Marañón, Amazonas Pax Crhisti. Y añade:
Habiendo llegado á mis manos, á costa de mucha diligencia, un libro medicinal, compuesto,
y trabajado por el fervoroso hermano nuestro Juan de Esteneyffer, que empleó muchos años
en la asistencia de los Padres Misioneros de Cinaloa, de las Provincia de México, donde viendo
la falta de Médicos, y de la medicina, compadecido de las graves necesidades, así de los
413Bernabé Cobo nació en Lopera, España, en 1580, y en 1596 arribó a las islas del Caribe en América,
pasando en 1599 a Lima, donde estudió en el Colegio Real de San Martín. Allí se dedicó a las humanidades
durante dos años, y se integró a la Compañía de Jesús, radicándose en Lima hasta 1609. Cobo se dedicó a
conocer los territorios andinos, donde conoció a curanderos y sanadores, de quienes aprendió las
propiedades de plantas, animales y otros elementos del mundo natural. Residió nuevamente en Lima entre
1613 y 1615; posteriormente se trasladó a Juli, cercana a Titicaca; estudió lenguas quechua y aimará y
estuvo dos años en la región de Collao, trabajando como misionero, al igual que en Cochabamba, Charcas y
Potosí, zonas mineras de auge en la época.
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de la Universidad de Sevilla, que llegó a Lima en 1615 integrando la comitiva del virrey,
donde ya estaba el médico Melchor de Amusco, protomédico del virreinato, escribió una
de las primeras obras médicas publicadas en Perú, “Discurso del Sarampión” en 1618414,
año en que ocurre la segunda epidemia, por lo que el Virrey encomendó una “relación
sencilla” sobre los síntomas de la enfermedad y “los posibles remedios”, impresa y
enviada principalmente “a los Corregidores y doctrinantes de todo el distrito (…) para q
estuviesen prevenidos quando el mal fuesse llegando a sus jurisdicciones” (MAR REY
BUENO, 2006, p. 351-352).
414En 1589 se declaró una epidemia de sarampión en los territorios de Nueva Granada, lo que motivó una
junta de médicos reunida en Lima, elaborando un “decálogo de actuaciones dirigido a los encomenderos,
puesto que eran los indios los principales objetivos de esta enfermedad”, según Mar Rey Bueno.
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texto, con sus ilustraciones, fue llevado a España por Francisco de Mendoza, hijo del
Virrey, con la intención de que el rey les otorgara autorización para comerciar las plantas
medicinales allí descriptas, tanto autóctonas como las europeas aquí adaptadas.
Recordemos que en Europa la imprenta de Guttember aparece hacia 1450; en 1552
se edita la Biblia de 42 líneas, primer libro impreso con los tipos móviles, y
posteriormente otros textos, generalmente vinculados a la iglesia o la corona. Sin
embargo, en América ya se documentaba escribiendo en papel maguey y en dialectos
locales de las comunidades originarias. En la Biblioteca Nacional de Antropología e
Historia de México existen 58 manuscritos, los cuales han sido propuestos para ser
incluidos en el Registro Memoria del Mundo de UNESCO, y que se suman a otros
propuestos por otros organismos. Según Juan Carlos Franco, historiador mexicano, estos
manuscritos testimonian la evolución de las lenguas autóctonas, así como los eventos de
la evangelización y conquista, y el mestizaje del lenguaje o adaptación de los vocablos
europeos al habla de las comunidades indígenas. Uno de los documentos es el libro de
tributos del Marquesado del Valle, el que incluía grandes territorios concedidos por el Rey
Carlos V a Hernán Cortez, escrito en náhuatl.
También manuscritos eran los llamados Códices (nombre usado en el Medioevo
europeo y aceptado por antropólogos e historiadores) realizados por los pueblos
prehispánicos de Mesoamérica (olmecas, teotihuacanos, mayas, aztecas, etc.), y formados
por una escritura de carácter logosilábico. La misma comprendía signos logográficos (que
designan palabras) y fonéticos (transcriben sílabas), o alfabéticos, y reconoce una
tradición indígena. Si bien hay evidencia de textos escritos en el período pre clásico (300-
900 dC), es el período posterior donde se sitúa la mayoría, a los que, se presume,
accedieron los conquistadores. Se parecían a biombos ya que sus páginas se plegaban y
podían tener una extensión de varios metros. Aquí se narraba cuestiones del pasado, la
geografía, la genealogía, la ciencia, la economía. La lectura de estos textos comprendía la
educación de la nobleza; los aztecas llamaban huey tlatoani (gran orador) al señor
universal.
Por su parte, los manuscritos médicos han sido las principales herramientas para
divulgar el conocimiento europeo, al cual se le añade desde el siglo XVI el conocimiento y
las prácticas curativas de los aborígenes locales. Es así que algunos de estos manuscritos
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En primer lugar, el Libro de las Recetas del Museo Inca Huasi es uno de los
recetarios (lista de recetas, sugerencias y comentarios de prácticas curativas) que
circularon en el período de conquista y colonización española en América, en los dominios
de los territorios de acción e influencia jesuita, y cuya redacción correspondería a mas de
un autor y en distintas épocas. Se entiende que este ejemplar se encuentra en el Museo
Inca Huasi, administrado por los frailes franciscanos en cooperación con el gobierno local,
por cuanto esta Orden se hace cargo aquí, aunque temporalmente, de los bienes de la
Compañía de Jesús en ocasión de su expulsión (1767). Este Museo también guarda textos
impresos con fechas ubicadas en el siglo XVI y XVII de carácter religioso, incluso un
ejemplar incompleto del hermano Pedro Lozano (1697-1752).
En segundo lugar, el contenido de las recetas y sugerencias parece homologar los
saberes y prácticas curativas y, en general, el conocimiento existente en épocas de la
conquista y colonización en América, y durante el proceso de mestizaje o intercambio
cultural. En este proceso resulta interesante destacar las creencias y otros factores de
identificación en la construcción de la idiosincrasia local, como lo muestra el uso en
América de categorías sociales y administrativas del feudalismo europeo, configurando el
sentido de las encomiendas y el rol de los encomenderos, ello en un proceso entrelazado
con las prácticas de la administración religiosa, como es el caso de la evolución del
concepto de pater familia transformado en patrono y patronazgo, según Dolores Estruch.
Esta investigadora de la UBA nos dice que las relaciones de patronato se extendían a lo
largo de todo el entramado social, donde el concepto de patronato se refiere a la
correlación entre las obligaciones del padre con su familia y con el sostenimiento del culto
religioso. De este modo existe una asociación entre los términos de padre, patrón,
patronato y patronazgo, los que dan cuenta del notable alcance que tenía el poder
doméstico ejercido por el pater familia dentro de la estructura social del Antiguo Régimen”,
cuya autoridad se respaldaba en el poder social, previo al poder político (ESTRUCH, 2016,
p. 47-61) Ello parece evidenciarse en el apoyo y sostenimiento que el encomendero podía
ofrecer a los jesuitas, como el caso estudiado por Estruch, complementando su misión
terrenal.
Es así que en la construcción social y simbólica de las relaciones entre
conquistadores y pueblos dominados intervienen factores que aún siguen vigentes en la
cultura de esta región del noroeste, y que incluyen la comprensión de la enfermedad y la
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particular del arte curativo, fue reconocido como producto de las visiones que tuvo. Es
interesante observar su adhesión a la teoría humoral para explicar los procesos
patológicos y justificar la acción terapéutica de sus recetas, y las creencias que subyacen
en el entendimiento de los eventos terrenales, tales como la concepción o la naturaleza de
los fenómenos meteorológicos o de la acción de la luna en los hechos físicos. La Santa de
Bingen dice sobre la sangría:
Quien tenga carnes blandas y gruesas, sáquese sangre hasta dos veces al mes
mediante escarificación. Quienes en cambio sean delgados lo harán una sola vez un
mes cualquiera, si fuera necesario.
Si alguien tiene los ojos húmedos y como llorosos, quite una hoja de higuera que por
la noche haya sido mojada por el rocío, cuando el sol ya haya calentado su ramita, y
póngala así caliente encima de los ojos hasta que se empiece a calentar un poco para
que se sobrepongan y contengan el humor…
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El manuscrito Libro de las Recetas que se halla en el Museo Inca Huasi de esta
ciudad nos abre algunas líneas de investigación que necesariamente debe ser
interdisciplinaria, y allí es donde, creemos, radica el valor de su conservación. Es el
conocimiento ancestral y su práctica lo que nos permite encontrar anclajes en nuestra
cultura local y, a la vez, universal.
Bibliografía consultada:
COMAS, Juan y otros. El mestizaje cultural y la medicina no hispana del siglo XVI. Instituto
de Estudios Documentales de la Ciencia - Universitat de Valencia., Valencia 1995. (Edición
a Cargo de Fresquet Febrer)
DE MICHELI-SERRA, A. Médicos y medicina en la nueva España del siglo XVI. Gac Med Mex,
Vol 137, nº 3, 2001.
DEL VALLE, I. Escribiendo desde los márgenes. Colonialismo y jesuitas en el siglo XVIII. Siglo
XXI Editores, 2009
ESTENEYFFER, Juan de. Florilegio medicinal de todas las enfermedades, publicada por
primera vez en México en 1712.
FARFAN, A. Tratado de Medicina y de todas las enfermedades”. Este texto ha sido impreso
en México, en la Imprenta de Geronymo Balli, en el año MDCX (1610). Es interesante
observar que está dirigido a don Luis de Velazco, Caballero del hábito de Santiago y Virrey
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de la Nueva España. Este Luis de Velazco y Castilla (1539/1617) ha sido, entre 1590 y
1608, Virrey de la Nueva España y Virrey de Perú.
LÓPEZ PIÑERO, J.M.; LÓPEZ TERRADA, M. L. Los primeros libros de medicina impresos
en América, en López Piñero, J. M. dir. Viejo y Nuevo Continente. La medicina en el
encuentro de dos mundos. (Madrid; Saned, 1992, pp. 168-192).
VIESCA-TREVIÑO, C. Los libros médicos en la Nueva España. Gac. Med. Mex. Vol. 132 Nº
3, 1996.
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História Ferroviária de Recife (1982), 3º Centro de Preservação da História Ferroviária do Ceará (1982), 4º
Centro de Preservação da História Ferroviária de Curitiba (1982), 5º Centro de Preservação da História
Ferroviária do Rio de Janeiro (1984) e 6º Centro de Preservação da História Ferroviária de São Leopoldo
(1985). (PRESERVE, 1991).
418 Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima.
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419 A Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, sobre o Programa Nacional de Desestatização (PND) ,
promoveu várias mudanças para tornar as malhas ferroviárias atrativas para as concessionárias. Dentre as
ações governamentais implantadas pelo referido plano estava a destinação dos bens operacionais para o
DNIT e dos bens não operacionais para diversos órgãos ou entidades, como o IPHAN. (BRASIL, 1997).
420 Foi criado através da resolução da Diretoria de Patrimônio, em 05 de setembro de 1985. (RFFSA, 1986,
práticas) por meio da atribuição de valor de referência cultural para um grupo de identidade. Então, uma
nova trajetória impõe-se aos bens instituídos como patrimônio que passam a ser submetidos a uma nova
ordem jurídico-legal, bem como a condições de existência diferenciadas, marcadas por essa singularidade.
(CHUVA, 2012).
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422 “[...] memória individual tem sempre uma dimensão coletiva, sendo a significação dos acontecimentos
memorizados pelo sujeito sempre medida pelo diapasão da sua própria cultura”. (CANDAU, 2013, p. 97).
423 “A memória coletiva é frequentemente o produto de um empilhamento de estratos memoriais muito
diversos, podendo essas camadas sedimentares ser alteradas quando das perturbações de memória. Dessa
forma, se pode admitir que Les lieux de mémoire, [...], nos falam realmente de algumas modalidades de
memória coletiva (memória real, memória-Estado, memória-nação, memória-cidadão, memória-
patrimônio), os lugares são na maior parte das vezes a condensação de memórias plurais mais ou menos
antigas, frequentemente conflituosas e interagindo umas com as outras ” (CANDAU, 2013, p. 91-92). [grifo
do autor].
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424 Conforme Aróstegui (2006), a documentação escrita corresponde a dois grandes campos: a
documentação de arquivo; a documentação bibliográfica e hemerográfica.
425 Segundo a descrição do inventário do Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do
Sul, o acervo audiovisual é composto por fitas de vídeos, slides de retroprojetor, negativos de vidro e
fotografias impressas. (BRASIL, 2008).
426 De acordo com a descrição do inventário do Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande
do Sul, o acervo tridimensional é composto por peças de diversos materiais: metal, madeira, vidro,
porcelana, têxteis, etc. (BRASIL, 2008).
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Considerações finais
Então, partindo da pesquisa sobre a constituição do acervo do Centro de
Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul na década de 1980 este estudo
demonstrou a importância da reflexão sobre os sentidos conferidos ao patrimônio
cultural e do valor de se fazer uma análise mais aprofundada sobre a construção e as
motivações que induziram a implantação dos Centros de Preservação da História
Ferroviária em todo o Brasil com a atuação do Preserve e, desse modo ir além do que
aparentemente foi exposto pelo programa federal. Sendo assim, para atingir os objetivos
propostos foi necessário examinar a documentação produzida na década de oitenta pelos
agentes do Preserve. Isso só foi possível, devido à preocupação da coordenação do
programa preservacionista em orientar os técnicos dos centros de preservação da
história ferroviária constituídos no Brasil em criar e manter inventários das coleções para
o seu controle. Deste modo, a gestão do Preserve com normas e diretrizes para todas as
instituições museológicas instituídas por ela tornou viável a reflexão sobre a história
ferroviária construída pelo programa preservacionista, assim como as representações
instituídas a partir da apresentação do acervo preservado.
Conforme apresentado neste artigo, os bens não operacionais da RFFSA foram
selecionados para exposição ao público e para a composição da reserva técnica nos
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Introdução
O Carnaval é considerado uma das maiores festas do Brasil. Caracterizada pela
multiplicidade de suas manifestações, trata-se de um evento nacional, mobilizando
comunidades de Norte a Sul do país. Inserida em meados do século XVII no Brasil, as
comemorações agitam desde os centros urbanos às pequenas vilas com diversas formas
de manifestações culturais.
Desta forma em Guaíba não é diferente. Durante a década de 70, Guaíba será palco
de disputas de carnavais e bailes de clube. E essa relação com o carnaval de rua e o
carnaval de clube vai estar muito presente no único jornal em circulação da cidade no
período, que é o Jornal O Guaíba.
Este estudo tem como objetivo analisar como era feita a representação da
Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano, no jornal O Guaíba, durante a década
de 70. Podemos destacar a importância desta análise, no fato dela ser importante para a
manutenção da memória da agremiação, e como forma de analisar como a agremiação era
vista por um meio de comunicação local, durante a década de 70.
O artigo está dividido em três partes sendo eles: a primeira parte intitulada
‘Império Serrano’, buscar compreender de forma sucinta a história da Sociedade
Recreativa e Esportiva Império Serrano; a segunda parte recebe o nome de ‘O Jornal e a
representação do carnaval’, vai discutir como o jornal representava o carnaval; e por fim
a última parte ‘Continua a melhor bateria’, analisa de forma destacada como é
apresentado à agremiação no Jornal O Guaíba, durante a década de 70.
Império Serrano
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as que terão mais destaque durante os anos 70, e consequentemente ganharem destaque
no jornal.
Podemos pensar a formação do Império Serrano através do bairro, Ermo, onde está
localizado. Essa formação vai ver por uma população majoritariamente negra, e afastada
do centro da cidade, que se desloca para uma zona mais alta e periférica da região central,
onde estava centrada a parte comercial da cidade.
Sendo assim, para Selau (2004) a técnica de história oral como metodologia
contribui para o desenvolvimento de uma série de técnicas e procedimentos
metodológicos que auxiliam a produção do conhecimento em história.
Para François (2006), a história oral poderia distinguir-se como um procedimento
destinado à constituição de novas fontes para a pesquisa histórica. Ainda segundo
François (2006) fazer historia oral significa, portanto, produzir conhecimentos históricos,
científicos, e não simplesmente fazer um relato ordenado da vida e da experiência dos
“outros”.
Em depoimento427 as senhoras Maria da Conceição e Marieta (2015), relatam que
o Império Serrano surge por volta do ano de 1969, na saída de três dos seus fundadores,
Liberato Garcia, Jairo dos Santos e Irajá Silvério, do clube Academia do Samba, ao fundar
a Escola de Samba Império Serrano, na mesa de um bar, escolhem esse nome por gostarem
427 Depoimentos recolhidos por mim, no dia 14/06/2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.
Maria da Conceição da Silva Garcia (63 anos), esposa do fundador Liberato Garcia (falecido) e Marieta
Ribeiro Almeida (71 anos), amiga da família Garcia.
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da agremiação de mesmo nome do Rio de Janeiro, mas o registro oficial da escola foi
realizado em 30 de novembro de 1971.
Como forma de investigar esse passado, devido à falta de documentação
recorremos à metodologia de história oral, revisitando memórias para assim traçar sua
história. O preenchimento das lacunas criadas na história do objeto em análise é o que se
busca revisitar, onde partes desses “não-ditos” não caiam no esquecimento, como nos
evidência Pollak (1989), “as fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento
definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em
perpétuo deslocamento”.
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Em 1962, junto com um grupo de jovens fundou o Jornal O Guaíba, fechado por motivos comerciais dois
428
anos depois. Por insistência do então prefeito João Salvador Jardim, reabriu O Guaíba em 1º de maio de
1969, que se mantém até hoje, 48 anos.
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Uma segunda forma de análise são as “falas” do presidente Liberato Garcia, figura
que vai ganhar destaque no carnaval de Guaíba, referente a expectativas do carnaval:
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E por último, podemos perceber a colocação por quesitos, sendo eles: Alegoria,
Animação, Originalidade, Ritmo e Fantasia.
Figura 2 - Jornal O Guaíba (06/03/1976 - nº 105)
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Para corroborar com essa análise, podemos recorrer ao Diário de Campo, realizado
em 17 de julho de 2017, na sede do Império Serrano. Dessa forma podemos perceber que
o carnaval realizado nos dias de hoje, ainda retumba a ideia de melhor bateria.
Considerações finais
A Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano, vai se constituir de forma
primeira em 1969, tendo somente sua formação jurídica em 1971, nesse sentido pode
perceber de acordo com os inventários que a agremiação, vai surgir em um momento que
já se tinha algumas entidades já estabelecidas, desta forma devido às lacunas deixadas
pela documentação utilizamos os relatos orais.
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Referências bibliográficas:
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Janeiro: p. 314-332, dezembro de 2002.
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Bassanezi (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
SELAU, Maurício da Silva. História Oral: uma metodologia para o trabalho com fontes
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JORNAIS
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FONTES ORAIS
Maria da Conceição da Silva Garcia – realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14 de
junho de 2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.
Marieta Ribeiro Almeida – realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14 de junho de
2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.
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Introdução
Início do século XX. Milhares e milhares de italianos atravessam o oceano em busca
de melhores oportunidades de vida. Dias e noites viajando entre trens e navios. Tantas
vidas sedentas por um sonho: “fazer a América!”.
A história das migrações é a história do trabalho (CROCI, FRANZINA, CARNEIRO,
2010; FRANZINA, 2007). Estas pessoas criam oportunidades que modificam as suas
percepções de realidade. Alguns deles conhecem o movimento operário. Outros
conseguem lotes de terras e colonizam regiões do “novo mundo”.
A trajetória de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti429 é diferenciada da maioria.
Tanto é que eles se tornam merecedores de um monumento após 71 anos de suas mortes.
Eles vão para os Estados Unidos da América (EUA) em 1908. Sacco se especializa e
trabalha nas fábricas de sapatos. Vanzetti migra pelos EUA, sempre com empregos de
baixa qualificação. Termina como vendedor de peixes. Eles conhecem e se envolvem no
movimento anarquista, sendo Vanzetti um escritor no periódico Cronaca Sovversiva.
Sacco assinava o referido jornal, além de colaborar com dinheiro para a causa libertária.
Em 1920 são presos, julgados e condenados (GRIPPO, 2011). Nos sete anos de prisão,
ocorrem protestos, publicações e uma luta judiciária. Porém, apesar de todos os apelos, o
Estado de Massachusetts os leva a cadeira elétrica, no dia 23 de agosto de 1927.
Contemporaneamente, em 2017, um evento marca o “eterno” dia 23 de agosto. É
um evento em Torremaggiore, uma comuna italiana da Puglia. A organização visa uma
ação de sensibilização para:
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Promotores do monumento
Segundo Carlucci (p. 1): “a iniciativa de edificar em Torremaggiore um
monumento a Ferdinando (Nicolá) Sacco e Bartolomeo Vanzetti vem empreendido pelo
Círculo de Refundação local e a tal propósito vem constituído um comitê promotor
expandido aos administradores públicos e aos representantes de todos os partidos
políticos locais”430. Outra questão pertinente a ser frisada foi que “era início de 1997, 70º
aniversário da morte dos dois anarquistas italianos, e o “caso Sacco e Vanzetti foi
combinado aquele de Silvia Baraldini o qual, qualquer dia depois, o Comune de
Torremaggiore concedesse a “Cidadania honorária”431.
O mesmo documento destacou que “a senhorita Fernanda Sacco, que da
reabilitação da memória do tio Ferdinando fez uma razão de vida.”432, conseguiu
430 Grifos do autor. “L’iniziativa di edificare a Torremaggiore un Monumento a Ferdinando (Nicolá) Sacco
e Bartolomeo Vanzetti venne intrapresa dal locale Circolo di Rifondazione ed a tale scopo venne
costituito un apposito comitato promotore allargato ai Pubblici Amministratori ed ai rappresentanti di tutti
i partiti politici locali”.
431 Grifos do autor. “Era agli inizi del 1997, 70º anniversario della morte dei due anarchici italiani, e il
‘caso Sacco e Vanzetti venne abbinato a quello di Silvia Baraldini alla quale, qualche giorno dopo, il Comune
di Torremaggiore concesse la ‘Cittadinanza onoraria’”
432 Grifos do autor. “La Signorina Fernanda Sacco, che della riabilitazione della memoria dello Zio
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(...) no fim de 1997 o prefeito Marolla fez sua iniciativa tomada aos inícios
do ano da Refundação Comunista [...] comunicou [...] que o Monumento
a Sacco e Vanzetti, compreensivo também que o lóculo funerário, será
estado a poucos metros de distância do ingresso monumental do
Cemitério e que o 70º aniversário da morte deles será estado
enquadrado em um Convênio internacional sobre abolição da pena
de morte435.
A construção do monumento foi muito bem articulado. Não poderia ser algo mal
elaborado. No caso, o poder público controla e articula as ações. O Círculo de Refundação
promove um comitê formado por administradores públicos e representantes de todos os
partidos políticos locais. As datas, o formato e os elementos são pensados e valorizados
conforme o jogo de interesses deste grupo.
Na verdade, o objetivo central do monumento parece ser plural, não sendo
limitado a um. Deste modo, pensa-se nos objetivos que o formam e, neste primeiro
momento, cabe destacar a luta pela abolição da pena de morte como um deles. Ao longo
do texto serão percebidos os demais, porém, aqui cabe ressaltar que a figura Sacco e
Vanzetti, simboliza, também, defender os direitos humanos e a extinção da pena de morte
como medida punitiva.
A inauguração
A inauguração teve uma série de acontecimentos que marcam a
apresentação pública do monumento. O evento não deveria marcar apenas o grupo mais
interessado pelo projeto, mas, também, a comunidade inteira. Destarte, não era
necessário participar do ritual inaugural, para saber que ele estava acontecendo, pois o
cortejo, ao passar pelas ruas da cidade, ganha destaque e reconhecimento “de todos”.
Rifondazione Comunista [...] comunicò [...] che il Monumento a Sacco e Vanzetti, comprensivo anche del
loculo funerario, sarebbe stato eretto a pochi metri di distanza dell’ingresso monumentale del Cimitero e
che il 70º anniversario della loro morte sarebbe stato inquadrato in un Convegno internazionale sulla
abolizione della pena di morte.
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A sequência das imagens comprovam esta ideia. Todas elas estão sob domínio
público. Sendo acessíveis aos curiosos e pesquisadores436.
Fotos 1 e 2: (1) Cortejo nas ruas até a “Igreja Santa Maria da Estrada”. (2) Na igreja: Fernanda
Sacco com a urna cinerária (mista) do tio e de Bartolomeo Vanzetti
O evento foi marcado por uma caminhada, ou melhor, um cortejo pela cidade.
Parando na igreja, houve o momento em que a urna cinerária ganha destaque. Porém, não
é perceptível, até o momento, o que ocorre de fato na igreja. Não se sabe se há uma missa,
uma benção ou qualquer ação religiosa em relação aos restos mortais de dois anarquistas
e ateus.
Posteriormente, os participantes se direcionam ao cemitério da comuna. Há a
presença de uma banda marcial, a qual parece dar um sentido “épico” para aquele
momento.
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Fotos 5 e 6: Marolla, Ferdinanda Sacco, vice Sindaco Dario Comba de Villafalletto (cidade natal de
Vanzetti). 6 - Corrado Augias, deputado do Parlamento europeu, jornalista e escritor.
437A sequência do discurso, o qual optou-se por não tratá-lo na sua integralidade por falta de espaço, indica
esta direção. Saudava-se a unificação italiana e a força internacional que possuía, naquele momento.
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Os elementos do documento
Os restos mortais de Sacco estavam em uma tumba. Uma espécie de “gaveta
mortuária” que guarda as cinzas do falecido. Então, considerando a importância histórica
desta personagem, a sua sobrinha Ferdinanda Sacco e os grupos ligados aos direitos
humanos, iniciaram o projeto do monumento para Sacco e Vanzetti.
Eles retiram os restos mortais do antigo lugar e passam para o novo. Mas, o
monumento, mesmo que seja no cemitério, é mais que um abrigo ao que sobrou de um ser
vivo. Ele é um espaço de memória que deve narrar os fragmentos da vida de alguém, seja
através de símbolos ou apenas do lugar, como espaço físico.
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Fotos 8, 9 e 10: Elementos do monumento: (8) Castelo de Torremaggiore, onde nasce Sacco. (9) A
estátua da Liberdade simbolizando a chegada deles nos EUA. (10) Trecho do discurso do
governador Dukakis, de Massachusetts, reconhecendo a inocência de Sacco e Vanzetti.
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441 “La particolarità della pianta simboleggia una parte del mondo che partecipò al dramma dei due martiri.
Sulla sua superficie verrà scolpito parte del Castello di Torremaggiore e del borgo rappresentante il
Codacchio, luogo di origine di Sacco, e, all’estremo opposto, il luogo dell’approdo, parte del paesaggio
americano caratterizzato da grattacieli.
Il blocco poggia su una fascia basamentale in granito di colore nero e nella parte alta un piano inclinato,
anch’esso in granito nero, simbolo di lutto. Il piano inclinato in ascesa, rappresenta le forze e i vari
movimenti che hanno operato, non senza difficoltà, per il riconoscimento della innocenza dei due italiani.
Nella parte alta verranno incise le generalità e nella parte basamentale la data e il luogo del decesso”.
442 “la memoria per un futuro senza ingiustizia”.
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Cancelando o erro do passado não trouxe Sacco e Vanzetti à vida. Mas, obviamente,
o sentido simbólico era extremamente positivo para a sobrinha que luta por toda a vida.
Para todos os refugiados e/ou e/imigrantes, era um sinal de alerta e responsabilidade
internacional para a luta pela extinção de injustiças daquele tipo. E, para os italianos,
acaba por ser um reforço do valor nacional que possuem. Ainda mais por ser um país de
vasta experiência migratória, teria, ele, nos casos de criminosos, uma “mancha” na sua
história de “enviar” pessoas trabalhadoras aos outros países.
Então, pontua-se, um dos objetivos do monumento foi o de restabelecer a memória
daqueles indivíduos, já aos EUA serve como um alerta. É necessário atentar-se
diariamente para a xenofobia e o prejuízo étnico das pessoas julgadas. Em um país com
histórico de perseguição aos vermelhos e, atualmente, aos muçulmanos “terroristas”444,
parece ser realmente necessário tal lembrança, ou, melhor, não deixar que esqueçam dos
próprios erros do passado.
Considerações finais
Compreender estes monumentos ajuda a entender o que simboliza o caso Sacco e
Vanzetti. Eles, feitos imagens e semelhanças dos seus defensores, não servem apenas aos
anarquistas como símbolo de luta. Outros grupos se apropriam das suas trajetórias e
443 Quindi,e per tali ragioni, io Michael S. Dukakis, Governatore dello Stato del Massachussets, in virtù e della
autorità di supremo Magistrato in me conferita dalla Costituzione dello Stato del Massachussets,e di tutte le
altre autorità a me attribuite, proclamo martedì,23 agosto 1977 " Giorno commemorativo di Nicola Sacco e
Bartolomeo Vanzetti ",e dichiaro inoltre,che ogni stigma ed onta venga per sempre cancellata dai nomi di
Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti,dai nomi delle loro famiglie e discendenti e quindi,dal nome dello Stato
del Massachussets ; ed io,dedotto il popolo del Massachussets a sostare nei suoi impegni quotidiani ed a
riflettere su questi tragici eventi e da essi trarre il coraggio di impedire alle forze della intolleranza,della
paura e dell'odio e di unirsi ancora per sopraffare la razionalità, la saggezza e l'imparzialità a cui il nostro
sistema legale aspira. Dio protegga lo Stato del Massachussets !. Firmato : S.E., il Governatore Michael S.
Dukakis il Segretario di Stato,Paul Guzzi».
444 Nos EUA do início do século XX, principalmente no período conhecido como Red Scare (Alerta Vermelho),
os anarquistas são conhecidos como terroristas, ou seja, aqueles que praticam atentados à bomba nos
prédios públicos. Contemporaneamente, os EUA investem na luta contra o “Terror” de grupos radicais
islâmicos. Estes combates ideológicos geram o senso comum dos “outros” como figuras perigosas,
estabelecendo estereótipos depreciativos para determinados grupos sociais.
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São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2010, p. 17-19.
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Memorial Day: per Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti. 90º anniversario della loro
uccisione con la sedia elettrica, 40º della loro riabilitazione. Disponível em:
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Introdução
O artigo apresenta uma reflexão sobre a atuação dos empreendedores italianos no
espaço urbano da cidade de Porto Alegre entre o final do século XIX e inicio do século XX.
Utiliza como fontes os cemitérios, os relatos de viagens, publicações jornalísticas e
almanaques comemorativos disponibilizados para consulta em museus e na internet
(web, web sites e portais445). A investigação foi guiada por três propósitos, o primeiro
busca entender as estratégias de inserção social do imigrante italiano nos espaços de
comércio. Nesse intento leva em conta definição de Fernando Devoto (2009, p. 42-2) que
envolve na categoria imigrante “[...] uma variedade de situações e ocupações e uma
multiplicidade de motivos de imigração [...]”. O segundo visa conhecer, a partir dos locais
de partida e chegada as condições propiciaram ao imigrantes a construção de uma
trajetória empreendedora na capital. O terceiro objetivo centra-se nos lugares de
memória que tem a ver com complexo onde estão armazenadas denominados arquivos
que salvaguardam imagens, objetos e textos, que são públicos e ao mesmo tempo
privados, reais e também arquivos fictícios ou virtuais.
A pesquisa é relevante porque se centra na nova perspectiva tanto para
problematizar a utilização das fontes público-privadas e virtuais que guardam a memória
de um grupo urbano de relevância social e econômica no período mencionado, no caso os
empreendedores italianos; quanto para entender as variáveis da imigração urbana,
buscando compreender em que medida os empreendedores italianos se inseriram e
contribuíram para o desenvolvimento da capital gaúcha no período no período
mencionado.
* Doutoranda em Historia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS – Financiada dela
CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
445 São formas de acesso às fontes facultadas por indivíduos, sociedades ou coletividades e instituições que
tem por finalidade disseminar informações. Para saber mais consultar a obra Fontes de informação na web:
uso e apropriação da informação como possibilidade de disseminação e memória do Movimento Negro no
Estado da Paraíba (SILVA, 2010, 77f.).
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446Quanto à vinda dos imigrantes, observa-se se que havia um projeto que pode ser divido em dois
momentos: o primeiro demandava em muitos casos anos de preparativos para partida com mobilização
familiar para dispor de recursos. O segundo momento focalizava os arranjos da partida com viagem até o
porto e compra da passagem além da comunicação com familiares ou conhecidos no local de chegada.
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período como nos decênios posteriores, observa-se uma escassez de pesquisas que
manifestem uma ênfase acerca da presença italiana na capital. O recorte se insere no
contexto da grande migração quando os imigrantes chegavam aos portos brasileiros com
a finalidade de povoar e colonizar áreas de mata intocada no sul (SINGER, 1977, p. 156).
Outros tantos desembarcaram nos centros urbanos, muitas vezes, individualmente com
vistas a trabalharem no comércio e pequenas indústrias e nesse cenário formavam redes
de relações. Essas redes compreendidas como um [...] conjunto de mecanismos que
motivam e orientam a conduta dos homens em relação uns aos outros (BRANCALEONE,
2008, 103) possibilitam e mediação a inserção social de indivíduos na sociedade
receptora.
O fenômeno migratório urbano aludido no anuário do estado do Rio Grande do Sul
sinalizava a existência de algumas nacionalidades migratórias mais bem aceitas em
relação a outras:
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mudou-se para Porto Alegre onde passou a dedicar-se à produção de hortaliças e frutas e
criação de gado leiteiro. Iniciou com um pequeno empreendimento e foi conquistando
mercado da capital com fornecimento de leite para o Mercado Público que abastecia a
cidade.
Por volta do ano de 1984, quando contava com um capital significativo comprou
uma vasta extensão de terras onde hoje se situam o Bairro Passo da Areia. O
empreendimento contava com aproximadamente 150 hectares (em torno de 15. mil
metros quadrados) de terras. A Fazenda fornecia diariamente 300 litros de leite para o
Mercado Público de Porto Alegre. Com a finalidade de melhorar a produção de leite
importou e efetuou o cruzamento de animais da raça Holandesa e Jersey e em poucos anos
havia constituído a Fazenda Modelo.
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Foi dentro deste processo que mais tarde os filhos de Giacomo, Bernardino e
Bertolino se associaram ao pai e continuaram incrementando o empreendimento
conforme informa o diário oficial de 1913, página 3906, em requerimento do Presidente
da Associação de Criadores de Gado ao Sr. Alfredo Gonçalves Moreira onde solicita ao
governo autorização para os Srs. Giacomo Bernardi & Filhos importarem touros da raça
flamenga e gado vermelho das planícies do norte da Europa (DIÁRIO OFICIAL, 1913. p.
3906). A vinda dos animais tinha como fim refinar o gado leiteiro para aumentar a
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produção de leite e com isso criaria um excedente que seria ser manufaturado se
transformando em queijo e doces.
Cinco anos antes da morte do pai, em 1929 os irmãos, se associaram e fundaram
a empresa Irmãos Bernardi e Cia. Compraram e lotearam os terrenos de Eugênio Rubbo e
Francisco Zanenga que compreendiam o atual Bairro Cristo Redentor. Giacomo Bernardi
faleceu em 1936 e foi sepultado no Cemitério da Santa Casa, deixou uma herança
significativa para os filhos constituída tanto de bens materiais como de prestigio
comercial e econômico advindos das atividades agrícolas, pecuárias e industriais as quais
se dedicou desde sua chegada em Porto Alegre.
A sepultura de Giacomo Bernardes construída em estilo eclético está orientada
pela a imagem de Santo Antônio448, o santo da devoção familiar. A obra tumular se situa
na parte antiga dos enterramentos onde estão aquelas pertencentes aos políticos,
comerciantes e industriários, ou seja, a elite econômica da capital gaúcha. Na lápide se
observa a inscrição do nascimento, em 1854 na localidade de Vicenza na Itália e do
falecimento em Porto Alegre em 1936. A grafia italiana da localidade de nascimento do
Patriarca está associada a sua identidade, articula sentidos produzindo significados que
despertam a construção da memória ancestral. O túmulo guarda os restos mortais dele da
esposa e dos filhos ligados não apenas por laços de sangue, mas também por laços de
pertencimento.
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para o Brasil em data imprecisa. Sabe-e que veio para o Rio Grande do sul em 1885 onde
se radicou na Colônia de Beto Gonçalves. Provavelmente sua vinda ocorreu em resposta à
oportunidade de trabalho que se criara, graças ao desenvolvimento da zona colonial,
concomitante com desenvolvimento urbano infraestrutural que os centros urbanos
viviam em função da imigração europeia.
No caso de Monteggia ele desenvolveu na nova pátria uma profissão de técnico de
construção de estradas, se inserindo no que se conhece por deslocamentos de carreira:
Aquele em que o indivíduo se desloca respondendo a oportunidades de ocupação de
postos oferecidos por uma organização a que pertence, ou, de indivíduos associados a
uma profissão que já exercem. (TILLY, 1978 apud TRUZZI, 2008, p. 200). O trabalho exigia
mudanças constantes. Em 1886 estava residindo em Alfredo Chaves, atual Veranópolis,
mesmo local onde se estabeleceu em um lote de terra, construiu um moinho e casou com
a imigrante italiana Marietta Morandi. Permaneceu residindo em Alfredo Chaves
enquanto prestava serviços ao governo nos trabalhos na construção de estradas e de
linhas férreas e telegráficas.
Sobre esse período relatos dão conta que no mês de outubro em 1892 se
encontrava trabalhando como fiscal da Comissão de Terras quando realizavam serviços
para abrir a estrada que ligaria Campo dos Bugres ao Paese Novo (Antonio Prado). No
inicio de 1993, o Dr. José Montauri Aguiar Leitão Engenheiro chefe da Comissão de Terras
e Colonização encarrega Vicente Monteggia de administrar a construção coordenando os
serviços de construção da estrada. (BARBOSA, 1915, p.31).
Quatro anos depois, em 1897 o Dr. José Montauri assumiu a intendência de Porto
Alegre e no mesmo ano Vicente Monteggia, atendendo ao convite do intendente, se
estabeleceu com a família nos arredores na capital. Lembra-se que o imigrante “de posse
de uma técnica manual de trabalho mais elaborada, tornava-se viável passar da condição
de trabalhador especializado a proprietário de pequena oficina e mesmo a industrial, ou
fixar-se nas oportunidades industriais oferecidas pelas cidades” (SEYFERTH, 1990, p. 59-
70).
Estimulado pelo intendente, Vicente Monteggia adquiriu vinte hectares de terra e
fundou a Colonia Villanova d’Italia, onde desde 1892, já estavam estabelecidas famílias
italianas oriundas da região norte da Itália. No mesmo ano que se estabeleceu em Porto
Alegre, fundou a escola destinada a instrução dos filhos dos imigrantes. No ano seguinte,
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449Os deslocamentos, tanto anteriores como posteriores à criação da Colônia podem ser constatados no
Cemitério São Jose e no Livro Tombo da Igreja São José. Acredita-se que haja mais informações no Cemitério
de Belém e na Igreja Nossa Senhora das Graças que administrava a capela e o cemitério Villanova d’italia
sendo os casamentos, batismos e enterramentos efetuados pelo padre da referida igreja.
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pelas colônias estabelecidas ou para preencher os lotes que não haviam sido negociados.
(MALMANN, 1991, p. 10).
Assentados em lotes no local já estabelecido, a Colonia da Villanova d’Italia, os
imigrantes se associam ao fundador que passou a orientar vários empreendimentos na
comunidade, sempre apoiado tanto do intendente municipal como dos governos
estaduais. Depois de construir a escola, construiu a capela, um salão e parque de
atividades sociais e o restaurante450 Napolitano onde se apreciava a comida do cardápio
italiano. Todos os espaços estavam estrategicamente localizados próximo ao armazém 451,
local de sociabilidade da comunidade e onde eram efetuadas as transações comerciais
como compra e venda e troca de mercadorias.
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452 Nesse viés a classe dos comerciantes não deve ser considerada como uma resultante, mas como uma
força cujo impulso se faz em todos os setores da vida econômica: produção, circulação e trocas da das
riquezas, crédito, construções urbanas, colonização (ROCHE, '1969 p.582).
453 Giuseppe Stefano Paternò. Advogado, catedrático, especialista em cooperativismo, com grande
experiência apoiado pelo ministério da Agricultura e Comércio do Estado, ministro Pedro de Toledo, e do
governador Borges de Medeiros, o italiano chegou a Porto Alegre em 1° de setembro de 1911. Realizou sua
primeira conferência sobre o cooperativismo no Teatro São Pedro. (GIRON, MACHADO; HERÉDIA. 2017).
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454Toda sorte de desentendimentos no espaço social da Villanova nesse período estão registrados no Livro
tombo da Igreja São José.
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Considerações
Acredita-se que Vicente Monteggia e Giácomo Bernardes, vindos do norte italiano
devam ser incluídos no rol de líderes que compuseram o quadro de imigrantes em Porto
Alegre no período. Observa-se que de forma incipiente existia investimento tecnologia
nos negócios de Giácomono Bernardi, porém o empreendedor priorizava o conhecimento
empírico associado ao científico melhorando a qualidade de seus produtos. Vicente
Monteggía, por seu lado investia em tecnologia de ponta e na diversificação dos negócios
ao mesmo tempo estimulava os colonos a se valerem do mesmo princípio na produção
alternando plantio de produtos. Essa estratégia garantia um mercado sustentado pelas
redes de relações fortemente alicerçadas em ideias progressistas.
Quanto às fontes utilizadas no texto, podem ser pensadas como suportes de
memória, só fazendo sentido se forem organizadas e disponibilizadas e disseminadas por
meio de produtos informacionais que permitem não apenas a socialização, mas também
a produção de conhecimento inspirada nos acervos constituídos que são tanto materiais
quanto virtuais. Lembrando os acervos materiais os virtuais foram e são constituídos
utilizando-se de técnicas e tecnologias diversas, de acordo com o tempo e o contexto,
dentro do processo civilizatório do homem, nas suas diversas áreas de atuação e
convivência.
Por fim no que tange ao patrimônio e a memória da cidade os documentos escritos
públicos ou privados (de cunho bibliográfico e jornalístico, oficiais, disponíveis na
internet) e as obras erigidas nos espaços cemiteriais dizem das modificações e
sobreposições da formação de um grupo humano. Sob a perspectiva antropológica e social
informam a cidade, a estrutura social, comunidades, sobre a língua, ritos, crenças e
costumes. As fontes aqui levantadas integram o que pode ser chamado patrimônio da
cidade Porto Alegrense porque fornecem dados e possibilidades sobre aspectos que
identificam a cidade.
Referências bibliográficas:
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Introdução
No Brasil a Educação Patrimonial foi discutida como foco principal a partir de 1983
depois no 1º seminário no Museu Imperial de Petrópolis - RJ. Inspirado na pedagogia da
Inglaterra desenvolve experiências que começam a tomar corpo, inicialmente, com ações
educativas voltadas para o trabalho no museu.
Através do incentivo do IPHAN é lançado em 1999 o Guia Básico de Educação Patrimonial
(HORTA et al, 1999) tornando-se um marco referencial nos trabalhos de educação
patrimonial no Brasil. Esta publicação desperta no universo educacional e nas questões
de salvaguarda do patrimônio cultural, caminhos para desenvolver na escola, na
comunidade, através do estado, do município a sensibilidade para manter a memória de
um local viva, em movimento. Nele encontramos a seguinte definição para o conceito de
Educação Patrimonial:
* Doutora em Arqueologia/IPHAN-RS.
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Sob esta ótica, em Santo Ângelo foi possível elaborar ações educativas originais
destinadas à produção do conhecimento histórico referente à antiga redução jesuítico-
guarani de Santo Ângelo Custódio, cujas ruínas atualmente jazem no subsolo do Centro
Histórico da moderna cidade de Santo Ângelo.
Cabe aqui ressaltar que dos Sete Povos localizados na banda oriental do Rio
Uruguai (atual Noroeste do estado do Rio Grande do Sul, Brasil) apenas os municípios de
São Borja e São Luiz Gonzaga ainda não exploraram o seu subsolo com escavações
arqueológicas para fins de pesquisas e atrativos turísticos. São Miguel, São João Batista,
São Lourenço e São Nicolau são administrados como Parques Nacionais pelo IPHAN e
Santo Ângelo desenvolveu legislação municipal e tem gerência local sobre seu patrimônio
arqueológico.
Neste sentido, as ações criadas no escopo dos projetos arqueológicos
desenvolvidos pelo município de Santo Ângelo proporcionam a oportunidade de divulgar
para a comunidade escolar e para o público em geral, na forma de extroversão criativa e
variada, o vasto resultado das pesquisas realizadas sobre os vestígios desta antiga
redução existente no subsolo do Centro Histórico da cidade de Santo Ângelo.
É importante salientar que Santo Ângelo é um dos raros municípios brasileiros que
mantém o cargo de arqueólogo dentro de seu quadro técnico-científico.
No amplo território do município de Santo Ângelo os tipos de vestígios
encontrados compreendem remanescentes pré-históricos da ocupação humana na
região, que remonta a até 8.000 AP (implementos líticos lascados). Já seus vestígios
relacionados aos remanescentes históricos – referentes à constituição edilícia e demais
evidências da cultura material – referem-se tanto à antiga redução de Santo Ângelo
Custódio que floresceu no séc. XVIII, quanto ao repovoamento ocorrido no mesmo sítio a
partir do séc. XIX e que deu origem à moderna cidade de Santo Ângelo.
Diante deste quadro ações de extroversão foram elaboradas em decorrência
de dois grandes programas de pesquisas arqueológicas coordenados pela presente autora
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ao longo do decênio compreendido entre os anos de 2006 a 2015, período em que atuava
enquanto arqueóloga do município455.
Ambos programas (sendo que o segundo é mais amplo e segue em andamento
contínuo subsidiado pela municipalidade) vem permitindo a descoberta, resgate e o
mapeamento dos vestígios da antiga redução em subsolo, gerando sempre novos
materiais para pesquisas, publicações, exposições, e atividades de educação patrimonial,
sendo estes:
455 Como consequência de sua implantação, os resultados de tais ações seguem sendo conduzidas naquele
município pelas decorrentes gestões municipais e pelos novos recursos humanos que dão continuidade aos
projetos outrora implantados.
456 Este Programa contou com a coordenação geral da arqueóloga Raquel Rech e com a co-coordenação por
parte da URI da profa. Claudete Boff, então coordenadora do Centro de Cultura Missioneira e de seu Núcleo
de Arqueologia (NArq/CCM-URI), responsável pela atuação dos estagiários dos cursos de História e Geografia
desta universidade no projeto.
457 Realizado em parceria com a então historiadora lotada no Museu, profa. Bedati Finokiet;
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Museu a Céu Aberto da Redução Jesuítica de Santo Ângelo Custódio (2006-2007) 458
(resultado final das escavações com exposição permanente à comunidade in situ);
Dentre todas as ações de educação patrimonial oriundas dos dois amplos projetos
de pesquisa arqueológica implantados em Santo Ângelo apresentados acima, cabe
apresentar aqui um olhar mais detalhado sobre o Projeto de Educação Patrimonial
Jornadas de Arqueologia Missioneira.
Este projeto foi originalmente elaborado no ano de 2009 para ser executado pelas
diferentes equipes de estagiários e bolsistas deste Núcleo de Arqueologia do Museu
Municipal Dr. José Olavo Machado (NArq-MMJOM) e atender a extroversão das pesquisas
arqueológicas realizadas na área do Centro Histórico de Santo Ângelo, visando ensinar de
forma lúdica sobre o passado desta antiga redução que vigorou na primeira metade do
séc. XVIII.
458 Implantado paulatinamente através de processos licitatórios com recursos oriundos do Ministério do
Turismo, bem como dotação própria da Prefeitura de Santo Ângelo através diferentes etapas: identificação das
áreas mais expressivas para exposição dos vestígios no decorrer das escavações (2006 e 2007); erguimento
das muretas de proteção dos vestígios escavados e selecionados para exposição in situ (2006 e 2007);
instalação de coberturas provisórias (2006 a 2009); implantação de painéis e placas explicativas junto às
"janelas arqueológicas" (2009); implantação das telas de ventilação e cobertura de vidro das "janelas
arqueológicas" (2009); e colocação de grade de proteção na boca do poço d´água (2010).
459 Dado seu caráter contínuo, este projeto segue doravante sendo coordenado atualmente pela Bacharel
Thalis Garcia, a qual assume o cargo técnico-científico de arqueóloga do município de Santo Ângelo desde o
ano de 2016 (NArq/MMJOM/PMSA);
460 Este projeto foi um dos reconhecidos pelo Prêmio Darci Ribeiro 2010, concedido pelo Instituto
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Para facilitar o ensino de forma lúdica, este projeto insere uma nova modalidade
que confere grande importância para o processo de ensino-aprendizagem: a interação
entre personagens históricos e alunos. Isso ocorre através de intervenções cênicas
interativas de atores caracterizados de personagens históricos461 durante a explanação
interativa dos conteúdos ensinados, que versam sobre a vida quotidiana nas missões,
trazendo o foco para a redução de Santo Ângelo Custódio, pertencente ao passado desta
comunidade.
Nesse sentido, o papel do teatro x educação traz uma colaboração ainda não
experimentada nos projetos de educação patrimonial relacionados à pesquisas de
Arqueologia Histórica já realizadas em Santo Ângelo, preenchendo assim um papel
fundamental no processo de ensino-aprendizagem:
461Estagiários do NArq-MMJOM treinados com roteiros oferecidos pelos então diretores das Oficinas
de Teatro da Secretaria Municipal de Cultura de Santo Ângelo, Darlan de Mamman Marchi e Juliani
Borchard, entre os anos de 2009 a 2011.
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Este projeto teve grande receptividade na rede escolar de Santo Ângelo, tornando-
se programação já inserida na grade curricular das redes municipal e estadual de ensino
da cidade alcançando centenas de alunos a cada ano sendo direcionado à rede municipal
durante o 1º semestre letivo, à rede estadual durante o 2º semestre letivo465 e à rede
particular em datas comemorativas.466
O projeto teve enorme alcance e reconhecimento fazendo com que no seu segundo
ano de atuação fosse um dos projetos reconhecidos pelo PRÊMIO DARCI RIBEIRO 2010,
concedido pelo Instituto Brasileiro de Museus - IBRAM/Minc, por configurar dentre as
melhores ações educativas de museus brasileiros, tendo sido selecionado para publicação
em revista editada pelo IBRAM/Minc467 (RECH & FARIAS 2012).
462 Os lanches temáticos são preparados por meio de uma lista de sugestão de alimentos fornecidos para
serem elaborados pelas merendeiras das escolas participantes.
463 Oferecidas apenas eventualmente, quando há grupos muito grandes de alunos, para haver um rodízio
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ISSN 2527-1148
Conclusão
Dentre as inúmeras atividades de extroversão das pesquisas arqueológicas levadas
a cabo em Santo Ângelo realizadas como consequência de 2 grandes programas de
pesquisas arqueológicas coordenados pela presente autora ao longo dos anos de 2006 a
2015, período em que atuava enquanto arqueóloga do município são passíveis de
destaque as seguintes extroversões à comunidade:
468Tendo em vista aprovação em processo seletivo junto ao IPHAN-RS, o que levou à necessidade de
desligamento desta autora da coordenação do NArq/MMJOM no final do ano de 2015, a Prefeitura de Santo
Ângelo providenciou novo processo seletivo para lotação da vaga de arqueólogo do município, sendo que a
partir de 2016 cabe à nova coordenadora deste Núcleo, a Bacharel Thalis Garcia e suas novas equipes a
tarefa de dar continuidade à condução destes projetos de cunho permanente, as quais vem sendo
continuadas de forma meritória pelas novas equipes do NArq/MMJOM.
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*Doutorando em Estudos Históricos Latino-Americanos, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
Capes/PROSUP. E-mail: willandsouza@hotmail.com
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A agenda do mercado
Desde os tempos coloniais, a regulação e vigilância da mercancia nas vilas e cidades
fazia parte da administração camarária. Além de zelar pelo abastecimento de gêneros de
primeiras necessidades, a municipalidade deveria também regular o cotidiano do
mercado, suas práticas e sociabilidades nele vivenciadas. Essa agenda teria maior ou
menor peso de acordo com o número das casas e/ou espaços de negócios e a sua dinâmica
local. Em 1828, por exemplo, no Recife foram contabilizadas seiscentas e setenta e duas
lojas, das quais 65% eram de secos e molhados e 35% eram classificadas como tavernas.
Desse segundo tipo, 78,3% estava instalado nos três bairros centrais – Recife, Santo
Antônio e Boa Vista –, contra 21,7% nos arrabaldes (FIGUEIRA DE MELLO, 1852).
Se tomássemos apenas as tavernas veríamos que elas podiam ser encontradas em
várias partes do município, ofertando bebidas e gênero alimentício a granel, dando-lhes
uma função social para a subsistência da gente que delas se serviam (LOUSADA, In:
SERRÃO; PINHEIRO; FERREIRA, 2009, pp. 227-248). Apesar de sua importância, nem
sempre elas eram vistas com bons olhos. Seja por estarem associadas aos portugueses,
seja por ser um comércio “democrático”, servindo para a utilidade de toda sorte de gente,
sendo estigmatizadas por alguns coetâneos como um lugar supostamente promíscuo e
ávido por toda a sorte de vícios e más artes (FELDMAN, 2014; LUSTOSA, 2015, p. 8;
CÂMARA, 2013; CHALHOUB, 2001)470.
Era comum ali se reunir pessoas de cor, escravizados ou livres pobres para tomar vinho ou aguardente,
470
comer petiscos, fazer batucada e se confraternizar em meio a muitas cantigas e vozerias, portanto, um lugar
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A Agenda construtiva
As autoridades do Recife tinham enorme dificuldade para enfrentar as desordens
da má planificação e pouca infraestrutura, principalmente em se tratando da área
urbanizada. Nos arrabaldes, as questões da tortuosidade, estreiteza e desleixo das ruas
eram menos agravantes, seja pela diminuta área construída, seja pela presença humana
mais rarefeita. No geral, os problemas daí advindos ressoavam de várias partes, mas
472 Sessão extraordinária de 28.09.1843. Livro das Sessões da Câmara Municipal do Recife, (1838-1844), n.
8, ff. 281-284; Ofício de 05/11/1844, CM, n.º 22, ff. 124; DN, nº 214, 05/10/1843, pp. 1-2, cc.1-3.
473 DN, nº 125, 07/07/1843, p. 4, cc. 1-2; nº 131, 18/06/1845, p. 3, c. 2.
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principalmente a partir das autoridades. A Câmara Municipal era uma das instituições
protagonistas dos principais ataques às questões da má planificação citadina e a
executora de boa parte de seus reparos. A clandestinidade de muitas edificações feitas
sem licença ou cordeação, nem aforamento ou título de posse de seus terrenos era uma
das queixas mais patentes, e também um prato cheio para os fiscais autuarem e tentarem
fazer cumprir os embargos e as multas pecuniárias impostas pelas leis municipais.
Em 1833, o fiscal e futuro vereador, Rodolfo João Barata, bradava interrompendo
obras e solicitando as respectivas licenças das pessoas que estavam edificando ou fazendo
intervenções estruturais no Aterro dos Afogados. Dois anos mais tarde tal medida atingia
a Elias Coelho Cintra, outro futuro vereador, que então fazia uma cerca de espinhos em
sua propriedade naquela povoação. Já o fiscal da Boa Vista, em 1835, denunciava à Câmara
que no Aterro daquela freguesia e na Trempe estavam sendo construídas casas fora do
alinhamento previsto na planta do bairro. No ano seguinte, o mesmo fiscal pedia o “termo
de achada” para a obra sem licença e cordeação que João Francisco de Albuquerque fazia
na Rua da Alegria. Ainda naquela freguesia, o fiscal Francisco de Barros Falcão de Lacerda,
filho do vereador José de Barros Falcão de Lacerda, denunciava que alguns proprietários
tinham feito os batentes e passeios de suas casas fora da bitola do nivelamento um do
outro, em menoscabo das posturas474, só para ficarmos nesses casos.
As demandas construtivas particulares se somavam às necessidades de obras
viárias, como as construções ou reparos de ruas, estradas públicas e as várias pontes que
interconectava o município. As intempéries do tempo, as enchentes, ação das marés e o
constante uso público punham em desgastes, danificavam e até destruíam as frágeis
passagens de madeira e pedra do Recife. Isso exigia um trabalho infindo de manutenção
desses espaços da cidade. Para o caso das pontes, ao longo da primeira metade do século
XIX, inúmeras foram as intervenções e gastos camarários para dar conta dos problemas
infraestruturais que envolviam tão importante instrumento integrador das freguesias
urbanas e rurais, o que nos faz elencar as pontes e suas necessidades de conserto e
reconstrução como marca ora da cidade leviatã, ora da cidade sereia, fazendo parte do
474 DP, nº 132, 20/06/1833, p. 561, c. 2; nº 156, 25/08/1835, p. 3, c. 3; Câmara Municipal do Recife, sessão
ordinária do dia 24 de setembro de 1835. DP, nº 213, 04/11/1835, p. 2, c. 2; Câmara Municipal do Recife,
sessão ordinária do dia 23 de junho de 1836. DP, nº 146, 09/07/1836, p. 2, c. 2; DP, nº 45, 24/02/1840, p.
1, c.3.
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A Agenda sanitária
Em relação aos problemas sanitários e da saúde na cidade, muitos observadores
citaram a ruas enlameadas, não asseadas e até imundas, repletas de animais a dividir o
espaço com as pessoas, casas, lojas e suas mercadorias. Porcos, cachorros, muares e
galináceas, entre outros tantos, contribuíam para o mau asseio, a imundície e a fedentina
que compunham o cenário das ruas do município. No ano de 1859, por exemplo, o alemão
Robert Avé-Lallemant, referindo-se às transformações físicas que observava no Recife,
disse que ele era “a verdadeira cidade do futuro Brasil”, mas tinha “também seus lados
fracos”: lamaçais, ruas fétidas, e por toda parte porcarias eram lançadas nas ruas pelos
próprios moradores das casas; a sujidade era tamanha, a ponto do observador
equivocadamente afirmar que “numa polícia de limpeza parece que ninguém pensou”
para a cidade (AVÉ-LALLEMANT, 1980, pp. 279-80).
Os domésticos também não se eximiam de reclames. Em 1830, o Intendente da
Marinha reclamava com a Câmara Municipal sobre não se lançar o lixo e fazer despejar
sujeiras no Porto. No mesmo ano o Comandante Militar da Polícia também se avexava com
o entulho de lama e imundícias da Rua Nova, pedindo para se mandar abrir e desentupir
o cano de escoamento das águas pluviais ali estagnadas. Quatro anos mais tarde, o juiz de
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476 IAHGP, Série manuscrito. Ata extraordinária de 17.05.1830, Sessão extraordinária de 18.09.1830. Livro
das Vereações e Accordãos da Câmara do Recife, (1829-1833), n. 7, ff. 39, 57 (verso) - 58; DP, nº 494,
24/09/1834, p. 1876, cc. 1-2; nº 13, 18/01/1836, p. 3, c. 1; DP, nº 232, 23/10/1839, p. 3, c. 3; DN, nº 156,
20/07/1844.
477 Câmara Municipal do Recife, sessão extraordinária de 5 de dezembro de 1842. DN, nº 15, 10/01/1843,
p. 2, c. 1. Ofício,16/06/1843, CM, n.º 21, f. 73. Três anos depois, as verbas orçamentárias para tal serviço
foram reduzidas e a municipalidade mandou obstar tais trabalhos até o presidente da província rever a
questão. CM, ofício de 31/03/1846.
478 Código de Posturas Municipais, Título 7º, § 3º, Sobre diferentes objetos que prejudicam ao público. DP,
determinações, o que significa a teimosia e repetência de dita prática social. Cf.: DP, nº 217, 09/11/1835, p.
3, c. 1; nº 33, 10/02/1854, p. 3, c. 5.
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482A Câmara Municipal, por exemplo, estava atenta à propagação de epidemias vindas de fora da província.
Além de buscar o auxílio das forças policiais da província para o Provedor da Saúde na vistoria dos navios
no porto, também colaborou na fundação de lugares para quarentena de embarcações, pessoas e
mercadorias vinda de portos com casos epidêmicos. Tratava-se de cautelas sanitárias, mas também fiscais,
pois vedavam “a comunicação do mal e os efeitos do contrabando”. CM, ofício de 10/07/1833.
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Fontes primárias
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COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil de 1828. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1878
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Considerações Iniciais
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passado” (2001, p. 158), são fragmentos de diversos e contínuos episódios que, ao serem
analisadas, concede ao observador uma possibilidade de revisitar o que ficou na história
vivenciada em outros tempos. Ciavatta (2002, p.30) acentua que “o olhar fixado no objeto
fotográfico não é apenas uma característica do artefato, um aspecto do suporte que
sustenta sua existência. Cada registro é parte de uma história e constitui ele próprio um
princípio de memória”.
Vale dizer que a fotografia permite que se conheçam aspectos significativos da vida
ocorridos em determinado tempo, alargando a sua utilidade para muito mais do que uma
simples ilustração e recordação, porque, além disso, ela informa sobre a história social,
serve como fonte documental, retrata estilo de época, permite, ainda, que se conheça o
patrimônio material e imaterial de uma sociedade, por meio do que expressam as imagens
capturadas pelo fotógrafo em um dado período, como, por exemplo, os detalhes da
arquitetura, os costumes e tradições de um povo. Nas palavras de Kossoy (2001, p. 162),
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Contemplar uma fotografia pode significar trazer para o presente o que está posto
no passado, pois essas imagens, muitas vezes, ativam a imaginação, acionando a memória.
Segundo Ciavatta (2008, p. 51), “a fotografia atua como elemento de legitimação da
memória familiar e da história que se constrói sobre o grupo”. Os retratos dos
acontecimentos, dos lugaresservem como suporte material para a (re) construção do
aspecto memorialístico de um grupo, o que leva a imagem fotográfica a ser reverenciada
como um importante recurso nas discussões sobre essa temática. Para Kossoy (2001, p.
26), “O mundo tornou-se, de certa forma, ‘familiar’ após o advento da fotografia; o homem
passou a ter um conhecimento mais preciso e amplo de outras realidades que lhe eram,
até aquele momento, transmitidas unicamente pela tradição escrita, verbal e pictórica”.
Pollak (1992) fala de dois elementos constitutivos da memória: acontecimentos
vividos pessoalmente e aqueles “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos que a pessoa
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possa não ter participado, mas o grupo a qual ela se sente pertencer tenha vivenciado.
Nesse sentido, por meio da circulação das imagens fotográficas de uma dadaépoca, é
possível que a pessoa consiga se identificar com esse tempo, ativando o que conceitua
Pollak de “memória quase que herdada”.
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A foto acima retrata um dos fatos mais representativo para a constituição história
de Caxias, memoriza um acontecimento que marcou a história da cidade: a Guerra da
Balaiada. Hoje, esse espaço cedeu lugar para praça, Museu, Universidade, casas,
encontrando-se bastante modificado, mas, ainda, conservando vestígios da Batalha. O
canhão, ícone da Guerra, ainda é conservado, estando posicionado, atualmente, em outro
ângulo. Tal objeto simboliza uma época marcada por sentimento de revolta, tristeza,
opressão, enfim, de perdas para um grupo reprimido e ganhospara os ditos detentores da
ordem. Do alto do morro, onde se encontra o canhão, observa-se uma cidade cercada por
uma vasta vegetação, o que permitia aos seus moradores desfrutarem de um clima
agradável.
A presença do cruzeiro, situado ao lado do canhão, mostra a religiosidade do
povo caxiense que, mesmo vivendo em meio aos horrores da guerra, conseguiacultivar a
fé e a esperança de novos tempos. A imagem dessa cruz já não mais existe, ficou apenas
na história. A fotografia reúne informações que podem ser captadas, tendo em vista a
maneira de observar de cada pessoa.
Por meio dessa imagem, revive-se um passado, buscam-se na memória aspectos
da paisagem que já não são mais possíveis serem moldados. É através da memória que se
torna viável retomar momentos que aconteceram há muito tempo e que foram
esquecidos, mas que se tornam presentes ao serem relembrados. Como exemplo, mostra-
se essa foto a qual se encontra imbuída de simbologia, marcando sua passagem nesse
espaço. Com isso, os resíduos da guerra, quando observados, remetem os moradores a um
passado muito distante, mas que pode ser relembrado, dando sentido aos elementos que
compõem o espaço, bem como às constantes visitas dos turistas e às atividades que ali são
desenvolvidas.
Utilizando de sua câmera, Sinésio registrou aspectos que fazem referência a um
contexto histórico representativo e que demonstra as grandes transformações pelas quais
passou a cidade, permitindoque as novas gerações mantenham contato, por meio da
memória fotográfica, com a historiografia da cidade. Assim, se compreende patrimônio
como algoque representa o passado e que seráconservadopara gerações futuras, sob a
perspectiva da preservação e valorização de algo que pode ser compreendido como
referência cultural e histórica de um grupo, incluindo-se, nesse sentido, as tradições.
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A foto acima representa para os caxienses uma das maiores lembranças de cunho
religioso, pois o Festejo de São Benedito foi, em tempos de outrora, considerado um dos
grandes acontecimentos da região leste maranhense, período em que se abrigava, na
maioria das residências e hotéis, uma numerosa quantidade de visitantes, alguns atraídos
pela missão religiosa; outros, pelo desejo de encontros e (re)encontros com pessoas
queridas. Esse momento, esperado com muita pompa, era singular na vida dos moradores,
ocasião em que todos economizavam recursos financeiros para exibirem os melhores e
mais caros trajes. Essa festa, além de servir como atrativo de cunho social e religioso trazia
para Caxias um aumento da renda financeira, pois, nessa época, o comércio alimentício,
hoteleiro e varejista conseguia acrescer seu capital, o que proporcionava uma melhoria
econômica aos comerciantes.
Hoje, o largo transformou-se em praça; a rua, onde as pessoas circulavam em um
constante ir e vir, à procura de um par ou para desfrutar do ambiente festivo, abriga carros
e motos, os quais, em tempos passados, não existiam. A paisagem foi alterada, os hábitos
de as pessoas ocuparem os bancos sob as árvores para saborearem os petiscos ali
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Considerações Finais
O objetivo do presente trabalho foi discorrer sobre a importância do acervo
fotográfico do artista Sinésio Santos como constituinte da memória e revelador do
patrimônio de Caxias-MA. Nesse sentido, vale dizer que a imagem fotográfica não deve ser
vista, unicamente, enquanto registro, mas, sobretudo, como fonte de informação e de
memória. Para corroborar com o que foi descrito no texto, procurou-se apresentar,
fazendo algumas considerações, duas fotografias, as quais foram reveladas pelo fotógrafo
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Introdução
O artigo em pauta introdutória objetiva estabelecer a correlação, com posteriores
comentários, entre algumas conceituações atinentes à memória e os depoimentos de
cunho memorialístico de artistas do Grupo Teatral Sombras (GTS). A cidade de Caxias-MA
configura-se no espaço do qual a referida companhia cênica é oriunda, desenvolvendo
suas atividades artísticas no período de 1987 a 1995. Com suas encenações, o Sombras
fez soprar ventos de inovação no cenário das artes caxienses, uma vez que trouxe para a
boca de cena um teatro diferenciado e engajado com as causas sociais e políticas,
revelando a crença no poder transformador das manifestações artísticas.
Mencionando a fundamentação teórica que respaldará o artigo em focalização,
informa-se que, na vertente dos aspectos conceituais e caracterizadores da memória,
serão registradas as considerações de autores como: Bergson (1999), Lowenthal (1998),
Pollak (1992), Torino (2013), Le Goff (1992 e 2003), Hallbwachs (2004), Bosi (1987).
Essas informações teóricas, em grande medida e ao longo desse trabalho, serão
entrelaçadas de forma comentada com trechos das entrevistas de artistas do Grupo
Teatral Sombras; nas falas dos entrevistados estarão registradas as memórias deles como
integrantes e partícipes da mencionada companhia cênica.
Doutorando em História- UNISINOS/RS. Mestre em Estudos Literários-UFPI. Professor Assistente IV do
Departamento de Letras- CESC/UEMA.
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subjetivo e emocional. Essa é a linha conceitual adotada por Bergson e que se entrelaça
com o que o autor revela: “A memória é um fenômeno que prolonga o passado no
presente; é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos
sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida"
(BERGSON, 1999, p. 247).
Esse aspecto da memória de capturar do passado acontecimentos marcados
pela emoção, afetividade e torná-los recompostos no momento de evocação
rememorativa pode ser corroborada no trecho de uma entrevista fornecida por um dos
artistas do Grupo Teatro Sombras, concedida ao elaborador desse artigo:
Nós éramos amigos dos pais, nos tornamos parte da família de cada um.
Frequentávamos as casas uns dos outros. Ao chegar nas casas, era como
se fôssemos da família. Tínhamos as confraternizações que ocorriam em
nossas casas. Fomos conhecendo também as fragilidades de cada um. O
Sombras se tornou uma grande família, ficamos tristes quando vemos
alguém com problemas de saúde (SILVA, 2016).
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Lembro de ter visto o Naldo fazendo a “Lagoa Mundaú”, em que ele fazia
um revolucionário: um cara parecidíssimo com os nossos ídolos; era um
cara revolucionário, politizado no meio da questão ecológica; era a
questão da poluição da lagoa de Mundaú e a inutilização do rio a morte: a
morte do rio e, consequentemente, o desaparecimento da questão da
renda daquele povo que vivia de pescar em torno da lagoa do Mundaú
Esta peça “Lagoa Mundaú” é de um alagoano chamado Pedro Onofre
(OLIVEIRA, 2017).
Esse espetáculo “Mundaú: lagoa assassinada” era muito legal porque ele
tinha uma temática politica muito boa, porque ele tratava da periferia, do
meio ambiente, da subsistência das pessoas que viviam daquela lagoa
para tirar seu pão de cada dia . Tinha o líder pescador, Antônio e tinha o
jornalista, um cara de esquerda, chamado de Chico Porrada. Ele escrevia
para a rádio e falava tão matando a lagoa, mas tão matando também o
povo lá com esgoto. Montamos esse espetáculo e ele foi muito bom; com
esse espetáculo a gente viajou, a gente fez um teatro itinerante aqui em
Caxias, fomos em várias escolas.
Como é verificável nos dois trechos das entrevistas, ambos os artistas estão
rememorando o tema e a encenação da peça “Mundáu: lagoa assassinada”, uma das
produções dramáticas do Grupo Teatro Sombras. No primeiro depoimento, tem-se a
declaração de alguém que havia participado do Sombras, mas que, naquele de
apresentação do espetáculo, encontrava-se como plateia; por isso, talvez a não lembrança
do título correto da peça: Lagoa Mundaú em lugar de “Mundaú: lagoa assassinada”,
nomeação revelada corretamente pelo segundo entrevistado que fazia parte do elenco, ou
seja suas recordações estavam imersas em teor de envolvimento e afetividade maior que
o primeiro entrevistado. Nos dois trechos destacados, os entrevistados mencionam
corretamente o nome e a naturalidade do dramaturgo e, também , de maneira uniforme,
informam o tema ambiental e de denúncia política do texto dramatizado. Outro ponto
convergente refere-se à presença de um personagem que, com ares de revolucionário,
denunciava as agressões ao meio ambiente, os malversados interesses políticos e seus
prejuízos causados à população.
Bergson (1999), em seus estudos sobre a memória, apresenta a existência de
duas memórias com características diferenciadas entre si, sendo que ambas se
correlacionam; são elas: a memória hábito e memória regressiva ou espontânea. A
memória-hábito é ligada a um princípio de automatismo, é deflagrada pela repetição ou
reiteração contínua de alguma informação ou comportamento; um exemplo é quando se
diz que se aprendeu algo de cor, ou seja pela força do ato repetitivo. O processo de
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constante repetição se imprime na mente bastando uma palavra, um som, uma imagem,
um gesto para que essa memória venha à tona de maneira automática, sem sofrer muito
o crivo da racionalização.
Em relação à memória espontânea, também denominada de memória pura,
pode-se dizer que nela as lembranças não estão na dependência de uma ação repetitiva e
reiterante para serem evocadas, mas preservam a sua existência pela sua singularidade,
pelo seu valor único e não replicável. "Por ser inconsciente e individualizada, é
considerada por Bergson como a verdadeira memória, pois o passado estaria aí, vivo para
souvenir, vir à tona, constituindo se em autênticas ressurreições do passado” (BOSI, 1987,
p. 48).
As lembranças, na memória espontânea, emergem a partir da significação e
representatividade que possuem para nós dentro de um contexto afetivo, emocional e
valorativo; aquilo que não nos foi marcante é, comumente, esquecido. O esquecimento
como algo necessário é mencionado por Lowenthal (1998, p. 95): “As lembranças
precisam ser continuamente descartadas e combinadas; somente o esquecimento nos
possibilita classificar e estabelecer ordem ao caos”.
A memória espontânea estará sendo suscitada pelos artistas do Grupo de
Teatro Sombras que irão lembrar das circunstâncias que lhe foram mais caras, mais
inesquecíveis, sendo únicas e indeléveis, como se constata no depoimento de uma das
artistas:
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regional, não limitando a sua atuação ao âmbito de Caxias e conseguindo divulgar a arte
caxiense e maranhense na esfera regional.
Na visão de Halbwachs (2004), a memória deve ser vista como um fenômeno
social. Na visão desse filósofo, todas as nossas lembranças, tudo que a integra não pode
ser concebido como algo de teor estritamente subjetivo ou matéria de plena
individualidade, haja vista que essas recordações são determinadas socialmente, estando
associadas a um contexto de coletividade, não podendo serem analisadas desgarradas do
seu habitat social ou apenas sob a perspectiva de manifestação individual/ espiritual. “Só
temos capacidade de nos lembrar quando nos colocamos no ponto de vista de um ou mais
grupos e de nos situar novamente em uma ou mais corrente do pensamento coletivo”
(HALBWACHS, 2004, p. 36).
Acerca dessa discussão se memória é, na sua origem, individual ou coletiva
Lowenthal (1998, p. 78) afirma: “O passado relembrado é tanto individual quanto
coletivo. Mas como forma de consciência, a memória é total e intensamente pessoal; é
sempre sentida como algum acontecimento [que] ocorreu comigo”. O filósofo Halbwachs
não descarta a existência da memória individual, afirmando que ela existe, mas que se
encontra com suas raízes fincadas no interior dos denominados quadros sociais,
associados às representações que um grupo proporciona em nossa individualidade. Por
mais paradoxal que possa parecer, é a experiência individual de conviver socialmente em
uma família, em uma escola, grupo de amigos, de trabalho, de atividade artística entre
outros, que constrói a nossa memória, ou seja, ela é erguida como consequência da inter-
relação, do diálogo entre a nossa experiência individual e a nossa vivência do coletivo,
produzindo uma formação identitária sociocultural.
Dentro dessa dimensão, é que se acredita que as memórias dos integrantes do
Grupo de Teatro Sombras estarão, em seus depoimentos orais, sendo exteriorizadas
individualmente dentro das situações vivenciadas em um quadro coletivo representado
por um grupo de arte dramática, definindo-lhe uma identidade cultural. A seguir, para
ilustrar esse viés de memória, registra-se a fala de um artista do GTS:
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tinha essa conotação bem marcante mesmo. Até porque grande parte
dos integrantes tinha uma visão política apurada, com exceção de muito
poucos (AQUINO, 2016).
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processo de verter a linguagem oral para a linguagem escrita há de se ter muito cuidado
para se manter a fidedignidade com as falas verbalizadas pelo entrevistado. É perceptível
no discurso escrito uma marca de oralidade: as várias repetições do termo “a gente” em
lugar de nós, além de algumas estruturas de linguagem mais coloquiais (Ex.: a gente
tinha,...comprava alguma coisa). No teor da fala do entrevistado, ressalta-se o valor que o
Grupo Teatro Sombras atribuía aos livros e à leitura, o que revela o desejo de
conhecimento e de aperfeiçoamento intelectual e artístico.
Conclusão
Na extensão desse artigo, estabeleceu-se uma correlação entre as considerações
conceituais sobre a memória e os trechos de depoimentos de artistas que integravam o
Grupo Teatro Sombras. Esses integrantes acreditavam e defendiam, em seus discursos e
ações, que a cultura e a política deveriam estar irmanadas, jamais poderiam ser
dissociadas uma da outra, faziam parte de uma mesma moeda que era a formação social
para o pleno exercício da cidadania. Incorporando esse pensamento, quase todos os textos
estudados e dramatizados pelo grupo eram de autoria de escritores engajados com as
causas sociais de seus tempos e cultuadores da ideia de que o teatro deve, não só divertir
ou deleitar, mas também formar consciências e, assim, auxiliar na promoção de
mudanças positivas na postura sociopolítica dos espectadores
Erguer a trajetória da aludida companhia dramática da cidade de Caxias-MA
por intermédio das memórias dos artistas que dela fizeram parte é algo que urge ser feito,
considerando a quase inexistência de materiais bibliográficos, periódicos e informativos
que façam menção ao grupo aqui em focalização. Ante essa circunstância, torna-se
premente que haja um registro do percurso histórico do Sombras com sua atuação na
dimensão sociocultural, uma vez que a ausência de preservação da memória pode
conduzir a um esquecimento das realizações artísticas e sociais instituídas por um grupo
de pessoas que ajudaram a construir a história contemporânea do teatro e da cultura de
Caxias e do Maranhão.
Referências bibliográfica:
AQUINO, Dilson. Entrevista concedida a Elizeu Arruda de Sousa. Caxias-MA. 07/05/2016.
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BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História. São Paulo: PUC, vol.
17, nov. 1998.
OLIVEIRA, José Ribamar de Araújo. Entrevista concedida a Elizeu Arruda de Sousa. Caxias-
MA, 05/02/2017.
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. In: Revista Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.
SILVA, Antonia Miramar Alves. Entrevista concedida a Elizeu Arruda de Sousa. Caxias-
MA. 07/05/2016.
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EL EPITAFIO.
TEXTO QUE NARRA LA HISTORIA CULTURAL DE LAS SOCIEDADES
Son múltiples las visiones sobre la muerte que han venido desarrollando las
sociedades a lo largo del tiempo, por lo cual es bien conocido el hecho de que ésta sea
ritualizada en un juego donde el carácter de preservación de la memoria es fundamental.
En este sentido, dicha intencionalidad se establece desde aspectos que envuelven tanto el
recuerdo hacia el ser fallecido, como respeto a lo que el deceso significó de una u otra
manera para su entorno, siendo destacado esto en los memoriales con gran énfasis en la
figura del epitafio, como texto literario (aunque no sea éste su objetivo) del que se puede
hacer uso para realizar una lectura de la transformación social que ha experimento la
localidad dentro de la que está inserto. De manera que, el epitafio termina siendo algo más
que solo aquel escrito dedicado por familiares a quien en la tumba yace, llegando a ser
soporte de memoria (NORA, 1984) para evitar que sea olvidado el ente fallecido, pero
también destacado de manera directa en el texto funerario y perpetuado en el cementerio
como lugar de múltiples memorias, pues puede llegar a mostrar ciertos comportamientos
de su sociedad frente al hecho muerte, como las ideas católicas de salvación eterna al
llegar al Paraíso, o más allá relatar puntos específicos como nacionalidad, creencias,
méritos ante su comunidad (RODRIGUES, 2015), por lo que el texto llega a tener
connotaciones mayores en su estructura conceptual, tal como se verá en el desarrollo del
presente trabajo.
Etimológicamente epitafio, viene de la palabra griega epitaphos, epi = sobre,
taphos= tumba, “sobre la tumba”, un texto que se coloca sobre el lugar donde yacen los
PNPD/Capes-Universidade de Passo Fundo (Brasil). Doctora en Cultura y Arte para América Latina y El
Caribe, por la Universidad Pedagógica Experimental Libertador (Venezuela). Magister en Memoria Social y
Patrimonio Cultural, por la Universidade Federal de Pelotas (Brasil) Email: jenny.planificacion@gmail.com
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restos mortales de alguien a quien se desea recordar, lo cual no solo se limita a una breve
expresión de nostalgia o amor, sino que es algo concatenado con el entorno y el aspecto
cultural, siendo parte esencial de su configuración tanto material como inmaterial. Tal
como explicáramos, cada epitafio puede mostrar el comportamiento de un pueblo frente
al proceso de la muerte, pero a nuestro parecer, asimismo, es aquel que permite hacer una
lectura general o detallada de la historia local desde, por un lado personajes significativos,
y por otro aquellos pertenecientes a clases sociales deprimidas económicamente
hablando. En este caso, no hay que olvidar que dicho texto funerario está localizado
obligatoriamente dentro de un lugar antropológico (AUGÉ, 1988) como es el cementerio,
el cual hace del hecho de la muerte un acto colectivo (ARIÈS,1984), pues es compartido
por otros miembros del grupo social, o por aquellos incluso que no lo son, pero que se
insertan en él aunque sea por un momento durante su visita al camposanto; así se observa
el acto ceremonial de invitación pública (por medios de comunicación, carteleras y de
manera oral) a las exequias, constituyendo el cortejo funerario desde el lugar de
fallecimiento o funeraria en la cual fuera velado, hasta el entierro (porque la cremación es
menos social), y la última bendición de acuerdo a la creencia pertinente, todo en colectivo.
El epitafio, tal como acota Gawryszewski (2013) “faz parte da construção de uma
memória, em especial, do falecido, mas dentro dos padrões morais e sociais vigentes” (p.
78), para el investigador éste tiene su base en el eufemismo, porque procura esconder
ideas desagradables del muerto. Por ello se debe entender como un texto que sirve para
valorizarlo, reafirmando sus lazos con familiares y amigos, de allí que refuerce también lo
colectivo, pues se desea recordar y para ello es sumamente necesario exaltar lo positivo y
olvidar, o por lo menos, no eternizar, lo negativo.
En el trabajo que se presenta en este breve ensayo, se toma la clasificación de
cuatro tipos de epitafio desde el emisor, desarrollada por Villa Mejía (1991) y referida por
Molina Castaño (2007, p. 157). Siendo el primero el “epitafio en serie”, aquel que no posee
emisor específico, dentro de lo cual incluimos aquellos dispensados por tiendas
especializadas, caracterizados por un texto repetido y diseño estereotipado de acuerdo al
difunto según edad y género, especialmente; en este ejemplo colocamos dos encontrados
en el Cementerio Vera Cruz (Passo Fundo, Brasil), donde destaca el mismo texto epigráfico
“Aqueles que amamos não morrem, apenas partem antes de nós”, solo cambiando los
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nacionalidad prevalece por encima de otros detalles, pues deja entrever un cúmulo
cultural que envuelve incluso a la propia familia. De igual manera, está el epitafio de
“sentimientos familiares e identidad de grupo”, cuando se emite el mensaje en otras
nomenclaturas o idiomas.
El mensaje funerario, como otros tipos de literatura, puede no encuadrarse solo en
un reglón dentro de cada clasificación, sino ser “mixto”, entonces tenemos el dedicado a
Liliana Crociati de Szaszak, ubicado en el cementerio de La Recoleta (Buenos Aires,
Argentina), fallecida en 1970, en cuya tumba está un monumento que representa su figura
junto a su perro, “Sabú. Fiel amigo de Liliana”, el texto funerario está escrito en italiano
(elemento de identidad nacional-cultural), tiene emisor reconocido “A mi hija” y luego
sigue el emotivo epitafio escrito por su padre, el cual hemos traducido:
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Otro tipo interesante es el que funge como “denuncia”. Ya no solo el escrito tiene el
objetivo de expresar los sentimientos de dolor y nostalgia por la persona querida que ha
partido, o ser extensión de ruego al descanso eterno de su alma. Soporte de memoria que
se extiende a lo largo de siglos inclusive, es utilizado como vehículo de expresión para
hacer del conocimiento público lo que ha acontecido, logrando, posteriormente, ser un
documento histórico llevado a cabo durante los propios acontecimientos; así leemos en el
epitafio escrito en alemán, localizado en São Leopoldo (RS-Brasil): “Aquí yace. La familia
de Kassel Anna Maria de Becker. Nacida el 12 de agosto de 1835. Asesinada y quemada
por la Banda Mucker el 15 de junio de 1874. Paz a sus cenizas”. De lo cual se infiere una
ruda riña existente entre grupos alemanes y el asesinato de una de sus integrantes, siendo
quemada, de modo que este escrito revela un fragmento histórico importante de la
segunda mitad del siglo XIX en dicha localidad.
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Término tomado de Jesús Martín Barbero, referido por el especialista sobre el Cementerio Central de
483
Bogotá.
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cuando el finado en 1822 recorrió con su padre esta región (Passo Fundo) “ainda
despovoada”, regresando en 1843 para establecerse en un Passo Fundo constituido, en
ese entonces, por “nove casas e sessenta almas”. Luego se narra detalles de lugar y fecha
de su establecimiento de la familia, a lo que se agrega que esta pareja tuvo once hijos
siendo el primogénito “Francisco Marques Xavier, o Coronel Chicuta, que teve atuação
destacada na Guerra do Paraguai”; el epitafio cierra con versos hechos por el nieto del
difunto, siendo firmado como un homenaje de sus “numerosos descendentes”.
Encontramos, igualmente, otros epitafios que muestran arrepentimiento, tal vez
como expresión de catarsis desde una doble finalidad de memoria: una que tiene que ver
con lo que se desea decir para que cualquiera lo sepa cuando lo lee, aunque no esté al
alcance de un conocimiento amplio de lo sucedido; y otra, que funge como una suerte de
extensión de voz para que la persona difunta (quien no pudo escucharla en vida) tenga
conocimiento. Todo, en fin, es una súplica, un vacío. Como ejemplo escogimos el siguiente,
dedicado a la madre, ubicado en Vera Cruz, de quien preferimos no colocar mayores datos:
“Quando viva não lhes soubemos dar o devido valor, morta daríamos todo o que somos e
o que temos, para tê-la novamente conozco”. Y en fin, el epitafio con mayor presencia en
los cementerios hasta ahora investigados para nuestro trabajo, aquellos que muestran
sensibilidad desde la nostalgia (saudade), y la tristeza por la ausencia eterna.
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Referencias bibliográficas:
ARIES, Phillipe. El hombre ante la muerte. Madrid: Taurus, 1984.
AUGÉ, Marc. Las formas del olvido. Traducción: Mercedes Tricás Preckler y Gemma
Andújar. México: Gedisa, 1988.
GONZÁLEZ MUÑOZ, Jenny. Cementerio: lugar de memoria y museo al aire libre. Educación
patrimonial en el ámbito escolar Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, v. X,
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NORA, Pierre. Entre memoria e história. A problemática dos lugares. Traducción: Yara
Aun Khoury. Proj. História: São Paulo (10), 1993. Disponible en:
< http://www.pucsp.br/projetohistoria/series/series1.html> Consulta en: 17. 09. 2017
RODRIGUES, Alcineia dos Santos. Epitáfios: uma visão dos vivos sobre o mundo do Além.
In: Anais do VII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais.
Cemitérios como patrimônio: conceitos, métodos e abordagens. UNIRIO, RJ, 20 a 23 de
julho 2015, pp. 86-100. Disponible en:
<http://estudoscemiteriais.com.br/index.php/2015/02/03/vii-encontro-nacional-
abec/ > Consulta en: 17. 08. 2017.
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[...] dever cívico exaltar a obra daqueles que, após lutas longas e ásperas,
ocuparam e povoaram a área que constitui o território deste Estado,
incorporando o à Pátria comum. Não menos digno de reconhecimento é o
trabalho das levas imigratórias que para cá vieram e aqui se fixaram,
provindas de terras distantes em busca de uma pátria nova, e se juntaram
aos primeiros povoadores no esforço das realizações solidárias, que nos
conduzem a todos a um mesmo destino, sob as inspirações da unidade
nacional.
*Doutoranda em História pela Universidade do Vale dos Sinos e bolsista CAPES/ Prosuc..
484 É importante frisar que já existem trabalhos, como de Vendrame (2007; 2013) que mostram os conflitos
existentes entre os imigrantes e os padres, bem como entre a Igreja e a maçonaria
485 A historiografia clássica da imigração italiana, que eclodiu através de concursos para o anos do Biênio da
Colonização e Imigração, atribui que, “os imigrantes italianos do RS, eram, em sua maioria absoluta,
católicos praticantes” (MANFROI, 1975, p.157).
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486 Conforme Lima (2017), que desmembrou a documentação do Biênio, não há nenhum registro de
festividade do Centenário da Imigração Italiana na região central do Rio Grande do Sul. Apesar as festas
ocorridas e da repercussão em jornais locais, os relatórios do Biênio não registraram nenhuma das
festividades.
487 Igreja restaura capelas da época da imigração italiana. In: jornal Zero Hora. Porto Alegre, 29 de agosto
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expressões das mais elevadas necessidades culturais de um povo [...]”. Assim, tornaram-
se um marco da religiosidade da imigração italiana no município.
Para as comemorações do Centenário da Imigração do município de Nova Palma,
entre muitas iniciativas desenvolvidas para celebrar e glorificar o passado dos imigrantes,
uma delas, em específico foi a restauração dos capitéis. Este projeto foi liderado por Padre
Luiz Sponchiado488, pároco da cidade, que se debruçou na organização destas
manifestações festivas, buscando na reforma dos capitéis, “salvaguardar esta herança e
garantir sua continuidade” 489 entre os descendentes de imigrantes italianos.
O jornal Correio Riograndense apresentou o capitel como o “último marco que
ainda é do leigo” 490 e criado como uma necessidade dos grupos. No entanto, o jornal
explicou que os sacerdotes não celebravam missas nesses oratórios, pois acreditavam que
os imigrantes e descendentes deveriam construir suas capelas, criando assim uma
jurisdição eclesiástica.
Porém, quando os imigrantes conseguiram se organizar socialmente e
espiritualmente, “foram sendo fundadas as capelas sempre como o objetivo de, um dia,
puderam receber a visita de algum sacerdote e virem a ter a celebração na missa. Por isso,
bom número de capitéis desapareceu ou foi deixado de lado” 491. O jornal relatou um caso
ocorrido no município de Veranópolis que, com a construção da capela, o capitel que
ficava próximo “foi perdendo seu culto e foi sendo deteriorado pelo tempo”. O conselho
do padre ao zelador do capitel era para derrubar o oratório, mas a recomendação não foi
acatada.
É bem provável que a perda do culto e a deterioração do tempo tenham sido fatores
que levaram alguns capitéis ao abandono. E sendo um importante marco da religiosidade
do imigrante, no município de Nova Palma, criavam-se iniciativas de reforma dos capitéis,
como forma de homenagear o imigrante, recordar o período da colonização italiana e
488 Sobre a trajetória de Padre Luiz Sponchiado e suas pesquisas na área da imigração italiana, ver mais em:
MANFIO, Juliana Maria. Entre o sacerdócio e a pesquisa histórica: a trajetória de Padre Luiz Sponchiado
na região da Quarta Colônia de imigração Italiana –RS. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de
Santa Maria, 2015.
489 Informativo paroquial. In Nova Palma notícias. Nova Palma, 09 de julho de 1988, s/n. Centro de Pesquisas
Genealógicas.
490 Capitéis: último marco que ainda é do leigo. In: Correio Riograndense, Caxias do Sul, 17 de junho de 1981,
p.17. (AHCM).
491 Capitéis: último marco que ainda é do leigo. In: Correio Riograndense, Caxias do Sul, 17 de junho de 1981,
p.17. (AHCM).
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492 Informativo paroquial. In Nova Palma notícias. Nova Palma, 09 de julho de 1988, s/n. Centro de Pesquisas
Genealógicas.
493 Informativo paroquial. In Nova Palma notícias. Nova Palma, 09 de julho de 1988, s/n. Centro de Pesquisas
Genealógicas.
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religiosidade, para que o passado da imigração italiana estivesse ligado com a prátíca da
fé e da religião Católica e fosse o elo com o presente. Segundo Huyssen (2000, p.68), “a
memória de uma sociedade é negociada no campo social das crenças e valores, rituais e
instituições”. Dessa forma, o sacerdote impulsionou a comunidade, incentivo na reforma
como uma forma de rememorar os antepassados, criando “uma imagem prestigiosa com
o qual se supõe que todos passam a se identificar (CANDAU, 2011, p.148). Nesse sentido,
esses oratórios são fontes de história e a memória, que busca na elaboração do passado,
a reafirmação e na manutenção de uma identidade.
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saúde fizeram com que ele construísse um capitel em homenagem a Nossa Senhora da
Saúde.
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p.23) trouxeram consigo a devoção a Santa, invocada nas dores de dentes. A imagem da
santa traz nas mãos uma ferramenta, em forma de um boticão (instrumento cirúrgico
usado para extrair dentes), simbolizando a proteção para as dores de dentes.
O jornal Zero Hora noticiou que, o imigrante Giuseppe Tomasi “exercia o ofício de
dentista, por isso dedicou a capela a Santa Apolônia, padroeira destes profissionais” 494.
Mas não era apenas este ofício que ele desempenhava: o imigrante possuía um moinho e
produzia imagem de santos em madeira (TURA, 2010). Dessa forma, percebemos que a
reforma do capitel não apenas carrega a história da religiosidade e de fé dos imigrantes,
mas também elaborou-se uma memória positiva em torno do imigrante construtor do
capitel. A religiosidade e o trabalho sempre são aspectos ressaltados nas comemorações
do centenário da imigração italiana.
494Igreja restaura capelas da época da imigração italiana. In: jornal Zero Hora. Porto Alegre, 29 de agosto
de 1993, p.36. Centro de Pesquisas Genealógicas
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Este capitel quer tocar a memória dos descendentes de imigrantes sobre os que
faleceram na travessia para chegar até o centro do Rio Grande do Sul, não conseguindo
alcançar o sonho de fazer a América. Dessa forma, criou-se a imagem do herói italiano
através “[...] de uma epopeia que é de restituir e, sobretudo, de não deixar essa memória
cair no esquecimento (CANDAU, 2011, p.139).
Considerações finais:
Os capitéis construídos ao longo das estradas interioranas do município de Nova
Palma não representam apenas a religiosidade do imigrante italiano, mas exaltaram seu
trabalho em dar continuidade em sua pratica religiosa, mesmo sem assistência de padres
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e igrejas. Eles também representam a história dos imigrantes italianos, que construíram
esses capitéis.
O movimento de reformas dos capitéis tem como interesse tocar a memória dos
descendentes de imigrantes, homenageando diferentes passagens do processo
imigratório, envolvendo a comunidade na reconstrução desses espaços religiosos. O
intuito é não deixar cair no esquecimento esses capitéis, evitando que o abandono e o
tempo os deteriorem.
Referências Bibliográficas:
MANFIO, Juliana Maria. Entre o sacerdócio e a pesquisa histórica: a trajetória de Padre Luiz
Sponchiado na região da Quarta Colônia de imigração Italiana –RS. Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal de Santa Maria, 2015.
VENDRAME, Maíra Inês. Ares de vingança: redes sociais, honra familiar e práticas de
justiça entre imigrantes italianos no sul do Brasil (1878-1910). Tese de doutorado. Porto
Alegre, 2013.
______________________. “Lá éramos servos, aqui somos senhores”: a organização dos
imigrantes italianos na ex-colônia Silveira Martins (1877-1914). Santa Maria: Edufsm,
2007.
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Graduada em Letras (UPF). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Passo Fundo ̶ PPGH/UPF. Bolsista CAPES. Contato: <adrianacbzanin@gmail.com>.
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Conforme Knack (2016), por volta da década de 1930, a produção agrícola passo-
fundense foi incrementada, tendo a produção do milho, trigo e a extração de madeira
dinamizadas pelo uso da ferrovia e posteriormente pelas rodovias. Formou-se uma rede
de comerciantes, os quais, tendo estreitos vínculos com a agricultura, possibilitam a
ampliação da agricultura e do comércio de Passo Fundo e região.
Nas comemorações do Centenário de Passo Fundo foi realizada a VII Festa
Nacional do Trigo. Na ocasião foi plantado trigo nos canteiros centrais da Avenida Brasil,
principal avenida da cidade e montado o “Pavilhão do Trigo” na Exposição Agro-
Industrial, tal evento contou com a presença do presidente João Goularte.
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Fonte: 150 Momentos mais importantes da história de Passo Fundo. Osvandré Lech, Passo Fundo:
Méritos, 2007.
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Fonte: <www.projetopassofundo.com.br>
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seus descendentes que com seu esforço, com seu trabalho, geraram ou geram o progresso
e o desenvolvimento de Passo Fundo e região.
O monumento tem como categoria semântica fundamental natureza vs. cultura.
De acordo com o plano de conteúdo, os percursos do quadrado semiótico mostram os
seguintes caminhos: natureza → não natureza → cultura. O semissimbolismo se faz
presente quando natureza corresponde a categoria de conteúdo anterioridade e cultura
posterioridade. Há a definição de mais uma relação semissimbólica quando, no sentido do
plano de conteúdo, a categoria natureza vs. cultura está relacionada com atraso vs.
progresso. Em que natureza corresponde a atraso e cultura a progresso. Neste caso, vemos
que a destruição da natureza, a apropriação da terra, as intervenções sociais, como
consequência do tornar as terras agricultáveis, não teria um valor considerado negativo,
mas correspondente ao progresso, ao mérito daqueles pioneiros, imigrantes e seus
descendentes, desbravadores que com grande esforço teriam tornado as terras da região
agricultáveis e com isso gerado riqueza, progresso econômico e social.
A mão não é simplesmente uma figura isolada, sem sentido. Ela mostra uma parte
do corpo humano agindo no mundo, responsável pelo ato de plantar, produzir, colher e
receber as consequências tanto positivas ou negativas desse ato. Verifica-se ainda que a
mão é um elemento de um fazer no mundo, de transformação. A semiótica nos faz ver que
a simples colocação de uma parte do corpo humano, a mão, nos dá um sentido, mais
complexo do que se pode supor inicialmente.
Há, em Passo Fundo, uma memória, uma identidade oficializada, que é
identificada, por exemplo, nas festividades do centenário, em 1957. Memórias
evidenciadas nas festividades do Centenário, em que para mostrar o quanto a cultura do
trigo era importante para Passo Fundo, para a economia e para a própria história passo-
fundense, este chegou a ser plantado na Avenida Brasil, foi incluído no brasão municipal.
Como destaca Le Goff (2003, p. 422) “Tornar-se senhores da memória e do esquecimento
é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos [...]. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de
manipulação da memória coletiva”.
Junto com o trigo se antevê quem o produz, quem o comercializa, quem
enriqueceu com os tempos áureos da produção de trigo na região. Através da criação do
Monumento Trigo na empresa Tagliari, fica clara a intenção de cristalizar memórias
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Fonte:<www.pmpf.rs.gov.br>
No ano de 1956 é criada a lei número 720/56, que cria o brasão municipal,
posteriormente, em 1964 a lei número 1111/64 altera e define a caracterização do brasão
municipal. No primeiro quadrante, um pinheiro (representando o desenvolvimento
econômico do passado). No segundo, uma espiga de trigo, (representando o
desenvolvimento do presente no terreno da agricultura). No terceiro, os símbolos do
comércio e indústria. No quarto, uma torre de eletricidade estilizada, representando estes
dois últimos quadrantes, o desenvolvimento do potencial econômico do Município e seu
progresso e atividade rumo ao futuro.
Como é exposto por Pesavento (2007) no que concerne ao processo imaginário
de construção, na invenção de um passado e de um futuro, a cidade está sempre a explicar
o seu presente, o que acaba por definir uma certa identidade, um modo de ser passo-
fundense, uma cara e um espírito, um corpo e uma alma, o que possibilita o
reconhecimento das pessoas, do fazer parte da memória, o que leva à sensação de
pertencimento e de identificação com a sua cidade.”
Percebe-se a partir da promoção da cultura do trigo, das várias frentes como
forma de enaltecer o referido cereal, certa necessidade de demonstrar uma
homogeneização social, econômica e cultural dos passo-fundenses, parecendo que o
objetivo seria tornar Passo Fundo uma cidade moderna, através do planejamento, cidade
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modelo e exemplo a ser seguido pelas outras cidades, enaltecendo a ideia de que haveria
na época, da criação do monumento, abundância de recursos tanto humanos quanto
materiais, e que o futuro seria de progresso advindo do esforço do trabalho de agentes
públicos, granjeiros, comerciantes, dos prestadores de serviços.
Considerações finais
Analisar a construção do Monumento Trigo, da memória e a representação da
identidade passo-fundense, através da obra criada por Paulo Batista de Siqueira,
possibilita compreender como tal monumento que constitui o corpus da pesquisa pode
revelar a força de um discurso narrativo (re) criador de identidades, discurso este que
enfatiza tanto as memórias da família Tagliari, quanto do poder público municipal de
afirmar seu poder e sua autonomia para criar imagens urbanas, é a máquina pública ou
particular trabalhando para que se concretize a identificação da cidade de Passo Fundo
como a Capital do Planalto Médio. Como Anderson (2008) enfatiza, as identidades são
desejadas, projetadas, imaginadas e englobam contradições e ambivalências. Nesse
entremeio há lutas, sonhos, disputas etc. Seguindo nesta mesma conceituação reforça-se
a ideia de que os traços e rastros memoriais através das configurações concretas, no caso
o Monumento Trigo, tendem a legitimar a cidade como um espaço identitário, espaço em
transformação. A identidade da urbe também se transforma, ou ao menos acompanha a
transformação “palimpsêstica” da cidade, havendo um jogo dialético entre o passado e a
memória presente na paisagem atual da cidade de Passo Fundo.
Referências bibliográficas:
CANDAU, Joel. Memória e identidade. 1. ed. 1ª impressão. São Paulo: Ed. Contexto, 2012.
CHAUÍ, Marilena. Brasil Mito fundador e sociedade autoritária. USP, 2000. Disponível em:
<http://www.usp.br/cje/anexos/pierre/brasil_mitofundador_e_sociedade_autoritaria_
marilena_chaui.pdf> Acesso em: 20 ag. 2017.
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BR&sa=X&redir_esc=y#v=onepage&q=alegoria%20do%20patrimonio&f=false> Acesso
em: Acesso em: 20 ag. 2017.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1990. Disponível
em: <http://memorial.trt11.jus.br/wp-content/uploads/Hist%C3%B3ria-e
Mem%C3%B3ria.pdf > Acesso em: 20 ag. 2017.
OSVANDRÉ LECH. (Org.) 150 momentos mais importantes da história de Passo Fundo /
organizado por. - Passo Fundo: Méritos, 2007.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Rev.
Bras. Hist., São Paulo , v. 27, n. 53, p. 11-23, jun. 2007 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
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UHLE, Ana Rita. Monumento a Campos Sales: Uma história em imagens. In: Anais do XVII
Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SPUNICAMP.
Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom. Disponível em:
<http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XVII/ST%20V/Ana%20Rita%20U
hle.pdf> Acesso em: 15 ag. 2017.
NORA, Pierre. Entre memória e história a problemática dos lugares. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763.> Acesso
em: 17 ag. 2017.
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Introdução
As memórias familiares dos imigrantes e descendentes de italianos, “guardadas”
no Centro de Pesquisas Genealógicas de Nova Palma496 (CPG), por Padre Luiz Sponchiado,
nos instigaram a desenvolver esta pesquisa. Observou-se que suas relações com as
famílias de Nova Palma se davam de diferentes maneiras, com maior ou menor afinidade,
tanto politicamente quanto socialmente. Isto nos intrigou, pois conhecendo sua história,
não percebíamos com clareza até onde ia o papel que o Pe. Luiz Sponchiado
desempenhava nesse contexto. Assim sendo, ficamos cada vez mais estimulados a
entender como se dava a construção desta memória tanto a elaborada e “guardada” no
Centro de Pesquisas Genealógicas de Nova Palma, quanto a memória de si e sobre si
elaborada pelos imigrantes, por e para seus descendentes, ao longo do tempo. Na busca
desta e de outras respostas correlatas, construímos a tese de doutorado que ora
sintetizamos e que se propôs a analisar a construção das memórias familiares de
imigrantes na região da Quarta Colônia Imperial de Imigração Italiana do Rio Grande do
* Este artigo é uma síntese da tese de doutorado em História e em “Lingue, Culture e Società Moderne”, na
modalidade Cotutela, da autora, intitulada: Memórias Familiares: Um Estudo Da Imigração Italiana Na
Quarta Colônia Imperial (Rio Grande Do Sul, Brasil), defendida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS/RS) e na Università Ca`Foscari di Venezia/Itália em 2015, sob a orientação da Profª Drª Eloisa
Helena Capovilla da Luz Ramos e do Profº Drº Luis Fernando Beneduzi. No período da cotutela, a pesquisa
foi desenvolvida na Itália, na Universidade acima mencionada, com o financiamento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), através do Programa de Doutorado Sanduíche no
Exterior. Pesquisa esta realizada em diversos acervos da Região da Toscana e do Vêneto.
** Doutora, professora do Colégio Franciscano Sant`Anna- Santa Maria/RS e pesquisadora no grupo de
inaugurado para visita ao público no Centenário da Colonização Italiana do Núcleo Soturno, hoje município
da Nova Palma, em 1984. Este padre preocupou-se em pesquisar a genealogia e a documentação dos
imigrantes italianos e de seus descendentes, estabelecidos na Quarta Colônia Imperial de Imigração Italiana
do Rio Grande do Sul.
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Algumas reflexões
Ao optarmos por analisar as duas famílias, verificamos que suas trajetórias nos
permitiriam analisar a influência das mesmas do passado até o presente em todos os
aspectos da vida colonial, sejam econômicos, políticos ou socioculturais. A observação nos
mostrou serem ambas influentes na comunidade, terem poder econômico e, também,
possuírem capital simbólico. Por isso, as consideramos representantes de muitas outras
famílias estabelecidas na região. Estudá-las significou, portanto, partir de uma história
particular (privada) para perceber o todo. Dito de outra forma, a redução da escala de
análise497 neste caso, a trajetória destas duas famílias nos permitiu, em última instância,
perceber, observar, identificar aspectos que de outro modo passariam despercebidos na
construção das redes econômicas, políticas e sociais da Quarta Colônia, ou seja, queríamos
identificar a influência destas redes nas reelaborações memoriais feitas pelo Padre Luiz.
497Ao se referir a este aspecto, Levi diz que “para a micro-história, a redução da escala de análise é um
procedimento analítico, que pode ser aplicado em qualquer lugar, independente das dimensões do objeto
analisado”- Giovanni LEVI. Sobre a micro-história. IN: Burke, Peter. A escrita da história: novas perspectivas,
São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p.137 - e mais que esta “observação microscópica revelará fatores
previamente não observados” (p.139).
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498Sobre este aspecto da vida do Pe. Luiz Sponchiado e sua atuação no processo de emancipação da Quarta
Colônia, consultar Moacir BOLZAN. Quarta Colônia: da Fragmentação à Integração. São Leopoldo: UNISINOS,
2011. (Tese de Doutorado); Jucemara ROSSATO. Padre Luiz Sponchiado: um empreendedor em Nova Palma,
(município da Quarta Colônia de Imigração Italiana). Santa Maria, 1996. (Trabalho de Conclusão de Curso
de Graduação de História); Juliana Maria MANFIO. Entre o Sacerdócio e a Pesquisa Histórica: a trajetória de
Padre Luiz Sponchiado na Quarta Colônia de Imigração Italiana –RS. Santa Maria: UFSM, 2015. (Dissertação
de Mestrado).
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especialmente dos trabalhos de Candau (2011) e Pollak (1992; 1989). Nesta análise, a
memória foi o fio condutor das ações individuais e coletivas. Ou seja, procuramos sempre
analisar estas ações nas dinâmicas da preservação da memória.
Para isso, partimos da compreensão de que “os homens elaboram ideias sobre o
real, as quais se traduzem em imagens, discursos e práticas sociais que não somente
qualificam o mundo como também orientam o olhar e a percepção sobre essa realidade”
(PESAVENTO, 2008, p.11-18). Dessas práticas sociais suscitadas do olhar e da percepção
da realidade é que abordamos a representação. Esse termo foi trabalhado por autores
como Chartier (2002, p.165) e Ginzburg (2001, p.85) e ambos identificam que, por vezes,
ele é tratado como a presentificação de uma ausência e por vezes torna visível a realidade
representada (exibe a própria presença). É nesta segunda perspectiva que orientaremos
nossas reflexões.
Compreendemos que pertencer a um grupo, a uma comunidade, é definir seu lugar
social, estabelecendo fronteiras, permitindo a continuidade no tempo. Assim, “a definição
de uma identidade própria forma, por assim dizer, uma base de coesão social, uma
corrente de identificações e significados de compreensão mútua” (PESAVENTO, 1993,
p.384). Quando a sociedade define e elabora uma imagem de si e do mundo se atribui uma
identidade e se constitui como tal, por isso, é importante compreender e reconhecer que
a identificação e a diferenciação são faces da mesma moeda, pois a identificação com um
determinado grupo só é possível quando há grupos considerados diferentes, ou seja,
criam-se limites entre eles e nós, que se expressam na diferença cultural, em que os usos
de certos traços marcam uma identidade específica.
Neste sentido, a memória é um elemento constituinte da identidade. A elaboração
da memória é uma construção social, ou seja, é permitida através deste entrecruzamento
entre o individual e o coletivo. Assim, selecionar o que deve ser lembrado e o que se relega
ao esquecimento é parte de todo e qualquer processo de construção de memória e
identidade. Então, “a memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das
interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em
tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades” (POLLAK, 1989, p.9).
Utilizar-nos-emos também dos enfoques da microanálise, que nos estudos sobre
as migrações (especialmente aos estudos desenvolvidos nas últimas décadas do século
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XX) partem da compreensão do indivíduo como um sujeito ativo, que toma decisões e
onde a família adquire um papel importante, pois é onde as decisões são tomadas e as
estratégias para a sobrevivência são traçadas (RAMELLA, 1995, p.14). É no âmbito das
relações pessoais, portanto, que as informações são passadas.
A história da família teve múltiplas leituras de acordo com o tempo e o lugar. Neste
trabalho, as famílias estudadas procuram afirmar o parentesco e o pertencimento na
memória sobre a ancestralidade italiana e é procurando compreender as construções
sobre essa memória familiar e coletiva que refletiremos sobre o que é ou pode ser a
família.
Retomamos a história numa perspectiva social na qual o fio condutor desta
investigação recai sobre o grupo familiar, suas estratégias e relações, o que nos
possibilitará perceber, nos pormenores e nas peculiaridades, o que o particular tem de
coletivo. Procurar-se-á apreender as redes mais complexas de sustentação cultural,
afetiva e de poder construídas pelos imigrantes. No emprego deste método, o que estamos
fazendo é a construção das categorias de análise a partir da observação das fontes que
não estão dadas a priori.
Neste sentido, verificamos que uma versão da preservação da memória familiar
com a preocupação de ressaltar suas distintas temporalidades, seu lugar na sociedade,
seus personagens e sentimentalidades foi levado a cabo pelo Padre Luiz Sponchiado,
quando iniciou seus trabalhos de pesquisa sobre os imigrantes italianos e descendentes
na Quarta Colônia. Com tal ação, ele se propunha não só a descobrir a sua história pessoal,
mas também ser o “guardião” da memória da Quarta Colônia. Ou seja, os “guardiões da
memória”499 são pessoas que por algum motivo são indicados a falar/escrever sobre as
histórias locais. Por isso, empenham-se em não esquecer o passado, dedicando-se
“permanentemente a (re)construção da memória, seja colecionando fotografias e
pequenos objetos em suas caixinhas de lembranças, ou narrando a seus membros mais
novos casos e histórias” (PEREIRA, 2008, p. 186). Então
499 Pollak (1989, p.8) trabalha com a ideia de “guardião de memória”, ao referir-se às lembranças,
zelosamente guardadas e que são transmitidas, seja na família, em associações, em redes de sociabilidade
afetiva e/ou política.
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500Sobre este aspecto, pode-se verificar os seguintes trabalhos: Maria Catarina ZANINI. Italianidades no
Brasil Meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria. Santa Maria: UFSM, 2006;
Maíra Ines VENDRAME. “Lá éramos servos, aqui somos senhores”: a organização dos imigrantes italianos
na ex-colônia Silveira Martins (1877-1914). Santa Maria: UFSM, 2007; ______________. Ares de vingança: redes
sociais, honra familiar e práticas de justiça entre imigrantes italianos no sul do Brasil (1878- 1910). Porto
Alegre: PUC, 2013 (Tese de Doutorado).
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501 Este termo foi originalmente utilizado na Antropologia, por Fredrik Barth (1993). Na história foi
trabalhado por Edoardo Grendi e Giovanni Levi que, analisando a relação entre família, comunidade e o
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identificamos que sua autoridade é respeitada para além da comunidade. E, por conta
disso, ele terá a autorização, na década de 1970, para coordenar as comemorações do
Centenário da Imigração Italiana nesta região colonial, concedida pelo Bispo Diocesano
de Santa Maria Dom Ivo Lorscheiter. Como o CPG é o resultado deste trabalho, poderíamos
dizer que existe uma memória oficializada pela mão da Igreja e reconhecida pela
comunidade.
No entanto, a apropriação desta memória não se daria de forma igualitária.
Procurando entender quem são estes agentes sociais das famílias Pippi e Pigatto e como
se dariam estas reelaborações memoriais, julgamos importante percorrer a trajetória
desses dois grupos familiares. Esse foi o trabalho desenvolvido na terceira parte da
análise (capítulo 3).
Neste sentido
mundo exterior, identificaram que alguns indivíduos poderiam ser “pontes” entre tais unidades, agindo
como “mediadores” políticos, sociais ou econômicos - LIMA, 2006 apud Maíra Ines VENDRAME. Ares de
vingança: redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre imigrantes italianos no sul do Brasil (1878-
1910). Porto Alegre: PUC, 2013. (Tese de Doutorado). p.25.
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Conclusão
Nossa reflexão nos apontou, ao longo do trabalho, que os responsáveis pela criação
de acervos são sujeitos históricos que olharam o passado a partir de suas relações e
aspirações do presente. Esse olhar determina a seleção dos documentos e a sua
disponibilização, por parte das famílias, ao padre Sponchiado, o representante autorizado
a guardar e construir uma memória das famílias e da imigração que será “guardada’ no
CPG. A Srª Maria Neli Pippi, por seu turno, fará o mesmo com a documentação de sua
família, dividindo com o Padre Luiz Sponchiado a guarda deste acervo documental. Trata-
se de documentos particulares, o que nos permitiu concluir que ela não reconhecia no
sacerdote alguém autorizado a fazer a história de sua família. Possivelmente, seja ela a
representante autorizada a falar pelos seus. Ou a quem ela delegar essa função.
Independente destas tensões e desencontros, percebemos, por fim, que a
documentação familiar arquivada nestes dois acervos tornou-se patrimônio documental
familiar dos descendentes de imigrantes italianos da Quarta Colônia.
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VENDRAME. “Lá éramos servos, aqui somos senhores”: a organização dos imigrantes
italianos na ex-colônia Silveira Martins (1877-1914). Santa Maria: UFSM, 2007;
______________. Ares de vingança: redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre
imigrantes italianos no sul do Brasil (1878- 1910). Porto Alegre: PUC, 2013. (Tese de
Doutorado).
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Introdução
O ano de 1985 foi um momento de reafirmação da memória farroupilha por
parte do governo do Estado e das elites rio-grandenses, que a seu favor tiveram a
oportunidade de estarem no poder justamente no momento em que a Revolução
Farroupilha estava prestes a fazer cento e cinquenta anos de sua eclosão. Por esses
pressupostos, é possível compreender como aquele momento contribuiu com a imagem
que as elites forjaram de si e para si a partir do trabalho de memória reelaborado pelas
mesmas. Construíram por meio de suas práticas as representações em um discurso que
buscava nas imagens de seus “heróis” uma suposta hereditariedade que pudesse legitimar
os atos de tais grupos no presente e na conjuntura política e social a qual atravessavam
no ano de 1985 no Rio Grande do Sul.
Na presente análise, o objeto principal, é compreender o uso da memória. Assim,
busquei compreender a memória a partir do entendimento da mesma, por Jaques Le Goff
(2003), onde o autor afirma que a memória como:
*Graduado em História pela Universidade Luterana do Brasil; Especialização em História do Rio Grande do
Sul pela Universidade do Vele do Rio dos Sinos. Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. Professor da rede pública do Estado do Rio Grande do Sul.
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Quando se trabalha com a memória, obviamente, estamos tratando com algo que
vem ao presente pela sua representação, que se da no presente. Assim o sesquicentenário
da Revolução Farroupilha, também servil de lugar às prática da representações dos seus
“homens”, que acabam por “retornar” ao presente, sempre tão reverenciados. Giuseppe
Garibaldi foi um desses ícones da revolução, com elementos tão importantes para aqueles
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502Expressão utilizada por Roger Chartier (2002). Em “À beira da falésia: a história entre incertezas e
inquietudes”.
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Podemos intuir a importância dada à busca por tais sujeitos, na antecedência de,
praticamente um ano antes das comemorações, os responsáveis pelas subcomissões
acima citadas já estarem planejando como iriam organizar as buscas pelos supostos
descendentes farrapos. Nota-se a preocupação de buscarem o auxílio dos historiadores
na elaboração do planejamento do trabalho. Nesse viés, podemos observar a prática da
busca de “rastros” do passado para uma releitura do trabalho de memória.
Em Porto Alegre, durante o mês de agosto de 1985, em correspondência do
Secretário da Comissão Executiva do Sesquicentenário da revolução, Tarcísio Deretti,
direto do gabinete do governador para o presidente da Comissão do Sesquicentenário
veio a seguinte ordem:
Senhor Presidente
Tendo em vista a solenidade do 20 de setembro próximo, em que serão
homenageados os descendentes dos heróis farroupilhas, informo que
esta Comissão receberá, até 31 de agosto, as inscrições das pessoas que
comprovem sua descendência daqueles que participaram da Guerra dos
Farrapos.
Solicito sejam também remetidos os endereços dos interessados para a
Comissão Executiva do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha – Rua
Duque de Caxias, nº 1029 – 1º andar. Porto Alegre. (Documentos da
Subcomissão, Caixa 01, 1984).
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Prezada Senhora
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503Segundo a documentação: a família Garibaldi, além de visitarem a capital gaúcha, também visitaram
Florianópolis e Laguna. (Documentos da Subcomissão, Caixa 01, 1984).
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Fonte: AHRGS.
504 A análise para um futuro trabalho, mais aprofundado, requer mais estudos sobre a arte clássica e se
tratando de um artigo menor, aqui não vamos nos aprofundar em tais conceitos deixando para isso para um
segundo plano.
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Fonte: AHRGS.
Por esse viés compreende-se que a imagem do quadro por ela mesma traz a sua
mensagem, porém na reprodução do calendário, a mesma foi agregada à narrativa textual
e a símbolos estaduais, racionalizando em um mesmo lugar um conteúdo mais elaborado,
produto do trabalho de memória.
Analisando a imagem, podemos fazer algumas leituras, por exemplo, o artista
tentou representar o momento em que Garibaldi cumpria importante papel na formação
da marinha farroupilha com a construção de suas embarcações. Para que isso ficasse
evidente, ao fundo o artista retratou uma janela por onde pode se observar a construção
de uma embarcação. Essa representação pode levantar sugestões mais aprofundadas
sobre a leitura da imagem de forma mais incisiva. Pode-se intuir que é o período que
antecede a tomada de Laguna. A presença de Bento Gonçalves e Davi Canabarro sugere
que os mesmos vieram até Garibaldi para conversar sobre os planos e ver os andamentos
dos trabalhos. Bento Gonçalves escuta atento, dando ao receptor o entendimento que, o
mesmo escuta Garibaldi com a atenção de quem depende dos trabalhos do “italiano”. Davi
Canabarro, como expectador, escuta os planos de Garibaldi, supostamente, com certo
olhar de quem cobra e desconfia das ideias do marinheiro. Guido Mondin nos legou no
trabalho do calendário a sua narrativa textual que acompanhava sua representação
imagética. Dizia o seguinte:
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Fonte: AHRGS.
Talvez nem outra imagem seja mais sintomática que essa para a construção da
memória de Garibaldi quando as elites, italianas e rio-grandenses, se referem ao mesmo
como o “herói” dos dois mundos. A imagem quase que sintetiza essa ideia se levarmos em
conta os aspectos culturais representados pelo artista que, ao que parece, soube reunir,
se levando em conta uma análise subjacente, elementos que aqui podemos
hipoteticamente lançar um olhar. São os bois, por exemplo, que não só remetem ao
aspecto rural do Rio Grande do Sul, como também, os mesmos podem ser vistos como um
elemento da herança cultural trazida pelo europeu. A presença da cavalaria ao fundo,
pode, sobre o mesmo viés retratar aspectos também que são condizentes, quando o
assunto é representar o “herói dos dois mundos”. A embarcação consuma a representação
da obra e contribuição de Garibaldi para a Revolução Farroupilha de forma incisiva, já que
se pode levar em conta a importância da mesma para levar a Revolução Farroupilha para
fora das fronteiras da província. O próprio Guido Mondin, ao que tudo indica, procurou
dar vida para sua pintura quando narra a travessia dos lanchões.
Guido Mondin recorreu a uma prática já empregada por intelectuais a serviço do
Estado em outros momentos passados em que se comemorou a Revolução Farroupilha.
Ele procurou dar um aspecto romântico aos feitos dos farroupilhas. Porém, na segunda
passagem de sua narrativa textual, é notável a maneira como o artista narra a
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representação da sua obra. Vejamos os elementos que o artista aproveitou para dar vida
a sua pintura.
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lagunenses, aos italianos e bem provável atingisse as colônias italianas radicadas no Rio-
Grande do Sul.
No último quadro que representa Garibaldi, para o calendário, é possível concluir-
se a sequencialidade que o artista pretendeu dar na representação do calendário. A
imagem abaixo mostra Anita e Garibaldi com seu filho Menotti, que seria segundo o pintor
o “primeiro filho do casal”.
Fonte: AHRGS.
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Considerações finais
Assim, a Revolução Farroupilha, por meio da análise do calendário produzido na
Itália, e o produzido para o centenário da revolução, ambos serviram de base para as
práticas dos sujeitos envolvidos naqueles eventos forjarem suas memórias a partir das
representações turvadas pelas vicissitudes daquela conjuntura dos anos 1980. De certa
forma, tais representações construíram um lastro que possibilitou mais uma vez a
emergência de uma memória tão emblemática para o povo Sul-rio-grandense.
Também foi possível discutir a importância do uso da arte como forma de elaborar
uma memória visual daquilo que os agentes, para aquele momento, tinham como ideias
de uma elite. No caso a gestão do governo do Estado do Rio Grande do Sul, que planejara
de forma a retomar uma memória que quando ativada tem a pretensão de unir uma
coletividade.
Portanto, na análise de imagens, pode-se abrir um importante espaço para o
trabalho do historiador. Este pode se apropriar da memória por meio das imagens, ao
mesmo tempo em que se utilizando da documentação escrita pode por meio do
cruzamento de fontes propor, outras possibilidades investigativas.
Referências Bibliográficas:
Bisneto de Garibaldi chega dia 18. Jornal do Comércio, 13 de setembro de 1985, p. 17.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
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CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre:
Ed. Da Universidade/ UFRGS, 2002.
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* Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Santa Maria; mestrando em Geografia pela mesma
instituição.
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explanação de sua origem assim como o seu procedimento sagrado que a constitui
enquanto religião.
A palavra Umbanda, segundo Batstone (1997) define-se como originalmente da
língua Kimbundo (uma das línguas falada em Angola) sendo usada para descrever objetos
religiosos e o líder religioso, também chamado de Kimbanda. No Brasil a palavra Umbanda
foi utilizada, a partir da década de 1930, para designar um novo sistema religioso de
grande apelo para a classe média, que sintetizou elementos nativos brasileiros, bem como
elementos africanos e europeus. Da cultura indígena se apropriou do herbalismo e da
imagem heroica do Caboclo; dos africanos se apropriou de elementos rituais do
Candomblé; da Europa absorveu o catolicismo popular e o espiritismo de Allan Kardec.
Bandeira (1973) nos aporta para o entendimento do termo Umbanda e Kimbanda
ao qual mostrava-nos a sua derivação gramatical e significado, como é encontrado em
qualquer dicionário Quimbundo, assim, nada há de mais claro e positivo. Isso vai de
encontro aos inúmeros livros umbandistas que afirmam que o termo foi utilizado pela
primeira vez no Brasil, quando do evento conhecido como a segunda manifestação do
Caboclo das Sete Encruzilhadas. Sabe-se que quando do início da Umbanda havia uma luta
para dar um nome adequando àquele movimento.
Primeiramente se pensava em usar o termo embanda (uma outra forma clara de
Imbanda, plural de Kimbanda), porém não soava bem. Houve também, a proposta de se
utilizar Alabanda, pois segundo alguns autores um dos espíritos incorporados por Zélio
de Moraes era um malaio muçulmano (conhecido como Orixá Malet), portanto Alabanda
seria traduzido como da “banda de Alá”. Entretanto, a melhor opção encontrada foi o uso
do termo já grafado (desde o séc. XVII) e conhecido entre os descendentes angolanos, ou
seja, o termo Umbanda.
Etimologicamente o substantivo Kimbanda (que significa, em Angola, curandeiro,
médico ocultista), sendo que ao se substituir o prefixo KI por U, forma-se um nome
abstrato, o qual designa arte ou ofício. A Umbanda, então, é a arte de curar, o ofício de
ocultista.
Instituída no dia 15 de novembro de 1908, a Umbanda nasce pela manifestação
espiritual dentro de uma casa espírita na cidade de Niterói – RJ. A quem se deve tal fato, é
Zélio Fernandino de Morais (1891-1975) que a partir da manifestação do Caboclo das Sete
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Encruzilhadas, estabelece o nascimento de uma nova religião, onde não haveria distinções
de raças, credos e status social para a sua construção.
O etnólogo, historiador e folclorista Oscar Ribas (1909 – 2004), define a Umbanda
como ciência de Quimbanda, referindo-se sobre a origem quanto ao termo Kubanda.
Bandeira (1973) supõe que se trata do verbo “subir”, pois o espírito “segundo a concepção
bantu, vem de baixo (da terra) para cima, e não de cima para baixo, como os espíritas
acreditam”. Concomitante, a citação de Rendinha (2009) auxilia no entendimento da
concepção de Umbanda
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seus sentidos aflorados para uma construção ou (des) construção subjetiva de sua
consciência.
Aqui me reporto aos estudos de Claval (2011), ao qual ele nos situa por uma
fenomenologia instigada aos geógrafos, pois a mesma revela que os lugares não são
anônimos num espaço neutro, e que a Terra não é uma superfície geométrica, pois para
ele, a vida está por toda parte presente e os homens moldaram à sua imagem.
Complementa ainda já nos anos 50 destacando que
Parafraseando este viés do autor, busco aqui minhas reflexões dessa mesma
coerência instigada pela fenomenologia, mas focada ao espaço sagrado, mais
especificamente o terreiro de Umbanda. Em Barros (2008), os terreiros afro-brasileiros
são considerados como espaços sociais, míticos, simbólicos, em que a natureza e seus fiéis
se unem para viver uma realidade diferente daquela que o cotidiano ou a sociedade lhes
apresenta como o real, na qual as pessoas que o constituem acreditam.
São vistos como lócus da força vital que pode ser conservada, manuseada e
transmitida. Suas instalações estão impregnadas do simbolismo religioso e são tidas como
extensões da essência vital de suas “entidades” patronas vinculada ao modo de vida
urbano, na construção de suas organizações e discursos subalternos e no confronto
histórico de suas crenças.
Nestes espaços, considerados sagrados por natureza, permeia uma subjetividade e
transcendência de comportamentos. Aqui me reporto ao entendimento de Merleau-Ponty
(2011) cujo termo nos aponta para uma filosofia transcendental
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período de observação. Alerto que esse período é fundamental tanto para o objeto
pesquisado, como para o sujeito pesquisador, pois a cumplicidade e a seriedade de tais
papéis é o que determina o êxito da pesquisa.
Segundo Spiegelberg (1971, apud Moreira, 2002, p. 97), os passos do método
fenomenológico são: a investigação de fenômenos particulares; a investigação de
essências gerais; a apreensão de relações fundamentais entre as essências; a observação
dos modos de dar-se; a observação da constituição dos fenômenos na consciência; a
suspensão da crença na existência dos fenômenos; e a interpretação do sentido dos
fenômenos. Partindo dessa classificação colocada pelo autor, transponho à realidade de
um espaço sagrado que é o terreiro de Umbanda.
Um espaço rodeado de elementos sagrados, já mencionado anteriormente, que por
sua vez, carrega na sua pluralidade cultural, uma forma sinestésica de cumprir sua
ritualística. Trago o conceito de sinestesia como fenômeno neurológico que consiste na
produção de duas sensações de natureza diferente por um único estímulo. Considero que
seja um termo que caracteriza a experiência sensorial de certos indivíduos nos quais as
sensações correspondentes a um certo sentido são associadas a outro sentido. Segundo
Lopes (2015), sinestesia é uma palavra que vem do grego synaísthesis, onde syn significa
"união" e esthesia significa "sensação", assim, uma possível tradução literal seria
"sensação simultânea".
Em um terreiro de Umbanda, a sinestesia pode ser caracterizada como uma
condição neurológica implicada no cérebro, no caso, com os sujeitos envolvidos.
Exemplificando por esta análise, o som de atabaque, que dentro deste espaço, serve como
instrumento musical, cuja função é invocar rezas. Conforme sua caracterização e nível
energético, o som produzido pode provocar sensações corporais de força, acelerando os
batimentos cardíacos e liberando adrenalina, consequentemente, entrando no que vamos
denominar de incorporação espiritual. Existe uma espécie de cruzamento de sensações
em um só estímulo, podendo esse mesmo som, produzir imagens e formas diversificadas
no corpo.
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Considerações finais
Encerro minhas reflexões sobre o método fenomenológico, porém não esgoto aqui
meu senso crítico pela escolha do mesmo, tampouco sobre o assunto trazido nesta escrita.
Penso que o plano de ação buscado para chegar ao fenômeno, no caso, no espaço terreiro
de umbanda, trará diálogos com autores que fundamentem tal método e o tema da
pesquisa. Confesso que possa ser uma possibilidade de romper paradigmas no tocante ao
entendimento da geografia da religião.
Segundo Paulo Freire (1987) nos seus escritos e pensamentos sempre nos alerta
de que o aprendizado e o ensino estão intrinsicamente interligados. “Ninguém ignora
tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma
coisa. Por isso aprendemos sempre. ” Aliar geografia com a religião é uma possibilidade
de discutir outras visões de analisar geograficamente os elementos que compõe a
natureza e o homem.
O pluralismo desses lugares, espaços de terreiros, é o que mais me chama a atenção
nesta fase exploratória da pesquisa. Espaços sinestésicos que são construídos e
desconstruídos conforme a identidade em que neles habitam. Pluralismo aqui me reporto
pelo entendimento do autor Berger (2005) que aponta a dificuldade de se manter uma
estabilidade cultural em detrimento de uma sociedade cujos processos de modernização,
economia e política são alguns dos elementos que interferem na conservação do mesmo.
Parafraseando o pensamento de Claval (2011), o que é mais relevante nisso tudo,
aqui reportando aos olhos de geógrafo, não é necessariamente a distribuição espacial ou
mesmo os fatos sociais existentes dentro de um terreiro de Umbanda, mas a maneira de
experienciar espaços e de certa forma extrair uma criticidade sob ponto de vista
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humanista. Mesmo com a citada singularidade no campo em questão, existe, ao meu ponto
de vista, uma linha tênue que homogeneíza a todos e a tudo: somos todos seres humanos.
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WILLAIME, Jean-Paul. Sociologia das religiões. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
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Introdução
Este trabalho tem como objetivo discutir a produção simbólica de um evento e
uma associação criados para perpetuar a memória cultural de um grupo migrante como
memória oficial da cidade. O referido grupo é conhecido como Pioneiro, e está localizado
em Nova Xavantina505, uma pequena cidade no interior do Mato Grosso e integrante da
Amazônia Legal Brasileira.
Este município surgiu a partir de diferentes políticas de colonização criadas pelo
governo a fim de expandir a fronteira agrícola nacional e, anterior a este contexto, já havia
na região indígenas da etnia Xavante, que chegaram em 1820 fugindo do contato com os
brancos. A partir da década de 1940, com a criação do projeto nacionalista Marcha para o
Oeste pelo presidente Vargas, chegaram à região diferentes migrantes (que são alvos
desse estudo) e, a partir do governo militar, em especial na década de 1970, muitos
gaúchos partiram do sul do país também para esta região em colonizações agrícolas
promovidas pelas políticas do governo. Essas três memórias convivem em Nova
Xavantina e enquanto os Xavante se entendem como os verdadeiros pioneiros do
município, os Pioneiros entendem que cumpriram uma missão patriótica de desbravar o
país e por isso merecem esse título e, para os Gaúchos, foram seus valores de progresso e
de trabalho que fizeram Nova Xavantina crescer e desenvolver.
Memória e identidade
A memória é vista neste trabalho como um fenômeno coletivo, tal como
Halbwachs (2006) - um dos primeiros autores a pensá-la como uma construção social e
não apenas uma resposta física do corpo - propôs na década de 1920. Para Halbwachs
*Bacharela em Turismo pela Universidade do Estado de Mato Grosso, Mestra em Ciências Sociais pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, com período sanduíche na University of California San Diego.
505 Nova Xavantina possui, segundo estimativas do IBGE de 2010, 20.639 habitantes (IBGE, 2017) e fica a
635 quilômetros da capital do estado, Cuiabá.
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é, “nós somos diferentes deles”. É uma identidade que surge pela oposição, levando em
conta processos de interação e também a identidade individual.
Ao se discutir sobre identidade e memória coletiva de um grupo de migrantes,
como é caso dos Pioneiros da Marcha para o Oeste, é necessário compreender de qual
concepção se parte para se falar de memória e identidade. Assim, a memória é algo
coletivo, que envolve a transmissão de lembranças entre grupos e a interação desse grupo
com outros. Nesse momento de interação a identidade se revela como algo contrastivo,
no qual um grupo se afirma se mostrando diferente de outro. Porém, a identidade além
da ótica contrastiva deve ser vista como algo maleável, aberto influências que esse contato
com os outros proporciona.
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do Centro-Oeste, mesmo que esses, em sua maioria, fossem o flagelo da cidade grande e
das agruras do Nordeste” (CANCELLI, 1984, p.1).
Cinco anos após sua criação, a Marcha para o Oeste concretizou-se com a
Expedição Roncador-Xingu, organizada em 1943. A Expedição Roncador-Xingu era a parte
prática da Marcha para o Oeste, sendo ela a responsável por abrir picadas e, assim,
construir as primeiras estradas da região. Segundo os irmãos Villas Bôas (1994), que
participaram desta empreitada, a Expedição Roncador-Xingu tinha a atribuição de entrar
em contato com os índios existentes na região e a Fundação Brasil Central (FBC), criada
em 1943, tinha a função de implantar núcleos populacionais nos pontos ideais marcados
pela Expedição. Deste modo, o primeiro órgão era a vanguarda do segundo.
O lançamento da Expedição foi realizado em São Paulo, com missa solene na
Basílica de São Bento, reatualizando o mito heroico do bandeirante (FRANÇA, 2000). Os
primeiros expedicionários saíram de São Paulo no dia 07 de agosto de 1943 e chegaram
de trem a Uberlândia. Depois foram para Barra do Rio das Garças (hoje Aragarças/GO) e
saíram de lá dia 4 de dezembro de 1943, chegando ao Rio das Mortes, onde se localiza
Nova Xavantina, no dia 28 de fevereiro de 1944.
Dia 24 de maio de 1945 visitaram Nova Xavantina o presidente Getúlio Vargas e
outras autoridades, além de representantes da imprensa da nacional. Os integrantes
fizeram, inicialmente, uma visita por todo o acampamento e nesta visita Vargas, em seu
discurso, fez alusão aos heróis do sertão, afirmando: “Deixo aqui o testemunho do meu
apreço a estes destemidos patriotas desbravadores do sertão, continuadores dos
sertanistas que conquistaram esta região no passado para que os atuais com seus
sucessores continuem aqui uma nova civilização” (OLIVEIRA, 1976, p. 123).
Dentro desse contexto esses homens, entre os quais muitos nordestinos e
goianos, extremamente pobres, migraram. A notícia de trabalho no sertão se espalhou e
diversos homens começaram a se alistar nas bases expedicionárias procurando mudar de
vida no sertão e foram migrando, mesmo que muitas vezes ainda adolescentes. Muitos
mudaram com a família quando ainda crianças e, assim que tinham condições de exercer
alguma atividade profissional, eram agregados às atividades da Fundação Brasil Central.
Sobre os órgãos criados a partir da ideia desenvolvimentista da Marcha para o
Oeste, é importante citar suas cronologias para compreender a importância que os
Pioneiros que trabalharam nesses órgãos dão a essas instituições. A Fundação Brasil
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Central (FBC), que foi criada posteriormente a Expedição Roncador Xingu, existiu de 1943
até 1967 e foi substituída pela Superintendência para o Desenvolvimento do Centro-Oeste
(Sudeco), que durou de 1967 a 1990. A Sudeco, diferentemente da FBC, era um órgão
planejador, normativo e coordenador de ações. Todavia, também atuava como
financiador de atividades cuja execução era função de instituições de outras esferas
administrativas – principalmente (MACIEL, 2002). Quando a FBC foi extinta, em 1967,
uma parte de seu patrimônio assim como de seu quadro permanente de pessoal foi
transferida para o órgão que a substituiu, a Sudeco. O restante de seus funcionários foi
redistribuído, lotando-se em diferentes órgãos da administração federal ou ainda
aposentado compulsoriamente (MACIEL, 2002; LIMA FILHO, 2001).
A cronologia desses órgãos é necessária para se compreender a crise identitária
que surgiu nos Pioneiros a partir destas transformações. Primeiramente é importante
perceber a mudança na direção destes órgãos, isto é, enquanto um órgão era de execução
(FBC), o outro (Sudeco) era de planejamento, ou seja, administrativo e burocrático. Logo,
como afirmou o Pioneiro João506
(...) a FBC, uma vez extinta, seus funcionários dispensados, uns inclusive
aposentados com uma lei especial, por tempo funcional, outros foram
entregues a outras instituições, pouquíssimos foram ainda admitidos na
Sudeco, pouquíssimos. Porque tinha funcionário que não tinha como ser,
como se diz, ir pra outro órgão, ele não tinha preparo (...).
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de Pioneiro. Com a crise, ocorreu a formação de uma comunidade de Memória, que evoca
o passado da Marcha para o Oeste, em cujo contexto categorias como Sertão, Fronteira,
Índios e Bandeirantes, assim como a noção de Patrimônio, foram articuladas com o intuito
de sustentar as narrativas relacionadas ao processo de reconstrução da identidade dos
Pioneiros. A partir da explicação de Lima Filho (1998) se entende que a noção de
Pioneiro surgiu a partir de uma vinculação com a posição funcional – profissional, visto
que a crise identitária surge após a aposentadoria compulsória dos trabalhadores da
Expedição Roncador Xingu. Todavia, essa crise também é acirrada com a chegada dos
gaúchos a região, que logo que chegaram à região construíram um Centro de Tradições
Gaúchas (CTG) gerando uma disputa pela memória coletiva, que tem seu início a partir da
criação da primeira Festa do Pioneiro da Marcha para o Oeste, ocorrida pela primeira vez
em 1987 e que acontece ainda todos os anos na cidade. Vale lembrar que, além da Festa,
criou-se também uma associação no ano de 1993, a Associação dos Pioneiros da Marcha
Para o Oeste (APMPO).
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A primeira festa foi organizada pela prefeitura e pela Sudeco, o que ocorreu até o
ano de 1989. Contudo, a partir de 1990, as dificuldades financeiras para a realização do
evento começam a surgir e outras entidades passaram a ajudar, como associações de
bairro, comércio etc. No ano de 1993, com a criação da Associação dos Pioneiros, esta
chama pra si a responsabilidade de organizar o evento, todavia ela não tinha condições
financeiras para custeá-lo e, deste modo, a festa continuou a ser financiada pela prefeitura,
Câmara e doações diversas, sendo o evento até os dias de hoje organizado desse modo.
A Festa é gratuita e são enviados convites aos Pioneiros para que participem do
evento com seus familiares. Em 2017, a Festa foi realizada no principal salão de festas da
igreja católica da cidade, que está localizada no centro, área identificada como parte nova
da cidade por ter sido explorada apenas a partir da década de 1970. Festas realizadas no
espaço reconhecido como novo no município costumam ter boicote de alguns Pioneiros,
que afirmam que o evento deve sempre ser realizado do lado antigo da cidade, ou seja, há
uma identificação simbólica dos Pioneiros com o lado antigo do município de maneira que
alguns se recusam a ir ao evento quando ele é realizado do outro lado da cidade.
Um panorama dos 30 anos comemorados em 2017 mostram que a Festa já foi
realizada com ares de evento de gala, como anos 90, acompanhados por Lima Filho
(1998), em que eram realizados bailes, almoços e jogos, e também situações em que a
Festa quase não aconteceu, como em 2009, em que havia sido decidido que esta não seria
realizada, mas às pressas um Pioneiro em especial tomou a frente para que a festividade
ocorresse (OLIVEIRA, 2010).
A dificuldade para organizar o evento naquele ano é a mesma enfrentada até os
dias de hoje, a falta de recursos. A prefeitura é parceira do evento e tinha como praxe, nos
últimos anos, doar dois mil reais. Contudo, em virtude da crise financeira que se abateu
sobre o munícipio, em 2015 foram doado 600 reais, de acordo com a presidente da
Associação naquela época. Acrescido ao montante entregue pela prefeitura, sempre é
solicitada a doação dos insumos necessários para o evento, que é gratuito, no comércio
local.
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A APMPO foi criada em 1993 com o nome de Associação dos Pioneiros de Nova
Xavantina, contudo em 1996 trocou de nome para que pudesse compreender não só os
expedicionários da Marcha para o Oeste residentes em Nova Xavantina, mas todos os que
participaram da Expedição, independente de onde estivessem morando no momento.
Ao falar sobre a APMPO, os associados ressaltam a todo o momento sua
importância e seu destaque perante as outras associações existentes, visto que, para eles,
a APMPO não busca benefícios para seus associados, tal como as outras associações, mas
sim resgatar a memória da Marcha para o Oeste.
Quando questionados sobre o motivo de fundarem a Associação, a necessidade
de se perpetuar a história sempre aparece em primeiro plano: “a gente tem aquilo na
cabeça, na mente, que a história não deve se acabar. Então a gente quer que a Associação
dos Pioneiros continue viva e contando a história para que fique guardado na memória do
descendente de Pioneiro para saber contar a história da criação dessa cidade”.
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Mas boa parte dos Pioneiros acha que sem os políticos a Associação não
sobrevive (...) eles querem viver com o pires na mão. A associação não
precisava de nada disso. Se todos pagassem as suas mensalidades em dia,
a diretoria promovesse um evento qualquer pra arrecadar, enfim, ela
tinha condições de fazer isso né (...) não havia necessidade disso, mas eles
querem assim, paciência508.
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Esse caráter político é encontrado ainda nos discursos dos Pioneiros que refletem
acerca do poder da Associação, visto em seu Estatuto como apolítica, todavia, encarada
por alguns como possível manobra para eleições. Logo,
Considerações finais
Os Pioneiros da Marcha para o Oeste residentes em Nova Xavantina reforçam que
o pioneirismo do município é circunscrito ao seu grupo e faz parte da sua identidade
coletiva, o que mostra a memória como elemento que mantém a coesão interna dos
grupos e defende as fronteiras do que este tem em comum. Assim, ter participado de
eventos referentes à Marcha para o Oeste é o delimitador de fronteiras de ser pioneiro.
Logo, por mais que outros tenham realizado feitos importantes para o município, somente
eles são Pioneiros da cidade, independente se exista uma Associação que os agregue ou
não. Desse modo, o pertencimento ao grupo dos Pioneiros não está ligado
necessariamente a uma instituição física, uma associação, todavia, liga-se a fronteiras
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Referências bibliográficas:
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15, 1989. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/43.pdf>. Acesso em: 01
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Introdução
Nas últimas décadas valoriza-se a capacidade do museu de contribuir para o
desenvolvimento do espaço urbano, podendo representar um meio de administrar – de
modo dinâmico – o patrimônio de uma comunidade. Além disso, no que se referem ao
enfoque do desenvolvimento econômico, os museus podem funcionar como mecanismo
de atração de turistas para os municípios (VARINE, 2013).
No entanto, autores como Varine (2013) e Pérez (2009) atentam para os riscos
da utilização turística do patrimônio cultural, como, por exemplo, medir o patrimônio pela
sua rentabilidade. Neste contexto, inserem-se os museus inspirados em parques
temáticos. Tais empreendimentos são concebidos para fins turísticos e comerciais, em
que o vínculo da instituição com a cultura local é inexistente.
Tendo esta conjuntura como ponto de partida para nossa análise, o objetivo do
estudo é discutir a relação entre a utilização do patrimônio cultural por meio da
musealização de espaços no espaço urbano de Gramado (RS) e como este processo está
servindo de vetor do desenvolvimento local.
No desenvolvimento deste estudo adotou-se como técnica de coleta de dados a
análise documental, explorando-se o Guia dos Museus Brasileiros (2011); a Relação de
Econômicos em Atividade, na categoria Atividades de museus e de exploração de lugares
e prédios históricos e atrações similares, disponibilizada pela Prefeitura Municipal de
Gramado (2016); material promocional impresso e virtual das instituições elencadas pela
Doutor em História; Faculdades Integradas de Taquara - FACCAT; Taquara, Rio Grande do Sul e Brasil;
danielgevehr@hotmail.com.
** Mestranda em Desenvolvimento Regional; Faculdades Integradas de Taquara - FACCAT; Taquara, Rio
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Natureza Ano de
Nome do museu Tipologia de acervo
administrativa criação
Museu do Perfume Ciências Naturais e História
Privado 1993
Fragram Natural;
Antropologia e Etnografia;
Museu Medieval Castelo
Arqueologia; Artes Visuais; Particular 1999
Saint George
História
Museu do Festival de Artes Visuais; História; Imagem Público-
2000
Cinema e Som municipal
Museu de Artes Dr. Informação não
Artes Visuais 1992
Carlos Nelz disponível
Museu Histórico 1982
Artes Visuais; Ciência e Público-
Municipal;
Tecnologia; História municipal
Prof. Hugo Daros
Informação não
Museu do Sapato Informação não disponível 1993
disponível
Museu do Chocolate Informação não disponível Privado-empresa 2001
Museu do Piano Informação não disponível Privado-empresa 1999
Fonte: Adaptado de Guia dos Museus Brasileiros (2011)
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Nesta mesma linha, insere-se o Museu Super Carros, que concentra um acervo de carros
superesportivos. Dentre as atrações do empreendimento, destacam-se os simuladores de
Fórmula 1, com movimento e estáticos; cinema 9D; fotos personalizadas dentro dos carros e
duas lojas de produtos.
Outro museu instalado em Gramado é o Museu Medieval Castelo Saint George. O
museu possui um acervo de cutelaria medieval, exposto em vitrines. Há réplicas de armas
dos filmes, espadas de Samurais, facas, lanças, entre outros. A arquitetura é inspirada nas
fortalezas medievais, construído com pedras de arenitos, portas e janelas de madeira
itaúba maciços, confeccionados pelo proprietário. Esse museu nos faz pensar naquilo que
Arantes (1991) chama de estetização em primeiro lugar, na medida em que a autora
defende que os novos museus priorizam a arquitetura estética em detrimento do acervo,
fazendo com que a arquitetura se apresente como “um valor em si mesmo” e que procura
chamar a atenção no contexto urbano contemporâneo.
Já o Museu Gramado Minerais e Pedras Preciosas tem um acervo com
aproximadamente 500 pedras semipreciosas, como ametistas, ágatas e opalas,
provenientes de diversas partes do mundo. Nesse mesmo gênero, A Mina apresenta mais
de mil exemplares de pedras preciosas do Brasil e de outros países como a África do Sul,
Argentina, Austrália, China, Congo, Índia, entre outros. Os museus temáticos Holywood
Dream Cars, Dream Land, Harley Motor Show – e o já descrito Super Carros – têm apelo lúdico
como principal característica, estando essas características já expostas na parte externa dos
museus e chamam a atenção no contexto urbano no qual estão inseridos. Os quatro
empreendimentos são integrantes dos oito comandados pelo grupo Dreams. O Holywood
Dream Cars, o mais antigo do quarteto, é uma exposição de carros antigos. A exibição remete
ao “glamour” de Hollywood nas décadas de 1950 e 1960. Também o Museu de Cera Dream Land
apresenta mais de 50 astros do cinema e personalidades distribuídos em dezoito cenários
temáticos.
Localizado no subsolo do Museu de Cera Dream Land, o Harley Motor Show se apresenta
como o único empreendimento temático da América do Sul a homenagear a marca de
motocicletas. Em uma área de aproximadamente 1000 metros quadrados, o local expõe mais
de vinte motos. No local, é possível perceber que no ambiente interno há o predomínio e a
vivacidade de cores no design. Assim como o Museu do Festival de Cinema, o Harley Motor Show
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Gramado, na qual estão inclusos os parques temáticos Mini Mundo, Mundo de Chocolate e
o Reino do Chocolate que são, na prática, parques temáticos e não museus, como menciona
o representante do setor de turismo da cidade. Nessa mesma linha de raciocínio, também
é possível destacar um outdoor instalado em uma das principais vias de acesso a Gramado.
O anúncio faz menção à compra de ingressos para os parques temáticos do município, no
entanto, a ilustração inclui imagens do Museu de Cera Dream Land, Harley Motor Show,
Holywood Dreams Cars e Super Carros.
A análise ao Guia permitiu perceber, também, que não há alusão aos museus que
estão vinculados à história local – que Poulot (2013) considera “museus de verdade” –
como o Museu de Artes Dr. Carlos Nelz e o Museu Histórico Professor Hugo Daros. Neste
sentido, vale atentar para o projeto do Museu Major José Nicoletti Filho que tem como
objetivo apresentar a história do primeiro superintendente de Gramado, bem como peças
e cenários dos diferentes momentos história do município e de seus habitantes (NANDI,
VIDAL e GEVEHR, 2015). O museu poderá promover a valorização da história e da cultura
local. No entanto, o projeto tem evoluído vagarosamente desde o ano de 2009.
Os museus de Gramado têm se convertido, cada vez mais, em atrativos turísticos
rentáveis. Autores como Huyssen (1997), Pérez (2009), Poulot (2013) assinalam a
proliferação dessas instituições. Huyssen (1997), por sua vez, chama este fenômeno de
“museumania”. No entanto, se por um lado há uma multiplicação de museus voltados ao
consumo turístico, por outro, vão desaparecendo instituições museais que não se
submetem aos processos de espetacularização (PÉREZ, 2009).
Os museus analisados incorporam estratégias de marketing, buscando a
identificação e, por conseguinte, a satisfação das necessidades humanas e sociais
(KOTLER; KELLER, 2006). Dois dos empreendimentos dispõem de equipamentos de
oferta alimentar, além disso, o roteiro das visitas aos museus encerram nas lojas de
souvenirs, pertencentes aos estabelecimentos, tal intervenção de roteiro é empregada nos
oito empreendimentos pesquisados. Chama atenção, também, a localização geográfica das
referidas instituições, que se colocam como “vitrines” no espaço urbano de Gramado –
dada a sua configuração arquitetônica e a utilização de recursos de marketing para atrair
os turistas que percorrem as ruas e avenidas da cidade.
Dentre os oito museus, seis estão localizados na Avenida das Hortênsias. A
referida avenida cruza o município de Gramado no sentido leste-oeste e conecta-se ao
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Considerações finais
Percebe-se que os museus têm passado por profundas transformações e
apresentado novas perspectivas de diálogo com o espaço urbano nos quais está inserido.
Visando atrair visitantes [ou seriam consumidores?] as instituições abandonam cada vez
mais a visita percebida tradicionalmente como introvertida e conservadora, de
contemplação e concentração, configurando-se atualmente como instituições que
apresentam seus acervos de maneira dinâmica e interativa. Os museus encontraram na
atividade turística uma fonte de sustento, transformando não apenas a ideia de
patrimônio cultural, mas também a própria paisagem urbana, que passa a contar com uma
nova arquitetura, voltada para o espetáculo e para a valorização de novos elementos, até
então estranhos à própria comunidade.
A reformulação dos museus na sociedade capitalista parece exceder-se na
exibição e encenação, valendo-se progressivamente de cenários cinematográficos e
reproduzindo imagens percebidas em parques temáticos, tal panorama parece ilustrar
um “alinhamento progressivo da instituição à vulgaridade comercial” (POULOT, 2013, p.
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106). Esta conjuntura foi observada nos museus estabelecidos em Gramado, dado que o
turismo no município tem atribuído novas funções aos museus e estes têm concorrido
cada vez mais com indústrias de lazer, tais como os parques temáticos existentes do local.
A análise revelou que os museus tem-se apresentado como atrações turísticas rentáveis
economicamente. Assim, Gramado tem experimentado uma proliferação de museus na
última década. Atualmente o município registra oito empreendimentos no ramo, e não
obstante apenas um apresenta algum vínculo com a cultura local.
Os museus [e sua dinâmica de relação com a produção do espaço urbano] devem
ser pensados como instituições que contribuem para o desenvolvimento local, tendo em
vista que na concepção de desenvolvimento seja fundamental a melhoria da qualidade de
vida da população, seja em aspectos econômicos, sociais, culturais ou ambientais.
Excetuando o Museu do Festival de Cinema que mesmo após ser reconfigurado [aderindo
a recursos audiovisuais] mantém intenções didáticas, contribuindo para a preservação da
memória do Festival de Cinema de Gramado, evento vinculado à comunidade de Gramado.
Percebe-se que no caso dos demais museus, os mesmos estão limitados à exploração
econômica e comercial, voltados para o consumo de massa, desprovidos de vínculo com a
cultura e representação da comunidade.
A análise permitiu inferir, também, que não há uma concepção sólida acerca do
conceito de museu. A indefinição foi percebida no mapeamento das instituições, que
variam de acordo com a fonte pesquisada. Neste sentido, outro fato observado é que a
concepção de museu é ambígua. Perante as produções e encenações praticadas pelas
instituições, museus são entendidos e vendidos, também, como parques temáticos.
Por fim, cabe lembrar que, ainda que os museus representem atrativos turísticos
e, por conseguinte, geram emprego e renda no município [tendo em vista o efeito
multiplicador e difusor da atividade turística], a reprodução desse modelo cultural acaba
contribuindo para a transformação profunda da paisagem cultural da cidade, na medida
em que esses novos espaços [museus e parques] produzem cenas inusitadas em Gramado.
Referências bibliográficas:
ARANTES, Otilia. Os novos museus. Novos Estudos CEBRAP, v. 31, p. 161-169, 1991.
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HOLLANDA, Ana de. Ao Brasil, seus museus. In: BRASIL, Instituto Brasileiro de
Museus. Guia dos Museus Brasileiros. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2011. p. 9-
10.
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Imagem, 2015, Londrina. Anais. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2015.
Disponível em: https://goo.gl/3XyBnT.
PÉREZ, Xerardo Pereiro. Turismo cultural: uma visão antropológica. Tenerife: Pasos,
2009. 324 p. Disponível em:
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510Texto apresentado como requisito para aprovação na disciplina “Memória e Esquecimento”, ministrada
pela professora Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos, 2017/01, no Programa de Pós-Graduação em
História da Unisinos.
* Mestranda da Universidade do Vale dos Sinos-UNISINOS. Historiadora responsável pelo acervo da
Fundação Ernesto Frederico Scheffel e Museu Comunitário Casa Schmitt Presser, ambas localizadas no
bairro Hamburgo Velho na Cidade de Novo Hamburgo/RS.
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ano seguinte, expõem pela primeira vez em Hamburgo Velho nos Salões da Sociedade de
Cantores - Frohsinn - junto com Laura Bohn, Oscar Kunz Filho e Norberto Michel.
A década de 1950 será um período de provações e crescimento artístico, década
na qual o artista elabora a obra analisada nesse artigo. Scheffel, se muda para o Rio de
Janeiro e conhece Oswaldo Teixeira que, “impressionado com o jovem artista, escreve a
seguinte mensagem ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul” 512:
512 Conforme material didático da Fundação Ernesto Frederico Scheffel elaborado pela historiadora Ângela
Sperb na década de 2000.
513 Conforme informações oficiais do site da pinacoteca da Fundação Ernesto Frederico Scheffel.
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514 A pinacoteca da Fundação Ernesto Frederico Scheffel, inaugurada em 05 de novembro de 1978, com um
acervo de mais de 385 obras de autoria do próprio Scheffel, fazendo com que ela se constitua numa das
maiores pinacotecas do mundo com obras de um único artista, possuindo algumas das suas melhores e mais
significativas obras. Os quadros expostos nos três pisos do casarão, erguido por Adão Adolfo Schmitt no fim
do século XIX, com características neoclássicas, são apresentados obedecendo à ordem cronológica de
criação e estão agrupados conforme a temática e técnicas utilizadas para sua execução. No primeiro piso,
estão os quadros que marcaram sua fase inicial, de sua adolescência até seus 22 anos. Algumas são de
caráter regionalista, justamente por retratarem os lugares, a região que deu origem à sua carreira. No
segundo piso, encontram-se as obras que participaram dos vários Salões de Belas Artes no Rio de Janeiro,
na busca do “Prêmio de Viagem ao Estrangeiro”. São obras do gênero épico, simbolista, e do realismo
poético. Finalmente, no terceiro piso, encontram-se obras de sua fase na Europa.
515 O artista na década de 1960 passa a residir na Itália. Nas décadas seguintes, intercala-se entre Europa e
Material elaborado pela diretoria da Fundação Scheffel em exercício em 1996-1997 composta por Ana
Jussara Hauschild (diretora executiva), Maria Inês Weissheimer (vice-diretora) e Harro Schmitt
(conselheiro e curador).
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Segundo LE GOFF, atualmente a questão mais relevante sobre a memória são seus
mecanismos de preservação. “a memória passou a ligar-se menos aos acontecimentos
históricos e mais a comportamentos, mentalidades, imagens, ritos e festas”. (LE GOFF,
2003, p.466).
Relembrar a história da cidade de Novo Hamburgo e dos imigrantes alemães, “é
crucial para nosso sentido de identidade: saber o que fomos confirma o que somos”
(LOWENTHAL, 1998, p. 83).
Ernesto Frederico Scheffel, descendente de alemães, além de pintar e compor
músicas, também amava a história, a sua história e da humanidade, seja ela local, regional,
nacional ou mundial. Elaborou em 1955 um estudo e em 1956 a obra Hamburgo Velho,
também conhecida como Forno de Pão (obra abaixo). Segundo o artista, foi
“possivelmente uma das minhas obras mais divulgadas sobre a colônia alemã no Vale dos
Sinos” (SCHEFFEL, 2013, p.75).
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possa para seu tio com um bloco de desenhos. Ambos os personagens com expressões
pensativas. Seus olhares não se encontram.
Ao lado do menino, um forno de pão. Segundo o jornalista Eduardo Andrejew, “A
pequena e rústica construção não divide apenas o espaço com a moça e o garoto. Ao fundo,
uma paisagem se insinua: Hamburgo Velho há 60 anos517”. O jornalista ressalva também
“O lugar também dá nome a esta que é uma das mais importantes pinturas do artista (...)
Mais do que uma pintura de grande qualidade, Hamburgo Velho tem todo um valor
simbólico para o artista e para a região onde ele cresceu” (ANDREJEW, 2016).
A relevância da obra Hamburgo Velho está associada à história da cidade.
Conhecer nossa história individual e coletiva faz parte de quem somos. Liene Martins
Schütz518, em seu livro Os Bairros de Novo Hamburgo, (2001, p.72), informa que os
aspectos históricos da cidade de Novo Hamburgo iniciou-se em Hamburgo Velho, antigo
Hamburger Berg519, nome dado pelos primeiros imigrantes alemães que vieram para essa
localidade para lembrar uma antiga rua da cidade de Hamburgo, conforme informações
do Professor Lanzer, imigrante alemão aqui chegado na década de 1850. Os imigrantes
chegaram ao Vale dos Sinos- São Leopoldo em 1824 e em Hamburgo Velho em novembro
do mesmo ano. Porém Hamburgo Velho520 começa a se estruturar por volta de 1830.
Hamburgo Velho, segundo SCHÜTZ (2001, p.73), começou com Johann Peter
Schmitt, que instalou a primeira casa comercial onde hoje temos a Casa Schmitt Presser,
situada à Av. Gal. Daltro Filho, 929. “Considerada, por justiça e valor, o marco histórico de
Hamburgo Velho. Grande foi à luta pela preservação da Casa”.
517 Reportagem escrita para o Jornal NH, com edição do dia 07 de dezembro de 2016, intitulada: Modelos
junto à tela pintada por Frederico Scheffel há 60 anos. Reportagem destaca a comemoração dos 60 anos dessa
pintura com concerto especial na Fundação Ernesto Frederico Scheffel.
518 Liene Martins Schütz natural de Novo Hamburgo, licenciou-se em História na Unisinos e cursou mestrado
em Assuntos Ibéricos Américanos na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras nesta mesma Instituição.
Presidente do Grupo de Trabalho de Pesquisa Histórica dos festejos do Sesquicentenário da Imiração e
Colonização Alemã no RS em NH (1974). Sócia Fundadora do Movimento de Preservação do Patrimônio.
Membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Novo Hamburgo.
Sócia fundadora e Efetiva do Instituto Histórico Visconde de São Leopoldo, ocupando a cadeira número 17
de 1974/2001. Responsável pela elaboração do Primeiro Levantamento e Fichário Histórico e Cultural de
Novo Hamburgo.
519Hamburgerberg em tradução livre do alemão para o português: o morro do hamburguês. Fato que ocorre
duplo sentido: garantia a posse dos territórios através do povoamento e a colonização; introduzia uma nova
mentalidade no que se refere a posse da terra, produção e mão-de-obra, contrapondo-se aos latifúndios,
monocultores e escravocratas que existiam no restante do país.
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521 Do alemão Hinterland, em tradução livre para o português: interior ou zona rural, neste caso.
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relação com seu consumidor. Na obra aqui analisada, o grupo receptor são os
hamburguenses que se identificam com o forno de pão, este no quintal de suas casas, fato
ainda hoje presente em cidades do interior. Passado e presente se mesclam. A mãe, dona
do lar que prepara pães, cucas e outras guloseimas em seu forno. As filhas em determinada
idade passam a aprender as receitas de família, com suas mães para então serem levadas
ao forno. A obra relaciona tempo e espaço, seja do artista e ou do observador.
O passado sempre se relaciona ao presente assim como o tempo a memória.
Gomes (2009) destaca:
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522Reportagem escrita para o Jornal NH, com edição do dia 07 de dezembro de 2016, intitulada: Modelos
junto à tela pintada por Frederico Scheffel há 60 anos.
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cidade de Novo Hamburgo, atual bairro Hamburgo Velho, trás consigo diversas histórias,
lembranças e memórias. Destaco um poema escrito na década de 1980 que ressalva as
memórias do hamburgense Dênis Dapper da Cunha sobre o bairro Hamburgo Velho:
HAMBURGER BERG
Considerações Finais:
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O forno de pão, elemento central dessa obra, remete as tradições, aos costumes e
hábitos ainda hoje presentes no cotidiano de família de colonização alemãs na região.
Passado e presente se mesclam assim como o tempo a memória.
Referências bibliográficas:
CANDAU, Joel. Antropologia da Memória. Lisboa: Ed. Piaget, 2013.
CATROGA, Fernando. História e Memória, in Pesavento, Sandra Jatahy. Fronteiras do
Milênio. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001.
CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. 2ª edição, Bauru, EDUSC, 2002.
GOMES, Ângela Maria de Castro. História e historiadores: identidade e diálogos
disciplinares. In: A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argvmentvm , 2009.
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PARTE 8
A pesquisa arqueológica no Rio Grande do Sul possui uma história que envolve um
longo processo de desenvolvimento, com diferentes momentos, nos quais transitou entre
um caráter inicialmente amador, passando a uma atividade científica ligada a Instituições
de Ensino Superior e, atualmente, também voltada a uma perspectiva empresarial, com a
arqueologia de contrato, sendo que essa última também tem sido feita dentro do âmbito
acadêmico. No entanto, a maior produção de conhecimento e formação de arqueólogos
tem sido feita a partir das inúmeras IESs do Estado que possuem núcleos, laboratórios,
institutos ou cursos voltados à arqueologia (UNISINOS, PUCRS, UFRGS, UFSM, UFPEL,
FURG, UPF, URI, UNIPAMPA entre muitas outras). Assim, esse simpósio tem como objetivo
reunir profissionais e estudantes que atuam e/ou tiveram sua formação nesse âmbito
para apresentar e discutir a situação atual da formação profissional e da pesquisa
arqueológica vinculada a Instituições de Ensino Superior no Estado.
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Arqueologia
Arqueologia é o estudo do passado humano através da materialidade de seus
remanescentes, enquanto populações biológicas, sociedades ou culturas. Pode tratar de
um passado longínquo, ou de um passado recente, de populações caçadoras-coletoras,
agricultoras ou industrializadas; ágrafas ou letradas; dispersas ou reunidas em aldeias e
cidades. A arqueologia dita pré-histórica tem seu nascedouro na História Natural, a
arqueologia chamada histórica em Estudos Clássicos. O enfoque básico pode ser a
evolução e desdobramento da espécie Homo, a Cultura e seus desdobramentos sociais,
linguísticos e tecnológicos. Na universidade norte-americana ela é ensinada junto com
Antropologia Biológica, Antropologia Cultural, Antropologia Social e Linguística. Na
tradição europeia ela está mais ligada à evolução da tecnologia.
A busca do passado sempre esteve presente nas sociedades humanas, formulada
em memórias, em mitos religiosos, em elaborações filosóficas, nos últimos séculos em
pesquisas científicas.
Enquanto pesquisa científica, no Brasil, como colônia da Europa, a Arqueologia
repetiu e continua repetindo o que se faz na mãe-pátria, mesmo quando esta influência
vem através dos Estados Unidos.
O Rio Grande do Sul, um espaço afastado dos grandes núcleos urbanos do Centro
do País, repetiu, em grandes linhas o que neles se fazia, talvez em escala menor e com
nuances regionais.
Em grandes linhas podemos esboçar as etapas da arqueologia no Estado em quatro
momentos: arqueologia da curiosidade, das coleções e dos museus, de enfoque cultural,
secundariamente biológico, no século XIX e XX, até aproximadamente 1965; arqueologia
científica ou acadêmica, até 1986; arqueologia preventiva, empresarial, ou de patrimônio
Livre-docente doutor. UNISINOS. Pesquisador sênior do CNPq.
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nacional, da década de 1980 até hoje; no século XXI, se esboçou ainda uma arqueologia
social, de colaboração com minorias étnicas e sociedades camponesas residuais.
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na próxima etapa; a maior parte foi se apagando por não alcançar o caráter de ciência que
a arqueologia começou a experimentar e a exigir.
Nesse tempo ainda não havia legislação para defesa dos sítios e materiais
arqueológicos. A primeira legislação é de 1961 e se refere só a cavernas e sambaquis, que
eram, então, furiosamente explorados para produção de cal.
Não havia, nem se ensinava arqueologia nas universidades existentes.
José Proenza Brochado (1969), iniciando o magistério na UFRGS, fez excelente
apresentação do período, baseado no excelente acervo da Biblioteca Municipal de Rio
Grande. Marina Amanda Barth (2013) apresentou muito bem este período em Santa Cruz
do Sul. Para uma visão geral do que acontecia no Brasil pode-se ver Alfredo Mendonça de
Souza (1991) ou André Prous (1992).
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A passagem da década de 1970 para 1980 ficou marcada ainda por outros
acontecimentos. Com as equipes de arqueologia se multiplicando pelo Brasil, em 1980 se
fundou, na Universidade Católica de Goiás, a Sociedade de Arqueologia Brasileira, que teve
como primeiro presidente um gaúcho.
Na década de 1980 foram incorporados à pesquisa também os assentamentos
históricos e urbanos do Brasil colonial e imperial, com intensa atividade ligada às
Reduções Jesuítas de Guaranis e, em menor escala, à colonização portuguesa a partir do
litoral atlântico.
Também surgiram os primeiros projetos de contrato ou de Arqueologia Preventiva
(Itaipu, com Igor Chmyz da UFPR), no começo ainda executados por professores
universitários. Em 1986, uma portaria do CONAMA acoplou esses estudos aos de Meio
Ambiente, união que aumentou o comprometimento e rigidez das avaliações de impacto,
produzido por grandes empreendimentos de geração de energia, mineração,
agroindústria, urbanização, rodovias e ferrovias, que começavam a se multiplicar pelo
território nacional (Caldarelli, 2015).
Na etapa científica ou acadêmica, a Arqueologia criou seu espaço na universidade,
tanto em nível de graduação, como de pós-graduação, mantendo um viés antropológico,
mais cultural ou mais social, ao estilo norte-americano. Nela se colocaram as bases para
uma história indígena, no Estado e no País. A arqueologia mais ligada à Geografia ou
Geologia (Geoarqueologia), trazida por profissionais franceses e desenvolvida em outros
estados conseguiu um espaço melhor apenas na seguinte etapa.
Os amadores foram desaparecendo, suas coleções sendo recolhidas pelas
universidades e o interesse das comunidades, enorme no começo do período, quando
todo o conhecimento era novo, foi diminuindo com a repetição dos mesmos achados e
também a elitização do conhecimento, agora produzido pela Academia.
Finalmente um brevíssimo resumo dos resultados produzidos nesta etapa.
Um primeiro povoamento por populações vivendo da caça e da coleta de produtos
naturais nas áreas mais florestadas da encosta do Planalto Meridional e da beira de
grandes rios, de aproximadamente 10.000 a.C. até alguns séculos de Era. Seus
acampamentos se realizavam em grutas, ou a céu aberto. Além de artefatos, como pontas-
de-projetil, talhadores e raspadores, deixaram muitos restos de seus alimentos, que
permitem caracterizar seu modo de vida. Significativas marcas de sua passagem são as
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gravuras que deixaram em grutas em que tinham morado, ou em blocos rochosos de áreas
pelas quais passaram. Os arqueólogos chamam sua cultura de tradição Umbu. Não há
sobreviventes conhecidos.
Um segundo povoamento, paralelo, por populações vivendo da pesca e da coleta
de moluscos ao longo do litoral atlântico; no Estado a partir de 1.500 anos a.C., em estados
vizinhos a partir de 6.000 anos a.C. Além de grandes acúmulos de restos (sambaquis),
deixaram artefatos típicos como lâminas de machado, anzóis, pequenas esculturas em
pedra (zoolitos) e numerosos sepultamentos, cujos esqueletos caracterizam uma
população biológica própria, independente daquela anterior. Os arqueólogos falam de
sambaquis e cultura sambaquieira. Não se conhecem sobreviventes.
Junto às grandes lagoas do Sudeste do Estado, populações indígenas, que viviam
da pesca, da caça e da coleta de produtos vegetais desde alguns séculos a.C., levantaram
‘cerritos’ (acúmulos de terra) em áreas alagadiças. Se os construtores dos sambaquis têm
origem mais ao norte, os cerritos são platinos. Já no começo de nossa era aprenderam a
fazer simples vasilhas de barro para assar o peixe e os numerosos caranguejos das lagoas;
os arqueólogos denominam esta cerâmica de Tradição Vieira. Como possíveis
sobreviventes são mencionados os charruas e minuanos coloniais. Com o novo conceito
de etnia reapareceram Charruas até em nossos centros urbanos.
Para os campos do Planalto Meridional, a partir de aproximadamente mil anos a.C.,
houve uma expansão, em ondeadas sucessivas, de populações dos cerrados do Brasil
Central (Minas Gerais e Goiás). De caçadores e coletores no campo, com o crescimento dos
bosques de Araucária aprenderam a manejar o novo mato e transformar seu pinhão em
alimento básico, complementando-o com a plantação de alguns cultivos tropicais.
Inicialmente viviam em choupanas a céu aberto, ao redor do século sexto de nossa Era
passaram a construir casas dentro do chão (casas subterrâneas) como adaptação ao frio
nos pinheirais. Junto com suas engenhosas habitações enterradas, ao redor do nono
século de nossa Era, começaram a produzir um paneleiro típico, que os arqueólogos
denominam tradição Taquara/Itararé. Sobreviventes atuais são os índios Kaingang e
Xokleng, do grupo linguístico Macro-Jê, atualmente um dos maiores grupos indígenas do
Brasil.
Sobravam para colonização indígena as matas da encosta do planalto e da beira
dos grandes rios, milenarmente ocupadas por caçadores e coletores da tradição Umbu,
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nesse tempo já de poucos indivíduos em pequenos grupos dispersos. Nesse espaço uma
população agricultora da família linguística Tupi-guarani, deslocando-se do sudoeste da
Amazônia ao longo dos grandes rios da bacia do Rio da Prata, veio levantar suas aldeias
de pequenas casas de troncos e palha. Ela se tornou uma população numerosa que, ao
tempo da Conquista europeia, se calculava um milhão de pessoas. No tempo da Colônia,
ela foi muito disputada por espanhóis e portugueses para manutenção das respectivas
economias agrárias. A apropriação de seu trabalho era feita pela escravização, o serviço
pessoal, a encomienda e a missão religiosa. Os sobreviventes já voltaram a ser numerosos
no Brasil, no Paraguai e na Argentina, poucos no Uruguai.
A arqueologia histórica do período investiu mais intensamente no estudo das
reduções produzidas pelos jesuítas com populações Guarani, no período inicial, no apogeu
e na desestruturação (Carle, 2017). Do primeiro período foram estudadas as reduções de
Jesus-Maria em Candelária (UNISC), de São José da Pedra Escrita em São Pedro do Sul
(PUCRS) e de Candelária do Caazapamini junto ao rio Ijui no Noroeste (UNISINOS). Para
as reduções do período de esplendor (São Miguel, São Luiz, São João, Santo Ângelo) se
realizou um projeto mais amplo congregando pesquisadores de diversas universidades
sob a coordenação do IPHAN. Do período da desestruturação após o Tratado de Limites
de 1750 é preciso lembrar o trabalho da UNISC na Aldeia de São Nicolau em Rio Pardo.
Na arqueologia ligada ao povoamento português vale a pena destacar o trabalho
feito pelo MARSUL e a PUCRS em Santo Antônio da Patrulha e pela FURG em Rio Grande.
A arqueologia do período era voltada ao conhecimento, não primariamente à
preservação de objetos ou restauro de construções como patrimônio nacional. Os
resultados foram publicados em inúmeras teses, dissertações, artigos e comunicações,
cuja citação é impossível no espaço desta comunicação. Na obra coordenada por Arno
Alvarez Kern (1991) pode-se ter um resumo do conhecimento então veiculado.
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existem experiências avançadas dessa colaboração. No Rio Grande do Sul ela está sendo
tentada com as populações indígenas Guarani e Kaingang e também com populações
quilombolas. As experiências feitas mostram que, se ela é válida e importante, não é de
fácil execução bilateral, sem laivos de dominação.
Considerações
As etapas esboçadas mostram uma trajetória de iniciativas individuais e
institucionais no estudo da história do Homem no Estado usando seus remanescentes
materiais. O Rio Grande do Sul, um espaço afastado dos grandes núcleos urbanos do
Centro, repetiu, em grandes linhas o que neles se fazia, talvez em escala menor e com
nuances regionais. Os centros, por sua vez, se abasteciam de especialistas treinados no
Primeiro Mundo para movimentar o mercado local. Assim se criaram alternâncias nos
interesses e nas explicações dos materiais.
As etapas da trajetória da arqueologia no Estado se realizaram em contextos
específicos:
A primeira responde a um tempo em que a cultura ainda se concentrava
grandemente em colégios mantidos por imigrantes europeus e seus descendentes, nas
localidades em que se haviam fixado; as poucas universidades, criadas por cidadãos
respeitáveis, geralmente profissionais liberais que a ela dedicavam parte de seu tempo,
formavam novos profissionais a sua maneira para as necessidades mais urgentes da
sociedade. Mas um museu, mostrando o mundo, sua evolução e diversidade fazia parte de
qualquer educandário de comunidade.
A segunda etapa está ligada ao surgimento de universidades, formadas por
profissionais do ensino e da pesquisa, que vivem desse emprego, na capital e também em
cidades do interior. É o início do governo militar, nacionalista, com seu lema ‘integrar para
não entregar’, a construção de Brasília e toda a interiorização no território. É também a
reforma universitária (1968) substituindo um modelo europeu por um americano, com
especialistas e pós-graduação em todos os campos.
A terceira etapa responde a um momento de grande expansão capitalista,
acompanhada de grandes empreendimentos em todo o território nacional. Também de
valorização como patrimônio de todo tipo de materiais e modos de fazer tradicionais, do
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Agradecimento
Ao Prof. Dr. Jairo Henrique Rogge pela leitura e sugestões para melhoria do texto.
Referências bibliográficos:
BROCHADO, J.P. Histórico das pesquisas arqueológicas no Estado do Rio Grande do Sul.
Iheringia, Antropologia n. 1, 1969.
KERN. A.A. (Org.). Arqueologia pré-histórica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1991.
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PARTE 9
INICIAÇÃO À PESQUISA
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* Estamos utilizando o nome da Estância de San Javier mantendo, portanto a grafia original em espanhol.
** Graduanda de Ciências Humanas, Bolsista FAPERGS, membro do grupo de Pesquisa Relações de Fronteira:
vale também para a América portuguesa. E é nesse quadro comum que se costumam incluir as “memoráveis
arrancadas dos bandeirantes para oeste que, com evidentes objetivos econômicos [...] asseguraram, a
extraordinária expansão geográfica do Brasil. (MOREIRA, 2002, p. 24)
524 “La Provincia jesuítica del Paraguay, conocida también por el nombre de “Paracuaria”, fue creada en el
año 1604 y comprendía lo que actualmente es Chile, Argentina, Uruguay, Paraguay y partes de Bolivia y
Brasil.” PALACIOS; ZOFFOLI, 1991, p. 57-58.
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Figura 1 - Catálogo de numeração anual das doutrinas do rio Uruguai no ano de 1728
Fonte: División Colonia Seccion Gobierno Compañia de Jesus 1723-1734. Leg. Nº 4; 411; S. IX 6-9-6. Doc.
451. Buenos Aires: Archivo General de la Nación.
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Figura 2 - Catálogo de numeração anual das doutrinas do rio Uruguai no ano de 1733
Fonte: División Colonia Seccion Gobierno Compañia de Jesus 1723-1734. Leg. Nº 4; 411; S. IX 6-9-6. Doc.
177. Buenos Aires: Archivo General de la Nación.
Já este outro documento de 1733, 104 anos depois de sua fundação a redução de
San Francisco Javier possuía 831 famílias, 28 viúvos, 174 viúvas, 884 meninos, 915
meninas, 132 batizados, 16 casados, 172 diferidos adultos, 289 diferidos parvulos, 4834
comungantes e 3663 almas, ocupando 12º lugar das 15 reduções, em um total 8497
pessoas, comparando com a anterior houve um aumento da população.
Através desta tabela consegue-se interpretar, o quantitativo de pessoas que
viviam na redução de San Francisco Javier, no ano de 1728 a 1733, dessa forma pode-se
destacar que o quantitativo populacional é razoavelmente pequeno, comparado com
outras reduções. O gráfico abaixo permite ver com clareza estes dados.
Assim como as reduções eram basicamente formada por famílias guaranis, povo
esse que era semi nômade, e que por consequência já tinham habilidades de agricultura.
“O povo de S. Xavier tinha naquele lado uma pequena estancia o campo do serro pellado
nas margens do Juhi Grande” ( GAY, 1863, p. 58) era necessário manter este espaço da
estância para criação do gado e também para que fosse extraída a erva mate das matas.
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Os ataques sempre foram constantes tanto nas reduções como nas Estâncias de
outros povos originários que ocupavam, ou faziam fronteira. Até a colheita da erva mate,
se tornava algo perigoso para os guaranis tanto de S, Javier quanto os de Santo Ângelo,
outros povos e até mesmos guaranis não reduzidos Tupys ficavam escondidos na mata e
quando podiam atacavam, os que não conseguiam escapar os mesmos matavam e comiam
a sua carne. “Os índios selvagens aparecem frequentemente nesses arredores, e
continuam matando guaranis e brancos quando vão colher mate nas florestas vizinhas.” (
Saint-Hilaire, 1987, p. 314), Devemos levar em consideração que Saint-Hilaire passou por
esta região vários anos após o Tratado de Madri, o que nos leva a crer que isto acontecia
no passado com maior intensidade ainda.
Figura 3 - Povos que faziam parte da província jesuítica do Paraguai e Estância de San Javier
Fonte: MAEDER, Ernesto; GUTIERREZ, Ramón. Atlas territorial y urbano de las misiones jesuíticas de
guaraníes. Argentina, Paraguay y Brasil.Sevilla: Instituto Andaluz del Património Histórico, 2009, p.26
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mesmo tendo esta estruturação das reduções e de seus espaços enquanto estâncias não
impediram que “as frentes de expansão espanhola e portuguesa. Paulistas de um lado e
paraguaios de outro caçavam o indígena para transforma-lo em mão de obra, mesmo
sabendo que com isto se desarticulava todas a sua cultura e se decretava o genocídio das
tribos” (KERN, 1982, p. 63).
É importante lembrar aqui que a estância de San Javier ficava na margem esquerda
do rio Uruguai e sua redução na margem direita, com isto podemos afirmar que o rio
Uruguai neste momento não é uma fronteira, mas sim uma ligação entre a redução e a
estância, bem como importante meio para realizar o transporte da produção da estância
e a comunicação entre outros povoados como Yapeyu até mesmo de acesso ao rio da prata
e posteriormente ao oceano atlântico.
A criação da estancia contribui para que a redução se consolidasse. É importante
destacar que dentro das estâncias ou até mesmo nas imediações das reduções os guaranis
praticavam a agricultura e pesca focando sempre uma produção para a subsistência.
A estância de S. Javier assim como as outras, estâncias, foram formadas
principalmente por guaranis semi-nômades, desse modo os mesmos já cultivavam
algumas variedades de cereais e leguminosos, e continuaram a ser incentivados a plantar
lavouras nas chácaras perto das reduções e também em espaços destinados a plantações
nas estâncias. “Os indígenas Guaranis estavam acostumados a uma produção agrícola
apenas suficiente para o seu consumo imediato. Assim não podiam compreender o tipo
de economia acumulativa e de intensa atividade da mão-de-obra dos
encomendeiros.”(KERN, 1982 p, 75), os povos reduzidos continuaram e ampliaram suas
plantações agora com um olhar do jesuíta e dos funcionários da coroa espanhola, e o que
era produzido a mais do que o necessário era comercializado entre as reduções e também
enviado este excedente para a Espanha.
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Os povos reduzidos seguiram com suas plantações caça e pesca deixando de ser
nômades, mas seguindo com sua agricultura, de subsistência que geralmente, ficava nos
fundos das casas dentro das estancias. Ou seja, sendo lavouras comunitárias, onde
trabalhava-se e, grupos, dificultando a implementação da propriedade particular, de
modelo Europeu. Assim o modo econômico que foi implementado nas missões, não é de
total mercantilista, mas sim, tendo uma base europeia, pois do mesmo modo como os
povos que ali viviam tinham sua propriedade de certo modo particular que visava os
lucros, os mesmos tinham também a propriedade que por assim dizer era de todos, onde
todas as famílias tinha acesso a essas terras e a produção que se fazia dentro delas, assim
também facilitava o controle dos nativos que trabalhavam nas missões. O indígena
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plantava, e todos ajudavam e cada um poderia levar para si o produto que estava sendo
colhido, sendo lavouras de economia solidaria e familiares.
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Podemos afirmar que embora a citação acima indique que o modo de criação da
estância de Yapeyu se deu desta maneira, a criação das outras estâncias dos povos
missioneiros se deram devido aos mesmos problemas enfrentados por Yapeyu com
referência a necessidade de ter o gado em um lugar mais concentrado.
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Conclusão
A redução de San Francisco Javier e sua estância não se desenvolveram de maneira
isolada das outras, mas integraram um amplo sistema econômico, executando as ações
determinadas pela coroa espanhola. Os povos reduzidos destinados a estância eram
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encarregado das lidas de campo para manter as ovelhas, o gado vacum, os equinos, as
mulas, além, claro de toda a preocupação com as plantações que ali existiam.
Existia também uma preocupação com a evangelização dos guaranis que estavam
nas estâncias, tanto é que existiam também um espaço de religiosidade, e outros espaços
necessários para manter a estância como fonte de sustentação da redução.
A estancia de San Francisco Javier pode-se dizer que como muitas outras não
serviu apenas para a doutrinação da igreja católica, da mercantilização, e produção de
bens e produtos, mas sim como um espaço de fronteira que teve um papel importante
para a proteção do território espanhol, mesmo não havendo um exército em si formado
dentro das reduções, além desta proteção de fronteira as estancias contribuíam para
movimentar a economia, dos tinta povos, não só com o gado mas com outros animais e
também com algumas plantações.
San Francisco Javier tinha uma grande facilidade para escoamento de suas
produções, pois o rio Uruguai se transformava em um grande facilitador para o
escoamento de seus produtos.
Desde sua criação a estância foi estruturada pelos jesuítas que se utilizavam de
vários métodos para poderem manter sua produção de alimentos e suas criações no
máximo possível de segurança e também a proteção de suas fronteiras com os
portugueses. Duas questões podem ser levadas em contas: a) a estância contribui
fortemente como elemento importante no desenvolvimento econômico da redução, da
província guarani e também com a coroa espanhola, b) a redução e estância como
elemento politico no povoamento do espaço espanhol e do resguardo de suas fronteiras.
Referências bibliográficas:
BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos guaranis. Caxias do sul, Universidade de Caxias do Sul;
Porto alegre, Escola Superior de Tecnologia São Lourenço de Brindes; Livraria Sulina
Editora, 1978.
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GAY, Conego João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguai desde o descobrimeto
do Rio da prata até nossos dias, ano de 1861. Rio de Janeiro, Publicado por deliberação do
instituto Histórico geographico Brasileiro 1863.
HAUBERT, Maxime. Índios e jesuitas no tempo das missões. São Paulo: Companhia das
letras: Circulo do Livro, 1990
LUGON, Clovis. A República “comunista” cristã dos guaranis: 1610-1768; Clovis Lugon;
tradução de Àlvaro Cabral, 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1976.
KERN, Arno Alvarez. Missões: uma utopia política. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982.
SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus antigos dominios. Porto
Alegre, Companhia União de Seguros Gerais, 1979.
PALACIOS, Silvio; ZOFFOLI, Ena. Gloria Y Tragedia de Las Misiones Guaranies: Historia de
las Reducciones Jesuíticas durante los siglos XVII y XVIII en el Río de la Plata. Bilbao:
Ediciones Mensajero, 1991.
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Logo, infiro que a narratologia pode ser operada com vistas a uma historiografia.
Mas o que uma historiografia baseada nessa metodologia é capaz de revelar? Minha
hipótese é de que analisando textos, narrativas, histórias contadas, seja possível
apreender a constituição de um conceito agenciado por um narrador a partir de sua cadeia
de sentidos. Ou, por outra forma, compreender que mundo o narrador constitui a partir
de sua experiência e como sua narrativa pode funcionar como repertório para a
constituição e compreensão de outros mundos – ou, de outras narrativas. No presente
artigo, minha intenção é testar, experimentar a partir de uma inquietação ainda muito
incipiente, que avanços a narratologia pode proporcionar no seu emprego enquanto
método historiográfico.
Para isso, parto de um conceito constituído e tento observar como ele é forjado por
outro narrador, a partir da materialidade empírica à luz de um questionamento objetivo
e, ainda, ensaio uma reflexão sobre os sentidos produzidos a partir dessa narrativa. Assim,
acolho o conceito de santidade trabalhado por Woodward (1992). Como objeto empírico,
uso as primeiras cartas escritas pelo padre jesuíta Francisco Xavier no início de sua
primeira incursão ao oriente (Xavier, São Francisco. Obras completas. São Paulo: Loyola,
2006).
Manuseando seus escritos, percebo traços da intenção de Xavier em solidificar e
ampliar as obras da Companhia de Jesus, o que é, em última medida, levar o Evangelho, a
mensagem do Cristo, ao mundo. É na leitura dos textos xaverianos que passo a questionar:
não estaria Francisco Xavier forjando seu conceito de santidade a fim de solidificar e
ampliar a fé cristã pelo mundo? Sendo assim: que santidade ele constitui a partir da
narrativa de sua experiência de evangelização no oriente?
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Santidade
De acordo com Woodward (1992), a santidade é o nível máximo da perfeição
cristã. E, assim, santo pode ser qualquer pessoa cristã que consiga atingir esse nível
máximo (p.16). Mas qual a função do santo? Segundo o autor, por representar o cristão
ideal, a vida do santo passa a ser uma vida modelar para todos aqueles que querem seguir
de forma mais fiel a mensagem de Jesus Cristo. Além disso, é o santo que intercede junto
a Deus, que, segundo a tradição católica, é o único capaz de operar milagres. E, também,
seguindo com a tradição, somente Deus é capaz de revelar quantos santos existiram,
existem e haverá de existir.
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santificação. Cria-se assim níveis de vida modelar cristã. São etapas, previstas pelo
próprio Direito Canônico, que o indivíduo vai alcançando até que possa ter sua narrativa
de vida considerada plenamente modelar (segundo regulamentação apostólica, quando o
processo se inicia, o indivíduo é servo de Deus, depois, cumpridas novas etapas, passa a
venerável, depois beato, para só então chegar a santo).
Caberá a um postulador da causa a tarefa de reorganizar essa narrativa de vida
para ser contada com vistas a canonização. Depois, é requerida a análise dessa história de
vida afim de aferir martírio e as virtudes do candidato. Ao cumprir essa tapa, o servo de
Deus passa a ser considerado mártir, e muitos não passam dessa fase. “Mártires são
pessoas que morrem em defesa da verdade da fé e da moral cristã” (p.46). Não pretendo
aqui esmiuçar os protocolos do processo de canonização, que é complexo e compreende
questões teológicas e análises cientificas para a comprovação de milagres. Por hora,
interessa evidenciar que existem padrões para uma narrativa ser considerada de
santidade. Há outras formas de vida cristão que são modelares, mas o grau máximo é
mesmo a santidade.
Do ponto de vista da narratologia, cabe ressaltar que são histórias contadas, e
também estruturadas, com comprovações teológicas e científicas, a fim de conferir a essa
narrativa um grau de narrativa de santidade. Observe como há a vida cristã e a forma que
essa história vai sendo narrativizada, primeiramente entre os próprios cristãos de seu
núcleo. Conforme essa narrativa vai sendo estruturada, a história de vida passa a atingir
graus de modelo de vida cristã. Seguindo na lógica da narratologia: há o acontecimento, a
vida do cristão; a narrativa dessa vida, reconhecimento das virtudes e martírio; a outorga
institucional da narrativa de vida modelar cristã, o processo de canonização.
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estudar no Colégio Santa Bárbara, onde fica até se preparar para a admissão na
universidade. É ainda na capital francesa que completa os estudos em literatura, filosofia
e humanidades e se torna professor de filosofia no Colégio de Beauvais. Paiva (1984)
ainda destaca que o Francisco universitário era falante, inteligente, tinha um belo porte e
era dado a práticas esportivas (p.10-12).
O período de vida universitária em Paris coincidi com o surgimento do
luteranismo. Além disso, política e culturalmente a Europa fervilhava em decorrência do
período de navegações e expansões territoriais.
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concluindo seus estudos” (Paiva, 1984. p 18). Todos praticam os Exercícios Espirituais
orientados por Inácio e, em 1535 conseguem mais três adesões – Cláudio Jaio, Pascal
Broet e João Codure. No ano seguinte, saem da França, à pé, para atingir a Terra Santa.
Porém, ainda é um período muito conturbado de guerras e revolução e, como no
período Medieval das Cruzadas, chegar à Terra Santa poderia lhes custar a própria vida.
Foi em 1537 que todos os demais do grupo, entre eles Inácio e Xavier, foram
ordenados. Já à serviço do sumo pontífice, em 1538, se lançaram ao desafio de
recristianizar Roma.
Assim, em março de 1540, Xavier vai de Roma para Lisboa e se coloca à serviço da
corte portuguesa. De lá, parte em sua missão para as Índias, começando sua grande
incursão pelo Oriente. Embarca em 1541, aos 35 anos. Antes do destino final, ainda param
em Moçambique, em janeiro de 1542, de onde escreve uma das primeiras cartas aos
companheiros em Roma. Chegam na Índia em maio de 1542, em Goa, na costa do Mar da
Arábia (Baptista, Francisco de Sales. Apresentação. In: Xavier, São Francisco. Obras
Completas. São Paulo: Loyola, 2006). Ele ainda vai percorrer a Índia, chegar ao Japão e
morre na iminência de entrar na China. Porém, no presente artigo, resigno-me a análise
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das primeiras cartas que escreve na viagem e a sua chegada em Goa. Vale ressaltar que
Xavier não foi o primeiro sacerdote a chegar na Índia.
As cartas
Desde a função da Companhia e as primeiras missões dos jesuítas, as cartas
tiveram papel fundamental na comunicação, como de praxe ocorria à época (Leite, 1938).
Entretanto, para a Companhia, as cartas tinham um uso que vai além de um meio de
comunicação. “Sob a influência do padre Ignácio a Companhia, desde os primeiros anos,
utilizou a escrita como forma predominante de comunicação, ação e registro.” (Londoño
2002). Londoño analisa que as cartas também não se prestavam apenas como uma forma
de controle sob quem estava em missão.
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Os escritos xaverianos
Como parte da Companhia de Jesus, Francisco Xavier não estava alheio a essas
afetações e, logo, tais discursos também agenciavam as narrativas que produzia em seus
escritos. “Francisco Xavier fez também das letras o seu principal meio de comunicação em
relação aos companheiros que ficaram na Europa e com os outros missionários que
estavam se espalhando pela Ásia” (Londoño, 2002). Sob condições adversas no oriente,
enquanto incursionava pelo novo continente, pedia até mesmo que diversas cópias de
suas cartas fossem feitas.
Partindo para tão longe, Francisco Xavier queria se manter a par do que
acontecia em Goa tanto no plano do temporal como no avanço da glória
de Deus. Queria saber "as novas" e em que condições andava a missão.
Queria saber, que não era só curiosidade ou fervor missionário, mas
também interesse em estar informado para poder participar e intervir
com recomendações e comentários. Francisco Xavier se fazia assim
presente desde a Ásia com suas cartas e não demorou para que muitos
desejassem lê-las e conhecê-las na Europa. (LONDOÑO, 2002).
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cartas que se escreve sobre ela. Assim, compreendo que, tal como os processos e normas
de contar a vida de um cristão modelar vão constituindo uma narrativa de santidade, a
narrativa produzida pelos jesuítas sobre a missão vai criando esse ideal modelar de
projeto de missionário.
Xavier, que hoje é considerado pela Igreja como santo, vai com suas cartas
produzindo também uma vida modelar enquanto cristão na forma individual, produzindo
assim elementos para a concepção de sua narrativa de vida à narrativa de santidade. E, no
aspecto coletivo, vai gerando o ideal de missão, a forma modelar de como o cristão deve
incursionar pelo mundo levando a palavra do Cristo através do anúncio do Evangelho feita
de maneira tão particular pelos jesuítas.
Como suporte para essa minha hipótese, tomo como objeto empírico seis cartas
escritas por Xavier entre a saída de Portugal e a chegada à Índia (Xavier, 2006). A primeira
delas é aos companheiros em Roma (p.95-97), escrita de Moçambique em janeiro de 1542.
Nela, revela detalhes e dificuldades a bordo do navio. A narrativa é cheia de elementos
que demonstram que, apesar das dificuldades, Deus se faz presente e o faz perseverar na
missão. Também detalha suas rotinas de assistência a doentes, pobres de Moçambique e
deixa claro como sempre exerce seu ofício sacerdotal.
A segunda carta que envia aos companheiros residentes em Roma é mais longa
(p.104-113) e a narrativa mais rica em detalhes. É setembro de 1542 e Xavier já escreve
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de Goa. Recupera o que já narrara na outra carta, mas aprofunda sua narração com
detalhes que antes sequer mencionara. Na perspectiva da narrativização, é possível se
compreender tempos narrativos. É como se houvesse um tempo mais presente, quando a
narrativa confere sentidos aos acontecimentos mais perto do instante em que eles
ocorrem, e outros mais distante, já num passado a ser revisitado. Tal distanciamento do
instante da eclosão do acontecimento permite uma elaboração com mais aprofundamento
e, logo uma narração com mais detalhes. Xavier traz relatos dos trabalhos pastorais no
navio, em Moçambique e na Índia. Ainda reproduz suas impressões ao chegar a Goa,
recupera percalços e dificuldades e reconstitui as primeiras incursões pelo continente.
Conclui, se considerando um “instrumento útil” na missão.
Outro escrito que me ative foi um produzido, muito provavelmente, logo da
chegada em Goa, maio de 1542. Não é uma carta, mas uma espécie de breviário do
catecismo, em que ensina a doutrina cristã (p.98-103). Esse material é escrito a partir de
outro catecismo publicado em Lisboa por João de Barros entre 1530 e 1540, com
adaptações textuais feitas ao contexto da Índia daquele tempo.
A primeira carta que destina a Inácio de Loyola é a que data de setembro de 1542
(p.114-120). Nela, além de revelar suas impressões sobre a Índia que o recebera, faz uma
espécie de prestação de contas ao seu superior e lhe pede apoio entre outras providências.
Trata, por exemplo, de como a evangelização vinha sendo feito antes e depois de sua
chegada, como eram as formas de vida cristão naquele lugar e discute a fundação do
colégio jesuíta e trata da necessidade de envio de novos missionário à Índia – chega a
destacar as características de como devem ser esses missionários.
Outras duas cartas são escritas a companheiros da missão em momentos em que
não estão junto de Xavier. A primeira é destinada a Francisco Mansilhas, que está em
Manapar, enquanto que Xavier está em Punicale (p.150-153), em fevereiro de 1544. Bem
operacional, a narrativa pede informações e novidades acerca da missão e trata de
providências operacionais. A outra, também à Mansilhas (p.154-155), é escrita em março
de 1544 e Xavier está em Manapar e seu destinatário em Punicale. Brevíssima, a carta,
bem operacional, pede informações e providências. Diferente da anterior, faz referências,
com mais vagar, a necessidade de agradecer a Deus pelos desafios e oportunidades da
missão.
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Considerações finais
A partir da perspectiva da narratologia, percebo que as cartas de Francisco Xavier
se dão a revelar muitos cenários. No presente artigo, fiz uma rápida incursão analítica nos
escritos do jesuíta. Assim, compreendo que a análise tem de a se adensar na medida em
que promover incursões com mais vagar.
No entanto, pude já perceber indícios que podem me levar a um caminho – ainda a
ser trilhado – que pode me ajudar a compreender a narrativa de santidade não só a partir
da vida modelar do grau máximo de cristão, mas também tendo em perspectiva o modelo
santo de missão cristã. Olhando para os escritos de Xavier, percebo que ele cruza a todo
instante narrativas que vão, no espectro individual, fornecendo elementos para a tessitura
de sua narrativa de santidade – sua vida de santo – e, no espectro coletivo, elementos para
a constituição de narrativa de missão santa – a missão cristã exemplar.
Seria apressado concluir que a narratologia pode se dar também enquanto método
historiográfico, mas até agora tenho bons indícios disso. Creio que teria maior
propriedade para afirmar a partir de mergulhos mais densos nos objetos empíricos. Por
hora, tendo apenas a afirmar que a narrativa que Francisco Xavier constitui da missão da
Companhia de Jesus no Oriente constrói uma perspectiva de mundo, um método de
evangelização e cria, para os padrões dos jesuítas, procedimentos modelares para o
anúncio da Boa Nova. Esse anúncio, ao que me parece, vai além da catequização e de
proferir o Evangelho. Por fim, fica o desafio de promover novas incursões sobre o método
da narratologia com vistas a sua aplicação historiográfica a partir do objetos empíricos e
cadeia de sentidos que sua narrativa agencia.
Referências bibliográficas:
LEAL, Bruno Souza; JÁCOME, Phellipy Pereira. Mundos possíveis entre a ficção e a não-
ficção: aproximação à realidade televisiva. Revista Famecos, v. 18, n. 3, p. 855-876,
setembro/dezembro 2011.
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No presente trabalho tem-se por objetivo analisar alguns aspectos acerca dos
reflexos da aplicação da política indigenista do Segundo Reinado (1840-1889), no norte
da Província de São Pedro. Dessa forma, analisar-se-á a política indigenista vigente a
partir de 1845, que visava abranger não apenas as populações indígenas, como também
regularizar a ocupação da terra, expandir domínios e subsidiar projetos de colonização. O
Governo Imperial, nesse contexto, engendrara uma política nacional de tratamento e
contenção de populações indígenas, instituindo o Decreto nº 426 de 24 de julho de 1845,
conhecido como o “Regulamento das Missões”, com premissas voltadas à assimilação, por
parte dos indígenas, dos dogmas da fé católica e inserção desses aos meios de produção
capitalista.
*Acadêmico do Curso de História da Universidade de Passo Fundo (UPF); bolsista PIBIC/CAPES em projeto
de pesquisa acerca das bases históricas dos conflitos agrários contemporâneos no norte do Rio Grande do
Sul e Oeste de Santa Catarina: indígenas, quilombolas e pequenos agricultores.
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cargo dos governos das províncias através do já existente Diretório Geral dos índios527.
Apesar dessa determinação, é possível perceber que o decreto se constituiu como marco
na política indigenista brasileira, já que fizera florescer certa homogeneidade quanto ao
tratamento legado aos indígenas no Brasil, no sentido de determinar parâmetros e
condições a nível nacional para a formação dos aldeamentos, bem como os costumes e
deveres que os nativos deveriam ser “instruídos” a adotarem.
Os aldeamentos provinciais estavam atrelados não apenas ao projeto colonizador,
como também à premissa do desenvolvimento de uma produção agrícola nacional.
Através da inserção da agricultura nos aldeamentos como prática central, imaginava-se
ser possível manter coesas essas localidades, tendo-se o trabalho agrícola como elemento
aglutinador dos grupos indígenas nos assentamentos. De toda a forma, seriam nesses
espaços que os indígenas receberiam instrução acerca das técnicas de plantio e colheita
produtivas, bem como seriam acostumados ao trabalho regular e inseridos às bases dos
costumes ocidentais (FRANCISCO, 2013).
A execução dos projetos de aldeamento configurava-se como intrínseca à
manutenção da colonização. Para que essa última auferisse resultados exitosos, os
aldeamentos deveriam suprir a premissa básica de sua criação: liberação das terras
devolutas, ocupadas, até então, pelas populações indígenas. Nesse período pós-Guerra
Civil Farroupilha, fazia-se imprescindível, na província, o retorno ao desenvolvimento e
ao crescimento econômico, os quais foram abalados pelo conflito. Desse modo, a abertura
de estradas e a expansão das frentes pioneiras pelas regiões “desabitadas” estiveram
também interligadas à necessidade de se criar mobilidade produtiva entre os núcleos
coloniais e a província como um todo, resgatando e reacendendo a economia,
incentivando o escoamento da produção.
A partir de meados do século XIX, na Província de São Pedro, novas áreas passaram
a ser requisitadas para a instalação das colônias, necessárias para a dissipação da
assoberbada lotação da Colônia de São Leopoldo e adjacências. Tem-se início, portanto,
um movimento gradual de deslocamento populacional em direção à região centro-norte
da província, possibilitado pela abertura de estradas que passaram a conduzir e distribuir
os contingentes de colonos à referida região.
527O Diretório Geral dos Índios foi um órgão criado em 1758 para o tratamento das questões envolvendo
as populações indígenas brasileiras, regulando-as no espaço colonial.
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tradição Kaingang de livre-trânsito por seus territórios e a passagem para uma suposta
sedentarização nas aldeias, o que acontece é que apesar dessa “fixação” nos aldeamentos,
a mobilidade Kaingang permanece contrastando com a aldeia devido à não-permanência
dessas populações de maneira efetiva, De fato, inicialmente, as ocupações constituíam-se
como sazonais, tendo, os indígenas, a possibilidade de retornarem aos matos e colherem
o que lá haviam plantado, compondo assim uma ambiência de transitoriedade entre esses
indivíduos e o espaço (FRANCISCO, 2013).
As lideranças cacicais, frente à adversidade que representava o aldeamento, que,
em tese, primaria pela total sujeição dos indígenas aos moldes da cultura ocidental e
civilizada, desempenhavam, à guisa das contradições, forte papel na manutenção dos
aldeamentos. Os caciques, apesar de abrirem mão da liberdade do grupo ao aceitarem as
prerrogativas do aldeamento, eram o elemento necessário para a manutenção de seus
subordinados na aldeia. Agindo como representantes de um grupo, cabia aos caciques
demandar por mudanças, utensílios e alimentos junto aos diretores dos aldeamentos, bem
como determinar o trabalho que seria realizado pelos demais indígenas (BRINGMANN,
2010). Nesse sentido, os diretores dos aldeamentos, para além das questões
administrativas, tinham de tratar e conservar essa sensível relação com os cacicados
indígenas sob pena de ocasionarem a retirada desses indígenas aldeados.
Ao longo do século XIX, a presença indígena no território brasileiro condensou-se
como problemática. Central em discussões e debates, a questão indígena encontrava-se
permeada por conflitos que se acirravam sobretudo em decorrência do avanço do
povoamento sobre as regiões oeste, norte e sul do Brasil e a tentativa contínua de se
estabelecer o Estado aos moldes do capitalismo europeu, com a instauração da
propriedade privada, de mercados interno e externo, que seriam alcançados pela alta
produtividade de todas as regiões do país, através da expansão da Sociedade Nacional por
todo o território. Nessa perspectiva, os grupos indígenas, à margem desse processo,
deveriam ceder lugar ao avanço da civilização, instalando-se em reduzidas áreas, nas
quais seriam integrados à sociedade.
Na primeira década de funcionamento da política de aldeamentos na região norte
da província, as localidades de Nonoai, Guarita e Campo do Meio se destacaram como
pontos centrais ideais para a atração dos indígenas Kaingang. Através da iniciativa de
fazendeiros dessas localidades, forças policiais de povoações das proximidades ou da
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Detalhe do “Mapa da Província de Santa Catarina do Império do Brasil”, por Woldemar Schultz, 1863. É
possível, nas áreas em destaque, visualizar as localidades que possuíam aldeamentos na região, inclusive a
localização de uma das aldeias do aldeamento de Nonoai. Fonte: Biblioteca Digital Luso-Brasileira:
https://goo.gl/rCVfuY. Acessado em 24/09/2017.
Entretanto, segundo Bringmann (2010), a situação dos aldeamentos logo por volta
de 1853, encontrava-se precária. Em decorrência de alguns problemas que se
desenvolveram sem solução desde o início dos projetos de aldeamento, o progresso real
da iniciativa se mostrara aquém das expectativas. Nos aldeamentos que haviam se
formado, a inconstância ou a ausência da presença de autoridades provinciais na direção
das aldeias talvez tenha sido entrave ao estabelecimento de uma relação entre os
indígenas e a administração, assinalada pela falta de repasse dos ordenados dos diretores,
bem como os das Companhias de Pedestres.
Outro fator que pode ser elencado para a precariedade dos aldeamentos reside no
fato da existência de conflitos internos entre caciques. A diversidade de parcialidades que,
em razão da iniciativa governamental de reunir o máximo de indígenas a todo o custo na
menor quantidade de espaço possível, instigava o desenvolvimento de disputas e
desavenças entre as lideranças cacicais, causando, senão conflitos, pelo menos a dispersão
de agrupamentos pela região.
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Uma política indigenista versus uma política de terras: a regulação dos espaços a
partir da Lei de Terras de 1850
Esse primeiro período, relativamente curto, mas que congregara uma série de
processos e ações ao mesmo tempo, seja por parte do governo, da ação missionária e das
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Quadro 1 - Censo das populações indígenas nos aldeamentos do norte da província – 1880
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Baseado nas informações presentes no Relatório Provincial de 15/04/1880. Fonte: Relatório do Presidente
da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Carlos Thompson Flores. Porto Alegre, Typ. A Reforma,
15/04/1880. p. 39.
Considerações finais
O norte do Rio Grande do Sul foi palco central da política indigenista imperial dos
aldeamentos direcionados às populações Kaingang que habitavam campos e matas ainda
“desabitados” pela sociedade nacional em expansão e que necessitava da não-
interferência do elemento indígena para conclusão de tal empreitada. A política
indigenista referida acabou por agir de maneira profunda sobre o modo de vida, cultura,
costumes e concepções de mundo dos grupos Kaingang que, durante a vigência de tal
política, estiveram sob o controle das autoridades governamentais em grandes
localidades de contingência de nativos, como nos aldeamentos de Nonoai, Guarita e
Campo do Meio, ambos criados no intuito de se evitar o conflito entre as populações
nativas e a sociedade nacional.
Na região norte da Província de São Pedro, várias foram as tentativas de formação
de aldeamentos a partir de 1845 até a extinção dessa política, em 1889, nas quais conflitos
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Introdução
Os estudos do Guarani no Vale do Rio dos Sinos foram iniciados na década de 1960,
por Eurico Th. Miller, sob o modelo de pesquisas do Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas - PRONAPA (MILLER, 1967); e pelo Instituto Anchietano de Pesquisas, em
sucessivos projetos. As pesquisas abrangeram toda a bacia do Sinos, localizando, em
diferentes momentos, de 60 a 70 antigas aldeias indígenas de diversas etnias, com seus
materiais correspondentes. Posteriormente, a área foi novamente prospectada por
Adriana Schmidt Dias, para sua tese de doutoramento, de 2003, e por Jefferson Zuch Dias,
para sua tese de doutoramento de 2015.
A partir do final de 2014, o Instituto Anchietano de Pesquisas retomou o estudo do
material desses sítios, que está acondicionado no MARSUL e no IAP, mas focando a
pesquisa no grupo ceramista Tupiguarani de toda a bacia do Sinos. Busca-se, com esse
projeto, uma melhor compreensão do estabelecimento desse povo na região, desde o
período inicial de ocupação até o início da dominação europeia.
A primeira abordagem do material tem sido descritiva, e foram analisados os
artefatos líticos e cerâmicos dos sítios RS-S-284, 285, 286, 287, 288, 289, 290, e
divulgados os resultados de dois (NUNES & SCHMITZ, 2017). Esses assentamentos estão
presentes no Alto Vale do Sinos, compreendendo a região do atual município de Caraá (à
época do estudo de Eurico Miller, a região ainda pertencia ao município de Santo Antônio
da Patrulha), e o estudo tem sido feito sob a perspectiva histórico-culturalista de Betty
Meggers e Clifford Evans (1970). Figura 1.
* Graduando do curso de Licenciatura Plena em História, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS); bolsista de iniciação científica PIBIC – CNPq no Instituto Anchietano de Pesquisas. E-mail:
jeffersonnunes.92@gmail.com
* PPGH-UNISINOS. Pesquisador sênior do CNPq. E-mail: anchietano@unisinos.br
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Figura 1 - Bacia hidrográfica do Vale do Rio dos Sinos, coma localização dos sítios estudados
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Dentre os relatos que narram a expansão jesuítica em direção ao sul, dois dos mais
significativos para a compreensão dos assentamentos Guarani são os dos padres Jerônimo
Rodrigues e Inácio de Sequeira528. O relato de Rodrigues pode ser encontrado nas Novas
Cartas Jesuíticas (De Nóbrega a Vieira), de Serafim Leite, de 1940, e o de Sequeira na
História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo VI, de 1945, também de Leite.
Ambos os escritos são ricos em informações, já que narram o estabelecimento de
missões entre os Carijós em dois momentos distintos. No de Jerônimo Rodrigues, o relato
se passa entre 1605 e 1607, no período inicial de contatos mais intensos dos brancos com
os índios, em que se tentou implementar uma Missão jesuítica entre os Carijós da região
da atual Imbituba, SC. Jesuíta típico, Rodrigues sabia muito bem a língua indígena, o que,
aliado ao seu zelo pela missão, facilitou seu trabalho (LEITE, 1949, p. 86-87).
Em seu relato já fica demonstrado o impacto causado pelo colonizador branco na
sociedade indígena, especialmente pela ação dos escravagistas lusos. Por haver uma
sociedade mais bem estruturada, porém, Rodrigues conseguiu perceber de forma mais
clara elementos do cotidiano dos índios, como o modo de construção das casas,
organização social nas aldeias, ritos e forma de consumo de alimentos.
A relação de Inácio de Sequeira, por outro lado, apresenta a ação missionária
realizada em 1635, quase 30 anos após o relato anterior, e percebe-se muito claramente,
no texto, a desestruturação social dos Carijós, e a queda demográfica substancial, fruto
dos ataques cada vez mais intensos dos escravagistas, e do avanço das doenças, que
dizimaram aldeias inteiras. A análise de Sequeira também segue rumos distintos da de
Rodrigues, e há um foco muito maior nas descrições sobre xamanismo e antropofagia.
Aqui não são encontradas exposições sobre construção das casas nem sobre número de
habitantes de cada aldeia, o que o diferencia do outro texto.
O relato de Sequeira, porém, apresenta alguns problemas, já que há mistura de
elementos de outras populações indígenas do Brasil. Sequeira foi um missionário
importante, conhecido como Pacificador dos Goitacazes, e grande sertanista, tendo
andado por diversos pontos do território brasileiro (LEITE, 1949: p. 121-122), e essas
experiências influenciaram seus escritos. Como Leite destaca (1945, p. 495), em diversos
O sobrenome de Sequeira também é encontrado como Cerqueira em publicações mais recentes, como
528
em LINO, 2007. Aqui, porém, preferiu-se seguir a grafia utilizada por Serafim Leite.
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momentos é difícil separar o que é efetivamente descrição dos Carijós, e o que pertence a
outros povos, e, por este motivo, esse relato deve ser lido com cuidado.
Com isto em mente, utilizamos o relato de Sequeira como complemento das
informações apresentadas por Jerônimo Rodrigues, evitando o uso de trechos que possam
gerar controvérsias. Assim empregada, a relação de Sequeira é rica em detalhes úteis para
se compreender o modo de vida Carijó em um período de mudança e desestruturação
social.
As casas dos índios, como não haja terra [para revestir a armação de
madeira para transformá-la em taipa], são todas de jeçara [juçara = uma
palmeira] a pique. [...] E assim dizíamos muitas vezes missa com a porta
fechada, e comíamos sem abrir a porta, vendo da mesa quantos passavam
e o mesmo nos viam de fora. E como os ventos cá são grandíssimos de dia
nem noite estávamos sem ele (LEITE, 1940, p. 237).
Nesse trecho, fica indicada a frágil construção das habitações, que não se
conservam por muito tempo. Esse pode ter sido o mesmo material utilizado pelos Guarani
do Alto Vale do Sinos para a edificação de suas residências, já que, nos sítios dessa região,
só foram registradas manchas de terra escura.
Num povo que circulava constantemente dentro de territórios amplos em busca de
recursos, como o Guarani, não haveria a necessidade de construir estruturas com
materiais resistentes, já que o tempo de permanência numa mesma área era
relativamente curto. E num contexto de contato cada vez mais intenso com os brancos, se
tornou impossível fazer casas para longos períodos.
- da constituição das aldeias:
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As aldeias em que essas casas estavam inseridas são mais bem descritas no relato
de Jerônimo Rodrigues, e, no excerto abaixo, conseguimos apreender a organização social
desses índios:
E nos fomos à quarta aldeia, que tinha duas casinhas, com alguns 9 ou 10
moradores [umas 40 a 50 pessoas]. E nesta fizemos nossa morada e
igreja, por ser maior, e haver nela alguns cristãos antigos, que uns Frades,
a quem Deus perdoe, haverá 50 anos pouco mais ou menos fizeram
Cristãos, deixando-os sem doutrina, em seus vícios e desventuras (LEITE,
1940, p. 217).
Com esses dois trechos, fica aparente que a densidade populacional dos Carijós era
baixa, e que os índios estavam espalhados em pequenas aldeias. Isso se encaixa com o
estudo dos assentamentos Guarani do Alto Vale do Rio dos Sinos, já que, nas sete aldeias
até agora analisadas, o número de manchas escuras nos sítios (que indicam a presença de
casas) é de uma a três, corroborando a descrição de Rodrigues.
Há, ainda, a referência à passagem de frades franciscanos entre os carijós, décadas
antes da missão de Rodrigues. Essa informação pode ser confirmada ao se estudar as
atividades do padre Leonardo Nunes, primeiro desbravador jesuíta do sul do Brasil. Nas
suas viagens pelo sertão, Nunes teve contato com Carijós cristianizados pelos freis
Bernardo de Armenta e Alonso Lebrón, que acompanhavam Alvar Núñez Cabeza de Vaca,
governador do Paraguai (LEITE, 1938, p. 323). Esse contato foi possível porque padres
espanhóis andaram pelo sertão sul brasileiro antes dos portugueses, estabelecendo
contatos com índios locais e tentando estabelecer missões.
No período em que Jerônimo Rodrigues andou entre os Carijós, jesuítas espanhóis
se estabeleceram às margens do Piquiri, visando fundar evangelização conjunta com os
padres brasileiros (LEITE, 1945, p. 441). Com isso, se percebe que o relacionamento com
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os índios sul brasileiros data de períodos anteriores aos primeiros desbravadores lusos,
e, portanto, a sua sociedade já havia iniciado o processo de transformação e
desestruturação social antes do relato de Rodrigues, como aponta Lino (2007, p. 128).
- dos cultivos:
Sobre a alimentação dos Carijós, ambos os cronistas apontaram os cultivos que
eram feitos pelos índios, que também serviram como base de alimentação dos padres nos
períodos de permanência entre eles. Rodrigues, especialmente, aponta todo o ciclo de
cultivo anual:
Tem o ano repartido em quatro partes, scilicet três meses comem milho
[fim da primavera e começo do verão], outros três favas e aboboras [alto
verão], outros três alguma mandioca [outono], outros três [inverno]
comem farinha de uma certa palmeirinha, que é assaz de fome e miséria
(LEITE, 1940, p. 230).
Ainda que depois desta dureza, se desfazem todos em iguarias, por que,
cozidos com a carne, ficam nabos e couves, com o peixe ficam salsa,
moídos e torrados são biscoito; e desfeitos em farinha ficam pão; comidos
só no talo são regalo de toda fruta; e, temperados com a fome, sabem a
tudo (LEITE, 1945, p. 497).
Com isso, se percebe o amadurecimento gradual dos cultivos ao longo de todo ano,
e como o extrativismo do palmito era importante para o complemento da alimentação. No
Alto Vale do Rio dos Sinos, a presença de sítios próximos às várzeas ricas em recursos
indica que os Guarani buscavam áreas férteis para se estabelecer, tanto para o plantio
quanto para o extrativismo. Este era indispensável para a alimentação, e auxiliava nos
momentos de escassez de cultivares. Com o estreitamento gradual dos banhados
conforme os Guarani se aproximavam das nascentes do Sinos, o abastecimento alimentar
deve ter ficado comprometido, o que explicaria a diminuição do tamanho dos sítios.
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- da forma de cultivar:
A forma como esse cultivo era feito é pouco elucidado nos relatos, mas um pequeno
trecho no texto de Rodrigues chama a atenção:
[...] E como as árvores são pequenas e pau mole, facilmente fazem sua
roça, a qual, acabante de a queimarem, logo prantam, sem fazerem
coibara nem fazem covas para a mandiiba; mas com o cabo de cunha
[grifo nosso] com que derribaram a roça, fazem um buraquinho no chão
e ali metem o pau de mandiiba; e muitas vezes sem lhe fazerem buraco
(LEITE, 1940, p. 235).
Aqui fica aparente, pela descrição da retirada gradual da mandioca, que os índios
a depositavam em um silo coberto com folhas, para ser usada aos poucos como alimento,
o que não demandaria outro tipo de recipiente para sua conservação. Além disso, esse
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Figura 2 - Desenho do perfil das bordas cerâmicas do Sítio RS-S-289, ilustrando a falta de pratos
e outras formas planas
[...] estas são as maiores delícias dos Carijós, por que não somente as
estimam por tais para seu mantimento, mas o que mais prezam são os
cascos de certa casta delas, de que fazem suas vasilhas, em que recolhem,
bem como em pipas e tonéis, seu mantimento, e, como em caixas bem
lavradas, todas suas alfaias. E estes vasos têm em tanta estima, que ao
tempo que se embarcam, para se despedirem de sua pátria, estes são os
grilhões, que mais os prendem e detêm, e antes deixarão um filho em
terra que uma peça destas (LEITE, 1945, p. 496).
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Aqui, mais uma vez, se demonstra o uso de outros materiais além da cerâmica para
o trabalho cotidiano, explicando a falta, muitas vezes, de elementos materiais em sítios
arqueológicos, ou a pouca presença de vasilhames. Além disso, há a referência à ligação
peculiar que os Carijós estabeleciam com seus pertences, que diz muito de sua relação
com o meio em que estavam inseridos.
- das pragas:
O cotidiano vivido pelos índios (e pelos próprios padres durante as missões) é
descrito em diversos momentos, como as constantes referências ao grande frio e ao vento,
mas chama atenção a descrição que Rodrigues faz das pragas que dificultavam o dia-a-
dia:
Com tal relato, se pode perceber a dificuldade da vida nas casas dos índios após
algum período de permanência. Essa presença tão grande de pragas nos permite refletir
melhor sobre a utilização das casas, já que elas deveriam ser sistematicamente
abandonadas em busca de maior salubridade e fuga de tais animais. Isso se confirma no
registro arqueológico, onde há muitos sítios que aparentam pequeno tempo de ocupação.
- das chefias:
Sobre as chefias, diversas informações são fornecidas em ambos os relatos. No de
Rodrigues há certa ambiguidade, pois, em alguns momentos, ele aponta para a presença
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de chefias para recebê-los nas aldeias, e em outro afirma que “principais, nenhum há entre
estes Carijós dos Patos529” (LEITE, 1940, p. 218-9).
Em outro trecho, narra o encontro com o índio Tubarão:
Este índio é o afamado Tubarão, o qual não é o principal, nem tem gente,
mas tem grande fama entre estes por ser feiticeiro e ter três ou quatro
irmãos, todos, feiticeiros, e todos eles são grandíssimos tiranos e
vendedores, e de quem os brancos fazem muito caso, porque estes lhes
enchem os navios de peças (LEITE, 1940, p. 222).
[...] toda esta província dos Carijós estava dividida em dois senhores
idólatras, que a seu querer, a governavam. O primeiro é o Anjo, de que já
falamos, que por outro nome se diz também Ara Abaeté, que quer dizer
“Dia do Juízo”. O outro era um índio parente, mui chegado do mesmo Anjo,
chamado Moranaguaçu, que quer dizer o “Grande Papagaio” (LEITE,
1945, p. 508-509).
Sequeira analisa esses líderes indígenas concentrando grande foco no seu caráter
xamânico, e fazendo pormenorizada descrição dos diferentes tipos de feiticeiros que
havia entre os Carijó. Esses agiam como líderes religiosos e políticos dos índios, e Sequeira
repetidamente os associa a amigos do Demônio e idólatras.
Analisando essas informações de forma mais ampla, poderíamos pensar na divisão
dos Guarani por chefias e não por territórios fixos, como sugeriu Francisco Noeli em sua
dissertação de 1993. Essa hipótese, porém, necessita de maiores estudos para ser
verificada.
- da queda demográfica:
529Patos, aqui, não se refere à atual Laguna dos Patos, no Rio Grande do Sul, mas ao nome original pelo qual
a atual Laguna, Santa Catarina, era conhecido (LEITE, 1945).
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Por fim, entre o relato de Rodrigues, que data de 1607, e o de Sequeira, de 1635, é
possível perceber uma queda demográfica substancial, e uma desestruturação profunda
na sociedade Carijó, que fica cristalizada no trecho abaixo:
Considerações finais
Os relatos de Jesuítas setecentistas, como os dos padres Jerônimo Rodrigues e
Inácio de Sequeira, nos permitem conhecer melhor a forma de vida dos Guarani ao tempo
do contato com o colonizador, e fornecem compreensão do cotidiano desses índios
também no Vale do Sinos, visto a vitalidade da cultura Guarani em todos os locais em que
habitam. A referência a formas de alimentação, de consumo da mandioca e palmito, forma
de plantio, construção das casas, presença de pragas, chefias e queda demográfica,
fornecem elementos para ir além da simples descrição da cultura material e do registro
arqueológico, inserindo esses índios em uma moldura histórico-cultural mais completa,
que demonstre o impacto que a chegada dos brancos causou em sua sociedade.
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A partir daqui, haverá inserção de novos elementos, como a analogia direta com
populações Guarani-Mbyá, que têm aldeias no nordeste do Rio Grande do Sul, incluindo o
Vale do Rio dos Sinos (GARLET, 1997; VIETTA, 1992), aprofundamento dos dados dos
Guarani históricos (FRANZEN, 1999; LINO, 2007; MILHEIRA, 2010), analogia ampliada
com os Guarani das reduções (NOELLI, 1993), e uma leitura mais ampla do sistema de
assentamento Guarani(ROGGE, 1996) e seu sistema social (SOARES, 1997).
Esses novos dados permitirão conhecer melhor a cultura e o modo de vida dos
povos Guarani do Vale do Sinos, e suas interações com outras populações com as quais
tiveram contato, tanto índios, quanto brancos.
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Introdução
O presente artigo se origina de pesquisa em desenvolvimento para um Trabalho
de Conclusão de Curso (TCC) do curso de Museologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, que tem por objetivo analisar as representações da cidade de Canoas a
partir da exposição histórica do museu do município, o Museu Hugo Simões Lagranha.
O Museu existe desde 1990, tendo dividido sua sede com o Arquivo Público e com
a Biblioteca Pública do Município até o ano de 2016, quando foi transferido para a Casa
dos Rosa, edificação restaurada para ser uma instituição cultural da cidade. Atualmente o
Museu conta com três salas expositivas, estando duas com uma exposição temporária
realizada para a Primavera dos Museus e uma sala dedicada aos acervos pertencentes ao
prefeito que dá nome ao Museu, Hugo Simões Lagranha.
Ao visitar o Museu, surgem inquietações acerca da exposição e sobre como a
história da cidade está sendo contada a partir dos objetos expostos, textos expográficos,
legendas e temáticas abordadas. Visa-se, ao longo do desenvolvimento dessa pesquisa,
responder as seguintes questões: Qual é a representação da cidade de Canoas na
exposição do museu? Como se deu a construção da narrativa expográfica acerca da
história da cidade? Que materialidades foram selecionadas para construir essa memória?
Há a produção de uma identidade local?
Foram utilizados quatro conceitos norteadores, que desde a concepção desta
pesquisa se mostraram bem presentes e recorrentes: o conceito de cidade (CARVALHO,
ECKERT, 2005; MENESES, 1984, 1985), para entender esse organismo complexo em que
o museu se faz presente e se propõe a representar; o conceito de representação
(PESAVENTO, 2003), a fim de pensar a questão da representação das cidades em museus
históricos; o conceito de imaginário (PESAVENTO, 2006), visando aprofundar o debate
sobre os imaginários que existem acerca da cidade e as formas como eles são
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Alegre a fim de estudar no Colégio Militar. Entre 1939 e 1941 cursou Ciências Contábeis
no Colégio Nossa Senhora do Rosário e também cursou Administração de Empresas
Públicas na Fundação Getúlio Vargas. Em 1941, Lagranha prestou concurso para fiscal de
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da Secretaria de Fazenda do
Estado do Rio Grande do Sul, passando a exercer essa função em várias cidades. Em 1944,
veio para Canoas, começando sua trajetória no município (ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE
CANOAS, 2009).
Lagranha iniciou sua carreira política em 1954, elegendo-se vice-prefeito de
Sezefredo Azambuja, na legenda do Partido Social Democrático (PSD) de Canoas. Eleito
no ano seguinte ocupou o cargo até 1959, quando concluiu o seu mandato. Entre 1960 e
1963, é requisitado pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul, primeiro assessorando
a Comissão de Desenvolvimento Econômico em 1960 e em 1963 como assessor de Ildo
Meneghetti. Disputa novamente as eleições de Canoas em 1963, desta vez para ocupar o
cargo de prefeito pelo PSD, sendo eleito e ocupando o cargo entre 1963 e 1968
(ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE CANOAS, 2009).
Com a extinção dos partidos políticos em virtude do Ato Institucional nº 2, de 27
de outubro de 1965, ingressou na Aliança Renovadora Nacional, partido de apoio ao
regime militar instaurado no país em abril de 1964. Em 1968 foi nomeado prefeito
municipal por ato do governador Walter Peracchi Barcellos, exercendo o mandato até
1971. Nas eleições de 1972 foi vereador de Canoas na legenda da Arena. Com a extinção
do bipartidarismo, em novembro de 1979, e a consequente reformulação partidária,
filiou-se ao Partido Democrático Social (PDS), sucessor da Arena. (CENTRO DE PESQUISA
E DOCUMENTAÇÃO HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (FGV), 2017)
Entre 1983 e 1984 retomou o cargo de prefeito de Canoas, por ato do governador
Jair Soares. Transferindo-se para o Partido Democrático Trabalhista (PDT), reelegeu-se
em novembro de 1988, exercendo o novo mandato até o ano de 1992. Em 1994, é eleito
pelo PTB à Câmara Federal e exerce o mandato até 1996, quando renuncia para concorrer
à Prefeitura de Canoas, à qual chega pela quinta vez eleito em outubro de 1996, com mais
de 85 mil votos (ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE CANOAS, 2009).
Além da atuação política, o ex-prefeito teve expressiva atuação junto a entidades
assistenciais e clubes, como na Associação Beneficente de Canoas, na presidência do
Hospital Nossa Senhora das Graças e do Canoas Tênis Clube, entre tantas outras entidades
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da sociedade canoense. Ganhou inúmeras vezes distinções, láureas e méritos por seus
trabalhos prestados.
O Museu Municipal teve sua origem a partir de ações do prefeito Hugo Lagranha,
como a criação do Arquivo Histórico Municipal pela Lei nº 2334 de 13 de Junho de 1985.
Em 1990 é instaurada a Seção de Arquivo Histórico e Museu do Município junto à
Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Em 2003 o Museu se desvincula do Arquivo,
apesar de continuar sediado no mesmo prédio da Secretaria da Cultura, juntamente à
Biblioteca Pública. Apenas em 2007, com a Lei nº 5182 o Museu Municipal de Canoas
passou a receber o nome de Hugo Simões Lagranha, tendo o mesmo como patrono da
instituição.
Em 2016, o Museu Hugo Simões Lagranha passou a ser sediado na recém-
restaurada Casa dos Rosa, considerada a mais antiga edificação da cidade e tombada pela
Prefeitura em 2009. Nessa nova sede, o Museu possui três salas expositivas no segundo
andar da edificação, dedicado à exposição histórica sobre a cidade. Uma dessas salas é a
que representa o prefeito e patrono do Museu.
O acervo do Museu referente ao ex-prefeito é significativo em quantidade,
constituído desde mobiliários até canetas de seu escritório. Todos os objetos que faziam
parte de seu escritório pessoal foram deixados em testamento para a instituição pelo
próprio Lagranha e doados pela sua esposa Derma Maria Paim. Deste vasto acervo, estão
em exposição os móveis do gabinete, objetos decorativos, livros diversos, quadros, fotos
pessoais e troféus recebidos por suas gestões, criando uma ambientação do seu local de
trabalho dentro do Museu.
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por trás de cada museu, de cada coleção e cada exposição há uma “[...] proposta de
consagrar uma ideia ou identidade através da reunião e disposição de objetos percebidos
como significativos (CARDOSO, 2003, p. 190). Bittencourt (2009, p.95), sobre essa
questão, coloca que “[...] os artefatos, de certa forma, nos fazem. Podemos facilmente
reconhecer uma pessoa através de seus objetos”.
Sendo assim, o que os objetos musealizados de Hugo Lagranha, reunidos na sala
do museu municipal, têm a dizer aos seus visitantes sobre o ex-prefeito? Agenda e
máquina de escrever em cima da mesa, livro aberto na estante onde se encontram
diversos livros, prêmios recebidos e objetos decorativos reconstroem o espaço de
trabalho do ex-prefeito como se ele tivesse acabado de sair do local. A representação
simbólica desses objetos remete a um político intelectual, que realizou grandes feitos em
suas gestões. O fato dele mesmo ter inventariado os seus bens a serem preservados o
coloca como um dos “construtores” dessa imagem e dessa memória acerca de sua figura
política.
Não é objetivo aqui analisar detalhadamente as ações de Lagranha enquanto
prefeito, mas refletir sobre a representação dele que é construída pela exposição. O
discurso expositivo nos insere numa reprodução do local de trabalho do ex-prefeito, como
uma cenografia feita com objetos musealizados. Não há legendas nos objetos, como se eles
por si só comunicassem suas memórias e significados, como se o que está sendo exposto
se justificasse apenas por ter pertencido ao ex-prefeito. O único texto expográfico dessa
sala reforça a figura de Hugo Lagranha como um político de grande destaque, “memorável
pelo esmero e dedicação” ao estar à frente da prefeitura de Canoas e proporcionar
melhorias nos diversos âmbitos das necessidades públicas.
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Segundo Marcos José Pinheiro (2004), ao eleger o que será lembrado, a partir de
critérios e normas pré-definidas, o homem também está elegendo o que será esquecido.
Por isso, ao utilizar dos conceitos de Walter Benjamin, Mariza Veloso (2003, p.116) afirma
que “[...] os museus trazem uma história “narrada” e outra “silenciada””. Essa dualidade
entre lembrar e esquecer está presente na exposição do Museu Hugo Simões Lagranha.
Enquanto os objetos e texto expõem ao público um político intelectual e portador de
prestígios pelos atos realizados enquanto prefeito de Canoas, enaltecendo suas gestões,
deixam de lado outras histórias possíveis de serem contadas e problematizadas, como por
exemplo: o período em que Lagranha presidiu Canoas durante a ditatura pela legenda da
Arena, ou a atuação dele para além de seu gabinete, podendo trazer a tona faces do
prefeito que não são tão reconhecidas e provocando a reflexão dos visitantes sobre sua
figura e atuação na cidade de Canoas.
Considerações finais
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Referências bibliográficas:
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Introdução
Com a hegemonia americana no período pós-Segunda Guerra Mundial, o país
exportou para além-fronteiras seus costumes, sua ideologia e cultura. Os novos padrões
estéticos e comportamentais que entraram em voga em países como o Brasil, na época em
meio a um processo acelerado de urbanização e modernização social, foram capazes de
subverter, em grande medida, os ideais vigentes até então, propagados pelas elites
dominantes e conservadoras que comandavam o país. Esses ideais contrastaram,
principalmente, com os difundidos em meio aos jovens brasileiros do período, que os
consideravam arcaicos e ultrapassados, projetados pelo “sistema” como forma de
manipulá-los. Segundo Andrade (2011, p. 67-8):
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de classe média, tão ciosas de seu projeto de ascensão social, parecia, no mínimo, um
desproposito, ou um absurdo. No entanto, aos poucos, começava a ficar mais claro que
aquele conjunto de manifestações culturais novas não se limitava a estas marcas
superficiais, significando também novas maneiras de pensar, modos diferentes de encarar
e de se relacionar com o mundo e com as pessoas, ou seja, outro universo de significados
e valores, com regras próprias. Segundo Hall (1970, p. 56-57):
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A clara oposição ideológica aos ideais impostos pelo regime militar, somados ao
descontentamento para com o rumo da canção brasileira, e a adesão a referências como a
linguagem geométrica, urbana e visual da Poesia Concreta; do Cinema Novo, com o filme
Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha; do Modernismo da década de 20,
especialmente os aspectos carnavalescos e antropófagos de Oswald de Andrade, com a
obra O Rei da Vela (1937); e do experimentalismo presente no rock, principalmente no
disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band dos Beatles fizeram com que Caetano e Gil
buscassem por novas experiências musicais, motivados pelo anseio de uma “sonoridade
universal”, dando origem, assim, à Tropicália.
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tinha efeito de uma heresia, de um insulto contra a cultura nacional.” (CALADO, 1997, p.
131). Nesse mesmo sentido, Basualdo (2007, p.12) aponta que:
Para Andrade (2011, p. 91), o impacto das duas canções foi deveras profundo no
solo conflituoso da música brasileira, e da própria cultura nacional, pois, até então, o
espaço da cultura que se afirmava como nacional era não somente assegurado, como
resguardado de forma intransigente, onde nada estrangeiro, alienígena, ou informe
poderia transpor as fronteiras estabelecidas. Ao ponto em que, a partir de então, novos
preceitos estéticos e comportamentais entraram em cena na música brasileira, fazendo
dos festivais um dos principais meios difusores dessa ideologia rebelde e contestatória
propagada, principalmente, pela Tropicália.
Veloso (1997, p. 121), afirma que a música popular funcionava como arena de
decisões importantes para a cultura brasileira e para a própria soberania nacional. Os
festivais eram o ponto de interseção entre o mundo estudantil e a ampla massa de
telespectadores, visto que, em todos os níveis tinha-se a ilusão, mais ou menos consciente,
de que ali se decidiam os problemas de afirmação nacional, de justiça social e de avanço
na modernização.
Lançado em meados de 1968, pela gravadora Philips Records, o disco-manifesto
tropicalista, denominado Tropicália, ou panis et circencis, parece elucidar melhor os ideais
defendidos pelo movimento. Lançado de forma coletiva, com os principais nomes da
Tropicália: Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Rogério Duprat, e os
poetas Torquato Neto e José Carlos Capinam, o álbum incorpora uma ampla variedade de
antigos e novos estilos, sejam nacionais ou internacionais, como rock, bossa-nova,
mambo, bolero, e hinos litúrgicos. Tropicália, ou panis et circencis, alusão à famosa
afirmação do poeta clássico Juvenal, que expressava seu desdém pelos cidadãos da Roma
antiga, aplacados pela manipulação calculada de “pão e circo”, também foi o primeiro
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álbum conceitual brasileiro a integrar letras de músicas, arranjos musicais, material visual
e um texto em forma de roteiro de cinema (DUNN, 2009).
Ainda segundo o autor, a capa de Tropicália, ou panis et circencis faz referência a
faixa “Panis et circencis”, de Caetano e Gil, que satiriza as convenções de uma família
burguesa tradicional. Na imagem, Gal e Torquato aparecem como um casal convencional,
bem-comportado; Gil está sentado no chão vestido com um roupão estampado com temas
tropicais segurando uma foto de formatura de Capinam; Duprat segura delicadamente um
penico como se fosse uma xícara de chá; Tom Zé se apresenta como um migrante
nordestino, levando uma bolsa de couro; Os Mutantes exibem ostensivamente suas
guitarras; e Caetano está sentado no meio, segurando um grande retrato de Nara Leão,
que usa um grande chapéu de praia. Vejamos:
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sonhos que são Deus / que importa o areal, a morte, a desventura, se com
Deus me guardei / é o que me sonhei, que eterno dura / é esse que
regressarei
Considerações finais
O exílio de seus principais líderes, em meados de 1969, pôs fim ao movimento
tropicalista. No entanto, as importantes inovações estéticas e comportamentais propostas
pelo movimento parecem evidentes. Segundo Favaretto (1996, p. 21), o tropicalismo
surgiu como uma moda, dando forma a certa sensibilidade moderna, debochada, crítica e
aparentemente não empenhada. De um lado, associava-se a moda ao psicodelismo,
mistura de comportamentos hippie e música pop, indiciada pela síntese de som e cor; de
outro, a uma revivescência de arcaísmos brasileiros, que se chamou de “cafonismo”. Para
Dunn (2009, p. 19):
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A Revolução Francesa foi um grande evento do século XVIII que abalou todos os
alicerces da Europa moderna. Como demonstraram os historiadores e teóricos Reinhart
Koselleck e José Carlos Reis, este evento também transformou profundamente o sentido
histórico e a maneira de escrever a História. Se antes os homens acreditavam que nada de
novo poderia surgir no horizonte do futuro, que do conhecimento histórico poderiam se
instruir, constituindo a História como Magistra Vitae, Koselleck constata que, com a ideia
de progresso desenvolvido pelos iluministas, a concepção humana de expectativa amplia-
se, confundindo a fé na razão com a crença emancipadora da mudança histórica.
José Carlos Reis, por sua vez, aponta duas novas significações chaves da concepção
de História na Europa moderna: a História como produção do futuro, vinculada com a ideia
de progresso, influenciada pelos iluministas, e a História como reconstrução do passado, pelos
historiadores e filósofos românticos. Fazendo uma análise da História entre a Filosofia e a
Ciência, o historiador demonstra como no decorrer do século XIX a História esteve
intimamente vinculada à Filosofia, se emancipando apenas no século XX com a Escola dos
Anais que, apoiada nas teorias das novas ciências sociais, se aproximou de um
conhecimento “cientificamente orientado”.
Neste sentido, o presente texto pretende apresentar a Filosofia da História de
Hegel, partindo da elaboração hegeliana de História como o desenvolvimento
progressista do Espírito no tempo. Em contraposição, buscarei desenvolver a concepção
tocquevilleana da obrigação do historiador de julgar as ações e os agentes históricos,
desvinculado assim, da ideia de história narrativa. Nesta medida, se para Hegel a História
é o progresso do Espírito, tudo que acontece na História da humanidade torna-se
justificável. Tocqueville, por sua vez, compreende que o historiador deve julgar os fatos e
as épocas para, assim, discernir a relevância destes na compreensão do processo
histórico. Nesta perspectiva, explicitarei as filosofias da História de Hegel e Tocqueville,
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mais admiráveis. Porém, ao delimitar que a Ideia é a “urdidura” e as paixões humanas são
“a trama da imensa tapeçaria da história do mundo”, as atividades humanas movidas por
interesses individuais, proporcionam a força que age e dá impulso a feitos de alcance
universal:
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[...] não tem consciência da Ideia como tal, são homens práticos e
políticos. Ao mesmo tempo são pensadores com a compreensão do que é
necessário e em que momento. Enxergam a própria verdade de sua época
e de seu tempo – eles vêem a próxima espécie que, por assim dizer, já está
formada no ventre do tempo. Eles conhecem esta nova proposição
universal, o próximo estágio necessário de seu mundo, para dela fazer seu
objetivo, colocando nela toda a sua energia. (HEGEL, 2012, p. 85).
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“Tocqueville sabia que sua verdadeira vocação era ‘julgar os fatos’ mais
que ‘contá-los’. Por isso, quisera afastar-se da tarefa tradicional da
‘história propriamente dita’, dedicada a ‘reconstituir bem a trama dos
fatos’, para encontrar outro modo discursivo que viabilizasse a reflexão e
o julgamento sobre estes eventos. O projeto da nova obra literária
concluía pela necessidade de fundir fatos e idéias, narração e juízo, a
‘história propriamente dita’ e a ‘filosofia da história’, pois ‘a primeira é a
tela e a segunda a cor e é preciso ter as duas para compor o quadro’.”
(JASMIN, 2013, p. 10).
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que os utiliza, astutamente, para os seus próprios fins, ou seja, para seu desenvolvimento
progressista. Já para Tocqueville, alguns fenômenos históricos, como a Revolução
Francesa, são inevitáveis, na medida em que esses processos históricos são orientados
por um princípio secular de igualização.
Se para Hegel era desnecessário o julgamento dos fatos e agentes históricos,
Tocqueville, justamente pelo teor presentista e pragmático de seu pensamento, exigia que
o historiador narrasse e desse sua opinião sobre os fatos e agentes do passado. Isto, não
só para exercer uma liberdade moral, mas como também, para discernir a relevância que
os fatos possuem no processo histórico, fugindo assim, do tipo historiador cronista. Por
isso, Tocqueville foi crítico à Filosofia da História de Hegel, pois entendia que por
simplesmente os fatos terem se reproduzidos, eles eram legítimos e mereciam a
obediência do filósofo alemão.
Visto que, para Tocqueville os agentes não são necessariamente os construtores da
História, e mesmo assim, eles devem ser julgados, precisamos compreender como o
teórico fundamenta a atuação da Providência na História:
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Considerações finais
A partir do que foi levantado até o momento, podemos fazer algumas
considerações sobre as filosofias da História de Hegel e Tocqueville e as implicações de
seus pensamentos. Lembrando que estas problemáticas serão mais desenvolvidas em
meu Trabalho de Conclusão de Curso, a qual busca fazer uma análise da relação da
filosofia com a história do século XIX, e como essa relação se transforma no século XX.
Como tentei demonstrar, tanto Hegel quanto Tocqueville, buscaram e encontraram
na História um meio para fundamentar seus pensamentos, e na Providência uma
orientação que levará os homens a um Estado mais perfeito. Porém, ao delimitar a ação
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Referências Bibliográficas
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da
história. Introdução de Robert S. Hartman. 4º Edição: São Paulo: Centauro, 2012.
REIS, José Carlos. A história entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Editora Ática, 1999.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Trad. Neil Ribeiro da Silva. 3ª ed., São
Paulo: Edusp, 1987.
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Larissa Teixeira*
Introdução
A cidade de Pelotas se localiza à sudoeste do Estado do Rio Grande do Sul, cerca de
250 KM da capital Porto Alegre. Desde a fundação da cidade, a mesma se destacou pela
produção do charque, e toda sua economia se manteve através da prática saladeiril, que
esteve em seu auge durante todo o século XIX. No início do século XX, devido a uma crise
econômica, esta indústria entra em processo de falência, se extinguindo por completo em
meados de 1930.
A partir da década de 1920, o município começa a se modernizar, e devido a isso,
uma nova economia se instala em Pelotas. Novas atividades econômicas chegam a cidade,
e ganham espaço para se desenvolver, ente elas temos a pecuária, agricultura, fábricas
têxteis, fábricas de velas, frigoríficos e o comércio, com esta última sendo a principal até
os dias de hoje.
Devido ao crescimento exacerbado da cidade de Pelotas neste período, muitas
pessoas começaram a se deslocar para o município. Viajantes que vinham para trabalhar,
vender os seus produtos e/ou serviços, pessoas da região que se instalaram na cidade, e
moradores da zona rural, que se abasteciam e usavam a cidade como um centro comercial
para sua atividade. Além disso, Pelotas está localizada entre os principais centros
comerciais e capitais do Brasil e de outros países, o que fazia com que muitos viajantes
passassem por aqui, para pernoitar e depois seguir viagem.
Desde a fundação de Pelotas, muitos charqueadores se instalaram na região, e com
isso se deu uma cultura própria deste povo. A cidade sempre foi conhecida por seu grande
potencial cultural e social. Sediava vários espetáculos teatrais, de música, concertos,
apresentações ao ar livre e também espetáculos de cinema. Contava com belos casarões,
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clubes, sociedades, teatros centenários e praças. Esta “alta sociedade” prezava pelo seu
tempo de lazer e pelas melhores atividades, atraindo assim, pessoas de todo lugar do país,
querendo conhecer a sociedade pelotense e à tão destacada “Princesa do Sul”.
Sabe-se que a partir dos anos de 1930 a cidade voltou ao seu auge econômico,
social e cultural, e se manteve em desenvolvimento pelas próximas décadas. A vinda de
muitas pessoas ao município contribuiu significantemente para a prática hoteleira,
gerando muitos empreendimentos, que inauguraram no início do século XX, e outros mais
antigos se desenvolvendo neste período. Os hotéis começaram à se destacar, e apareciam
constantemente notícias obre os mesmos nos principais jornais diários da cidade.
Assim, tem-se por objetivo principal deste trabalho, analisar como a hotelaria nas
décadas de 1930 e 1940 era evidenciada pelo Jornal Diário Popular, um dos principais da
cidade. Trazer os elementos que eram destacados, as notícias mais importantes que eram
mostradas e a importância do jornal como fonte de pesquisa, evidenciando como era a
estrutura do mesmo neste período.
A metodologia utilizada para a realização deste trabalho, foi uma pesquisa
bibliográfica, com fontes documentais, sendo a principal delas o jornal Diário Popular. A
coleta de informações se deu na Biblioteca Pública de Pelotas, que conta com um acervo
com todas as edições do jornal. Foram pesquisados os anos de 1931 à 1949
sistematicamente, para termos assim uma cronologia nas informações.
Este artigo é um recorte do projeto de pesquisa “A História da Hotelaria em Pelotas
na primeira metade do século XX”, financiado pelo edital MCTI/CNPq Nº 14/2014. O
projeto tem por objetivo buscar informações sobre a hotelaria na primeira metade do
século XX, resgatar os principais acontecimentos que ocorreram nos hotéis neste período,
para assim formar um histórico de todos estes estabelecimentos e da hotelaria em Pelotas,
pois ela é uma parte importante da história da cidade e traz elementos da sociabilidade
urbana.
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Percebe-se que os jornais vem sendo usados cada vez mais como fonte de pesquisa
histórica, porém sente-se a necessidade de estabelecer as posições político-ideológicas
dos órgãos de imprensa utilizados. Visto que cada um deles trazia os fatos ao seu ver,
seguindo os seus preceitos e o que era mais relevante para cada imprensa. A imprensa
era, segundo Zicman, substancialmente política, a chamada imprensa de opinião. “Esta
imprensa tinha características claramente políticas e apaixonadas, ultrapassando a
simples função de ‘espelho da realidade’ para tornar-se um instrumento ativo de opinião
pública” (MÜLLER, 2008, p. 3).
O Diário Popular foi fundado no final do século XIX, em 27 de agosto de 1890, por
Theodozio de Menezes. Müller (2008) cita que era o principal jornal do Partido
Republicano Rio-Grandense em Pelotas, subordinando-se às diretrizes partidárias e aos
seus chefes locais. No final da década de 1930, passou a ser um grupo consorciado sob a
denominação de Gráfica do Diário Popular, devido a legislação do Estado Novo, que
proibia jornais partidários. O jornal costumava retratar os principais acontecimentos da
alta sociedade, as principais notícias que ocorriam na cidade, priorizando os interesses da
população pelotense. O Diário Popular se mantem em funcionalmente até os dias de hoje.
O formato do jornal no início do século XX era diário, as edições se davam de
domingo à domingo, impressas em papel encadernado. Os exemplares se destacam pois
se diferenciam das edições distribuídas atualmente. Nas décadas de 1930 e 1940 o jornal
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No Cidade Hotel: A que vêr, experimentar para crêr! Este hotel tem a
disposição dos srs. Hospedes e passageiros, confortaveis quartos para
casal e solteiro, todos com luz directa. Cosinha de 1ª ordem
(especialmente a la minuta). Diaria: desde 9$000, 12$000 e 14$000.
Attende-se com máxima rapidez e seriedade. Quarto mensal, preço
especial. Proprietaria: M. Gavello. Rua General Victorino 703. Tel M.R.
2174 – Pelotas. (DIÁRIO POPULAR, 13.08.1931, p. 2).
Hotel Familiar de Vva. Eraclito Costa Est. Eng. Ivo Ribeiro (Vila Olimpo).
Situado defronte a Praça e Estação, no ponto mais central desta
localidade, participa aos srs. Viajantes, e a todos que pela sua distinçaõ,
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O Diário Popular foi um dos jornais que mais retratou a inauguração do Grande
Hotel, e após isso, não foi diferente, muitas reportagens sobre o local eram trazidas, entre
as principais, os eventos, sempre muito bem divulgados e destacando as principais
personalidades da sociedade pelotense, como também dando ênfase ao potencial do hotel.
Vejamos um exemplo a seguir:
Fora as reportagens sobre as reuniões sociais dos hotéis, a coluna “Vida Social”,
trazia, quase que diariamente, as listas de hóspedes que se hospedavam em determinados
hotéis, algo muito comum para a época. Na década de 1930 os hotéis que mais apareciam
as listas eram o Grande Hotel, Hotel Grindler e o Hotel América. Todos eles situados em
ponto central e estabelecimentos de “primeira ordem”, muito conhecidos pela população
e viajantes.
Já na década de 1940 as listas de hóspedes divulgadas pelo jornal eram do Hotel
Aliança, o primeiro estabelecimento e mais conceituado da cidade de Pelotas. Localizado
à rua 15 de Novembro, o hotel funcionou por mais de 100 anos em plena atividade, sempre
se destacando entre os demais. As listas apareciam da seguinte maneira:
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Nos séculos XIX e XX, era muito comum os estabelecimentos hoteleiros trocarem
constantemente de dono. Muitas vezes os hotéis eram vendidos e/ou arrendados por
determinados proprietários que ficavam apenas alguns anos, ou até meses, à frente destes
hotéis. Com isso, os locais passavam por muitas reformas, sendo que cada dono queria
proporcionar o melhor serviço. As vendas e/ou leilões, reformas e remodelações
apareciam nos jornais, como anúncios, ou reportagens maiores, dependendo do
estabelecimento. Abaixo temos dois exemplos de como eram descritos estes
acontecimentos.
Estas reportagens tornam-se muito importantes, pois com elas, pode-se saber
quem estava comandando determinado hotel, e quais os serviços que eram oferecidos
pelo mesmo. Também identifica-se o auge de cada estabelecimento e quem foi a pessoa
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por traz de todo sucesso. Vemos quando certo hotel fechou as suas portas, e algumas vezes
o motivo pelo qual isso ocorreu.
Nas décadas pesquisadas apareciam também algumas informações sobre notas
policiais, com furtos e crimes que eram cometidos nestes estabelecimentos. Reportagens
de inauguração de novo hotel, anúncios de pensões, reportagens de “aniversário” de
determinados estabelecimentos, algumas informações sobre donos e também algumas
notas sobre hóspedes ilustres que passavam pela cidade, identificando sempre, em qual
local se hospedavam.
Considerações finais
A partir das pesquisas, concluímos que os jornais são uma importante fonte de
informações, nos trazendo fatos históricos e que muitas vezes foram perdidos com o
tempo. O jornal local Diário Popular foi de grande importância para a cidade de Pelotas,
pois os exemplares retratavam a vida da sociedade pelotense e também as principais
notícias do Brasil e do mundo.
Evidenciamos que a mudança econômica pela qual Pelotas passou, contribui muito
para o desenvolvimento dos estabelecimento hoteleiros. O início do século XX foi um
marco para a cidade e muitos hotéis estiveram em seu auge. Com a chegada de muitos
viajantes e trabalhadores, o município se manteve em plena movimentação, trazendo
diversas personalidades que se hospedaram aqui.
O Diário Popular representa papel importante para os estudos referentes a história
da hotelaria em Pelotas neste período. Com os anúncios e seções principais do jornal,
podemos identificar características destes estabelecimentos perdidas com o tempo.
Percebe-se quem eram os hóspedes destes locais, seus proprietários, reformas e
remodelações, os serviços e infraestrutura pertinentes à hotelaria nos tempos passados.
Assim, afirmamos que os jornais são uma das principais fontes de pesquisa para se formar
a história da hotelaria no início do século XX.
Referências bibliográficas:
CAETANO, Rosendo da Rosa. O nazi-fascismo nas páginas do Diário Popular: Pelotas, 1923
– 1939. Dissertação (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de
Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, 2014.
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Introdução
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos530 de Cachoeira foi
mencionada pelo Conego Soledade, quando de sua passagem pela Vila Nova de São João
da Cachoeira,531 em 7 de outubro de 1824:
* Graduando em História - Unisinos, bolsista IC UNIBIC. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira.
530 Este trabalho se insere no projeto de pesquisa “Sob as Bênçãos do Rosário e São Benedito: Ações políticas,
identidades, sociabilidades e as artes da resistência (as irmandades de pretos de São Leopoldo e Cachoeira
- RS)” e foca especificamente a Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos de Cachoeira na segunda década
do XIX. Ao utilizarmos a expressão “Pretos”, referimo-nos a Irmandade sendo fiéis a forma com que aparece
nas fontes primárias que norteiam essa mostra (livros redigidos pelos irmãos), ou seja, pela forma com
que a associação afro-católica negra cachoeirense era intitulada e também intitulava-se.
531 Localizada as margens do rio Jacuí, no centro-oeste Rio-grandense, Cachoeira foi elevada a vila por alvará
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mãos do Pe. Agostinho José Mendes dos Reis, em 1790, algumas décadas antes que o
Conego Soledade (30 anos). Em visita a Igreja de N. Sra. da Conceição na então Freguesia
de Cachoeira532: “Observou a indecência da Igreja, imagens deterioradas, e falta de asseio
e cuidado no culto divino ordenando ao pároco de adquirir o Catecismo Romano ou dos
Párocos para instrução do povo.” (RUBERT, 1994, p. 108).
Como ocorreu, em um curto intervalo de décadas, as mudanças de “percepções”
sobre a Igreja de N. Sra. da Conceição e, por conseguinte das comunidades étnicas que as
faziam representar? Em qual momento se instituiu a associação afro-católica negra de
Cachoeira? Como ela funcionou e quem eram os seus membros, durante este período de
mudanças no território cachoeirense? (início do século XIX).
532Nas margens do Rio Jacuí existiu uma pequena cachoeira, próximo dela instalou-se uma povoação de
índios guarani elevada à condição de Freguesia em 1799 (RUBERT, 1994, p.108), “detinha em 1780, uma
população de 662 indivíduos, sendo 237 pretos (35,8%), 383 indígenas (57,8%) e apenas 42 brancos
(6,4%)” (MOREIRA, 2017, p.119)
533 Em 28 de Setembro de 1799, foi inaugurado um novo templo “Na atual praça Balthazar de Bem. A
realização dos primeiros ofícios religiosos ocorreu após uma procissão em que foram trasladas da antiga
capela na aldeia imagem dos santos .” (SCHUH, 1991, p.20). Elevada “a classe das Igreja Matrizes em 1815”
(SILVA, 1808- 1822, vol.5, 1820 p.150), a igreja de Nossa Senhora da Conceição de Cachoeira foi o espaço
de atuação preferencial da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Cachoeira, que já se
reunia ali no ano de 1812 e mais tarde inaugurou um consistório próprio nesta Igreja.
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534 Esses documentos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos pretos de Cachoeira
documentam experiências devocionais negras que hoje configuram um patrimônio imaterial. Nesse sentido,
esses antigos livros documentam o intangível, o impalpável, algo ausente, mas que ali esteve concreta e
sonoramente presente. (MOREIRA, 2017, p. 137)
535 “Segundo John Thornton, um conjunto de ideias religiosas semelhantes entre cristianismo e religiões
africanas tendeu a aprofundar o processo de formação daquilo que o autor conceituou como ‘catolicismo
africano‘. Entre estas ideias semelhantes estaria a crença num ‘outro mundo‘, e na perspectiva de que este
pudesse ser revelado.” (THORNTON, 1998 apud OLIVEIRA, 2006, p.66).
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Oracular Ifá (TINHORÃO, 2012, p.46). Porém, como Mariza Soares atestou: “A
espiritualidade da comunidade negra vai do social à interioridade”, não sendo de ignorar
as vantagens sociais e práticas de aderência ao culto. (SOARES, apud SANTOS FILHO,
2012. p. 44)
O contato e assimilação das religiosidades católicas pelas comunidades negras que
vivenciaram diretamente ou/e indiretamente a experiência da diáspora e da escravidão,
acarretou em mudanças nas representações iniciais das insígnias católicas, não sendo
ingênuo afirmarmos que o Rosário, representado pela visão mitíco-religiosa e pelo
dicionário formal do período estudado, tenha sido “ressignificado” de diversas formas,
pelas religiosidades populares, e, por conseguinte, pelos irmãos do Rosário de Cachoeira.
A irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos de Cachoeira, pertenceu a um
“movimento associativista negro” (VIANA, 2007, p.151), que constituiu espaços de
autonomia e territorialidades negras de devoções fluídas536. “Esses territórios são
compostos da própria Igreja da Conceição e do consistório dos irmãos do Rosário ali
existente e pelas ruas por onde circulavam as procissões”. (MOREIRA, 2017, p. 135),
porém, quais ferramentas (fontes, metodologia, etc.) permitem-nos chegar mais próximo
dessa associação e, por conseguinte, desses sujeitos?
Metodologia e fontes:
Partimos do códice: “Livro para entrada de irmãos na Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos da Freguesia da Cachoeira (1812/1846)”, no qual constam
qualificações, nomes dos irmãos ingressos, cargos ocupados na irmandade, registros dos
pagamentos de anuidade e em alguns casos, observações referentes à assistência social
e amparo espiritual.
Tendo em vista as dificuldades de acesso aos livros e a riqueza das informações
neles contidas537, optamos, para essa mostra, por um curto recorte de tempo (oito anos),
536 Entendemos que: “A territorialidade negra decorre dos percursos construídos e vivenciados pelos
africanos e seus descendentes [...] multiplicando, assim, uma diversidade de raízes culturais, de signos, de
memórias, de objetos artísticos, os valores éticos e estéticos, dos símbolos que denominamos em sua gênese
e dinâmica social e cultural de cultura negra ou afro-brasileira” (BITTENCOURT JÚNIOR, 2010, p. 12/13).
537 “Os livros de assento ou de entrada de irmãos se constituem em documentos raros e preciosos. Mantidos
sempre sob a guarda da própria irmandade, não se tem notícias de cópias enviadas as autoridades, como
ocorria com os compromissos – o que explica, em parte, a raridade deste tipo de fonte”. (REGINALDO, 2005,
p. 196)
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538 Paraisso, levamos em consideração na análises aplicadas, os signos sociais destes sujeitos, bem como, as
divisões de gênero e outras características dos devotos.
539 Parte desta pesquisa se deu pela transcrição integral do códice “Livro para entrada de irmãos na
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Freguesia da Cachoeira (1812/1846)”. Os documentos
da Irmandade estão custodiados pelo Museu Municipal de Cachoeira do Sul: (Rua 15 de novembro, 364 -
Telefone (51) 3724.6017).
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540
Para o autor, a “sociação é sobretudo interação”, num constante conflito (ou jogo) entre as aspirações
individuais (de um indivíduo que deseja “ser pleno em si mesmo” e “desenvolver a totalidade de suas
capacidades”) e exigências sociais (“medida que a personalidade não deve ultrapassar”) (SIMEL, apud MATHEUS,
2016, p.44)
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541 Felicidade Joaquina dos Santos Xavier nasceu em 1808 na Freguesia de N. Sra. da Conceição da Cachoeira
(RITZEL, sem ano), ingressou na irmandade em 1818 com 10 anos, o seu pai Joaquim dos Santos Xavier
Marmello (Escritor do códice “Livro para registro de irmãos” durante o período dessa mostra) pertenceu a
comunidade branca ou “socialmente branca”: “O Marmelo, bat. a 17.12.1770, filho do Capitão Antônio dos
Santos Xavier e de D. Rosa Maria da Silva.” Casou-se com Luzia Joaquina da conceição em 1795, na ilha de
Desterro, tiveram quatro filhos até 1810 (PIAZZA, 1982, p. 74), provavelmente o ano em que vieram para
Cachoeira e também em que Felicidade nasceu. Marmello foi escrivão da irmandade por longa dada, Miriam
Ritzel, historiadora cachoeirense, reconstituindo a História do Munícipio através das biografias de suas
ruas, no site do Museu de Cachoeira investiga Joaquim dos Santos Xavier Marmello, que também já apareceu
através do Arquivo Histórico de Cachoeira do Sul no projeto “Povoadores de Cachoeira e seus descendentes”
(AHCS, 2011) e em outras investigações promovidas por estas instituições. Encontram-se no “Livro de
registro de irmãos”(1812-1820) o pagamento de anuidades de Marmello por 22 anos(iniciou-se em 1812
pagou até 1834 faleceu em 1837), teve patente militar (alferes), ocupação política e foi um senhor de
escravizados (Roza ‘pagou 30 anuidades’ e Matheus ‘1 anuidade’, ingressaram na associação em 1812 e
1819, ambos sem registro de falecimento.)
542 “É importante salientar que, embora a ocupação dos cargos nas irmandades fosse por eleição, esta, por
sua vez, não assumia a feição de participação por sufrágio universal. Componentes da Mesa Administrativa
eram indicados por grupos de pressão que se constituíam no interior das associações.” (OLIVEIRA, 2006:
p.87)
543 Exemplo do agenciamento desempenhado pela associação foi registrado no “Livro para entrada de
Irmãos” (1812/1820): Francisco, irmão do Rosário ingresso em 1812, foi amparado em sua “moléstia”
(doença) por uma mesada da irmandade, em 1823, falecendo em 1856.
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544 “Cachoeira do Sul deve ser compreendida como uma região de fronteira que tinha como aliada a sua
posição geográfica às margens do rio Jacuí, com ligação direta à Lagoa dos Patos e, consequentemente, com
o Porto de Rio Grande”. (FAGUNDES, 2009, p.23)
545 Ao usarmos a expressão “presença negra” não estamos querendo afirmar uma fictícia homogeneidade
dada pela posição social e etnicidade. Sabemos, conforme salienta a historiadora Hebe Mattos, que as
comunidades humanas, justamente em função de sua humanidade, são heterogêneas internamente em
decorrência de uma série de questões e projetos pessoais e familiares. (MATTOS, 1995)
546 “Os brancos procuraram participar das irmandades de cor como estratégia de controle, não obstante
muitos talvez também o tenham feito por sincera devoção. Ou, mais concretamente, para salvar a alma. Os
pretos os aceitaram por várias razões: para cuidar dos livros, por não terem instrução para escrever e
contar, para receberem doações generosas, vez que não tinham como sustentar sozinhos a irmandade, ou
ainda por imposição pura e simples.” (REIS, 1996, p.12)
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547 Foi durante esse período que a Capela é elevada a Matriz (1815) e a Freguesia é elevada a Vila (1819),
além de que: “A importância da Vila de Cachoeira nos meados dos oitocentos está ligada a sua localização
geográfica estratégica, com a presença da bacia hidrográfica do Jacuí que possibilitava o deslocamento de
mercadorias e de pessoas com facilidade”. (FAGUNDES, 2009, p.15)
548 Segundo Julita Scarano: “Existem dificuldades de estabelecer datas precisas da fundação das Irmandades
do Rosário no Brasil, pois as datas dos compromissos não correspondem às da criação dessas associações,
mas sim do momento em que se tornaram oficiais diante da Coroa e da Igreja.” (SCARANO, 1975, p. 48)
549 Foram registrados no códice os pagamentos “de entrada” (640 réis) pelos irmãos de forma individual,
fora uma exceção: Miguel Arcanjo e sua mulher Catharina de Jesus, iniciados em 1812 pagaram apenas um
valor de entrada) Os irmãos também registravam os pagamentos das anuidades feitos por eles, além das
“joias” pagas ao empossarem cargos na mesa diretiva.
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patente militar de alferes), compactuando com Renata Oliveira que evidenciou, “uma
espécie de relação político-militar entre a propriedade e o proprietário” (ANJOS, 2004,
apud OLIVEIRA, 2013, p. 61), nas terras de Cachoeira no início do século XIX. Ainda foram
localizadas entre as irmãs 7 donas, representando 18,9% do total de mulheres ingressas.
Estas donas, muitas vezes mulheres da elite, “pessoas com status e prestígio social”
(MATHEUS, 2016, p.224), poderiam ter representado também mulheres negras que se
projetaram no tecido social desta sociedade escravagista.
Passemos agora, concluindo nosso trabalho, a um exercício de recomposição da
trajetória de uma dessas irmãs do Rosário dos Pretos de Cachoeira.
550 “Era natural de Desterro na ilha de Santa Catarina, estudou e foi ordenado no Rio de janeiro a 2-6-1792
por D. Jose Feliciano Mascarenhas Castelo Branco. Foi coadjutor da Conceição da Lagoa (1792-1793), pároco
de Enseada do Brito (1794-1797), passando logo a Pároco colado. O pároco colado foi o grande
impulsionador da construção e adiantamento da bela igreja matriz de Cachoeira.” (RUBERT, 1998, p.104)
que “Em 28 de Setembro de 1799, foi inaugurada com novo templo” (SCHUH, 1991, p.20) Segundo Silva: (o
padre Xavier dos Santos) “Ocupou a primeira propriedade (1798)” da então freguesia de Cachoeira, sendo
que “em seus limites, se contam, além de 250 fogos e mais de 2000 almas, sujeitas a sacramento.” (SILVA,
1808- 1822, vol.5, 1820, p.148) Essa autoridade católica foi um dos membros brancos da Irmandade,
ingresso em 1819 e assumindo o cargo de protetor da Irmandade em 1828. (MOREIRA, 2017, p.127)
551 No Arquivo Histórico da Cúria de Cachoeira do Sul, existem três livros de registros de batismos de
escravos (1799 a 1859). Na transcrição que fizemos, totalizamos 2.480 indivíduos escravizados recebendo
os santos óleos e sendo admitidos no seio da Igreja Católica. (MOREIRA, 2017, p.121)
552 “Mariza Soares preferiu compreender os nomes classificatórios do tráfico enquanto grupos de
procedência, admitindo que estes poderiam recriar, no ambiente da escravidão, relações múltiplas de
solidariedade, tendo nas irmandades um dos espaços privilegiados de manifestação.” (SOARES, apud
OLIVEIRA, 2006, p. 79)
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liberdade,553 mediante o pagamento de 45$ mil réis (uma pequena fortuna para época),
entregues ao senhor Francisco de Amorim, que havia abonado a metade da quantia
pertencente a sua finada esposa Isabel Correia de Prado:
Joana; Rebolo; 40 (anos); Sr. Francisco Antônio de Amorim; dt. conc. 26-
01-13; dt. reg. 29-03-13; da Freguesia de Cachoeira (Livro 2,p. 54v).
Desc.: A carta foi concedida “pelos bons serviços que dela tenho
recebido, e por ela padecer moléstia e recebi ao fazer desta 45$ em
moeda corrente da mão da dita escrava que é metade do que foi avaliada
por falecimento de minha mulher Isabel Correia do Prado e a outra
metade a dita falecida lhe perdoou. (RIO GRANDE DO SUL, 2006, p.792)
553 Segundo Mary Karasch (2000, apud MOREIRA, 2017, p.122), “A carta de alforria era a prova da liberdade
de um escravo, introduzindo-o na vida precária de uma pessoa liberta numa sociedade escravista [...] a carta
transferia o título de propriedade (o cativo) de senhor para escravo. Em certo sentido, os escravos
literalmente compravam-se ou eram doados para si mesmos. Uma vez que havia uma transferência de
propriedade, o ato tinha de ser documentado publicamente por um tabelião”.
554 “Principalmente nas irmandades negras, o bem festejar estava ligado à dança.” (OLIVEIRA, 2006, p.72)
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em 4 de Abril de 1824.
Considerações
Referências bibliográficas:
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SÔNEGO, Aline. “Sob a condição que continue em nossa companhia”: as décadas finais da
escravidão e a transição para o trabalho livre em um município rio-grandense (Cachoeira,
1871/1889). Passo Fundo, PPGH/UPF, 2011. [Dissertação de mestrado].
SCHUH, Ângela Shumacher; CARLOS, Ione Maria Sanmartin. Cachoeira do Sulem busca de
sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991.
TINHORÃO, José Ramos. Festa de Negro em devoção de branco: do carnaval na procissão
ao teatro do círio. São Paulo: Unesp, 2012.
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América
Portuguesa. Campinas, SP: UNICAMP, 2007.
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Introdução
O presente artigo apresenta os primeiros resultados de minha atuação como
bolsista de Iniciação Científica junto ao projeto intitulado As artes de curar em dois
manuscritos inéditos do século XVIII, coordenado pela Profª Drª Eliane C. D. Fleck, junto ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. O
subprojeto que venho desenvolvendo desde junho de 2017 detém-se no Tratado de
Medicina, Cirurgia e Botica, de 1725, que foi recentemente localizado no Convento da
Ordem Franciscana de Catamarca, na Argentina.
A transcrição e análise do Tratado tem como finalidade auxiliar no entendimento
da ciência praticada na América Espanhola colonial, tendo como ênfase as práticas
medicinais utilizadas pelos padres ou irmãos que atuavam como profissionais das artes
de curar nas reduções jesuíticas. Apesar de não haver consenso em relação à autoria do
manuscrito, compartilhamos da hipótese proposta pelo historiador argentino Guilhermo
Furlong no século XX, que o atribui ao irmão jesuíta Pedro de Montenegro (1663-1728).
Neste artigo, nos ateremos à análise do sexto capítulo da obra, intitulado De las
Fiebres, y De Su Diferencia, com o objetivo de identificar e analisar as dietéticas indicadas
no tratamento de enfermos nas reduções em que o irmão jesuíta Montenegro atuava.
Assim como os demais capítulos do Libro555, este consiste de descrições, receituários e
recomendações para o tratamento e identificação de diferentes espécies de enfermidades
e seus sintomas. Considerando o número expressivo de alimentos na composição das
receitas, recorremos a obras e artigos que enfocam a História da Alimentação para
subsidiar a análise. Consagrada nos demais campos das humanidades – tais como
Antropologia e Sociologia –, a temática da alimentação ainda vem se consolidando nos
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trabalhos mais recentes de História, o que fica evidenciado nos ainda escassos estudos
sobre dietética medicinal na América portuguesa e espanhola.
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inferir que estes deslocamentos eram ainda mais intensos. Isso, aliás, fica explícito no
prólogo do próprio Libro, no qual o autor expõe os motivos de sua elaboração: “reunir en
un cuerpo, lo que no he podido hallar en libro alguno, cuanto es preciso caminar
continuamente y por diversas partes; no podiendo llevar muchos libros que me hallaba falto”
(MONTENEGRO apud ACERBI CREMADES, 1999, p. 19).
O Libro é composto por mais de seiscentas páginas e é dividido em dez capítulos,
sendo eles: Dispensatório Médicinal; Anathomia del cuerpo humano; Tratado brebe del
modo de sangrar; Enfemedades de la cabeza; Enfemedades del pecho; Enfermedades de la
cavidad abdominal; Enfermedad de las mugeres; De las fiebres, y de su diferencia; Tratado
sobre el pulso, orina y crisis e Tratamentos chirúrgicos.
O manuscrito apresenta, também, tabelas que apresentam os planetas e os signos
celestes e que indicam os melhores dias para fazer purgas e sangrias, bem como os
procedimentos mais “harmoniosos” com cada clima, época do ano e fase da lua. Apesar
de, como já mencionado, concordarmos com o proposto por Furlong quanto à autoria, não
podemos deixar de mencionar que o manuscrito traz fortes indícios de mais de um autor,
visto que apresenta diferentes letras, diferentes estilos narrativos e uma descontinuidade
na sua paginação.
Estas características do manuscrito constituem considerável obstáculo para a
análise do Libro, pois existem passagens nas quais estas diferenças se impõem de forma
tão acentuada que a informação se torna confusa ou contraditória em relação a outros
trechos. No momento, estamos levantando a hipótese de que as partes intituladas
Tratados sejam transcrições de tratados já publicados, e que as partes intituladas
Enfermidades sejam, de fato, autorais, mas redigidas por diferentes sujeitos, dentre os
quais poderiam se encontrar índios copistas.
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556 A única subespécie de febre Etica ressaltada pelo autor corresponde ao chamado Rosio, que diz respeito
à febre Ética que consome a umidade do coração e das artérias.
557 Cabe ressaltar que entre estas subespécies, tanto das Putridas quanto das Efimeras, existem outras
variações de febres que mereceriam analises mais atenciosas futuramente. Estas variações, segundo o autor,
podem ser ocasionadas pela existência de subespécies (caso mais frequente nas Putridas) ou por diferentes
terminações.
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indicados para as febres Efimeras têm a mesma base alimentar das febres Putridas,
adicionando-se, apenas, a recomendação da ingestão de limon e naranjas.
Como pode-se observar, alguns alimentos constituem uma base comum à
alimentação dos enfermos febris. No entanto, foi interessante verificar que alguns destes
alimentos são recomendados tanto para a alimentação, quanto para práticas terapêuticas.
Destes últimos, é interessante citar o já mencionado leite. Sua ingestão é fortemente
recomendada para os enfermos que sofrem com as Eticas, e é tido, inclusive, como seu
“alimento, y remedio universal” (MONTENEGRO, 1725, p. 349). Os alimentos aparecem
também como um terapêutico eficiente contra alguns efeitos das febres Efimeras, sendo
utilizados para fazer compressas na cabeça dos enfermos. Este também é o caso das
seuollas558, que podiam ser tanto ingeridas como aplicadas na pele dos Efimeros que
apresentassem erupções na pele gerados pela subespécie mais cruel de Efimera, as
Malignas.
Até o século XIX, as práticas médicas baseavam-se sobretudo nos pressupostos
da teoria hipocrático-galênica, conforme observado por Carneiro:
A concepção vigente por mais de dois mil anos na cultura ocidental foi (e
de certa forma, no âmbito da cultura popular ainda é) a da teoria dos
humores e da correspondência universal do micro e do macrocosmos. Em
tal concepção, o corpo humano, os vegetais, as estrelas, assim como tudo
no universo, possui uma correspondência íntima e cifrada, que caberia
aos homens descobrir. Os estados de humor, as estações do ano, as
temperaturas, as condições de secura ou umidade, os órgãos do corpo, as
secreções, os temperamentos humanos são interligados numa estrutura
quaternária. Assim, segundo tais idéias hipocráticas e galênicas, cada
alimento corresponderia a certo grau de calor e umidade que o tornaria
adequado a certas pessoas, idades, doenças etc. (CARNEIRO, 2005, p. 73).
558 Cebolas.
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em seus sintomas, mas demoram mais para passar. O autor analisa ainda as febres de
flema e as causadas pelo umor melancolico.
Para além dos casos citados de uso dos alimentos em dietas e terapêuticas, alguns
tratamentos chamam a atenção não tanto por seu viés científico, mas por seu caráter
peculiar. Alguns tratamentos extremos para as febres incluiam a ingestão de esterco,
urina e animais vivos, como sapos. O próprio caso do leite, embora não constituísse um
alimento fora do comum, tem usos que chamam atenção pelo caráter inusitado de seu
emprego. Vemos isso em sua utilização para a cura das febres Eticas:
Y el mejor tienpo de usarla será por las mañanas en auinas, hagan traer una
baca mansa, gorda, negra, y nó vieja, ni mui joven junto ála auitacion del
Enfermo, y ordeñen la leche en un baso que este metido dentro deotro baso
lleno de agua bien caliente, para que assi con el calor que sale la veua el
Enfermo. (MONTENEGRO, 1725, p. 349)
Considerações Finais
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integralmente no plano científico, sendo que alimentos e plantas são indicados em função
de suas virtudes medicinais.
Diante das situações relatadas e das indicações de tratamento observadas no Libro,
é possível aventar a hipótese de que a medicina jesuítica empregada na América
Espanhola do século XVIII não se limitava ao emprego de procedimentos adotados na
Europa, visto que muitas das plantas que integravam as receitas eram americanas. Nos
parece correto supor que estas mesmas plantas já eram utilizadas pelos nativos tanto
como alimento, quanto como recurso medicinal no tratamento de certas enfermidades.
Assim, entendemos que o conhecimento científico divulgado no Libro se constitui
de sistematização de observações e experiências oportunizadas pelo contato intercultural
e científico entre o Novo e o Velho Mundo. Como pudemos observar ao transcrever e
analisar o capítulo 6, a dietética medicinal contempla tanto procedimentos terapêuticos
europeus, quanto saberes e práticas tradicionais indígenas. Isso é um indício não só da
apropriação e difusão da ciência médica do século XVIII na América, mas também da
apropriação e difusão de saberes dos nativos americanos decorrentes do convívio
intercultural.
Referências Bibliográficas
CHARTIER, Roger; FAULHABER, Priscila; LOPES, José Sérgio Leite (Orgs.). Autoria e
história cultural da ciência. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.
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KALIL, L. G. A.; SILVA, R. D. . O Pão das Índias: o milho nos relatos de Diego Durán e José
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POLETTO, Roberto. Uma trajetória por escrito: Pedro Montenegro SJ. e sua Materia Medica
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Rogério Carvalho*
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por José da Silva Paes, a fim de destacar as condições de vida dos militares e dos primeiros
habitantes da, então, capitania do Rio Grande do Sul, na primeira metade do Setecentos.
Pela ordem com que são inventariados, cinco grandes temas estruturam
o quadro assimétrico das matérias representadas nesta livraria: Religião
559Silva Paes possuía diversas divergências com o então governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire. O
Conselho Ultramarino, com o objetivo de não perder tão inteligentes perfis, nomeia Silva Paes governador
de Santa Catarina (1739), pois ele já demonstrara sua capacidade ao apontar para a importância estratégica
da ilha e a necessidade de se criarem fortes para defesa, dando por encerrado o assunto. No posto, Silva
Paes estrutura a recente capitania tanto em termos de defesa, quanto em termos políticos. (PIAZZA, 1988).
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Fig. 1 – Rota de apoio a Colônia de Sacramento a partir de Laguna. Adaptado de KHUN, Fábio; COMISSOLI, Adriano. Centro-sul da
América portuguesa - século XVIII . – Disponível em: http://www.scielo.br
O Contexto Fronteiriço
Nesse início de formação de uma base de apoio militar, houve, sem dúvida, a
necessidade de uma adaptação dos soldados às condições da região, tanto em termos de
relevo, quanto em relação ao clima, que acabavam por demandar também novas formas
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tanto para o tratamento de soldados, quanto dos habitantes de regiões tão inóspitas e com
uma diversidade ambiental até então não vista.
Nesta comunicação, me detenho, especificamente, no livro Cirurgia Anatômica e
Completa por Perguntas e Respostas, que traz 16 capítulos “introdutórios”, que podem,
na minha compreensão, ser definidos como conceituais porque trazem de forma didática
os conceitos básicos e avançados da anatomia humana. A musculatura e a estrutura óssea
do corpo humano, revelando o pensamento da medicina científica do Setecentos, são
descritas de forma detalhada e explicadas uma a uma. Além disso, inclui mais 7 tratados:
Das doenças Chirurgicas; Das feridas, & chagas, & costuras; Das doenças dos ossos; Das
operaçoens da Cirurgia; Das operaçoens das fracturas; Das operaçoens que se fazem as
dislocaçoens e Dos remédios necessários a hum cirurgião.
Construído sob a forma de perguntas e respostas, o livro permite ainda que se
tenha um entendimento dos procedimentos cirúrgicos adotados no Século XVIII.
Figura 2 - “Quantas são as partes do corpo humano? Podem-se contar quinze, que são o ossoo, a
cartilagem, o ligamento, o tendão, a membrana, a fibra, o nervo, a vea, a arteria, a carne, a gordura, a
pelle, a sobrepelle, os cabellos, & as unhas.”
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Figura 2 - “Cartilagem que é? He huma parte que obedece, macia, que he quasi da natureza do
osso, & que se acha sempre atada a seus extremos para os adoçar, & facilitar os seus
movimentos.”
Figura 3 - “Da divisão geral do corpo humano. Como se divide o corpo humano antes que delle se
faça a dissecação, & a demonstração anatomica?”
Cabe lembrar que no século XVIII, o corpo passou a ganhar maior destaque através
do estudo da anatomia humana, em especial, a partir da dissecação de cadáveres, que
possibilitou uma noção mais exata da constituição do corpo humano. Em relação a isto, o
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causavam luxações e fraturas. O livro traz tratados específicos para cada caso, como
podemos visualizar na figura 5.
Considerações finais
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Referências bibliográficas:
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Hospital: instituição e história social. São Paulo: Editora
Letras & Letras, 1991
ARAUJO, Ana Cristina. Livros de uma vida: critérios e modalidades de constituição de uma
livraria particular no século XVIII. Revista História das Ideias. v. 20 (1999). p. 149 – 185.
Disponível em; http://www.uc.pt/fluc/ihti/rhi/vol20/pdfs/06_aaraujo.pdf
984
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BUSSINGER, Clauda Elisa. Os artistas militares do Rio Grande. In: Oitocentos - Tomo III :
Intercâmbios culturais entre Brasil e Portugal. 2ª.Edição. Arthur Valle, Camila Dazzi, Isabel
Portella (organizadores) - Rio de Janeiro: CEFET/RJ, 2014. p.122 - 135
CASTRO, Celso. IZECKSOHN, Vitor. HENDRIK Kraay. (Orgs.). Nova história militar
brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
DILLMANN, Mauro. ALVES, Francisco das Neves. TORRES, Luis Henrique. Dos modos de
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Introdução
O Libro de Cirugía Medica Trasladado de Autores Graves y Doctos (1725) é uma obra
de medicina produzida na América Platina da primeira metade do século XVIII. Contendo
mais de seiscentas páginas, reúne capítulos sobre enfermidades do corpo humano,
acompanhados de tabelas, receituários, relatos de experiência, descrições
anatomopatológicas e de transcrição parciais ou integrais de obras médicas de autores de
referência.
Segundo o historiador Guillermo Furlong, o irmão jesuíta, boticário, enfermeiro e
cirurgião Pedro Montenegro560 é o autor e, portanto, o responsável por reunir, compilar e
divulgar diferentes conhecimentos nesta obra manuscrita que serviria à realidade diária
das reduções. Nestas, seria preciso intervir rapidamente nas mais diferentes
enfermidades e, em vista disto, fazia-se necessária uma obra que reunisse os mais
diferentes conhecimentos.
A obra, cujo paradeiro era tido como desconhecido, foi recentemente localizada no
Convento da Ordem Franciscana da cidade de Catamarca, na Argentina, tornando possível
a transcrição e análise do manuscrito que tem grande relevância para a discussão sobre a
produção científica platina do século XVIII, a partir da atuação do irmão Montenegro,
como se pode constatar nesta passagem que transcrevemos:
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sobre as práticas de cura nativas, sendo que alguns excertos do manuscrito são indicativos
da apropriação que foi feita dos saberes indígenas.
Na página 318 do manuscrito, encontramos que: [...] El unto del conejo es principal
remedio delos Panarrisos llaman los indios al conejo Tapiti [...] (MONTENEGRO,1725, p.318).
Como se pode constatar, o excerto faz menção à extração de um azeite de coelho pelos
indígenas e o animal é referido na língua indígena. Nas páginas 243, 257, 258, 260 e 262,
encontramos a referência ao uso da planta aguaraybay (Schinus areira, aguaribay), que
também é apresentada na língua indígena. Nas páginas 255 e 261, há menção ao uso da
planta ipecacuanha561, cuja raiz possui propriedades medicinais e era largamente
empregada pelos indígenas. Nas páginas 238 e 287, cita-se o piterebi ou apiterebi, madeira
americana e, nesta última, o autor também nos apresenta “ruybotillu”, forma como os
indígenas se referem à virga áurea:
[...] Criase por todas estas doctrinas la virga aurea, y los Indios la llaman
Ruybotillu, de altura de una vara, hecha aueses un solo tayo, y otras
quatro, y seis, al redor de los quales estan las ojas algo gruesas, estrechas,
y largas, y tieras de color verde claro; el tallo remata por lo alto con una
flor dorada, grande, y copiosa à forma de piña, con la punta arriba, toda
la planta es amarga, y es de virtud caliente, y seca [...] (MONTENEGRO,
1725, p.287).
561Psychotria ipecacuanha é uma uma planta da família Rubiaceae, muito comum nos solos das florestas
dos estados da Bahia e do Mato Grosso, no Brasil.
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corpo para a retirada de sangue do paciente; bem como de purgas, que são preparações
para livrar os indivíduos de impurezas interiores. Na página 318 do Libro, há o registro
sobre um outro tipo de limpeza corporal, mas que, também, se relaciona com as purgas:
os diuréticos. No caso, aponta-se para as propriedades de uma planta conhecida pelos
indígenas, o peterebi, sem que o autor descuide de mencionar também os cuidados que
seu uso envolvia: [...] El Apiterebi su cosimiento veuido hase orinar pero si atiende a nò darno
mui fuerte C. q.e hará orinar sangre. [...] (MONTENEGRO, 1725, p. 318).
562 Os procedimentos de extração de cânceres de mama só irão se difundir no século XIX, com a mastectomia
radical de Halsted, que se tornou pouco praticada no século XX, em função da sua alta periculosidade e das
taxas de morbidade relacionadas a ela. O procedimento consistia na retirada da glândula mamária, dos
músculos peitorais e da linfadenectomia axilar completa.
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563A mudança da percepção sobre os procedimentos de cura de certas enfermidades também iria afetar,
paulatinamente, a relação dos homens com seus corpos. (VIGARELLO, 2012, p. 13).
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Considerações finais
Neste artigo, compartilhamos algumas reflexões, a partir do Libro de Cirugía
(1725), cuja autoria é atribuída ao irmão jesuíta Pedro Montenegro, sobre as artes de
curar na América platina setecentista. Para tanto, levamos em consideração três eixos de
análise: (1) os saberes indígenas; (2) as teorias médicas hipocrático-galênicas e (3) a
transição dos saberes mágico-religiosos para a medicina científica. Nos capítulos desta
obra ficam evidentes tanto a apropriação de procedimentos médicos, farmacológicos e
cirúrgicos europeus, quanto de saberes e procedimentos terapêuticos nativos, bem como
a busca por uma objetividade científica e metódica, sem abrir mão do elemento
sobrenatural, da fé e da religiosidade.
É possível, à luz das informações que recolhemos da leitura do Libro de Cirugía,
relativizar a concepção difusionista de ciência, que compreende que a ciência produzida
na América partiu da Europa para a América, isto é, do centro para a periferia (FLECK,
2014). Obras como o Libro de Cirugía nos mostram que houve produção de conhecimento
científico na América, a partir de apropriações, releituras e experimentações realizadas
tanto por religiosos, quanto por leigos que se dedicaram às diversas áreas das ciências.
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Introdução
Ao definirmos a temática do presente trabalho, uma de nossas primeiras
indagações foi: como trabalhar mulheres imigrantes de etnia alemã? Ou ainda, a partir de
que fontes?
Raquel Soihet (1997), em História das Mulheres salienta que uma das grandes
dificuldades encontradas pelos historiadores em trabalhar a história das mulheres é
justamente por conta das fontes, sobretudo porque a maioria delas foi produzida sob a
ótica masculina e reproduzida sob discursos fortemente marcados por esses agentes:
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(...) conceituar gênero é caminhar por uma trilha que ainda se está
construindo e tem muito a ver com política e teoria [...] A definição mais
corrente de gênero é a que o considera uma categoria relacional, ou seja,
gênero é entendido como o estudo das relações sociais entre homens e
mulheres, e como essas relações são organizadas em diferentes
sociedades, épocas e culturas. (SILVA; SILVA, 2009, p.166).
Fontes escritas
Jacobina Mentz Maurer é a imigrante alemã que tem nome e rosto no meio de
tantas outras colonas que viveram no Rio Grande do Sul. Sua figura, marcada por
discursos negativos durante um longo período da historiografia, foi objeto de estudos da
nova historiografia, que relativizou os antigos discursos.
Como nossa proposta trata das possibilidades de fontes para estudos de mulheres
na imigração, selecionamos duas obras que formularam discursos e preceitos sobre o que
significava ser mulher no século XIX, tendo como base de recorte temporal e espacial, o
episódio dos Mucker. São elas: Os Mucker do Padre Ambrósio Schupp (1875) e Videiras de
Cristal do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil (1997). Ambos os livros – com discursos,
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Os Mucker
A obra intitulada Os Mucker (4ª edição) foi escrita por Ambrósio Schupp565 (1840-
1914), um Padre Jesuíta Alemão que chegou ao Brasil no ano de 1875, quando a revolta
dos Mucker já havia terminado. Esta obra foi escrita em língua alemã e traduzida por
Arthur Rabuske – também padre jesuíta. É considerado um dos primeiros registros
historiográficos que se inclinaram a narrar o conflito com protagonismo da líder Jacobina
Mentz Maurer.
Sobre a escrita desta obra vale destacarmos de que forma ou de quem, Ambrósio
Schupp absorveu as narrativas do conflito e as representações já feitas sobre Jacobina,
pois escreveu a obra quando o conflito já havia findado. Além disso, é importante
considerar em que medida a escrita jesuítica de Schupp e de seus pares, influenciou na
construção desta obra e por consequência, no discurso e imagem apresentada sobre
Jacobina.
Em termos gerais, o livro tem como foco narrar o episódio ocorrido no Ferrabraz,
com ênfase para o protagonismo da personagem principal, uma imigrante alemã –
Jacobina Mentz Maurer, esposa de João Jorge Maurer e líder do conflito.
Sua narrativa se constrói – desde o início, de forma contrária ao conflito,
apontando com desprezo o terror causado pela seita. Quando trata de Jacobina, tece sua
conduta fanática e doentia, justificando que desde criança sofria distúrbios que a
deixavam em estados anormais.
565 No Brasil ocupou o cargo de prefeito de estudos no Colégio Nossa Senhora da Conceição, em São
Leopoldo, foi Padre em São Leopoldo, Novo Hamburgo, Lomba Grande, entre outros lugares. Foi também
diretor do Seminário Episcopal e atuou como professor no Ginásio São Luis (Pelotas/RS). Faleceu no ano de
1914.
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Afora, utiliza termos como: “Mulher besuntona do Ferrabraz” (SCHUPP, 1993, p.62)
e “Estatura meã e fisionomia singularmente exaltada” (SCHUPP, 1993, p.40). Além de
destacar o teor tirânico da personagem, que tinha o dom da chantagem e sedução:
A conduta exaltada daquela mulher, que se chamava a Cristo a si mesma,
bem como todo o proceder afetando devoção religiosa, mesclada com
elementos de sensualidade na casa de Maurer, tinha-os seduzido e
enganado e fizera entrar de maneira mágica em sua alma disposição
sombrio-polvorosa, que costuma acompanhar superstição. (SCHUPP,
1993, p.62).
Videiras de Cristal
Este livro é um romance publicado em 5ª edição no ano de 1997 por Luiz Antonio
de Assis Brasil566. O livro tem como contexto histórico o episódio do Ferrabraz; muitos
personagens que circulam entre os municípios atuais de Campo Bom, Sapiranga, São
Leopoldo e Porto Alegre; e narrativa onisciente, o que contribui para as diferentes
perspectivas elaboradas sobre a protagonista Jacobina Mentz Maurer, não havendo sobre
ela apenas o tom negativo como na obra anterior.
Pela quantidade de personagens, o livro se torna ainda mais interessante, pois
além de trabalhar com detalhes a personagem Jacobina, Assis Brasil ainda trabalha com
outras mulheres, contribuindo para a percepção de diferentes protagonismos femininos
entre as imigrantes alemãs e suas descendentes. É relevante apontar que os
protagonismos femininos estão envolvidos com o ambiente privado, como o cuidado da
casa, de filhos e parentes, com amores e traição, momentos nos quais sofrem violência –
Jacobina é a única que diverge nesse ponto, “chamando mais atenção” que seu marido e
tendo um espaço de atuação maior que as demais. Já os personagens masculinos,
566 Nasceu em Porto Alegre no ano de 1945. Assis Brasil, atualmente, é professor e escritor. Possui
graduação em Letras e doutorado com ênfase em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica
- RS, Universidade na qual atua como professor titular da graduação e pós-graduação. Seu pós-doutorado
foi realizado na Universidade dos Açores, em Portugal, na área de Linguística, Letras e Artes.
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O remédio, que deveria ser o casamento não ajudou nem no tratamento e nem na
cura de Jacobina. Pelo contrário, ela ficou ainda mais “doente”. Ficou louca: virou uma
profetiza! “De qualquer forma, um assombro, mulher que sabia ler e que lia a Bíblia, antes
só escutada de vozes masculinas” (ASSIS BRASIL, 1997, p. 82).
Destacamos entre as demais personagens femininas, Elisabeth Carolina Mentz e
Ana Maria Hoffstäter, que recebem muitas particularidades na escrita de Assis Brasil. A
primeira delas é trabalhada no tocante a sexualidade, traição/amor, desespero,
arrependimento e moralidade. A segunda é o padrão, o modelo esperado em relação ao
comportamento de uma mulher. É atenciosa, dedicada, silenciosa, sonhadora; a
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personagem é violentada sexualmente em certa altura do livro, o que a torna mais realista
sobre a vida.
Elisabeth Carolina Mentz é a personagem que no início da história destoa do
comportamento esperado da mulher. Ela trai seu marido com um amigo da família, que
também é inspetor do quarteirão, por quem sente grande atração e desejo. O trecho a
seguir relata um momento de visita do inspetor ao seu marido e revela os sentimentos de
Elisabeth, antes da descoberta de seu caso: “Esse momento já havia ocorrido várias vezes,
antes provocando em Elisabeth Carolina uma sensação de cumplicidade que nem sempre
vinha acompanhada de remorso – ela até achava graça, e ria sozinha em seu quarto”
(ASSIS BRASIL, 1997, p. 33).
Quando seu cunhado (marido de Jacobina) descobre, a personagem passa por um
momento de grande crise moral, no qual sentia que “o desespero, o rancor, a paixão e o
medo eram demasiados para sua pequena existência” (ASSIS BRASIL, 1997, p. 35).
Elisabeth chega a pensar que não seria mais feliz e que seu destino não pertenceria mais
a si mesma e sim ao cunhado, que sabia de sua traição. É um momento de forte crise pelo
seu mau comportamento. Crise essa que não é sentida pelo inspetor. A fidelidade ao
casamento é algo imposto como moral apenas para as mulheres.
Ana Maria Hoffstäter é “muito serviçal e quietinha” (ASSIS BRASIL, 1997, p. 20).
Comportamento ideal para trabalhar nas casas de família. É na casa de Jacobina que ela
trabalha no romance. Destacamos que a moça de padrão almejado se mantém em silêncio
em assuntos que não lhe dizem respeito, principalmente em ambientes públicos; segundo
Michelle Perrot (2007) a fala é indecente nessas ocasiões. Como convenção social a fala é
inconveniente e desonrosa: “a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da
ordem das coisas” (PERROT, 2007, p. 17).
A personagem de Ana Maria sofre violência sexual por trabalhar na casa de
Jacobina e simpatizar com a seita; sendo uma Mucker “necessitava” de correção.
Quis lutar, mordeu a mão que a impedia de gritar (...) arrancaram-lhe toda
a roupa e ela foi possuída (...) Com a inútil virgindade, ia-se também a
infância e a juventude, entrava à força no mundo áspero e sem sonhos das
pessoas vividas. (ASSIS BRASIL, 1997, p. 136).
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Fontes imagéticas
Fazendo uso dos aparatos propostos pela Nova História Cultural, lançamos uma
segunda proposição para o estudo das mulheres de etnia alemã: as fontes visuais.
Segundo Pesavento, uma imagem é:
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balcão e uma mais jovem sentada, realizando uma atividade de artesanato, recebem um
caixeiro viajante. Uma criança está deitada no chão, observando catálogos.
A imagem sugere numerosos questionamentos e problematizações: mulher alemã
e trabalho; mulher alemã, maternidade e cuidado; mulher alemã e trabalhos manuais;
mulher alemã e classe social.
A criança presente na cena, alude o “dom natural” das mulheres ao cuidado, a
identificação – construída socialmente – da figura feminina com a maternidade. Além
disso, abre para outras questões de reflexão como o corpo feminino, a sexualidade, a
esterilidade.
Quais as imigrantes precisavam/podiam trabalhar? Que tipos de trabalho
realizavam? Essa obra em específico representa as mulheres atuando na área comercial.
Podem estar apenas “ajudando” os homens da família, ou estão responsáveis pelo
estabelecimento na ausência de uma viagem longa ou em caso de morte do marido/pai. A
representação do trabalho está relacionada com a questão da classe social de tais
imigrantes. A historiografia clássica da Imigração Alemã, as descreve como mulheres
trabalhadoras, que ajudam na roça, na alimentação de animais e tarefas domésticas. Essa,
porém, não é a realidade de todas as imigrantes; as mulheres com distinção social
executavam outros tipos de trabalho.
Fonte: CATÁLOGO. Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2009. Pedro Weingärtner (1853-1929): Um artista
entre o Velho e o Novo Mundo.
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Considerações finais
No presente trabalho buscamos refletir as diferentes representações construídas
acerca da mulher imigrante de etnia alemã, a partir da proposta de diferentes fontes, aqui
delimitadas pelas fontes escritas, com a obra Os mucker, de Ambrósio Schupp e Videiras
de Cristal, de Luiz Antonio de Assis Brasil – e as fontes visuais, com duas obras de arte,
Fios Emaranhados, de Pedro Weingärtner e A chegada dos primeiros imigrantes alemães,
de Carl Ernst Zeuner.
No estudo conferido à obra de Ambrósio Schupp, privilegiamos trabalhar o
protagonismo da personagem principal, a imigrante alemã Jacobina Mentz Maurer. Nesta
análise verificamos como o autor construiu uma narrativa negativa e depreciativa em
relação a personagem, sobretudo com a utilização de termos e adjetivos de caráter
difamatório.
Já na obra de Luiz Antonio de Assis Brasil, verificamos que uma nova Jacobina
“aparece” na historiografia. Nem só louca, nem só má: a personagem é humanizada, recebe
olhares de admiração e respeito. As outras personagens ampliam a discussão; entre as
que agem como a norma e/ou como a exceção, evidenciam aspectos distintos e
particulares, oferecendo subsídios para pensar as mulheres alemãs de forma plural.
Sobre as fontes visuais, buscamos evidenciar as representações direcionadas a
figura feminina, a partir de duas importantes obras de temática regional.
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O Colé gio Farroupilha foi fundado em 1886 pela Deutscher Hilfsverein (Sociedade
Beneficente de imigrantes alemã es), e abriga o Memorial do Colé gio Farroupilha, criado
em 2002, de onde partiu esta pesquisa.
A gestã o “fundadora” do Grê mio Estudantil do Colé gio Farroupilha (GEF), que
abarca os anos de 1946 (ano de sua fundaçã o) a 1947, era constituí́da apenas por
membros homens. Os cargos mencionados na documentaçã o encontrada sã o os seguintes:
presidente (Saul Wolf Liví́), tesoureiro (Dorval Leã o), secretá rio-geral (Carlos Luiz
Friedel), guarda-esportes (Jorge Cabral da Lima), diretor de esportes (Antô nio Minguot)
e secretá rio de esportes masculino (Antô nio Mingnot). E possí́vel que tenha existido uma
secretá ria de esportes femininos, como aparece em gestõ es futuras, poré m nã o podemos
assegurar a veracidade disto. Muitas lacunas nestas gestõ es ainda poderã o ser
preenchidas no decorrer deste trabalho, que ainda está por se concluir. Por hora, a
primeira integrante mulher aparece apenas na dé cada de 1950.
A dé cada de 1950 é um perí́odo de relativa prosperidade econô mica advinda do
final da Segunda Guerra Mundial. Acontecia um redesenho na cultura ocidental, forjada
pela penetraçã o norte-americana atravé s de seus produtos e dos filmes hollywoodianos.
A partir disto, a cena urbana torna-se mais rebuscada e movimentada (SEVCENKO, 2006).
O perí́odo també m é marcado por uma sociedade moderna, urbana e industrial,
principalmente a partir da polí́tica nacional-desenvolvimentista do governo de Juscelino
Kubitschek (JK), eleito em 1955. O modelo de desenvolvimento econô mico, conhecido
pela expressã o “50 anos em 5”, pretendia investir pesado em setores como indú stria de
*Graduanda de licenciatura em Histó ria, Pontifí́cia Universidade Cató lica do Rio Grande do Sul. O presente
trabalho fez parte do projeto DO DEUTSCHER HILFSVEREIN AO COLEGIO FARROUPILHA: Entre memó rias
e histó rias (1858- 2008), coordenado pela professora Dra. Maria Helena Camara Bastos, financiado pela
FAPERGS (2016/2017).
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Eu entrei no primeiro ano, primá rio, nã o tinha jardim na é poca, e fui até
a quarta sé rie no Farroupilha. Depois, eu queria fazer Clá ssico, mas nã o
tinha no Farroupilha, entã o eu saí́ e fui pro Sevigné. Aí́, foi da á gua pro
vinho; porque o Farroupilha já era um colé gio, apesar de ser alemã o
tradicional, era bem mais liberal do que o Colégio Sevigné. Entã o eu
estranhei muito.
(...) e eu acho que de uma maneira diferenciada o colé gio ajudava isso,
porque já era misto. Nenhum colé gio em Porto Alegre era misto. Entã o, eu
acho que isso també m contribuiu um pouco para fazer com que a gente
tivesse uma igualdade dentro do colé gio. Claro que, com as restriçõ es da
é poca.
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Ele era o ú nico que tinha automó vel; e ele me dava carona e para os times
todos; e a gente saí́a sempre juntos. O diretor, na é poca, me chamou na
sala dele pra dizer que eu nã o deveria andar tanto com meninos, porque
as pessoas poderiam ter uma impressã o errada. “Mas ele é meu primo,
como que eu nã o irei andar com ele? ” “Ah, eu nã o sabia, desculpa...” Tu
vê s, como mudou este tipo de relacionamento e cuidado.
Em seguida, para salientar que realmente se diferenciava das mulheres da é poca, e
se colocando em um lugar de vanguarda para as jovens de sua idade, diz: “Mulher era para
ficar em casa, ser do lar, e nã o ter uma profissã o independente. Eu, toda vida trabalhei. Eu
nunca fui de ir para a cozinha. Sempre fui lí́der, entã o, nã o ia ser diferente no colé gio”.
Podemos observa que o Colé gio Farroupilha possuí́a um diferencial quando
comparado a outras escolas de mesmo perfil: era visto como “liberal”, e esta observaçã o
aparece na fala de quase todas as entrevistadas. A escola nã o separava meninos e meninas,
por mais que, como diz Laura, ser uma menina que tem maior facilidade de se relacionar
com meninos pudesse causar má impressã o na ló gica e nos costumes da dé cada de 1950.
O grê mio era um ambiente de sociabilidade dos estudantes. Lá eles organizavam
eventos para diversã o, como reuniõ es dançantes, excursõ es, gincanas e campeonatos. Ao
que tudo indica, estas eram as atividades a que se dedicavam os alunos das primeiras
gestõ es. Nã o possuí́a um vié s de atuaçã o polí́tica que fosse ligado a acontecimentos
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externos, como o Colé gio Jú lio de Castilhos571, por exemplo. O “Julinho” tem uma trajetó ria
explicitamente polí́tica. E, quando indagada a respeito desta diferença, a entrevistada
ressalta: “totalmente polí́tica, o Jú lio de Castilhos. O Julinho: polí́tica. O Farroupilha era um
ambiente estudantil. A gente fazia tudo para viver a juventude. Isso sempre foi uma coisa
que eu participei muito, de tudo”.
Recorremos aqui a obra de Maria Paula Araú jo, Memórias Estudantis: da fundação
da UNE aos nossos dias (2007), que diz ter havido, nas organizaçõ es estudantis da dé cada
de 1950, trê s tendê ncias especí́ficas: parte dos estudantes alinhava-se com a esquerda
polí́tica, ou seja, os comunistas; parte, aos governistas, a base de apoio do governo; a
ú ltima parte, e que provavelmente tenha sido o caso do GEF, eram aqueles que se
identificavam com uma postura mais independente da polí́tica nacional.
Laura exerceu diversos cargos de representatividade estudantil durante sua
permanê ncia na escola. Ao ser indagada se em algum momento almejou a presidê ncia da
agremiaçã o, ela diz que nã o. Seu objetivo era o de participar, apenas, mesmo que muitas
vezes tenha “mandado como presidente”.
A pró xima entrevistada, a quem daremos o nome de Mariana572, esteve presente
na escola na mesma é poca de Laura. Atuou nas gestõ es de 1954-1955 e 1955-1956 como
secretá ria de adaptaçã o feminina em ambas. Mariana, hoje com 80 anos, diz que ficou
apenas 3 anos na escola, durante o Cientí́fico, tendo ingressado em 1953, aos 15 anos.
571 Para saber mais sobre a atuação do grêmio estudantil do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, ver
SILVEIRA, 1979.
572 A entrevista com Mariana realizou-se em 26/05/2017.
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Mariana nã o tem a mesma impressã o que as outras entrevistadas sobre a escola.
Ela salienta que nã o ficou satisfeita quando o pai optou que ela estudasse no Colé gio
Farroupilha. Como ela diz, sua expectativa era ser psiquiatra, poré m o pai desejava que ela
entrasse para o magisté rio, cursando a Escola Normal. A ú nica maneira que ela viu para
que tivesse seu sonho concretizado foi a de entrar em um acordo com o pai e ir cursar o
Cientí́fico na escola que ele escolheu.
Sobre o magisté rio ser uma opçã o para as jovens da é poca, devemos lembrar que
este posicionamento conservador vem de tempos remotos. O progresso advindo apó s a
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), assim como as lutas feministas, foi fator decisivo
para a entrada da mulher no mercado de trabalho. Todavia, existiam restriçõ es quanto as
funçõ es a que se dedicariam. Elas se ocuparam, principalmente, das funçõ es de professora,
secretá ria, telefonista, e de outras que remetiam a um universo feminino (MALUF; MOTT,
1998). Muitas viram aí́ uma perspectiva de exercerem uma profissã o que fosse bem quista
pela sociedade, e aceita pelos pais e marido; conquistando, desta forma, alguma liberdade
e independê ncia financeira.
A ex-aluna era estudante do Instituto de Educaçã o General Flores da Cunha, de
Porto Alegre, na é poca com turmas exclusivas femininas, antes de cursar o Cientí́fico no
Farroupilha. Suas impressõ es sobre esta mudança foram as seguintes:
A entrevistada cita algumas regras que a nova escola possuí́a, e com as quais ela
nã o estava acostumada. Era solicitado, por exemplo, que os pais assinassem o boletim,
algo que a incomodava muito. Ela mesma assinava e arcava com as consequê ncias do
castigo. “Eu era daquelas que incomoda”, diz.
O Instituto de Educaçã o Flores da Cunha possuí́a a Escola Normal que o pai de
Mariana queria que ela cursasse. Logo, de certa forma, foi uma conquista ela conseguir ir
para outra escola continuar os estudos do Cientí́fico.
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Apesar dos dessabores enfrentados com a mudança de escola, ela fez questã o de
ser uma aluna participativa e de representar suas colegas no grê mio estudantil.
Na escola anterior, ela via maiores perspectivas de participar e diz nã o ter tido esta
impressã o do Colé gio Farroupilha. A maneira encontrada para que, de alguma forma,
atuasse no meio estudantil, foi integrando a agremiaçã o. Quanto a esta atuaçã o:
E foi aí́ que a gente tentou, com o Francisco Henrique de Araú jo, que era
muito meu amigo, rapaz inteligentí́ssimo, ele disse: Mariana, tu nã o achas
que aqui todo mundo aceita sempre as decisõ es, e entra nesse espí́rito de,
é mais fá cil aceitar do que expor a sua opiniã o? Eu disse: eu concordo. E
aí́, tí́nhamos o jornal, o Clarim, onde tudo era maravilhoso o que eles
colocavam. Inclusive, eu tenho artigos e comentá rios em alguns nú meros
do Clarim, mas eu fazia aquilo meio que a contragosto. Eles me
convidavam, e eu fazia. Mas a minha vontade era a de criticar. E aí́, ele me
disse: vamos fazer um jornal se contrapondo totalmente a essa submissã o
que existe por parte dos estudantes? E eu disse: vamos! E ele disse: entã o,
como seria um jornal que falasse a verdade e a opiniã o dos alunos? Eu
disse que nã o sabia. E, entã o, ele disse: Veritas! A verdade! E aí́, nó s
fizemos, acho que foram 2 ou 3 nú meros. Mas foi uma briga! O jornal era
tudo o que o espí́rito do colé gio nã o se abria. Um jornal que dissesse: esse
professor? Horrí́vel! Essa aula? Horrí́vel!
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Porque eles eram mais politizados do que nó s. Nã o que a gente fosse
alienado; nã o é isso. Mas a gente nã o era politizado. Nã o viví́amos fora do
mundo, mas també m nã o está vamos tã o dentro. Nã o sei se os pais
preservavam. (…) talvez eles tivessem mais coisas para reivindicar do que
nó s. Pode ser. Eles tinham menos regalia, nã o sei. Eu sinto que o
Farroupilha nã o era um colé gio...nã o sei agora. Mas ele nã o era politizado.
Nunca teve essas brigas, sabe? Nã o lembro disso. Passeatas, nada! Tudo a
gente resolvia aqui dentro do colé gio.
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Stella comenta sobre os anos 1960, a rebeldia que, assim como floresceu em muitos
jovens, ela, como mulher, teve seus momentos de rompimento e contestaçã o das regras
impostas,
Aí́, eu comecei a matar aula. Minha ú nica rebeldia. Porque sá bado tinha,
eu nunca me esqueço, duas aulas de fí́sica e duas aulas de quí́mica. Quem
é que aguenta?! Num sá bado de manhã nã o dá pra aguentar, aí́ eu matava
um pouquinho a aula. E eu lembro que no final do ano fiquei em
recuperaçã o na aula de quí́mica. (…) ficava conversando com mais gente
que matava aula també m. E que o meu comportamento sempre foi muito
certinho, entã o era um desrespeito com o professor matar aula.
Nas palavras de Stella, ela sentia-se privilegiada por ocupar aquele espaço de
tomada de decisõ es. Diz que as colegas a apoiavam, levavam ideias, e ela sempre podia
contar com este respaldo das outras jovens. Encerrou seus estudos na escola em 1965,
casando-se em 1966 e indo morar em Sã o Paulo, onde dedicou-se a carreira de guia
turí́stica.
A ex-aluna Irene Bertschinger574, hoje com 68 anos, integrou a agremiaçã o na
gestã o 1963-1964, quando tinha 14 ou 15 anos de idade, ocupando o cargo de secretá ria
social. Ingressou na escola em 1954, permanecendo até o cientí́fico, e formou-se em
Educaçã o Fí́sica pela Escola de Educaçã o Fí́sica da UFRGS (ESEF).
Irene, assim como Stella, era responsá vel pela parte dos eventos do GEF. Era ela
quem organizava as reuniõ es dançantes e as gincanas.
Na gestã o em que Irene participou, seu nome é o ú nico de mulher que aparece
como integrante do GEF nos cargos de diretoria e secretarias. Sobre isso, ela comenta:
E que as mulheres, ainda naquela é poca (…) elas eram diferentes. Existia
uma coisa, que eram pessoas que vinham de um alto ní́vel, e a gente, nã o
que isso interferisse em amizade, nem nada, mas a maneira de se postar
em certas coisas era diferente. Eu sempre fui mais aberta pra tudo. Eu sei,
porque eu te digo, foram convites de colegas e eu gostei, achei que ia ser
legal, até para uma abertura, as mulheres começarem a entrar nessa
parte. Foi bom (…) porque logo em seguida elas começaram a participar.
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A ex-aluna teve consciê ncia de que nã o era comum uma mulher ocupar um
ambiente que pertencia ao pú blico masculino. Sabia que este nã o era o comportamento
tí́pico das jovens da é poca. E continua,
Ela destacou o trabalho bem feito procedido pelo GEF durante sua gestã o. O setor
era respeitado por colegas e professores. Eles tinham voz na instituiçã o escolar.
Sobre a intençã o de ser presidente ou nã o, como as outras entrevistadas, Irene
tinha a consciê ncia de que aquele era um lugar para ser ocupado por um homem. E mesmo
que ela tivesse maiores ambiçõ es, estava dedicando-se a seu objetivo que era ingressar na
faculdade de medicina, da qual desistiu nas vé speras de fazer a prova, “por insegurança”,
diz.
Fica a dú vida se ela considerava que a medicina també m era uma á rea de domí́nio
masculino. O fato é que ela se dedicou a profissã o de professora, deixando de lado o sonho
de tornar-se mé dica.
O ano de 1964 é de forte atuaçã o polí́tica dos jovens em todo paí́s. Talvez um dos
perí́odos mais explorados pela historiografia brasileira até os dias atuais. O Golpe Civil
Militar é um marco separador de á guas, em que se encerra a experiê ncia democrá tica e
inicia-se um tempo de autoritarismo, censura e repressã o, mas també m de crescimento
da atuaçã o estudantil com repercussõ es mundiais.
Trazendo a entrevista este momento da histó ria do paí́s, Irene faz um importante
relato sobre a atuaçã o da agremiaçã o,
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E importante destacarmos que esta juventude dos anos 1960 nã o está engessada a
um padrã o. Comumente pensamos nos jovens desta é poca como ligados a esquerda,
lutando contra as ameaças de um Golpe Civil-Militar. No entanto, o que experiê ncias como
essa nos mostram, é que os estudantes que atuavam diretamente em grê mios estudantis,
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Considerações Finais
A trajetó ria das jovens no Grê mio Estudantil do Colé gio Farroupilha remete-nos a
uma é poca em que as posiçõ es de poder eram mais ocupadas pelos homens do que nos
dias atuais. Entretanto, estas jovens romperam com os ditames impostos a elas pela escola
e pela famí́lia. Achar uma brecha de liberdade em um tempo em que a vocaçã o feminina
ainda era consagrada no lar fez com que elas abrissem caminho para as geraçõ es futuras
de estudantes mulheres do Colé gio Farroupilha. Aos poucos, outras jovens foram
interessando-se pela agremiaçã o e aumentou consideravelmente sua participaçã o nas
gestõ es seguintes.
Ao cristalizar estes espaços de poder como de exclusividade masculina, a sociedade
brasileira conteve o desenvolvimento da autonomia das mulheres. Elas entendiam que o
cargo mais alto, o de presidente, era naturalmente ocupado pelos meninos. Esta
determinaçã o de papé is e assimilaçã o nã o se dá de forma inconsciente. Assim como o
rompimento de determinadas ló gicas. Optar por uma profissã o de atuaçã o
majoritariamente masculina, mas desistir nas vé speras de prestar o vestibular, diz muito
sobre os anseios das mulheres daquele tempo. Elas queriam avançar nos seus ideais, mas
algo ainda as amarrava a determinaçõ es machistas e patriarcais.
Desta forma, o grande desafio deste trabalho está sendo pensar a atuaçã o feminina,
inserida em um movimento maior que é o Movimento Estudantil, a partir de uma é poca
em que se inicia uma maior politizaçã o dos jovens, e ao mesmo tempo uma busca de
quebra de paradigmas por parte destas mulheres rumo a emancipaçã o.
O tema, por si só , torna-se mais importante a partir de seus desdobramentos. A luta
por direitos, o resgate do feminismo visí́vel na atualidade atravé s dos diversos grupos de
discussã o e atuaçã o que existem hoje, torna-o extremamente atual. O incremento da
histó ria das mulheres atravé s das concepçõ es de gê nero caminhou lado a lado ao
movimento de libertaçã o feminina encabeçado pelas feministas desde os primó rdios do
sé culo XX.
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A atuaçã o dos estudantes, que pô de ser observada nos ú ltimos dois anos, com a
ocupaçã o das escolas em nome de uma educaçã o de qualidade e por condiçõ es dignas de
trabalho para os professores é outro fator que influencia para que este tipo de resgate
histó rico precise ser feito.
Estas jovens devem sim ser pensadas como vanguarda. A partir delas um mundo
de possibilidades se descortina para que outras mulheres assumam a frente de seus
interesses e decidam sobre as suas vidas. Nã o podemos esquecer que nosso paí́s, só
recentemente teve uma presidente mulher no poder. O que leva a crer que estamos longe
de ver uma mudança radical e real em nossa sociedade.
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Introdução
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Desenvolvimento
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Sabe-se que Pedro Montenegro nasceu na Espanha, em 1663, e que iniciou sua
formação como boticário, enfermeiro e cirurgião junto ao Hospital Geral de Madri. Chegou
na América em 1689, e ingressou na Companhia de Jesus no ano de 1691. O jesuíta atuou
no Colégio de Córdoba, na Argentina, até realizar seus votos em 1693, ocasião em que
passou de noviço a irmão coadjutor. É importante destacar que Montenegro era irmão, e
não padre, o que permitia que atuasse também como boticário, enfermeiro e cirurgião nas
reduções. De Córdoba, ele foi enviado para as reduções da região de Tucumán, e, dali, para
a redução de Apóstoles (1702). Sabe-se que, em 1704, o irmão atuou como cirurgião em
um conflito na colônia de Sacramento, atendendo como enfermeiro a uma milícia de
índios guaranis. Entre os anos de 1704 e 1728 há um hiato na trajetória de Montenegro,
mas os catálogos da Província Jesuítica do Paraguai de 1715, 1720 e 1724 informam que
o jesuíta se encontrava atuando como enfermeiro nas reduções do Paraná. Em 1728,
Montenegro faleceu na redução de Mártires.
Uma cópia manuscrita do Libro de Cirugía foi recentemente localizada no Convento
da Ordem Franciscana da cidade de Catamarca, na Argentina. Após a transcrição da
maioria de seus capítulos, especulamos que ele se constitua, efetivamente, de uma
compilação de tratados e receituários que pertenceram ao irmão jesuíta Pedro
Montenegro. Tal hipótese se deve ao fato de o manuscrito apresentar diferentes letras e
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O Libro possui mais de seiscentas páginas e é dividido em dez capítulos, sendo eles:
Dispensatório Médicinal; Anathomia del cuerpo humano; Tratado brebe del modo de
sangrar; Enfemedades de la cabeza; Enfermedades del pecho; Enfermedades de la cavidad
abdominal; Enfermedad de las mugeres; De las fiebres, y de su diferencia; Tratado sobre el
pulso, orina y crisis e Tratamentos chirúrgicos. O manuscrito apresenta, ainda, tabelas que
apresentam os planetas e os signos celestes e que indicam os melhores dias para fazer
purgas e sangrias.
Como dito anteriormente, me deterei na análise do sétimo capítulo da obra, que
trata sobre as doenças que acometiam as mulheres, apresentando as dietas indicadas no
tratamento de enfermidades próprias das mulheres, discutindo ainda as evidências de
apropriação de plantas e terapêuticas nativas.
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“Empiesa a vajar los mestruos à las mugeres de y fin del los 14, y les
dura hasta los 40, ó 50. Seguen las complesiones, Mestruos por que
a unas les empiesa à bajar desde los 13. años, y a unas de 15, y lo
mismo en el sesar, que a unas ya no les baja à los años, y a unas
despues de los 50. los tienen. Corren assi mismo los mestruos
seguen los tiempos de la luna; a las muchachas les corre em el
primer quarto, a las mosas en el 2º, y a las de mas edad en el 3º, y
alas viejas en el ultimo quarto de la luna, de esto podemos colegir
que los nosos sedeuen sangrar en luna nueba, y los viejos al fin de
la luna, por que el arte fique à la naturalesa. Gordiano fl. 267. Y se
hade sauer que àlas mugeres quando les corre vin los mestruos,
segun la costumbre que dura 3 dias mas ó menos, entonses viben
sanas, castas, y son fecundas” (MONTENEGRO, 1725, p. 299).
Nesta passagem, o autor explica que as mulheres começam a ficar menstruadas por
volta dos treze a quinze anos, e param por volta dos quarenta a cinquenta anos. Detalha,
também, o período do mês em que cada faixa etária fica menstruada de acordo com as
fases da lua, sendo que as mais novas menstruam na primeira fase e as mais velhas, na
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última. É ressaltado que o período menstrual mensal costumava durar cerca de três dias
e que, após esse período, as mulheres ficavam mais sãs, castas e férteis.
Também encontramos algo sobre cesáreas, procedimento não recomendado pelo
autor. Não há, no entanto, uma justificativa precisa sobre os motivos para que seu uso não
fosse aconselhado. O autor apenas alega que “raras ves tiene buen efecto” (MONTENEGRO,
1725, p. 302). Entretanto, há uma observação, recomendando que a cesárea deveria ser
empregada quando a mãe já estivesse morta e fosse constatado que a criança ainda vivia,
a fim de que pudesse ser salva. Na continuidade, o autor se prolonga em um extenso
parágrafo na descrição detalhada da execução de tal procedimento.
Em relação ao fluxo menstrual após o parto, o manuscrito apresenta uma relação
de remédios e alimentos que “derriten demasiado la sangre” (MONTENEGRO, 1725, p.
306), e que, por isso, poderiam implicar em uma menstruação excessiva, em um fluxo
menstrual que duraria anos ou, então, em um fluxo tão abundante que poderia debilitar
as forças da mulher.
Considerações Finais
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