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Historiografia: temas, desafios e perspectivas – Reunião de textos

II Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-americanos (CI-EHILA)


PPGH-UNISINOS, São Leopoldo/RS, 2017
e ISSN 2527-1148

Reunião de Textos

CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS HISTORICOS LATINO-AMERICANOS


UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
13 A 15 DE SETEMBRO DE 2017

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Historiografia: temas, desafios e perspectivas – Reunião de textos
II Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-americanos (CI-EHILA)
PPGH-UNISINOS, São Leopoldo/RS, 2017
ISSN 2527-1148

Organização do evento:

Alba Cristina C. dos Santos Salatino


Alexandre de Oliveira Karsburg
Ana Paula Korndörfer
Helenize Soares Serres
Hernán Ramiro Ramírez
Jonathan Fachini da Silva
Luiz Fernando Medeiros Rodrigues
Maíra Ines Vendrame

Editoração: Alba Cristina C. dos Santos Salatino & Jonathan Fachini da Silva

ISSN 2527-1148

SALATINO, Alba Cristina C. dos Santos; SERRES, Helenize Soares; SILVA,


Jonathan Fachini da. (Orgs.). Historiografia: temas, desafios e
perspectivas – Reunião de textos. São Leopoldo: PPGH-UNISINOS,
2017.

Observação: A redação e o conteúdo dos resumos das apresentações de trabalhos são


de responsabilidade de seus respectivos autores.

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II Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-americanos (CI-EHILA)
PPGH-UNISINOS, São Leopoldo/RS, 2017
ISSN 2527-1148

Comissão Organizadora
Alba Cristina C. dos Santos Salatino
Alexandre de Oliveira Karsburg
Ana Paula Korndörfer
Helenize Soares Serres
Hernán Ramiro Ramírez
Jonathan Fachini da Silva
Luiz Fernando Medeiros Rodrigues
Maíra Ines Vendrame

Comissão Científica
Alba Cristina C. dos Santos Salastino (Unisinos)
Carla Brandalise (UFRGS)
Carlos Daniel Paz (UNICEN, Argentina)
Carmem Adriane Ribeiro (PUCRS)
Charles Sidarta Machado Domingos (IFSUL)
Cláudio Pereira Elmir (IFSC)
Daniel Luciano Gevehr (FACCAT)
Eliane Cristina Deckmann Fleck (Unisinos)
Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos (Unisinos)
Fernanda Oliveira (UFRGS/UNIRITTER)
Gabriele Rodrigues de Moura (Unisinos)
Giane Flores (Unisinos)
Guilherme Galhegos Felippe (PNPD/PUCRS)
Helenize Soares Serres (Unisinos)
Isabel Cristina Arendt (ISEI/Unisinos)
Jairo Henrique Rogge (Unisinos)
Jonathan Fachini da Silva (Unisinos)
Juliana Aparecida Camilo da Silva (Unisinos)
Mara Cristina de Matos Rodrigues (UFRGS)
Marcos Antônio Witt (Unisinos)
Maria Cristina Bohn Martins (Unisinos)
Marluza Marques Harres (Unisinos)
Paulo Possamai (UFPel)
Paulo Roberto Staudt Moreira (Unisinos)
Pedro Ignácio Schmitz (Unisinos)
Priscilla Almaleh (Unisinos)
Rodrigo de Azevedo Weimer (FEE)
Rosane Marcia Neumann (UPF)
Site
http://www.unisinos.br/

Realização Apoio
Programa de Pós-Graduação em História Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Superior (CAPES)
Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

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ISSN 2527-1148

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

E56h

Historiografia: temas, desafios e perspectivas – Reunião de textos. [Recurso


Eletrônico] II Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-Americanos
/ Organizadores: Alba Cristina C. dos Santos Salatino, Helenize Soares Serres,
Jonathan Fachini da Silva. – São Leopoldo: PPGH-UNISINOS, 2017.
PDF – EBOOK

Inclui Bibliografia.

ISSN 2527-1148

1. Evento Acadêmico. 2. Ciências Humanas. 3. História.

CDU 97/98

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...........................................................................................................................13

PARTE 1. A AMÉRICA IBÉRICA NO PRATA: FRONTEIRAS, DISPUTAS


E CONEXÕES...................................................................................................................................16

LITÍGIOS DE TERRA NO ESPAÇO MISSIONEIRO: O CASO DE LA CRUZ E YAPEYÚ


Helenize Soares Serres................................................................................................................................17

FRONTEIRAS CULTURAIS EM TERRITÓRIOS DA REDUÇÃO DE JESUS MARIA,


RIO PARDO, SÉCULO XVII: CONFLITOS ENTRE PARCIALIDADES GUARANI E
OS JESUÍTAS
Tuani de Cristo e Luís Fernando da Silva Laroque..........................................................................29

NOTAS DE PESQUISA: APONTAMENTOS E REFLEXÕES SOBRE CASOS DE


INDÍGENAS CATIVOS EM BUENOS AIRES
Marcelo Augusto Maciel da Silva.............................................................................................................40

DISPUTAS HISTORIOGRÁFICAS E RELAÇÕES DE PODER EM ÁREAS DE


FRONTEIRAS INTERCULTURAIS: IMPLICAÇÕES DA “HISTÓRIA OFICIAL”
Maira Damasceno..........................................................................................................................................48

CRIMINALIDADE E EXECUÇÃO DA JUSTIÇA NOS DOMÍNIOS PORTUGUESES


DA FRONTEIRA PLATINA (SÉCULOS XVIII E XIX)
Andreia Aparecida Picolli...........................................................................................................................56

NEGÓCIOS ESCUSOS: AS RELAÇÕES DOS TRAFICANTES DE ESCRAVOS E


OS GOVERNADORES DA COLÔNIA DO SACRAMENTO
Stéfani Hollmann............................................................................................................................................67

O CASO DO “PARDO PEDRO” E OS ASPECTOS CULTURAIS QUE ENVOLVEM CONSUMO


E COTIDIANO NA FRONTEIRA OESTE A PARTIR DE PROCESSOS CRIME
Taís Giacomini Tomazi e Francesco Santini.......................................................................................79

PÓS-COLONIALISMO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE


A PERSPECTIVA AFRICANA E LATINO-AMERICANA
Evandra Cristina Gonçalves Moreira.....................................................................................................88

FACULDADE DE DIREITO DO PIAUÍ: SEMENTE PLANTADA DO ENSINO SUPERIOR


NO PIAUÍ
Francisca das Chagas Lopes Campos..................................................................................................101

CORRESPONDENCIAS DE GUERRA: UMA ANÁLISE DAS CARTAS E TELEGRAMAS


DO GENERAL JOÃO NUNES DA SILVA TAVARES DURANTE A REVOLUÇÃO FEDERALISTA
DE 1893-1895
Gustavo Figueira Andrade.......................................................................................................................114

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SOBERANIA, DEMARCAÇÃO TERRITORIAL E AS INSTALAÇÕES AÇORIANAS


NA FRONTEIRA MERIDIONAL PORTUGUESA
Sandra Michele Roth Eckhardt e Lucas Lopes Cunha.................................................................126

A GUERRA GRANDE E A PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO


Talita Alves de Messias.............................................................................................................................139

OS HOMENS DE NEGÓCIO FLUMINENSES E SUA INSERÇÃO NA COLÔNIA


DO SACRAMENTO (1737-1752)
Alana Thais Basso.......................................................................................................................................152

PARTE 2. EXPERIÊNCIA E REGISTRO: A CATEQUESE E O CONVÍVIO


INTERCULTURAL POR SUAS MÚLTIPLAS VOZES E ATORES
(SÉCULOS XVI-XIX)....................................................................................................................162

PRÁCTICA CATEQUÉTICA EN LAS REDUCCIONES DEL PARAGUAY. FORMACIÓN


DEL VOCABULARIO TEOLÓGICO GUARANÍ (SS. XVI-XVIII)
Angélica Otazú Melgarejo........................................................................................................................163

A QUERELA SOBRE OS INDÍGENAS QUE PERPASSOU A TRAJETÓRIA DO PADRE


JORGE BENCI
Natália de Almeida Oliveira....................................................................................................................174

“EN TIEMPO DE CHICHA NO HAY QUE HABLARLES DE DIOS”. REFLEXIONES SOBRE


EL TIEMPO DE LAS BORRACHERAS INDIAS EN EL MARCO DE CATEQUESIS
Carlos Daniel Paz.........................................................................................................................................188

“OS GENTIOS A UMA SIMPLES REPRESENTAÇÃO DO INFERNO (...) FUGIAM O VÍCIO E


SEGUIAM A VIRTUDE”: PERCEPÇÕES DO JESUÍTA ALEXANDRE PERIER SOBRE A
CONVERSÃO CATÓLICA DE INDÍGENAS NA AMÉRICA PORTUGUESA
Mauro Dillmann...........................................................................................................................................202

“A BOTÂNICA DE HIPÓLITO RUIZ LOPEZ E SEU VIÉS FARMACOLÓGICO:


PRODUÇÃO INÉDITA OU APROPRIAÇÃO DE CONHECIMENTO NATIVO?”
Eric Thomas da Silveira Franz...............................................................................................................213

TESTEMUNHOS, ESCRITA E VERSÕES EM DISPUTA: A INCORPORAÇÃO DE


“VOZES” INDÍGENAS EM REGISTROS DE JESUÍTAS NO CONTEXTO DA DEMARCAÇÃO
DO TRATADO DE MADRI (PARAGUAI, 1754-1760)
Marina Gris da Silva...................................................................................................................................222

“QUE CADA PUEBLO SE GOVIERNE POR SI”: MODERNIDADE POLÍTICA E ATORES


INDÍGENAS NO ESPAÇO MISSIONEIRO DO RIO DA PRATA (1810-1821)
Felipe Schulz Praia......................................................................................................................................236

PARTE 3. EMANCIPAÇÕES E PÓS-ABOLIÇÃO........................................................................248

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O QUILOMBO COMO LUGAR DA MULTIPLICIDADE: INTERPRETAÇÃO E NARRATIVAS


HISTORIOGRÁFICA
Vinícius Finger..............................................................................................................................................249

PERCEPÇÕES DE UM JORNAL NEGRO DO SUL EM TORNO DA VALORIZAÇÃO DO MESTIÇO


NO CENÁRIO NACIONAL
Ângela Pereira Oliveira.............................................................................................................................262

SILÊNCIOS NEGROS NA HISTORIOGRAFIA CIENTÍFICA DA DITADURA CIVIL-MILITAR


BRASILEIRA (1964 – 1969)
Priscila Goulart dos Santos.....................................................................................................................271

PARTE 4. E/I/MIGRAÇÕES NA AMÉRICA LATINA:


QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS............................................................................................281

A COMISSÃO DE TERRAS E COLONIZAÇÃO DE PASSO FUNDO E PALMEIRA E A


RESOLUÇÃO DE CASOS DE POSSE E INTRUSÃO
Kalinka de Oliveira Schmitz....................................................................................................................282

A IMPRENSA À SERVIÇO DO PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA (1871) E


DA IMPLANTAÇÃO DA COLÔNIA PORTO NOVO (1926)
Maikel Gustavo Schneider.......................................................................................................................292

“ONDE ESTÁ O MEU PESQUISADO?”: VELHOS LUGARES NA HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO


ALEMÃ E AS NOVAS PERSPECTIVAS TRANSNACIONAIS PARA OS ESTUDOS
MIGRATÓRIOS.
Patrícia Bosenbecker.................................................................................................................................305

E/I/RE/MIGRAÇÕES NA BACIA DO PRATA: DESAFIOS, ABORDAGENS, HISTÓRIAS E


GEOGRAFIAS
Roberto Rodolfo Georg Uebel................................................................................................................317

A IGREJA EPISCOPAL BRASILEIRA E O TRABALHO MISSIONÁRIO EM SANTA MARIA-RS:


PROTESTANTISMO DE MISSÃO E MIGRAÇÕES EM MEIO AO CAMPO RELIGIOSO
Paulo Henrique Silva Vianna..................................................................................................................330

(RE)LEITURA DA HISTÓRIA DE SÃO LEOPOLDO E DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ DO SÉCULO


XIX ATRAVÉS DE FONTES JUDICIAIS: QUESTÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS
Caroline von Mühlen..................................................................................................................................343

PARTE 5. ESTUDOS HISTORIOGRÁFICOS, HOMENS DE LETRAS E INTELECTUAIS NA


AMÉRICA LATINA.......................................................................................................................354

“TÃO IMPORTANTE TESOURO NÃO SE DEVE CONFIAR A QUALQUER”: A ATUAÇÃO DE


DOMINGOS JOSÉ DE ALMEIDA NA CONSTITUIÇÃO DA COLEÇÃO VARELA
Camila Silva....................................................................................................................................................355

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CRÍTICOS DA MODERNIDADE COLONIAL OCIDENTAL: LATINO-AMERICANISMO E


DESCOLONIZAÇÃO EM DARCY RIBEIRO E LEOPOLDO ZEA
Marcos Antonio Peccin Junior e Raony Valdenésio Aduci Odremán Mendes...................367

EISENSTEIN NA AMÉRICA LATINA: PERCURSOS DE UM INTELECTUAL


REVOLUCIONÁRIO
Rafael Hansen Quinsani............................................................................................................................381

A TEORIA DO REAL MARAVILHOSO DE ALEJO CARPENTIER: A RECUPERAÇÃO


HISTÓRICA E A BUSCA DE UMA IDENTIDADE AMERICANA
Luciane Alves................................................................................................................................................394

MAR DE POSSIBILIDADES: UM DIÁLOGO ENTRE AS MARINHAS DE EDOARDO DE


MARTINO, A CRIAÇÃO DO MUSEU NAVAL E A IMPRENSA MILITAR
Bárbara Tikami de Lima...........................................................................................................................404

UMA HISTÓRIA DO COTIDIANO E DOPODER NA CIDADE DE MANAUS NA ÓTICA DE UM


SANITARISTA: DR. SAMUEL UCHÔA E O USO DE SEUS RELATÓRIOS MÉDICOS (1922-
1924)
Mariana Mariano de Oliveira..................................................................................................................415

HISTÓRIA NOVA DO BRASIL, UM PROJETO DE REFORMA NA HISTORIOGRAFIA


NACIONAL
Tiago Conte....................................................................................................................................................428

SOBRE PROJETOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS: O HISPANO-AMERICANISMO


HISTORIOGRÁFICO E SUAS RELAÇÕES COM A TRAJETÓRIA DE RICARDO LEVENE E O
GRUPO DA NUEVA ESCUELA HISTÓRICA ARGENTINA
Mariana Schossler.......................................................................................................................................437

PARTE 6. POLÍTICA E DEMOCRACIA NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA ..................450

A REFORMA ELEITORAL PARA INTRODUÇÃO DO VOTO DIRETO NO BRASIL E SUAS


IMPLICAÇÕES PARA A CIDADANIA NO BRASIL
Michele de Leão...........................................................................................................................................451

É POSSÍVEL ALARGAR OS CAMINHOS DA DEMOCRACIA? A CONTRIBUIÇÃO DO


SINDICALISMO RURAL CUTISTA NO RS, 1978-1990
Anacleto Zanella..........................................................................................................................................461

FORA DA LEI, DENTRO DO JOGO: DENÚNCIAS DE ILEGALIDADES NAS CAMPANHAS


ELEITORAIS NO RIO GRANDE DO SUL (1945-1950)
Douglas Souza Angeli.................................................................................................................................474

A REORGANIZAÇÃO POLÍTICO-PARTIDÁRIA NO RIO GRANDE DO SUL: O SURGIMENTO


DO PARTIDO SOCIAL DEMOCRÁTICO (PSD)
Marcos Jovino Asturian............................................................................................................................488

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RESULTADOS ELEITORAIS DOS CANDIDATOS A DEPUTADOS ESTADUAIS NA SEGUNDA


LEGISLATURA DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL DURANTE A
EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA.
Thiago de Moraes Kieffer.........................................................................................................................496

O GOVERNO MENEGHETTI E A PREFEITURA DE CANOAS/RS NOS MOVIMENTOS DE


CONSPIRAÇÃO CONTRA JOÃO GOULART (1963-1964)
Anderson Vargas Torres .........................................................................................................................504

A DEMOCRACIA E A PROPAGANDA MIDIÁTICA IPESIANA: UMA PROPOSTA DE AÇÃO


PARA UM BRASIL MODELO
Adriana Picheco Rolim..............................................................................................................................518

VIGIAR E CONTROLAR EM TEMPOS DE DEMOCRACIA: A DELEGACIA DE COSTUMES DE


PORTO ALEGRE COMO PORTA DE ENTRADA DO DOPS (1946-1964)
Estela Carvalho Benevenuto...................................................................................................................530

POLÍTICA E DEMOCRACIA NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA: A CRISE DOS MÍSSEIS E O


GOLPE DE 64 NO BRASIL
Charles Sidarta Machado Domingos...................................................................................................540

REVOLUÇÃO CUBANA: MASCULINIDADES E FEMINILIDADES


Andréa Mazurok Schactae.......................................................................................................................551

A DIRECCIÓN DE INTELIGENCIA NACIONAL CHILENA (DINA) E A CONEXÃO REPRESSIVA


COM OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
Renata dos Santos de Mattos.................................................................................................................562

A TRAJETÓRIA DA ELITE POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DOS GOVERNOS DO RIO GRANDE


DO SUL NO REGIME MILITAR
Ericson Flores...............................................................................................................................................573

CENSURA E REDEMOCRATIZAÇÃO NA DÉCADA DE 1980: O CASO DO FILME PRA


FRENTE, BRASIL
Vinícius Viana Juchem...............................................................................................................................584

INTELECTUAIS NEGROS/AS NA DITADURA CIVIL MILITAR VERSUS O APAGAMENTO DA


POPULAÇÃO NEGRA NA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE
Tairane Ribeiro da Silva...........................................................................................................................594

A ARTE DE FAZER POLÍTICA: O USO DO CONCEITO DE TÁTICAS DE CERTEAU PARA A


ANÁLISE DAS CAMPANHAS ELEITORAIS FEMININAS
Valdenia Guimarães e Silva Menegon.................................................................................................603

PARTE 7. PATRIMÔNIO E MEMÓRIA NA/DA CIDADE ....................................................614

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A COLUNA PRESTES 60 ANOS DEPOIS: DISPUTAS EM TORNO DO PASSADO E


CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA REGIÃO DAS MISSÕES DO RIO GRANDE
DO SUL
Amilcar Guidolim Vitor.............................................................................................................................615

PRÁCTICAS CURATIVAS Y MEDICINA ANCESTRAL EN EL LIBRO DE LAS RECETAS


Carlos E. Brizuela........................................................................................................................................629

CPHFRGS: UM LUGAR DE MEMÓRIA DA FERROVIA GAÚCHA


Cinara Isolde Koch Lewinski..................................................................................................................641

A REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE RECREATIVA E ESPORTIVA IMPÉRIO SERRANO NO


JORNAL “O GUAÍBA” DURANTE A DÉCADA DE 70
Ricardo Figueiró Cruz...............................................................................................................................650

“PER SACCO E VANZETTI”: UM MONUMENTO PARA DOIS ITALIANOS, E/IMIGRANTES E


ANARQUISTAS
Eduardo da Silva Soares...........................................................................................................................660

EMPREENDEDORES ITALIANOS EM PORTO ALEGRE (1870-1920): A MEMÓRIA


ESQUECIDA DA CIDADE
Egiselda Brum Charão...............................................................................................................................673

PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS E EXTROVERSÕES DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL SOBRE A


REDUÇÃO JESUÍTICA DE SANTO ÂNGELO CUSTÓDIO
Raquel Machado Rech...............................................................................................................................691

ENTRE A CIDADE SEREIA E A CIDADE LEVIATÃ: A MUNICIPALIDADE E A AGENDA


URBANA NO BRASIL OITOCENTISTA
Williams Andrade de Souza....................................................................................................................704

REVELANDO A MEMÓRIA PATRIMONIALÍSTICA DE CAXIAS-MA PELA LENTE DO


FOTÓGRAFO SINÉSIO SANTOS
Marinalva Aguiar Teixeira Rocha.........................................................................................................716

ABRINDO O BAÚ DAS MEMÓRIAS DE ARTISTAS DO GRUPO TEATRO SOMBRAS


Elizeu Arruda de Sousa.............................................................................................................................727

EL EPITAFIO. TEXTO QUE NARRA LA HISTORIA CULTURAL DE LAS SOCIEDADES


Jenny González-Muñoz.............................................................................................................................738

A FÉ RENOVADA: OS CAPITÉIS PARA O CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA


Juliana Maria Manfio..................................................................................................................................748

O MONUMENTO “TRIGO”: REIFICAÇÃO DOS MITOS DO TRABALHO E PROGRESSO


Adriana Carmen Brambilla.....................................................................................................................758

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MEMÓRIAS FAMILIARES: FAMÍLIAS PIPPI E PIGATTO NA QUARTA COLÔNIA IMPERIAL


DE IMIGRAÇÃO ITALIANA NO RIO GRANDE DO SUL/BRASIL
Liriana Zanon Stefanello..........................................................................................................................767

GIUSEPPE GARIBALDI O “HERÓI DOS DOIS MUNDOS”: IMAGEM E NARRATIVA NA


REPRESENTAÇÃO DO PERSONAGEM NOS 150 ANOS DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA
Luciano Braga Ramos................................................................................................................................781

UMBANDA: ESPAÇO FENOMENOLÓGICO DE INVESTIGAÇÃO NA GEOGRAFIA DA


RELIGIÃO
Mateus Machado Santos...........................................................................................................................798

A MEMÓRIA CELEBRADA E AS FRONTEIRAS IDENTITÁRIAS ERGUIDAS: OS PIONEIROS


DA MARCHA PARA OESTE EM NOVA XAVANTINA/MT
Natália Araújo de Oliveira.......................................................................................................................810

PATRIMÔNIO, ESPETACULARIZAÇÃO E HIBRIDISMO CULTURAL: A GEOGRAFIA DOS


MUSEUS DA CIDADE E AS APROPRIAÇÕES DA CULTURA MATERIAL NO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM GRAMADO (RS)
Daniel Luciano Gevehr e Franciele Berti...........................................................................................822

CONSTRUINDO A MEMÓRIA E A IDENTIDADE DOS HAMBURGUENSES ATRAVÉS DA


OBRA DE ARTE HAMBURGO VELHO
Quésia Katúscia Gasparetto de Souza.................................................................................................836

PARTE 8. A PESQUISA ARQUEOLÓGICA NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR DO


RIO GRANDE DO SUL.................................................................................................................847

A TRAJETÓRIA DA ARQUEOLOGIA NO RIO GRANDE DO SUL. NARRADA POR


TESTEMUNHA OCULAR
Pedro Ignácio Schmitz...............................................................................................................................848

PARTE 09 - INICIAÇÃO À PESQUISA.....................................................................................860

A ESTÂNCIA DE SÃO FRANCISCO XAVIER


Tiara Cristiana Pimentel dos Santos...................................................................................................861

NARRATOLOGIA ENQUANTO HISTORIOGRAFIA - INCURSÕES SOBRE A NARRATIVA DE


SANTIDADE NAS CARTAS DE FRANCISCO XAVIER
João Vitor dos Santos.................................................................................................................................873

REUNIR E CATEQUIZAR: A POLÍTICA INDIGENISTA DO SEGUNDO REINADO NO NORTE


DA PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO (1845-1889)
Alex Antônio Vanin.....................................................................................................................................887

O SISTEMA DE ASSENTAMENTO GUARANI NO ALTO VALE DO RIO DOS SINOS E A VISÃO


DOS MISSIONÁRIOS JESUÍTAS

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Jefferson Aldemir Nunes..........................................................................................................................898

A CIDADE NO MUSEU: REPRESENTAÇÕES DA CIDADE DE CANOAS/RS NO MUSEU HUGO


SIMÕES LAGRANHA
Julia Maciel Jaeger.......................................................................................................................................911

UM MOSAICO DE SENTIDOS: CARACTERÍSTICAS CONTRACULTURAIS DO MOVIMENTO


TROPICALISTA BRASILEIRO
Edemilson Antônio Brambilla................................................................................................................920

PROVIDÊNCIA, PROGRESSO E O AGENTE HISTÓRICO: AS FILOSOFIAS DA HISTÓRIA DE


HEGEL E TOCQUEVILLE
Nicolle Eloisa Lemos..................................................................................................................................932

A HOTELARIA EM PELOTAS NAS DÉCADAS DE 1930 E 1940 NA VISÃO DO JORNAL


DIÁRIO POPULAR
Larissa Teixeira............................................................................................................................................942

IRMÃOS EM FÉ: DEVOÇÃO, AUTONOMIA E SOCIABILIDADE. PERFIL DOS MEMBROS DA


IRMANDADE DE N. SRA. DO ROSÁRIO DOS PRETOS DE CACHOEIRA NA SEGUNDA
DÉCADA DO OITOCENTOS (1812-1820)
Henrique Melati Pacheco.........................................................................................................................953

FIEBRE ES CALOR NO NATURAL: OS REMEDIOS PARA FEBRES EM UM MANUSCRITO


INÉDITO DO SÉCULO XVIII
Leonardo Cirra Freitas…..……………………………………………………………....................................967

A SAÚDE E A DOENÇA NO BRASIL MERIDIONAL DO SÉCULO XVIII A PARTIR DA ANÁLISE


DA CORRESPONDÊNCIA E DE UMA OBRA DA BIBLIOTECA DO BRIGADEIRO SILVA PAES
Rogério Carvalho.........................................................................................................................................975

UM ESTUDO SOBRE A APROPRIAÇÃO E A CIRCULAÇÃO DE SABERES E PRÁTICAS DE


CURA NA AMÉRICA PLATINA A PARTIR DO LIBRO DE CIRUGÍA (1725)
Bernardo Ternus de Abreu.....................................................................................................................987

POSSIBILIDADES DE ANÁLISES SOBRE AS MULHERES IMIGRANTES ALEMÃS NO


CONTEXTO RIO GRANDENSE (XIX-XX)
Ananda Vitória Stumm e Samanta Ritter..........................................................................................996

A ATUAÇÃO FEMININA NO GRÊMIO ESTUDANTIL DO COLÉGIO FARROUPILHA (PORTO


ALEGRE/RS, 1946 -1964)
Juliana dos Santos Prestes.....................................................................................................................1009

ENFERMIDADES DE LAS MUGERES: DIETÉTICAS MEDICINAIS PARA OS MALES DE


MADRE EM UM MANUSCRITO INÉDITO DO SÉCULO XVIII
Leticia Mallmann de Souza...................................................................................................................1025

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APRESENTAÇÃO

Historiografia: Temas, Desafios e Perspectivas para os


Estudos Históricos Latino-Americanos

Como parte de seu “ofício”, na feliz expressão cunhada por Marc Bloch 1, os
historiadores costumam se confrontar com a necessidade de empreender e (re)
empreender esforços no sentido de pensar sobre seus instrumentos de trabalho, buscar
novos percursos e perspectivas de análise, ou seja, de atualizarem-se em termos teóricos
e metodológicos. Os eventos em que profissionais da área apresentam e debatem o
resultado de seus trabalhos de investigação costumam ser momentos favorecedores de
tais iniciativas.
O livro que aqui apresentamos está composto, justamente, por um conjunto de
trabalhos inéditos preparados para serem apresentados por ocasião do II Congresso
Internacional de Estudos Históricos Latino-americanos – II CI-EHILA, promovido, com o
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Capes, entre os
dias 13 e 15 de setembro de 2017, pelo corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. As atividades
desenvolvidas como parte do evento constituíram-se em uma continuidade ao I CI-
EHILA2, transcorrido em 2015, mas também estiveram inscritas nas comemorações dos
30 anos do PPGH Unisinos.
Efetivamente, em agosto de 19873 foi instalado o primeiro curso de Pós-Graduação
estrito senso da Universidade, o qual, tem sua qualidade reconhecida pela Capes4 que lhe
confere, desde 2010 a nota 5. Desde sua criação, a área de concentração do PPGH

1 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
2 Para aquela edição, o tema escolhido foi “Literatura, História, Deslocamentos”, o qual esteve relacionado
aos processos de deslocamentos contemporâneos e às discussões teóricas que aproximam diferentes
campos de estudo. Privilegiando abordagens interdisciplinares, nele, foi dada especial ênfase às
experiências migratórias recentes e aos desafios epistemológicos, éticos e políticos que elas propõem para
o campo das ciências humanas e dos estudos literários.
3 O Curso de Doutorado teve início em 1999.
4 Desde 1995 a Capes é a responsável pela avaliação dos cursos de Pós-Graduação no país.

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privilegia os Estudos Históricos Latino-Americano5, estimulando o debate de questões


relativas à construção histórica do subcontinente, suas relações com o mundo, os
processos que têm ajudado a definir as estruturas passadas mas, também, suas
perspectivas para o presente e para o futuro. Acompanhando a renovação dos paradigmas
que balizam os estudos na área e orientam suas perspectivas analíticas, procuramos
acompanhar os desafios analíticos que sugerem a fecundidade de estudos transnacionais,
assim como a emergência de novas problemáticas e atores em escalas menores, em
estudos que, em boa medida, estão representados nas páginas que se seguem.
Para conduzir as reflexões do Congresso, o tema escolhido foi “Historiografia:
temas, desafios e perspectivas”, buscando-se, sempre que possível, que elas estivessem em
consonância com a Área de Concentração do Programa. Ao realizarmos esta eleição,
expressamos nossa convicção sobre a pertinência da reflexão sobre as mediações que se
inscrevem entre “história” e “escrita”, cientes da necessidade de termos sempre presente
que lidamos com o discurso por meio do qual tempo e história se revestem de
inteligibilidade6.
Desta forma, as conferências, mesas redondas e simpósios temáticos do evento
estiveram orientados para a reflexão e discussão dos estudos historiográficos produzidos
sobre e na América Latina nestes últimos 30 anos. Neste sentido, buscamos, por meio do
II CI-EHILA, oportunizar uma oportunidade de discussão e debate transdisciplinar,
congregando pesquisadores do Brasil e do exterior, interessados em estabelecer diálogos
sobre o tema do evento.
E importante salientar que, ao congregar pesquisadores em Histó ria das Amé ricas,
o II CI -EHILA constitui-se em um espaço privilegiado para o dialogo acadê mico, já que, no
Brasil, nã o sã o frequentes as oportunidades para uma ampla discussã o de pesquisas nessa
á rea de estudos.
Desejamos, com o material aqui apresentado, disponibilizar aos leitores,
importantes análises sobre as contribuições historiográficas que, em diálogo com a Área
de Concentração do Programa, em estudos sobre mobilidades e hierarquias sociais, sobre
a construção dos Estados Latino-americanos, além de Missões, jesuítas e história
indígena.

5 A área de concentração do PPGH chamou-se inicialmente “Estudos Históricos Iberoamericanos”.


6
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

14
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ISSN 2527-1148

Paralelamente a um Simpósio que reuniu “jovens investigadores” ligados a


projetos de Iniciação Científica, oito eixos nortearam a apresentação dos trabalhos aqui
reproduzidos:

o A América ibérica no Prata: fronteiras, disputas e conexões


o Experiência e registro: a catequese e o convívio intercultural por suas múltiplas
vozes e atores (séculos XVI-XIX)
o Emancipações e Pós-Abolição
o E/i/migrações na América Latina: questões historiográficas
o Estudos historiográficos, homens de letras e intelectuais na América Latina
o Política e democracia no Brasil e na América Latina
o Patrimônio e memória na/da cidade
o A pesquisa arqueológica nas Instituições de Ensino Superior do Rio Grande do Sul

As páginas que se seguem, representam, pois, uma parte do trabalho realizado por
professores e alunos do Programa de Pós-Gradução em História da Unisinos, mas também
de colegas e parceiros, nacionais e estrangeiros, com os quais dialogamos no propósito de
fazer avançar a produção do conhecimento acadêmico sobre temas da história do
continente latino-americano. Consideramos que a publicaçõ es dos trabalhos que
compõ em esta obra se reveste de importâ ncia na medida em que permite que um pú blico
mais amplo do que aquele que frequentou nosso evento, possa ter contato com artigos
que, em nossa opiniã o, trazem contribuiçõ es relevantes para os debates sobre temas
fundamentais da Histó ria das Amé ricas.

Maria Cristina Bohn Martins


Coordenadora do PPGH-Unisinos

São Leopoldo, novembro de 2017.

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PARTE 1
A AMÉRICA IBÉRICA NO PRATA: FRONTEIRAS, DISPUTAS E CONEXÕES

Helenize Serres Soares


Juliana Aparecida Camilo da Silva
Maria Cristina Bohn Martins
Paulo Possamai

Este simpósio temático pretende reunir investigadores interessados no estudo da


história da América Ibérica na sua porção meridional, em especial na região platina.
Interessa-nos discutir processos de contato envolvendo disputas e conexões operadas na
região, articulando sujeitos e instituições europeias e americanas. Importam assim ao debate,
temas como os trânsitos e intercâmbios materiais e imateriais nas regiões de fronteira; a
circulação de ideias e práticas no contexto colonial e pós-colonial; as conexões estabelecidas
entre diferentes personagens, comunidades e instituições; os variados modos de atuação de
pessoas, grupos e instituições civis e religiosas; as resistências, hibridismos e mestiçagens
dinamizados pelas experiências do contato entre diversos grupos; e ainda as relações de
poder, disputas e conflitos. Finalmente, serão bem-vindas abordagens que contemplem o
tema do Simpósio de forma historiográfica.

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LITÍGIOS DE TERRA NO ESPAÇO MISSIONEIRO: O CASO DE LA CRUZ E


YAPEYÚ

Helenize Soares Serres

Os povoados missioneiros envolveram-se em muitas disputas, várias delas


relativas aos limites entre suas estâncias. Pudemos verificar que a maioria dos conflitos
envolveu querelas pela posse de terras em áreas onde elas estavam localizadas, sendo
essa uma das hipóteses que buscamos apresentar ao longo desse trabalho. Isto não
significa que outras disputas não tenham estado presentes, podendo girar em torno de
ervais, rebanhos7, ou de reservas, por exemplo, de cal.
Este tipo de situação se agravou especialmente “no contexto da re-ocupaçao da
Banda Oriental do Rio Uruguai, através da fundação de novas reduções” no final do século
XVII (BARCELOS, 2006, p. 451). No momento em que os jesuítas voltaram a mobilizar os
guaranis para retornar ao nordeste do Rio Grande do Sul, depois de terem abandonado
esta área de missão em razão das incursões bandeirantes das décadas de 1630 e 1640,
houve a necessidade de reorganizar a ocupação deste território. Passaremos a analisar
um dos litígios que se estabeleceram a partir de processos que foram conduzidos para
dirimir as discussões referentes ao direito sobre determinadas áreas, e que eram alvo de
Pareceres de juízes nomeados por Superiores para conduzir os processos8.
Um pleito de terras, por exemplo, envolveu os pueblos de La Cruz, também
chamada Asunción del Mbororé e Yapeyú, que igualmente recebe nos documentos o nome
de Nuestra Señora de los Reyes. Yapeyú foi a redução mais meridional de todas as da frente
missioneira, estando situada à margem direita do rio Uruguai, em frente à desembocadura
do rio Ibicuí. Este pode ser considerado como o limite sul do território de ocupação
guarani-missioneira. “El Yapeyu (…), fundada el año de 1626 sobre las márgenes del rio
Uruguay persevera en su suelo nativo en 29 grados 31 minutos de latitud, 321 y 2 minutos

 Doutoranda em História [CAPES/PROSUP] pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS. E-mail:
helenizeserres@gmail.com
7 É o caso do reclamo por parte dos yapeyuanos, relativamente a um rebanho de vacas referido por Norberto

Levington (2005, p. 39).


8 Os Processos consultados encontram-se no Archivo General de la Nación em Buenos Aires, no Fondo de la

Compañía de Jesús.

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de longitud con 1.587 familias, que son 6.400 almas” (PASTELLS, 1912, p. 781). Sua
estância, entretanto, estava localizada no lado esquerdo do rio Uruguai.
O pueblo de La Cruz, segundo o cônego João Pedro Gay (1863, p. 349), foi edificado
pelos jesuítas em 1629, na margem ocidental do rio Uruguai e ao confluente do arroio
Mbororé, umas dezoito léguas ao sul de Santo Tomé. Foi a princípio agregado ao de
Yapeyú, do qual se separou, vindo a se estabelecer definitivamente no lugar hoje ocupado
pela cidade chamada La Cruz, pelo ano de 1657.

A Cruz está collocada sobre uma collina que fazem distinguir de longe
suas altas palmeiras. Sua posição é mui pittoresca. O Uruguay rega os pés
d’esta collina emquanto a antiga Missão corôa a parte superior; d’onde a
vista se estende até a villa de Itaqui, duas leguas acima da Cruz sobre a
margem opposta do rio Uruguay, e d’onde se avistam do lado do Poente
os tres cerros, que se levantam como enormes tumulos ou pequenas
pyramides na planície (GAY, 1863, p. 349).

A pequena expressão demográfica dos pueblos de La Cruz e Yapeyú fez com que os
jesuítas os integrassem, entre os anos de 1651-1657. Esta providência, embora tenha tido
vida efêmera, trouxe motivos para posteriores disputas.

El pueblo no avanzaba ni en lo temporal ni en la cantidad de habitantes,


en 1641 y en 1647 se mantuvo el mismo tope del crecimiento. Por eso, en
1651 los jesuitas decidieron integrar la comunidad yapeyuana con la de
La Cruz. Pero esta unión tampoco dio buenos resultados y se separaron
en 1657. El proceso implicó la cesión de tierras de los yapeyuanos a los
cruceños hecho que, posteriormente, suscitaría varios litigios
(LEVINTON, 2009, p. 249 – 250).

Em 1688 já os povoados separados, houve uma certificação de limites sobre o


território pertencente a La Cruz. Segundo Arthur Barcelos (2006) ela incluía o espaço da
estância, apresentando uma linha de demarcação que acompanhava acidentes
geográficos, como rios, arroios e pântanos.

Al Pe. Thomas Donbidas de la Comp.a de Jesus y su Prov.1 en estas Prov.as


del Paraguay, Tucuman y Rio de la Plata a peticion y ruego del Correg.or
y Cabildo y demas casiques de este Pueblo de la Assunpcion de ñra S.ra del
Mborore, y su cura P.e Domingo Bodileu [Bodiler¿ Bodiles¿] y al Prov.1
Thomas Donvidas, y P.e superior Alonso del Castillo, y P.e Juan de Torres
que todos con instancias me anpedido [han pedido] ler mendedar
[mande dar] títulos de las tierras, q.e desde q.e se fundo este dicho pueblo
en el sitio em q.e el presente esta, porteen para mas justificacion de su

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derecho, y de que legitim.te las posen, para que en ningun tiempo nadie
ler moleste ni inquiete su pacifica posesion digo, y declaro por términos
de la estancia de la outra banda del Uruguay donde tienen sus vacas y se
llama el Ytaqui comenzando el termino de dicha estancia desde la otra
banda del Uruguay corre havia el orientale y llega hasya el A. Ybipira miri,
q.e es el ultimo termino de lo largita, y por un Cierrilo costado desde el B.
Ytaembe q.e es la cabezada del C. Mbututî vine [viene] corriendo siempre
dicho mbutuî por la outra banda hasta entrar al Uruguay dicho Mbutuî,
corriendo al Uruguay arriba hacia de S.to Thomé llega el ultimo termino
de lo Largo, D. al Caai mirî de esta vanda, y corriendo dicho Caai mirî
arriba hasta, E. el Yaqueri y passando dicho Aguapey F. el Yaqueri
saliendo un vaquito del Cupecandu, se va corriendo hacia el Sur desde, G.
el Chaitaqua que es un Caa pau H. y el Yapo catingi, que es un Caa pau
desde donde comienza el pântano grande I. del Guabirabi, y corre hasta
k. el Ararati q.e es un baxo q.e divide las chacras del Yapeiu de las deste
Pueblo, y viene hasta llegar L. al Mbacati q.e es un Arroyo q.e entra al
Uruguay y todas las tierras que caen de esta vanda de dicho Arroyo hasta
el Uruguay son las tierras de este Pueblo menos el xembia ha q. e esto es
de los del Yapeyu, y asi el termino fixo es desde la cavezada del Mbaeati
corriendo entra al Uruguay y pasando [ilegível] um baxio de pantanillo
M. del Pari riti se va corriendo hasta N. el Tembetari vine [viene]
corriendo entrar O. el Ybicuiti corriendo arriba el orrientele [orientale]
hasta P. el Ibiripa guasu, pues y asi ordeno y mando q.e ningun Pueblo, ni
para q.e cuide dele l Ynquiete el domínio y pareciendo dichas tierras aqui
mencionadas dentro de dichos linderos ni pase, ni haga pasar a algun de
su Pueblo a obtener posecion o domínio de dichas tierras contenidas em
dichos términos pues en Justicia se guarden a cada uno indemnes las
tierras q.e poseen, y los derechos con que los porteen, y por que coste
[conste] dói esta firmada de mi nombre. En doze de Julio de mil seis
cientos y ochenta y ocho años en esta Doctrina de la Assunp.on de ñra
Señora del Mborore (Apud: BARCELOS, 2006, p. 459-460).

As terras onde foi fundada a estância de La Cruz tinham originalmente pertencido


ao povo de Yapeyú, ficando as duas na margem oriental do rio Uruguai9. Um Parecer,
datado em 13 de novembro de 1696, apresenta várias queixas feitas pelos padres de
Yapeyú, referentes à perda de suas terras em favor da nova missão. Esse litígio iniciou em
1663 e se estendeu até o referido ano de 1696, quando ocorre o seu julgamento.
O conflito torna-se importante para nossa investigação, pois mostra todos os
passos do litígio, desde a reunião dos dois pueblos em uma missão, passando pela sua
posterior separação, a doação feita pelos índios de Yapeyú à redução de La Cruz, os

9 Sobre as datas de fundação de ambas estâncias, não encontramos documentos específicos, mas
presumimos que aconteceram junto às fundações das suas reduções, devido ao fato dos documentos que
tratam das reduções nesses períodos, trazerem informações sobre elas, especialmente ao tratarem dos
litígios de terras.

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argumentos apresentados, depois, pelos “yapeyuanos”, para reaver as terras que haviam
cedido, e a sua desistência deste intento.
Como veremos, no primeiro momento os Superiores tentavam resolver as
querelas, priorizando o “direito antigo” do Pueblo. Porém quando não chegavam a um
acordo, o problema era encaminhado para o Provincial autorizar a nomeação de juízes
para julgar a causa.

dixo q- era mejor p.ª cofirmarse en todo con lo q- N. P. Gen.l disponía, q- se


nombren jueces, y q- asi lo dexaria su Reve.ª señalados, a q- replico un
padre, pregutando, q- era lo q- avian de juegarlos Padres Jueces en la causa
presente?A q- respondio su Reve.ª del P.e Prov.l y dixo lo q- ande juzgar es
el derecho antiguo, q- tiene cada uno de los pueblos a dichas tierras sin
hacer casos de Donaciones de Indios, q- son pobres tontos no saben lo q-
se hacen, y se dexan engañar, con esto se quito el P.e q- preguntaba, y se
acabo la junta, q- dando en esto por ser esto verdad pido a V.R. lo
authorize (ya q- yo me e olvidado de sacar lo in scripts del P.e Prov.l) para
q- con esto de la voluntad de su Reve.ª a los Padres Jueces. = Siervo de V.R.
Santiago Ruiz. = y al pie la respuesta del P.e Sup.or como se sigue respondo
a lo q- V.R. me pregunta, y digo q- es asi verdad lo q- V.R. P.e Prov.l dixo
como en este papel se contiene, y porq- no pide otra cosa V.R. lo firmo de
mi nomb.e en S. Lorenso a 29 de Julio de 96 (Compañía Jesús (1676-1702).
Archivo General de la Nación (Buenos Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-
4).10

Nesse momento é possível perceber a importância da nomeação dos juízes para


analisarem todas as procedências do caso e finalmente conseguirem julgar de forma
neutra. Sem essa nomeação, os responsáveis do conflito são os Superiores e nesse caso
pode haver alegação de privilégios na sentença final, como se infere no trecho do
documento a seguir.

la determinacion antigua del P. Altam.o favoreciesse el P. Prov.l al Yapeyu


se le pondero con exageracion la falta q- le hacian aquellas tierras al
Yapeyu y detrimento que aquella donacion le avian ocasionado, no siendo
la legitima causa del detrimento de las haciendas del Yapeyu la falta de
aquellas tierras sino el aver faltado con las pestes que a padecido los mas.
Y mejor y indios q- tenia, y que sabian cuidar de sus ganados, y por la
misma causa de las pestes y hombres no aver podido ni los indios ni los
Padres cuidar tanto de ellos. ni poderlos poner indios q- ay aora atender,
y cuidar de tantas faenas como avia antes quando eran muchos. a que se
allega averles faltado muchos años cura proprietario, y [...] todos saben q-
se cuida con menos atencion, etc.a y que el cura que oy tiene es muy
achacoso y lida mucha parte del año sin poder [...] a tanto cuidado por su

10 Grifo no original, porém, aparentemente, os sublinhados desse manuscrito foram feitos depois do
documento, para destacar elementos conforme o leitor desconhecido.

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achaq.s. (Compañía Jesús (1676-1702). Archivo General de la Nación


(Buenos Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-4).

No caso em tela, para arbitrar a questão, foi designado o Padre Anselmo de la


Mata que recebeu papeis por parte do Yapeyú, que comprovariam seu direito sobre as
terras localizadas “entre el Ytaqui y Paririti, Uruguay y Ybicuyti, y son fronteras del pueblo
de La Cruz que las possee oy alegando el derecho que tiene a ellas el dicho pueblo del
Yapeyu, y posseerlas Injustam.te el pueblo de La Cruz aviendo visto los papeles que el
Yapeyu apresenta por su parte” (Compañía Jesús (1676-1702). Archivo General de la
Nación (Buenos Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-4). O padre desta missão alegava que
as terras que estavam assentadas no lado oriental do rio Uruguai, não eram de direito do
pueblo de La Cruz e, que a doação delas teria sido indevida.
A decisão da doação havia sido aprovada pelo visitador Padre Andres de Rada,
quando de sua vinda à região, mas não pelas instâncias superiores da Companhia. Com
isso, numa tentativa de resolver o problema, foi proposto, aos padres dos povoados
envolvidos, uma divisão das terras entre o Ibicuí e o Uruguai, e entre o Itaqui e o Butuí.
Nessa decisão levava-se em conta o tamanho das reduções, sua demografia e necessidades
que isto acarretava.
O conflito, conforme consta no parecer, iniciou em 1663, e nesse período o
Superior Christobal Altamirano11 tentou resolver a demanda após verificar as razões de
ambas as partes e consultar “muitos padres”.

Vistas la raçones de ambas partes, y consultandolas a muchos Padres:


determino lo siguiente, para que se quiten quiebras de Caridad, y aiga
buena correspondecia entre las dos reduciones q- en las lomas q- estan
enfrente dela Assump.n dela outra Vanda de Uruguai, no aren los dela dha
Doctr.a para sus sementeras, ni passen ganado alguno para repartar en
ellas, por el daño que de aquello se sigue a la Estancia de Yapeyu, y señalo
por termino de dha Estância, toda la tierra, q- esta entre Ybicuyti, y
Uruguai arriba hasta el Itaqui, con el Caá amba, que esta entre estos
terminos, en los quales, solo los del Yapeyu tengan sus ganados de yeguas,
y vacas. pero por lo dicho no se quita, q- puedan renovar q.do quisieren um
algodonal, y una chacra q- para el P.e q- cuida dela doctr.ª de la Assump.n
se a permetido, conq- no paseen mas la tierra adentro. La libertad conq-
los del Yapeyu andado sus tierras, y ganados maiores, y menores sin
interes alguno dexa comodandose p.ª acomodar alôs dela Assump.n pide

11O padre Christobal Altamirano nasceu em 1602 em Santa Fé (Argentina) e faleceu em 1698 em Apóstoles
(Misiones). Ingressou na Companhia de Jesus em 1617 no Paraguai e recebeu seus últimos votos em
Concepción, foi nomeado Superior dos guaranis em 1660-65 (STORNI SI, 1980).

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no los inquieten en lo q- tienen dela otra vanda del Uruguay, y asi se haga,
y observe, fecho en la Redu.n de S. Thomé em 23 de Feb.º de 1663
(Compañía Jesús (1676-1702). Archivo General de la Nación (Buenos
Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-4).

O litígio de terras, contudo, não havia encerrado e estava longe de ser resolvido.
Além disso, em 1688 houve outra doação de terra, também realizada pelo Cabildo e
Caciques de Yapeyú para a redução de La Cruz. A terra doada, igualmente a anterior,
estava localizada na margem oriental do Uruguai, e o ato foi oficializado pelo Provincial
Thomas Donvidas12 para ser, depois, anulado pelo Superior Simón de Leon.

por parte de la Cruz para probar mejor derecho se an presentado dos


Donaciones, la una del P.e Prov.l Thomas Donvidas, con asistencia del P.e
Sup.or Alonso de Castillo con consulta y consentimento de los Indios del
Yapeyu, como se refiere en ella, y outra Donacion de dichos Indios
ratificada delante del P.e Provincial Lauro Nuñez, y confirmada por el
mismo las quales Donaciones no paresse estan anulladas expressam.te
por la confirm.n del derecho antiguo, q- hiço el Padre Provincial Simon de
Leon, pues aun q- el Padre Sup.or afirma en el papel arriba citado, q- el
Padre Provincial dixo no se hiciesse caso de Donaciones de Indios
prudentem.te se puede Juzgar, que habla de las donaciones no
confirmadas, ni ratificadas por los Padres Provinciales sus antecessores
con examen. de la voluntad de los Indios, y sus ratificaciones, y el Padre
Superior no expressa dicha voluntad del Padre Provincial en la
Certificacion que da de lo que Padre Provincial Respondio a las preguntas,
que se refieren en dicho papel ni se le hiço la pregunta con esta
circumstancia que la juego [sic] considerable, y que se debia expressar
(Compañía Jesús (1676-1702). Archivo General de la Nación (Buenos
Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-4).

As doações realizadas, tal como nos casos aqui apresentados, traziam muitos
problemas, pois podiam ser depois contestadas. Além disso, havia problemas na
certificação das doações, algumas tinham o aval do Provincial, mas não apresentavam a
confirmação do Superior, que por sua vez poderia tornar a doação inválida. Percebe-se
que a falta de aprovação do Superior e ao mesmo tempo a confirmação do Provincial
estava levando a desentendimentos que podem ter sido responsáveis pelo litígio ter se
estendido no tempo.

12O padre Thomas Donvidas nasceu em Arévalo (Avila, Espanha) em 1618 e faleceu em Santiago do Chile
em 1695. Ingressou na Companhia de Jesus em 1635 e chegou no território da Província do Paraguai em
1640. Recebeu um cargo a partir dos 4 votos em 1656 em Asunción, foi nomeado Provincial do Paraguai em
1676-77 e visitador do Chile em 1692-95 (STORNI SI, 1980).

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el P. Prov.l dixere que no se hiciere cajo de donaciones de Indios. sin


añadir alguna otra palabra q- modificasse esta proposision. Porque cada
dia oimos, que se atribuyen a los Sup.s dichos q- ni los dixeron, ni los
imaginaron. y se suelen referir sus dichos no como se dixeron, sino como
el deseo que en cada uno se le hace parecer q- oye lo q- no se dice. o q- tome
lo q- le esta bien y dexe lo que no le esta bien del dicho. Y puedan tambien
avesse [...] dado de la formalidad con q- se dixo. y lo que hace dudar es
q- dicha proposision esta expuesta a resucitar muchos pleitos. pues ay
muchas doctrinas, que an dado a otras sus tierras, las q- legitimame
posseian. Como la Concep.n S. Xavier S. Miguel S. Nicolas S. Thomé. Yrapua
el y otras q- ignoro. Y incoriendo la voz de q- no valen donaciones de
Indios, cada uno querra cobrar lo q- a dado y asta un incendio de pleitos.
[...] q- muchas donaciones estan solo de palabra, o con algun papel simple
q- hace poca Fe. (Compañía Jesús (1676-1702). Archivo General de la
Nación (Buenos Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-4).

Um parecer datado em 13 de novembro de 1696, apresenta argumentos de ambos


os pueblos, referentes ao direito que sustentavam ter sobre as terras. O Padre Anselmo de
la Matta13 que foi indicado pelo Provincial Simon de Leon,14 para decidir sobre o litígio,
informa:

[…] por quanto por parte de Yapeyu se me an presentado unos papeles,


Instrumentos, y pruebas del derecho que tiene dicho pueblo del Yapeyu
a las tierras que estan entre el Ytaqui y Paririti, Uruguay y ybicuyti, y son
fronteras del pueblo de la Cruz que las possee oy alegando el derecho que
tiene a ellas el dicho pueblo del Yapeyu, y posseerlas Injustam.te el pueblo
de la Cruz aviendo visto los papeles que el Yapeyu apresenta por su parte,
y entre ellos un traslado autentico de una determinacion que hizo el P.e
Christoval Altamirano siendo sup.r em litigio, que sobre las mismas
tierras, tubieron antiguam.te los dos dichos pueblos (Compañía Jesús
(1676-1702). Archivo General de la Nación (Buenos Aires). Legajo 2
[409]. Sala IX 6-9-4).

Antes de apresentar seus próprios argumentos, de La Mata registra decisão


anterior do Superior Cristóbal de Altamirano para que cessassem as disputas entre as
duas missões, estabelecendo o limite entre elas, e proibindo aos de La Cruz (Assunción del
Mbororé) ter gado na estância de Yapeyú15. Para ele, contudo, esta determinação

13 O padre Anselmo de la Mata nasceu em Sevilha em 1658 e faleceu em Candelária em 1732. Destaca-se sua
idade, 38 anos, quando foi nomeado juiz pelo padre Provincial Simón de León para julgar o processo entre
Yapeyú e La Cruz. No documento onde explica a sentença se observa o conjunto das decisões e a conservação
de todos os documentos em um Arquivo (STORNI SI, 1980).
14 O padre Simon de Leon nasceu em Antequera, Espanha em 1630 e faleceu em Santiago do Chile em 1704.

Destaca-se sua idade, 33 anos, quando assumiu seu primeiro cargo em Asunción. Em 1695 foi nomeado
Provincial do Paraguay e em 1700 foi Visitador do Chile (STORNI SI, 1980).
15 Permitia, porém, que renovassem “q. do quisieren un algodonal, y una chacra q - para el P.e q- cuida dela

doctr.ª de la Assump.n se a permitido, conq- no paseen mas la tierra adentro”. O Parecer, datado de 23 de

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necessitava ser revista a partir de vários pontos que apresenta e que, ao final, serão
favoráveis a La Cruz, referida no documento por seu outro nome, Asunpción del M´bororé.
A revisão da suposta concessão por parte dos “yapeyuanos” poderia, de acordo
com ele, ressucitar antigos pleitos, envolvendo vários casos similares entre outras
doutrinas. Anselmo de la Matta sustenta que a desconsideração de doações como aquela
que estava sendo discutida, comportaria um grave risco: “pues ay muchas doctrinas, que
an dado a otras sus tierras, las q- legitimame posseian. Como la Concep.n S. Xavier S.
Miguel S. Nicolas S. Thomé. Yrapua el y otras q- ignoro”. Ainda segundo ele, muitas de tais
concessões eram feitas apenas “de palabra” ou com “algún papel simple q’ hace poca Fe”,
podendo-se com isso abrir-se caminho para um “incendio de pleitos” (Compañía Jesús
(1676-1702). Archivo General de la Nación (Buenos Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-
4)16.
O argumento de que Yapeyu teria sido prejudicada e enfrentava dificuldades por
conta das terras que perdera, haviam sido, na opinião deste julgador, superestimados. Os
problemas naquele momento vivenciados pela missão de los Reyes, decorreriam, no seu
entendimento, mais de uma peste que assolara o povoado e o privara de força de trabalho,
do que necessariamente da falta daquela porção de terra.
Já a justificativa por parte dos defensores da posição de Yapeyú de que a concessão
fora feita em presença de índios do cabildo e caciques, mas não de seu cura, não anulava,
para de la Mata, a cedência, uma vez que o ato envolvera a participação do Provincial
Tomas Donvidas e do Superior Alonso del Castillo, que tinham autoridade suficiente para
representar os moradores daquela missão. Finalmente, o último argumento, desqualifica
rumores de que os índios de Yapeyú haviam sido seduzidos por falsas promessas ou
ameaçados de castigos, caso não concordassem com a concessão de parte da estância que
agora pretendiam reaver.
Por tudo isto, seu parecer foi favorável a La Cruz, mas não encerrou a questão,
havendo ainda uma intervenção final datada de 2 de novembro de 1699, pondo fim ao

fevereiro de 1663, agora referido pelo padre Anselmo, concluía lembrando a “liberalidade” com que os
moradores de Yapeyú haviam cedido terra e gado para os de La Cruz quando eles necessitaram, na época
de criação do referida pueblo.
16 O processo que passamos a analisar trata-se do Parecer del Pe. Anselmo de la Matta de la Compañia de

Jesus sobre el esclarecimto de tierras del Pueblo de Yapeyu en el pleito seguido del de La Cruz, hecho en 13
de noviembre de 1696. Compañía Jesús (1676-1702). Archivo General de la Nación (Buenos Aires). Legajo 2
[409]. Sala IX 6-9-4.

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litígio e afirmando que não aceitaria mais reclamações por parte de Yapeyú. Ordena o
Provincial, que se cumprisse sua determinação, e se retirasse, o mais rápido possível, o
gado que tivesse indevidamente posto na área que a decisão reconhecia como pertencente
à estância de La Cruz.

No obstante el ajuste, en que V.R. dejo concordados, no faltan quienes


recurran [...], principalmente , por parte delos de el Yapeiu por lo
involuntario dela donacion de um Porrero ala reducion dela Cruz: Noseles
oiagamas endiferencia alguna delas que han quedado compuestas: Esto
dice N.P. Gen.(l) depues de averse recurrido a su Paternidad por parte de
el Yapeiu contra dicha donacion, y ajuste que no se oigamas al Yapeiu en
dicha demanda, y en virtud de dicho orden , ordeno que todas las
mudanzas, que se ubieren hecho el estado, en que lo dejo el P. Lauro
Nunez siendo Prov.(l) se disserelvan, y se vuelvan agones en el estado
dicho en que lo dejo dicho P. Prov.(l) Lauro Nunez sacando de halli los
ganados, y demas cosas, que ubiere puesto el dicho Pueblo de los Reyes
de Yapeiu, para que se restituía el Pueblo dela Assumpcion del el Borore
a su possession: que es fecho eneste Pueblo delos Reyes de el Yapeiu em
veinti ocho de Noviembre de mil seicientos, y noventa y nuebe (Compañía
Jesús (1676-1702). Archivo General de la Nación (Buenos Aires). Legajo 2
[409]. Sala IX 6-9-4).

Podemos assim, a partir deste caso, concluir que, como temos sustentado, as
relações entre as diferentes doutrinas nem sempre transcorriam em regime de
cordialidade e auxílio mútuo, podendo envolver longos conflitos que necessitavam da
intervenção de vários níveis de autoridade, inclusive do próprio Geral da Companhia.
Como vimos, mal-entendidos como o que acabamos de explorar, podiam fazer com que se
voltasse a discutir questões de doações já dadas como encerradas, como o caso de várias
doutrinas que cederam parte de suas terras.
Como foi possível acompanhar no caso acima analisado, um argumento acionado
para sustentar a posição das duas doutrinas litigantes, era o “direito antigo” que teria os
povoados. O tema da posse de terra foi algo complexo nas missões jesuíticas. Uma das
questões envolvidas está relacionada aos pueblos que eram formados por cacicados, ou
seja, parcialidades indígenas diversas ligadas as suas respectivas terras que passavam ao
pueblo que incorporavam. É importante atentar a essa informação, pois é uma das
questões chaves para entender a posse de terras. Norberto Levinton conta que “Yapeyú
se extendía al Norte de la Banda Occidental por lo menos hasta el río Aguapey. Una carta

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del padre Romero destaca la incorporación a Yapeyú del cacique Caarupa originario de
esa zona; su participación en el pueblo sustentó el Derecho Natural al territorio de la
comunidade yapeyuana” (2005, p. 39).
O referido autor sustenta que eram três os elementos que poderiam sustentar a
configuração do território das estâncias. Como pretendemos demonstrar eles acabam por,
de alguma forma, recortar o que a literatura chama igualmente de “espaço missioneiro”.
Os referidos elementos seriam: o uso cotidiano, acordos interéticos e o direito natural
(LEVINTON, 2005, p. 35).
Para Levinton o “uso cotidiano”, trata-se um elemento aplicado a um território
utilizado por diferentes grupos nativos com um fim de sustentação, a partir de um contato
com os missioneiros, mesmo que de forma prévia. Por exemplo, “es posible advertir en
mapas jesuíticos, entre mediados del siglo XVII y mediados del XVIII, los yaros
continuaron con su hábitat reconocidamente ubicado a partir del río Miriñay (límite fijado
por costumbre o acuerdo interétnico) hasta el Sur unto al río Mocoretá” (2005, p.36).
Seguindo a linha de pensamento do autor, o índio conseguia os títulos de suas terras
provando a utilização da mesma durante um longo período. Essa vai ser uma caraterística
presente especialmente em lugares próximos aos pueblos, zonas com algunas léguas de
distancia, em função disso esses territórios funcionaram como um acesso vigiado, com
objetivo de controlar a circulação de pessoas.
No segundo elemento, “acuerdo interétnico”, Levinton refere-se a relação
interétnica mantida pelos guaranis e charruas na região da Banda Oriental. Ele apresentou
vários documentos que trazem exemplos desse relação que ocorreu especialmente
através de parentesco e, a partir disso, permitiu até meados do século XVII o uso do
território nessa região.
E finalmente o “derecho natural”, que nada mais é do que algo relacionado ao bom
senso, ou seja, o direito do índio de conservar o lugar onde vive. Levinton explica que os
jesuitas ao longo das missões sustentam suas decisões no direito natural, porém, em meio
aos litigios de terra entre os pueblos, esse direito vai impor uma nova condição baseada
no direito de possidetis, no caso, fazer jus do território.
Trata-se de uma execessão a regra que possibilitou a condição a terra. Trazendo
essa discussão para o processo que estamos analisando. É unânime a decisão entre os
padres que a determinação fundada no Direito Natural não deveria ser discutida, “[...]

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como no haya otro mejor ni más bien fundado derecho...” (Compañía Jesús (1676-1702).
Archivo General de la Nación (Buenos Aires). Legajo 2 [409]. Sala IX 6-9-4), salvo por
algumas exceções, como no caso que o padre Anselmo de la Matta esclarece na
documentação acima analisada. Isto é, pelo direito antigo, as terras pertenceriam aos
yapeyuanos. Entretanto, não foi isto que prevaleceu. Nesse sentido, seguimos a ideia de
Levinton “independentemente de la evaluación del resultado, es destacable el análisis de
los hechos por los missioneiros. Demonstraron un gran respeto por los derechos y los
deberes de los indígenas. Sus opiniones se sustentaron en el Derecho Natural y en Derecho
Positivo” (2005, p.40).
Com isso, percebe-se os acordos firmados, entre os jesuítas e índios missioneiros,
em situações que mostram claramente os conflitos internos entre os pueblos momento em
que os padres buscam reestabelecer o equilíbrio e finalmente a consciência histórica de
posse pelo território que esteve presente durante todo o tempo. Apesar de haver,
portanto, critérios para reconhecimento de direitos, e processos que procuraram dirimir
dúvidas, os problemas transcorridos ainda podiam permanecer mesmo após a expulsão
dos jesuítas decretada em 1767, motivo pelo qual transformou-se grandemente a
administração dos povoados.

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LEVINTON, Norberto. El espacio jesuítico-guaraní: la formación de una región cultural.


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LEVINTON, Norberto. Las estancias de Nuestra Señora de los Reyes de Yapeyú: tenencia
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MAEDER, Ernesto; GUTIERREZ, Ramón. Atlas territorial y urbano de las misiones jesuiticas
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XVII e XVIII). Porto Alegre: ANPUH, 2006.

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1680/1757. MELIÁ, Bartomeu. (ed.). História inacabada futuro incierto. VIII Jornadas
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Fonte

Parecer del Pe Anselmo de la Mata de la Compañia de Jesus sobre el esclarecimto de tierras


del Pueblo de Yapeyu en el pleito seguido del de La Cruz, hecho en 13 de noviembre de
1696. Archivo General de la Nación, Buenos Aires. Compañía Jesús, 1676-1702. Leg. 2;
409; Sala. IX 6-9-4.

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FRONTEIRAS CULTURAIS EM TERRITÓRIOS DA REDUÇÃO DE JESUS


MARIA, RIO PARDO, SÉCULO XVII: CONFLITOS ENTRE PARCIALIDADES
GUARANI E OS JESUÍTAS

Tuani de Cristo
Luís Fernando da Silva Laroque

Introdução

Os Guarani iniciaram sua expansão em direção aos territórios sul da América


Meridional acerca de 3000 anos (NOELLI, 1993), estabelecendo-se em áreas que
atualmente configuram o estado do Rio Grande do Sul por volta do início da Era Cristão
(ROGGE, 2004). Nestes ambientes os Guarani movimentavam-se conforme a lógica
cultural do ñande reko, por meio, de organizações sociais e espaciais como os Guará,
Tekohá e Teîî (NOELLI, 1993).
Paulatinamente os Guarani foram se expandindo por estes espaços ocupando
territórios férteis com proximidades aos rios de maior porte e as áreas de vales,
ambientes propícios para que estas parcialidades reproduzissem o seu modo de ser
(NOELLI, 1993). Contudo, a partir do século XVII os territórios ocupados pelos Guarani
passaram a ser “invadidas” por outros grupos não indígenas, os jesuítas, com uma lógica
cultural distinta dos grupos indígenas situados nestes ambientes.
Neste contexto, situações de alianças e conflitos ocorreram entre os jesuítas,
representantes da Coroa Ibérica e parcialidades Guarani, principalmente em áreas onde
reduções jesuíticas foram fundadas com a intenção de “civilizar” estas populações
compreendidas como “selvagens”. Com base nisto a partir da análise de cartas ânuas


O estudo insere-se nos Projeto de Pesquisa “Arqueologia, História Ambiental e Etnohistória do RS” e
“Identidades étnicas em espaços territoriais da Bacia Hidrográfica do Taquari-Antas/RS: história,
movimentações e desdobramentos socioambientais” do PPG em Ambiente e Desenvolvimento da
Universidade do Vale do Taquari – Univates e conta com auxílio financeiro da Fapergs e CNPq.

Graduada em Licenciatura em História, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e
Desenvolvimento (Bolsista PROSUC/CAPES), Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES. E-mail:
tuanidecristo@gmail.com

Doutor em História, professor do Curso de Licenciatura em História e no Programa de Pós-Graduação em
Ambiente e Desenvolvimentos, Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES. E-mail:
lflaroque@univates.br

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referentes a estas relações entre os Guarani e os jesuítas, o objetivo do trabalho consiste


em analisar uma situação de conflito entre lideranças Guarani que não desejavam a
presença dos colonizadores nestes territórios e os jesuítas da redução de Jesus Maria,
situada nas proximidades do rio Pardo. A hipótese proposta com base na historiografia
indígena mais recente é que se teria estabelecido fronteiras culturais entre Guarani e os
jesuítas, onde alianças e conflitos foram orquestrados, conforme a lógica dos distintos
atores envolvidos.
A metodologia utilizada para a realização desta pesquisa fundamenta-se em uma
análise qualitativa e descritiva das fontes abordadas, isto é, procuraremos enfatizar os
dados que demonstrem a concepção indígena da situação ocorrida na redução de Jesus
Maria. Para que possamos interpretar estes dados fazemos uso da abordagem da
etnohistória que conforme Cavalcante (2011) fundamenta-se em uma pesquisa
interdisciplinar que nos possibilita reconstituir a história indígena, visto que eram
sociedade sem escrita e não nos deixaram documentos ditos oficias.
Para interpretar os dados retirados da Carta Ânua analisada, nos utilizaremos de
pesquisadores de diversas áreas, tais como História, Arqueologia e Antropologia. Para
construir o cenário de contatos entre a Companhia de Jesus e os Guarani nos
fundamentaremos em Porto (1954) e Becker (1992), no que concerne a questão das
lideranças Guarani e suas relações com os jesuítas, utilizamos Clastres (1979), Vainfas
(1995), Castro (2002) e Baptista (2002). Por fim, para estabelecer nossa hipótese do
estabelecimento de fronteiras culturais nos embasamos em Hartog (1999) e Fontana
(2005). Os procedimentos metodológicos utilizados para a realização desta pesquisa são
revisões bibliográficas sobre a temática indígena e análise da Carta Ânua de 1635 que
trata especificamente do contato entre Guarani e Missionários.

Conflito entre lideranças guarani e jesuítas na redução de Jesus Maria: o


estabelecimento de uma fronteira cultural

No século XVII após invasões dos bandeirantes nas reduções situadas nas
províncias administrativas do Guairá e do Itatin, os jesuítas iniciam a busca por novos
territórios, expandindo-se para as Províncias do Uruguai e do Tape no atual estado do Rio
Grande do Sul. Para se estabelecer e fundar reduções jesuíticas, os missionários

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precisavam estabelecer relações de alianças com as parcialidades indígenas localizadas


nestes territórios (BECKER, 1992).
A partir desta estratégia de alianças, no ano de 1633 os jesuítas e as parcialidades
Guarani localizadas nas proximidades dos territórios do rio Pardo fundaram a redução de
Jesus Maria. O padre Mola ao se dirigir para a área onde deveria ser fundada a redução de
Jesus Maria foi recebido com grande festa pelas parcialidades Guarani que, inclusive, já
haviam construído uma casa para o padre (PORTO, 1954; BECKER, 1992).
Nas proximidades da redução de Jesus Maria e do rio Pardo foram fundadas as
reduções de Santa Ana (1633), San Joaquin (1633) e San Cristóbal (1634), conforme é
possível identificar no mapa figura 1 (BECKER, 1992). Contudo, nem todas as
parcialidades Guarani aceitaram realizar estas alianças com os jesuítas e não
concordavam com a presença destes em seus territórios, assim como outros,
principalmente algumas lideranças espirituais concordavam com os ensinamentos
europeus, contrários a lógica do ñande reko.

Figura 1 - Mapa das reduções jesuíticas localizadas nas proximidades do rio Pardo e do Jacuí,
século XVII.

Fonte: Elaborado pelos autores a partir de Kreutz (2015).

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Este foi um dos motivos que gerou uma situação de conflito entre lideranças
espirituais e missionários na redução de Jesus Maria. No ano de 1635 o padre Taño ao
chegar em Jesus Maria se espanta com o abandono de diversas moradias, roças e oficinas
situadas no local (CARTA, Ânua de 1635 In: CORTESÃO, 1969). Ao questionar o que havia
ocorrido para alguns Guarani ainda presentes na redução, estes lhes informam que alguns
yeroquiharas haviam realizado ameaças aos Guarani reduzidos.
Conforme descrição do padre Taño estes yeroquiharas haviam rido dos
ensinamentos dos padres, afirmavam ainda que eram deuses e senhores dos espíritos das
montanhas Itaquiçeyas e Ybitipos17. Estes afirmaram que por serem deuses possuíam o
poder de criar as roças de milho e outros alimentos (CARTA, Ânua de 1635 In: CORTESÃO,
1969).
Após estas ameaças aos Guarani que faziam parte da redução, ocorreu um ataque
de ratões (Myocastor coypus) as roças de Jesus Maria as destruindo. Os yeroquiharas em
questão haviam assumido o ataque, afirmando que foram eles os mandantes da investida
o que teria assustado muitos destes Guarani que decidiram abandonar a redução e
retornar para os seus antigos territórios (CARTA, Ânua de 1635 In: CORTESÃO, 1969).
Ao saber da situação o padre Taño compreende que era necessário “desconstruir”
estes “feiticeiros mentirosos” e para isso, reúne alguns caciques e capitães da redução de
Jesus Maria para exigir que estes capturassem os responsáveis pelo ataque que estavam
estabelecidos em territórios próximos a redução. O líder do conflito teria sido um indígena
chamado Ybapiri que afirmava “[...] q el avia muerto antiguamente y avia buelto a vivir y
para esto tomo el nombre de um hechiçero q V.R. fue a coger al ygayriapipe llamado
ybapiri” (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO, 1969, p. 107).
O grupo liderado pelos caciques e capitães de Jesus Maria foram em busca desta
“junta de feiticeiros”, pois na lógica cristã do padre Taño era necessário capturá-los e
“desconstruí-los” frente aos indígenas da redução, demonstrando o quanto eles eram
“mentirosos” demonstrando que os indígenas não deveriam teme-los e nem mesmo
abandonar as reduções.
[...] y a la mañana les veo venir cargados de flechas y arcos y porras
diçiendo q iban por el hechiçero. alabeles el animo. fueron e cogieron três

17 Por falta de maiores informações não temos a localização desses locais mencionados.

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bellacos semejantes em três pueblecillos y el ybapiri se escapo (CARTA,


Ânua de 1635c In: CORTESÃO, 1969, p. 107).

Contudo, Ybapiri acabou fugindo, mas um dos seus aliados fora capturado e
passara por intensas provocações dos indígenas da redução para que demonstrassem o
seu poder.

[...] a todos los truxeron los índios bien açotados y manietados y aqui em
el pueblo hicieron burla dellos, los muchachos llenaron de todo con q le
vinieron a perder el miedo, diçiendo q hiçiesen venir alli los yaguareces y
los y itaquiçeyas y los ybitipos [...](CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO,
1969, p. 107).

Nestes trechos anteriormente arrolados da Carta que os yeroquiharas afirmavam


ter comandado a investida nas roças de Jesus Maria identifica-se o perspectivismo
ameríndio e a relevância que as lideranças espirituais tem na cultura indígena. Na lógica
cultural ameríndia não existe separação entre “natureza” e “cultura”, pois ambas fazem
parte de um mesmo universos sociocosmológico, isto é, humanos e não humanos
interagem cotidianamente (CASTRO, 2002). Neste universo de relações, conforme Castro
(2002), os xamãs possuem um papel fundamental, considerando que são eles os
responsáveis por mediar este diálogo entre os humanos e não humanos.
Castro (2002) se refere ao xamanismo como uma arte utilizada para realizar uma
política cosmológica entre estes seres. Isto porque a boa interpretação do xamã é aquela
que consegue compreender em cada evento, a ação intencional de cada agente. O
perspectivismo ameríndio personifica o não humano. Conforme o fato ocorrido em Jesus
Maria, o grupo que realizara as ameaças aos Guarani reduzidos dialogaram com os ratão-
do-mato (Myocastor coypus), assim como dialogavam com os espíritos das montanhas e,
por fim, diziam que poderiam se transformar em jaguares (onças), demonstrando este
poder xamanístico de romper com as barreiras cosmológicas.
Vale salientar que para os Guarani o jaguar é um animal temido, encontrá-lo em
uma mata pode ser considerado uma das experiências mais temíveis para estes indígenas,
principalmente porque ele ou os seus representantes sobrenaturais tem o poder de
devorar a Lua e até mesmo controlar a alma de um xamã inimigo (BAPTISTA, 2002). A
partir disto, compreende-se o temor causado por estes indígenas aos Guarani de Jesus
Maria quando afirmaram ter este poder de se transformar e controlar os jaguares.

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O relato de padre Taño não termina com a captura dos aliados de Ybapiri, neste
meio tempo, chegam notícias de que este grupo de “feiticeiros” estaria nas redondezas e
continuava “atemorizando” as comunidades Guarani locais. O Capitão Antoni se oferece
para ir até estas aldeias e tentar recolher informações sobre o local onde este grupo
estaria estabelecido. Contudo o Antoni descobre que este grupo era formado por “[...] una
junta de bellacos comedores de carne humana [...]” (CARTA, Ânua de 1635c In:
CORTESÃO, 1969, p. 107).
As informações fazem alusão de que o grupo era liderado por poderosas
lideranças espirituais, Chemboabaete, seu filho Yeguacaporu e o irmão do primeiro,
Yguarobi. Estes teriam uma aliança com os portugueses e teriam sido os verdadeiros
mandantes do ataque ocorrido a redução de Jesus Maria, enviando os Yeroquiharas. Estas
três lideranças haviam se reunido com um “lunático comedor de carne humana”, Apiçayre,
conforme descrito por padre Taño (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO, 1969). O grupo
havia se estabelecido em território do Tayaçuapé que conforme descrição de Porto (1954)
seria uma área situada entre o rio Pardinho e o Arroio Sampaio, ou seja, territórios
próximos das reduções do rio Pardo, Jesus Maria, San Cristóbal e San Joaquín.
Com o objetivo de capturar estes “rebeldes” os padres reúnem um “exército” de
Guarani totalizando 1000 guerreiros, abarcando índios das reduções de Jesus Maria, San
Cristóbal, San Joaquin e Santa Ana (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO, 1969).
Enquanto a força bélica se organizava um dos Caciques de Jesus Maria capturou mais um
aliado de Chemboabaete e companhia, este feito de prisioneiro ao ser interrogado
afirmava ser o filho do Sol, portanto um Deus.

[...] los indios viendo esto le començaron a ultraja y a tirar de la guasca en


q venia atado y a correr tirando del dando con el en tierra a darlecoçes y
a llevarlo arrastrando y a picarle con las flechas q si no voy corriendo ló
matan. el pobre desventurado del hechiçero quedo como sin sentido y
aunq despues le pregunte algunas cosas no consertava; estaba fuera de si
[...] (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO, 1969, p. 109).

Este confirmou que os líderes do movimento contra a presença dos jesuítas


nestes territórios eram Chemboabaete, Yeguacaporu e Yguarobi, aliados dos portugueses,
traziam consigo um menino, filho dos portugueses, vestido em um colete de Anta, grande
dançador. Afirmavam lutar contra a presença das reduções e dos padres nestas terras,

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pois desaprovavam os ensinamentos europeus (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO,


1969).
Atemorizados os padres e o exército Guarani das reduções, liderados pelos
capitães Antoni, Aryia, Guirarague, Tapayu e Manoe, além do Cacique Caaobi foi em busca
de capturar estes “bellacos”. Após uma intensa batalha os Guarani que faziam parte das
reduções conseguiu derrotar os “rebeldes de Tayaçuapé”, descobrindo que não havia
aliança com os portugueses e que os líderes do movimento não seriam Chemboabaete,
Yeguacaporu e Yguarobi, o grupo havia apenas se utilizado do grande prestígio que estas
lideranças espirituais possuíam entre os indígenas para assustar as parcialidades
reduzidas (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO, 1969).
Constatou-se ainda que um dos integrantes deste grupo que organizou a incursão
guerreira a redução de Jesus Maria era um indígena chamado de Aguaraguaçu que já havia
feito parte das reduções, inclusive ocupando o posto de Capitão. Entretanto, este tivera
um desentendimento com os jesuítas e fora deposto da função de liderança, por
intermédio dos missionários. Não aceitando a decisão, Aguaraguaçu fugiu de Jesus Maria,
juntando-se com caciques das redondezas que demonstravam descontentamento com os
ensinamentos dos jesuítas, organizando o ataque (CARTA, Ânua de 1635c In: CORTESÃO,
1969).
Neste ponto, é preciso salientar que para as sociedades indígenas a categoria de
liderança é ocupada por um indivíduo escolhido pela comunidade, sendo necessário que
o eleito possua características consideradas fundamentais para uma liderança. O líder
precisa ter prestígio com o grupo, necessita ter uma boa retórica, pois ele será o
representante da comunidade em áreas externa a aldeia, portanto precisa ter uma boa
comunicação, além disso, precisa ser um guerreiro (CLASTRES, 1979).
A partir disso, é possível compreender que não é qualquer sujeito que pode
ocupar este posto é algo que faz parte da lógica cultural do ñande reko Guarani, portanto
o padre não poderia ter interferido nesta questão. Sendo assim, uma das questões que
fundamentam a revolta é justamente o fato dos jesuítas interferirem nos ensinamentos da
cultura Guarani, conforme descrito pelos indígenas capturados.
O conflito arrolado nos possibilita ainda inferir sobre a possibilidade destes
“feiticeiros” serem Caraíbas. Conforme Clastres (1979) e Vainfas (1995) os Caraíbas
tinham eram grandes lideranças espirituais, semelhantes aos Pajés ou Xamãs, mas com

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maior poder de comunicação com o mundo não humano. Além disso, estes andavam por
diversas aldeias, de distintas etnias, mesmo inimigos e possuíam grande influência entre
todos.
Vainfas (1995) realizou pesquisas sobre o movimento dos Caraíbas Tupi em
territórios do atual estado da Bahia no período colonial demonstrando como estas
lideranças/profetas indígenas movimentavam-se entre as aldeias indígenas incitando a
luta contra os ensinamentos portugueses, seja em questões referentes ao cristianismo
quanto às questões dos trabalhos forçados nas lavouras portuguesas. Realizando uma
analogia com estas lideranças Guarani em análise que se movimentavam entre as aldeias
e reduções afirmando que os ensinamentos dos jesuítas eram contrários a cultura
Guarani, podemos inferir que alguns deles fossem Caraíbas.
Nesta perspectiva compreendemos que estas relações entre Guarani e jesuítas,
Caraíbas e jesuítas formaram fronteiras culturais que geravam conflitos. Os jesuítas
enxergavam os indígenas como “selvagens” que deveriam ser “civilizados” para viver
conforme a lógica do cristianismo. As reduções eram uma dos mecanismos utilizados para
tentar realizar “transformação”, entretanto, mesmo que algumas parcialidades indígenas
tenham aceitado estabelecer estas alianças com os padres e fazer parte destas missões, os
Guarani possuíam sua própria lógica cultural, consequentemente esta “salvação” não
ocorreria, ao menos não como o esperado.
Esta ideia do “bárbaro”/”selvagem” está presente em diversas cartas ânuas
escritas pelos jesuítas, principalmente quando referiam-se a estas lideranças, Caraíbas ou
Pajés, traduzindo para os seus superiores a justificativa para o trabalho da Companhia de
Jesus, conforme Fontana (2005) o europeu ao enxergar no “outro” o “diferente” precisa
combatê-lo, desconstruí-lo. Esta premissa torna-se visível neste fato analisado, os
indígenas que lutam contra a presença dos padres, afirmando serem deuses, comunicar-
se com o mundo não humano, necessariamente é o “diferente”, contrário a lógica cristã.
Desta forma, o padre Taño precisa “desconstruir”/”desmentir” estes “rebeldes
infiéis”, pois além de serem contrários a lógica cristã, também eram uma ameaça aos
jesuítas, pois eram lideranças que ocupavam exatamente o mesmo posto social que os
missionários, ou seja, há uma disputa de poder, ambos precisam comprovar quem está
correto. Evidencia-se isto tanto na captura dos indígenas e a provocação para que eles se
transformassem em deuses ou em jaguares, quanto a demonstração de poder, na

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perspectiva dos Caraíbas, ao afirmarem ter comandado o ataque dos ratões do mato
(Myocastor coypus) as roças de Jesus Maria.
Conforme Hartog (1999) o surgimento de uma fronteira cultural ocorre a partir
do momento que a e b entram em contato, estabelecendo um limite de interpretação
cultural entre ambos os grupos, isto é, as lógicas culturais se chocam formulando
interpretações distintas de uma mesma situação por ambas as culturas. Diversas
situações descritas nas Cartas Ânuas nos parecem formar estas fronteiras culturais, por
exemplo, ao retirar Aguaraguaçu do posto de Capitão, o padre responsável não estava
avaliando lógica cultural do prestígio de uma liderança e como ela é escolhida, apenas
interpreta o seu lado, isto é, possivelmente alguma “falta” cometida pelo indígena
contrária à lógica da redução.
Quando o padre Taño afirma que estes Caraíbas eram “feiticeiros” está
interpretando as ações destas lideranças através da lógica europeia, necessitando assim
capturá-los e colocá-los frente a um “tribunal” para que comprovassem os seus poderes.
Há ainda a referência a eles como “comedores de carne humana”, outro ponto não aceito
pelos europeus, pois em sua concepção cultural ingerir carne humana era um ato
impiedoso, contudo fazia parte das diversas culturas indígenas existentes na América.
Portanto, compreendemos que é possível afirmar que houve o estabelecimento de
fronteiras culturais entre jesuítas e indígenas.

Considerações finais

O presente trabalho proposto se encaixa nesta perspectiva de estar construindo


a história do Brasil a partir do olhar do indígena, demonstrando o seu protagonismo
frente a estas relações com os europeus, mesmo que a documentação utilizada tenha sido
produzida a partir da lógica do “colonizador”. E para que possamos “revisitar” este sujeito
indígena, muita vezes, “perdido” entrelinhas nestas documentações são necessários
debates com outras áreas que não somente a história, como a arqueologia e a
antropologia. Como mesmo frisou Maria Celestino de Almeida em mesa redonda realizada
neste evento: “Hoje, não há mais desculpas para não escrever a história dos indígenas”.
Foi a partir desta lógica que trouxemos as ações destes Caraíbas, Caciques,
Capitães e suas parcialidades Guarani que mantiveram relações de constantes

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negociações com os jesuítas, seja ao firmar alianças, quanto ao declarar guerra aos
ensinamentos cristãos. Mesmo que a proposta do simpósio temático, ao qual
participamos, tenha se fundamentado mais em uma relação de fronteira espacial,
tentamos demonstrar a fronteira cultural que também pode vir a se tornar uma fronteira
territorial e/ou interétnica. Neste sentido, procuramos avançar em estudos futuros para
estar analisando estas possibilidades.

Referências

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missionário. Scientia Unisinos. São Leopoldo: v. 9, n. 1, p. 61-64, 2002.

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Etnoarqueológico da Aldeia e da Subsistência Guarani e sua Aplicação e uma Área de
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NOTAS DE PESQUISA: APONTAMENTOS E REFLEXÕES SOBRE


CASOS DE INDÍGENAS CATIVOS EM BUENOS AIRES

Marcelo Augusto Maciel da Silva

Ao empreender a busca pelos indígenas das regiões pampeana e bonaerense que


durante o século XVIII foram feitos cativos em decorrência de incursões punitivas
espanholas, apresenta-se necessário buscar pelos órgãos de Justiça da cidade de Buenos
Aires para onde, em um primeiro momento, eles eram encaminhados. Os registros de suas
entradas e saídas nas instituições que, de alguma forma, estavam inseridas no âmbito da
justiça colonial, permite algumas constatações concretas como a identificação étnica e
social dos indivíduos que nelas estavam aprisionados, como também refletir sobre outras
questões como as práticas de justiça vigentes em meio à arquitetura penal colonial.
Como método investigativo optei por uma pesquisa relativamente ampla nos
documentos disponíveis no Archivo General de la Nación18 ao manusear caixas inteiras de
documentos relacionados à Casa de Recogidas de la Residência, ao Real Presidio de la
Barranca, à Real Imprenta de Niños Expósitos, entre outros19. O objetivo era encontrar
homens, mulheres e crianças indígenas aprisionadas nas instituições coloniais. Deste
modo, as fontes encontradas nas caixas destinadas aos arquivos provenientes do Real
Presidio, por exemplo, apresentam relações de presos, translados, aplicações de penas
pautadas na realização de trabalhos forçados, e o repartimento de índios; na caixa da Casa
de la Residencia, também constam entradas e saídas das reclusas, bem como os motivos
de suas apreensões.
Estes informes, além de agregar dados sobre os motivos dos aprisionamentos,
indicavam se, entre os relacionados, havia reincidentes. Na maioria dos casos, também há
menções notificando a qualidade da pena; isto é, se os indivíduos estavam sendo


Mestrando em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS/CNPq.
18 Na “pesquisa de campo” em si foram realizadas consultas, também, em outras instituições de caráter
arquivístico e público, bem como a busca de bibliografia inexistente no mercado editorial brasileiro.
19 Para ser mais exato, a pesquisa poderia ser dividida em dois momentos. Primeiramente, quando através

de palavras-chaves foram pesquisados todos os documentos digitalizados do acervo da instituição; e o


outro, onde caixas inteiras foram plenamente examinadas, tendo como recorte os anos referentes ao século
XVIII.

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“depositados”20 ou se vinham condenados por sentença promulgada pelos órgãos de


Justiça do período. Assim, é possível considerar os delitos para tais apreensões, os tipos e
as durações das penas, bem como quais os castigos físicos eram comuns.
A partir da observação do conjunto documental é possível perceber um complexo
sistema prisional onde categorias de análise estanques tendem a diminuir nossa
capacidade de representação no que concerne ao tratamento destinados aos cativos
indígenas, e também à própria população hispano-criolla21. Por exemplo, A Casa de la
Residencia, em especial, teria como atributo principal a correção e a recuperação social de
mulheres (em um primeiro momento, espanholas ou criollas) cujos comportamentos
eram considerados inadequados pelas autoridades locais, que por sua vez, possuíam a
prerrogativa para aprisioná-las, tal o caso de Rufina Rocha. Esta, casada com Joseph
Peralta, “estava separada del marido mas de quatro años, y vivia en um amanzebamiento
como demuestra su preñez”22. Estas mulheres, consideradas de vida escandalosa também
podiam ser levadas à Casa pelos próprios maridos. Assim, Antônio Garcia Leivas –
Sargento de la Asamblea de Dragones, e encarregado do recinto – informava em 02 de
janeiro de 1778 “haver puesto esta noche pasada en dha reclusion, à Maria Antonia de
Leon, a pedimento de su Marido Pasqual Encinay por no poderla separar del amazebam.to
con Valentin Villanueva”23.
Contudo, veremos que não apenas mulheres amancebadas eram alocadas no
recinto. Os documentos averiguados permitem constatar, também, o ingresso de escravas
e negras libertas. Dentre as últimas, para exemplificar, destaco os casos de Ysabel24,
Agustina Sentoren25 e Antonia Rosa26, respectivamente classificadas pelo encarregado da
Casa como negra, parda e mulata – todas livres. Em relação às escravas, por ora, a

20 Este tipo de aprisionamento não é nenhuma novidade na historiografia platina. Até o momento, ignoro a
produção histórica referente aos temas que envolvem a observação de cativos criollos e indígenas que tenha
esclarecido sua abrangência e delimitações jurídicas.
21 Não se trata de afirmar a existência de uma coerência estrutural do sistema jurídico colonial, e sim a

presença de aparentes contraditoriedades, que serão abordadas em momento oportuno. Pode-se adiantar
que estas “inexplicações”, por assim dizer, são os instrumentos operacionais para pensar as práticas de
justiça no período e espaço abordado.
22 Comunicado de 21/01/1778. Arquivo General de la Nación (AGN), Sala IX, 1840 (21-2-5).
23 Comunicado de 02/01/1778. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
24 Comunicado de 09/03/1778. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
25 Comunicado de 09/04/1778. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
26 Comunicado de 25/01/1778. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).

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transcrição alcançou apenas a Agustina San Martin27; e, junto à esta, há também o nome
de Nicolasa de el Castillo, depositada “por demente, y [para] evitar que handuviesse
perdida por las calles”28.
Também não é novidade que para este estabelecimento foram remetidas um sem
número de mulheres indígenas. Susana Aguirre (2006) ao propor a busca pelos cativos
aborígenes29 afirmou, inclusive, que na Casa de Reclusão “las epidemias de viruelas eran
frecuentes y producían estragos entre los prisioneros”. Até o momento30, a assertiva se
confirma através de cinco casos de índias pampas que morreram na instituição, sendo três
em dezembro de 177731 e as outras duas em janeiro de 177832 (destas, quatro receberam
os sacramentos do batismo e a extrema unção). Aguirre (2006) também apontou que as
índias cativas realizavam suas fugas quando “salían a lavar al río, situación que era
aprovechada en algunos casos para no regressar”. E sobre isto, Silvia Ratto (2010, p.48)
agregou que as índias “aprovechaban la oportunidad cuando salían de la Casa a hacer sus
compras en las pulperías”.
Poderíamos dizer que todas as mulheres destinadas à Casa de Residência foram
“depositadas”, se não fossem os casos de Maria Castillo33 e Narieta Lemu34;
respectivamente condenadas a quatro e dois anos de reclusão na dita Casa. E ali, havia não
apenas as índias pampas, mas várias outras “chinas tapes”35 também foram identificadas.
No entanto, também encontramos diversas crianças nativas de ambos os sexos, e,
inclusive, homens, como demonstra a Relación que manifiesta las Indias e Indios Pampas

27 DE ACOSTA, José Antônio. [27/07/1785] Razón individual de las Mugeres que actualmente existen en la
Casa de Recogidas de esta capital. Con especificacion de el estado de cada uma, calidad, edad, dia y año en que
se entraron, por quien fueron puestas y su proceder en dha Casa. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
28 Idem.
29 As pesquisas que envolvem o tema do rapto, até então – e ainda hoje, têm abordado a questão como uma

prática unilateral; isto é, alienavam os índios quando na condição de cativos, tratando-os apenas em seus
papéis de raptores.
30 O processo de transcrição das fontes ainda se encontra em fase inicial. No entanto, cabe destacar que a

busca se deu pela qualidade do conteúdo dos documentos em detrimento da quantidade. Em especial, foram
fotografados todos os casos de indígenas. As demais entradas e saídas foram obtidas à fim de refletir sobre
o papel da instituição.
31 Comunicados de (09/12/1777; 14/12/1777; 20/12/1777). AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
32 Comunicados de (13/01/1778; 18/01/1778). AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
33 Comunicado de 03/07/1789. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
34 Idem.
35 Comunicados de (03/04/1778; 25/03/1778; 02/02/1778; 17/03/1778). AGN, Sala IX, 21-2-5.

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que se hallan existentes en la Casa de la Residencia36, mas também outros, como se vê, por
exemplo, o caso de Domingo Perez, instalado como “demente”37.
Sendo assim, a Casa de la Residencia abrigava membros de populações nativas
quando aprisionados durante as incursões espanholas aos territórios aborígenes, pessoas
com problemas mentais, ex-escravas, mulheres negras livres e outras tidas por “de vida
escandalosa”, além de detentos sentenciados pelos órgãos de Justiça, como as recém
mencionada Maria Castillo, Narieta Lemu, o desterrado Joseph Norberto Benitez que
“desertó de la Casa de Residencia en 3 de Abril”38 de 1786, e Francisco Martinez que por
haver fugido da dita Casa “se ha puesto otro en su lugar”39.
Por ora, percebe-se, então, que a instituição estava, em geral, voltada a receber as
pessoas indesejadas; ou talvez seja melhor pensar, indivíduos cujos comportamentos
destoavam do esperado pela sociedade bonaerense, como as mulheres tidas por imorais,
os “dementes”, e os índios. No entanto, qual a lógica que explica, que para a dita Casa,
estariam enviando também indivíduos condenados judicialmente? E, além disso,
misturando homens, mulheres e crianças? Cabe ressaltar, que quando se tratava de
hispano-criollos, estes eram oriundos dos setores menos favorecidos economicamente –
dada a ausência do qualificativo Don e Doña - nos registros de seus ingressos, uma vez
que era praxe evocar tais distinções quando elas existiam (DE PALMA, 2009, p. 42).
Ao deslocarmos a ênfase para os detidos no Real Presidio de la Barranca, como era
de se esperar, identificamos que, além da presença de hispano-criollos40 cumprindo suas
sentenças, “Ha venido prezo a este Presidio de Orden del Ex.mo Sor Gen.l vn Indio Pampa41.
Porém, encontramos, também, vários outros nativos de distintas parcialidades como
Melchortatayandy42, oriundo do Pueblo de San Borja; um outro índio chamado Patrício43
– ao qual não há menção de sua origem; “vn Indio tape llamado Ciranto”44 e outro tape

36 DE ACOSTA, José Antonio. [19/07/1785]. Relacion que manifiesta las Indias e Indios pampas que se hallan
existentes en la Casa de la Residencia con especificacion de el numero de las antiguas, y de las que han entrado
en tiempos de el actual. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).
37 Comunicado de 09/12/1788. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
38 Comunicado de 14/06/1786. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
39 Comunicado de 18/08/1786. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
40 Comunicado de 05/03/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
41 Comunicado de 19/11/1768. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
42 Comunicado de 11/10/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
43 Comunicado de 17/06/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
44 Comunicado de 03/06/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).

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“llamado Diego” 45 – todos falecidos nas dependências do hospital do Real Presídio, no


momento destes registros. Nos referidos documentos, não há menção sobre se estes
nativos estavam sentenciados ou depositados; contudo, presume-se que foram
condenados pela Lei, uma vez que, quando eram destinados pela via do depósito, a
informação costumava estar presente.
Em 06 de março de 1770 ingressava ao Real Presídio de La Barranca Juan Andres,
mulato escravo “Destinado [sic] de la R.l Carz.l por seis m.s”, e “vn negro esclavo de D.n
Fran.co de Aedo por echar inmundisia en el camino de la Barranca”46. Embora aqui,
também não haja referências à condição dos presidiários, é mais fácil supor que tratava-
se de depositados, devido ao teor do delito, e por serem escravos. As assertivas se
reforçam através de Manuel e Ciriaco, ambos escravos “depositad.s en el Presidio à
disposicion de su amo”47. Assim, destaca-se que ao Real Presidio não eram enviados
apenas criminosos sentenciados pela Justiça. E mais, percebe-se que, tanto na Casa de la
Residencia, quanto no Real Presidio as duas formas de inserção – depósito e condenação –
eram comuns.
A situação de Juan Andres e do outro escravo – ambos transferidos da Real Cárcel
para o Real Presidio – demonstra, também, que havia um fluxo de prisioneiros que
interligava as instituições penais. Fato que se pode comprovar pelos decretos de 31 de
dezembro de 1784, ocasião em que todos os sumariados48, até então, depositados no Real
Cárcel foram transladados ao Real Presidio “aplicandole alos trabajos públicos por vago, y
sin destino”49. Também há o envio dos encarcerados – tanto espanhóis50, quanto nativos51
– ao trabalho nas obras públicas de Montevideo, bem como a distribuição destes pelas

45 Comunicado de 18/06/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).


46 Comunicado de 06/03/1770. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
47 Comunicado de 17/07/1785. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
48 O Sumário era um documento de vital importância na administração de Justiça criminal. Continha

evidências e testemunhos relacionados ao delito em questão. Ver mais em: BARRENECHE, Osvaldo. Dentro
de la Ley, TODO. La justicia criminal de Buenos Aires en la etapa formativa del sistema penal moderno de la
Argentina. La Plata: Ediciones Al Margen. 2001, p. 62-72.
49 TORRES. [-/-/1785]. Diferentes Providencias tomadas contra distintos indivíduos, que por sus excesos

remitió à esta superioridade desde las Conchas el capitan de milícias Don Bernardo Miranda y han passado
para su cumplimiento al Ingeniero Extraordinario Don Joaquin Antônio Mosquera. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-
6).
50 MOSQUERA, Joaquin Antonio. [01/01/1786]. Reparto y distribuicion de los sessenta y cinco indivíduos de

que consta el Real Presidio de esta Capital. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
51 ANÔNIMO. [26/10/1776]. Relación de los índios infieles que se han remitido a la Plaza de Montevideo, índias

que se hallan en la Casa de la Residencia, y párbulos que se han distribuído. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).

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demais instituições de Justiça que estamos examinando. Salienta-se que, fossem estas
pessoas julgadas ou condenadas, espanhóis, criollos, mestiços ou nativos, a aplicação da
pena – por ora, isentando a questão do castigo físico – era no mínimo semelhante para
todos os casos.
Desta forma, compreender os mecanismos de subordinação e dessocialização a
que foram submetidos os cativos indígenas – mais precisamente os oriundos das regiões
pampeana e bonaerense – requer conhecer as práticas de encarceramento que a
sociedade hispano-criolla dedicou aos seus próprios membros, uma vez que – ainda que
seja aparentemente – os aprisionados compartilhavam as mesmas instalações
carcerárias, sendo, inclusive, destinados aos mesmos locais para a realização de forçadas
atividades laborais como cumprimento de pena. Sendo assim, cabe indagarmos quais os
meios legais dispunham as autoridades hispano-criollas, no período, para realizarem a
punição e/ou correção daqueles que eram considerados transgressores.
Vimos que na documentação decorrente das comunicações internas do Real
Presídio de La Barranca e da Casa de la Residencia pôde-se constatar os dois tipos de
ingressos. O que diferenciava estas duas modalidades de encarceramento, uma vez que,
aparentemente, eram aplicadas indistintamente à indivíduos variados? Possivelmente,
uma boa parcela dos depositados estava a aguardar o deferimento dos órgãos
competentes até que se realizassem os trâmites processuais e possíveis sentenças. Se sim,
explicaria o porquê de, até agora, todos os relacionados ao Real Cárcel serem listados
apenas como depositados.
No entanto, por que pessoas que os tribunais julgaram criminosos eram alocadas
junto àquelas que foram depositadas sem terem cometido crime algum? A quem as
autoridades bonaerenses podiam depositar? E por que haviam depositados e condenados
a compartilhar não só a Casa de Residencia, mas também o Real Presidio? A julgar pelas
fontes examinadas, em um primeiro momento, temos a impressão de que as instalações
penais ou eram insuficientes diante do alto número de indivíduos considerados
transgressores, e, por isso, se misturavam pessoas de todas as estirpes, sexo e idade; ou
que as autoridades responsáveis pela Lei exageravam demasiadamente no cumprimento
de suas funções ao atuarem abusivamente no interesse da ordem, efetuando prisões, que
ao meu ver, buscava impor um controle social dos espaços públicos marginalizando
hábitos, conforme a condição étnica e/ou social dos indivíduos que ali se encontravam.

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Fontes históricas

ARQUIVO GENERAL DE LA NACIÓN (AGN):


ANÔNIMO. [26/10/1776]. Relación de los índios infieles que se han remitido a la Plaza de
Montevideo, índias que se hallan en la Casa de la Residencia, y párbulos que se han distribuído. AGN.
Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 09/12/1777. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 14/12/1777. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 20/12/1777. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 13/01/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 18/01/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 21/01/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 03/04/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 25/03/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 02/02/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 17/03/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 02/01/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 09/03/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 09/04/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 25/01/1778. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 03/07/1789. AGN. Sala IX, 1840 (21-2-5).
Comunicado de 09/12/1788. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6)
Comunicado de 14/06/1786. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 18/08/1786. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 05/03/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 19/11/1768. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 11/10/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 17/06/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 03/06/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 18/06/1769. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 06/03/1770. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).
Comunicado de 17/07/1785. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).

DE ACOSTA, José Antonio. [19/07/1785]. Relacion que manifiesta las Indias e Indios pampas que
se hallan existentes en la Casa de la Residencia con especificacion de el numero de las antiguas, y de
las que han entrado en tiempos de el actual. AGN, Sala IX, 1840 (21-2-5).

DE ACOSTA, José Antônio. [27/07/1785] Razón individual de las Mugeres que actualmente existen
en la Casa de Recogidas de esta capital. Con especificacion de el estado de cada uma, calidad, edad,
dia y año en que se entraron, por quien fueron puestas y su proceder en dha Casa. AGN, Sala IX, 1840
(21-2-5).

MOSQUERA, Joaquin Antonio. [01/01/1786]. Reparto y distribuicion de los sessenta y cinco


indivíduos de que consta el Real Presidio de esta Capital. AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).

TORRES. [-/-/1785]. Diferentes Providencias tomadas contra distintos indivíduos, que por sus
excesos remitió à esta superioridade desde las Conchas el capitan de milícias Don Bernardo Miranda
y han passado para su cumplimiento al Ingeniero Extraordinario Don Joaquin Antônio Mosquera.
AGN. Sala IX, 2405 (27-4-6).

Referências bibliográficas

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DISPUTAS HISTORIOGRÁFICAS E RELAÇÕES DE PODER EM ÁREAS DE


FRONTEIRAS INTERCULTURAIS: IMPLICAÇÕES
DA “HISTÓRIA OFICIAL”

Maira Damasceno

Este texto pretende refletir, a partir de perspectivas descoloniais, os


enquadramentos de memória presentes nas narrativas históricas “oficiais” iniciadas a
partir da invasão do continente americano, especialmente no Brasil. Nestes espaços de
grandes fronteiras culturais, o colonialismo imposto por europeus deixa marcas até os
dias de hoje, visíveis nas representações realizadas das sociedades que já habitavam o
continente. Além da homogeneização efetivada ao nomear as diversas comunidades
nativas de “índios”, ignorando completamente seus processos plurais de identidade, esses
grupos sofreram com a inferiorização e invisibilização de suas cosmologias, juntamente
dos modos de ser e fazer.
As relações e padrões de poder, consequências do colonialismo e que
posteriormente, nas formações nacionais e independências, foram mantidas e
aprimoradas, traduzem-se na colonialidade presente nas disputas historiográficas
envolvendo as diversas narrativas acerca a história local, mas que ainda não foram
“oficializadas”, entrando em conflito direto com as novas pesquisas e metodologias
intensificadas a partir do impulso dos Programas de Pós Graduação na década de 1980.
Novas perspectivas descoloniais, isto é, vistas a partir do sul global, vêm sendo
protagonistas nas pesquisas sobre a América Latina e suas particularidades históricas e
sociais, questionando as narrativas únicas, superficiais e positivadas que privilegiam
alguns grupos em prejuízo de tantos outros histórica e socialmente marginalizados e
invisibilizados.

Enquadramento da memória e disputas historiográficas

O eurocentrismo, herança do processo colonial, refletido atualmente em todo o


continente americano nas mais variadas áreas e estruturas sociais, causa grande


Licenciada em História e mestranda em Ciências Sociais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS. Bolsista CAPES/PROSUC.

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alienação dos processos de identidade americanos. Quando inserido na disciplina da


História, ocorre o que Michael Pollack (1992) chamou de “enquadramento de memória”,
ou seja, a imobilização das narrativas históricas, de acontecimentos individuais, coletivos,
institucionais ou particulares através da construção, herança, seleção e variação da
memória. Na América, esse processo de enquadramento foi balizado pela ideia da
superioridade racional europeia, onde todos os outros povos foram considerados em
estágio inferior de desenvolvimento e civilidade, inclusive sendo referenciados como
“povos sem história” e “elementos residuais”.

Segundo Ernesto Laclau (2006), o “problema” dos que não pertenciam a


nenhuma classificação na ordem do sistema vigente foi pensado por
Hegel em sua noção de “povos sem história”, isto é, aqueles que estão à
margem da historicidade, que não fariam parte do movimento geral da
humanidade, pois seriam como “elementos residuais” que restam após o
processo interno de cada nação no auto desenvolvimento das ideias.
(DAMASCENO, 2017, p.2)

Através dessa pretenciosa percepção hierárquica, fundou-se no continente


americano o colonialismo inferiorizante, catequizador e civilizador como justificativa da
exploração e roubo dos povos nativos.
Para a disciplina histórica, esse movimento fez com que a historiografia fosse
baseada em narrativas únicas, além de considerar apenas fatos e figuras
institucionalizadas proeminentes, ou seja, aqueles que eram considerados como parte
atuante da história, enquanto que os povos julgados “primitivos” pertenciam à área de
estudo da antropologia. Teoricamente, desde a década de 1960, esse modo de escrever
história já não tem funcionalidade, pois há o reconhecimento antropológico de que todas
as sociedades são históricas, devido suas dinâmicas e transformações ao longo dos
tempos, não existindo nesse sentido, sociedades primitivas. A partir disso, os estudos
históricos cresceram em pluralidade, principalmente ao rever questões já fechadas ou
pouco exploradas buscando novos protagonistas que outrora foram subtraídos das
narrativas. Segundo Maria Cristina Bohn Martins:

A nova postura implica, entre outras coisas, em tomar em conta “o ponto


de vista dos nativos” na operação de reconstituir os processos históricos
que lhes dizem respeito, em atentar para a emergência de novos grupos
e identidades e, por fim, em abandonar as compreensões de que os

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processos históricos coloniais eram marcados pela dicotomia entre a


aculturação, a diluição das identidades índias, de um lado, e a luta pela
manutenção de tradições imemoriais de outro. Para tanto, ela se nutre de
uma série de novas perspectivas teóricas, metodológicas e
interdisciplinares que apontam para uma maneira distinta de pensar e
escrever a história. (2009, p.15)

O que demonstra bem que historiadores têm se comprometido com novas bases e
vêm reescrevendo histórias a partir de novas perspectivas, teorias e metodologias. O
problema, porém, é que estes estudos ainda ficam restritos aos Programas de Pós
Graduação e com menor foco nas Graduações, quase não chegando às escolas básicas e
não fazendo parte das narrativas “oficiais” difundidas por secretarias de educação, cultura
e prefeituras, causando além de disputas historiográficas entre esses antigos
enquadramentos eurocêntricos e os novos conhecimentos realizados de forma mais
plural, sentimentos de engodo quando outras possibilidades discursivas são colocadas à
luz. Um bom exemplo é a narrativa oficial do Estado do Rio Grande do Sul. Desde os anos
pré escolares os sul riograndenses são treinados a aprender sobre a Revolução
Farroupilha (1835-1845), seus heróis, sua pretensa superioridade moral frente ao
opressor e escravagista Império brasileiro, seu hino, etc. Adicionada a essa narrativa, anos
mais tarde, outra de cunho essencialista. Nos anos de 1960 alguns estudantes da fronteira
do Estado, alocados em Porto Alegre, inauguram o “Movimento Tradicionalista Gaúcho”,
que adotado pelo Estado e mídias, fundiu-se com a narrativa dos Farroupilhas, criando
uma coesão enquadrada para a História do Estado. O problema está, quando as pessoas
descobrem que esta é uma narrativa única e positivada que somente leva em consideração
uma pequena parte dos acontecimentos, uma identidade construída e fixada por uma
pequena parcela da população criando, muitas vezes, falas ressentidas como a deste
universitário:

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20 de setembro

Fonte: Facebook, 2016.

O desfile de 20 de setembro de 2017, na cidade de São Leopoldo, tinha como tema:


“Farroupilhas: idealistas, revolucionários e fazedores de História”, carregado em uma
faixa por alunos do município. A ideia não é a exclusão da narrativa farroupilha, mas sim
o equilíbrio, a abertura para outros discursos, mais amplos e plurais que coincidam com
as novas pesquisas realizadas sobre o assunto. É necessário enfrentar a realidade e pensar
sobre as narrativas oficializadas e engessadas por Estados,

Nesse sentido, a História oficial constrói uma ilusão de cidadania já que


todos são, em tese, convidados a participar, [...] esta história que se
apresenta como guardiã da memória oficial, exclui a grande maioria. Na
realidade, ela constrói um projeto de cidadania para uns poucos eleitos,
mas busca apresentá-lo como se abarcasse a todos indistintamente.
Portanto, tem por base a exclusão onde o Estado, unifica e homogeneíza
as diferenças em nome dos interesses supostamente nacionais.
(ALCÂNTARA, Alzira Batalha, 1997 p.124)

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Com os inúmeros avanços dos estudos acadêmicos, é inviável que ainda se


reproduzam narrativas excludentes que não favorecem os processos de identidade e
educação para a cidadania, além de causar grande frustração e insatisfação em quem não se
sente participante dessas histórias.

Perspectivas pós coloniais, descoloniais e a História

As perspectivas pós coloniais vêm sendo formuladas desde a década de sessenta a


partir dos contextos de luta por independências no continente africano. Segundo Stuart
Hall é importante saber que “(...) não sinaliza uma simples sucessão cronológica do tipo
antes/depois. O movimento que vai da colonização aos tempos pós coloniais não implica
que os problemas do colonialismo foram resolvidos ou sucedidos por uma época livre de
conflitos” (2003, p.56). Também, é fundamental ter conhecimento que “(...) el
pensamiento decolonial se diferencia de la teoría poscolonial o de los estudios
poscoloniales en que la genealogía de estos se localiza en el postestructuralismo francés
más que en la densa historia del pensamiento planetario decolonial (MIGNOLO, Walter,
2007, p,27). A proposta descolonial não pretende essencializar os processos e povos, mas
sim apresentar e aproximar a realidade latino americana a partir do seu próprio contexto
e particularidades históricas para agir como uma alternativa aos discursos idealistas,
excludentes e colonialistas, sugerindo a superação do que estava fixo e predeterminado
(exteriormente). Então, não se trata de reverter o processo do colonialismo, mas de
questionar suas certezas e imposições para termos o reconhecimento de outras histórias,
pois as estruturas de poder coloniais fundadas a partir da modernidade, com bases na
racionalidade europeia,

[...] produziram as discriminações sociais que posteriormente foram


codificadas como ‘raciais’, ‘étnicas’, ‘antropológicas’, ou ‘nacionais’,
segundo os momentos, os agentes e as populações implicadas (...) é como
dizer que são fenômenos naturais e não da história do poder (QUIJANO,
1992, p.12).

Estas construções, presentes nas “histórias oficiais”, são o resultado da dominação


colonial, hierarquizante, diferenciadora e excludente. Se continuarem a ser naturalizadas
e super valoradas como tradições imutáveis e essenciais, não avançaremos para que

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outras narrativas, participações e protagonismos sejam visibilizados e reconhecidos.


Estaremos apenas realizando, segundo Catherine Walsh (2012) uma “interculturalidade
funcional”, ou seja, que funcione ao Estado. Falamos de diversidade, produzirmos novas
histórias, porém sem aplica-las às estruturas do próprio Estado. Aqui, situamos as
“Histórias Oficiais” propagadas e comemoradas ano após ano, como o principal
impedimento da pluralização das narrativas históricas e uma efetiva educação para a
cidadania através das aulas de história. Nesse caso, segundo a mesma autora, o ideal a ser
realizado, seria uma “interculturalidade crítica”, que contesta e discute as estruturas
diferenciadoras presentes em nossos contextos acrescentando novas possibilidades de
interação e sociabilidades.
3 Conclusões
A pluralidade das narrativas históricas é realidade no interior das academias,
porém, para a grande maioria da população que não frequenta as universidades e
principalmente nas escolas de educação básica, a narrativa é pautada ainda pelo discurso
oficializado por prefeituras, legitimado por Secretarias de Governo e impulsionado por
mídias, centros de memória e até setores universitários representados por grupos
interessados na reprodução de certo modelo cultural.
A falta de diversidade nas narrativas oficiais causa desde sentimentos de baixa
auto estima, por não se identificar, nem sentir-se parte da construção histórica, até
descrédito do próprio discurso histórico. As representações realizadas atualmente sobre
os povos indígenas e afrodescendentes nas escolas vão refletir diretamente na maneira
de se relacionar dos grupos étnicos, podem auxiliar no combate ao preconceito ou reforça-
lo com concepções desatualizadas.
Desde a invasão da América a partir de 1492 e a instalação do modelo racionalista
europeu, as populações nativas têm sido nomeadas, desqualificadas, marginalizadas e
invisibilizadas em suas cosmologias. As narrativas históricas, com suas teorias
positivistas, somente legitimavam essas concepções preconceituosas, porém, atualmente
novos entendimentos teóricos e metodológicos são amplamente aceitos e utilizados pelos
pesquisadores. A chamada “Nova História Indígena” tem tido uma postura descolonial à
medida que reconhece e busca dar visibilidade a outros pontos de vista, porém
institucionalmente, essa postura não tem sido adotada oficialmente pelas estruturas do
poder governamental, causando prejuízo, principalmente, aos alunos da escola básica que

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tem entre seus conteúdos os estudos regionais, muitas vezes desconectados de seus
contextos e sem acesso de pesquisas recentes sobre as temáticas que não são oficializadas.
Acredita-se que uma perspectiva plural para o ensino de história em áreas de
fronteiras interculturais seja possível através de outros protagonismos, novos
reconhecimentos oficiais e produções historiográficas. Já há diverso e farto material
produzido sobre as trajetórias de grupos invisibilizados historicamente, é preciso
trabalhar em conjunto com estruturas e escolas para divulgar de maneira equilibrada
todas as referências disponíveis.

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CRIMINALIDADE E EXECUÇÃO DA JUSTIÇA NOS DOMÍNIOS


PORTUGUESES DA FRONTEIRA PLATINA (SÉCULOS XVIII E XIX)

Andréia Aparecida Piccoli

Este trabalho apresenta considerações sobre a criminalidade e a execução da


justiça na vila do Rio Grande e na freguesia do Rio Pardo, e suas respectivas espacialidades
fronteiriças, durante a década final do século XVIII e a década inicial do século XIX. A
região fronteiriça do Rio Grande e do Rio Pardo, localizada na América portuguesa,
caracterizou-se pela intensa beligerância e instabilidade geradas pela disputa geopolítica
entre os reinos de Portugal e Espanha. Esse fator causou a promoção da violência neste
espaço, bem como especificidades nas práticas criminosas e na realização da justiça.
A partir de análise do Fundo Autoridades Militares do Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul (AHRS), conjectura-se que a prisão dos criminosos portugueses na vila e
freguesia mencionadas esteve associada não somente aos agentes da estrutura judicial da
Coroa52, tais como juízes ordinários, inclusive insuficientes para o vasto território da
capitania, como também ao capitão-general e governador e aos comandos militares
fronteiriços. Sendo assim, a justiça foi realizada por militares.
O termo fronteira designava duas áreas específicas para os sujeitos do período,
trata-se das denominadas “fronteira do Rio Grande e “fronteira do Rio Pardo”. A primeira,
localizava-se afora a vila do Rio Grande, que representava o último núcleo de colonização
portuguesa ao sul. A segunda, encontrava-se além da freguesia do Rio Pardo, que tinha o
mesmo papel para a colonização portuguesa à oeste, contando, a partir de 1801, com a
anexação dos sete povos missioneiros ocidentais. Em síntese, essas fronteiras


Mestranda em História Regional pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo
Fundo, sob orientação do professor Dr. Alessandro Batistella. Esta pesquisa conta com o apoio do Programa
de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Particulares (PROSUC) da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), assim como com o auxílio da Universidade de
Passo Fundo.
52 Segundo a classificação criada por Arno e Maria José Wehling (2004, p. 37 – 42), a justiça da Coroa esteve

circunscrita aos representantes da justiça real diretamente exercida (ouvidores de comarca,


desembargadores dos tribunais de relação, juízes de fora), à justiça concedida no âmbito municipal
(exercida pelos juízes ordinários) e à jurisdição concedida da justiça eclesiástica – as duas últimas
correspondentes aos braços coloniais da estrutura judicial portuguesa.

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correspondiam a espécies de “corredores” comuns de passagem entre os territórios


espanhol e português (GIL, 2002, p. 23). A partir do trabalho de Tiago Gil, fica evidente
que esses corredores eram espaços privilegiados para a ação de contrabandistas.
Tiago Gil (2002, p. 23) compreende que esta definição de fronteiras é formulada
após o Tratado de Santo Ildefonso (1777), com a retomada lusa da vila do Rio Grande
(1776). Esse tratado objetivou encerrar as disputas territoriais entre Portugal e Espanha
na América Meridional, à época a beligerância se prolongara por 13 anos. Para tanto, o
tratado definiu que a Colônia de Sacramento, a Ilha de São Gabriel (no atual Uruguai) e os
Sete Povos das Missões (atualmente na área oeste do estado federativo do Rio Grande do
Sul) ficariam sob posse da Espanha. Enquanto, Portugal exerceria posse sobre a margem
esquerda do rio da Prata e, novamente, sobre a Ilha de Santa Catarina, ocupada pelos
espanhóis no mesmo ano.
Por outro lado, para os próprios agentes históricos o termo fronteira era
polissêmico. Motivo pelo qual, a palavra fronteira também era utilizada em um sentido
mais amplo, definida como o conjunto de territórios portugueses passíveis de invasão
espanhola. Dessa forma, caracterizava-se como uma região instável de onde vinha o
perigo de ataques inimigos (GIL, 2002, p. 23). Em consequência disso, a fronteira foi
marcada pela violência e por atividades ilícitas.

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Figura 1 - Planta do Continente de São Pedro

Por mapa de Antonio Igacio Rodriguez de Cordova (1780), referente ao Continente do Rio Grande, ou
Capitania do Rio Grande de São Pedro, observamos representados os territórios pertencentes à vila do Rio
Grande, em aguada amarela, e à freguesia do Rio Pardo, em aguada azul. É perceptível, primeiramente, a
grande extensão pertencentes às vila e freguesia em questão, bem como estes dois locais caracterizam-se
como fronteira com os domínios espanhóis. Autor: CORDOVA, Antonio Igacio Rodriguez de. Planta do
Continente do Rio Grande. 1780. Disponível em: IHGRS. Capítulo III – Mapas do Rio Grande do Sul. Disponível
em: < http://www.ihgrgs.org.br/mapoteca/cd_mapas_rs/CD/imagens/mapas/cap_3/604-348.htm>.
Acesso em: 17 set. 2017.

Não menos importante é compreender que a fronteira não se constitua,


simplesmente, como uma faixa de exclusão. Na prática, a fronteira de distinção política
projetada pelas Coroas ibéricas, no extremo sul da América portuguesa, existiu para os
habitantes como um espaço social. Os vassalos dos Impérios “habitavam espaços
contíguos e conviviam frequentemente, fosse por meio de ações destrutivas como a
guerra e o roubo de gado, fosse por meio de comércio ou de devolução de desertores e
escravos fugidos, como frequentemente os oficiais militares praticavam” (COMISSOLI,
2014a, p. 28). Assim, para os portugueses do século XVIII e início do século XIX, a fronteira
era um fenômeno de porosidade, permitindo o trânsito de pessoas, ideias e mercadorias.

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Contudo, destaca-se que não se constituir como uma faixa de exclusão não significa
a existência de uma fluidez completa; ou a fronteira perderia sua razão de ser. Para
Mariana Flores da Cunha Thompson Flores, o limite não era uma barreira instransponível,
mas o horizonte de expectativas disponível aos atores e as estratégias que eles podiam
adotar eram dimensionadas pela ação do Estado (THOMPSON FLORES, 2004, p. 78).
Embora não se possa falar em limites nacionais, pode-se dizer que mesmo no período
colonial os limites delimitavam domínios imperiais distintos. Nesse sentido, o contato
refere-se às relações entre sujeitos fronteiriços, e a separação fica a cargo, principalmente,
da atuação institucional (THOMPSON FLORES, 2014, p. 80).
A realização da justiça pelos comandos militares fronteiriços provavelmente está
relacionada à posição social privilegiada desses. Devido à defesa territorial, tornaram-se
protagonistas político-econômicos e mediadores das relações entre a sociedade e a
guerra. Nota-se que o protagonismo dos comandos militares está associado à própria
constituição do espaço fronteiriço. Segundo Luis Augusto Farinatti:

Nas últimas décadas, diversos especialistas tem apontado a centralidade


das relações de dom e contra-dom na própria estruturação do Antigo
Regime português. Genericamente, podemos dizer que elas assumiriam,
entre outros aspectos, a forma de prestação de serviços pelos súditos, que
colocariam suas fazendas, carreiras, malhas de dependentes, por vezes
mesmo o risco de suas vidas, em atividades que trariam proveito para a
Coroa. Essa lealdade era recompensada com a concessão de mercês, que
podiam envolver desde cargos, favores e honrarias até recursos
materiais, como a doação de terras em sesmarias, por exemplo. Muitos
têm sido os trabalhos que apontam a vigência dessas práticas e valores
não apenas no Reino, mas nos mais diferentes confins do Império
Português e, assim, também na América Lusa. Elas certamente sofreram
modificações ao longo do período, e tanto mais a partir da época
pombalina. Porém, em diversas partes do Império, muito dessa lógica
seguia sendo importante na orientação das ações dos sujeitos, mesmo em
fins do século XVIII. Ela, sem dúvida, esteve presente nos avanços
territoriais, nos combates e alianças com indígenas e nas contendas
contra as forças hispanocoloniais, no sul da América. Sobretudo, as
práticas de apropriação e redistribuição de recursos a partir da conquista
foi um fator estruturante de uma hierarquia social desigual e assente em
preceitos do Antigo Regime, conforme tem mostrado trabalhos recentes
sobre o século XVIII no Rio Grande (2010, p. 86-87).

Portugal, para a manutenção de sua unidade imperial, tinha a necessidade de


recorrer a alianças com elites locais, as quais colocavam a serviço de Sua Majestade seus

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recursos econômicos, humanos e bélicos. Em contrapartida, a Coroa via-se obrigada a


conceder às elites mercês e regalias.
Por ser uma região conflituosa, formou-se na sociedade fronteiriça sul-rio-
grandense uma elite militarizada, peça importante na defesa do território português,
possuidora de prestígio e reconhecimento social e, portanto, capaz de intervir nas mais
variadas esferas da sociedade local.
O coronel Rafael Pinto Bandeira (n. 1740 – f. 1795), comandante da Cavalaria
Ligeira, é um exemplo desta elite militarizada. Ele foi duas vezes governador interino da
Capitania do Rio Grande de São Pedro, a primeira de 1784 a 1786, e a segunda de 1790 a
1795. Foi, também, um dos maiores contrabandistas de sua época. Aliás, chefe do único
“bando” de contrabandistas da fronteira Meridional do período, o qual constitui-se uma
organização vertical dentro da sociedade, arregimentando desde peões até altos oficiais
milicianos (Gil, 2002). Nesse sentido, outro ponto a se destacar é que o marechal Manuel
Marques de Souza, comandante da Fronteira do Rio Grande, é referido como um dos
herdeiros políticos de Pinto Bandeira (GIL, 2002, p. 180).
Ademais, é notável a importância militar para o controle da criminalidade, pois,
devido à inexistência de polícia, o papel policial coube às tropas regulares, as quais
vigiavam a fronteira por meio de postos militares e guardas fronteiriças, que muitas vezes
se encontravam em circulação. Em relação à segurança, agiam prendendo sujeitos
suspeitos. Além disso, ocupavam-se de manter a ordem e, portanto, de realizar a disciplina
social.
A realização da justiça pelos capitães-generais e governadores e pelos comandos
militares deve-se também à incapacidade da jurisdição da câmara de Porto Alegre para
atender todo o Rio Grande de São Pedro. Isso decorre da insuficiência de agentes dos
quadros da justiça real, especialmente vinculada aos juízes ordinários53; únicos oficiais de

53 Uma lista completa de atribuições dos juízes ordinários relativas aos assuntos judiciais é elencada por
Graça Salgado (1985, p. 360) na obra Fiscais e Meirinhos: proceder contra os que cometem crimes no termo
de sua jurisdição; dar audiência nos conselhos, vilas e lugares de sua jurisdição; ordenar aos alcaides que
tratam os presos às audiências e passar mandado de pressão ou de soltura, de acordo com seu julgamento;
impedir que as autoridades eclesiásticas desrespeitem as jurisdições da Coroa; conhecer dos feitos crimes
cometidos por escravos, cristãos ou mouros, até a quantia de quatrocentos réis, despachando, sem apelação
e agravo, com os vereadores; conhecer dos feitos das injúrias verbais e despachá-los com os vereadores na
primeira reunião da Câmara; nas sentenças até seis mil-réis, dar execução sem apelação e agravo; conhecer
dos feitos das injúrias verbais feitas a pessoas consideradas de ‘maior qualidade’, suas mulheres e oficiais
da Justiça, despachando-os por si só e dando apelação e agravo às partes; tirar, por si só, devassas
(particulares) sobre mortes, violentação de mulheres, incêndios, fuga de presos, destruição de cadeias,

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justiça a nível de primeira instância no Continente de São Pedro, mesmo pela falta de
juízes de fora. A instância superior estava fora do limite sul-rio-grandense, pois o ouvidor
residia na vila do Desterro e fazia correições esporádicas. A justiça recursal estava na
distante Relação do Rio de Janeiro. É de se notar que os pleitos e recursos demandavam
despesas que não estavam ao alcance dos pobres, limitando esses pedidos às partes
abastadas da sociedade.
Acontece que, o aparato judicial a nível de primeira instância dava-se apenas nos
quadros da câmara e, portanto, aonde havia vila. Salienta-se que, entre 1751 e 1809,
somente uma câmara atuou sobre o território do Rio Grande de São Pedro, a da vila de
mesmo nome. A câmara encontrava-se em Porto Alegre, estando, então, deslocada da sede
de sua vila. Com o advento da invasão espanhola, em 1763, as justiças municipais
refugiaram-se juntamente com o restante do aparelho administrativo na povoação de
Viamão e a partir de 1773 em Porto Alegre. Então, esta última acolheu a Câmara mesmo
que não gozasse do estatuto de vila, sendo somente uma freguesia (COMISSOLI, 2011, p.
67).
A insuficiência de agentes dos quadros judiciais da Coroa Portuguesa é evidenciada
na correspondência expedida pelos governadores do Rio Grande de São Pedro e pela
câmara de Porto Alegre, dentre pelo menos os anos de 1791 a 1807. Essa correspondência
versa sobre o inapropriado aparelho judicial e a intenção de melhorias na justiça da
capitania do Rio Grande de São Pedro, a partir da vinda de juízes de fora (magistrados
profissionais nomeados por provisão régia), visto que os juízes ordinários eram leigos
(AHU-RS, cx. 3, doc. 252; AHU-RS, cx. 4, D. 356; AHU-RS, Cx. 6, D. 428; AHU-RS, Cx. 7, D.
484).
Essa situação explica-se, segundo Nuno Camarinhas (2016, p. 85), porque a malha
judicial da Coroa Portuguesa, sobretudo ao nível das instâncias locais, constituía-se
incipiente e muito restrita a regiões consideradas estratégicas do ponto de vista
administrativo. Por isso, o aparelho de administração judicial da Coroa, além de ser
composto pela magistratura e por uma série de judicaturas não letradas (ditas

moeda falsa, resistência, ofensa de justiça, etc.; tirar inquirições e devassas (gerais) dos juízes que o
antecederam, assim como as de todos os oficiais da Justiça, vereadores, etc; participar da escolha do juiz de
vintena; conhecer de ações novas no seu termo (município), dando apelação para o ouvidor da capitania,
nas quantias estipuladas nas Ordenações; executar as penas pecuniárias aplicadas pelo sargento-mor da
comarca aos oficiais da ordenança que faltarem com suas obrigações de posto.

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ordinárias), coexistia com “malhas administrativas de outra natureza, nomeadamente


eclesiásticas ou militar” (CAMARINHAS, 2016, p. 85).
A partir do fundo Autoridades Militares do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
(AHRS-AM, maço 18, doc. 865; AHRS-AM, maço 16, doc. 491; AHRS-AM, maço 16, doc.
494), constata-se que na vila do Rio Grande e na freguesia do Rio Pardo os comandos
militares de fronteira eram responsáveis pela prisão, custódia, aferramento e produção
de listas sobre os criminosos – aliás, presos em um calabouço de quartel militar em Rio
Grande e no corpo da guarda de Rio Pardo, mas não em casa de cadeia, até porque a última
inexistia nesses locais54. Essas ações foram descritas e enviadas via correspondência aos
capitães-generais e governadores e, inclusive, por vezes os oficiais militares seguiram as
ordens destes em relação à execução da justiça. Motivo pelo qual, compreende-se que a
Coroa esteve ciente de tal realização da justiça. Comandos militares agindo na realização
da justiça foram apontados, também, nos trabalhos de Aluísio Lessa (2016) e Tiago Gil
(2002).
Em relação aos capitães-generais e governadores realizarem a justiça, pelo menos
a partir de 1809, oficialmente há a tentativa do poder central de limitar as ações de D.
Diogo de Souza; conforme consulta do Conselho Ultramarino ao Príncipe Regente para
aprovação do Regimento de D. Diogo de Souza, datada de 17 de outubro de 1807, a qual
foi aprovada como Provisional pelo Soberano em 24 do mesmo mês e ano. Segundo essa,

24. Pela minha real resolução de 9 de novembro de 1801, participada em


provisão de 7 de janeiro seguinte, fui servido a ordenar que os
governadores ultramarinos não fizessem prisões de potência, deixando
ao privativo conhecimentos dos magistrados a punição dos delitos
segundo a forma judicial, porque devem conhecer ao ofício, ou à
requerimento da parte; o que muito vos recomendo relativamente aos
paisanos; assim como a execução do aviso de 21 de março de 1800, em
que fui servido proibir que pessoas algumas pudessem ser mandadas
para o Reino de Angola, ou para qualquer outro degredo, sem que preceda
sentença que obrigue o extermínio (AHU-RS. Consulta do Conselho
Ultramarino ao Príncipe Regente para aprovação do Regimento a ser
passado a D. Diogo de Souza, 17 de outubro de 1807, cx. 12, doc. 754).

54
Mesmo gozando de estatuto de Vila, Rio Grande não tinha casa de cadeia, informação evidenciada em
ofício de Rafael Pinto Bandeira: “Neste Continente não há senão a Vila do Rio Grande, donde não há vestígios
de haver Cadeia, nem Pelourinho, por os Espanhóis derrubarem no tempo que possuíram este lugar”. AHU-
RS. Ofício do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira a Martinho de Melo e Castro, 29 de fevereiro de 1791, cx. 3,
doc. 252.

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Listas de presos produzidas pelos comandos militares do Rio Grande, em 1810,


trazem indicativos de como estes entendiam os sujeitos considerados criminosos. É
notável que os presos foram listados a partir de categorias sociais, classificados em ordem
decrescente como: militares (das patentes mais altas para as mais baixas), paisanos,
índios, pardos, negros livres e negros escravos. A classificação não condiz com as
categorias presentes no livro V das Ordenações Filipinas (ex: fidalgos, cavaleiros, clérigos,
peões, etc.), referente à matéria penal, e também não corresponde a diferentes estatutos
jurídicos (ex: homem livre, escravos africanos, libertos). Ou seja, o código penal não basta
para a compreensão da categorização dos prisioneiros. A categorização por origem social
é, principalmente, um valor social que diferencia como esses criminosos são entendidos
pela própria sociedade. Nesse sentido, o uso dessas categorias nas listas constitui uma
dimensão política, visto que reflete a ordenação social; motivo pelo qual classificar os
indivíduos dentro desses grupos significava referendar e manter a desigualdade social.
Compreende-se que os comandos militares estão a reiterar e construir poder sobre os
grupos subalternos. Isto é, como assinala António Manuel Hespanha (2003, p. 19): "por
isso é que podemos encarar a categorização social como uma forma de institucionalização
de laços políticos; e as tentativas de recategorização como uma espécie de revolução”.
Essa interpretação é reforçada por António Manuel Hespanha (1993, p. 123), o
qual compreende que a realização da justiça – finalidade que os juristas e politólogos
tardomedievais e primomodernos consideram como o primeiro ou, até mesmo, o único
fim do poder político, tamanha importância – acabava por se confundir com a manutenção
da ordem social e política objetivamente estabelecida, por meio da garantia de dar “a cada
qual o que lhe é devido”. Desse modo, realizar a justiça significava manter a desigualdade
naturalizada entre os grupos sociais, construindo e reafirmando hierarquias.
Os 62 presos de Rio Grande estiveram categorizados como: militares (35%),
paisanos55 (31%); pretos56 (11%) forros ou escravos; pardos (10%); não identificados

55 Na época, paisano era uma espécie de camponês, um trabalhador com residência fixa que, por vezes,
tinha sua própria terra. A palavra “paisano” apresenta igual conotação em espanhol, francês e italiano.
56 Neste trabalho é utilizada a designação <preto> durante a análise, por tratar-se de uma categorização

social e racial presente, respectivamente, nas fontes e nas concepções do período. A utilização do termo não
é um julgamento pejorativo em relação ao fenótipo de pele escura, mas uma forma de explicitar as
compreensões dos agentes históricos. Não estão inclusos nas porcentagens os negros levados ao calabouço
por seus senhores, para receberem <pequenas correções>, os quais são indicados na relação de presos de
01 de maio de 1810 (AHRS, maço 16, doc. 494).

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(11%), índio (2%). Os militares representam a categoria mais numerosa de criminosos,


35% do total de presos. Com a exceção de dois cadetes presos pelo comando militar por
desobediência, não há indícios de alta patente pelos de mais militares citados, sendo os
mesmos referenciados, principalmente, como soldados. Por isso, possivelmente a maioria
dos presos listados era composta por militares pertencentes a grupos subalternos da
sociedade. Além disso, 8% (5 indivíduos) do total de presos são militares e desertores,
mesmo porque o serviço militar era árduo.
Situação análoga ocorreu na freguesia do Rio Pardo. O comandante fronteiriço,
tenente coronel Patrício Corrêa da Câmara, ao listar os presos que se achavam no Corpo
da Guarda em 1804, descreveu-os como “dos galês, como dos desertores, e daqueles
escravos cativos com que seus Senhores ao depois dos castigos que lhes arbitram
entregam ao serviço das mesmas galês por tempo de um mês”. Ele referiu-se a: seis
desertores dos Dragões (corporação permanente e regular do exército de Sua Majestade
Fidelíssima); um pardo; dois índios; dois negros; além de dois sujeitos não classificados
(AHRS-AM. maço 7, doc. 2).
Ressalta-se que à época a prisão não servia como uma pena em si, a partir da
reclusão, mas como um local de custódia. Por isso, muitos dos criminosos eram utilizados
em serviços forçados (as denominadas galês), dentre os quais inúmeros desertores, índios
e negros. Essas recorrências são indicativos de um sistema punitivo altamente
doutrinador dos corpos dos sujeitos (FOUCAULT, 2014, p. 36-37), tornando-lhes
eficientes enquanto mão de obra.
Essas considerações iniciais permitem saber que a compreensão sobre os sujeitos
considerados criminosos requer o entendimento de um quadro social complexo, que vai
muito além das contravenções às leis ordinárias e extraordinárias do Estado português, e
diz respeito ao próprio período moderno, no qual não há um legalismo exacerbado, ou
mesmo uma racionalidade técnico-burocrática na administração. O público e o privado
são muitas vezes indistintos, inclusive pela estruturação da Monarquia Portuguesa, que
buscou como alternativa à manutenção territorial a prestação de serviços pelos súditos,
no caso em questão os comandos militares. Ressaltamos a posição privilegiada de tais
militares na sociedade sul-rio-grandense, motivo pelo qual, as suas atividades
relacionadas à criminalidade nos parecem, em certa medida, pautadas em vistas à
reiteração e constituição de poder.

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Referências documentais:

AHRS. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.


Fundo Autoridades Militares

Relação de presos anexa à correspondência do brigadeiro Patrício Corrêa da Câmara ao ajudante


de ordens Paulo José da Silva Gama, 7 de dezembro de 1804, maço 7, doc. 2.

Relação de presos anexa à correspondência do major Manoel José Soares Barbosa Dantas Brandão
a D. Diogo de Souza, 1 de janeiro de 1810, maço 18, doc. 865.

Relação de presos anexa à correspondência do tenente Coronel Felix José de Mattos Pereira de
Castro a Diogo de Souza, 9 de abril de 1810, maço 16, doc. 491.

Relação de presos anexa à correspondência do tenente Coronel Felix José de Mattos Pereira de
Castro a Diogo de Souza, 1 de maio de 1810, maço 16, doc. 494.

AHU. Arquivo Histórico Ultramarino.


Subfundo Capitania do Rio Grande do Sul.

Ofício do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira a Martinho de Melo e Castro, 29 de fevereiro de 1791,
cx. 3, doc. 252.

Consulta do Conselho Ultramarino ao Príncipe Regente para aprovação do Regimento a ser


passado a D. Diogo de Souza, 17 de outubro de 1807, cx. 12, doc. 754.

Ofício do governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara a D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
12 de março de 1800, cx. 4, D. 356.

Consulta do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. João sobre carta dos oficiais da Câmara
da vila do Rio Grande de São Pedro do Sul, 11 de setembro de 1802, Cx. 6, D. 428.

Carta de Paulo José da Silva Gama a D. João, 4 de dezembro de 1803, Cx. 7, D. 484.

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NEGÓCIOS ESCUSOS: AS RELAÇÕES DOS TRAFICANTES DE ESCRAVOS E


OS GOVERNADORES DA COLÔNIA DO SACRAMENTO EM MEADOS DO
SÉCULO XVIII

Stéfani Hollmann

No século XVIIII, o tráfico de escravos possuiu características distintas dos


períodos anteriores. Devido ao crescimento das plantations, na América Espanhola e a
descoberta das minas de ouro nas Minas Gerais, no Brasil, a demanda por mão de obra
escrava aumentou significativamente no setecentos. Apesar de iniciado muito antes, foi
no XVIII que o tráfico de cativos se tornou um dos ramos mais lucrativos do comércio,
chegando ao seu apogeu57. Desta forma, possibilitou àqueles que viviam dele, um rápido
enriquecimento e como consequência, mobilidade social na sociedade de Antigo Regime.
Estes homens, que somados aos terratenentes, chegaram a compor a elite colonial, em
uma sociedade que vivia à lei da nobreza58.
Nos quatro séculos de escravidão na América, o número de cativos que chegou ao
Brasil foi bastante expressivo. Blackburn59 apontou que 31% de todos os escravos
comercializados neste período, teriam vindo ao Brasil. No entanto, com número mais
atualizado, que se encontram no “Atlas Of the Transatlantic Slave Trade60” o número chega
a 46% dos cativos comercializados entre a África e a América, tiveram destino o território
luso-brasileiro.Sendo o Brasil, o país que mais recebeu escravizados ao longo deste
período.

 Graduada em Licenciatura em História e Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul
57KLEIN, Herbert. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto: Funpec Editora, 2004. p.21-24
58 FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial

(séculos XVI e XVII). In: BICALHO, Maria Fernanda,FRAGOSO, João, GOUVÊA Maria Fátima. Antigo Regime
nos trópicos, A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
2001
59 BLACKBURN, Robin. A construção do Escravismo no novo mundo: 1492 – 1800. Editora Record, 2003. p.

466
60 ELTIS, David & RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven & London: Yale

University Press, 2010.

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Os contatos comerciais entre portugueses e africanos eram muito antigos61, por


isso o tráfico de africanos a fim de serem escravizados à América foi facilitado. Apesar de
ainda no século XVIII, a Bahia ser o pulmão por onde o Brasil respirava62, outros portos
brasileiros passaram a receber grandes quantias de embarcações. Os principais portos
brasileiros no setecentos - Salvador, Recife e Rio de Janeiro - receberam quantidades
significativas de cativos. Os dois primeiros muito ligados a economia açucareira, já o Rio
de Janeiro, passou a abastecer de mão de obra cativa, além da região mineradora, outros
locais mais no interior da América Portuguesa. O porto fluminense teria uma vocação
atlântica, que possibilitou contatos com a África, mas também com regiões periféricas da
América Portuguesa, como o Rio da Prata63.
No final da União Ibérica – período o qual, portugueses e espanhóis além de
dividirem território, podiam negociar livremente entre si - a Coroa Portuguesa, passando
por dificuldades financeiras devido a sua Independência frente à Espanha, precisava de
acesso rápido a lucros. Portanto, para retomar o comércio com a região do Rio da Prata,
em 1679, foi empossado o novo governador da Capitania do Rio de Janeiro, Dom Manuel
Lobo. Este que tinha como um dos objetivos, fundar uma colônia lusitana no estuário do
Prata, para reestabelecer posição mercantil naquela região. No ano seguinte, foi fundada
a Colônia do Sacramento64, na margem oposta a Buenos Aires, na região platina, que viria
auxiliar além da defesa da fronteira sul da América Portuguesa, o reestabelecimento
econômico de Portugal após sua nova independência frente aos hispânicos.
A ineficiência de frotas que deveriam ser enviadas pelos fluminenses à Colônia do
Sacramento, a fim de abastecer a praça e pagar o soldo dos militares, fez necessária a
inserção dos sacramentinos a uma rede comercial maior. Colônia estava inserida na

61 MILLER, Joseph C. “A economia política do Tráfico Angolano no século XVIII” In: PANTOJA, Selma;
SARAIVA, José Flávio Sombra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p.13
62 RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos e grupo

mercantil (c. 1750 – c. 1800) /Alexandre Vieira Ribeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2005. XIII, 256f.: Il;
31cm. Orientador: Antônio Carlos Jucá de Sampaio. Tese (Doutorado) – UFRJ-IFCS/Programa de Pós
Graduação em História Social, 2009. p.63
63 FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial

(séculos XVI e XVII). In: BICALHO, Maria Fernanda,FRAGOSO, João, GOUVÊA Maria Fátima. Antigo Regime
nos trópicos, A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
2001 p. 38
64 POSSAMAI, Paulo. Aspectos do cotidiano dos mercadores na Colônia do Sacramento durante o governo

de Antônio Pedro de Vasconcelos (1722-1749). Revista de Estudos Ibero Americanos. Porto Alegre: PUCRS,
2002. p.200

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“terceira perna do tráfico65”, aquele que era desenvolvido entre os portos luso-brasileiros
e as regiões que não eram abastecidas diretamente por embarcações vindas do continente
africano. Devido a sua posição geográfica, se fez um importante entreposto comercial,
recebendo mercadorias vindas de portos luso-brasileiros e os revendendo a Buenos Aires.
Sacramento era majoritariamente dependente do comércio intraimperial. Devido as
características do Rio da Prata, que era de difícil navegação, grandes embarcações tinham
dificuldade de acessá-lo. Portanto, dos portos brasileiros vinham embarcações menores
que trafegavam com maior facilidade pelo estuário. Também devido as longas distâncias
entre o continente africano e Colônia do Sacramento, a maioria dos barcos aportava
primeiro nos portos atlânticos como Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Assim, evitava-
se perda de grandes quantias de cativos, que depois de alguns dias em solo brasileiro,
seguiam viagem a Sacramento. O estudo do tráfico de escravos para a Colônia do
Sacramento é importante, pois houve períodos em que a população de cativos foi de
aproximadamente metade do total de pessoas que habitava a praça66. Considerando que
não havia economia em Sacramento, que necessitasse do uso da mão de obra escrava em
larga escala, é provável que estes cativos estivessem no local, aguardando para ser
comercializados com a América Espanhola.
Devido ao tratado de Tordesilhas, os espanhóis não possuíam acesso a Costa da
África. Portanto, para ter acesso à mão de obra escravizada africana, os castelhanos teriam
que comprar cativos ou dos britânicos, que tiveram seu período de asiento67 em Buenos
Aires, ou comprar dos portugueses da Colônia de Sacramento. As trocas mercantis entre
portugueses e castelhanos de ambas as margens do Rio da Prata eram frequentes e
antigas, apesar das tentativas de represálias espanholas. Pois muitas vezes os
portugueses, devido a proximidade com outros portos lusos, conseguiam comercializar

65 BERUTE, Gabriel. Dos escravos que partem para os portos do Sul – Características do tráfico negreiro do
Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790 – c.1825. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em
História/UFRGS, dissertação de mestrado, 2006 p. 14 ao citar Roberto Martins distingue as três etapas do
tráfico de escravos, a terceira seria aquela que ocorreu dentro do continente Americano, sendo na qual a
Colônia do Sacramento se insere e outras regiões periféricas do Brasil também, como o caso estudado por
Berute, do Rio Grande de São Pedro.
66 KUHN, Fábio. “Clandestino e ilegal: O contrabando de escravos na Colônia do Sacramento (1740-1777)”.

In: XAVIER, Regina Célia Lima. “Escravidão e Liberdade: Temas, problemas e perspectivas de análise".
Alameda Casa Editorial (2012). E PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: a situação na fronteira
platina no século XVIII. 2003 trabalham com censos
67 Acordo feito pela coroa espanhola que garantia monopólio da venda de escravos por parte dos ingleses

para as colônias hispânicas.

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com preços menores daqueles do monopólio inglês. Assim, o fluxo de mercadorias entre
ambas as praças platinas foi intenso. Devido a isso, muitos portugueses afixaram-se em
Sacramento, a fim de que através do comércio pudessem distinguir-se na sociedade
colonial. Entre eles, estavam aqueles que são objeto de análise deste trabalho, os
traficantes de escravos.
Através de dados cedidos da pesquisa “Os homens de negócio da Colônia do
Sacramento e o Contrabando de Escravos para o Rio da Prata (1737-1777)”, financiado pelo
CNPQ e executado entre 2012 e 2014, Professor Doutor Fábio Kuhn, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul68, tive acesso ao nome de 116 comissários/homens de
negócio/comerciantes que atuaram na Colônia do Sacramento entre 1737 e 1777. Sabe-
se que o traficante de escravo, mesmo no século XVIII, não realizava comércio exclusivo
de cativos. Para garantir suas trocas mercantis, o comerciante não tinha exclusividade de
produto, portanto, não vendiam apenas cativos, outros produtos também eram
comercializados, tais como os derivados da cana-de-açúcar. Também não eram todos os
mercadores que comercializavam escravos, no entanto, como já mencionado, no
setecentos o “trato dos viventes69” ganhou importância. Portanto, utilizando do registro
de óbito de escravos70, cruzei estes com os dados cedidos da pesquisa acima referida,
entre essa mais de uma centena de homens que se dedicavam ao comércio, trinta e quatro
apareceram enterrando escravos na Colônia do Sacramento. Portanto considerei que os
homens que apareciam mencionados em outros documentos com vínculos com o
comércio e que sepultaram cativos neste período, eram traficantes de escravos. Destes,
todos ao menos sepultam um escravo, outros aparecem com mais frequência, como o caso
de Bartolomeu Nogueira, que enterrou onze cativos.
Além de saber quem eram os homens que comercializavam escravos na Colônia do
Sacramento, estes registros de óbito auxiliaram a determinar as redes de comércio
estabelecidas. Pois, além do nome e características do defunto, o nome de quem o estava
sepultando, no registro também constava através de quem e de qual lugar este cativo

68 Os dados deste projeto são estudos dos documentos do Arquivo Ultramarino do Rio de Janeiro e da
Colônia do Sacramento, do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Habilitações do Santo Ofício que estão
online no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Documentos Eclesiásticos da Cúria Metropolitana
do Rio de Janeiro, como registro de óbito de cativos.
69 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, século XVI e XVII.

Companhia das Letras, 2000.


70 Registros que se estendiam do ano de 1732 ao de 1753

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havia chegado a Sacramento. Assim verificaram-se redes comerciais entre a Bahia e


Sacramento, entre o Rio de Janeiro e a Colônia e claro, esta com Buenos Aires. Os
interesses pelo comércio com Sacramento eram devido ao pagamento em prata. Como o
porto fluminense e o de Salvador foram os mais receptores de escravos africanos 71 foi
possível realizar comércio de cativos com Sacramento.
O interesse de comércio com a região platina era geral, comerciantes de diferentes
origens queriam acessar as trocas mercantis realizadas no local, devido ao pagamento ser
feito em prata. O metal era importante para recuperação econômica lusa, pois servia de
moeda de troca com o Oriente. Como por exemplo, podia-se comprar panos indianos, que
eram utilizados como moeda de troca na costa africana, onde adquiriam-se cativos. O
grupo mercantil que se formava nas diferentes praças luso-brasileiras não era
homogêneo72, o que também não foi diferente para a Colônia do Sacramento. Estes
possuíam origens e trajetórias distintas, em geral o que possuíam em comum era a
profissão. Apesar que, em geral, os homens que se dedicavam ao comércio, eram naturais
do Reino, o que os auxiliava no estabelecimento de redes mercantis73, dificilmente era
possível que tivessem muitas questões comuns. Além disso, o movimento do comércio
interno era constante74, formando uma classe mercantil luso-brasileiras, que muitas vezes
não tinham os mesmos interesses que a Coroa.
Este grupo de traficantes sacramentinos, formado por pouco mais de três dezenas
de homens, nem sempre afixou-se na praça sacramentina. Eram comerciantes
temporários e muito provavelmente, não comercializavam apenas escravos. No entanto,
houve aqueles, que por constituírem família, fixaram-se em terras platinas. Dos trinta e
quatro traficantes de escravos que apareceram nos obituários de cativos, dezoito deles
eram casados. Alguns contrariam matrimônio com mulheres de origem do reino, no

71 FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel Domingues da “Aspectos comparativos
do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)” in: Afro-Ásia, nº 31, 2004
72 RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos e grupo

mercantil (c. 1750 – c. 1800) /Alexandre Vieira Ribeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2005. XIII, 256f.: Il;
31cm. Orientador: Antônio Carlos Jucá de Sampaio. Tese (Doutorado) – UFRJ-IFCS/Programa de Pós
Graduação em História Social, 2009. p. 357
73 OSÓRIO, Helen. “Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e negócios de um

grupo mercantil da América Portuguesa” in: Revista Brasileira de História. Vol. 20, nº 39, 2000, p. 103. A
autora refere-se ao grupo mercantil que formou-se no Rio Grande no final do século XVIII e início do XIX, no
entanto, também era comum na Colônia do Sacramento, no grupo estudado, que seguisse esta regra.
74 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes, formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII.

Companhia das Letras, 2000.

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entanto muitos foram com moças sacramentinas. O casamento era uma das formas de
enraizamento dos interesses destes homens ao local. Desta forma, ampliavam sua rede de
contatos e conseguiam aumentar sua ação dentro desta sociedade. Como o caso de Manuel
Lopes Fernandes, natural de Braga, que casou-se em 1751, com Maria Pereira dos Santos,
já viúva de Antônio de Carvalho de Medeiros. Estendo as suas relações também na praça
sacramentina.
De forma geral, pode-se dividir o grupo de trinta e quatro homens, em dois
menores. No período em que Luís Garcia Bivar administrou a Colônia do Sacramento,
houve assinatura de atestações75, que mostravam a orientação política do indivíduo que
a assinava. Estes documentos não foram assinados somente por comerciantes, também
foram por párocos e militares, que visavam com isso aproximação com o governador, que
tendo em vista a ausência de órgãos administrativos, era autoridade máxima na praça.
Não foram todos os traficantes que se posicionaram em relação ao governo Bivar. Alguns
fizeram questão de assiná-la contrária ao governador, mas, muitos provaram lealdade ao
administrador.
Os traficantes de escravos, mais do que realizar comércio com Buenos Aires e
enriquecer, também visavam distinção social dentro de uma sociedade que vivia à lei da
nobreza, seguindo moldes europeus nos trópicos. Tendo em vista o caráter militar da
praça, obter títulos militares também era importante. Uma forma de discernimento,
concedida muitas vezes pelo governador, era ganhando patentes militares das ilhas
próximas a Sacramento. Estes títulos, nem sempre eram para realizar serviço militar, é
possível supor, que estas ilhas eram utilizadas para o desvio de mercadorias, que seriam
contrabandeadas com Buenos Aires, evitando assim o fisco. Portanto, estar bem
relacionado com o governador era uma forma de conseguir alcançar esses meios. Como
por exemplo, José de Barros Coelho, que assinou atestação favorável ao governador Bivar,
e que era Capitão de Ordenança da Ilha de São Gabriel. As patentes militares eram
conferidas aos traficantes, assim como para os demais homens que as recebiam, pelos
governadores. Verifica-se que por algumas vezes, estas patentes não era vitalícias,

75As atestações são trabalhadas por KUHN, Fábio. no artigo: “Os interesses do governador: Luiz Garcia de
Bivar e os negociantes da Colônia do Sacramento (1749-1760)” Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, v.
13, n. 24, jan-jun. 2012, pp. 29-42

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conforme o interesse dos governadores era redistribuído para outros homens que eram
dados como dignos delas pelo governador.
O compadrio também era uma das formas de ampliação das redes de contato. O
parentesco fictício foi utilizado pelos traficantes de escravos entre homens que possuíam
o mesmo ofício, mas também com militares, bem como com o governador. Entre 1732 e
1777, os governadores aparecem apadrinhando crianças que tinham pais com profissões
e origens diversas. No entanto, Luís Garcia Bivar tinha relações de parentesco espiritual
com muita frequência com os traficantes de escravos. Diversas vezes escolhido como
padrinho de filhos de traficantes, como Manuel Gomes dos Santos Lisboa, de quem batizou
mais de um filho. Ainda havia outros traficantes relacionados a ele, como Manuel Coelho
Rosa, de quem Bivar batiza um dos filhos, além de servir como testemunha do seu
casamento com Vitória de Lacerda, moça sacramentina.
Manuel Coelho Rosa serve como exemplo de trajetória. Natural da Sé do Porto,
capitão, o traficante, que aparece nos registros de óbito de cativos por dezessete vezes
realizando sepultamento, casou-se com moça nascida na praça da Nova Colônia.
Provavelmente somou valores realizando comércio entre Colônia do Sacramento e
Buenos Aires, possuía relações de comércio com o Rio de Janeiro, Bahia e a América
Espanhola. Assinou a atestação sendo favorável ao governo de Luís Garcia Bivar, com qual,
como já visto, tinha relações pessoais com o comerciante. Este que é o comerciante que
apareceu com maior frequência nos registros de sepultamento analisados.
Apesar, de não poder afirmar que Coelho Rosa tenha sido o traficante de maior
sucesso em Sacramento, pois minhas fontes só oferecem os números de perda dos cativos,
e não das transações comerciais que se efetivaram, posso afirmar que recebeu um número
significativo de escravos. Provavelmente, sua relação com o governador Bivar, tenha o
favorecido no comércio, assim como dentro da sociedade sacramentina, enraizando seus
interesses na praça. Não há registro de seu óbito, portanto é provável que tenha morrido
em mar. Mas sua família – esposa e filhos – permaneceram na Colônia até o final do
período português na praça76. Também é preciso considerar que a maior parte dos
traficantes eram esporádica, ou seja, realizavam comércio de cativos ocasionalmente, não
eram especialistas neste tipo de venda. Portanto, Manuel Coelho Rosa, aparecendo

76 Em 1776, sua filha Vitória aparece como madrinha da filha de Custódio de Almeida, Sargento Mor da
Praça.

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dezessete vezes enterrando escravos, significa que não fez este tipo de comércio com
pouca frequência.
Outra forma de distinção social em Sacramento, eram as habilitações do Santo
Ofício. Considerando que a profissão de comerciante não era bem vista na sociedade de
Antigo Regime, pois estes viviam do seu próprio trabalho, além de estar relacionada aos
cristãos novos, ter a carta de familiatura, além de provar a origem, provava a limpeza de
sangue. Em uma sociedade, que apesar de periférica, tentava copiar o centro
metropolitano77, significava distinção social. Além disso, estas regiões eram destinos de
muitos degredados, portanto, assim verificava-se o passado do sujeito, comprovando a
sua regularidade como súdito lusitano.
Igualmente, precisa-se considerar que a Colônia do Sacramento não possuía
Câmara ou Misericórdia, que eram espaços utilizados em outros pontos do Império
Português para distinção social. Portanto, ser familiar do Santo Ofício em Sacramento,
podia diferenciar o sujeito na comunidade, dando origem a uma hierarquia costumeira78.
Esta que também podia ser dada através das redes de clientelismo e de parentesco fictício
entre os traficantes e demais moradores da Praça da Nova Colônia, ou mesmo de Buenos
Aires ou de portos luso-brasileiros, com os quais tinham relações comerciais. Mas,
sobretudo, dava-se pelos mesmos tipos de relações estabelecidas com os governadores
da praça, sobretudo com o governador Luís Garcia Bivar, o qual mantinha negócios
escusos e próximos com os traficantes de escravos sacramentinos.
O tráfico intraimperial, foi viabilizado devido aos interesses dos representantes
das coroas ibéricas, estes que nem sempre iam ao encontro dos interesses das cortes na
Europa. No caso da Colônia do Sacramento, contaram com o apoio de alguns governadores
como Antônio Pedro de Vasconcelos, Luís Garcia Bivar e Pedro Sarmento. O primeiro
governador, dos acima referidos, estreitou as relações entre a burocracia portuguesa e “os
homens que concorrem ao seu negócio”, desde o início do século XVIII, as relações dos

77 RUSSEL-WOOD, A. J. R. “Centro e periferia no mundo luso-brasileiro, 1500 – 1808” in: Revista Brasileira
de História. 1998, nº 36 p.187-249. O autor coloca que as sociedades que faziam parte do império luso,
apesar de serem periféricas, não tentavam romper com o modelo europeu, e sim copiá-lo.
78 FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. “Monarquia Pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões

sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII” in: Tempo, Vol. 14, nº 27, p. 49 – 63. 2009. Os autores se referem
a hierarquia que surgia nos diferentes espaços do Império Português, em geral, reproduzindo os
metropolitanos, mas que em escala local poderiam ganhar outro significado.

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governadores com este comércio ilícito eram conhecidas79. O combate ao contrabando


era pouco, pois ele era incentivado pelos mesmos que deveriam inibi-lo80. O comércio
entre as possessões ibéricas no Prata, também foi resultado de uma ineficiência de frotas
para abastecer a praça sacramentina, por parte dos fluminenses. Portanto, para manter
as necessidade básicas, tal como o soldo dos militares em dia, era necessária uma boa
relação, entre os governadores e os comerciantes81.
A mobilidade social dentro de uma sociedade de Antigo Regime nos trópicos não
era simples, nem desejada, em geral, pelos representantes da Coroa portuguesa 82. No
entanto, ela era possível, desde que atendesse também aos interesses metropolitanos.
Estes homens, apesar de realizarem comércio com a América Espanhola, auxiliaram no
desenvolvimento econômico de uma pequena praça mercantil situada no Rio da Prata.
Esta que teve importância significativa dentro do Império Ultramarino Português, que
tinha um dos seus pilares calcados no tráfico de escravos, e para que ele fosse possível
necessitava destas trocas comerciais legais ou não. Necessita-se rever o conceito de
contrabando para o século XVIII, tendo em vista que ele por vezes foi incentivado por
representantes da Coroa, desde que atendesse aos seus interesses.
A posição geográfica fronteiriça da Colônia do Sacramento, também precisa ser
considerada. Ao mesmo tempo em que a fronteira separa os súditos das duas coroas
ibéricas, os põe em contato. Possibilitando que ela seja manejada83 conforme seus
interesses pessoais e comerciais. Esta fronteira porosa que colocou em contato frequente,
espanhóis e portugueses, que longe do seu reino, transformaram e aproximaram estas
sociedades nos trópicos. Assim também, a burocracia estatal foi adaptada às condições
locais, considerando que algumas vezes as negociações entre os representantes das
coroas ibéricas não passaram pela Europa, como uma espécie de autogoverno, embora

79 KUHN, Fábio. “Homens que concorrem ao seu negócio” A comunidade mercantil da Colônia do
Sacramento (1737-1777). R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 176 (468): 13-38, jul/set. 2015. p. 14
80 KUHN, Fábio. “Tráfico negreiro para a Colônia do Sacramento através das fontes paroquiais: algumas

considerações metodológicas”. Paper apresentado na V Reunião do Comitê Acadêmico História, Regiões e


Fronteiras da AUGM. Mar del Plata, Argentina, abril de 2014.
81 POSSAMAI, Paulo César. O cotidiano da Guerra: a vida dos soldados na Colônia do Sacramento (1715-

1735), 2001.
82 HESPANHA, Antônio Manuel. Imbecilitas – As bem aventuranças da inferioridade nas sociedades de

Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010, cap. 9, p.251 – 273.


83 Utilizo o conceito de fronteira desenvolvido por THOMPSON FLORES, Mariana F. da C. Apologia à

fronteira (manejada): uma proposta conceitural. In: Crimes de fronteira: a criminalidade na fronteira
meridional do Brasil (1845-1889). Porto Alegre: PUCRS, 2012.

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sempre respeitando seu monarca. Assim, apesar de em regiões geograficamente


periféricas no Império Ultramarino Português, os representantes da Coroa Portuguesa no
Prata, faziam parte da rede de governabilidade lusa84, mesmo que por vezes o costume
local passasse sobre as questões metropolitanas. Um exemplo disso foi o incentivo ao
comércio com Buenos Aires, apesar das proibições do Tratado de Ultrecht85 já em 1715, e
o Alvará de 14 de outubro de 175186, que pediam o fim do comércio de escravos com a
América Espanhola, citando especialmente a Colônia do Sacramento.

Referências bibliográficas:

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séculos XVI e XVII. Companhia das Letras, 2000.

BLACKBURN, Robin. A construção do Escravismo no novo mundo: 1492 – 1800. Editora


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Pós-Graduação em História/UFRGS, dissertação de mestrado, 200.

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FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial (séculos XVI e XVII). In: BICALHO, Maria Fernanda,FRAGOSO, João, GOUVÊA

84 FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. “Monarquia Pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões

sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII” in: Tempo, Vol. 14, nº 27, p. 49 – 63.
85 O artigo XII do Tratado de Ultrecht (1715), já determinava que portugueses e espanhóis poderiam realizar

trocas mercantis, exceto de escravos, pois havia um asiento britânico nos domínios espanhóis na América.
Artigo XII do Tratado de Utrecht: “Abrir-se-a geralmente o comércio entre os vassalos de ambas as majestades
com a mesma liberdade e frequência que havia antes da presente guerra, e em demonstração da sincera
amizade que se deseja não só estabelecer, mas ainda acrescentar entre os vassalos das duas coroas, concede
Sua Majestade portuguesa á nação espanhola e Sua Majestade católica a nação portuguesa todas as vantagens
no Comércio e todos os privilégios, liberdades e isenções que até aqui tiver dado, ou pelo tempo adiante
conceder a nação mais favorecida e mais privilegiada das que tem comércio nos domínios de Portugal e de
Espanha, estendendo-se isso só nos domínios de Europa, por estar unicamente reservada a navegação e
comércio das Índias às duas só Nações nos seus domínios respectivos da América, excetuando o que
ultimamente se tem estipulado no contrato de asiento dos negros, feita entre Sua Majestade católica e Sua
Majestade Britânica”.
86 Cód. 68: Secretaria de Estado do Brasil Volume 2. p.26 Arquivo Nacional

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KLEIN, Herbert. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto: Funpec Editora, 2004.

KUHN, Fábio. no artigo: “Os interesses do governador: Luiz Garcia de Bivar e os


negociantes da Colônia do Sacramento (1749-1760)” Topoi. Revista de História. Rio de
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KUHN, Fábio. “Tráfico negreiro para a Colônia do Sacramento através das fontes
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Comitê Acadêmico História, Regiões e Fronteiras da AUGM. Mar del Plata, Argentina, abril
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ISSN 2527-1148

Fontes

Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio De Janeiro

ACMRJ: Livro 4º de batismos de escravos (1747-1774);livros 2º, 3º e 4º de batismos de


livres da Colônia do Sacramento (1735-1777); livros de casamentos (1722-1777).
2º Livro de Óbitos de livres e escravos da Colônia do Sacramento, fl. 91-137v (1735-
1747)
6º Livro de Óbitos de negros, índios, mulatos e cativos, fl. 1-54v (1747-1752)
AP 734 Livro de Casamento de livres da Colônia do Sacramento

Arquivo Nacional

Cód. 68: Secretaria de Estado do Brasil


Volume 2
Cód. 94: [Nova] Colônia do Sacramento (1739-1777), 7 volumes.
Vol. 3: Registro de termos e autos de fianças de ofícios, arrematações, serventias de
cargos, etc. (1752-1777)
Vol. 4: Registro de nomeações de postos militares e outros cargos, patentes e ordens do
governador (1748-1755)

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O CASO DO “PARDO PEDRO” E OS ASPECTOS CULTURAIS QUE


ENVOLVEM CONSUMO E COTIDIANO NA FRONTEIRA OESTE A PARTIR
DE PROCESSOS CRIME

Francesco Santini
Taís Giacomini Tomazi

Introdução

Este trabalho é uma união entre dois esforços e vertentes de análise diferenciadas
que confluíram em um mesmo caminho, baseado e inspirado nos estudos na cultura e do
cotidiano. Ambos trabalhos individuais da autora e do autor deste texto tem como lócus
de seus estudos a região meridional do Brasil Império com especificidade para Alegrete
na segunda metade do século XIX, no qual uma das vertentes indicadas parte da busca da
inserção de cidades da fronteira oeste do Rio Grande de São Pedro em tal período nas
transformações do consumo e da relação das pessoas com os objetos e entre si, a fonte
principal foram os inventários post mortem. Já a outra, teve como objetivo a compreensão
de relações sociais entre trabalhadores (livres nacionais e estrangeiros e cativos) e alguns
aspectos destas dinâmicas sociais de interações contidas nas entrelinhas dos processos
crime. Esta última fonte é o foco deste texto, pois foi em um processo por assassinato em
que esta união de propostas diversas de pesquisa uniram-se, quando um indivíduo é
identificado como autor da morte de outro por ter sido visto com as roupas do morto,
roupas que evidentemente e para todas as testemunhas não eram suas. Em um primeiro
momento pode parecer um elemento ínfimo, porém quando se busca na historiografia
percebe-se uma lacuna para com este tipo de análise de processos crimes, geralmente
usados para temas que trabalhem diretamente com o crime e seus atores e não com os
itens do “cenário”, tal como a roupa do pardo Pedro.


Graduado, Graduação em História, Universidade Federal de Santa Maria.

Mestranda, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Maria.

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É imprescindível dizer então que o desenvolvimento deste texto não tem a


pretensão de responder a todos os questionamentos apontados em seu decorrer, mas sim,
suscitar possibilidades de pesquisa e complexificação das percepções sobre o passado e
em qualquer temática de pesquisa, fonte ou metodologia, é afinal de contas, um exercício
de trabalho com fontes e abordagens.
Um dos elementos que proporcionaram o questionamento sobre a roupa do Pardo
Pedro (roubada, possivelmente, do assassinado). Um deles é a importância do vestuário
no mundo do século XIX, o contexto de transformações, mas também de manutenção de
aspectos do cotidiano que se intercalavam na vida cultural dos sujeitos do passado. E se
formos recorrer a autores que trabalhem com estas transformações, Luis Felipe
Alencastro é essencial ao traçar alguns caminhos para este tipo de análise, quando indica
o ano de 1850 para a mudança decisiva do modo de consumo no Brasil Império, que
apesar de 1808 já estar aberto ao comércio e a importação de produtos manufaturados é
só na segunda metade do século que esta prática se acelera e dissemina, a roupa passa a
ser elemento chave na vida pública dos indivíduos. A região da fronteira oeste possui
características diferenciadas dos grandes centros apresentados por Alencastro (1990) e
por isso Laura Cabrejas (2000) ao apresentar elementos do contexto cultural e cotidiano
da fronteira bonaerense é essencial em qualquer análise para a região estudada, a autora
demonstra como é dinâmico o dia-a-dia das pessoas que habitaram o mundo platino,
porém ao pensar em um local mais distante ainda, onde a dificuldade das estradas
interferia na dinâmica social e cultural dos alegrenteses os trabalhos são mais escassos87.
O que se pode fazer é intercalar as leituras contextuais e buscar referências de
profissionais como Katia Matoso (1992) buscando na variação de escalas as similitudes e
diferenças entre Alegrete e outras cidades do período.
No sentido de contribuir para com estudos da cultura e do cotidiano a partir de
uma análise dos padrões de consumo no século XIX este trabalho também objetiva
incentivar a dinamização da utilização das fontes e na demonstração das diversas
possibilidades metodológicas e temáticas para trabalhar diferentes aspectos da cultura

87Alguns trabalhos da autora deste texto publicados em Anais de eventos podem ser exemplo de pesquisas
que levem em consideração as especificidades da região da fronteira oeste (ver lattes). Podemos ainda citar
Mariana Thompson Flores (2007, 2012) como abordagem diferenciada dos processos crimes e dos bens
que ingressavam na Província neste mesmo período.

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(consumo, relações e cotidiano) em uma região com certo estigma histórico, identificada
como atrasada, isolada e como bárbara. Faz-se a ressalva de que não se quer dize que a
entrada de bens manufaturados e do contato com a Europa “tornou” a região civilizada, já
que as concepções sobre civilidade já estão bastante refinadas e a própria compreensão
de uma interlocução entre os elementos da cultura platina e os europeizados tornam a
análise da cultura ainda mais produtiva, “real” e fundamentada para além do binômio
civilização e barbárie. Vamos então aos fatos: o crime e a roupa roubada por Pedro.

Fontes
Os processos criminais são fontes riquíssimas e densas de informações que
precisam ser analisadas com cuidado e que podem informar acerca de numerosos
elementos de uma dada sociedade em um dado período histórico. Diferentemente de
outros tipos de fontes, nos processos criminais são presentes narrações que, mesmo que
mediadas pelas autoridades, podem ajudar a entender de uma forma mais detalhada
aspectos e características do contexto social, cultural e também econômico de uma
comunidade, região, cidade ou espaço em geral em um determinado momento histórico.
Nesse tipo de fonte, é possível encontrar um leque variado de sujeitos e talvez é um dos
poucos documentos no qual os subalternos tenham uma presença certa – não
necessariamente preponderante – e um número maior de elementos acerca deles, como
trabalho desenvolvido aspectos do cotidiano, estado civil, entre outros.
Este tipo de fonte pode servir de forma seriada para, junto a outros documentos,
analisar de forma estatística determinados elementos; também, é possível operar uma
análise qualitativa de alguns casos, efetuando uma espécie de “leitura lenta”, para
construir determinadas hipóteses, como é o caso deste trabalho. Não excluímos, contudo,
a possibilidade futura de trabalhar tais hipóteses realizando uma pesquisa seriada das
fontes criminais em questão.
Em geral, como muitos autores88 mostraram os processos crimes são documentos
que requerem algum cuidado, pois uma análise superficial levaria a caminhos
enganadores. O fato, por exemplo, de as testemunhas e os réus terem a própria fala
mediadas pelas autoridades (escrivão, juízes, etc.) já alerta para uma padronização da

88 Thompson Flores (2012); Boris Fausto (1984).

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narração e nos faz refletir sobre como no documento redigido desta forma, se perca a
emoção que o ser humano inquirido colocava no seu relato. Por outro lado, tal emoção
poderia, no caso de subalternos, fazer com que o sujeito se calasse ou evitasse falar muito
por se sentir inibido frente às autoridades. (Thompson Flores, 2012, pp. 31 – 32). Mesmo
assim, pensamos que essas peculiaridades dos processos, afetem de maneira reduzida
esta pesquisa, pois o que nos interessa é a presença de elementos relativos à
materialidade dos objetos presentes naquela sociedade.
Ademais, não podemos esquecer que neste tipo de fonte existem várias e variadas
falas, versões que por vezes concordam, por outras discordam. Mas, é preciso lembrar que
como apontado por Chalhoub (2012) “ler processos criminais não significa partir em
busca ‘do que realmente se passou’ porque esta seria uma expectativa inocente [...]”,
portanto, “resta ao historiador a tarefa árdua e detalhista de desbravar o seu caminho em
direção aos atos e às representações que expressam, ao mesmo tempo que produzem,
estas diversas lutas e contradições sociais”. (p. 40 - 42). Além disso, nós concordamos com
Boris Fausto (1984), quando a propósito da fonte criminal diz que “um texto desta
natureza” abre-se para outras áreas como “a antropologia, a psicologia ou mesmo a
psicanálise [...]”. (p. 29). Com certeza, outras áreas como aquela da antropologia citada por
Fausto, são de grande suporte para o tipo de pesquisa que nos propomos a fazer, pois
como veremos no caso que segue, a roupa que é um elemento material, quase
insignificante na atual sociedade industrial, chegava na segunda metade do século XIX a
definir a identidade de um sujeito, mostrando assim a estreita relação entre os âmbitos
cultural, social e econômico.

O caso
No dia 9 de maio de 185089, no Passo dos Baptista, dois peões, o pardo Pedro e o
índio Leonardo, dirigem-se para o próprio patrão, o fazendeiro Thomas Baptista de
Castilho, e com gestos e palavras ofensivas, ameaçaram-no de morte. Chegaram a cavalo,
armados e um dos dois chegou a fazer um gesto com o poncho90. Os dois, que estavam

89 Comarca de Missões. 1a Vara cível e crime. 1847 – 1850. Acondicionador: 009.0042. Processo: n° 2696 de
1850.
90 Nos autos consta como “aceno de ponxe (sic.)”. Difícil saber ao certo como seria, mas por estar presente

de forma destacada, indica uma clara ameaça de morte. Talvez o poncho tivesse sido levantado para mostrar
a arma, mas também é possível que o sujeito o manuseou como era típico nos momentos de combate.

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embriagados, deviam ter alguma desavença para com ele, não é claro qual, mas podemos
supor que fosse algo ligado a questões de trabalho91.
Foi este evento que levou o fazendeiro a registrar uma queixa oficial contra os dois.
Sabemos disso, pois tal queixa e a narração de quanto descrito encontram-se no processo
criminal por homicídio que vê como réus os peões acima citados junto ao preto José
Gonçalves, também peão de Thomas; como vítima consta um moço de nome João.
Aparentemente não há relação entre os dois crimes. Contudo, é muito provável que a
perseguição oficial aos réus (Pedro e Leonardo), pelo crime de homicídio, seja derivada
justamente da preponderância social do poderoso Thomas Baptista, que sofrendo as
ameaças e não tendo conseguido capturar os dois peões, se valeu de seus status para
encontrar uma forma de puni-los.
Seja como for, o homicídio ocorreu realmente, apesar deste estar quase em
segundo plano, sobretudo no que diz respeito à vítima, da qual se soube somente que era
um moço de nome João e que era sobrinho de tal “Machado”. Quem avisou do
acontecimento, conforme os autos, foi o próprio Pedro, o qual alertou o seu companheiro
Leonardo que era preciso enterrar um corpo de um garoto que se encontrava no Passo
das Carretas, no meio dos “espinilhos”. Logo em seguida, após supostamente ter
confessado o crime para Leonardo, Pedro fugiu. Enquanto isso, Thomas mandou “agarrar”
os dois peões posteiros pelas ameaças sofridas. Já que Pedro havia fugido, só pôde ser
preso Leonardo, o qual avisou sobre o corpo e inclusive mostrou para as autoridades o
lugar da morte. Por desconfiança, também foi preso naquela ocasião, o preto José. Este
último foi logo absolvido pelas testemunhas, pois para estas, no momento do crime não
se encontraria junto aos dois. Nesse sentido, reforça-se a tese de que o processo foi uma
tentativa de punir Pedro e Leonardo pelas ameaças de morte, mais do que pelo homicídio.
Durante a inquirição dos réus, emergiram elementos interessante, como o fato de
Leonardo de chamar na verdade Francisco Xavier Lopes, ser correntino e desertor da
cavalaria do Império Brasileiro. Além disso, José confessa não ser liberto, mas um escravo
foragido de Pelotas e (talvez) desertor das tropas do General Oribe.
Leonardo (ou Francisco), que sempre se declarou inocente, foi condenado pelo júri
por ter participado à morte de João, junto ao principal réu fujão Pedro. Provas concretas

91 Mais um caso que desmistifica o relacionamento idílico fazendeiro-peão.

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não existiam, contudo, um elemento foi utilizado para condenar o peão, o testemunho
conforme o qual Pedro estaria vestindo a roupa da vítima, pois todos confirmaram que
aquela roupa (pala, esporras, etc.) não era dele. Este elemento, que pode parecer marginal,
foi o que fez as testemunhas terem certeza da culpa do Pedro e por consequência do
Leonardo, o qual foi condenado à prisão perpétua.92
Não temos elementos que expliquem o motivo da morte, se por exemplo, teria sido por
justamente roubar a roupa ou se o apropriar-se da vestimenta seria somente uma
consequência. Não é possível saber, todavia, o que chama atenção é a construção de uma
identidade por parte de Pedro que incluía o seu traje e que era conhecido pelos membros
da comunidade. O fato de Pedro trocar sua roupa com aquela de João, implica algumas
hipóteses que giram em torno da possibilidade e do padrão de consumo na segunda
metade do século XIX, na Campanha gaúcha e que analisaremos na última parte deste
trabalho.

Questionamentos e hipóteses
Por que a roupa do “Pardo Pedro” ficou tão evidente? É o questionamento mais
evidente e que ocasionou na escrita deste texto. A vestimenta que não era do pardo Pedro
e sim do assassinado, indicando que as pessoas eram conhecidas também por suas roupas,
ou mesmo principalmente por suas roupas. É conhecido pela historiografia de que a troca
de roupas por compra ou costura em casa não era algo regular, mas sim poucas vezes na
vida do indivíduo apontando então para um hábito a identificação das pessoas pelas
roupas que estas vestiam ao longo de suas vidas, principalmente as mais pobres, pois
estas estavam mais à margem dos recursos necessários para aquisição de bens diversos.
Outro aspecto interessante é a possibilidade diversa de estudo a partir de uma
fonte bastante utilizada como os processos crime como apontam autores chave como
Chalhoub (2012) e Thompson Flores (2007). Importante atentar para o fato de que os
processos crime já nos “dizem” (mesmo nos silêncios, ou principalmente) muita s coisas
sobre as sociedades estudadas, mas sobre elementos do consumo estes elementos ainda
merecem maior atenção já que é possível identificar aspectos das sociedades estudadas
por vias “indiretas” das fontes que como os processos crime tem tido como foco estudos

92Tais informações fizeram parte do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado por Santini em 2017 na
Universidade Federal de Santa Maria.

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sobre a infância, gênero, representações sociais e criminalização e que unidos a um estudo


sobre o consumo podem qualificar ainda mais a compreensão das realidades estudadas
nas pesquisas.
A questão metodológica também, como em todo trabalho com o passado, é
essencial. Neste estudo a proposta foi a realização de uma leitura “lenta” do documento,
no qual aponta que todos os indivíduos alegaram que o pardo Pedro, foragido, havia
roubado a roupa do assassinado e que a roupa que usava não era sua. Não podemos
apontar nada mais profundo que isto e talvez a leitura de outros processos possam
qualificar a leitura deste e congregar mais elementos. Devemos assim atentar para um
aspecto bastante trivial, porém instrumental para o entendimento das relações e da
cultura na fronteira oeste e mundo platino, pois existem dois caminhos: o roubo de roupas
de indivíduos encontrados mortos era uma atividade costumeira ou por outro lado foi a
excentricidade do fato que evidenciou a ação do condenado visto “vestindo as roupas do
morto”.
O consumo no século XIX na ampliação do acesso e da oferta e demanda de
produtos (ALENCASTRO, 1997; MATTOSO, 1997), mas não para todo (as) ou mesmo com
as mesmas características é um elemento chave nesta breve análise. A principal entrada
de produtos relacionados ao vestuário se relaciona aos tecidos em geral, o ingresso de
roupas já manufaturadas vai se ampliar a partir da segunda metade do século XIX com
camisas, calças, além de outros itens como lenços e luvas e que em alguma parcela são
perceptíveis pelas ações de contrabandistas estudados por Thompson Flores (2007).
Então o acesso de Pedro não era o mesmo do seu empregador ou mesmo de outras
pessoas que circulavam em seu entorno e a possibilidade de aquisição de um vestuário
novo e que o uso recorrente de uma mesma roupa foi capaz de identificá-lo como autor
de um crime. Mais ainda nos faltariam subsídios para compreender aquela sociedade
analisada interligando-a a seus aspectos mais próximos no caso a realidade platina, que
como aponta Mayo (2000) tem uma diversidade de elementos e que se relacionarmos com
os bens chegados por contrabando no caso de Thompson Flores (2007) ou mesmo pelo
comércio legal estudado por diversos outros autores demonstram a potencialidade deste
estudo pela dinamização dos produtos, ingresso de instrumentos musicais como pianos,
itens de beleza e ornamentos para roupas e corpos e em casos nem um pouco comuns
como o do pardo Pedro.

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Conclusão
Pretendeu-se neste texto demonstrar as transformações que passam a ocorrer
durante o século XIX e que apontam para novas percepções de roupas e itens
industrializados que passaram a diferenciar as posições sociais dos indivíduos e
acabaram por condenar o “pardo Pedro”, e que são possibilidade de temática de estudos
sobre o cotidiano em relação ao consumo dos sujeitos e de seus fundamentos culturais.
Outras possibilidades do uso dos processos crime em uma perspectiva de estudo
da cultura, consumo e/ou cotidiano diferentemente do que se percebe na historiografia,
abrindo espaço para estudos que possam qualificar e tornar mais complexo o passado,
compondo um cenário cultural e social descaracterizando a região apenas no âmbito
militar e político e em seus famigerados aspectos “bárbaros”.

Referências bibliográficas

ALENCASTRO, Luis Felipe de. Vida Privada e Ordem privada no Império. In: ALENCASTRO,
Luis Felipe de. História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.

BLEIL DE SOUZA, Susana. Fronteira, poder político e articulações comerciais no Brasil


Meridional do final do século XIX. Anuário IEHS, v. 23, p. 305-333, 2009.

CABREJAS, Laura Leonor. Vida materia en la frontera bonaerense. In: MAYO, Carlos. Vivir
en la frontera: la casa, la dieta, la pulpería, la escuela (1770-1870). Buenos Aires, Biblos,
2000.

FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:
Editora Brasiliense, 1984.

MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A Opulência na Província da Bahia. In: História da Vida


Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MAYO, Carlos (Ed.). Vivir em la frontera: la casa, la dieta, la pulpería, la escuela (1770-
1870). Buenos Aires, Biblos, 2000.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de


Janeiro da belle époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

THOMPSON FLORES, Mariana Flores da Cunha. Crimes de Fronteira: a criminalidade na


fronteira meridional do Brasil (1845-1889). (Doutorado em História) – Programa de Pós
Graduação em História – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio
Grande do Sul, 2012, p 46-80.

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______. Contrabando e contrabandistas na fronteira oeste do Rio Grande do Sul (1851-1864).


(Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2007.

Fontes
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS)
PROCESSOS CRIMES – ALEGRETE:
Comarca de Missões. 1a Vara cível e crime. 1847 – 1850. Acondicionador: 009.0042.
Processo: n° 2696 de 1850.

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PÓS-COLONIALISMO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: UMA ANÁLISE


COMPARATIVA ENTRE A PERSPECTIVA AFRICANA E LATINO-
AMERICANA

Evandra Moreira 

Introdução
América Latina, como uma região do continente americano que foi
maioritariamente dominada pelos impérios coloniais europeus espanhol e português,
assemelha ao histórico de muitos países africanos, também colonizados pelos mesmos
impérios. As duas regiões geográficas albergam países distintos, com idiomas
diferenciados e em estágios de desenvolvimento a nível científico, social e económico
diferenciado.
Sendo assim, o imperativo/categoria pós-colonialismo torna-se uma variável interessante
diante da conjuntura atual, focada no desenvolvimento, independência, globalização,
industrialização e no desenvolvimento da ciência.
O pós-colonialismo teve a sua origem nos estudos da história indiana
empreendidos pelo “Grupo de Estudos Subalternos, que rejeitavam a história escrita a
partir do ponto de vista das autoridades coloniais e buscava evocar a voz dos súditos
colonizados – os subalternos. Ideias correlatas foram desenvolvidas na obra de Franz
Fanon, Edward Said e dos nacionalistas negros dos Estados Unidos”(Scott , 2010, p.230).
Para este trabalho, tomamos como referência o conceito de pós-colonialismo a
partir das reflexões de um dos mais proeminente teóricosassociados à problemática do
pós-colonial - o crítico indiano Homi Bhabha, no qual define a tarefa da crítica pós-colonial
como sendo a "revisão crítica de questões de diferença cultural, autoridade social e
discriminação política" que visa examinar as ambivalências existentes nas
"racionalidades" da chamada modernidade cultural (Bhabha, 1994,p.171). Ainda segundo
o autor, a emergência dos estudos pós-coloniais estaria vinculada a uma emergência da


Este texto faz parte da avaliação final da disciplina de Teorias das Ciências Sociais 2016/1, ministrada pelo
professor Carlos Gadea e Eduardo Barros.

Mestranda em Ciências Sociais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), contando com o apoio
financeiro do CNPq no âmbito do Programa de Estudante Convénio de Pós-Graduação (PEC-PG).

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revisão de um outro modelo teórico: o da sociologia do desenvolvimento ou teoria da


dependência, que se propõe uma análise dos processo de colonização e subordinação por
meio de matrizes binárias, fundamentadas sobretudos num contexto de interpretação
económica.
Este texto visa refletir sobre as abordagens teóricas dos estudos pós-coloniais na
perspectiva latino-americana e africana, isto em diálogo com o texto de Castros-Gómez
(2005) e Toro (1999) sobre a perspectiva latino-americana e o de Furtado (2015), sobre
a africana. A pergunta central desta reflexão foi: qual a diferença/relação que podemos
formular para a análise do pós-colonialismo em ciências sociais no dois continentes?

Reflexos do pós-colonialismo em África e na América Latina


O pensamento postulado pelo pós-colonialismo encontra-se em discussão a nível
mundial, sobretudonas ciências sociais. Na África e na América Latina se constata que a
periferia nunca tem sido capaz de sair dessa marca de fogo desejada por (Hegel
1830/1981, vol. I 205-210), enquanto a periferia se sente obrigada, ou na obrigação de
ocupar e de debater sobre o pensamento e o saber do centro para poder ter um acesso ao
mesmo. O pós-colonialismo e o seu aparato teórico, os seus parâmetros, os discursos da
periferia são considerados de carácter exótico, como não ciência. Em caso contrário, na
aceitação e “aplicação das estruturas de pensamento e ferramentas de trabalho do centro,
se considera (va) seu discurso, tanto de dentro como de fora da periferia, como um ato
epígono” (Gadea e Barros, 2013, p.151).
Da mesma forma que o próprio discurso da América Latina, o da especificidade dos
latino-americanos, como sendo condição de ex-colónias de sincretismo cultural, de
diversas etnias, do seu subdesenvolvimento económico e social, é uma resposta à
hegemonia e um lugar comum em muitas publicações nos dias de hoje. Mas a grande
questão reside em definir essas “especificidades”, isto porque a cada passo que se dá é
mais visível constatar o seu carácter híbrido e os seus diversos entrecruzamentos
culturais (Toro, 1999).
O problema da identidade é evidentementeuma reação frente ao fenómeno da
colonização, à hegemonia cultural, ao etnocentrismo e ao eurocentrismo; trata-se de
estabelecer-se a “especificidade latino americana”. Isto faz-nos repensar tanto fora como

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dentro da América Latina no final do século tão urgente como reação com o fenómeno da
globalização e de migração (Gadea e Barros, 2013, p.3).
Por sua vez, o continente africano alberga essas características de hibridez. Ainda no
período colonial, alguns intelectuais e líderes políticos questionaram não apenas a
produção científica sobre África como a dimensão ideológica de que revestiam os modelos
teóricos e epistemológicos que legitimavam tais produções. É verdade que relativamente
inexpressivos os números de pesquisadores africanos que não apenas criticaram os
paradigmas utilizados, tanto por africanistas como por africanos, para analisar o
continente, como também fizeram todo um exercício de teorização, procurando superar
os modelos por eles considerados anacrónicos e despidos de qualquer capacidade
heurística (Furtado, 2015, p. 29).
Ainda o autor realçou o trabalho de Cheikh Anta Diop, que, por sua vez pugnou pelo
“reconhecimento da relevância do continente africano não apenas como o berço do
homem bem como do desenvolvimento cultural e cientifico da humanidade” (Furtado,
2015, p. 29).
A característica geral dos estudos e da teoria latino americana, segundo (Toro,
1999), relacionado com a pós-colonialidade, têm como base a concepção de
“heterogeneidade”, da hibridez e a “desconstrução do discurso logo e etnocêntrica” no
contexto de uma “desconstrução” com “reapropriação”, dialogando com as teorias de
Derrida, de Foucault, de Deleuze, de Jameson e de Baudrillard, partindo da arqueologia da
linguagem e da cultura (Herlinghaus, 1994, p. 49 ss.).
Já no período pós-colonial, no continente africano a situação não muda em termos
substanciais e estruturais. Com efeito, não obstante o aumento significativo de
universidades, centros de investigação e de investigadores africanos, a extraversão
prosseguiu num quadro de “desenvolvimento desigual”. Tanto na agenda de investigação,
quando os modelos teóricos e metodológicos são utilizados, encontram-se imbricados e
dependentes do “norte epistémico” e os resultados da investigação são,
preferencialmente, produzidos e publicados a norte. Afinal, a legitimação do
conhecimento científico produzido é assegurado pelo norte do campo científico, no mais
das vezes localizado no “norte geográfico” (Furtado, 2015).
Essa preocupação dos latino-americanos faz com que tomem uma posição crítica
frente a tendências nacionalistas-monolíticas- binaristas que reclamam uma “identidade

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pura e autóctone” onde a diferença especifica da América Latina frente ao chamado


“centro” exclusivo, dogmático e fazer frente para a abertura de oportunidade para superar
as barreiras impostas pela especialização dos diversos campos do saber e da cultura e que
opera desde a transdisciplinaridade e transculturalidade.
A mudança fundamental do pensamento Latino Americano se dá com os
intelectuais e teóricos em decidirem definitivamente a habitar a cultura no espaço “ extra-
territorial” a chamada por Bhabha de “across-cultural” (1994, p. 9 ss).
No continente africano, segundo Furtado cintando Appiah, as limitações na procura de um
conhecimento científico autónomo, pertinente teoricamente e relevante socialmente,
resultam do próprio processo de socialização/formação de intelectuais africanos. Com o
efeito que “para muitos de seus mais importantes fins culturais, a maioria dos intelectuais
africanos ao sul do Saara é o que chamamos de ´eurófona´.”(Appiah, 1997 apud Furtado,
2015. p. 21). A formação dos intelectuais africanos é maioritariamente feita nas
universidades e centros de investigação ocidentais, e quando acorre em África, em
instituições que reproduzem os cânones científicos do “norte epistémico”, tende pelo
processo de estruturação de habitus, a moldar formas de pensar e de agir. Trata-se, no
mais das vezes, de um treinamento que reforça e reproduza diferença e a desigualdade.
Como sugere PierreBourdieu, a cultura escolar, a cultura legítima vem a ser das classes
privilegiadas e no contexto da dominação colonial, trata-se de uma cultura duplamente
legitimada: das classes privilegiadas e das classes dominantes, independentemente de sua
condição socioeconómica. No fundo, o ensino pressupõe implicitamente “um corpo de
saberes, de saber fazer e principalmente, de saber dizer, que constitui o património das
classes cultivadas” (Bourdieu, 1964, p. 36).
Como observa Mignolo (apud Maldonado-Torres, 2008. p. 89):

A “ciência” (conhecimento e sabedoria) não pode ser separada da


linguagem; as línguas não são apenas fenómenos “culturais” em que as
pessoas encontram a sua “identidade”; elas também são o lugar onde se
inscreve o conhecimento. E, dado que as línguas não são apenas algo que
os seres humanos têm, mas algo de que os seres humanos são, a
colonialidade do poder e a colonialidade do conhecimento engendraram
a colonialidade do ser.
Sendo assim, as ciências sociais, de forma particular, são produto do mundo
colonial/moderno que dividiu o mundo, procedeu à sua classificação e racialização, ao
mesmo tempo em que impôs formas de o conhecer.

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Por sua vez, segundo (Toro, 1999), a situação dos teóricos da cultura latino americana na
atualidade parecem estar inscritos através de uma escritura da “diferença”e uma
estratégia “metonímica da presença” (Bhabha, 1994, p.89).O pensamento latino-
americano não somente integra um discurso pós-moderno e pós-colonial predominante
em um momento histórico-cultural, mas ambos contribuem em encontrar formas
descritivos e caminhos que correspondam a sua natureza histórica e sócio-cultural.Neste
sentido as duas reflexões sobre a pós-colonialidadeestão em sintonia.
Torna-se assim de grande importância a concepção de “heterogeneidade” de
(Brunner, 1986), que, enquanto reduza mesma a subculturas étnicas, a classe e grupos a
uma mera sobreposição de culturas (Brunner, 1986, p.178), mas que entende como:

Participação segmentada e diferenciada em um mercado internacional de


mensagens que “penetra” por todos os lados e de maneiras inesperadas o
tecido local da cultura, chegando a uma verdadeira implosão de sentidos
consumidos/ produzidos/ reproduzidos e resultante desestruturação de
representação colectivas (…) (Brunner, 1986, p. 180).

Ainda o autor faz a constatação daquilo que denominou de “modernização


intelectuais”, ainda o contexto configurado coerente e homogéneo, permitiu um incipiente
acesso ao diálogo internacional de ideias, no qual o mesmo autor denomina de contexto
do pensamento de “rizoma” de Deleuze/ Guattari “deterritorialização das culturas, com a
criação de espaço de rede comunicativas integradas em torno de temas, o estilo e
percepção de valores” e assim também a aceitação de que “a cultura sempre tem operado
em torno a dois polos: um de comunicação local e outro de comunicação a distância,
mediante estruturas e “semânticas” que no fim conjunto de fronteiras politicas, mas que
constituem a sua própria geografia comunicativa. E frisa que além disso,a especificidade
e identidade latino-americana em operadores tal como “na colagem, “o pastiche” e em
enxertos e alegorias “pós-modernistas”.
Ainda segundo Brunner, a “heterogeneidade cultural” seria um fenómeno duplo: primeiro
a “segmentação e participação segmentada nesse mercado mundial de mensagens e
símbolos” e segundo de “ participação diferencial segundo códigos locais de recepção,
grupos e indivíduos, em movimento incessante de circuitos de transmissão de cobertura
desde a publicidade a pedagogia”.
Como realçado por Furtado, citando (Cardoso, 2011, p.128).

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As ciências sociais, tal como foram concebidas no Ocidente e introduzidas


em África, rejeitaram a interpretação de África enquanto como
continente civilizado, sobretudo a de um sujeito capaz de pensamento
autónomo. A construção do conceito e sua aplicação no continente
estavam impregnadas no discurso racial colonial de “alteridade”. Nesta
conceptualização, domínios da arte, música, a religião, a educação, a
história, a filosofia, às línguas e as ideologias foram completamente
excluídos porque não correspondiam à grelha antropológica ocidental. E
tudo o que não correspondia a essa grelha era considerado bárbaro,
selvagem, primitivo e, na melhor das hipóteses, tradicional. Este discurso
serviu ao mesmo tempo para justificar a escravatura e o colonialismo.
Neste processo, o continente africano foi criado, inventado, diria (Mudimbe, 1988),
para transformar-se em objeto de conhecimento.O conhecimento sobre a África e sobre
os africanos foi produzido, transmitido e imposto, essencialmente, num contexto de
dominação, por um sistema de conhecimento epistemológico e teoricamente situado e
sitiado pelo seu “pecado original”, qual seja, o locus e modus de sua concepção e nascença,
o facto é que muitos estudiosos africanos internalizaram tais modelos e utilizam-nos na
sua atividade de pesquisa.
Isto por tratar de uma epistemologia denominada pelo autor de etnocentrismo
epistemológico.
Em relação com a pós-colonialidade, na América latina, (Richard, 1991, p.220)
sustenta que a pós-modernidade questiona o sistema normativo, centrista, questiona a
hierarquia e a autoridade centrista, hegemónica, propagando o fim do eurocentrismo e
permitindo uma reavaliação dos centros e das margens, fomenta a alteridade, a diferença
(Richard, 1991, p.221) e como consequência a desconstrução e não hierarquização do
centro e atua nomádicamente, de tal forma que a “contraposição centro periferia como
absoluta e que seguir passando como vitimas do colonialismo soa mais retardaria que
nunca”.
Ainda o autor acrescenta:

A América Latina (…) tem os questionamentos pós-moderno e nas


hierarquias centradas na razão universal. E para a dimensão de abertura
aos “outros” no debate pós moderno é igualitarista e democrática, faz
falta da teoria pós-colonial não se contenta com tomar palavras de
representação da alteridade – embora seja boa a intenção de mediar sua
participação no circuito académico de Estados Unidos (Richard, 1991,
p.220) .

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Porém, no continente africano, tem-se vindo de forma progressiva a buscar


superar o etnocentrismo ou a hegemonia da epistemologia ociedental que se quer
universalizar. Neste sentido, trabalhos de (Mudimbe, 1988), de (Appiah, 1997). Ake
(1986), Hountondji (1989; 2008), Mazrui (1992) e muitos outros inscrevem-se neste
quadro. Com efeito, todos eles procederem, de forma diversa, por vias diferentes e
resultados distintos, a uma reflexão crítica sobre as condições teóricas e sociais
deprodução de conhecimento científico em África e sobre o continente.
A ideia central da crítica defendida pelos esses intelectuais visava a desconstrução
de eurocentrismo dos paradigmas teóricos das ciências sociais que protagonizavam a
produção do conhecimento situado a partir de fora, com um olhar de fora e, porque não,
propositalmente, construído construído a partir de fora. Assente, embora numa
racionalidade, ela mesma sitiada, mas que se quer asséptica e neutra, este saber permitiu
que os conhecimentos produzidos, de forma particular nas humanidades, tivessem sido,
muitas vezes construções ideológicas longe de analisar e explicar o “objeto” de
conhecimento.
Como realça Claúde Aké (1986) a autonomia, a libertação e a emancipação dos
intelectuais africanos e do continente africano passam por um desenvolvimento
endógeno da ciência e do conhecimento que esteja calcado na realidade social e cultural
do continente, formulando categorias explicativas inseridas num quadro epistémico que
rompa com a divisão do trabalho intelectual hegemónico.
Como Furtado realça, que poder-se-ia assumir que, não obstante uma importante
inflexão havida no continente africano, no que concerne à produção de conhecimento não
extravertidos e que buscam alicerçar num posicionamento em que:

(…) a endogeneidade exige que tratemos os dados etnográficos locais


simplesmente como temas de narrativas académicas, mas que
exploremos a tensão na qual eles estimulem categoricamente percepções
epistémicas ou levem a rupturas epistémicas (Adesina, 2012, p. 196).

Ciências Sociais – um campo em expansão


Os apuros de pensamento resultantes das grandes mudanças verificadas no mundo
durantea última metade do século XX e início deste século levaram as Ciências Sociais e
Humanidades a acelerarem a sua reconceptualização num esforço tendente a iluminar e
redefinir a sua função na sociedade e na ciência.

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Como realça (Silva; Borges&Neves, 2012, p.8):

Hoje, mais do que nunca, se debate sobre a finalidade das Ciências Sociais.
Questionamo-nos sobre o seu contributo para a formulação e resolução
dos problemas contemporâneos, incluindo de que forma elas podem
ajudar a uma maior eficácia na tomada de decisões políticas e
administrativas. Questionamo-nos, inclusivamente, sobre o futuro das
próprias Ciências Sociais e Humanidades, futuro esse que depende em
grande medida da pertinência das visões do mundo que nos
proporcionam. A procura de respostas para estes questionamentos não
pode estar dissociada da discussão em torno da problemática referente à
produção e apropriação do conhecimento. A cultura científica é
actualmente encarada como uma dimensão fundamental das sociedades
contemporâneas, na medida em que interfere com todos os domínios da
vida social.Ela representa o vector decisivo da modernização e do
desenvolvimento.
Certamente que a discussão sobre os paradigmas do conhecimento não se
circunscreve ao campo acadêmico. Ela associa-se diretamente ao tema do poder e
articula-se a um outro debate: o a da colonialidade do saber, que discute entre outras
coisas, as relações de dominação entre o Norte e o Sul no mundo. O tema remete também
à discussão sobre a produção/reprodução das relações sociais entre os indivíduos, grupos
e movimentos da sociedade, sobre as formas como vivem, interagem, reproduzem-se;
como atribuem sentidos às suas experiências, produzem sua cultura, fundamentam seus
projetos de vida e de sociedade (Cf. Silva; Borges&Neves, 2012).
Na América latina o campo das ciências sociais oferece condições privilegiadas
para o desenvolvimento da pesquisa social pelas seguintes razões: “1) a delimitação no
espaço periférico da disciplina; 2) a delimitação no tempo contemporâneo e sua relação
com os clássicos; 3) a originalidade que pode advir desta interface entre ruptura e
continuidade a partir da relação dialética entre teoria e empiria”(Mota, 2009, p.5).
Isto em mente a consciência da alteridade que por sua vez permite converter-se
em um privilégio para o exercício da vigilância epistemológica, ao mesmo tempo que a
pesquisa social não perde seu caráter de universalidade, por estarligada à tradição da
disciplina e ser constituída por seu passado. Ainterface entre ruptura e continuidade pode
se expressar em umapesquisa original. O cientista social latino-americano tem o privilégio
de se inserir em uma tradição, mas estar situado em um contexto que lhe impede sua
assimilação acrítica.

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Ao mesmo tempo em que a relação que as Ciências Sociais periféricas estabelecem


com as centrais é, por definição, pautada por diferenças de lugar, do contexto empírico,
ela também apresenta o desafio da relação com o tempo, ou seja, com a tradição que existe
neste outro lugar (Mota, 2009).
Já no continente africano persiste ainda importantes desafios a ultrapassar, tanto em
termos epistemológicos quanto em termos sociais. Com efeito, se em alguns países
africanos a questão fundamental se prende com a liberdade académica, noutros, os
obstáculos centram-se no consumo acrítico de abordagens e modelos teóricos de
explicação e numa certa sociopatologia (Balandier, 2001) que inibe a tomada de uma
posição que rompa com a sistemática produção de uma sociologia espontânea (Bourdieu,
2004).
Segundo (Cardoso, 2012, p.125), “Defendemos que, ao mesmo tempo que se
reclama um lugar para as ciências sociais praticadas em África, devemos voltar os olhares
para as condições de produção científica existentes no continente.
O autor ainda ressalta a necessidade da produção de uma epistemologia alternativa, que
por sua vez só ganhará sentido quando for capaz de integrar numa “episteme”
socialmente reconhecida e consequentemente pertinente, que seja potencial de
transformação social susceptível de se traduzir num projeto emancipador.
Segundo Cardoso citando (Cardoso, 2012 apud Santos & Meneses, 2009) a
contribuição tentará demonstrar que a violência tem sido um dos empecilhosà afirmação
de uma epistemologia alternativa, violência que, no contexto colonial, se traduziu na
repressão de todas as formas de conhecimento endógenas quenão fossem informadas
pelas matrizes coloniais, e que, por isso, foram relegadaspara o ‘universo das crenças e
dos comportamentos incompreensíveis’,constituindo-se assim num mundo
transcendental às categorias do verdadeiro edo falso.
O autor vai mais além ainda dizendo que:

Enquanto as sociedades e as elites africanas se batem para desconstruir


os paradigmas coloniais, têm sido as próprias estruturas e elites políticas
pós-coloniais a desenvolverem um certo tipo de violência face às
potencialidades de uma epistemologia alternativa, levando a que, em
casos extremos, a violência política tenda a destruir as bases culturais e
materiais da produção dessa epistemologia alternativa (Cardoso, 2012
apud Santos & Meneses, 2009) p.126).

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Isto porque para ele a África está longe de atingir o estágio de produção de um
pensamento próprio, baseado numa epistemologia libertadora, alternativa e um processo
autónomo e auto-confiante de produção e de capitalização de conhecimentos que nos
permita responder às nossas próprias questões e ir aoencontro das necessidades tanto
intelectuais como materiais das sociedades africanas.Há pelo menos duas razões que
explicam a necessidade de uma ruptura epistemológica, razões que são próximas uma da
outra, mas remetem para referenciais de natureza completamente diferentes. A primeira
tem a ver comuma razão de ordem externa à evolução do saber científico, ligada à
evolução dahistória na sua vertente fenomenológica. A outra é de ordem epistemológica
eremete para a própria dinâmica do processo de conhecimento (Cardoso, 2012). Porém
estes dois pontos estão extremamente ligados.
Em África, a produção de conhecimentoenquanto tal está a ser cada vez mais
negligenciada em favor de uma noção deuniversidade como centro de formação
estritamente ligado às necessidades domercado. O mais preocupante ainda é que isto
acontece num período em queuma cultura de consultorias tende a sobrepor-se à cultura
de pesquisa e departicipação em actividades científicas locais, regionais e
internacionais.O ambiente sociopolítico susceptível de influenciar a prática das ciências
sociaismelhorou consideravelmente nas últimas três décadas. A liberdade de expressãoé
hoje uma realidade palpável na maior parte dos países africanos.
E como Cardoso refere:

Fazer ciências sociais em África implica, porém, enfrentar uma série de


constrangimentos, entre os quais se destacam os infra-estruturais e
institucionais. Colocar a ruptura epistemológica na agenda das ciências
sociais requer, por isso, um trabalho concomitante de melhoria de
qualidade das ciências sociais praticadas no continente, e das condições
da sua produção. Sendo a universidade o lugar privilegiado de produção
de conhecimento, qualquer tarefa ligada a esta melhoria de qualidade
deve passar pela remoção das barreiras que impedem o desenvolvimento
da investigação científica, entre as quais se pode destacar, para além das
condições infra-estruturais, a ausência da autonomia universitária e a
falta de liberdade académica (Cardoso, 2012, p.143).

Consideração finais
A cultura científica é atualmente encarada como uma dimensão fundamental das
sociedades contemporâneas, na medida em que interfere com todos os domínios da vida

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social. Ela representa o vector decisivo da modernização e do desenvolvimento. Apesar


das reservas e dos debates, as pesquisas em Estudos Pós-coloniais estão crescendo
continuamente, isto porque a crítica pós-colonial permite uma investigação abrangente
nas relações de poder em múltiplos contextos.
Os estudos pós-coloniais por sua vez trazem um novo mecanismo que crítica - o
humanismo tradicional, no qual parte das ciências sociais que posa grandes tradições a
serem seguidas, isto é “a ideia do homem exemplar a ser seguida”. Ainda traz um novo
método, que capta o que há de melhor em cada sociedade, trazendo a dicotomia –
comparar realidades distintas (moderno – tradicional; desenvolvido - subdesenvolvido).
O excepcional desta posição é o que está sendo discutido em muitos casos e
descrevendo acertadamente os fenômenos da pós-modernidade e da pós-colonialidade
no seu âmbito internacional, com uma recodificação e concretização, mas na América
Latina se evita esse termo, parece “obscenos” da “pós-modernismo” e o“pós-colonialismo”
e é usado como “modernismo” com todas as caraterísticas da discussão da pós-
modernidade, no qual complica ainda mais o debate científico (Gadea e Barros, 2013).
No contexto latino-americano as críticas a teorias pós-coloniais tem se limitado a
repetir, com maior ou menor variação, isto por ser um sintoma, entre coisas, do grande
desconhecimento que reina na academia latino-americana sobre temas abordados por
estas teorias e seus autores principais (Toro, 1999). Ainda o autor vai mais além, dizendo
que há poucas referências que permitam ganhar uma visão panorâmica para esse debate.
Talvez pela falta de referência que existe no meio das teorias pós-coloniais fazem eco nos
debates académicos nos Estados Unidos.
Já no continente africano persiste ainda importantes desafios a ultrapassar, tanto
em termos epistemológicos quanto em termos sociais. Com o efeito, se em alguns países
africanos, a questão fundamental se prende com a liberdade acadêmica, noutros, os
obstáculos centram-se no consumo acrítico de abordagens e modelos teóricos de
explicações e uma certa sociopatologia (Balandier, 2001) que inibe a tomada de uma
posição que rompa com a sistemática produção de uma sociologia espontânea (Bourdieu,
2004).
Tanto na agenda de investigação, quando os modelos teóricos e metodológicos que
são utilizados, encontram-se imbricados e dependentes do “norte epistémico” e os
resultados da investigação são, preferencialmente, produzidos e publicados a norte

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(Furtado, 2015). Vale ressaltar que nos dois continentes a questão da pós-colonialidade
apresenta caraterísticas em comum que são: osespaços geográficos caracterizam-se pela
hibridez e diversos entrecruzamentos culturais; ambos lutam pela heterogeneidade da
hibridez e a desconstrução do discurso logo, reclamam contra o centro exclusivo e
dogmático e etnocêntrico no contexto no contexto de uma “desconstrução” com a
“reapropriação” e reclamam “identidade pura e autóctone”. Sendo assim, o campo das
ciências sociais constitui-se como um campo propício para a mudança de paradigma
dentro do contexto que domine dentro da postulado da pós-colonialidade que evidencie
os resultadosem um labor científico atual.

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FACULDADE DE DIREITO DO PIAUÍ: SEMENTE PLANTADA DO


ENSINO SUPERIOR NO PIAUÍ.

Francisca das Chagas Lopes Campos 

Introdução

A Universidade Federal do Piauí (UFPI) é a primeira universidade criada no estado


do Piauí. Fato notável ocorrido no período que vai do final da década de 1960 ao inicio
da década de 1970, e que resultou do empenho de homens próceres do Estado,
destacando-se, especialmente, os representantes de duas maiores cidades piauienses:
Teresina, a capital, e Parnaíba, seu segundo maior município, tanto no que se refere ao
número de habitantes como em relação à economia estadual.
A UFPI para ser criada deveria atender o perfil determido pela legislação específica
de criação de universidades brasileiras, que de acordo com o Decreto nº 16.782A de 13-
1-1925 em seu o Artigo 260, e conforme o projeto de criação de universidades, as novas a
serem criadas deveria seguir o mesmo padrão, da Universidade do Rio de Janeiro.
Entretanto, os Estados contemplados para usufruir de tal direito deveriam atender
determinados pré-requisitos, isto é, possuir patrimônio físico e orçamentário, nada
menor que três Contos de Réis, moeda da época (FÁVERO, 1997). Os estados
contemplados foram São Paulo, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
A UFPI foi criada no período da ditadura militar, no início da aplicação da Lei
5.540/68, que segundo a orientação do MEC-Ministério da Educação e Cultura exigia pelo
menos cinco faculdades, ou escolas de ensino superior, já estabelecidas. Nesse caso, a UFPI
foi instituída a partir da integralização das faculdades isoladas do Piauí: Direito,
Odontologia, Filosofia, Medicina e a Faculdade de Administração. As quatro primeiras
estabelecidas em Teresina e a última na cidade de Parnaíba.
Este artigo é parte de capítulo de minha tese de doutoramento em História, do
Programa de Pós-Graduação da Universidade Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo-RS
cujo titulo é “Faculdades Isoladas no Piauí: Marco inicial da constituição do ensino

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos; Professora da FAPI/FAEPI,


orientador Prof. Dr. Hernán Ramiro Ramirez

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superior no Piauí”, faculdades que deram origem a UFPI, sendo a pioneira, a Faculdade de
Direito, a qual acomodou o primeiro curso de Direito, no Piauí, criado nos idos de 1930.
. Esta pesquisa teve aposte teóricos autores que estudam sobre história, memória
e história oral, entre os quais Alberti (2005), Halbwachs (2006), Lawerthal (1998), Le Goff
(1992), Nora (1993), e outros. Os nexos foram construídos a partir de pesquisa
documental e memória de atores, que vivenciaram o período em estudo, cujo recorte
temporal vai de 1920, quando iniciam as primeiras discussões, até a consolidação desta
faculdade, marcada pelo reconhecimento definitivo e posterior federalização da IES, em
1950. Trata, portanto, de pesquisa historiográfica com utilização da história oral como
metodologia

Semente plantada do ensino superior no Piauí: A Faculdade de Direito

A Faculdade de Direto do Piauí, criada no ano de 1931, estabelecida em Teresina-


PI, foi constituída sob a égide das mudanças geradas pela Revolução de 1930 no Estado
brasileiro, através das quais foram implantadas as modificações julgadas necessárias nas
estruturas dos estados, para atingir o nível de ensino que tinha por finalidade funcionar
como estrutura de adequação da sociedade brasileira ao projeto político, desenhado pela
Nova República. Esta faculdade tomou como modelo para sua estruturação a Faculdade de
Direto do Recife, que à época foi o centro que recebeu o maior número de estudantes
piauienses, que dispunham de maior recurso financeiro, em busca de conquistar título
de bacharel em Direito.
O movimento político de 1930 desencadeou no Estado brasileiro a onda de
modificações que acarretou a possibilidade de organizar para si, uma nova estrutura
econômica e cultural. Neste contexto, pode-se destacar o processo de desenvolvimento
industrial, promovido pelo governo de Getúlio Vargas, o qual provocou novas
necessidades sociais e avivou carências não perceptíveis, mas já existentes. Na área
econômica surgiu a iniciativa de ampliar o mercado de trabalho, uma vez que era
também muito perceptível o crescimento nos campos industrial e do comércio.
Entretanto, por uma parte, a realidade mercadológica exigia um novo perfil de
trabalhador, isto é, um trabalhador especializado não tão facilmente encontrado na
maior parte dos centros econômicos do País. Por outra parte, o novo governo, na sua

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própria estrutura administrativa estabelecia mudanças nos quadros burocráticos, que


exigiam concentrar maior número de indivíduos com formação acadêmica.
A educação passou a apresentar maior peso nas políticas de governo, pelo menos
por dois motivos: a necessidade de formar mão-de-obra qualificada para o processo da
indústria; e para preparar a elite, a fim de garantir a legitimidade ao momento. Cunha (2007,
p. 150), sobre a Revolução de 30, afirma que essa política veio “abrir uma nova quadra na
história política do país, na qual o aparelho educacional sofreu alterações de grande
envergadura”. Neste contexto dos acontecimentos, a burocracia federal, nos maiores
centros do País, por exemplo “no Rio Grande do Sul como nos demais estados, exigia
diplomas escolares correspondentes aos cargos pretendidos” (CUNHA, 2007, p. 150), e
também aqui no Piauí, a elite, representada pela comunidade acadêmica, o governo e mais
os empresários buscaram tornar real um “sonho” relacionado com campo educacional, ou
seja, a instalação de um centro de ensino superior no Estado. Nessa perspectiva, a
participação do Interventor93, à época o Capitão Joaquim Lemos Cunha, foi de grande valia,
visto que, através desse ator o Estado se fez presente assumindo os custos de instalação e
manutenção da primeira instituição de ensino superior. Este foi o ponto de partida, pois
em seguida ocorreu uma mobilização de setores da elite piauiense, que começou a tomar
corpo focando no propósito: implantar Ensino Superior no Piauí.
Neste sentido, apresenta-se um trecho do artigo de Higino Cunha94 intitulado
“Memória Histórica da Faculdade de Direito do Piauhy”, publicado na Revista Acadêmica
(1935, nº 1, p. 2) da Faculdade de Direito do Piauí, e refletia que:

Era uma antiga aspiração da élite intellectual do Piauhy. Desde o advendo


da República no Brasil, que decretou a autonomia dos Estados,
attribuindolhes a faculdade de crear e dirigir institutos de ensino
secundario e superior, officiaes e particulares equiparados, algumas
unidades da Federação se apressaram em utilizar a nova regalia
constitucional. [...]. Mesmo no meio da confusão reinante nos primeiros
mêses, ella não deixou de vogar no espaço como um astro erradio em busca
do seu centro de gravitação. Heráclito Sousa e Leopoldo Cunha deramlhe
ingresso nas columnas do Estado do Piauhy e fácil foi conquistar apoio
indispensavel dos interventores federaes capitão Joaquim Lemos Cunha e
Landry Salles Gonçalves, [...].

93Cargo instituído pelo Presidente Getúlio Vargas após a Revolução de 1930, escolhidos os
interventores, pessoas de sua confiança e os nomeou governadores para cada estado.
94 Escritor, Jornalista, advogado e político brasileiro.

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O ideal de implantação de ensino superior no Piauí foi, verdadeiramente, proposto


e levado a termo por setores da elite piauiense e resultou na criação de uma Faculdade de
Direito. A opção deste curso foi defendida, talvez, pelo status social que este
proporcionava à comunidade política, e, aos intelectuais da época, também pelo número
de profissionais com tal formação no Piauí. Outra razão que pode ser considerada, afora
as já destacadas para justificação à criação da Faculdade de Direito, era a prática comum
da participação dos bacharéis no magistério, fato que não era privilégio do magistério
piauiense, mas de todo território nacional, havendo assim, o suprimento da mão-de-obra
qualificada e disponível para esse fim.
Então, a proposição de instalar ensino superior no Piauí foi sem dúvida uma luta
da elite intelectualizada do Estado, formada especialmente por bacharéis de Direito. Se
havia efervescência nesse período em prol de iniciativas para modernização do país por
parte de representantes das grandes cidades brasileira, no Piauí não foi diferente, graças
ao grupo de bacharéis em Direito, com experiência em reivindicações bem-sucedidos em
suas intenções. Segundo Tocqueville citado por Rosanvallon (2010) afirma que a
modernidade caracteriza-se pela “igualdade social”, pela “igualdade de condições”,
discursos proferidos pelos intelectuais que se empenhavam na conquista do ensino
Superior no Piauí.
Na formação de um povo, tem-se na educação uma condição que deve ser exercida de
direito e de fato para as expectativas de grandes transformações estruturais. No Piauí
faltava um estabelecimento de ensino superior falta que incidia em dificuldades para
desenvolvimento de ações que promovessem uma modernização da sociedade piauiense.
Por isso, estabelecer uma faculdade, sem dúvida, era bandeira defendida, especialmente,
pelo grupo oriundo da Faculdade de Recife e de outros estados da federação.
Iniciativa que se transformou em artifício unificador desse setor da sociedade
brasileira no início dos anos trinta, do século XX, tornando-se um dos principais temas nos
discursos dos intelectuais da época. Enfim o que se conhece através da literatura
pertinente acerca dos procedimentos adotados à época, em torno das iniciativas para
estabelecer uma instituição de ensino superior no Piauí, foi que partiu de um ideal de
homens próceres do Piauí, que tomou corpo, sendo compartilhado por profissionais de
diferentes seguimentos da sociedade piauiense.

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O discurso em torno de se estabelecer uma instituição de ensino superior no Piauí,


para muitos, representava uma única possibilidade de transformação do espaço cultural,
político e social do Estado, possibilitando o acesso aos menos favorecidos, ao ensino
superior, uma vez que aqueles de maior poder aquisitivo poderiam buscar,
naturalmente, em outros estados, as condições de ingresso aos anseios sociais,
econômicos, culturais e políticos, não necessariamente nesta ordem.95
O Piauí por não possuir nenhum curso de ensino superior, factível aos menos
favorecidos financeiramente, admitiu que “os pobres governados” deveriam contentar-
se em fazer um curso técnico, e mesmo assim, quando propositado, era necessário
deslocar-se para uma das duas maiores cidades do Estado, Teresina ou Parnaíba.
Ressalta-se que no Piauí, como no restante do País, alguns cursos havia prevalência de
interesse por instalação, isto é, o curso deveria ser aquele que representava no atual
contexto a possibilidade de garantir acesso ao espaço que representava maior status
político, social e intelectual. Desse modo, alguns cursos apresentavam vantagens em
detrimento de outros, como foram os casos dos cursos de Direito, Medicina e
Engenharia. Entretanto, nessa prevalência, o curso de Direito sempre teve uma posição
mais favorável no alcance do desejado, na época.
Sobre o prestígio concedido aos advogados tem-se matéria veiculada no jornal A
Imprensa, “Coluna Telegramma” (nº 60, 20.3.1926, p. 4), na década anterior à da criação
da Faculdade de Direito, que demonstra o que representava o diploma de Direito para a
sociedade piauiense, como exposto:

“Chegou a Barras o Dr. Eurípedes Mello”

Barras, 27 chegou hontem, conforme era esperado, o nosso talentoso


patrício Doutor Euripedes Mello, quem com extraordinário brilhantismo
acaba de concluir o curso de Direito no Rio de Janeiro [...].

Esta é uma das muitas citações encontradas nos periódicos que circulavam no
Piauí no início do século XX. Menção que representa a percepção da sociedade por
alguém que retornava para o seu Estado portando um diploma de curso superior,

95 Rosanvallon ao refletir sobre a construção de “Uma NovaHistória Política”, afirma que o poder e o politico
trazem, como conclusão, que nas sociedades sempre existiram duas classes distintas de indivíduos: os
governantes e os governados. Os primeiros conduzem as sociedades e, por isso é chamado classe política
ou classe dirigente; os outros, os governados, seriam os conduzidos, e são chamados de massa.

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especialmente se tal diploma fosse de bacharel em Direito, não que não fosse extensivo
aos Médicos e Engenheiros, todavia aos primeiros havia mais reverência.
Provavelmente seja por isso que possa explicar a importância e o anseio da sociedade
pela implantação de uma instituição superior no Estado.
Apresenta-se a seguir dois representantes das lutas pela implantação do Ensino
superior, cada um contribuindo em seu contexto histórico. O primeiro, Genuíno Sales
(1965)96, um dos muitos representantes da década de 1960 na luta pela criação da UFPI;
o segundo, Freitas (1988)97, egresso da Faculdade de Direito do Recife, foi atuante no
meio político e cultural do Piauí, e ao discutir sobre a situação educacional do Estado,
afirmava:
[...] a distância em que se acha esta província das faculdades e cursos
superiores de instrução, arreda aos menos abastados dos estudos
secundário que até hoje se consideram somente como preparatório e os
mais opulentos podem com mais facilidade e proveito cursá-los nas
aulas das faculdades ou de melhores colégios das capitais mais
adiantadas (FREITAS, 1988, p. 73).

Na avaliação de Freitas e demais membros que lutavam em prol da instalação de


uma instituição de ensino superior no Estado do Piauí, que era uma necessidade era
imperativa, isto é, a falta precisava ser suprida urgentemente, uma vez que na respectiva

96
Escreveu sobre as dificuldades vividas pela juventude piauiense, em relação ao contexto nacional, o
quanto fazia falta uma universidade no Estado do Piauí, principalmente analisando que, na década de
1960, o governo Federal estava abrindo espaço para a expansão universitária, (escreveu para o
“Almanaque da Parnaíba”) – periódico - primeiro exemplar editado em 1924. Destacados intelectuais
da Parnaíba e demais do Estado Piauí escrevem sobre conteúdos variados: contos, poesias, histórias,
informes sobre a cidade de Parnaíba e sobre o Estado.
97 Clodoaldo Severo Conrado de Freitas bacharelou-se em Direito em 1880. Promotor público e juiz

municipal em Teresina. Político no Império, membro do Partido Liberal (PL); defensor da causa
abolicionista e a republicana; Após a proclamação da República (15.11.1889), a seção piauiense do antigo
PL cinde-se, e Clodoaldo Freitas adere à ala liderada pelo barão de Castelo Branco, que não declarou apoio
ao governador Gregório Taumaturgo de Azevedo (1889-1890). Integrou a junta governativa presidida
pelo tenente-coronel João Domingos Ramos e integrada por Clodoaldo Freitas, Higino Cunha, José Eusébio
de Carvalho Oliveira, Elias Firmino de Sousa Martins e José Pereira Lopes. Transferiu-se para São Luís-MA,
destacando-se intelectualmente, figurando entre os fundadores da Academia Maranhense de Letras em
agosto de 1908. Retorna ao Piauí e é nomeado desembargador em 1916; fez parte do Tribunal de Justiça
do estado até o fim da vida. Foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Academia Piauiense de
Letras, em dezembro de 1917. Colaborou em diversos periódicos, entre os quais o Diário do Piauí, A
Imprensa, O Reator, O Abolicionista, A Reforma, O Democrata, O Estado, A República, A Notícia, O Piauí, O
Diário, Revista Mensal da Sociedade União Piauiense, A Pátria, A Notícia, Revista da Academia Piauiense
de Letras e Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, todos do Piauí. A Reação, de Pernambuco,
e Diário da Manhã e Diário, do Pará. Publicou Fatores do Coelhado (1892), O Piauí (1902), História do Piauí
(1902), Vultos piauienses (1903), Memórias de um velho (1905), A Pátria (1905), Em roda dos fatos
(1911), Crônicas (1911), História de Teresina (1912), Contos a Teresa (1915). Fez também as traduções
de Inferno de Dante (1912) e Os últimos dias de Pompéia (1912).

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avaliação dos intelectuais tal carência afetava até o ensino secundário, penalizava os
menos favorecidos economicamente, que deixavam de cursar essa modalidade de
ensino, que tinha finalidade de preparar para o nível superior, porque não tinham
condições financeiras para dar continuidade aos seus estudos em outras regiões do País.
Higino Cunha (1935) informa que as primeiras iniciativas em torno da criação da
Faculdade de Direito do Piauí, aconteceram em reuniões promovidas pelo grupo à
frente do empreendimento, as quais visavam aproximação com representantes da
sociedade teresinenses, oportunidade que aproveitavam esses eventos para a
necessidade de criação de um curso superior na cidade. Outras reuniões foram
realizadas no espaço da redação do Diário Oficial do Estado (órgão que tem a finalidade
de publicar os atos do poder público). A ideia central, nessas reuniões, foi tratar sobre
as providências necessárias à materialização da citada Faculdade. Sobre esse fato,
Higino Cunha destaca os presentes:

O engenheiro civil, Dr. Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves, que convidou para
secretariá-lo o jornalista Antonio Nunes de Mello, e para comporem a
Mesa os srs. Des. Cromwell Barbosa de Carvalho, Drs. Mário Baptista,
Arthur Furtado, Giovanni Costa, professor e o professor Leopoldo Cunha
(CUNHA, 1935, p. 23)

Na primeira reunião foi escolhida uma comissão organizadora para elaboração dos
trabalhos relativos à proposta de criação da IES, que solicitava apoio do Estado pelo
menos em dois itens: reconhecimento da Faculdade e obtenção de ajuda financeira, sem
as quais se tornava impossível à criação da IES. Às sessões de preparação sobre a formação
da Faculdade de Direito, novos participantes agregavam-se. A comunicação realizada
entre os integrantes das comissões sobre reuniões, e respectivas datas de realização das
mesmas, era feita através dos jornais locais, e, sobretudo pelo Diário Oficial do Estado.
Então, o resultado do esforço de alguns intelectuais foi alcançado, e, afinal a
Faculdade foi criada e em seguida, seu Estatuto, que foi publicado no Diário Oficial (DO)
do Piauí. Destaca-se que o estatuto foi publicado em partes. A primeira parte da
publicação foi no dia 07.04.1931, e as demais partes foram publicadas nos dias
subsequentes: 08,09 e 10.04.1931, respectivamente. Após esse ato de publicação, o
Estatuto seguiu para a Impressa Oficial, que providenciou compilação do todo, o qual
foi composto de 53 artigos distribuídos em doze capítulos que dispunha o seu

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conteúdo contendo a estruturação, o funcionamento, o patrimônio inicial e a receita da


recém-criada Faculdade. Este dia ficou reconhecido como a data da fundação da
Faculdade de Direito, então, assim o Piauí estava inserido de portador de Ensino
Superior. Vale lembrar que em 1927 havia 14 cursos de Direito no País.
Importa afirmar, que articulação entre o meio intelectual e as ações políticas
adotadas junto ao Interventor, a fim de que investissem seu apoio para a criação da
Faculdade de Direito no Piauí, foi definitivo, para que se concretizasse através do
Decreto Estadual Nº 1196, publicado no Diário Oficial do Estado, em 01.04.1931, que
notavelmente reconhecia a Faculdade de Direito do Piauí como um bem de utilidade
pública e como instituição de Ensino Superior em todo o Estado, através do Decreto
Estadual nº 1204, de 07.04.1931, publicado no órgão de imprensa do Estado (DO), no
qual o governo autorizava subsídio anual para dita Faculdade, que segundo Cunha
(1935), o valor deveria ser repassado por meio de cotas mensais à IES.
Na ata98 do dia 08.04.1932 ficou estabelecida a comissão fundadora da Faculdade
de Direito do Piauí, representada pelos Desembargadores Francisco Pires de Castro e
Simplício Mendes, Cromwell Carvalho, Giovanni Costa, Christino Castelo Branco, Mario
Baptista e Joel Andrade Sérvio. Nesta reunião discutiram-se as condições pelas quais se
deram a conquista da instalação do ensino superior do Piauí, senão pela solidariedade
e pelas subvenções do Estado, e controle da elite local, as quais definiram por muito
tempo a natureza que assumiu o ensino superior nessa entidade da federação. Nessa
reunião foi constituída uma comissão para agradecer a participação do Estado, através
do seu interventor.
Então, em 14.04.1931, a Faculdade de Direito do Piauí foi instalada, em
solenidade ocorrida no salão nobre da Câmara Legislativa do Estado, fato que contou
com a presença de autoridades do Piauí e do estado do Maranhão, dos quais se destacam
os interventores desses Estados, respectivamente, Capitão Joaquim Lemos Cunha e o
Padre Astolpho Serra; Carlos Macieira (prefeito de São Luiz do Maranhão); professora
Firmina Sobreira (Diretora da Escola Normal) e os professores recém-selecionados
para formarem o primeiro quadro de professores da referida IES (sessão de
08.04.1931). O convite para participar dessa solenidade foi extensivo ao Liceu

98Constano Diário Oficial do Estado de nº 80, 12.04.1931. Registra a constituição de corpo de direção da
Faculdade, bem como aprovação de currículo e do corpo docente da mesma p. 56.

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Piauiense e à Escola Normal (que prestigiaram a solenidade), a extensão do convite


para tais escolas provavelmente tenha sido oficializado assim, porque, com esse ato de
criação do ensino superior no estado, se esperava mudanças significativas no cenário
da educação no Piauí.
Assim, o Diário Oficial do Estado (nº 82, Ano I, de 15.04.1931, p. 1),
[...] constituiu esse acto, hontem realizado, ás 10 horas da manhã, um
verdadeiro acontecimento social, tal a concurrencia de pessoas da nossa
mais alta sociedade, senhoras, autoridades, representantes da imprensa
e de todas as mais classes. Incalculável assistência occupou, desde cedo,
os vastos salões da antiga Assembléia Legislativa, em cujo edifício
funcciona a Faculdade.

A Faculdade de Direito do Piauí foi solenemente instalada no dia 14.04.1931 pelo


decreto Nº 1196 do dia 01.04.1931. Pelo exposto, dá para entender que o pensamento
dos idealizadores de implantação do ensino superior no Piauí objetivava elevar o Estado
ao patamar em que se encontravam os demais estados da Federação, no item educação
superior, e através dela promover a construção de uma nova realidade cultural e
educacional no Estado, à medida que se creditava que o ensino secundário local, a partir
de então, entraria em uma nova fase, isto é, outra rotina escolar foi sendo redesenhada
no sentido de preparar os estudantes secundaristas para o exame vestibular99 da
Faculdade.
Foi desse contexto que saíram os principais idealizadores da Faculdade de Direito
do Piauí, promotores de debates sobre temáticas avaliadas como polêmicas pela sociedade.
Contudo, tais discussões realizadas nesta instituição de ensino superior, na maioria das
vezes não alcançavam as fronteiras dos limites de domínios das famílias dos seus principais
interlocutores, uma vez que ao retornar às suas províncias, os egressos da Faculdade do
Recife, assumiam obrigações que lhe era determinada por sua família e pelo setor social e
político ao qual se encontravam vinculados.
A composição do primeiro corpo estrutural da Faculdade foi formada de magistrados
(maioria), funcionários públicos e profissionais liberais. O primeiro Diretor o
Desembargador Francisco Pires Mendes; o Primeiro Secretário Joel de Andrade Sérvio, e o
Corpo Docente foi formado pelos professores: Adalberto Correia Lima, Cromwell Barbosa

99 Foram instituídos pela Reforma de Maximiliano em 18/03/1915, em substituição aos exames


preparatórios para entrada no ensino superior.

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de Carvalho, Ernesto José Baptista, Francisco Pires Gayoso de Almendra, Heli Fortes Castelo
Branco, Higino Cunha, Joaquim Vaz Falcão Costa, João Emílio Falcão Costa, João Osório
Porfírio da Mota, José de Arimatéia Tito, José Messias Cavalcanti, Mário José Batista, Pedro
Borges da Silva e Simplício de Sousa Mendes. Quadro de professores que implantou de fato
o ensino superior no Piauí. Embora implantada e funcionando, a faculdade apresentava
muitos problemas, entre os quais se pode destacar, em razão de a maioria do corpo docente
pertencer a área da magistratura, e que, muitas vezes, encontravam-se impossibilitados de
exercer as atividades de magistério, sem contar que os salários de professor não eram um
dos fatores mais atrativos, apesar de que todos esses professores, como já foi mencionado,
exerciam outra atividade laboral, auto sustentável.

Primeiros Bacharéis genuinamente piauienses

Em 1935 colou grau a primeira turma de bacharéis genuinamente piauiense.


Entretanto, a faculdade encontrava-se impossibilitada de diplomar a turma porque ainda
se encontrava em processo de reconhecimento pelo Governo Federal. E, a lista de
exigências encaminhada pelo Ministério de Educação (MEC) para o reconhecimento,
encontrava-se com algumas pendências. Motivo que provocou grande insatisfação em
alguns formandos, que exigiam receber da IES o tão esperado diploma de bacharel em
Direito. Tamanho aborrecimento os levou a impetrar mandato de segurança, requerendo
o direito de colar grau.
Segundo Bezerra (2001), nos dias 20 e 31.12.1935 os bacharéis João Clímaco da
Silveira e Alberto Brito de Rezende Veras colaram grau; e Luis Lopes Sobrinho, no dia
09.01.1936, início do ano seguinte, colou grau. Os requerentes fundamentaram
solicitação tomando por base o Decreto Estadual Nº 1.196, de 01.04.1931 100. Assim, a
faculdade realizou a cerimonia de colação de grau dos bacharelando atendidos pelo
mantado judicial. Tal feito foi notificado pelo Diário Oficial do Estado (DO), por uma

100 Decreto Estadual nº 1.196, de 1º abril 1931, que declarou de utilidade pública a Faculdade, e declarava
válidos para todos os efeitos, no território piauiense, os diplomas por ela expedidos, e ainda no Art. 18 das
Disposições Transitórias da Constituição Federal de 16 de julho de 1934, que aprovou os atos do Governo
Provisório, Interventores Federais e demais delegados do mesmo Governo, excluindo tais atos e seus
efeitos de qualquer apreciação judiciária (FREITAS FILHO, 2003a, p.16).

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parte a sociedade tomaria conhecimento do caso, por outra, publicizando a notificação


judicial.
A prática que regulava a cultura de bacharelado em Direito em todo país era o
aproveitamento desses profissionais em cargos públicos, logo após a conclusão do curso e
colação de grau. No Piauí não fugia à regra: os três bacharéis que colaram grau através de
mandato de segurança, imediatamente assumiram cargos públicos no Piauí. O restaste
da turma, porém, colou grau somente depois que a faculdade obteve reconhecimento
pelo Governo Federal, mediante o Decreto de nº 864, de 01.06.1936. Por fim, somente
em 27.06.1936, o restante da primeira turma colou grau, momento em torno de todas
as solenidades que a ocasião merece.
Por este documento de reconhecimento, a faculdade foi equiparada às demais
faculdade de Direito do País. O Relatório de aprovação das condições de funcionamento
da Faculdade foi assinado pelo Ministro da educação à época Gustavo Capanema101. Tal
ato de reconhecimento garantia à Faculdade continuidade às suas atividades, e desse
modo a Congregação em atitude de gratidão resolveu conferir o primeiro título de
Professor honoris causa102 ao ministro da Educação. Honraria graças ao empenho do
professor catedrático Heli Fortes Castelo Branco. No entanto, o esforço para garantir o
reconhecimento da Faculdade transcendeu as esferas docente/discente, uma vez que
nesse pleito necessitou-se e de fato ocorreu, articulação de representantes políticos
locais junto ao Governo Federal. Foi um acontecimento notável! Noticiado pela imprensa
oficial, naquele momento histórico, quando mesmo os que mais investiram na causa de
institucionalizar o ensino superior no Piauí, não atinaram para o fato que, na verdade, era
grandioso: O ensino Superior havia se inserido no Estado do Piauí.

101 No projeto político educacional desenvolvido na década de 30, está presente a preocupação de
incorporar o jovem à estrutura de produção capitalista. Em relação ao ensino superior, isso fica claro,
quando assinala ser este de capital importância por se destinar “à formação dos grupos mais altos da
elite cultural do País (CAPANEMA,1937, p. 33).
102 Expressão latina usada atualmente como um título honorífico, que significa literalmente “por causa de

honra”. Normalmente é utilizada quando uma universidade de prestígio deseja conceder um título de honra
para uma personalidade de grande destaque ou importância por seu trabalho. Dado para uma pessoa
mesmo que ela não tenha um curso universitário, entanto tenha se destacado ou exercido grande influência
em determinadas áreas. No Brasil o primeiro título ofertado foi ao rei Alberto I, da Bélgica no final da 1ª
República, pela Universidade do Rio de Janeiro, atual UFRJ, Fávero questiona se a criação desta IES foi
especialmente para este fim.

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Na década seguinte, novos acontecimentos acorreram. Em 09-01-1945, através


do Decreto-Lei Nº 17.551, de 09-01-1945, a faculdade recebeu reconhecimento
definitivo e, em 1948, o Governo Estadual cede à Faculdade o prédio do Grupo Escolar
Abdias Neves, localizado na Praça Demóstenes Avelino, já narrado neste documento.
Assim, verifica-se que desde a sua criação a faculdade de Direito funcionou em vários
espaços. De modo provisório no Paço da antiga Câmara Legislativa, até sua instalação
em sede própria, prédio do Grupo Escolar Abdias Neves. Entre os diversos Prédio
pode-se destacar o da antiga Secretária da Fazenda, localizado próximo a Igreja do
Amparo, local que deu lugar à sede, atual da Receita Federal no Piauí, no Estado.

Considerações finais
Por tudo que foi exposto nesta narrativa pode-se reconhecer que a Faculdade de
Direito do Piauí representa o marco inicial para a implantação do Ensino Superior no
Estado do Piauí. Surgiu do empenho de homens próceres piauienses intelectuais e de um
corpo de bacharéis oriundos da Escola de Direito de Recife. Então, o Ensino Superior
implantado no Estado, mesmo que tenha se estabelecido em torno de grandes
dificuldades, conseguiu construir um perfil próprio de profissionais para os cargos
imediatos da gestão pública.
A Faculdade de Direito do Piauí, como narrado neste, durante seu percurso
histórico, para se estabelecer instalou-se em vários espaços, desde o Paço da antiga
Câmara Legislativa, em parte do prédio da antiga Secretária da Fazenda, no Grupo
Escolar Abdias Neves, sua sede definitiva, até ser incorporada à junção de cinco
Faculdades Isoladas do Piauí para a criação da Universidade Federal do Piauí, no início
da década de 1970.
Assim sendo, pode-se concluir que o esforço para a institucionalização do ensino
superior no Piauí ocorreu tardiamente, considerando o distanciamento entre a criação
dos primeiros cursos superiores no Brasil e a criação desta IES, proporcionando a criação
de uma identidade própria, plantada nos idos de 1931-1945, até os dias atuais.

Referências

ALMANARQUE DA PARNAÍBA. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1942.

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CORRESPONDÊNCIAS DE UMA GUERRA: UMA ANÁLISE


METODOLÓGICA SOBRE AS CORRESPONDÊNCIAS PESSOAIS DO
GENERAL JOCA TAVARES DURANTE A REVOLUÇÃO FEDERALISTA DE
1893-1895 NO RIO GRANDE DO SUL

Gustavo Figueira Andrade

Introdução

Os estudos de correspondências têm recebido bastante impulso nos últimos anos


e criado um espaço para o estudo de novos atores e novas temáticas, especificamente no
âmbito da História Política e da História Militar. Ao tornar possível o estudo das tramas
das relações de poder social e familiar, do estabelecimento de redes (LANDÉ, 1977), das
negociações, dos sujeitos envolvidos, das trocas clientelísticas e estratégias sociais dos
indivíduos também dentro das forças armadas, torna possível relacionar o que antes
ficava restrito à caserna ao social, entendendo os militares enquanto sujeitos que
representam importantes aspectos da cultura, economia e da política de uma sociedade
na qual os indivíduos estão (TEIXEIRA, 1995).
As cartas, também entendidas enquanto escritas de si, consiste em códigos
carregados de sentidos para uma época “na qual o público e o privado se entrelaçam,
constituindo a singularidade do indivíduo numa dimensão coletiva” (MALATIAN, 2013, p.
200) ao mesmo tempo em que reafirmam a diacronia do tempo no qual investigador se
encontra para com o tempo do evento ocorrido.
Neste sentido, este estudo apresenta os resultados de nossa dissertação de
Mestrado, a qual se utilizou por fontes 369 cartas e 135 telegramas, diário de campanha,
além partes de combates e ordens do dia do General João Nunes da Silva Tavares (joca
Tavares), tendo como critério de escolha, as que possibilitaram uma melhor análise dos
diversos aspectos da vida do sujeito durante a Revolução Federalista de 1893. A partir
destes elementos, construímos sua trajetória de vida a partir de dados biográficos e das
correspondências trocadas com chefes federalistas e legalistas no espaço fronteiriço entre

 Doutorando, PPGH/ UFSM.

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Brasil e Uruguai e Argentina, compreendendo como este personagem construiu sua


trajetória política e suas relações de poder a partir das suas relações pessoais (familiar,
política e militar) no período de 1892-1895.
Sobre nosso personagem, Joca Tavares, nasceu em 1816, na vila de São João Batista
do Herval103, estado do Rio Grande do Sul, filho de João da Silva Tavares (Visconde do
Serro Alegre) e de Umbelina Nunes, era antigo chefe político do Partido Conservador na
cidade de Bagé durante o Império. No que diz respeito a sua trajetória militar, lutou em
diversas campanhas ao longo do século XIX, tais como Revolução Farroupilha, em 1835,
ao lado das forças imperiais e também da campanha contra Oribe e Rosas em 1851, mas
principalmente destacamos a Guerra do Paraguai entre 1865-1870. Após o término do
conflito, recebeu o título de Barão do Itaqui e com seu retorno à Bagé, exerceu por
diversas vezes o Comando da Fronteira e Guarnição de Bagé, assim como também o
Comando Superior da Guarda Nacional nesta mesma cidade. Ainda em 1886, também foi
nomeado pelo Imperador Dom Pedro II, vice-presidente da Província do Rio Grande do
Sul.
Com a Proclamação da República, havia abdicado o título de Barão do Itaqui,
manifestando-se a favor do novo regime que se instaurara em 1889, declarando-se
republicano. Em 1892, foi um dos principais nomes envolvidos na fundação do Partido
Federalista, na cidade de Bagé, colocando-se como oposição ao Partido Republicano Rio-
grandense (PRR) de Júlio de Castilhos. Foi vice-governador do Rio Grande do Sul em 1892,
vindo a assumir o governo por poucos dias, até ser deposto por um golpe articulado entre
militares do Exército e do PRR, período em que se refugia no Uruguai juntamente com
outras lideranças federalistas e de onde passa a organizar a invasão do Rio Grande do Sul,
dando início, em 1893, à Revolução Federalista de 1893-1895.

A abordagem quantitativa

A partir de uma prévia leitura das fontes, tornou-se preciso realizar uma descrição
do suporte e das condições destes documentos. As cartas, em sua maioria eram escritas
em papéis específicos para correspondências, outras em pequenos pedaços de papel ou

103
Atualmente denomina-se cidade de Herval, Rio Grande do Sul.

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em folhas de cadernos. As marcas presentes nos papéis, algumas devido ao de seu


envelhecimento, em geral estavam em ótimo estado de conservação, muitas
apresentavam o logotipo da empresa que as fabricava, outras apresentam pequenos furos,
apresentando certa sequencia ao longo do texto, o que pode evidenciar a utilização de
cifras ou códigos secretos em clara preocupação de protegê-las caso caísse nas mãos do
inimigo. Os telegramas, grande parte escritos a lápis, em formulário especial dos postos
de telégrafo onde eram enviados e recebidos, apresentavam a data, emissor e receptor, a
cidade de onde era enviado e a sua classificação como urgente, urgentíssimo, reservado,
entre outras formas utilizadas, diferem das correspondências quanto à forma como são
escritas, sem a utilização de preposições ligando as palavras.
Após a descrição, uma segunda etapa consistiu na realização de uma leitura do
material possibilitando identificar os assuntos tratados e os personagens envolvidos,
precedendo a um fichamento de todos os assuntos. Nesse sentido procuramos separar
por anos os assuntos, logo passando a identificar a correspondência ativa e passiva entre
os evolvidos no pacto epistolar.
No que tange à frequência que as cartas eram enviadas ou recebidas, estipulamos
uma padronização para analisa-las: eventual, regular e assídua, dividas entre os anos de
1892, 1893, 1894 e 1895. O total de cartas enviadas pelo General Tavares no período em
análise foi de 131 cartas, contrastando com um total de 238 recebidas por ele. Quanto aos
telegramas, 6 foram enviados por ele e 129 recebidos oriundos de outros líderes
federalistas. A partir dessa divisão, pudemos estabelecer a função de mediação ocupada
por Joca Tavares nesse contexto da guerra civil.
Ao falar sobre a mediação desempenhada pelo General Tavares, referimo-nos ao
entendimento trazido por José Maria Imízcoz (2011), o qual assevera que as cartas
permitem observar “o capital relacional e seu uso, as funções de mediação, o
desenvolvimento da ação, a mobilização dos atores implicados nela, a transmissão da
informação, os intercâmbios de bens e serviços, a circulação de favores, o poder de
influência efetivo, as conexões com as instituições” (2011, p. 107). A solicitação de favores
aos mediadores, criam, segundo Angela de Castro Gomes (2000), “uma confiança
depositada em seu destinatário [...] transformando-o em seu protetor”, conformando o
que a autora definiu como sendo uma retribuição clientelística podendo ser na esfera
pessoal quanto na impessoal (GOMES, 2000, p. 32-33).

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Ainda sobre a mediação, Imízcoz (2011, p. 123) assevera que esta é responsável por
ligar grupos e subgrupos, por onde os mediadores atuariam como pontes que teriam o
controle da comunicação, revelando interações diretas – não mediadas
institucionalmente entre atores sociais (2011, p. 101). Essa situação é evidenciada a partir
dos números que demonstram a superioridade do número de cartas e telégrafos
recebidas pelo General Joca Tavares entre 1892 a 1895 sobre as enviadas, destacando a
sua atuação enquanto mediador dentro do grupo social no qual estabeleceu suas redes,
realizando a ligação entre grupos distintos, nesse caso em estudo, das diversas lideranças
e apoiadores federalistas de diversas localidades, atendendo seus pedidos e emanando
ordens.
Na busca por identificar as correspondências ativas e passivas para uma
compreensão quantitativa direcionou-nos a uma busca pelos principais nomes
envolvidos, a frequência com que eram enviadas as correspondências, a distância e o
tempo que estas demoravam para alcançar seu destino, os meios pelos quais eram
transportadas, os vínculos existentes entre os envolvidos e a natureza destes
correspondências. Essa metodologia permitindo-nos demonstrar constatando as
afirmações realizadas e assim atingir um dos principais objetivos dos dados quantitativos
que é auxiliar a realização de uma análise qualitativa, de modo que uma complemente a
compreensão da outra.
Dentre os principais nomes envolvidos, elencaremos alguns destes, tais como o
general legalista Inocêncio Galvão de Queiróz104 e o Coronel Carlos Telles105, os chefes
militares e civis federalistas Aparício Saraiva106, Gumercindo Saraiva107, Gaspar Silveira

104
General que assumiu em 1895 o Comando em Chefe das Forças do Exército Brasileiro em operação no
Rio Grande do Sul, o qual por ordem do Presidente Prudente de Morais, propôs e passou a tratar
diretamente com o General Joca Tavares da pacificação da Revolução Federalista de 1893 (MEDEIROS,
2005).
105 Irmão do General João Telles, comandou o 31º Batalhão de Infantaria, foi Comandante da Fronteira e

Guarnição de Bagé durante o cerco da cidade que durou de novembro de 1893 a janeiro de 1894, resistindo
às investidas federalistas (PORTO ALEGRE, 1917).
106 Importante caudilho e liderança política do Partido Blanco na República Oriental do Uruguai, comandou

assim como seu irmão de Gumercindo Saraiva, uma divisão do Exército Libertador durante a Revolução
Federalista de 1893 (DOBKE, 2015).
107 Importante caudilho e antigo chefe político Liberal na cidade de Santa Vitória do Palmar ainda no

Império. Na República sofreu perseguições e veio a comandar uma divisão do Exército Libertador, a qual
chegou até o Paraná (LOPEZ, 2005).

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Martins108, Luís Saldanha da Gama109, evidenciando a extensão das redes de relações e o


prestígio que o General Tavares possuía nesse contexto da guerra civil.
De acordo com Teresa Malatian (2013) a análise das correspondências trocadas
permite compreender “as redes de sociabilidade nas quais os indivíduos se inserem e os
vínculos existentes entre os correspondentes [...] para a compreensão da inserção social
do remetente em posições familiares, profissionais, de amizade, etc” (MALATIAN, 2013,
p. 203).
Essas redes abrangem uma região territorializada110 pelo indivíduo, possível de ser
identificada a partir das correspondências, principalmente a partir dos telégrafos, muitos
dos quais possibilitam compreender esta amplitude a qual envolve também a construção
de seu poder simbólico111 enquanto chefe político e militar federalista. Num total de 135
telégrafos, muitos deles enviados de diversas localidades como Rio de Janeiro, Bagé,
Uruguaiana, São Borja, Porto Alegre, Canguçu, Piratini, Herval, Pelotas, Jaguarão, Dom
Pedrito, Santana do Livramento, Rosário do Sul, São Gabriel no Brasil e Montevidéu, Minas
de Corrales, Melo, Taquarembó, Paysandú, Salto, Rivera, dentre outras cidades na
República Oriental do Uruguai e também das cidades de Buenos Aires, Concórdia, e de
algumas localidades da Província de Corrientes na República Argentina. Um destes
telégrafos, datado de 13 de dezembro de 1891, enviado da cidade de Rosário pelo Major
Alencastro, diz: “Pronto manter ordem e consolidação República Federal. Não Podendo
continuar anarquia atual intervenha com vosso prestígio reestabelecimento paz Estado”
(Acervo Particular da senhora Yara Maria Botelho Vieira, Bagé, RS. Transcrição de
Gustavo F. Andrade, 2016).
Existem alguns elementos presentes nas cartas do General Tavares que possibilitam
compreender como era construída a imagem de Joca, os vínculos existentes entre os

108 Membro do Conselho de Estado ainda no Império, foi Conselheiro do Imperador, chegando a ser
Presidente da Província do Rio Grande do Sul. Com a República sofreu exílio, retornando em 1892, quando
fez parte da fundação ainda no mesmo ano, do Partido Federalista em Bagé. Foi importante caudilho e chefe
politico da Revolução (ROSSATO, 2014).
109 Almirante que se juntou aos federalistas após a dissidência com Floriano Peixoto, veio a ser Comandante

em Chefe do Exército Libertador em 1894 até ser morto batalha no ano de 1895 (AXT; COSTA, 2009).
110 ARRIOLA, A. T. Propuesta de definición histórica para región. Estúdios de Historia Moderna y

Contemporânea de México, Ciudad de Mexico, n. 35, p. 181-204, jan./jun. 2008.


111 BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998. 61

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envolvidos no pacto epistolar (GOMES, 2004, p. 19), revelando a natureza destas


correspondências. Para tal análise, observamos o que Ângela de Castro Gomes (2000, p.
41) destaca que “as formas de tratamento a ele conferidas, os termos com que os
missivistas se despedem do destinatário e todas as menções realizadas às suas
características de personalidade”. Esse tratamento ainda segundo a autora, diz respeito a
maneira como a ele se referem, podendo ser de dois tipos: o tratamento pessoal e o
tratamento formal (GOMES, 2000, p. 41).
O tratamento pessoal envolve manifestações de apreço, saudações, uso de
expressões de cunho mais íntimo, como “amigo”, “compadre” por exemplo. O tratamento
formal se dá pela utilização do missivista de pronomes de tratamento como, por exemplo,
“Excelentíssimo Senhor General Comandante em Chefe do Exército Libertador” ou
“Ilustríssimo Senhor General João Nunes da Silva Tavares” entre outras formas de
manifestar formalidade. Essa pessoalidade ou a formalidade pode também dizer respeito
à maneira como o público e privado eram tratados, o quanto os interesses da Revolução
diziam respeito aos seus interesses pessoais.
No que tange ao poder que Joca exercia num determinado espaço, este estava ligado
a capacidade de negociação que dispunha e para a conformação de estratégias sociais, tais
como a de compadrio, clientelismo e matrimônios, conformando laços de parentesco112, o
tenham ajudado formar uma ampla rede de relações que lhe permitira conciliar e articular
diversos agentes históricos entorno da revolução. Por outro lado, essa rede evidencia um
território que abrange uma região o qual ultrapassa os limites políticos, ressaltando o
perfil transfronteiriço de Joca Tavares e a influência do espaço platino em suas ações e
suas táticas militares durante o conflito. Possivelmente esse conhecimento fizesse parte
de um espaço de experiência (KOSELLECK, 2006, p. 309) adquirido pelo indivíduo ao
longo de sua vida, o que veio a capacitá-lo para exercer o posto de General em Chefe do
Exército Libertador/Federalista.
A distância da qual era enviada as cartas pelo remetente determinava o tempo que
esta demoraria a chegar a seu destinatário ao mesmo tempo em que evidencia a amplitude

112GRAHAM, R. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Tradução de Celina Brandt. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997. Para Graham, existiria um entendimento de que os laços familiares ultrapassariam os
laços consanguíneos. Essa família extensa do século XIX envolvia os apadrinhamentos, ser afilhado de
alguém importante, as relações de compadrio, o que implicaria a existência de obrigações entre os
envolvidos.

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da região conformada pelo individuo. Muitas destas poderiam ser enviadas, recebidas,
respondidas e reencaminhadas no mesmo dia, outras, porém, poderiam demorar diversos
dias para chegar ao seu destino principalmente devido à diversas variáveis, tais como o
tempo, o espaço geográfico e o posicionamento do inimigo.
O tempo que uma carta demoraria para achegar ao seu destinatário pode ser
analisado através de carta enviada por Joca Tavares no dia 18 de outubro de 1894, o qual
estava próximo a Dom Pedrito, ao Almirante Saldanha da Gama que se encontrava em
Montevidéu, diz: “Exmo. Sr. Almirante Saldanha da Gama. Estou de posse da carta de Vossa
Excelência, datada de 9 do corrente [outubro], da qual foi portador o Sr. Guarda-Marinha
Agérico de Souza [...]” (TAVARES, 2004, p. 115). Por ser uma guerra caracterizada pelo
movimento, dificilmente os comandantes militares permaneceriam muito tempo em
determinada localidade, logo o tempo nem sempre entre uma comunicação e outro
poderia ser igual. No caso em que carta que apresentamos acima, trocada entre Joca
Tavares que se encontrava no município de Dom Pedrito, e o Almirante Saldanha da Gama
que estava em Montevidéu, o tempo foi de 9 dias.
Quanto ao transporte das cartas, este era realizado através de mensageiros a cavalo,
de estrita confiança de seus comandantes, no caso em estudo, poderiam muitas vezes ser
seus próprios filhos. Estes deveriam também ser exímios conhecedores do terreno que
transitariam para evitar cair nas mãos do inimigo, e muitas vezes realizavam os percursos
à noite sem iluminação alguma. Estas questões podem ser percebidas através da carta
enviada por Marcelino Pina e recebida por Joca Tavares em 2 de outubro de 1894, na qual
assevera “[...] o portador, que é meu filho, vos informará de tudo e explicará as
circunstâncias” (TAVARES, 2004, p. 106. Grifos realizados pelo autor).
Diversas destas cartas eram cifradas e existiam maneiras de evitar que as
informações fossem obtidas pelo inimigo em caso de captura dos mensageiros. Esse
cuidado é evidenciado através de uma carta na qual Joca Tavares na qual afirma em carta
do dia 15 de setembro de 1894, a partir da carta enviada pelo o Almirante Saldanha da
Gama a este, na qual afirma que “[...] O General Piragibe completará o escrito e sentido
desta carta, dizendo-vos de viva-voz a Vossa Excelência o que não convém, neste
momento, confiar no papel” (TAVARES, 2004, p. 102. Grifos realizados pelo autor).
Quanto aos telegramas, devido a grande velocidade com que as informações eram
transmitidas à longas distâncias, as informações eram muito mais céleres. No entanto,

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demandaria que os comunicantes que se deslocassem de seus acampamentos por meio


de cavalos até uma estação de telégrafo, muitas vezes em localidade distante, para então,
levar ou receber uma comunicação, a qual deveria ser autenticada sua veracidade.
Diante dessas possibilidades que as cartas oferecem, a análise quantitativa permite-
nos demonstrar constatando as afirmações realizadas e assim atingir um dos principais
objetivos dos dados quantitativos que é auxiliar a realização de uma análise qualitativa,
de modo que uma complemente a compreensão da outra.

Uma abordagem qualitativa

Pudemos identificar onze temas diferentes nas cartas, muitos dos quais não
aparecem isolados e se interligam, como, por exemplo, as cartas com assuntos políticos,
geralmente aparecem sendo tratados juntamente a correspondências apresentam temas
sobre a estratégia e os destinos da revolução. Dentre os temas identificados estão:
Questões militares/ movimentações militares / ordens113; Reclamações; Questões
militares/ estratégia; Questões militares/ inteligência114; Vandalismo; Assuntos políticos;
Assuntos financeiros; Assuntos internacionais; Assuntos pessoais e outros assuntos.
É importante destacar o teor militar das correspondências, considerando o
período de guerra civil e da graduação de General ocupada por Joca Tavares. Nesse
sentido, concentravam-se neste personagem, além de preocupações militares, as
atribuições de uma atuação política, pois ainda sim era membro do Partido Federalista e
deveria comandar grandes efetivos de soldados, muitos destes correligionários políticos,
em determinados espaços geográficos, o que o levava a entrar em contato com outros
chefes militares e autoridades políticas a quem está subordinado ou que estão
subordinadas a sua pessoa. Somados a estes assuntos, estavam também as questões
pessoais e o forte envolvimento da família Silva Tavares no conflito.

113 Embora na contagem dos números tenhamos chegado ao número de 36 cartas para o ano de 1893, na
análise qualitativa chegamos a uma contagem diferente exatamente por em algumas cartas existiram
diversos assuntos que nos utilizamos para separar as temáticas em uma mesma missiva.
114 Quando utilizamos o termo inteligência, nos referimos às atividades que envolvem o conhecimento de

informações vitais, obtidas sem o conhecimento do inimigo, abrangem assuntos estratégicos, táticos ou de
operações desenvolvidas no âmbito político/militar/civil federalista ou legalista que possam ajudar as
lideranças na tomada de ações e coordenar as movimentações militares procurando obter vantagem sobre
o inimigo.

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Tendo em vista o grande número de temas a serem observados, iremos apresentar


a seguir uma análise sobre os assuntos pessoais. Elencar as que tratassem do aspecto
pessoal de Joca Tavares, não apenas durante a Revolução fui uma tarefa difícil, pois
também envolvem muitas vezes assuntos políticos. Algumas tratam diretamente, outras
indiretamente, no entanto podemos compreender o grau de proximidade entre o emissor
e o receptor principalmente pela própria escrita das cartas, na maneira de se referir,
formal ou mais informal, na recorrência de assuntos familiares, envolvendo problemas de
saúde dos envolvidos, parabenizando por vitórias pessoais ou mesmo manda
recomendações à família. Dentre as cartas que apresentam esse aspecto pessoal das
correspondências, nas quais as formas de tratamento expressam a proximidade entre o
remetente e o receptor, para exemplificar o que expomos acima, escolhemos uma carta
do dia 17 de janeiro de 1895, entre o hervalense General José Maria Guerreiro Victória e
o General Tavares:

Passo dos Carros, arroio Candiota, 17 de janeiro de 1895. Amigo General


Tavares. Terei particular satisfação se o meu velho amigo gozar saúde.
Eu continuo sofrendo a minha paralisia, mas disposto a continuar nossa
nobre missão [...] Nunca vi tanta ambição de comando e postos e tantos
pretensiosos [...].General Guerreiro Victória (TAVARES, 2004, p. 184-185.
Grifos realizados pelo autor).

Estas cartas possibilitam ter acesso a esse aspecto de sua vida pessoal, poderiam
ser de familiares, amigos, políticos em geral, ou mesmo de “protegidos” políticos deste
chefe. Em carta do dia 1 de novembro de 1893, o Cônego João Inácio de Bittencourt e
Pedro Rodrigues de Borba, escrevem ao General Tavares, além de passar informações,
colocando-se sob sua proteção:

Exmo. Sr. General Tavares. Há pouco chegamos de Bagé e podemos saber


que Raul Maurell, de Pelotas, está detido por envenenador. Garantimos
que tendo pleno conhecimento desse moço que veio somente ajudar a
defender a nossa causa. Saudamos a Vossa Excelência e sentimos grande
prazer em estarmos debaixo da vossa proteção. De Vossa Excelência etc,
etc. João Inácio de Bittencourt e Pedro R. de Borba (TAVARES, 2004, p.
65).

Esta correspondência evidencia a existência de redes de relações clientelísticas do


General Tavares. Na guerra, esse clientelismo enquanto uma política de trocas de favores,
para com seus subordinados, seus amigos, podem ser entendidos enquanto parte de sua

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atuação política no conflito. Principalmente se considerarmos sua experiência militar, Ana


Frega (2015) ao falar sobre as experiências militares e as identidades sociais e politicas,
permite compreender que, por não ser uma relação que envolve o Estado, o próprio
desafio de manter seus soldados engajados e a adesão dos colaboradores da Revolução,
envolvia uma relação contratual (FREGA, 2015, p. 26), necessitando, portanto, atender
aos interesses dos diversos envolvidos no conflito como parte da liderança que fosse
efetiva.
Além das cartas trocadas com seus irmãos, considerando o grande envolvimento
da família Tavares na Revolução, alguns chefes federalistas tinham maior proximidade
com o General Silva Tavares. Aproximadamente 19 cartas ao entre os anos de 1892 a 1895
abordam esse tema, do total das 369 cartas, alguns telégrafos e cartões postais que
estavam no seu arquivo, algumas aparecem também em meio a assuntos militares e
políticos. Em carta enviada por sua sobrinha em Cecília Facundo, filha de seu irmão José
Facundo da Silva Tavares, o qual havia sido perseguido por membros do Partido
Republicano Rio-grandense em 1892, na companhia de sua família em Porto Alegre, por
ordem de Júlio de Castilhos, expressa o seguinte:

Porto Alegre, 5 de novembro de 1892. Tio Joca – [...] No dia 1º deste, ainda
não eram 5 horas da madrugada, acordamos, sobressaltados, com baques
horríveis na porta. Papai saltou da cama e levantou a janela do quarto
dele, que abria para a rua, para ver o que era e foi agarrado pelos braços
aos gritos de “Agarra! Agarra!” [...]”(MORITZ, 2005, p. 354-355).

Essa carta evidencia o terror que tomou conta do Rio Grande do Sul no período que
antecede a guerra civil, o qual levou a um êxodo de federalistas para o Uruguai e Argentina
ainda em 1892, diante da forte perseguição realizada pelos partidários de Júlio de
Castilhos contra os federalistas e oposicionistas ao seu governo. Essa carta também
apresenta o envolvimento da família e os interesses pessoais de Joca Tavares misturando-
se aos da Revolução, pois tentou por diversas vezes ao longo do conflito, fazer com que
seu irmão fosse solto por meio de diversas negociações, todas sem sucesso, somente no
final desta é que isso ocorreu.

Conclusão

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A importância do estudo de correspondências para os estudos no âmbito da


História Política e Militar decorre, principalmente, da possibilidade da análise das
relações de poder como algo presente em todas as relações humanas e como privilegiadas
fontes para compreender a complexidade dos indivíduos ao mesmo tempo que apresenta
as características de uma época, sua sociedade e as dimensões culturais dos envolvidos.
Nesse sentido a análise quantitativa permitiu identificar o volume de
correspondências tanto enviadas quanto recebidas, identificando que o número de
recebidas era bem superior ao de enviadas, demonstrando o papel de mediador do
General Tavares e importante articulador dentre as lideranças federalistas. Foi possível
evidenciar também a extensão de sua influência e a utilização de seu prestígio na
territorialização do poder dentro de uma região maior que ultrapassa os limites nacionais.
Por outro lado, a análise qualitativa das cartas tornou possível compreender como a
imagem de chefe político de Joca Tavares perpassava o militar, ao mesmo tempo em que
torna possível compreender a mistura constante entre os interesses pessoais e os da
própria Revolução, evidenciadas na maneira como era tratado pelos seus iguais e mais
próximos, ou por seus adversários e como se reportava a eles, na maneira como expunha
suas ideias evidenciando a forte imbricação dos interesses familiares com os políticos,
correlacionando os interesses privados aos da Revolução.

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SOBERANIA, DEMARCAÇÃO TERRITORIAL E AS INSTALAÇÕES


AÇORIANAS NA FRONTEIRA MERIDIONAL PORTUGUESA

Lucas Lopes Cunha


Sandra Michele Roth Eckhardt

Introdução

A discussão sobre a presença açoriana na fronteira meridional do Brasil do século


XVIII é tema debatido nas mais diversas perspectivas historiográficas, como se nota na
pela variedade de obras e coletâneas relacionadas a presença desses sujeitos na América.
A proposta do trabalho a seguir é pontuar algumas destas abordagens e apresentar um
panorama do processo de construção dos projetos de migração dos súditos ilhéus, a sua
chegada e inserção no continente e alguns aspectos de sua imersão nesse território de
fronteira ibero-americana.
No primeiro momento será apresentado o contexto da criação da política migrante
portuguesa do século XVIII, marcado pelas disputas territoriais e consolidação das
soberanias europeias na América, em que foram pensados, criados e desenvolvidos os
projetos de migração dos açorianos para a região de fronteira meridional. O aspecto
seguinte, indaga as formas pelas quais se deu a inserção açoriana no espaço rio-
grandense. Nesse ponto são apresentadas as diversas maneiras de penetração dos ilhéus
e seus descendentes no espaço fronteiriço, discutindo-se o acesso aos meios produtivos
desses no Continente de São Pedro, apontando-se a criação de freguesias, cidades e vilas
e sua organização econômica enquanto pequenos proprietários e “lavradores”.

Os projetos de ocupação da fronteira e a migração açoriana

A chegada dos açorianos no espaço que hoje compreende o Estado do Rio Grande
do Sul se deu em processo gradativo, além de indireto. Essa afirmação pode ser

 Mestrando em História do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Maria.



Mestranda em História do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Maria.

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evidenciada a partir do início das tentativas entre metrópole e colônia para o envio dos
ilhéus.
Em 1716 ocorreu o que pode ser considerado como o primeiro movimento de
imigração açoriana ao novo continente, com os referidos ilhéus sendo enviados, pelo
desejo do Rei de Portugal D. João V, à Colônia do Sacramento, como transcreve Borges
Fortes em seu título “Casais”:
E como para se povoar, e haver nela moradores, que saibam da cultura,
fui servido mandar ir sessenta casais da província de Trás os Montes, os
quais vão da cidade do Porto, para este Rio de Janeiro, para dele se
embarcarem para a Nova Colônia com os materiais, munições, drogas, e
mais aprestos pertencentes a ela. (BORGES FORTES, 1999, p.7).

O mesmo autor destaca a concretização do transporte e o sucessivo


engrandecimento dos casais para setenta, por terem permanecido alguns meses no Rio de
Janeiro. Também, nos mostra que a mesma medida de envio de ilhéus para Colônia do
Sacramento prosseguiu anos além.
O envio de casais para as colônias americanas pode ser considerado uma ruptura
dentro dos hábitos portugueses de fixar-se em territórios, devido à conhecida política de
enviar degredados para seus espaços conquistados, afim de que os mesmos realizassem
serviços que oferecessem risco aos demais portugueses, como, por exemplo, reconhecer
o território, negociar com nativos, dormir em terra para conquistar a confiança dos
nativos, etc. Por muito tempo este método se mostrou eficaz e inclusive tornou famosos
alguns exilados. E, na história do Brasil criou-se o estigma de que o país fora colonizado
por bandidos dos mais diversos tipos, entre eles assassinos e ladrões, pensamento
equivocado originário deste ultrapassado modelo português de colonizar.

Houve, assim, com a ideia de transportar casais, a ideia de modificar o


conceito de colônia penal que os países colonialistas insistiam em manter.
Deu-se, portanto, uma ruptura de costumes oficiais. (LAYTANO, 1987. p.
141)

A preocupação da Metrópole com a organização sócio-espacial de suas colônias é


compreendida em seu programa de colonização. Enviar casais não era uma simples
atitude para ocupar território, como se concluí em rasa análise. Estes casais, ao se
inscreverem para participar da emigração faziam parte de uma estratégia pensada pela

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coroa, onde a figura do casal representaria os costumes e a moral portuguesa nas novas
terras, como salienta Dante de Laytano:

A colonização açoriana no Rio Grande, e isto acontecerá em outras


capitanias em que a estrutura se configurará idêntica, é uma
originalidade que não se dirá étnica mas, quem sabe, propriamente
moral. Colonização com casais. Marido e Mulher. Quer dizer o lar
organizado, a família pronta, a constituição de bases decentes, sólidas,
etc. Os casais tiveram e representaram esse papel. (LAYTANO, 1987, p.
140)

As marchas militares que fundaram a primeira fortaleza militar no estado,


resultado da falha na tentativa de tomar Montevidéu, acabaram por anexar o território do
Continente de São Pedro ao comando da Metrópole, manobra um tanto quanto ousada se
compreendermos que este espaço pertencia, pelo Tratado de Tordesilhas, a coroa
espanhola. E é deste momento a primeira tratativa para trazer para o Continente do Rio
Grande casais açorianos:

[...] visto se achar estabelecida a fortificação do Rio Grande de São Pedro


que V. Majestade se sirva querer tomar a última resolução nas consultas
que o Conselho tem posto na real presença de V. Majestade para os
transportes dos casais das ilhas para o mesmo estabelecimento, porque
só por este meio se poderá evitar a grande despesa que precisamente se
há de fazer com os transportes dos mantimentos do Rio de Janeiro por
falta de cultivadores que naquelas vastíssimas terras os fabriquem, além
de ficarem, estes, também igualmente servindo para a sua necessária
defesa, e ser do interesse do Estado acrescentarem-se o número de
povoadores, o que para crescer consideravelmente as rendas reais do
mesmo Estado, assim nos dízimos das terras que cultivarem como
também nos direitos das alfândegas dos gêneros a que precisamente hão
de dar consumo, matéria esta que se faz digna da alta e grande
compreensão de V. Majestade. (COLEÇÃO de documentos de José da Silva
Paes, 1949 apud TORRES, 2004)

A necessidade de ocupar o vasto território que se estendia até Colônia do


Sacramento, ligada a outros motivos expostos na citação, levou o Conselho Ultramarino a
sugerir ao Rei o envio de casais para a fortaleza. O cultivo das terras para a providência
dos já moradores; o aumento da população no local, visto melhorias na agricultura e na
defesa do território; e a recente citada defesa, que, como citado anteriormente, na invasão

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do território espanhol pelo português, a guarda representava indispensável importância


para o estabelecimento populacional.
Nesse contexto, o ilhéu açoriano se encaixava perfeitamente no ideal colonizador
estipulado por Portugal. Eram possuidores de características físicas e sociais que
agradavam os planos soberanos. Atrelavam-se, uns aos outros, os motivos de serem
escolhidos os moradores deste arquipélago para a ocupação dos territórios portugueses.
Para os ilhéus imigrar para o novo continente representava uma pluralidade de
significados115. Martha Hamiester (2005) ao estudar uma suposta identidade açoriana
transportada das ilhas para a América, concluiu que essa não se compartilhava já nas
ilhas116. Segundo a autora os sujeitos migrados eram provenientes de diversos grupos
sociais e não formavam um grupo coeso, logo no momento da consolidação da imigração
recebiam tratamentos diferenciados. O que se compreendeu como “identidade açoriana”,
tanto no sul como no norte do Brasil, regiões para as quais os migrados do século XVIII se
encaminharam, é fruto de uma estratégia dos imigrados e descendentes desses que
dentro de um universo de possibilidades reivindicou para si uma identidade de grupo na
tentativa de fazer com que se cumprissem os estabelecidos do Edital de 1747
(HAMEISTER, 2005, pg. 93).
O ano de 1747 foi o momento crucial para a partida dos colonos ao Continente de
Rio Grande e sua efetiva colonização. Fatos ocorridos neste período pressionaram o
monarca português para concretizar o que lhe foi proposto dez anos antes pelo Conselho
Ultramarino
A ocupação militar iniciada em 1737 necessitava de suporte rápido e próximo. A
distância para Santa Catarina e os outros centros na colônia dificultavam em muito o
envolvimento do militar com os planos da metrópole, além de resultar em conflitos como
o levante dos dragões do Rio Grande, ocorrido em 1742 e de participação inteira de
praças. Para contornar essa e outras situações, o governo português planejou o envio dos
açorianos para a fortaleza-presídio e proximidades. Para Borges Fortes:

115 Hameister (2005) afirma que para os setores mais hierarquizados dessas sociedades migrar significava
a possibilidade de acessar os recursos e para os grupo chamados “segundões” migrara não lhes possibilitava
títulos de nobreza, no entanto, se projetava como novo começo no continente novo.
116 Sobre esse assunto parte da historiografia, Wiedersphan (1979), Queiroz (1987), considerou os ilhéus

como grupo coeso e homogêneo que supostamente teria trago consigo uma “identidade açoriana” e em seus
trabalhos sobre açorianos se referia a esses como tal.

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A pobreza das regiões era desoladora e não havendo população, resultado


algum poderia decorrer quer sob o ponto de vista militar, que econômico
e a situação permaneceria invariavelmente precária. (BORGES FORTES,
1999)

Para o mesmo autor, “a colonização era o único processo de efeitos seguros”


(BORGES FORTES, 1999).
Concomitantemente, os ilhéus presenciaram tensões em suas respectivas ilhas
devido à escassez de alimentos em meados da década de 1740, atingindo, no ano de 1746
o ápice do problema. Sucede a caréstia a solicitação dos moradores no mesmo ano para
ser enviado ao Brasil o excedente de sua população.
Este problema teria raízes na própria sociedade açoriana, onde, de acordo com
Borges Fortes. “eram comuníssimos nas Ilhas os lares que se enriqueciam de filhos desde
de sete a quinze e mais” (BORGES FORTES, 1999). O autor conclui que:

As terras, propriedades dos primeiros fidalgos ocupantes, subdivididas


pela multidão de rendeiros, chegariam a ponto de não comportarem
maior número de ocupantes. (BORGES FORTES, 1999).

Os ocorridos comentados tornarão imprescindíveis os açorianos no continente e


urgente o seu envio. Para tanto, o soberano fará publicar edital em todas as ilhas do
arquipélago, em 1747, para que casais interessados pudessem se inscrever para
participarem da ação colonizadora. No entanto, devemos considerar a preocupação da
coroa com o sucesso da ação em vista, fazendo constar no edital o limite de idade para as
pessoas inscritas, para o sexo masculino se limitava 40 anos, e para o feminino 30, e
demais informação, das quais constavam a ajuda de custo por idade e os objetos que se
tornariam de porte dos colonizadores. Destes objetos, é importante frisar, os casais
deveriam receber, entre outras coisas, enxadas, machado, serra e espingarda, tornando
explícito o papel de defensores e exploradores do território.
Santa Catarina e o Rio Grande receberiam suas primeiras levas em 1748 e 1752,
respectivamente. A precariedade da viagem e o excedente número de colonizadores
resultariam em um número significativo de mortos e enfermos. Muitos faleciam durante
o trajeto, outros foram hospitalizados ao chegarem à colônia. No Rio Grande, em função
dos acertos do Tratado de Madrid (1750), eles seriam alojados na região das missões.

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Porém, a guerra guaranítica foi um enorme empecilho para a realização deste desejo. A
oposição dos indígenas em deixarem suas moradas, e ainda inflados pelos padres jesuítas,
resultaria em uma revolta contra a desocupação do território, obrigando os açorianos a
serem realocados em outros locais da Capitania.
Segundo Adriano Comissoli (2009) o envio dos súditos ilhéus à América, para a
região das missões, seria:

Para além da ocupação imediata, os povoados criariam um cordão


defensivo contra as investidas espanholas; assim a estratégia portuguesa
resguardava as estâncias de gado, principal atividade econômica da
região, ao mesmo tempo em que ampliava sua área de controle na região
platina. (COMISSOLI, 2009, p.03)

Mostra-se assim uma clara preocupação em relação a manutenção e ampliação dos


limites territoriais portugueses nesse espaço de fronteiras politicas não perfeitamente
delimitadas.

Instalação, acesso à terra: a inserção econômica dos casais açorianos

A ideia de “dar calor a povoação” presente nos discursos e pensamentos dos


políticos e militares do Continente de São Pedro, como o Brigadeiro Silva Pais preocupado
com as deserções dos soldados vindos para a guerra guaranítica e André Ribeiro Coutinho
atento em “acolher essa gente”, referindo-se aos casais açorianos, também parte da
aspiração Portuguesa em ocupar o território ao sul meridional com pessoas de “sua
gente”, para a posteriori, caso fosse necessário, argumentar direito legal sobre o território
em caso de contestação espanhola117.
A questão que se levanta aqui é como se deu o processo de instalação e inserção
dos súditos ilhéus de Vossa Majestade, a partir da sua entrada no Rio Grande em 1752. O
Projeto Ultramarino e o Edital de 1747, apontados anteriormente, orientavam como
deveria ser procedido todo o processo de imigração, chegada e inserção, mas isso não se

117Essa ideia está presente na discussão de Martha Hameister no tópico “O Início da Povoação da Vila do
Rio Grande e a posse dos territórios de Sua Majestade” em artigo intitulado: A construção de uma
“identidade açoriana” na colonização do Sul do Brasil ao século XVIII. (2005).

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deu efetivamente da maneira como os projetos e edital assinalavam. Logo, qual foi a
realidade vivida pelos casais na América?
Além das dificuldades logo enfrentadas nas ilhas catarinenses, doenças e angústias
da viagem, desejo de instalar-se ali mesmo e a formação de laços familiares novos, os
imigrantes açorianos encontraram uma realidade não prevista nos projetos da soberania
portuguesa. A primeira delas proveniente do tratado de 1750, que resultou na Guerra
Guaranítica entre indígenas, espanhóis e portugueses.
Mediante esse cenário de instabilidade o encaminhamento dos migrantes
açorianos para o oeste, as antigas missões espanholas, acertado como território
português em troca da colônia do sacramento, teve de ser adiado e gerou o problema da
dispersão desses e também dos indígenas pelo continente de São Pedro118.
Segundo Cleusa Maria Gomes Graebin, “uma vida em trânsito pelos caminhos do
Rio Grande de São Pedro foi o que a maior dos casais açorianos enfrentou desde a sua
chegada” (2006, p.207). Ao acompanhar algumas trajetórias dessa nova população,
através de justificações de matrimônio e registros de batismo, essa autora apontou as
situações de arranchamento em que se encontravam os povoadores açorianos, na
primeira década da segunda metade do século XVIII.
O dispor dos casais e famílias açorianas que aguardavam por acomodações acabou
se dando inicialmente a margem dos rios Guaíba, Jacuí e Lagos dos Patos, como uma
medida provisória. No entanto, enquanto aguardavam fixação esses acabaram se
espalhando pelo continente e se envolvendo em um processo de espera pela posse efetiva
das datas de terra, que durou cerca de duas décadas. As “datas de terra” eram concedidas
pelo governador do Rio Grande aos casais açorianos, em principio, e também a lavradores
e compunham a política colonizadora do sul, no entanto, possuía um estatuto jurídico
próprio. Concedia-se desta forma propriedades que não excediam um quarto de légua em
quadra, ou seja, 272 hectares119. Segundo Paulo Silveira e Sousa:

118 O acomodamento dos indígenas no território português ocorreu com a criação da Aldeia dos Anjos e de
São Nicolau, após o fim da guerra, por ordens do então governador do Rio de Janeiro Gomes Freire de
Andrade. Ver mais em KÜHN, Fábio. O “Governo dos Índios”: a Aldeia dos Anjos durante a administração de
José Marcelino de Figueiredo (1769-1780).
119 Para melhor compreensão da legislação concessão de terras Brasil e sue emprego no Rio Grande do Sul,

ver o capítulo “Regime de sesmarias e propriedade da terra” (Osório, 1990: 43-64).

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Em Santa Catarina, a distribuição de terras iniciou em junho de 1753 [...].


Contudo, numa zona de fronteira como o Rio Grande do Sul, a promessa
da Coroa demorava a se tornar efetiva. Os casais de ilhéus tiveram que
esperar 20 anos para tornarem-se os legítimos senhores das suas datas
de terra, integrando-se a uma economia que estava já estruturada em
torno da pecuária da criação de gado e da produção e comércio de couros
e de carne salgada. (SOUSA, 2014, p. 88)

A observação desse autor reflete a situação que os açorianos vieram a enfrentar


após a chegada ao extremo sul do Brasil, pois a ocupação da terra que lhes foi prometida
pela Coroa não ocorre de imediato. Também demostra que a ideia de um Rio Grande como
território de pouca ocupação e desmembrado da dinâmica econômica colonial não é
compatível com a realidade encontrada pelos açorianos recém-chegados a América.
Helen Osório (1990), ao estudar o espaço platino do século XVII e XVIII, explica que
a ocupação dos territórios coloniais era determinada por interesses externos, no entanto,
lembra que “os espaços coloniais guardavam especificidades e suas estruturas internas
possuíam uma lógica que não se reduzia a essa vinculação externa” (1990, p.17). A
realidade encontrada pelos açorianos recém-chegados ao Rio Grande é um exemplo dessa
divergência de interesses externos e realidades coloniais, bem como as formas e
estratégias de acesso a terra e inserção econômica, desenvolvidas por esses.
O contingente populacional extra (migrantes açorianos, indígenas e aparatos
militares vindos para os meridionais em função da Guerra Guaranítica), foi também
responsável pelo desencadeamento de conflitos e estratégias de interesses próprios, que
envolviam questões sobre o acesso à terra e distribuição de recursos120. Sobre esse
assunto Marta Hameister (2006) mostrou que a aproximação de alguns ilhéus como
grandes proprietários através de relações de cooperação, que nem sempre eram
harmônicos, foi uma das formas que possibilitou os primeiros acessos aos meios
produtivos e a inserção desses na economia da América Portuguesa.
Perante esse cenário, é possível visualizar um espaço de ocupação humana
marcada por disputas, estratégias, alianças e conflitos, no qual a apropriação das terras
nesse território de fronteira não ocorreu de maneira pacifica ou “natural”, afastando o

120 O projeto da coroa portuguesa compreendia que a posse do espaço só se organizaria a partir do trabalho
organizado, no qual o latifúndio de sesmarias e as pequenas propriedades se complementariam. Ver CESAR,
Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço. In: DACANAL, José H. GONZAGA, Sergius. RS: Economia e
Política. 2. ed, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1993

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conceito de uma fronteira agrária aberta e despovoada. Portugal precisava ocupar


efetivamente todo o território que conseguisse, para argumentar posteriormente que
essas terras compunham seus domínios, reclamando o direito de posse. Logo, a criação de
novas freguesias, a partir da povoação com casais açorianos recém-chegados ao
Continente, se projetava como uma possibilidade viável e desejada mediante os conflitos
de ocupação e delimitações territoriais ocorridas entre os luso-brasileiros, castelhanos e
indígenas.
Sobre a concepção de fronteira na região meridional do Império Luso, Tiago Gil
(2007) nos traz uma noção de espaço fronteiriço. Conceito válido no contexto de criação
de novas freguesias, pois para além de uma delimitação fechada e rígida o autor mostrou
a existência de mais de uma fronteira no Continente. Assim, existiria uma região de
fronteira em Rio Grande, em Rio Pardo e outra em Viamão, isso porque haveria uma área
de ambos os lados dos Impérios, cujo clima de ameaça de invasão e a necessidade de
manutenção se fazia presente no cotidiano dos moradores e ultrapassava os domínios de
ambos os Impérios, já que os conflitos entre lusos e espanhóis eram estruturais. E é dentro
desse conceito de espaço fronteiriço que os súditos migrantes vieram a se inserir
enquanto moradores do Rio Grande São Pedro.
Como lembrou Adriano Comissoli (2009), em artigo sobre as estratégias de
sobrevivência e ascensão social dos açorianos nos campos de Viamão, as condições de
auxílio previstos no Edital de 1747 não se assemelharam com a realidade deparada pelos
migrantes. Esses tiveram que encontrar suas próprias formas de inserção socioeconômica
nessa região de fronteira e guerra. O autor aponta que os migrantes foram se instalando
ao longo do trajeto de litoral até os domínios missioneiros, via duas rotas: a de Rio
Pardo/Rio Grande e via Viamão, ao longo dos rios Guaíba e Jacuí. As margens do rio
Taquari também foram locais de arranchamento dos súditos açorianos, sendo a freguesia
de Saõ José do Taquary, criada em 1764 como um cordão defensivo contra possíveis
ataques os espanhóis a Viamão, ainda capital do Continente, a primeira a ter os lotes de
datas demarcados por ordem do governado, em 1770.
A tarefa de regularizar a situação dos açorianos arranchados e dispersos pelo
Continente foi encabeçada pelo governador José Marcelino de Figueiredo, a partir de
1770, o qual iniciou a tarefa de fazer cumprir o estabelecido no Edital de 1747,

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demarcando e regularizando a posse legal das datas concedidas aos casais e filhos de
açorianos121. Segundo Borges Fortes:

Frutos de sua administração devem ser considerados a existência em


1779 das seguintes villas: Porto Alegre, Viamão, Rio Grande, Aldeia dos
Anjos e São Nicolau, com suas respectivas freguesias e mais as freguesias
de Conceição do Arroio, Santo Antônio, S. Anna do Morro grande, Bom
Jesus do Triunfo, S. José do Taquari, S. Amaro e N. S da Conceição da
Cachoeira, que atestam a prosperidade crescente da província” (1932, pg.
134)

A criação das vilas e freguesias, bem como a regularização das posses, via carta de
doação de datas aos migrantes açorianos, precisa ser entendida dentro de contexto de
definição de fronteiras políticas entre os impérios lusos na América meridional. Segundo
Helen Osório (2007) “a regulamentação da propriedade de terra visava a fixação dos
colonos para avançar sobre os campos, apropriar-se de terras e marcar soberania” (2007,
pg. 65). Os colonos referidos são em sua maioria casais migrantes e açorianos da colônia
de sacramento, já que em número de propriedades a categoria “lavrador” representavam
79% dos moradores do Continente em 1784, apesar de terem sido o grupo que menos
detinha terras e encontravam maior dificuldade em acessá-las e/ou ampliá-las.
Helen Osório (2007) demostrou que em uma região até então apenas
compreendida pelo domínio da pecuária extensiva havia uma ampla presença de
domicílios de pequenos produtores declarados como “lavradores”. Esses eram maioria de
origem açoriana e migrados a partir do Edital de 1747 e/ou antigos moradores da colônia
do sacramento, bem como filhos e descendentes desses. Seu sustento se dava a partir de
uma economia mista, na qual eram possuidores de pequenos rebanhos e praticavam a
agricultura de autoconsumo com a comercialização de excedentes para mercados
regionais e ou de exportação para o abastecimento do mercado interno colonial.
A participação dos lavradores na economia gaúcha se deu principalmente a partir
de 1780, momento do século XVIII de maior estabilidade em relação às disputas de
fronteira, através do trigo, produto que compôs as exportações do Rio Grande desde o
revigoramento e desenvolvimento econômico ocorrido no período tardo colonial. O cereal

121
Essa ação política nem sempre esteve de acordo com os princípios do Vice-rei, responsável pela doação
de sesmarias, que em alguns momentos confrontou diretamente com a demarcação das datas,
responsabilidade do governador.

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abastecia grande parte dos portos coloniais, principalmente os do Rio de Janeiro, e


ocupava o terceiro lugar nas exportações do Continente.
O período de maior participação do trigo rio-grandense no mercado interno foi de
1780 a 1820 e sua produção era amplamente difundida, pequenos produtores sem
escravos até criadores-lavradores mais enriquecidos do Continente, parte deles senhores
de cativos, se dedicaram a essa produção. Apesar das escassas tecnologias empregadas
em seu cultivo e armazenamento, a triticultura foi o produto agrícola através da qual,
muitos dos pequenos produtores tiveram a possibilidade de acessar a mão-de-obra cativa.
Osório (2007) situou a partir do Mapa de colheita de 1780 do Continente do Rio
Grande as freguesias de Estreito, Mostardas, Porto Alegre e Rio Pardo como responsáveis
por 90% da produção do trigo no Continente e o percentual de população cativa gerava
em torno dos 30% do total de habitantes das freguesias, informação contida no Mapa de
população de 1780. Desse modo, observa-se que ao final do século XVIII os açorianos
migrados das ilhas e também seus descendentes já se encontravam economicamente
ativos na produção de alimentos para o mercado interno, tanto pela produção de cereais
quanto pela criação de animais.

Considerações

Ao término da discussão sobre a instalação de súditos açorianas na fronteira


meridional do Brasil do século XVIII, mostrou-se que a passagem dos ilhéus para o
continente americano foi oriunda da política de expansão, definição e demarcação dos
territórios de fronteira luso-espanhola. A partir das definições do Edital de 1747 se aponta
que a preocupação da monarquia portuguesa não se limitou ao traslado dos súditos, mas
sim em assegurar sua instalação e inserção social nessa zona de fronteira. Essas
preocupações contidas no Edital tiveram a finalidade de reafirmar a soberania lusa em
um território de delimitações políticas não totalmente deliberadas.
Após a presença açoriana no Continente de São Pedro, mostrou-se um processo de
instalação e inserção econômica dos migrados, que, primeiramente, não ocorreu da
maneira como estipularam as recomendações da política imigrante. A presença de
conflitos entre os impérios ibéricos na América e o conflito desenvolvido a parir das
questões acertadas no Tratado de 1750, retardou o cumprimento das orientações do

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Edital de 1747. Esse processo levou os imigrados e seus descendentes a encontrarem


outras formas de se inserirem e se estabelecerem na sociedade rio-grandense. Uma delas
foi a reivindicação de uma “identidade açoriana”.
A partir da maior estabilidade política territorial da segunda metade do século
XVIII os ilhéus se fixaram, e após a concessão das datas de terras, compuseram freguesias,
cidades e vilas, adentrando na economia colonial como “lavradores”. Portanto, somados,
esses elementos foram importantes na asseguração e reconhecimento da soberania
política portuguesa na fronteira meridional americana.

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A GUERRA GRANDE E A PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO

Talita Alves de Messias*

Introdução

A Guerra Grande foi um importante conflito geopolítico da região da Bacia do Rio


da Prata, ocorrido entre 1839 e 1851, que, iniciado no Uruguai a partir da rivalidade entre
dois partidos políticos (colorados e blancos), teve o envolvimento do Império do Brasil,
Confederação Argentina, França e Inglaterra. O estudo desse conflito nos permite
compreender vários aspectos da geopolítica da Bacia do Rio da Prata, e neste trabalho nos
deteremos especificamente a quatro aspectos que relacionam a Guerra Grande ao que
ocorria na província brasileira de Rio Grande de São Pedro: a Revolta Farroupilha, as
“califórnias de Chico Pedro”, os Brummer, e os Tratados de 12 de outubro 1851.
O presente trabalho é uma versão resumida de um trabalho de conclusão de curso
desenvolvido para a Especialização em História do Rio Grande do Sul na UNISINOS, e
insere-se no projeto de pesquisa de doutorado da presente autora no sentido de
compreender alguns aspectos do papel da província do Rio Grande de São Pedro no
envolvimento do Império do Brasil nos conflitos platinos. A Bacia do Rio da Prata é uma
região com abundância de rios navegáveis com saída para o Oceano Atlântico, e pelo
controle dessa região diversos conflitos geopolíticos ocorreram desde o período colonial,
na disputa entre Espanha, Portugal e grupos indígenas.
Apesar de a Guerra Grande ocorrer na América do Sul independente, parte-se do
pressuposto que a região platina é um espaço resultado de um processo histórico, que
como todo espaço possui uma “inércia dinâmica”, ou seja, ao mesmo tempo que em que
reproduz a estrutura global que lhe originou, ele se impõe como uma mediação
indispensável aos processos sociais que vierem posteriormente, às vezes alterando o
objetivo inicial ou lhe conferindo uma orientação particular (SANTOS, 2004, p. 186). De

* Doutoranda em História, UNISINOS. talita-alves@hotmail.com. Bolsista CAPES/PROSUP.

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modo que é necessário levar em conta a dinâmica do processo histórico dessa região para
compreender parte da estrutura em que se desenrolaram os conflitos do período
independentista, inclusive a Guerra Grande.

A Guerra Grande e a Província de São Pedro


A disputa pelo controle territorial, pelas terras férteis e gado, e pelas rendas
derivadas do comércio nos Rios da Bacia do Prata, foram a base das tensões que levaram
à Guerra Grande. A Confederação Argentina tinha fortes divergências entre o interior e
Buenos Aires; no Uruguai, as fronteiras com o Brasil ainda nem haviam sido definidas,
enquanto o Império lutava contra a separação da Província de São Pedro na Guerra dos
Farrapos. A Guerra Grande começou com uma guerra civil uruguaia que se originou de
seu próprio processo de independência. Após a Guerra da Cisplatina (1825-1828), o
Uruguai só se constituiu como República em 1830, quando promulgou sua primeira
constituição e elegeu seu primeiro presidente, Fructuoso Rivera.
O antigo aliado de Rivera durante a luta pela independência, Juan A. Lavalleja, se
tornara seu inimigo posteriormente, e do conflito entre os dois caudilhos, surgiram dois
partidos adversários: Colorados e Blancos, tendo o primeiro vencido a eleição com a
candidatura de Rivera. Esse primeiro mandato terminou em 1835, após o qual Lavalleja
sublevou-se por permanecer no cargo um membro colorado, Manuel Oribe, que fora
indicado por Rivera. Lavalleja teve apoio, por um lado, do brasileiro Bento Gonçalves, que
era inclusive seu compadre, e, por outro, do argentino Juan Manuel de Rosas. Contudo,
Manuel Oribe trocou de lado e passou a apoiar Lavalleja, Bento Gonçalves e Rosas. Desta
forma, iniciaram uma perseguição ao ex-presidente Rivera, que por sua vez organizaria
uma sublevação contra este governo blanco. A rivalidade entre os dois grupos derivou na
Batalha de Carpintería em 1836, vencida pelos blancos, que manteve Oribe no poder.
Em 1838 ocorreu mais uma batalha entre blancos e colorados, e desta vez quem
venceu foi Rivera, que teve inclusive apoio da França que queria derrubar o governo de
Rosas em Buenos Aires. Com isso, Manuel Oribe renunciou ao governo em Montevidéu e
partiu para o exílio em Buenos Aires. Lá foi recebido por Rosas como presidente legítimo
do Uruguai, o que gerou a declaração de guerra ao presidente das Províncias Unidas pelo
governo colorado uruguaio, em 10 de fevereiro de 1839. Essa longa guerra foi ganhando
tamanhas proporções até se tornar um conflito internacional: a Guerra Grande, que se

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estendeu de 1839 a 1851, e que envolveu o Uruguai, a Confederação Argentina, o Império


do Brasil, França e Inglaterra.

A Guerra Grande em meio a Revolta Farroupilha


No início da Guerra Grande o Império do Brasil ainda não podia se envolver muito
diretamente no conflito, devido à sua própria instabilidade política e econômica durante
o período regencial, no qual se inclui a Guerra dos Farrapos. Nessa sociedade fronteiriça,
os donos de terras eram também os chefes militares, semelhantes aos caudilhos das
Províncias Unidas e do Uruguai. Donos de propriedades pecuaristas dos dois lados da
fronteira, brasileiro e uruguaio, esses estancieiros reclamavam que os impostos ditos
exorbitantes que pagavam ao Império não eram investidos na província e sufocavam sua
produção e seu comércio. E, principalmente, esses produtores de charque e gado tinham
como principal mercado o brasileiro, mas estavam em desvantagem com relação aos
concorrentes estrangeiros pelo câmbio e pelas vantagens tarifárias que estes possuíam.
Em meados dos anos 1830, uruguaios blancos contrários ao governo colorado
uruguaio se exilaram na província do Rio Grande de São Pedro, como Lavalleja, que era
amigo do Coronel Bento Gonçalves, um dos principais representantes dos farroupilhas e
que possuía grandes propriedades de terras no Brasil e no Uruguai. Nesse contexto, o
Presidente da província brasileira, Fernandes Braga, denunciou essas relações dos
“senhores da guerra da fronteira” com os exilados uruguaios, acusando-os de
separatismo. Este foi o estopim da Revolta Farroupilha, que se entendeu por dez anos, e
chegou à proclamação da República do Piratini em 1836, não reconhecida pelo Império.
Como muitos dos pertencentes à elite rio-grandense estiveram na luta pela defesa
do Império, existiram ao mesmo tempo dois governos na província: o imperial e o
republicano (PADOIN, 2006). Além da divisão entre farrapos e imperiais, os próprios
rebeldes não eram um grupo coeso, se dividindo entre “grupo da maioria”, com mais
influências do liberalismo, e “grupo da minoria”, mais voltados ao reformismo. Havia
ainda os abolicionistas, e os não-abolicionistas, os separatistas, e os não separatistas....
Eram grupos de interesses movidos pelas relações produtivas, comerciais e mesmo
ideológicas e pessoais.
Mas havia na província também os charqueadores que mais preocupados com o
andamento de seus negócios, migraram para o Uruguai logo nos primeiros meses do

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conflito, uma clara demonstração da fluidez dessa fronteira (VARGAS, 2013). De acordo
com as estimativas apresentadas por Hartmann (2002, p. 79), os farroupilhas mantinham
um exército bem menor que o imperial, e conseguiam fazer frente às suas despesas
através da venda de gado e charque para os países da Bacia do Prata, além dos
investimentos de dirigentes e simpatizantes da revolução. Os farrapos tinham alta
mobilidade por conhecerem bem o terreno, mas perdiam dos imperiais na capacidade
bélica.
Era fundamental ao Império vencer os farrapos, pois sabia-se que as ligações dessa
província com os países platinos era uma séria ameaça à integridade da última monarquia
da região. A Província de São Pedro era fundamental tanto ao Império quanto aos demais
países platinos. Enquanto independente, a República do Piratini abria várias
possibilidades de alianças: poderia unir-se a Entre Rios, Corrientes e Uruguai, para
enfrentar Rosas em Buenos Aires; poderia unir-se apenas ao Uruguai, e assegurar a
independência de Montevidéu e do Paraguai contra a Confederação Argentina; e mesmo
que não se unisse a outro país, serviria como mais um Estado-tampão a proteger a
Argentina dos propósitos imperialistas brasileiros. “Visto sob qualquer ângulo, um Rio
Grande do Sul independente significaria um Brasil mais fraco" (LEITMAN, 1979. p. 52).
Por isso a Revolta dos Farrapos foi um acontecimento bastante relevante para o
decorrer da Guerra Grande, já que a partir dessa revolta o apoio rio-grandense vinha não
apenas de interesses e relações pessoais, mas de estratégia de guerra de uma nova
república que lutava por sua independência. Nesse sentido as alianças ao longo dos
conflitos foram alteradas diversas vezes, em lentos processos de construção de
estratégias que nem sempre culminavam em posições que indicassem coerência. Até
1839, ano da declaração de Guerra que marca o início da Guerra Grande, pode-se dizer
que nesse complexo emaranhado de acertos, por linhas gerais os farroupilhas mantinham
relações preferencialmente com blancos uruguaios e federales argentinos (GUAZZELLI,
2010), enquanto Rivera procurava manter boas relações com o Império.
Uma aliança chegou a ser discutida entre o Império e Rosas contra Rivera, mas os
objetivos de cada parte eram bastante opostos, sobretudo com relação a manutenção da
independência do Uruguai (BANDEIRA, 2012, p. 115). Com Montevidéu sitiada pelos
blancos, em 1843 tanto Rivera quanto os farroupilhas perderam o acesso ao porto para
receber mercadorias como armas, munições, gado e carne. Essa situação era também

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prejudicial aos comércios franceses e ingleses na região, que sem conseguir derrotar
Rosas, acabaram por aceitar acordos de privilégios com o caudilho. O outro importante
porto da província de São Pedro, Rio Grande, estivera na maior parte do tempo da guerra
em mãos do Império. Com os conflitos entre Rosas e Oribe, de um lado, e Rivera do outro,
o Império teria de aproveitar essa divisão para pacificar São Pedro do Rio Grande antes
que qualquer um deles vencesse os conflitos.
Nesse contexto, e mais ainda, desde 1842, acreditava-se que a Guerra dos Farrapos
acabaria a qualquer momento. Por um lado, pelo enfraquecimento de Rivera que surtira
efeitos nos farrapos enquanto aliados, e por outro porque as divisões internas da
República farroupilha prejudicavam suas estratégias de sobrevivência. Assim os farrapos
iniciaram os processos de negociações com o Império, e em meio a isso deu-se o último
combate armado da Guerra: o combate de Porongos, ocorrido em novembro de 1844.
Desse modo, garantindo a integridade do território, a paz de Ponche Verde foi assinada
em 1845. Na mesma declaração em que o comandante farroupilha David Canabarro
comunica às suas tropas o Tratado de Paz, já declarava apoio ao Império contra Rosas. A
partir de então, o Império teria de volta seus “senhores da guerra” caso fosse necessária
uma intervenção na Guerra Grande, para impedir a anexação do Uruguai à Confederação
Argentina por Rosas e Oribe.

As califórnias e a intervenção Imperial no Uruguai


Extinta a República do Piratini, o Império do Brasil ainda instável politicamente
seguia evitando uma intervenção mais efetiva na Guerra Grande, o que ia se tornando cada
vez mais urgente. Pacificada a província do Rio Grande, os estancieiros buscaram retomar
suas atividades econômicas, e para tanto recorreriam novamente às suas propriedades
do outro lado da fronteira, na região que agora era de domínio dos blancos uruguaios. Com
o sitio a Montevidéu em 1843, o Uruguai se dividia em dois governos: o governo da
Defensa, sitiado e liderado por Rivera, e o governo de Cerrito, que tinha Oribe como
presidente. Oribe dominava o interior do Uruguai, na região de campanha, e uma das
principais orientações de seu governo era estabelecer o princípio de autoridade e
defender a campanha da penetração brasileira (DEVOTO; DEVOTO, 1971). A escravidão
foi abolida pelo governo da Defensa em 1842, e pelo de Cerrito em 1846, das quais os rio-
grandenses tiveram de fugir para garantir a propriedade de seus escravos. Em 1848, Oribe

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fechou a fronteira proibindo a passagem de tropas de gado para a Província de São Pedro,
com vistas a garantir a produção de charque pelos saladeiros uruguaios (VARGAS, 2013).
Deste modo se intensificava o conflito entre o governo de Oribe e os estancieiros
de São Pedro. Estes foram buscar no Império a defesa que precisavam para suas
propriedades, reclamando a intervenção do Estado naquela região. Além disso, colorados
uruguaios se mantinham refugiados no lado brasileiro da fronteira após o domínio dos
blancos. Segundo Vargas (2013. p. 307), enquanto as reclamações de saques e agressões
eram feitas por proprietários menos prestigiados na região, o Império conseguia manter
o controle do clima de insatisfação, mas quando famílias importantes dessa elite rio-
grandense passaram a ser atacadas, “as retaliações tomaram proporções irreversíveis”.
Por conta própria, os estancieiros de São Pedro buscaram meios retomar as reses
e escravos que acreditavam que lhes era de direito, realizando incursões armadas no
Uruguai. Esses movimentos ficaram conhecidos como “califórnias”, ocorreram entre 1849
e 1850, e participavam não apenas os rio-grandenses, como também os uruguaios e
argentinos refugiados na Província. Entre março e abril de 1849, teriam passado seis
tropas de cerca de 1.000 cabeças de gado cada, segundo denúncia do Coronel blanco Diego
Lamas (FLORES, 2014). Outra denúncia feita por Lamas, em novembro de 1849, envolvia
uma “atividade subversiva” em que se planejava um ataque ao território uruguaio, de que
participavam argentinos unitarios, e colorados uruguaios, com apoio de brasileiros.
Um dos principais líderes das califórnias foi Francisco Pedro de Abreu, também
conhecido por Chico Pedro, Moringue, e Barão de Jacuí, título este que recebeu logo após
o fim da Revolta Farroupilha. Ele possuía várias estâncias na fronteira, tanto do lado
brasileiro quanto do uruguaio, e já vinha sendo denunciado porque estaria organizando
saques e transportes de gado, trazendo-os do território oriental para a Província de São
Pedro, o que o governo de Oribe havia proibido (FRANCO, 2006). Apesar de as arriadas
serem comuns nos conflitos de longa duração dessa região platina, essas “califórnias” que
ocorreram no contexto da Guerra Grande receberam mais atenção dos governos devido a
frequência com que estavam ocorrendo nesse momento, aliada a grande quantidade e a
participação do Barão de Jacuí (MENEGAT, 2015). Segundo a mesma autora, essas
incursões eram distintas do recorrente contrabando da fronteira, pois ao não buscar o
anonimato dos agentes, caracterizavam-se mais por expedições anunciadas.

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Por outro lado, se “a apropriação indevida de bens” em contexto de guerra é


utilizada como “tática de enfraquecimento do exército inimigo, de atrativo de
recrutamento e abastecimento de tropas”, as “califórnias” de Chico Pedro eram distintas
porque não faziam parte de um esforço militar do Império, sendo, portanto, ilegais
(MENEGAT, 2015, p. 246). Além disso, as relações políticas do Império com o Barão eram
delicadas, tanto pelo prestígio deste e sua capacidade de liderança, no sentido de recrutar
soldados e arregimentar gado e cavalos (importantes caso houvesse necessidade de uma
nova guerra, como os acontecimentos levavam a crer), quanto na capacidade estrategista
do mesmo, tendo sido uma das peças fundamentais na posterior aliança de Justo José de
Urquiza (de Entre Rios, das Províncias Unidas) com o Império (MENEGAT, 2015). Por
outro lado, ainda sob a sombra que a Farroupilha deixara, havia o receio de que as
“califórnias” tivessem alguma intenção separatista (MENEGAT, 2015).
Deste modo, os militares brasileiros seguindo as ordens do Presidente da
Província, repassavam informações para autoridades oribistas no Uruguai sobre os
movimentos de Chico Pedro com vistas a tentar acabar com esse movimento, que já reunia
mais de 400 homens (FRANCO, 2006). Em março de 1850, quando o Presidente da
Província General Andréa apresentava um relatório ao seu sucessor no cargo, explicava
as razões de o Barão de Jacuí ter realizado as incursões no país vizinho, baseando-se nos
prejuízos que os brasileiros vinham sofrendo devido às ações de Oribe e dos blancos, e
principalmente, tirando a culpa do Barão ao dizer que o mesmo estava sendo
“instrumento de loucuras alheias” (FRANCO, 2006, p. 57). Sabe-se que Andrea já vinha se
comunicando com Chico Pedro tentando convencê-lo a depor as armas, o que por fim
ocorreu sob mediação do Presidente sucessor, Pimenta Bueno, em 7 de maio de 1850. Era
o fim das “califórnias”.

Os Brummer: mercenários imperiais na Guerra Grande


Em 18 de agosto de 1851 Rosas declarava guerra ao Império. Mas as alianças de
Rosas já vinham se desfazendo, e seu poder passava por um processo de corrosão. Oribe
teria percebido que o projeto de Rosas estava sendo minado, e procurou acordo para
reunificação do governo uruguaio. Em 8 de outubro de 1851 encerrava o sítio a
Montevidéu, afimando-se que não haveria “vencidos ni vencedores [...], para el bien de la
patria y para defender sus leyes e independencia” (DEVOTO; DEVOTO, 1971, p. 106). O

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objetivo do Império do Brasil seria a partir de então a derrubada de Rosas. No contexto


de preparação de guerra pelo Império, seria necessária a organização de seu exército. Os
que eram antes inimigos, os líderes farroupilhas, agora seriam alguns dos principais
líderes militares na Guerra contra Rosas.
Para isso o Império precisava não apenas aumentar seu contingente militar, mas
também ocupar as regiões de fronteira do território, e decidiu pela contratação de
mercenários. Essa opção já havia sido tomada pelo Brasil nos anos 1820, inclusive para a
Guerra da Cisplatina, assim como a contratação de irlandeses para a revolta dos Cabanos
no Pará, entre 1934 e 1840 (TESCHE, 2013). Para a Guerra contra Rosas, o Império
decidiu não apenas pela contratação de mercenários no território alemão, como também
comprar equipamentos bélicos.
Foi encarregado para a contratação o deputado pernambucano Sebastião do Rego
Barros, que partiu para Hamburgo no final de 1850. Lá ele teria aberto um escritório de
agenciamento, com a permissão do Senado da Cidade Hanseática (WERLANG, 2005). A
organização militar que Barros traria para o Brasil já estava formada desde 1848 com o
intuito de defender o ducado de Schleswig e o condado de Holstein contra a Dinamarca,
mas que após o fim dessa guerra em janeiro de 1851, havia sido dissolvida
(WEIZENMANN, 2015). Foram entre 1.700 e 1.800 homens que desembarcaram no Brasil
entre 1851 e 1852, que ficaram conhecidos como os Brummer.
Os Brummer tinham “alto nível intelectual, boa formação e princípios filosóficos e
liberais”, de modo que chegaram a atuar como “uma elite política e intelectual” (PIASSINI;
PADOIN, 2015, p. 11; 12). “A Legião era constituída de um Batalhão de Infantaria, um
Grupo de Artilharia e duas Companhias de Sapadores, com armamento e equipamento
respectivos” (BENTO, 2013, p. 4). Cada legionário receberia, ao final de quatro anos, 22,5
braças quadradas de terras, ou a passagem de volta para a Europa e mais um prêmio em
dinheiro. Manteve-se o idioma alemão como o oficial de comando, o regime disciplinar
prussiano e o uniforme das tropas de Schleswig-Holstein (BENTO, 2013). Além da
contratação dos mercenários, foram comprados cerca de 200 fuzis Dreyse, equipamento
bastante evoluído na Europa, cerca de 12 canhões prussianos, duas equipagens de pontes
com pontões Birago e 40 carretas austríacas de 4 rodas, para tração cavalar ou muar
(BENTO, 2013).

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Segundo Werlang (2005), Rosas chegou a saber da contratação de mercenários


pelo Brasil. Um cônsul argentino chamado Bahre tentou denunciar as propagandas feitas
pelo enviado brasileiro para contratações, mas como este tinha autorização do Senado de
Hamburgo para isso, Bahre não obteve sucesso. Posteriormente Rosas teria enviado a
Hamburgo um oficial da marinha para também contratar mercenários, mas não teria
conseguido. Seus agentes chegaram a tentar convencer os mercenários que iriam para o
Brasil a desistir (WERLANG, 2005).
Em 08 de agosto de 1851 o Batalhão de Infantaria dos mercenários foi reunido
em Pelotas, onde permaneceram por cerca de três meses, quando partiram para
Montevidéu. Em Pelotas mesmo já haviam começado as deserções, que resultavam em
perseguições da Guarda Nacional, reação dos desertores, e mortes. A volta de Montevidéu
oportunizou mais deserções, e dos que chegaram com o batalhão em São Pedro, alguns
migraram para Rio Pardo, e outros para São Leopoldo (WERLANG, 2005). Apesar de
terem percorrido os trajetos planejados, os mercenários não chegaram a batalhar na
Guerra Grande, mas alguns se tornaram importantes personagens nas comunidades em
que escolheram viver, dos quais o mais famoso exemplo é o de Carlos von Koseritz, que
chegou a tornar-se deputado provincial.

O fim da Guerra Grande e os Tratados de 1851


A derrota de Rosas ocorreu na Batalha de Monte Caseros, em 03 de fevereiro de
1852, vencido pela aliança entre o Império do Brasil, Urquiza e seu exército de Entre Rios,
as tropas de Corrientes e os colorados uruguaios. As Províncias Unidas do Rio da Prata
acabaram por dividir-se de modo que Buenos Aires se tornasse um outro Estado, e com
essa divisão, apenas o Império do Brasil saiu consolidado enquanto Estado e país
dominante da região após a Guerra Grande e a derrocada de Rosas. Durante a guerra, as
interferências brasileiras de apoio aos colorados uruguaios envolveram empréstimos
financeiros, fornecimento de homens, armamentos e munições, além de navios, que
deveriam ser pagos pelo Uruguai ao fim da guerra.
Assim, ao término do conflito, o Uruguai tornou-se um “mero protetorado do
Brasil”: 30% de seu território pertencia a brasileiros, a produção nacional fora reduzida
no fim da guerra a 10% do que era antes, e a dívida externa chegara a 26 milhões de pesos,
com os 72 recursos públicos hipotecados (BANDEIRA, 2012, p. 147). Dependente de

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novos recursos financeiros, quatro dias após o acordo de paz que dera fim ao sítio de
Montevidéu, foram assinados os cinco Tratados de 12 de outubro de 1851. Um deles foi o
Tratado de Subsídios, pelo qual o Império do Brasil forneceria um valor mensal ao
Uruguai por “por tanto tempo quanto o governo de Sua Magestade (sic) o Imperador
julgar conveniente”, além de uma quantia maior que seria para cobrir as despesas
imediatas, enquanto em contrapartida o Uruguai reconhecia a dívida contraída com o
Brasil durante os anos anteriores (TRATADO, 1851). Essa relação de credor do Império
ficou conhecida como Diplomacia do Patacão, e ainda ocorria em meio à Guerra do
Paraguai, se estendendo para outros tomadores, como as províncias chefiadas por
Urquiza.
Diante da fragilidade uruguaia, os Tratados de 12 de outubro consolidaram a
dependência do Uruguai ao capital brasileiro. Nestes tratados, também se acordou que o
Império do Brasil estaria comprometido a intervir no Uruguai em caso de conflitos
internos. Garantiu-se a livre navegação no rio Uruguai e seus afluentes, e ambos os países
concordaram em não dar asilo a criminosos, prestando-se à extradição recíproca. Além
disso, o Uruguai, já tendo abolido a escravidão para integrar a população negra em seus
exércitos, se comprometia a devolver ao Brasil seus escravos fugidos. E o Tratado de
Limites definia, finalmente, os limites dos dois países, dando ao Brasil a posse exclusiva
da navegação da Lagoa Mirim e Rio Jaguarão.
Esses três últimos tratados, de comércio e navegação, de extradição, e de limites,
foram os que mais interessaram à Província de São Pedro do Rio Grande, segundo Zabiela
(2002). No Tratado de Comércio e Navegação, por exemplo, garantia-se que os uruguaios
no Brasil e os brasileiros no Uruguai estariam isentos de serviço militar, assim como de
empréstimos e impostos de guerra; e caso fosse retirada alguma propriedade deles (o que
só deveria ocorrer em situação de extrema necessidade por parte do Estado), esses bens
deveriam ser devidamente indenizados. Como havia muitos brasileiros no Uruguai, este
país não só perdia contingente como contava com uma ameaça em seu próprio território
(ZABIELA, 2002).
No caso do Tratado de Extradição de Criminosos e Devolução de Escravos, a
soberania do Uruguai foi fortemente atacada, demonstrando a fraqueza de seu Estado
naquele momento. Isso porque ao ter abolido a escravidão, escravos brasileiros que
atravessassem a fronteira contra a vontade de seus senhores deveriam ser livres, mas

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contra sua própria lei, o Uruguai deveria comprometer-se a devolvê-los ao Império


(ZABIELA, 2002). E no caso do Tratados de Limites, o Império anulou todos os tratados
coloniais que definiam a fronteira na região, utilizando como demarcação as posses
efetivas na época da independência, garantindo a expansão luso-brasileira. Além disso,
garantiu com ele o direito de exclusividade sobre a navegação da lagoa Mirim e do rio
Jaguarão
O Império brasileiro, e especificamente, os charqueadores e estancieiros sul-rio-
grandenses, saíram ganhando com o processo e o fim da Guerra Grande. Antes da Guerra
Grande, a produção de charque da Província de São Pedro já sofria com a concorrência
uruguaia. Primeiro porque seu custo era maior, já que suas terras eram menos férteis que
as uruguaias, e o Império não lhe garantia proteção fiscal. Os Tratados de 1851 revertem
essa situação em favor dos sul-rio-grandenses, na medida em que cláusulas desses
tratados garantiam “a proibição do confisco de terras, a tarifa de 25% sobre o charque
uruguaio (tasajo) importado pelos portos brasileiros e a livre passagem do gado uruguaio
para o território rio-grandense” (VARGAS, 2013, p. 312).
A hegemonia brasileira foi se consolidando nos anos 1850 após a Guerra Grande, e
a consequência para o Uruguai foi tornar-se uma “Nova Cisplatina” (ZABIELA, 2002). E
assim a região ainda não encontraria a paz, ainda mais com a revolta que esses Tratados
com o Brasil causaram no Uruguai. Ainda na década de 1850 o Império interveio
novamente através de força militar na política uruguaia, e em 1863 os Tratados de 1851
eram queimados em praça pública em Montevidéu a mando do Presidente Aguirre. Assim,
o Uruguai seria novamente o pretexto para um novo conflito regional: a Guerra do
Paraguai.

Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo articular algumas das conexões que ligaram a
Guerra Grande com a Província brasileira de Rio Grande de São Pedro, com vistas a
colaborar com a compreensão sobre o porquê a fluidez dessa fronteira ser tão importante
para os estudos acerca das intervenções e interesses do Império do Brasil na região da
Bacia do Prata. A Guerra Grande foi um importante conflito na região platina, e sua
compreensão é bastante difícil quando não se tem em vista as complexidades das
fronteiras dessa região, e a importância geopolítica dos rios da Bacia. Deste modo, pode-

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se depreender deste trabalho que as relações econômicas, políticas, ideológicas e mesmo


pessoais que atravessavam a fronteira interferiam nas dinâmicas desses conflitos. E,
considerando a noção de espaço como instância social que utilizamos para essa análise, a
Guerra Grande é um conflito que herdou vários aspectos do processo histórico da região,
assim como interferiria nos processos posteriores. Seu fim marca o início do que se
considera a hegemonia brasileira na região platina, que teria ocorrido até o fim da Guerra
do Paraguai.

Referências

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Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

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WERLANG, William. Família Berger. Agudo: Editora Werlang, 2005.

ZABIELA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação,


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OS HOMENS DE NEGÓCIO FLUMINENSES E SUA INSERÇÃO NA COLÔNIA


DO SACRAMENTO (1737-1752)

Alana Thais Basso

Neste artigo, pretendo discutir as conexões de homens de negócio fluminenses


com a Colônia do Sacramento no século XVIII, analisando a participação desta nos
circuitos comerciais de longa distância do Rio de Janeiro. A partir de uma fonte específica
– registros de óbitos de escravos da Colônia do Sacramento entre os anos de 1737 a
1752122 – foi possível identificar um grupo de agentes, comerciantes fluminenses, que
estavam contrabandeando escravos para a Colônia do Sacramento. O interesse em
realizar negócios com a região, distante geograficamente do Rio de Janeiro (o que tornava
necessário grandes investimentos financeiros), permite vislumbrar a importância que as
localidades tinham uma para com a outra no que diz respeito ao comércio. Estudar esses
agentes e sua inserção no sul da América portuguesa ajuda a pensar, portanto, nas
relações de poder nas sociedades de Antigo Regime.
Os homens de negócio eram a elite mercantil do século XVIII, formando uma
comunidade com um discurso coeso, construído para apoiar a “proeminência política e
econômica experimentada pelos negociantes” (SAMPAIO, 2007, p. 261), especialmente
quando buscavam se diferenciar da nobreza da terra, a elite social e política proprietária
de terras, descendentes dos primeiros colonizadores. São referidos na documentação
através de nomenclatura específica: conforme autodefinição encontrada no Compromisso
da Mesa do Bem Comum do Rio de Janeiro123, o termo homem de negócios significa
“comerciar do mar em fora”, ou seja, ter negócios para além da praça em que se
estabeleciam – negócios de alto risco por envolverem grandes quantias de produtos e de
valores. Por gerar elevado acúmulo de capital, o comércio de longa distância era sedutor;
contudo, não era simples, visto que as distâncias a serem vencidas eram longas e o


Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bolsista Capes.
122 Os registros encontram-se no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ), sob as notações

724, 727 e 732. (ACMRJ. Colônia do Sacramento. Livro 2º de óbitos de livres e escravos (1735-1747), fl. 91-
137v; livro 6º de óbitos de negros, índios, mulatos e cativos (1747-1774), fl. 1-54v).
123 Extraído do Compromisso da Mesa do Bem Comum do Comércio da Praça do Rio de Janeiro, de 1753

(AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 79, D. 18331).

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investimento a ser feito, grande. Dessa forma, os homens de negócio procuravam


estabelecer “contatos com indivíduos capazes de atuar como agentes nas diversas praças
com as quais mantinham relações mercantis”, formando redes comerciais e de amizade,
ou seja, relações “contínuas e, portanto, de confiança entre os indivíduos que nele
atuavam” (SAMPAIO, 2014, p. 189). Ser um negociante de grosso trato era estar envolvido,
simultaneamente, com o comércio de abastecimento interno, com a reposição da mão-de-
obra escrava e com a exportação e importação de produtos.
A reflexão teórica que guia este trabalho é a micro-história, uma prática
historiográfica que busca uma análise mais aprofundada e realista do comportamento
humano. Através de seu método – redução da escala de observação do objeto, análise
microscópica e estudo intensivo do documento (LEVI, 1992) –, ela pretende expor como
a realidade é complexa e que, para entender o todo, é necessário estudar profundamente
a parte. A redução de escala auxilia na percepção das diversidades de uma
sociedade colonial de Antigo Regime, em que a distribuição de recursos era desigual,
acarretando em diferentes possibilidades de ação. Nem todos os comerciantes tinham
acesso às mesmas oportunidades – e nem todos conseguiam obter os recursos necessários
para adentrarem no comércio de grosso trato e se tornarem, efetivamente, homens de
negócio. Assim, procura-se entender a ação social dos agentes estudados como “resultado
de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões”, em “uma realidade
normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilidades de
interpretações e liberdades pessoais” (LEVI, 1992, p. 135).
O trabalho foi realizado através do uso do método onomástico, que consiste no
cruzamento nominativo em diversas fontes, o que é essencial para que não se corra o risco
de “perder a complexidade das relações que ligam um indivíduo a uma sociedade
determinada” (GINZBURG, 1989, p. 173). Cada tipo de fonte cobre alguns aspectos da
realidade: analisar esses documentos de forma isolada muitas vezes pode reduzir a
quantidade de informações que podemos coletar sobre o objeto de estudo; por isso é
preciso sobrepor séries documentais, encontrando esses personagens em vários
contextos sociais – sendo que o nome dos agentes serve, portanto, como o “fio condutor”
pela documentação.
O cruzamento nominativo, para este trabalho, foi feito com fontes paroquiais e
administrativas. As fontes paroquiais são os registros de óbitos de escravos da Colônia do

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Sacramento entre os anos de 1737 a 1752; nesses registros, encontramos os nomes dos
negociantes estudados, que estão assinalados como moradores do Rio de Janeiro e como
proprietários e/ou consignatários dos escravos que faleceram na Colônia do Sacramento.
Isso foi possível porque os padres responsáveis pelos registros atentaram à procedência
dos senhores e consignatários dos escravos que faleciam na localidade. Já as fontes
administrativas são compostas por diversos documentos do Arquivo Histórico
Ultramarino para a localidade do Rio de Janeiro124; nesses documentos, através de uma
busca pelos nomes dos negociantes, foi possível encontrar diversas informações
biográficas sobre esses agentes, como os cargos ocupados, negócios mercantis e, mais
raro, informações sobre suas famílias.
As fontes paroquiais permitem obter informações sobre o comércio ilegal de
escravos na Colônia do Sacramento. O contrabando, justamente por ser ilegal, não
costuma deixar rastros nas fontes, a não ser quando algum contraventor é processado.
Assim, o estudo do contrabando é possível por fontes alternativas, que permitem relances
de informações, como o são os registros de óbitos – embora sua função não fosse
denunciar o contrabando, mas sim registrar os falecimentos, essa fonte acaba por,
ocasionalmente, trazer informações sobre os agentes que praticavam o tráfico ilegal de
escravos. Os registros de óbitos possibilitam a reconstrução, com limitações, das redes
mercantis que ligam a Colônia do Sacramento com outros negociantes e traficantes de
diversas localidades, como o Rio de Janeiro. Embora esse tipo de análise não traga a
quantidade exata de escravos contrabandeados para a região, ela possibilita ter uma ideia
do que se passava, reforçando hipóteses construídas pela historiografia a respeito do
tráfico de seres humanos.
Os agentes estudados viviam em uma sociedade de Antigo Regime; essas
sociedades eram altamente hierarquizadas e estratificadas, sendo o lugar social do
indivíduo definido pelo nascimento e pela ocupação (cargo) que possuía125. O prestígio

124 Tive acesso à documentação do Arquivo Histórico Ultramarino para a capitania do Rio de Janeiro (AHU-
RJ) e do inventário de documentos da localidade feito por Castro e Almeida (AHU-CA) através do Projeto
Resgate, que tem por objetivo disponibilizar documentos relacionados à história do Brasil existentes em
vários arquivos, principalmente no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) de Lisboa. O projeto chegou às
universidades públicas do país através de um conjunto de CD-ROMs com o conteúdo do arquivo digitalizado.
Para maiores informações, acessar: http://www.cmd.unb.br/resgate_index.php.
125
A concepção de Antigo Regime aplicada para a América Lusa – que recebeu o nome, pela historiografia,
de Antigo Regime nos Trópicos – não é uma questão unânime entre os historiadores. Para acompanhar o
debate, sugiro a leitura de: SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra – Política e administração na América

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tinha papel central nas definições de poder e status; a sociedade era entendida como um
corpo que, para funcionar bem, precisava que todos os seus membros tivessem funções
definidas. Nesse sistema, os seres humanos escravizados “constituíam presenças
atemorizadoras, mas vistas como necessárias no Brasil” (VILLALTA, 2016, p. 33), pois
faziam parte da ordem hierarquizante que constituía a sociedade como tal – eram, nessa
lógica, vitais para o bom funcionamento da colônia. Conforme Fragoso, Bicalho e Gouvêa
(2000), o Império português era regido pela economia do bem comum, um conjunto de
bens e de serviços concedidos aos súditos na forma de privilégios, para a defesa do “bem
comum” – as possessões territoriais e seus tesouros. A conquista e a expansão territorial
permitem a Portugal atribuir cargos civis e militares e privilégios comerciais a indivíduos
ou grupos – as chamadas mercês reais –, formando uma aristocracia de beneficiários dos
favores da Coroa. Com a distribuição de mercês, a Coroa retribuía o serviço dos vassalos
na defesa dos interesses reais e, também, “reforçava os laços de sujeição e o sentimento
de pertença dos mesmos vassalos à estrutura política do Império, garantindo a sua
governabilidade” (FRAGOSO, BICALHO, GOUVÊA, 2000, p. 75).

***

Os 29 agentes estudados neste trabalho aparecem na documentação como


moradores do Rio de Janeiro que são consignatários e/ou proprietários dos escravos que
faleceram na Colônia do Sacramento e foram registrados nos livros de óbitos da
localidade. Esses negociantes poderiam ser, portanto, os proprietários de fato ou
comissários contratados por outros traficantes para realizarem a distribuição de
escravos. De acordo com Berute (2006, p. 76-77), quem quisesse adquirir um escravo
desembarcado nos portos brasileiros, como o do Rio de Janeiro, deveria recorrer aos
serviços de comissários ou de casas comerciais, comandadas por homens de negócio;
esses comissários transportavam mercadorias e seres humanos escravizados pelo
interior da América lusa. No quadro abaixo, verifica-se o número de vezes que os agentes
mercantis selecionados para este trabalho aparecem nos registros de óbitos de escravos
falecidos na Colônia do Sacramento:

portuguesa do século XVIII. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p. 27-77; HESPANHA, Antonio Manuel. “Depois
do Leviathan”. Almanack Braziliense, n. 05, maio 2007. pp. 55-66.

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Quadro 1 - Agentes mercantis e quantidades de aparições nos óbitos de escravos da Colônia do


Sacramento:
Nº de vezes que aparecem nos registros de Nº de agentes mercantis por quantidade
óbitos consignando escravos de consignações
1 vez 19 agentes
2 vezes 2 agentes
3 vezes 1 agente
4 vezes 2 agentes
5 vezes 4 agentes
8 vezes 1 agente

Fonte: ACMRJ (Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). Colônia do Sacramento. Livro 2º de óbitos
de livres e escravos (1735-1747), fl. 91-137v; livro 6º de óbitos de negros, índios, mulatos e cativos (1747-
1774), fl. 1-54v).

Do grupo de 29 agentes selecionados para esse trabalho, 65,52% (19 indivíduos)


aparecem uma única vez nos registros de óbitos, enquanto que 34,48% (10 indivíduos)
aparecem duas ou mais vezes. A partir dos dados arrolados, expressos no quadro acima,
verifica-se que a maioria dos indivíduos do grupo estudado aparece apenas uma vez nos
registros de óbitos de escravos, o que mostra que o tráfico, para a maioria deles, era um
negócio ocasional – apenas mais uma forma de aumentar seus rendimentos126. Isso ocorre
porque o mercado colonial era marcado pela “rapidez das mudanças conjunturais, o que
implica a instabilidade dos ramos de negócio” e possuía um caráter restrito, “com poucas
opções econômicas” (FRAGOSO, 1998, pp. 325-326). A rapidez das mudanças leva à
diversificação das atividades dos comerciantes, como medida de precaução a possíveis
problemas (safras perdidas, navios naufragados/atacados, etc.), enquanto que o caráter
restrito impede que o negociante com cabedal invista tudo em um único segmento
comercial.
A exceção deste quadro de poucas consignações é Domingos Ferreira da Veiga 127,
que em um único ano (1743) aparece oito vezes nos registros. Sua trajetória pode explicar
a grande quantidade de consignações: foi capitão, administrador e arrematante de
diversos contratos, ou seja, um homem com bastante cabedal, o que o possibilitaria

126 É importante ressaltar que os números obtidos não expressam a totalidade do contrabando na região –
afinal, o contrabando não deixa registros detalhados por ser uma atividade ilegal; as conclusões feitas neste
trabalho referem-se aos registros analisados, e ajudam a compreender a realidade social de um entreposto
marcado pelas relações comerciais e pelo contrabando.
127 Domingos Ferreira da Veiga é um homem de negócios atuante na documentação analisada entre 1740 e

1759. Foi administrador, procurador e também arrematador de contratos importantes.

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despender recursos com o contrabando para a Colônia do Sacramento. Ademais, pode ter
sido uma escolha desse negociante direcionar seus esforços, neste momento de sua vida,
para esta atividade, aproveitando uma conjuntura favorável. Em uma análise micro-
histórica, Veiga era um indivíduo ativo e racional, que “opera escolhas num universo
caracterizado por incertezas e obrigações que dependem particularmente da distribuição
desigual das capacidades individuais de acesso à informação” (LEPETIT, 1998, p. 88).
Assim, ele soube aproveitar, dentro desse quadro e das possibilidades disponíveis,
oportunidades que o beneficiassem – o que não significa que os homens de negócio que
apareceram apenas uma vez não o fizessem; o que é melhor para um negociante não é o
melhor para todos, necessariamente.
Já ao analisar o período em que esses agentes aparecem nos registros, verifica-se
o seguinte: apenas um – Domingos Martins Brito128 – aparece no primeiro quinquênio
(1737-1741), enquanto que 16 comerciantes aparecem no segundo (1742-1746) e 14 no
terceiro (1747-1752), sendo que dois homens de negócio atuam tanto no segundo quanto
no terceiro quinquênio – Agostinho de Faria Monteiro129, que aparece cinco vezes nos
registros entre os anos de 1742 a 1751, e João Gonçalves da Costa130, que também aparece
cinco vezes, entre os anos de 1743 a 1750. O número elevado de comerciantes atuando
nos dois últimos quinquênios (1742 a 1752) pode estar relacionado ao fato de que é por
volta desse período, ou seja, metade do século XVIII, que ocorreu o auge do comércio na
região do Prata. Foram anos de poucas hostilidades entre as Coroas de Portugal e
Espanha, o que possibilitou maior aproximação e facilidade na realização do comércio e,
também, do contrabando na região. Estima-se que, entre 1740 e 1760, cerca de 1200
escravos entraram na Colônia do Sacramento por ano, devido ao contrabando praticado
quase sem repressão (KÜHN, 2012, p. 188).
No mundo colonial setecentista, o contrabando, apesar de ilegal, tinha regras bem
definidas e era estimulado pelas autoridades que deveriam combatê-lo; os
contrabandistas eram verdadeiros “empreendedores que pertenciam ao sistema, com

128 Domingos Martins Brito, homem de negócios e moedeiro, figura na documentação entre os anos de 1725
a 1749; foi Juiz da Alfândega do Rio de Janeiro e seu irmão, João Martins Brito, também era comerciante
destacado na praça fluminense.
129 Agostinho de Faria Monteiro é mencionado na documentação entre 1755 até 1757; foi Recebedor da

Fazenda Real, procurador de casas de negócio estrangeiras e arrematador de contratos importantes.


130 João Gonçalves da Costa, homem de negócios atuante na documentação analisada entre 1705 a 1735, foi

procurador do contrato real de Angola e moedeiro.

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boas conexões com as elites governantes” (KÜHN, 2012, p. 195). Através do contrabando
de escravos, os comerciantes conseguiam obter melhores lucros e os compradores
menores preços, visto que os seres humanos escravizados não passavam pela taxação da
Coroa; muitos funcionários da administração imperial se envolviam em esquemas de
contrabando, fazendo vista grossa em troca de ganhos materiais. Na Colônia do
Sacramento, o contrabando tinha frequência cotidiana: as autoridades e os comerciantes
“confundiam-se com os contraventores”; a região, conectada ao “complexo portuário rio-
platense, e fortemente vinculada ao comércio com portos da costa do Brasil”, acabava,
portanto, reproduzindo “localmente os valores e mecanismos das sociedades ibéricas do
Antigo Regime” (PRADO, 2002, p. 189). Isso significa dizer que, em sociedades de Antigo
Regime, os súditos deveriam se esforçar para realizarem o bem comum, defendendo os
interesses reais; o contrabando, em si, não feria o bem comum, pois “era recomendável,
ao menos tacitamente, participar das oportunidades da economia colonial amealhando
ganhos para o patrimônio familiar” (FIGUEIREDO, 2008, p. 177). Assim, as vantagens que
os funcionários obtinham em seus cargos não significavam, necessariamente, um
empecilho para o bom funcionamento do governo e da sociedade, sendo, então, toleradas.

***

O exposto neste trabalho evidencia a importância do Rio de Janeiro e da Colônia do


Sacramento para seu mútuo crescimento comercial através do esforço dos negociantes
fluminenses e sacramentinos em manterem contatos mercantis. É importante ressaltar,
entretanto, que no século XVIII o Rio de Janeiro era uma das cidades mais notáveis do
Império português: sua influência política – derivada do controle de diversas rotas do
tráfico de escravos na África e do poderio sobre as rotas comerciais com o Rio da Prata –
fez com que fosse eleita a capital do Brasil em 1763, um reconhecimento, por parte da
Metrópole, de sua importância.
A cidade ganhou essa relevância, em grande parte, devido ao comércio de seres
humanos escravizados. De acordo com Alencastro (2000), já no final do século XVII o
tráfico de escravos com o continente africano já estava plenamente estabelecido – tráfico
que acabava por unir as possessões portuguesas dos dois lados do oceano Atlântico em
um sistema de exploração de seres humanos, movimentando a economia colonial. A praça
fluminense estava conectada diretamente com os portos africanos; no século XVIII, o

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porto do Rio de Janeiro recebeu, de acordo com Cavalcanti (2005, p. 65),


aproximadamente 675.481 escravos131. O capital dos homens de negócio fluminenses,
verdadeiros senhores do tráfico, era o que organizava o comércio de seres humanos,
através da sistematização das expedições ultramarinas e da realização de empréstimos
para pessoas interessadas neste “empreendimento”. Os comerciantes do Rio de Janeiro,
portanto, eram os responsáveis pelos navios que participavam do tráfico, pela aquisição
e oferta das mercadorias que seriam comercializadas na África e, por fim, pela “montagem
do sistema de seguros marítimos, indispensável à operacionalização de um tipo tão
ariscado de comércio” (FLORENTINO, 1997, p. 120).
É justo dizer, então, que no século XVIII o Rio de Janeiro era o principal posto
comercial da América Lusa. A cidade conectava-se às demais regiões do Império através
de rotas comerciais, terrestres e marítimas; uma das mais significativas, tanto de
comércio legal como ilegal, era a rota com o Prata, através da Colônia do Sacramento,
responsável por parte da grandeza da capitania fluminense. De acordo com Prado (2002),
era através da Colônia do Sacramento que as mercadorias produzidas e comercializadas
no Brasil chegavam ao Rio da Prata, importante mercado; da mesma forma, a praça
proporcionava a entrada de couro e prata (advinda das Minas de Potosí) à colônia
portuguesa, produtos que agiram diretamente no desenvolvimento do comércio do Rio
de Janeiro. A presença portuguesa na região do Rio da Prata esteve vinculada, inclusive,
desde o início, à capitania do Rio de Janeiro:
Sacramento era a corporificação de uma demanda repetida da
Câmara carioca pela fundação de uma colônia que incrementasse
as tradicionais relações entre o Rio de Janeiro e a região do rio da
Prata. [...] Era do Rio de Janeiro que partiam os alimentos, recursos,
homens e munições que garantiam sua atribulada existência
(SAMPAIO, 2003, p. 146-147).
O Rio de Janeiro se beneficiava amplamente do comércio com a Colônia do
Sacramento, cuja própria fundação ocorreu para beneficiar a cidade. O porto mais
interligado à Colônia no século XVIII era o porto do Rio de Janeiro; a comunidade
mercantil do Rio mantinha importantes relações com a de Sacramento; o maior índice de
participação dos grandes negociantes fluminenses entre todas as rotas em que atuavam é

131O autor analisa os dados de entrada de escravos pelo porto do Rio de Janeiro de 1700 até 1799,
realizando uma projeção para os anos em que há lacunas dessa informação nas fontes, chegando ao
estarrecedor número citado acima.

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na rota para a Colônia (PRADO, 2002, p. 149-152). Mesmo sendo um comércio que
exigisse investimentos iniciais elevados para suprir as distâncias e os perigos de uma
região de fronteira em constante disputa, os negócios eram excepcionalmente lucrativos
para os grandes comerciantes fluminenses, que faziam questão, por isso, de manter os
laços com os sacramentinos.

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São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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PARTE 2

EXPERIÊNCIA E REGISTRO: A CATEQUESE E O CONVÍVIO


INTERCULTURAL POR SUAS MÚLTIPLAS VOZES E ATORES
(SÉCULOS XVI-XIX)

Carlos D. Paz
Eliane Cristina Deckmann Fleck
Guilherme Galhegos Felippe

As experiências da catequese cristã e de convívio interétnico entre indígenas,


missionários e colonos ao longo do período que se estende dos séculos XVI ao XIX
promoveram uma diversidade de situações derivadas da complexa trama relacional
própria de um cenário em que diferentes culturas, tradições e cosmovisões passaram a
examinar-se e a redefinir-se face à dinâmica do projeto colonial. Esta pluralidade de
situações de contato e de redefinições foi registrada por missionários e demais agentes
coloniais, tanto através de narrativas epistolares, quanto de obras de outros gêneros, tais
como crônicas e sínteses históricas, nas quais prevalece uma visão eurocêntrica e
fundamentada na moral cristã. Este Simpósio Temático pretende ser um espaço de
socialização de pesquisas que se dedicam à análise destes relatos produzidos sobre o
contato com as populações indígenas americanas, sobretudo, sobre as experiências da
catequese, a partir de uma abordagem que considere a multiplicidade de vozes presentes
nestes registros e a diversidade de atores envolvidos nas situações de convívio e de trocas
interculturais, em sintonia, portanto, com as recentes tendências teórico-metodológicas,
preocupadas em ampliar o escopo epistemológico do fazer historiográfico, ao dialogar
com a Antropologia, as Ciências Sociais, a Geografia e as áreas médicas e da saúde.

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PRÁCTICA CATEQUÉTICA EN LAS REDUCCIONES DEL PARAGUAY


FORMACIÓN DEL VOCABULARIO TEOLÓGICO GUARANÍ (SS. XVI-XVIII)

Angélica Otazú Melgarejo

A modo de introducción

El presente trabajo aborda el proceso de la creación del vocabulario teológico


guaraní, en la primera etapa de la evangelización en Paraguay, comprendido entre el siglo
XVI y el XVIII. Para tal efecto de analizan dos textos fundamentales: la Doctrina Cristiana
atribuida a Fray Luis de Bolaños (1607) y el Catecismo de la Lengua Guaraní de Antonio
Ruiz de Montoya (1640). Se pretende vislumbrar, la teoría de traducción de los
respectivos autores, desde la perspectiva de la guaraní; con este fin se han seleccionado
algunos términos de mayor densidad teológica. Se indaga el método de trabajo de los
misioneros lingüistas, el aprendizaje de la cultura guaraní, sobre todo, cómo resolvieron
el problema de la traducción. De hecho, la traducción es una labor que data de la
antigüedad. Este desafío se ha dado siempre en los contactos de diferentes culturas. Lo
que aquí se plantea es cómo encauzaron la traducción del contexto religioso occidental
frente al universo cultural indígena de América. Así pues, con el objeto de difundir el
cristianismo en Paraguay, discernieron los misioneros que era preciso el conocimiento de
la lengua y algo de las costumbres nativas. Para paliar en parte esa necesidad, algunos
misioneros se dedicaron a la elaboración de la gramática “misionera” de la lengua guaraní,
como una herramienta elemental de la evangelización de los nativos y formación de los
nuevos misioneros que se acoplaban a la tarea de la enseñanza cristiana. Asimismo,
efectuaron la traducción de catecismos a la lengua guaraní. En este quehacer se distinguen
diversos mecanismos, los más resaltantes son: la traducción por equivalencia o sinonimia,
palabra por palabra, creación de neologismos, el uso de hispanismos, y el recurso de la


Doktor en Philosophie, Universidad Católica “Nuestra Señora de la Asunción, PRONII-CONACYT.

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transformación semántica de los términos guaraníes para adaptar los conceptos


cristianos a la cultura nativa.
Las estrategias de la traducción “misionera”

Los pormenores de la traducción de un texto religioso se comprenden solo en la


contextualidad del trabajo y el estudio de los documentos históricos. Podemos indicar que
en la época se entendía por traducir “volver la sentencia de una lengua en otra”.
(Covarrubias de, 1611, p. 972). En la actualidad, según el Diccionario de la Real Academia
de la lengua española, traducción significa “acción y efecto de traducir e interpretación
que se da a un texto”. Existen distintos niveles de traducción.
En la práctica de adecuar el Catecismo a la cultura guaraní, la traducción exigirá
encontrar términos que, correctamente, equivaldrían a los conceptos cristianos, que
deseaban transmitir a los neófitos nativos. Pues, la teología tiene su propio lenguaje para
desarrollar los conceptos. En la primera evangelización de América se constata que los
misioneros se esmeraron para hacer inteligible el mensaje cristiano en lenguas nativas.
Naturalmente, las lenguas y literaturas religiosas de los nativos presentan
características diferentes a las de los occidentales, que se modificaron a partir del
encuentro con la cultura europea, específicamente, desde la última década del siglo XV.
Podemos decir que en América se realizó, fundamentalmente, la traducción que
denominamos inversa132.
El misionero mostró especial interés por las lenguas amerindias, que llegó a
utilizarlas como instrumento de comunicación en la gran tarea evangelizadora entre los
nativos, componiendo sermones, oraciones, entre otros medios de catequización,
igualmente, se sirvió de estas lenguas para la traducción de catecismos, que circulaban
tanto en España como en Portugal. Este trabajo consistía, esencialmente, en la traducción
que llamamos inversa. Ciertamente, no se acostumbraba traducir del guaraní al
castellano, salvo un texto de 1628, traducido por misioneros jesuitas al castellano, de
forma que conste como testimonio, a continuación, se transcribe textualmente lo
afirmado:
“Estando todo el cabildo junto y gran parte del pueblo respondieron todo
lo siguiente, que porque se vea la fuerza de sus palabras se pondrán en su

132 Se denomina traducción inversa, la que se hace del idioma del traductor a un idioma extranjero.

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misma lengua, como ellos lo dijeron y se traducirá en la nuestra


fielmente”. (Cortesão, 1951, p. 352).

El texto mencionado fue publicado recién en 1951 (MCA I 352-356). Se puede


afirmar que, la historia y el pensamiento guaraní de la época colonial no fueron
contemplados como tema de traducción. Dado que, el objetivo principal del misionero era
evangelizar a los nativos y para tal emprendimiento, precisaba dar a conocer al nativo la
doctrina cristiana y buscaba hacer acorde a su propia cultura, la occidental, en la que se
desenvolvía. Consiguientemente, las creencias, los ritos y la moral cristiana serían
transferidos al nativo en su propia lengua, sin embargo, con estilos diferentes a sus usos
y costumbres, y en una lengua que continuaba siendo nativa, aunque formalmente
distinta.
Por otro lado, vale remarcar que toda práctica de traducción sigue, explicita e
implícitamente, principios teóricos. A fin de indagar los mecanismos de la traducción
misionera, establecemos algunas categorías de las mismas, conforme a algunas
propuestas de lingüistas modernos133. Consideramos que nos facilitará rastrear los
caminos de traducción que allanaron los misioneros de los guaraníes de los siglos XVI y
XVII. Como lo indicado más arriba, nuestras fuentes principales serán la Doctrina Cristiana
de Bolaños y el Catecismo de la Lengua Guaraní de Montoya, que forma cuerpo con otros
tres títulos que son el Tesoro (1639) y el Arte y Vocabulario (1640)134.
Evidentemente, se ha generado una discusión entre los mismos misioneros y
eclesiásticos acerca de la utilización o no de las lenguas nativas, por distintas razones; por
un lado, porque pocos misioneros dominaban las lenguas nativas, sea por su mayor
capacidad para el aprendizaje o porque veían que evangelizar al nativo en su propia
lengua era lo más recomendable; por otro lado, porque otros defendían lo contrario,
debido a su falta de manejo de las lenguas vernáculas, y por ende, afirmaban que al
indígena habría que enseñarle el castellano para facilitarle la enseñanza del Evangelio de
Cristo. La ausencia de consenso de posturas parece haber conducido a cierta rivalidad
entre los propios misioneros en los albores de la evangelización latinoamericana.

133 Georg Mounin, entre otros.


134 Tesoro: guaraní – castellano; Vocabulario: castellano – guaraní; Arte: gramática.

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La política lingüística misionera

Las investigaciones realizadas sobre la política lingüística en América Latina


revelan, claramente, que la enseñanza de la lengua española a los nativos ha sido
ordenada explícita y formalmente, en especial, en las cédulas expedidas por el emperador
Carlos V en Valladolid a 7 de junio de 1550. Las cédulas mencionadas fueron dirigidas a
los virreyes de Nueva España y del Perú. En la misma fecha y con el mismo espíritu, fue
enviada otra cédula real al Provincial de los dominicos de la Nueva España (Torre Revello,
1962, p. 511). Así, algunos manifiestan explícitamente que la enseñanza del castellano era
imprescindible como una forma de adoctrinamiento de los indios en la religión cristiana
e implementar las costumbres españolas.

“Nos deseamos en todo lo que es posible procurar de traer a los Indios


naturales de esas partes al conocimiento de nuestro Dios, y dar orden en
su instrucción y conversión a nuestra santa Fe Católica, y habiendo
muchas veces platicado en ello, uno de los medios principales que ha
parecido que se debería tomar para conseguir esta obra y hacer en ella el
fruto que deseamos, es procurar que esas gentes sean enseñadas en
nuestra lengua castellana, y que tomen nuestra policía y buenas
costumbres, porque por esta vía con más facilidad podrán entender y ser
doctrinados en las cosas de la religión Cristiana”. (Encinas, 1596, p. 340).

Pese a la intención generalizada de la imposición de la lengua castellana a los


naturales de América, podemos señalar la postura opuesta del rey Felipe, quien se mostró
más comprensivo referente a las lenguas nativas, pues, dispone que el indígena aprenda
voluntariamente la lengua castellana, de esta manera se evitaba que sean obligados a
renunciar a su propia lengua:

“No parece conveniente apremiarlos a que dejen su lengua natural; se


podrán poner Maestros para los que voluntariamente quisieren aprender
la Castellana, y dése orden como se haga guardar lo que está mandado en
no proveer los curatos sino a quien sepa la de los Indios”. (García
Santillán, 1928, p.143).

No obstante, desde América también hubo algunas declaraciones a favor de la


enseñanza de castellano, como el arzobispo de México Antonio Lorenzana, quien, en una
carta dirigida a Carlos III en el año 1768 insistía aún en la necesidad de habilitar escuelas

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para enseñar el idioma español a los indígenas. El pedido del arzobispo mexicano fue
atendido por Carlos III, el mismo expidió la cédula que firmó en Aranjuez, a 10 de mayo
de 1770, en la que ordenaba a todas las autoridades del Perú, Nueva España y Nueva
Granada que extiendan el aprendizaje del idioma español (Torre Revello, 1962, p. 524).
Sin duda, con esto pretendía que “de una vez se llegue a conseguir el que se extingan los
diferentes idiomas de que se usa en los mismos dominios y sólo se hable el castellano,
como está mandado por repetidas leyes, reales cédulas y órdenes expedidas en el”. (Torre
Revello, 1962, p. 524).
Mientras que, en Paraguay se hablaba y se escribía en guaraní en las Reducciones
de los jesuitas el tiempo que duró la misión, las pruebas son los escritos de los naturales,
aun sin prohibir el castellano a aquellos que deseaban aprenderlo, como lo ha anotado un
historiador del siglo XVIII: “En cuanto á la lengua española, en ningún tiempo ni de
ninguna manera se les ha impedido que la hablasen, como ni se les ha forzado á hablarla
en tiempo ni manera alguna”. (Charlevoix, /1756/, 1912, p. 57).
De todas maneras, urgía el aprendizaje de la lengua indígena, si querían encaminar
también la conquista espiritual. Frente a quienes afirmaban que las lenguas indígenas son
pobres y carentes de palabras apropiadas para expresar la nueva doctrina, el misionero
responderá con su práctica de traducción en guaraní, con la que muestra que esta lengua
es capaz de dar nombre a todo. Lo importante y necesario es simplemente dominar la
lengua. No obstante, esta posibilidad le ocasionará dificultades en la práctica pastoral,
como sabemos por la historia. (Melià, 2003, p. 209-260). Particularmente, los temas
refutados por Montoya en su Apología en defensa de La Doctrina Cristiana escrita en
Lengua Guaraní (p. 33ss.). En principio, tanto Bolaños como Montoya, y los misioneros en
general, habían aplicado ciertos términos cotidianos a lo sagrado, como se ha hecho en
muchas religiones. (Otazú, 2006, p. 98). No obstante, se debe admitir que muchos de los
términos cotidianos empleados en la misión con una connotación religiosa específica tal
vez no fueron asimilados de forma inmediata en su nuevo sentido.

La traducción por equivalência

En la implementación del cristianismo en Paraguay, el misionero se percata que la


cultura guaraní y su lengua poseen, por una parte, características y categorías que podrían

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llamarse universales de cada idioma. En este sentido, vale resaltar esta opinión, en torno
a la traducción, bastante extendida desde tiempos pasados, y recogida por un lingüista del
siglo pasado “todas las lenguas debían comunicarse entre sí porque hablaban, todas y
siempre, del mismo universo, de la misma experiencia humana, analizada según
categorías del conocimiento idénticas para todos los hombres”. (Mounin, 1977, p. 58-59).
Por un lado, los distintos registros de la traducción dejan entrever, cuáles son los
motivos de la decisión de traducir palabra por palabra, lo términos que, en principio,
tendrían correspondencia en cada cultura. Por otro lado, podemos especular que esta sencilla
práctica podría haber generado cierta interrogación sobre su alcance y comprensión y tras una
profunda reflexión habrían sentido la necesidad de investigar las costumbres nativas,
especialmente, su sistema de parentesco y organización social. A continuación, van algunos
ejemplos que surgieron de la traducción por equivalencia en el catecismo:
Túva, padre; ta’ýra, hijo; memby, hijo (de mujer); menda o mendára, matrimonio; yvága,
cielo; kuái o kuaitáva, Los Mandamientos de la Ley de Dios; marangatu, Santo.
Al parecer no hubo ninguna dificultad para encontrar la equivalencia de la palabra
padre en guaraní que se expresa túva, pues, en cada cultura hay un padre; sin embargo,
cuando se trata transferir el concepto de Dios Padre a una cultura diferente, pudo haber
presentado cierta resistencia de parte de los misioneros y de los nativos para aceptar y
asimilar, aun cuando en la teogonía guaraní hay también un dios que es padre.
Consideramos que habrá sido más difícil llegar a un consenso para la resemantización del
uso de ta’ýra y memby para la traducción de hijo del padre o de la madre, de Dios o de la
Virgen María, respectivamente. En esta acción se separa la palabra de su contexto cultural
tradicional, se la aparta de su significado más común y viene conceptuada en un nuevo
nivel mediante la nueva analogía: Hijo de Dios Padre, que habitualmente será escrito en
mayúscula.

La creación de neologismo

Uno de los mecanismos desarrollados por los misioneros traductores constituye la


composición de palabras nuevas mediante la unión de partículas y voces guaraníes.
Lógicamente, la polisíntesis es una característica usual de la lengua guaraní y tenía
tradición y aceptación convencional antes que ingresaran los misioneros en sus
territorios, pero podemos decir que la creación de neologismos, en alguna medida, rompe

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el sistema guaraní. Como también ha ocurrido con otras lenguas de América, durante la
primera evangelización, según los diversos documentos y afirmaciones de los estudiosos:

“Las lenguas están estrechamente unidas a las necesidades de los


habitantes; nuevas realidades exigen la creación de nuevos signos para
conocerlas y distinguirlas. […] numerosas voces compuestas habían
inventado los primeros frailes para traducir los nuevos conceptos y
significar las cosas que desconocían los indígenas mexicanos”. (Suárez
Roca, 1992, p. 286).

Los primitivos misioneros lingüistas del Paraguay optaron muchas veces por el
recurso de neologismo para adaptar la Doctrina cristiana a la cultura meta, la guaraní. Así
pues, procedieron a crear nuevas palabras para dar a conocer a los nativos los conceptos
básicos del cristianismo. Aunque, en dicho emprendimiento habría que reconocer
también la participación de los interpretes “lenguaraces”, de quieres los guaraníes
recibieron inicialmente el mensaje evangélico y como resultado se inauguró la práctica
cristiana guaraní.
Como ejemplo de neologismo citamos los siguientes:
Cristiano ñemoñangáva (neologismo híbrido), Bautismo.
Tupã, Dios. La palabra Tupã, como Dios, que adoptaron los misioneros implica una forma
de relación entre dos conceptos, al mismo tiempo que supone una arriesgada creatividad
misionera. Tupã en los textos cristianos será de hecho un neologismo propio e
independiente, una creación de sentido nuevo, que los indígenas sólo aprenderán a través
de una nueva educación y mediante los usos nuevos que harán del término.
Tupãsy, Madre de Dios. De este neologismo salen varias composiciones. La principal,
evidentemente, es Tupãsy: Tupã, Dios y sy, madre. Tupãsy, “Madre de Dios” (Montoya,
1639, p. 403v.) Luis Bolaños, ya la conocía y usaba, como se puede apreciar en su Doctrina
Cristiana: Sancta María, Tupãsy marane’ỹ mba’e, eñembo’e nde membýra upe, [lit.: Santa
María sin pecado o sin mancha, ruega a tu hijo] (Bolaños, 1607, p. 409).
Tupã rara, comunión.
Montoya al crear este neologismo para traducir el concepto de comunión: Tupã rara,
recoge un aspecto casi intimista del rito, dejando de lado su aspecto más eclesial y
comunitario. En la vida guaraní estaba la antropofagia, cuya memoria se procura
desterrar definitivamente. Sin embargo, llama la atención que Montoya haya ofrecido una

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traducción en su Tesoro (1639, p. 405) cuando dice: Che ro’o i’upy rete, “mi carne es
verdadero manjar” y, sobre todo, cuando pone la comunión en un contexto de convite con
reminiscencias antropofágicas, al decir: Tupã oñembopepy ñandéve, gu’o ho’ukávo,
“hácenos Dios convite con su carne” [lit.: Dios nos convida para darnos de comer su carne]
(Montoya, 1639, p. 268v).
Otros neologismos son: Tupã Gracia, la gracia de Dios; Jesu Cristo ñandejára, Nuestro
Señor; Jesu Cristo (Montoya, 1640, p. 16); Cruz ra’ãngáva, la Santa Cruz; Cruz pype
ikutupyre, fue crucificado; Hekove jevy, Resurrección (Montoya, 1640, p. 19). Avare
ñemoñangáva; Orden sagrado; Añaretã o Añaretãma, infierno, entre otros.

El uso de hispanismo en los catecismos

Llamamos hispanismo a las palabras castellanas introducidas en el léxico guaraní,


que si nos ajustamos al Diccionario de la lengua española significa “giro o modo de hablar
propio y privativo de la lengua española”. Se trata pues, de “vocablo o giro de esta lengua
empleado en otra o el empleo de vocablo o giro españoles en distinto idioma”. Y en el caso
particular de la lengua guaraní, la entrada de vocablo español en esta lengua se produjo a
raíz del contacto y convivencia de las dos sociedades con lenguas diferentes. El misionero
recurría a este mecanismo cuando no encontraba palabra guaraní que equivalga fielmente
a algún concepto cristiano.
He aquí, algunos ejemplos de hispanismo que figuran en los catecismos
mencionados:
Espíritu Santo. El concepto Espíritu Santo no fue traducido ni en los catecismos ni en los
diccionarios, y se optó más bien introducir el concepto mediante el hispanismo. Es de
suponer que a los misioneros les resultaba más sencillo enseñar a los nativos la nueva
palabra extraña con su significado también extraño. Es más, con este tipo de operación
evitaban posibles interpretaciones ambiguas, imprecisas e incluso erróneas.
Otros hispanismos de uso frecuente son: Adorar: ha’e yvápe gueko javeve, kova’e Hostia
pypeve oiko, emona ramo moñepeteĩ ñote, ñande rembiadora. (Bolaños, 1607, p. 110).
Constatamos que en los catecismos decidieron dejar en castellano el término Altar
(Bolaños, 1607, p. 110); en el Tesoro, en cambio, se traduce por Tupã mongetahápe (p.

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402v.) y pudimos verificar que Paulo Restivo lo traduce por misa moñangára (Restivo,
1722, p. 68).
Tampoco fueron traducidos los términos: Apóstol; Cáliz; Crisma; Cristo y Cruz.
(Bolaños, 1607, p. 110); (Montoya, 1640, p. 186); Por su parte, la palabra Hostia
permanece en castellano tanto en la Doctrina Cristiana (Bolaños, 1607, p. 110) como en
el Catecismo de Antonio Ruiz de Montoya (Montoya, 1640, p. 222); (Montoya, 1640, p.
186), sin embargo, la traduce Montoya en su Tesoro por mbujape en la explicación de
Consagración: Montoya, 1639, p. 10.

La transformación semântica

Las transformaciones semánticas se producen en la misma equivalencia y en los


neologismos. Lógicamente, cada forma de traducción implica cambios semánticos,
aunque aparentemente ligeros. No siempre se llega a abarcar su significado anterior o su
uso común. Además, suelen venir aisladas de su contexto y transformadas conforme a la
necesidad del traductor.
Es imprescindible resaltar en este estudio sobre el nuevo lenguaje religioso, el traslado de
expresiones cotidianas a conceptos teológicos que, a su vez, produce indefectiblemente,
un cambio de significado de los términos en la primera evangelización del pueblo guaraní,
que consideramos, habrá producido, al principio, una cierta confusión en los nuevos
cristianos.
Por dar sólo algunos ejemplos podemos citar:
Marane’ỹ, Virgen. Marane’ỹ: suelo intacto; virgen.
La palabra marane’ỹ, en su uso principal, se aplicaba, al parecer, a suelo intacto: yvy
marane’ỹ, como consta en el Tesoro de la lengua guaraní de Montoya: Marane’ỹ: está
compuesta de marã (enfermedad) y e’ỹ (negación), y significa: “bueno, entero,
incorrupto”. Marane’ỹháva, “pureza, limpieza, virginidad, salud, inocencia”. Yvy marane’ỹ,
“suelo intacto, que no ha sido edificado”. Ka’a marane’ỹ, “monte donde no han sacado
palos, ni se ha traqueado”. Kuña marane’ỹ, “mujer virgen” (esta definición proviene
probablemente de la traducción misionera). Teko marane’ỹ, “el ser bueno, inculpable vida,
inocencia”. Marane’ỹmbápe, “inculpablemente, inocentemente” (Montoya, 1639, p. 209v.).

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Con este amplio campo de aplicación y uso, no es extraño que haya pasado a la
Doctrina de Bolaños y al Catecismo de Montoya, precisamente, para traducir la virginidad
de María. Ella es ciertamente la intacta, la incorrupta, la pura y limpia, la inocente, buena
e inculpable, la no traqueada y la no usada. Marãnungápe osy marane’ỹgui i’ari ra’e?,
“¿Cómo pudo nacer de Madre Virgen?” [lit.: ¿por qué nació de su madre intacta o virgen?]
(Montoya, 1640, p. 55).
Otros términos que fueron transformados semánticamente están relacionados con
las prácticas rituales y preceptos: Hovasa, bendecir; jekoaku, Ayuno; Arete guasu, Fiesta, y
los referentes a conceptos cristianos desconocidos en la cultura guaraní, tales como:
Salvación, pysyrõ pecado, angaipa, entre otros.

Consideraciones finales

Los misioneros lingüistas realizaron un enorme esfuerzo para aprender la lengua


y la cultura guaraní, con el afán de propagar el cristianismo. Ellos elaboraron textos de
gramática, Arte, vocabulario y tradujeron el catecismo como instrumento básico de su
predicación. Podemos señalar que la lengua guaraní tuvo más suerte en el primer
momento del contacto con los españoles, porque hubo personas que se esmeraron en
aprenderla y hasta otorgarle la escritura, la que facilitó el registro de elementos
relevantes de la cultura guaraní. De ahí la importancia del estudio de los documentos
escritos en guaraní de la época colonial, que requeriría de la actuación coordinada de
investigadores formados en distintas áreas de la ciencia.
Aunque, hay que reconocer también que en aquel contacto se ha fragmentado la
cultura guaraní, particularmente, el aspecto religioso, y que se redescubrió después de
casi cuatro siglos, gracias a algunos antropólogos, quienes nos demuestran que la creencia
religiosa guaraní es un legado cultural elemental, por la literatura y manifestaciones
rituales.

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A QUERELA SOBRE OS INDÍGENAS QUE PERPASSOU A TRAJETÓRIA


DO PADRE JORGE BENCI

Natália de Almeida Oliveira

Quem foi Jorge Benci?

Jorge Benci de Arimino nasceu em Rimini, na Península Itálica, em 1650. Ingressou


na Companhia de Jesus em Bolonha, em 17 de outubro de 1665, com 15 anos de idade.
Embarcou para Lisboa, em 1681, para trabalhar nas atividades missionárias. Ao alargar a
busca de dados para compreender a vinda de Benci para o Brasil, descobrimos que a sua
chegada, no ano de 1681, foi junto com Antônio Andreoni, o Antonil e Antônio Vieira. O
primeiro vinha para o Brasil pela primeira vez e o segundo chegava após uma longa
estadia em Lisboa desde 1675. Ressaltamos que Benci e Antonil realizaram no mesmo dia
a sua profissão solene, Benci no Rio de Janeiro em 15 de Agosto de 1683, e Antonil na
mesma data na Bahia. Os dados após a chegada de Benci ao Brasil são extremamente
escassos, em linhas gerais apontam que em 2 de Maio de 1700, quando estava na Bahia,
solicitou sair do Brasil por motivos pessoais, pedindo para voltar à Veneza, onde havia
estado, ou para ir para a Ilha de São Tomé, mas foi enviado para Lisboa onde trabalhou
com os assuntos referentes à Província Jesuítica do Brasil. Benci morreu em 10 de Julho
de 1708, em Lisboa.
Jorge Benci, segundo Serafim Leite e Carlos Sommervogel, ocupou os cargos de
professor de Humanidades e Teologia, sendo também Pregador e Procurador do Colégio


As conclusões apresentadas nesse trabalho são fruto da dissertação defendida em Junho deste ano, na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), intitulada: “Jorge Benci e missão: A
reconstrução da trajetória de um jesuíta italiano na América Portuguesa”, pesquisa feita sob a orientação
do Professor Dr°. Anderson José Machado de Oliveira, e financiada pela CAPES durante todo o curso.
Agradeço publicamente ao professor Anderson Oliveira, pela orientação e dedicação. Agradeço também ao
meu professor de Latim Braulio Pereira, e a professora Márcia Amantino. E-mail para contato:
natalia_hist@yahoo.com.br

Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (2017). Integrante
do grupo de pesquisa ECCLESIA - Grupo de Estudos de História do Catolicismo, da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. Licenciada (2010) e Bacharel (2011) em História pela Universidade Gama Filho
(UGF), Pós-Graduada em História do Brasil Colonial (2013) pela Faculdade São Bento do Rio de Janeiro
(FSBRJ), e Pós-Graduada em Ciências da Religião (2016), também pela Faculdade São Bento do Rio de
Janeiro (FSBRJ).

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da Bahia, foi também Visitador Local e Secretário Provincial. Serafim Leite ressalta que
“nesta qualidade esteve em S. Paulo a tratar das administrações dos Índios.” (LEITE,
Serafim. 2004, tomo VIII, p. 234, 235). Pelos cargos ocupados entendemos que Jorge Benci
fez parte de uma elite intelectual italiana presente na América Portuguesa. Mais do que
isso, acreditamos, mesmo não havendo dados oficiais em Serafim Leite e Carlos
Sommervogel, que Benci fazia parte do seleto grupo de jesuítas que tinham professado o
quarto voto.
Para O´Malley no nordeste da Itália e em Portugal houve um número de jesuítas
maior oriundos de “famílias nobres, ricas e aristocráticas, mas isso não era verdadeiro para
outras partes da Europa. Porém, nas primeiras regiões mencionadas, praticamente,
ninguém, exceto os irmãos leigos, provinha de classes sociais mais baixas.” (O’MALLEY, John
W., 2002, p. 98). Jorge Benci nasceu na cidade de Rimini, no nordeste da Península Itálica,
fato este que nos permite cogitar o seu pertencimento a uma elite da região. Essa hipótese
nos permite compreender melhor a trajetória de Benci, entendendo não só o seu lugar
social de fala, mas também o grupo de quem e para quem ele falava.
Benci escreveu cronologicamente os sermões: O Sermão Sentimentos da Virgem
Maria N. S. em sua Soledad, O Sermão do Madato, o Sermão de S. Felippe Neri. Em 1700
Benci reuniu os sermões: “As Obrigações dos Senhores para com os Escravos”, e criou um
tratado intitulado de Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. Por fim, Benci
escreveu a obra De vera et falsa probabilitate opinionum moralium. Do mais, há as cartas
escritas e trocadas por Benci durante sua vida no interior da Companhia de Jesus. Estas
são escassas e com poucas informações, mas nos permitem compreender os meandros
das relações interpessoais e das políticas internas no seio da Companhia de Jesus.

A querela indígena

Na Província do Brasil, a missão teve um impasse entre a conversão e a exploração


da mão de obra indígena nos aldeamentos de São Paulo, sendo parte de um debate sobre
as formas de legitimidade do domínio sobre o indígena. No cerne deste debate estavam
Antônio Vieira e Antônio Andreoni, português e italiano respectivamente, que iniciam
uma querela sobre a administração temporal dos indígenas. É neste momento que se

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organizam facções ou partidos no seio da Companhia de Jesus. Posteriormente, Jorge


Benci entra nesse conflito.
Ao refletirmos sobre esses conflitos de disputa interna de poder no seio da
Companhia de Jesus na Província do Brasil, não podemos perder de vista a noção da ação
missionária como um instrumento político, e Jorge Benci é uma peça desse quebra cabeça.
Mais do que um homem, Benci é um agente político de uma determinada conjuntura, que
está inserido no contexto de conflito interno pelo poder na Companhia de Jesus.
Na segunda metade do século XVII, a questão indígena suscitou um debate de
padres que estavam fora da esfera do Colégio de São Paulo, pois a administração
particular dos colonos paulistas sobre os indígenas pouco se diferenciava da prática da
escravidão. John Monteiro nos traz relatos de contemporâneos, como no testemunho de
Ayres do Casal, que diz: “os paulistas, posto que não davam aos índios domesticados o nome
de cativos, ou escravos, mas só administrados, contudo dispunham deles como tais, dando-
os em dotes de casamentos, e a seus credores em pagamento de dívidas”, (MONTEIRO, John
Manuel, 2013, p. 147) práticas essas que revelavam a mácula da escravidão nas
administrações. No fim do século XVII, novamente a querela indígena se reascenderia,
graças ao 1° bispo do Rio de Janeiro, que tentou normatizar uma taxa de 160 réis por cada
gentio descido do sertão, e posteriormente o governador também do Rio de Janeiro
postulava a liberdade incondicional dos indígenas. Essas novas medidas influíam
diretamente nos assuntos dos paulistas, já que estes respondiam às autoridades
eclesiástica e civil do Rio de Janeiro. Novamente, na contramão dessas leis, os paulistas
foram à Câmara Municipal contestar, para depois negociar a questão.
O novo conflito era configurado por uma antiga questão, o direito de trazer índios
do sertão. Estando os paulistas mais calmos do que em 1640, foi negociado um acordo
mediado por Alexandre de Gusmão, que em março de 1685 foi às vilas de São Paulo e
Santos tentar remediar o latente conflito. Para César Freitas, que estuda a presença de
Gusmão no cerne desse conflito interno da Companhia de Jesus, mais do que pensar qual
facção ou projeto saiu vencedor, é “mais importante compreender em que medida estas
controvérsias entre os inacianos traduzem uma diferença de entendimento acerca dos
modelos de evangelização” (FREITAS, César Augusto Miranda de, 2011, p. 33). O que
reforça a nossa hipótese acerca dos diferentes modelos de missionação presentes dentro
da Companhia de Jesus.

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Entre os anos de 1688 a 1691 o Padre Antônio Vieira ocupava o cargo de Visitador
da Província, e como já bem sabido, este saiu em defesa da liberdade dos indígenas, e deste
modo, desejava que a administração temporal e espiritual daqueles fossem obrigações
exclusivas dos inacianos, que deveriam ordenar os aldeamentos e as missões ao sertão.
Essa questão acirrou os ânimos com os paulistas, o que fez com que os jesuítas acabassem
expulsos do Colégio de São Paulo. Entretanto, ao assumir como provincial, em 1684, o
padre Gusmão não aceitou a ideia de que os jesuítas saíssem da Província, desejando criar
um acordo com os paulistas. Como nos aponta Serafim Leite, Alexandre de Gusmão, junto
com seu secretário o padre João António Andreoni, vão a São Paulo para ouvir o motivo
pelo qual o governador local e o bispo do Rio de Janeiro eram contra o fim do Colégio. Com
a oposição entre colonos e jesuítas mais uma vez polarizada, Gusmão criticou os seus
irmãos inacianos que usavam os indígenas para trabalhos domésticos. E nesse interim do
conflito, os paulistas já tinham autorização da Coroa para realizar o aprisionamento dos
indígenas, realizando diretamente sua forma de administração. Em função dessa querela,
Gusmão se predispõe a idealizar a solução para o conflito. Sua ideia era satisfazer os
desejos de todos os envolvidos, autoridades locais, jesuítas e colonos, e aos índios garantir
o que os inacianos consideravam liberdade possível135. Deste modo, Gusmão aceitou a
utilização dos indígenas pelos paulistas, indo contra Antônio Vieira, que diretamente o
acusava de permitir que padres estrangeiros decidissem uma questão tão importante,
questionando a participação no debate dos padres considerados estrangeiros, como, o
italiano Jorge Benci e o flamengo Jacob Rolland.
Jacob Rolland é considerado o autor do manuscrito Apologia Pro Paulistis, de 1684,
que foi conservado na Biblioteca Nacional de Roma e versa sobre o porquê de os
habitantes de São Paulo e das vilas adjacentes não deviam desistir dos índios do Brasil.
No documento fica nítida a importância de São Paulo no contexto colonial, sendo chamado
de reino paulista, e afirmando que os paulistas “devem ser absolvidos pelos nossos Padres,

135
Como definiu José Eduardo Franco, liberdade possível para os inacianos era: “Os jesuítas – homens do
seu tempo – em relação ao índio defendiam a “liberdade possível”, isto é, aquela que o pensamento político-
ideológico da época permitia, correspondente aos objetivos espirituais da igreja e os interesses temporais
do Estado Português. A liberdade do gentio no mato não era considerada pelos inacianos uma verdadeira
liberdade, pois uma só existia, segundo a Igreja, na comunhão com Cristo. O índio para ser livre precisa ser
cristianizado. Os padres da Companhia, no Brasil, mesmo defendendo a liberdade do indígena, não se
omitiam do respeito às leis régias que estipulavam as condições e a situação que a escravidão era
permitida.” In: (FRANCO, José . 2006. p.169).

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sem que mudem o seu costume, nem dêem a liberdade aos índios, seus escravos.” (ROLLAND,
Jacob, 2009, p. 389). É interessante a nosso ver observar que a justificativa do costume
paulista de utilizar a mão de obra indígena não é só apresentada pelos colonos, mas
também pelos jesuítas considerados como estrangeiros, opositores da tese de Antônio
Vieira, mostrando que, como afirmou John Monteiro, o costume teria uma força de
tradição naquele contexto136. Segundo Rolland, os paulistas não teriam como prosperar
sem a “ajuda” indígena, afirmando que nem com os africanos teriam sucesso em seu
desenvolvimento, pois além do alto preço dos etíopes, esses eram poucos e não dariam
conta do contexto paulista. Sendo assim, para aqueles que achavam que os paulistas
pecavam, Rolland afirmava que eles estariam absolvidos, pois agiam conforme o seu
costume.
A Apologia afirmava que as leis da Coroa e do Papa não poderiam interferir nos
costumes paulistas, não estando esses em estado de pecado, e deste modo o Breve Papal
de Urbano III deveria ser desconsiderado, sendo os paulistas absolvidos e devendo
receber os sacramentos. Entretanto Rolland ressaltava que essa consideração só tinha
validade para os paulistas, e não para os habitantes de outras regiões, como os do Rio de
Janeiro, da Bahia ou de Pernambuco, pois estes teriam meios financeiros de usar a
escravidão africana, além de não terem o costume de usar mão de obra indígena. Mais do
que questões políticas e econômicas, Rolland afirmava a importância cristã do trabalho
dos paulistas. Essa importância do governo cristão levou Carlos Alberto Zeron a pensar a
Apologia como sendo um pequeno tratado escolástico, o qual deve ter tido uma circulação
na Companhia de Jesus. (ZERON e RUIZ, 2009, p. 114).
Pela Apologia Pro Paulistis, conseguimos enxergar claramente o racha interno na
Companhia de Jesus, acerca da questão indígena. Para Rolland, os índios poderiam ser
escravizados pelos paulistas, contrapondo-se diretamente à posição de Vieira.
Conseguimos entender a posição de Rolland137 e dos demais dissidentes da posição oficial

136
Para Rolland, “as leis são estabelecidas quando promulgadas, mas se firmam quando comprovadas pelos
costumes dos que a praticam.” (ROLLAND, Jacob, 2009, p. 400). E o costume paulista já era tão inerente que
criou uma nova lei. Baseando-se em filósofos escolásticos, como por exemplo Francisco Suaréz e Paul
Layman.
137
Para Zeron, Rolland “constrói um argumento histórico, apoiado em razões teológico-jurídicas, que
empresta total legitimidade ao fundamento escravista da sociedade colonial paulistana, que se
particularizava pela escravização sistemática e indiscriminada da população indígena.” (ZERON e RUIZ,
2009, p. 124).

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da Companhia do Brasil, que pautava a liberdade do indígena, e uma gestão dos


aldeamentos, em função de que desde o século XVI, como nos aponta Zeron (ZERON,
Carlos Alberto de M. R , 2011), Roma opunha-se à proposta de gestão temporal dos
aldeamentos. Posição que, na prática, não havia tido muita voz, até aquele momento.
Entretanto, acabando o período do governo de Alexandre de Gusmão, assumiu o
cargo de Geral da Companhia, Diogo Machado, que era diretamente ligado a Vieira. Em
função disso neste período essas questões ficaram em suspenso, pois Vieira continuava
sendo a favor da tutela temporal e administrativa dos indígenas. Por causa dos excessos
das entradas no sertão, em 1693, D. Pedro II incumbiu o Governador Geral e os superiores
de encontrar uma solução que mediasse essa querela. Com isso, Gusmão, que a essa altura
era Vice Provincial, deveria impor as resoluções que haviam sido tratadas por Jorge Benci,
quando este era Secretário da Provincial na década anterior.
Em acordo datado de 27 de Janeiro de 1694, o padre Gusmão reconheceu a
administração dos indígenas pelos paulistas. Entretanto, algumas dúvidas
permaneceram, mesmo com as concessões de ambos os lados. Essas dúvidas podem ser
vistas, no documento “Dúvidas que se oferecem pelos moradores da vila de São Paulo a sua
Majestade, e ao senhor Governador Geral do Estado, sobre o modo de guardar o ajustamento
e a administração na matéria pertencente ao uso do gentio da terra, cuja resolução se
espera”, transcrito pelo Padre Serafim Leite. (LEITE, Serafim, 2004, tomo VI, p. 533, 534).
Essas dúvidas foram assinadas por Gusmão e pelos oficiais da Câmara, tendo a consulta
jurídica e redação desse documento sido feitas por Andreoni, que nesse contexto era
Secretário do Provincial. Essas dúvidas eram questões a respeito de como administrar os
indígenas. Sendo respondidas pelo rei diretamente ao governador D. João de Alencastro
em um parecer que se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Os paulistas não mais poderiam organizar e mover entradas aos sertões, apenas os
missionários poderiam se ocupar dos assuntos da doutrina cristã, sendo todo indígena
livre, não podendo mais os paulistas os usarem como escravos, independente deles serem
capturados, ganhos ou dados, e independente de serem cristianizados ou não. Os paulistas
poderiam continuar utilizando a mão de obra indígena, mas não poderiam transforma-los
em mercadoria, sendo proibido negocia-los, compra-los ou troca-los. Para aqueles
indígenas já súditos, cristianizados, os paulistas seriam seus tutores, administradores, não
permitindo que eles voltassem à condição de gentio. O soldo desses indígenas seria pago

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em comidas, vestimentas, remédios. Deste modo, o acerto colocaria limites na questão


indígena e libertaria os paulistas da mácula do Breve Papal.
Em síntese, essas dúvidas deixavam clara a posição dos paulistas a favor da
escravidão indígena. A essa proposta, Antônio Vieira respondeu com um voto (LEITE,
Serafim. 2004, tomo VI, p. 534-538), datado de 12 de Julho de 1694. Mesmo já com 86
anos e não mais detentor de uma posição hegemônica dentro da Companhia, Viera tinha
uma clara objeção ao acordo. Para ele, a escravidão indígena não era possível, pois os
indígenas não haviam sido conquistados em guerra justa. Reafirmou que a administração
dos paulistas era ilegal, pois aqueles cativos que fugiam voltavam à força, sendo também
uma prática ilegal transferir índios por dotes de casamentos, assim como remunerá-los
por seu trabalho. Pagar o trabalho com roupas, comidas, moradia, não era o correto para
a conversão na ótica de Vieira. Assim como a justificativa de que o indígena era
preguiçoso, pois os relatos afirmavam que os paulistas tratavam os índios como tratavam
os negros, logo eles seriam escravos. Para Vieira:

Os índios do Brasil são naturais delas, de onde têm seu domicílio e vivem
em terra e pátria própria e de sua nação, pais avós, e como partes da
mesma comunidade e membros do corpo político que devem conservar e
aumentar, e não diminuir nem desfazer; e pelo contrário os índios
chamados de São Paulo, nenhuma obrigação têm àquela povoação e
república, donde saíram os que por suma violência e tirania os
arrancaram de suas terras e pátrias; e obriga-los a que conservem a dos
paulistas.(LEITE, Serafim. 2004, tomo VI p. 536).

A opinião de Vieira sobre a escravidão indígena é uma das suas opiniões mais
fortes e concisas, desde os primeiros textos ele mantém sua posição. Em 24 de Julho do
mesmo ano, escrevia Vieira ao Duque de Cadaval, reafirmando a sua posição relativa que
a administração dos indígenas, indo em oposição contrária aos demais jesuítas, pois:

Sobre a administração dos índios, concedida aos Paulistas, foi servido Sua
Majestade que eu também desse o meu voto, em que não me conformei
com os demais, por ver que todo o útil se concedia aos administradores,
e todo o oneroso carregava sobre os miseráveis índios, a quem em todas
as voltas ou mudanças que sempre a roda da fortuna leva debaixo. O
modo, que me ocorreu, de concordar com a sua liberdade com
consciência e interesse dos que tanto lhe devem, então terei por acertado,
quando saiba que não desagradou a Vossa Excelência, posto que a
esperança das minas, que eu não creio, pode ser que incline ao favor

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contrário não poucos aduladores. [...] De cativeiro doméstico, com os


Portugueses nesta Província estamos dominados de estrangeiros,
sem nos valerem os decretos reais, também espero que o poder e
auxilio de Vossa Excelência nos ajude eficazmente a remir. (LEITE,
Serafim. 2004, tomo VI, p.538).

João Lúcio de Azevedo na biografia de Viera já havia feito alusão aos padres
estrangeiros, e segundo Serafim Leite, estes seriam Benci e Antonil, que influenciaram o
Padre Alexandre de Gusmão e também os padres Antônio Rangel e Domingos Ramos.
Segundo Viera, em carta datada de 21 de Julho de 1695, mesmo estes tendo boa ciência,
não tinham vivência para tratar de tamanha questão, “não se sabe que nenhum de todos
eles tratou, em toda a sua vida, com índios, nem lhes sabe a língua, expecto um, que fala
alguma palavra”. (VIEIRA, Antônio. In: FRANCO; CALAFATE; PRIORI, 2014. p.504).
Afirmava também que havia outros padres contra o tal acerto, que também não assinaram
o documento, pois assim como ele conheciam a prática e cotidiano das aldeias.
Vieira era contra o acordo, justificando novamente a sua experiência com as
aldeias, e contando ao padre Manuel Luis que quem havia escrito aquele texto era “um
padre italiano que nunca viu um índio, e só ouviu aos paulistas, como fez outro flamengo
chamado Rolando”. (VIEIRA, Antônio. In: FRANCO; CALAFATE; PRIORI, 2014. p.505).
Posteriormente, na mesma carta Vieira usa a expressão seita paulistana, realizando a
analogia dos paulistas com os calvinistas e luteranos.
Serafim Leite (LEITE, Serafim, 2004, tomo VI, p. 538) faz uma constatação que nos
interessa muito, afirma que o padre Jorge Benci ao saber da fala de Vieira sobre o padre
italiano que havia organizado o acordo, mas nunca tinha visto um índio, ficou estimulado
a estudar o cotidiano e a situação dos escravos, o que o levou a escrever a Economia Cristã
dos Senhores de escravos. Não temos acesso a documentos que nos permitam corroborar
a afirmativa de Serafim Leite, mas pela conjuntura do conflito interno da Companhia
acreditamos sua suposição.
Mesmo internamente enfraquecido, em função das articulações de Benci, Antonil e
Gusmão, Vieira tinha um poder singular, pois mantinha seu prestigio junto ao Rei,
independente da conjuntura interna da Companhia de Jesus. O que fez com que o seu voto
ressoasse e influenciasse diretamente as Cartas Régias de 26 de Janeiro e 19 de Fevereiro
de 1696 que determinavam uma divisão mais justa dos índios, e que estes trabalhassem

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alternadamente para os colonos e para si, podendo permanecer no máximo quatro meses
no sertão. Segundo Serafim Leite, mesmo na prática essas normas não sendo cem por
cento cumpridas, ficaram claros os novos métodos de missionar junto aos índios paulistas
e a influência direta de Vieira na América Portuguesa.
No decorrer dos anos, todos os colégios da Companhia de Jesus passaram a utilizar
a mão de obra escrava negra, com exceção dos Colégios de São Paulo e Santos, que
permaneceram com a indígena. Em 1700, já com a escravidão negra tomando corpo, nos
colégios de São Paulo ficou determinado que os indígenas poderiam ter um segundo
trabalho, caso o seu sustento não estivesse sendo suficiente.

Trajetória de um homem por um conflito

Se a escravidão indígena suscitou querelas internas entre os inacianos, a


escravidão africana foi um consenso entre os religiosos, era necessário legitima-la,
apoiando-se em preceitos cristãos, pois o africano é pecador e o negro traz consigo a
marca do pecado, não havia dúvidas sobre a legitimidade da escravidão. A escravidão
estava enraizada na sociedade e fazia parte da sua lógica de funcionamento, e segundo
Anderson Oliveira, (OLIVEIRA, Anderson José Machado de, 2007, p. 356) coube à Igreja,
deste modo, garantir a subordinação dos negros pela catequese. Os discursos acerca da
escravidão negra eram textos normativos, que visavam manter a escravidão e garantir a
sustentabilidade da sociedade colonial, resguardando, desse modo, a cristandade. Se
Benci, Antonil e Vieira, se opuseram na questão da escravidão indígena, estes uniam-se
no consenso sobre a normatização em torno da escravidão africana.
A nosso ver Jorge Benci carrega consigo um projeto de intervenção social, moldado
pela sua formação e influenciado pelo seu incômodo em ser estrangeiro na Bahia Colonial.
Segundo as noções de Jacques Revel, o destino de um indivíduo está ligado a múltiplos
contextos e a diversas experiências e relações sociais, dialogando com estas experiências,
estando sua vivência permeada por estratégias, negociações e dúvidas.
Pensando nas querelas acerca da escravidão indígena e da escravidão negra, em
que Benci se inseriu, percebemos que a noção de moralidade, de cristianização, está
entranhada em sua visão de mundo. Seus escritos são permeados pela construção de um
projeto missionário. E este cria um projeto de cristianização, pautado nos direitos

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tridentinos, associados à realidade colonial. Esse seu desejo normatizador busca criar
uma disciplina, que possibilitaria uma prática colonial pautada em preceitos cristãos.
Tendo como base para seu projeto o problema do direcionamento das consciências, isto é
materialidade do poder indireto, onde a questão moral, a disciplina dos sacramentos e o
ensino da fé ganham força como instrumentos de um projeto.
Inicialmente achávamos que a querela entre os jesuítas, que opôs facções, seria
somente uma oposição entre italianos e portugueses, ou até entre Alexandristas e
Vieirianos. Mas no decorrer da pesquisa, observamos que mais do que uma questão de
naturalidade, essa contenda era política. O que estava em jogo era a forma que a missão
deveria funcionar. Mais do que personagens, o conflito revela diferentes visões de mundo
e formas opostas de realizar a missão. O problema para Vieira, mais do que os italianos,
eram os estrangeiros no geral. Sendo estrangeiros todos aqueles que não concordassem
com a sua visão a respeito da escravidão indígena.
Vieira em carta endereçada a Sebastião de Matos e Souza, datada de 27 de Junho
de 1696, afirma que não havia contenda entre Vieirianos e Alexandristas, mas que
“inventou-se a batalha para me levarem em estátua manietado e vencido no imaginário
triunfo”. (VIEIRA, Antônio. In: FRANCO; CALAFATE; PRIORI, 2014. p.515). Em diversas
cartas já analisadas por nós do Padre Vieira, percebemos que este a todo o momento
pontua o conflito, lamentando-se, pois depois de todo o trabalho realizado pela Província
do Brasil, sua voz não era única, e seu projeto missionário não era considerado o mais
sólido e funcional. Os vencedores desse debate teórico sobre os indígenas marcavam seu
lugar na hierarquia da ordem e legitimavam o funcionamento de seu método missionário.
Como já sabemos, Vieira era contra estrangeiros assumirem altos cargos, já Alexandre de
Gusmão era a favor de que se estabelecesse um clero local, formado pelos filhos da terra,
logo os italianos não teriam voz ativa? Sabemos que não foi bem assim, e por isso,
afirmamos que mais do que a naturalidade, o que importava era o avanço político de suas
teorias. Em termos do estabelecimento de uma voz ativa, podemos observar um jogo de
poderes, uma gangorra que oscilava entre os diferentes grupos.
A nosso ver a facção oposta a Vieira, mais do que estar preocupada com os colonos,
estava sim, interessada em compactuar com os jogos políticos e econômicos daquela
região, constituindo estratégias, que tinham como objetivo manter seu status e poder
dentro da Companhia. Vieira podia ser o centro norteador do conflito, mas este era muito

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maior do que ele. Ao copilarmos os dados do padre Serafim Leite, formulamos um quadro
que aponta que mais do que nacionalidades ou pessoas, o que estava em jogo era um plano
político missionário, pois diferentes naturalidades eram contrárias a Vieira, incluindo
portugueses e nascidos no Brasil.

Relação de contrários e favoráveis a Vieira138

CONTRÁRIOS A VIEIRA FAVORÁVEIS A VIEIRA A FAVOR DE UM


DIFERENTE
PROJETO
Jorge Benci (Italiano) Antônio Vieira (Português) Luigi Vicenzo
Mamiani (Italiano)
João Andreoni (Italiano) Diogo Ramada
Alexandre de Gusmão Diogo Machado (Brasileiro)
(Português)
Jacob Rolland (Flamengo) Manuel Correia (Português)
Antonio Rangel (Português)
Domingos Ramos
(Brasileiro)
Domingos Leitão
Francisco da Cruz
Manuel Alves
João Felipe Bettendorff
(Alemão)

Acreditamos que o pertencimento a determinada “facção” estava muito mais ligado


ao vinculo pessoal entre indivíduos, isto é, a um jogo de hierarquias presentes
continuadamente no mundo colonial, do que a sua naturalidade. Esse vínculo formava
relações e pautava a criação de um projeto missionário. Se a nacionalidade fosse fator
determinante, Luigi Vicenzo Mamiani deveria apoiar Benci e Antonil, e não pensar seu
próprio projeto. Assim, como Antônio Rangel e Alexandre de Gusmão deveriam apoiar seu
conterrâneo Vieira.
Ao pensarmos a ideia de naturalidade/nação, compreendemos que o fato de ser
italiano não necessariamente significa apoiar e legitimar a vertente de Antonil e Benci,
pois o diferencial aqui é pensarmos o sentimento de estrangeirismo presente em Benci,
pois o seu incômodo surge dos conflitos internos, fragilizando a sua noção de

138
Dados obtidos a partir da obra de Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil.

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pertencimento ao Brasil. Deste modo para compreendermos a ação missionária devemos


ter em mente que esta foi mais do que uma disputa pessoal, ela foi uma disputa política, e
tanto Benci quanto Vieira, assim como Antonil, foram parte de um quebra cabeça maior,
ou seja, a complexidade da missão na macro conjuntura da época moderna.

Referências bibliográficas:

Cartas: Fundo Arsi (Archivum Romanum Societatis Iesu):

BENCI, Jorge. Original em Latim ARSI: Brasil Epistolae – Bras 1 (1678-1759): Carta 33-34;
Carta 40-41v; Carta 44; Carta 46; Carta 48; Carta 50v; Carta 51-52v.

BENCI, Jorge. Original em Latim ARSI: Brasil Epistolae – Bras 4 (1696-1737): Carta 38-
38v-39; Carta 66-66v; Carta 81-81v; Carta 82-82v; Carta 118-118v; Carta 124-124v.

VIEIRA, Antônio. Brasiliensis factionis et adversus Visitatorem coniurationis brevis noticia.


Carta destinada ao Padre Geral, Bahia, em 14 de junho de 1691. In: ARSI, Bras. 3(2). F.296.

VIEIRA, Antônio. Carta ao Duque de Duque de Cadaval, datada de 24 de Julho de 1694.


Usamos a versão presente na obra de Serafim Leite, p. 538.

VIEIRA, Antônio. Carta ao Padre Manuel Luis. In: FRANCO, José Eduardo; CALAFATE,
Pedro (Direção); PRIORI, Mary Del. ASSUNÇÃO, Paulo de. (Coordenação). Obra Completa
Padre António Vieira - Cartas de Lisboa - Cartas da Baía - Tomo I - Vol. IV. Edições Loyola.
São Paulo, 2014. p.504-507.

VIEIRA, Antônio. Carta a Sebastião de Matos e Souza. In: FRANCO, José Eduardo;
CALAFATE, Pedro (Direção); PRIORI, Mary Del. ASSUNÇÃO, Paulo de. (Coordenação).
Obra Completa Padre António Vieira - Cartas de Lisboa - Cartas da Baía - Tomo I - Vol. IV.
Edições Loyola. São Paulo, 2014. p. 515-516.

Sermões, Tratados e Documentos Avulsos:

BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledade. Sermão que pregou na
Sé da Bahia o P. Jorge Benci da Companhia de Jesu. Anno 1698. [Trigrama da Companhia].
Lisboa. Publicado om as licenças necessárias na Officina de Bernardo da Costa. 1699, 27
pp. Encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal.
BENCI, Jorge. Sermão do Mandato, que pregou o padre Jorge Benci da Companhia de Jesu
no Collegio da Bahia. Lisboa. Publicado com as licenças necessárias na Officina de
Bernardo da Costa. 1701, 23pp. Encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal.

BENCI, Jorge. Sermão de São Felippe Neri, na capa da fonte está escrito: “Sermam de S.
FELIPPE NERI”, e na fonte Benci chama o texto de sermão. Mas Serafim Leite e Carlos
Sommervogel, o chamam de Panegírico de S. Filipe de Néri. Panegírico de S. Filipe de Nerí

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no seu templo de Pernambuco. Lisboa, António Pedroso Galrão, 1702, 4°. Encontrado na
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BENCI, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. Livro Brasileiro de
1700. Editora: Grijalbo. São Paulo, 1977.

BENCI, Giorgio (Le P.). De Vera et falsa Probabilitate opinionum moralium opus tripartitum,
auctore Georgio Bencio... Pars prima de probabili intellectuali... opus posthumum. 1713.
Digitalizado por: La Bibliothèque Nationale de France.

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Acesso pelo texto: ZERON, Carlos Alberto de Moura; VELLOSO, Gustavo. Economia cristã
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Processo de Formação da Sociedade Colonial (Brasil, Séculos XVI e XVII). Editora: Edusp.
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“EN TIEMPO DE CHICHA NO HAY QUE HABLARLES DE DIOS”.


REFLEXIONES SOBRE EL TIEMPO DE LAS BORRACHERAS INDIAS EN EL
MARCO DE CATEQUESIS

Carlos D. Paz

Reducción, catequesis y embriaguez. Un trinomio cuestionable

Las reducciones jesuíticas se constituyeron como un espacio en dónde la Compañía


de Jesús llevó a cabo una prolífica labor, que se pone de manifiesto desde la lectura de un
cuerpo documental notable, elaborado en los tiempos de la presencia de la Orden en
América así como ya luego en el Exilio, que brinda detalles sobre un sinnúmero de
prácticas nativas. Los usos y costumbres de los distintos grupos nativos, en este caso en
particular los chaqueños reducidos –en su relación con aquellos no reducidos-, son
presentados, desde la escritura institucionaliza de carácter etnográfico realizada por
distintos misioneros, que llevaron adelante su labor apostólica en distintos tiempos y
latitudes, a modo de promoción y refuerzo de las labores reduccionales desarrolladas en
un espacio que parece desafiar constantemente al sacerdote.
Los textos orientados a la búsqueda de nuevas voluntades misionales, aquellas que
se pretendían alcanzar mediante la lectura que realizaban los novicios de las obras
consideradas por la historiografía actual como fuentes modulares, sirvieron, luego de la
Expulsión de los territorios americanos bajo dominio español, para una férrea defensa de
las tareas apostólicas por medio de escritos que no sólo daban cuenta de lo intenso de
aquellos días de misión. Las etnografías culturales redactadas por los diversos misioneros
que llevaron a cabo su labor en el Chaco no sólo componen un index de problemas
acaecidos en los entornos reduccionales. Si no que, además, han marcado notablemente
una agenda de problemas abordados desde el hoy por la Antropología Política o bien por


FCH-UNCPBA, Dpt. De História. paz_carlos@yahoo.com / ychoalay@gmail.com Agradezco el interés que
suscitó esta presentación así como los generosos comentarios que realizaron, entre tantos otros, Maria
Cristina dos Santos, Maria Regina Celestino de Almeida, Eliane Cristina Deckmann Fleck, Perla Chinchilla,
Giovanni José da Silva y Guilherme Galhegos Felippe. Dichas apreciaciones serán desarrolladas en un
próximo escrito de mayor extensión.

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la Historia. Uno de esos grandes problemas lo constituye las tan afamadas borracheras
indígenas.
Las reducciones en el espacio chaqueño, desde la justificación elaborada por los
miembros de la Compañía de Jesús, y luego canonizada por una historiografía por demás
atenta a la empresa reduccional aunque sin grandes cuestionamientos sobre el rol nativo
en aquellos espacios, parten de la necesidad, nativa e hispano-criolla de poner fin, o al
menos contener, a un largo período de enfrentamientos que ponían en jaque a los
establecimientos productivos y ciudades que circundaban el Chaco. En lo que concierne a
las poblaciones nativas, se hace referencia, siempre desde el cuerpo documental
elaborado por los dispositivos de poder coloniales, a cómo es que algunos grupos, v. g.
abipones y mocobíes, habían aceptado reducirse como una forma de alcanzar un
equilibrio social que brindara a aquellas comunidades la oportunidad de apartarse de
aquella idea romántica, propia de una historiografía del siglo XX, de un ser-para-la-guerra
(CLASTRES, 2001; 2008). La guerra, como función sociológica, estaba siendo cuestionada
por los mismos indígenas y fueron algunos líderes nativos los que encabezaron las
negociaciones que culminaron con la formalización de la reducción (CARDIEL, 1747a;
1747b; DOBRIZHOFFER, 1968).
La reducción, en el marco de este proceso, se fue conformando lentamente como
un espacio en dónde algunas prácticas nativas debían de ser dejadas de lado a los efectos
de alcanzar los logros que la práctica misional definía como prioritarios. Uno de los puntos
más importante era la conformación de una civitas cristiana en el Chaco y en ella no tenían
lugar prácticas comunitarias que contradijeran u ofendieran el sentido estético que la
acción reduccional jesuítica movilizaba. Para ello los sacerdotes impulsaban un profuso
esquema de sustitución de prácticas culturales así como la persecución, más retórica que
real, de formas sociales consideradas como contrarias a la Doctrina cristiana (MARTÍNEZ
SAGREDO, 2013). Dentro de este conjunto de hábitos es necesario referir a los intentos
por desarticular o bien desmovilizar aquellas prácticas sociales que, como las
borracheras, dotaban de sentido, articulaban y reproducían materialmente a diversas
redes parentales. Dichas redes parentales controlaban diversos territorios mediante el
ejercicio de la poligamia así como por medio de funciones rituales que tenían lugar en
distintas épocas del año. Práctica social, la borrachera, que, junto con algunos usos y

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tratamientos del cuerpo propio así como de aquellos enemigos abatidos en combate, era
condenada por los jesuitas y presentada como propia de salvajes.139
En este contexto la borrachera fue considerada por los miembros de la Compañía
de Jesús como aquel de los vicios morales sobre el que mayor atención debían de colocar
los sacerdotes. “Póngase especial cuidado y diligencia en que los indios no beban chicha
de noche”, expresaba el padre Felipe Suárez, el 5 de octubre de 1725 en el Pueblo de San
Ignacio de Chiquitos (PIANA-CANSANELLO, 2015, p. 198). Una mención documental que
puede hacerse extensiva a cualquiera de las reducciones del Chaco así como del Paraguay;
incluso mencionando poner atención denodada para impedir que hombres y mujeres
‘solteros’ bebieran en conjunto.
Según el cuerpo documental elaborado por aquellos misioneros cualquier
situación, así como contextos variables, parecía inflamar los ánimos de bebedores
empedernidos siempre ávidos de turbar sus sentidos. Uno de los contextos mayormente
referidos en dónde la borrachera se presentaba era cuando algún conflicto, categorizado
confusamente por la historiografía como guerras, dejaba como resultado la presencia de
cautivos que serían muertos de acuerdo a normas rituales. El padre Lorenzana, a
comienzos del siglo XVII, por intermedio del padre Boroa -encargado de escribir su
biografía- afirmaba para las doctrinas del Paraná

“…dando en sus juntas generales, y borracheras muertes cruelissimas


alos captivos, tomando en ellos grandes y pequeños hasta los mismos
niños nuevos nombres asu usanza al modo que nosotros en el baptismo
acosta de los que matavan…” [en las cercanías de la ciudad de San Juan de
la Vera -Corrientes] (PAGE, 2017, p. 105)

En este entorno de confusión de los sentidos y alteración de las pasiones y ausencia


de discernimiento sobre los alcances de los actos propios y en su relación con los ajenos
es cuando el Catecismo, con sus principios, doctrinas y enseñanzas, era cuestionado desde
la acción por una gran parte de la comunidad indígena. Al menos esto es lo que se hace

139
Un caso particular, que merece una atención que excede a este artículo, se presenta en el tratamiento
que se le brinda al cuerpo de los líderes muertos en refriegas contra diversos enemigos. En aquellas
ocasiones las borracheras adquieren un cariz ceremonial particular que las diferencia de las demás no sólo
por el tipo de bebida preparada si no por todo un ritual específico que cumple la función de pompa fúnebre.
Incluso el cuerpo del occiso es vuelto a tratar tiempo después de su muerte mediante una ceremonia que
incluye el descarnado de los huesos del cuerpo sepultado y su traslado hacia su morada definitiva. Al
respecto consultar, DOBRIZHOFFER (1968).

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presente desde una primera lectura del aquel cuerpo documental que hace referencia a
las tan afamadas juntas y borracheras presentándolas como omnipresentes en la vida de
los nativos.
Las borracheras, desde su preparación hasta su consumación, movilizaban casi
todos los sectores sociales de la vida comunal nativa y, para horror de los jesuitas en
algunas de ellas tomaban parte las mujeres. Desde los momentos previos a la misma,
cuando la bebida comienza a prepararse y los convidados son notificados de la nueva
reunión140, hasta los momentos álgidos de la misma –aquellos en dónde el sacerdote hace
mención a eventos repudiables desde su propio marco normativo-, se encuentran
alusiones que permiten explicar los usos y sentidos sociales del beber entre los indígenas;
incluso ya adscriptos a la vida reduccional. Indicadores que luego han de permitir discutir
en qué medida la borrachera imposibilitaba –desde la óptica ignaciana- la prédica del
Catecismo. Para alcanzar este punto es necesario dar paso a algunas precisiones sobre
qué cosa es una borrachera.
Una borrachera es una reunión de carácter ritual, realizada en un momento
particular del año, pudiendo congregar, según el tipo de la misma, a buena parte de la
comunidad; incluso a algunos niños.141 Participación que se define tanto por el sitial que
la persona detenta en el entramado comunal y por su vinculación con la celebración
específica así como por el rol en la fabricación de la bebida y como por el emplazamiento
de la persona en su consumo. Es decir, no todas las personas podían beber en las mismas
rondas de ingesta de bebidas así como no todos los miembros de la comunidad tomaban
parte de la preparación de distintos brebajes. A cada celebración correspondía una bebida
y cada bebida tenía sus destinatarios en función de un evento/ocasión particular.

140
Algunas borracheras parecen tener una recurrencia temporal constante. Aquellas que conmemoraban
sucesos particulares se realizaban con cierta asiduidad y por lo que indica la documentación el sistema de
cargo para la preparación de la bebida incluía algunos elementos que anuncian a la comunidad quién habría
de ser el encargado de preparar las bebidas dando lugar así a un nuevo ciclo de conmemoraciones y a una
circulación de función social del oferente de la bebida. Al respecto consultar, LOZANO (1941).
141
Por una cuestión de espacio no se brinda una descripción exhaustiva de las variaciones registradas en
los tipos de borracheras; las mismas que pueden expresarse dando cuenta de quiénes asistían a las mismas.
Algunos encuentros de bebida permiten la presencia de lo que parece ser la totalidad de la población. Allí
mujeres y niños pueden beber. En cambio, en otras de mayor boato la presencia parece reducirse a personas
portadoras de un rango social diferenciado. Para mayores detalles consultar LOZANO (1941) así como el
resto de aquellas etnografías culturales elaboradas por los misioneros que actuaron en el Chaco.

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Los tipos de borrachera que tenían lugar en el espacio del Chaco eran, a saber,
aquellas que se celebraban para festejar la llegada de un niño al mundo; las reuniones de
bebida que tenían lugar cuando una persona mudaba su status –por lo general se hace
referencia a instancias dónde los niños se transforman en hombres o aquellas en dónde
los hombres eran adscriptos al orden de los guerreros u höcheros como marca uno de los
principales cronistas para el Chaco y en el caso de los abipones; las borracheras
propiciatorias, es decir aquellas que se celebraban para augurar resultados favorables
ante alguna acción que se emprendiera y aquí es dónde los misioneros colocan al beber
como la antesala de los ataques y guerras a modo de consulta de oráculos- y, por último,
aquellas reuniones en dónde se bebía para conmemorar alguna acción. Tipos de
borracheras que, desde su descripción, permiten pensar en el comienzo de nuevos ciclos
estacionales de celebración de eventos del pasado así como del presente que habrían de
incidir el curso de los hechos de la política actual y por venir. Un claro ejemplo de ello eran
los ciclos de venganza en dónde un tipo de beber se llevaba a cabo, al menos durante una
porción del siglo XVIII. Aunque, dentro de este cuerpo de borracheras se pueden contar a
aquellas que a comienzos del siglo XVII algunos nativos promueven por la presencia de
sacerdotes jesuitas en sus unidades residenciales a los efectos de comenzar la empresa
reduccional.142
Las borracheras de este modo, se constituían como marcadores sociales y
temporales de la comunidad que la llevaba a cabo. Aquella breve y sumaria tipología sobre
las borracheras expone cómo las mismas representaban distintos momentos que poseen
un significado para la comunidad que celebra una posición social; conjura su porvenir o
bien conmemora eventos de un pasado que posee una proyección social sobre el futuro
de la comunidad. Dado el amplio conjunto de eventos sociales en dónde las borracheras
se hacen presentes rápidamente puede concluirse, erróneamente, que aquellas
sociedades estaban presas de un consumo excesivo de bebidas embriagantes y que por su

142 El padre Lorenzana, en la descripción que brinda de los primeros años de misión en las doctrinas del
Paraná, a comienzos del siglo XVII (PAGE, 2017), hace referencia a como algunos líderes se encuentran
realizando borracheras con el fin de celebrar su presencia con ellos. La descripción que se brinda del evento
si bien es breve parece indicar ciertas disputas al seno de la comunidad nativa por la presencia del jesuita,
lo cual torna necesario indagar sobre cómo incidió en el sector de los líderes religiosos la presencia
misionera desatando competencias entre aquellos especialistas de la comunicación con lo inmaterial así
como la acumulación de renovadas porciones de prestigio entre algunos de ellos así como entre aquellos
líderes que podríamos ponderar como adscriptos u ocupados de los sucesos civiles.

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persistencia en el entorno reduccional no se podía alcanzar satisfactoriamente la prédica


del Catecismo.
A pesar que el consumo de bebidas que turban los sentidos es mencionado
constantemente por parte de los misioneros jesuitas, y que es presentado como uno de
los problemas centrales que impiden la plena conversión de los gentiles, las referencias
que se brindan son vagas tanto en su alcance temporal así como en explicaciones precisas
sobre las formas de producción de aquellas bebidas. En numerosas descripciones, desde
comienzos del siglo XVII y hasta el momento de la Expulsión, se hace mención a dicha
práctica. Una visión cuasi ahistórica de dicho problema así como escasamente
documentado en lo que concierne a los ingredientes naturales utilizados por los nativos
en el proceso de elaboración de sus bebidas; mucho menor aún aparece representado el
utillaje, ‘las cosas’, necesarias para la preparación de los brebajes.
El conocimiento sobre estas cuestiones proviene mayormente de una
historiografía posterior que se ha preocupado por indagar en la función social de las
borracheras y para ello parte de la necesidad de brindar descripciones pormenorizadas
de las materias primas necesarias para la elaboración de las bebidas. Acompañando estas
revisiones sobre lo necesario para la producción de alcoholes se ha engendrado un rescate
de los nombres específicos de las bebidas así como el contexto en el cual cada bebida es
ingerida (ERIKSON, 2006). Por aquellas investigaciones se sabe que una gran variedad de
productos naturales pueden ser transformados para que el resultado final sean bebidas
de distinto tenor alcohólico.
Las chichas, nombre genérico impuesto a las bebidas nativas, pueden ser
realizadas de miel; de granos, como el maíz en sus distintas variedades así como de
algunas frutas o bien frutos de algunos árboles como el algarrobo. Sin extenderme en la
descripción de cada una de estas bebidas lo que sí es necesario señalar es que la
disponibilidad de dichos elementos posee una relación ambiental así como estacional. No
todos los ingredientes se encuentran disponibles todo el año en todos los espacios. Mucho
más aún partiendo de la idea del asentamiento en espacios reduccionales que intentaban
circunscribir la movilidad propia de grupos de cazadores-recolectores de amplio
espectro. Si bien la política y la práctica reduccional no impidió que los nativos
dispusieran de amplias porciones de terreno no es posible suponer que todas las bebidas
estaban disponibles, al menos potencialmente, para su preparación en cualquier

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momento. Aspecto que se corrobora cuando un jesuita hace mención a la inhabilidad para
guardar frutos para la preparación de bebidas. Prejuicio que, estimo, debe de ser pensado
desde la proposición ontológica y desde allí indagar en el por qué no almacenar algunos
granos o frutos más allá de las limitaciones existentes para la conservación de los mismos.
Tal como lo señalé anteriormente la crítica hacia la borrachera como práctica
social está mayormente asociada a una forma de escritura institucionalizada de la
Compañía de Jesús con objetivos específicos como la defensa de las tareas reduccionales
y, en menor grado forma parte de aquellas descripciones de carácter cuasi etnográfico
desde las cuáles se parte para ilustrar amplias porciones de la vida cotidiana durante el
período reduccional. Las menciones que realizan los sacerdotes sobre las borracheras
poseen la función heurística de justificar los vaivenes en el proceso de conversión de los
indígenas, sin una clara mención empírica justificada reducción por reducción (PAZ,
2017). Aspecto que es por demás llamativo.
La propuesta de este trabajo, entonces, se orienta a plantear que si bien sí los
indígenas consumían cantidades ingentes de bebidas con graduaciones alcohólicas
disímiles, en ocasiones particulares que imponían sus reglas tanto en lo que hace a la
participación de determinado sector social así como a normas de comportamiento dentro
de aquellas celebraciones, las denominadas borracheras poseen una especificidad tal, un
potencial sociológico, que excede en sí misma a la prédica jesuítica. Las borracheras no
pueden ser concebidas por lo tanto como una forma de expresión de cuestionamientos
hacia la presencia del jesuita tal y como los ignacianos lo expresan en su mayoría en su
intento de justificar la ausencia de modificaciones comportamentales señaladas como
necesarias entre los nativos como en el caso del ejercicio de las guerras.
La persistencia de las borracheras ya luego de estar en marcha la experiencia
reduccional debe de pensarse desde la misma condición en que se materializa la
reducción. Los asentamientos negociados entre jesuitas y algunos líderes indígenas no
imposibilitaban que los últimos continuaran accediendo a distintas porciones del
territorio; entorno que les proporcionaba materias primas para la elaboración de bebidas
que reforzaban la espacialidad nativa, entendiendo a ésta como un conjunto de
performances que brindan cohesión y sentido a una comunidad. Nuevas localizaciones
daban comienzo, resignificaban o reforzaban aquellas formas del beber que presenté
como tipologías.

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La prédica del catecismo era una más de aquellas prácticas culturales que
buscaban acercar e instruir en la Fe cristiana a los indígenas. La explicación de los
principios doctrinales del catecismo buscaban sustituir primero, y desplazar después,
formas de concepción del mundo nativo tales como las borracheras. Expresiones sociales
que se presentan en un determinado período del año, en un espacio particular y con un
grupo social preciso que asiste a la sesión de bebida. El catecismo, por su parte, intentaba
transmitir valores y principios de organización social por medio del exemplum y para ello
apelaba al santoral cristiano, en el cuál la Compañía de Jesús detentaba la presencia de
algunos pro-hombres, como San Ignacio; personajes a los cuáles se recurría, desde su
celebración, para ordenar anualmente las festividades que se realizaban en cada pueblo y
que apuntalaban la prédica del cristianismo.

La borrachera en su tiempo

La borrachera, como ya se expuso, en sus múltiples manifestaciones, es un


fenómeno sociológico que presenta normas precisas en cuánto a su realización y, los
preceptos que la ordenan se asientan tanto en un calendario propio de cada comunidad
así como sobre la disponibilidad de aquellos elementos que hacen posible la preparación
de las bebidas. Este calendario entonces debe de ser concebido como un-tiempo-para-las-
borracheras –o la articulación de tiempos, aquel que llamaríamos el propio de los hombres
con aquel de las especies transformadas143 en bebida alcohólica. Por lo tanto para
comprender cuál es el tiempo de la borrachera primero hay que definir qué aspecto social
es el que la comunidad celebra. Empero, por una cuestión de espacio, sólo haré una
referencia general a las borracheras en el más genérico y generalizante sentido de las
mismas para explicar por qué en tiempo de chichas el catecismo parece estar interdicto
como práctica.
Para el caso de los mocobíes reducidos el padre Canelas, en 1743, expresaba

143
Para las poblaciones nativas del Chaco, así como para las Amazónicas y Andinas, las bebidas
embriagantes son el resultado de una transformación operada por un sujeto/potencia que conoce el modo
de dialogar con el dueño de la especie a ser transformada. En el proceso que occidente califica como
producción el ‘espíritu’ que ‘vive’ dentro de las especies es liberado y pasa, mediante la ingesta de la bebida,
al bebedor, transformando al mismo. Por ello la borrachera también puede ser considerada, aunque no lo
he de abordar aquí, como un duelo, un desafío, una contienda en dónde se enfrentan las habilidades mágico-
religiosas de quien produce la bebida con aquellas cualidades encarnadas por el sacerdote en su intento por
poner fin a aquella práctica.

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“..a quien no la ha conocido se le haría un misterio el como a una


propensión tan exorbitante le falta providencia, para reservar de que
hacerla en todos tiempos y venerar en ésta falta de providencia la gran
Providencia de Dios que reservó estos intervalos de juicio para la
introducción de su conocimiento, porque en tiempo de chicha no hay
que hablarles de Dios” (RUIZ MORENO, 1939, p. 9-10; el énfasis es
mío)

Conforme lo expuesto la borrachera marca tiempos de la vida comunal. Una


experiencia que dentro de las reducciones encontraba un nuevo calendario que intentaba
re-ordenar de las relaciones sociales. Una de las formas que encontraron los jesuitas para
impulsar la occidentalización de los nativos (GRUZINSKI, 1989) fue la celebración de
aquellas fiestas patronales que conmemoraban la vida de los Santos. El calendario de
fiestas de santos jesuitas, tan sólo por dar cuenta de una breve muestra, incluía la
celebración de San Ignacio, el día 31 de julio; San Francisco Xavier, el 3 de diciembre; San
Francisco Borja, 3 de octubre y, San Luis Gonzaga, 21 de junio. Junto con estas
celebraciones también tenía lugar la conmemoración del onomástico que brindaba
nombre a la reducción. Festividades que desde los Memoriales, aquellas Instrucciones que
el Padre Visitador formulaba en su recorrido por los pueblos de misión, se regulaban para
un mejor cumplimiento de la Doctrina de la evangelización con el expreso fin de adelantar
la empresa reduccional y alcanzar los objetivos propuestos.
Sin embargo las directrices, en su intencionalidad de generar una fiesta a la que
asistiera la mayor cantidad de neófitos, no parecían del todo claras; no al menos para
aquellos indígenas que han sido presentados como constantemente indolentes (PAZ,
2016; VIVEIROS DE CASTRO, 2011). Un ejemplo de esto lo encontramos en la siguiente
mención, formulada para el pueblo de San José, en las doctrinas del río Paraná: “Hágase la
fiesta del pueblo con la solemnidad acostumbrada; y si el día no diere lugar al común
regocijo, dilátese para otro” (PIANA-CANSANELLO, 2015, p. 153).
Aquí lo que sucede es que en el proceso de comunicación entre sacerdotes e
indígenas el rol de la festividad queda en claro aunque no es del todo preciso el tiempo de
su ejecución. Si bien la festividad debía realizarse en un momento específico, indicado por
el calendario litúrgico, las condiciones del día –aquellas que desde el hoy se podrían
denominar como meteorológicas-, podían hacer que esa fiesta tuviera lugar en otro
momento. Lo cual lleva a reflexionar sobre cómo es que los nativos percibían aquella

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mudanza del tiempo de la celebración en función de condiciones que excedían la


contabilización del tiempo por medio de un calendario que sólo registraba el paso de los
días. Puede pensarse entonces que, para los indígenas, este cambio en la ejecución de la
celebración sea un indicador de la presencia de factores que podrían señalarse como
inmateriales a la santidad? y que bien pueden analizarse desde la problematización
formulada por las ontologías amerindias (TOLA, 2013; 2016). Conjunción de factores de
orden natural qué, desde el mismo señalamiento expuesto por el Padre Visitador para un
mejor resultado de la prédica misional, brindaban un mensaje poco claro sobre el
ordenamiento del tiempo o bien, luego, fue subvertido por los propios indígenas en su
desafío a la autoridad del misionero en su combate particular contra ciertas
manifestaciones de la vida comunal y contra un sector en particular como lo fueron
aquellos que los jesuitas indicaron como brujos, hechiceros, chamanes o simplemente
embusteros.
De cualquier modo que este cambio de días en las celebraciones generara
reacciones en los indígenas lo que se hace imperioso remarcar es que este calendario
litúrgico coincide con períodos de celebración propios del mundo de los nativos. Entonces
el-tiempo-de-los-Santos se yuxtapondría con aquel tiempo-para-las-borracheras.
La celebración de San Ignacio así como San Luis Gonzaga coinciden con
preparativos y conmemoraciones de la liturgia indígena ya sea para celebrar un nuevo
período anual, como en el caso de la fecha asignada a San Ignacio o bien con los
preparativos para el comienzo del invierno en el hemisferio sur con la festividad de San
Luis Gonzaga. Tiempo que es observable, desde la lente nativa de auscultación de su
mundo, mediante una serie de indicadores ambientales que marcan no sólo el comienzo
de una nueva etapa del año, como la llegada del frío por ejemplo, si no que indica el
comienzo de un nuevo conteo para una posterior preparación de los suelos para
posteriores siembras o bien señala el tiempo de aprovechar algunos frutos del monte así
como de celebrar uniones parentales. Todos ellos, momentos en dónde las bebidas
propiciatorias tenían lugar; insisto, con bebidas diferentes para cada ocasión tanto por el
tenor de la celebración así como por la disponibilidad de ingredientes para la preparación.

Conclusiones

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Quizás la conclusión de mayor representatividad que se pueda exponer de una


presentación breve del problema que los misioneros denominaron como borracheras es
que el recurso de sustitución de prácticas y festividades nativas por medio de la
imposición del calendario litúrgico utilizado como medio de transmisión de una
pedagogía para la conversión encontró sociedades en dónde existían normas precisas de
manejo del tiempo y administración de la memoria. Tiempos y memorias de los que poco
se conoce y para los cuáles las borracheras pueden ser la excusa metodológica para
pensar en ellos así como en una pedagogía indígena para con el misionero.
La constante mención a las borracheras no indica de modo claro que aquella
sociedad viviera presa de un vaho etílico que era el reflejo fiel de una sociedad bárbara
que vivía en un estado de conflictividad latente y en aumento como la documentación
jesuítica se empeña por justificar. Muchas de las investigaciones sobre el siglo XVIII dejan
conocer un Chaco en dónde la guerra sí tiene lugar pero en dónde, además, se desarrollan
formas para controlar el alcance de las posiciones de poder así como en algunas ocasiones
los mismos misioneros afirman que luego de beber copiosamente y debatir
acaloradamente los guerreros deciden deponer sus armas (CLASTRES 2001, PAZ 2016).
Con lo cual el trinomio reducción-catequesis-embriaguez necesita no sólo ser cuestionado
si no que reclama de abordajes que introduzcan matices y graduaciones en cada una de
aquellas categorías.
La prédica del Catecismo necesitaba del exemplum que brindaba la naturaleza que
rodeaba a los indígenas para explicar la obra del Creador del mundo tal cual los jesuitas
concebían su propósito entre los chaquenses. En esa misma naturaleza se insertaba la
narrativa de aquellos pro-hombres de vidas ejemplares que se celebraban mediante una
liturgia que pugnaba por generar cambios en la vida de los indígenas. Aquella misma
naturaleza descripta como amenazante en más de una crónica jesuítica es la que tornaba
irreductibles a los nativos, al decir ignaciano. El punto nodal de aquel desencuentro fue
que el calendario litúrgico impulsado por la Compañía de Jesús poseía equivalencias
notorias en la vida social de aquellos indígenas y su ejecución intentaba quitar poder a
sectores firmemente constituidos.
Los nativos no habían tomado contacto por primera vez con aquellos jesuitas del
siglo XVIII; conocían de su existencia desde mucho antes de la llegada de los mismos al
Chaco e incluso conocían muy bien las intrigas y conflictos que la Compañía de Jesús tenía

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con las autoridades coloniales residentes. En algo las crónicas jesuíticas sí resultan
veraces. Ante la mínima intimidación de reprender las borracheras de los chaqueños,
estos amenazaban al misionero con dejar la reducción. Lo cual expone un sutil arte de
manipulación de las necesidades y ambiciones jesuíticas. El Catecismo que los ignacianos
querían llevar a los nativos se encontró con una pedagogía nativa que fue mostrando
aspectos particulares al misionero y sobre los cuáles éste solo pudo reflexionar ya en
tiempos de la Expulsión. Sin embargo el punto de mayor relevancia aquí es que casi nunca
se les puede hablar de Dios, o bien son escasos los momentos que el sacerdote encontraba,
porque el tiempo para la chicha parece ser omnipresente, tanto como Dios o como la
naturaleza de la cual formaban parte los nativos.
Aventurar una salida a esta cuestión es por demás compleja desde el hoy –
pensando incluso en el hoy como un distanciamiento físico y geográfico que se funda en
una extrañeza que en más de una ocasión dificulta la reflexión sobre aquellos otros, ya
sean ellos los chaquenses o los jesuitas. Lo que sí es necesario es volver sobre el rol de la
naturaleza en la vida cotidiana de las reducciones y en el valor social del tiempo nativo en
el cual se inscribe la borrachera. Siempre con la salvedad de tener en cuenta qué clase de
borrachera tenemos enfrente y a la cual se accede por medio de descripciones que colocan
más el énfasis en problemas propios de la Orden de San Ignacio que del mundo nativo. No
propongo que el jesuita no haya comprendido la densidad narrativa del beber nativo,
aunque tampoco hay que suponer un tipo ideal de misionero parecido a un antropólogo
formado en cuestiones vinculadas con el perspectivismo amerindio. Mi propuesta es que
la escritura de aquellas borracheras posee un filtro notorio y esa noción tapón es aquello
que se conoce como escritura censurada –aunque bien deberíamos de comenzar a
reflexionar sobre una escritura corregida144; una narración que coloca un punto
metodológico cero difícil de transponer para dar cuentas de momentos pre-existentes a
la labor reduccional jesuítica sancionada por una norma precisa de escritura. No todo lo
que se conocía se podía referir plenamente en contexto poco afable a la Compañía de
Jesús, como lo era la segunda mitad del siglo XVIII. El tiempo de la chicha es, entonces,

144
Agradezco al Prof. Dr. Luiz Fernando Medeiros Rodrigues (UNISINOS) la mención sobre la necesidad de
comenzar a referir a la escritura revisada, y no censurada, dado que dicha mención se ajusta mejor a las
directrices propias de la Compañía de Jesús en lo referente a la práctica de la escritura. Comunicación
personal. 11 de septiembre de 2017. São Leopoldo-RS.

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cómo el sacerdote jesuita comprende al indígena desde el contexto europeo del siglo XVIII.
Las borracheras fueron formas de narración nativas de eventos pasados y por venir que
expresaban un movimiento que fue anulado por la misma escritura de la Orden. Una
práctica escrituraria que sí generó extrañeza como propone de CERTEAU (2007) y en esa
misma extrañeza es dónde debemos de inquirir en el uso social del tiempo. Si las
borracheras eran una pérdida de tiempo tal y como los sacerdotes sentenciaban, pues allí
debemos de ir. Porque cuando las sociedades ‘pierden’ su tiempo se muestran en
intensidad.

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“OS GENTIOS A UMA SIMPLES REPRESENTAÇÃO DO INFERNO (...) FUGIAM


AO VÍCIO E SEGUIAM A VIRTUDE”: PERCEPÇÕES DO JESUÍTA
ALEXANDRE PERIER SOBRE A CONVERSÃO CATÓLICA DE INDÍGENAS
NA AMÉRICA PORTUGESA

Mauro Dillmann

Esta comunicação analisa como o jesuíta italiano Alexandre Perier (1651-1730),


na sua obra Desengano dos Pecadores, publicada em Portugal inicialmente em 1724,
avaliou o seu trabalho missionário junto aos indígenas na América portuguesa durante o
final do século XVII e início do século XVIII, quando atuou nas capitanias de Pernambuco
e Paraíba.
Alexandre Perier entrou para a Companhia de Jesus ocorreu por volta de 1668 e
chegou no Brasil em 1686, onde permaneceu por cerca de trinta anos. Além de atuar como
missionário junto aos indígenas e também nas vilas e engenhos das referidas capitanias
do Nordeste, foi também Procurador das missões. Possuía, segundo o historiador jesuíta
Serafim Leite, grande aptidão retórica e boa fluência na língua francesa (LEITE, 1949, p.
47). Perier esteve entre os vários estrangeiros que atuaram como missionários na
América portuguesa, assim como Jorge Benci, João António Andreoni (Antonil), Jacob
Rolland, João Felipe Bettendorff, António Maria Bonucci e Luiz Mamiani. Ao todo, 15
religiosos atuaram na Bahia e dez no Maranhão, onde, segundo César Freitas (2011, p. 57-
65) “dirigiam os principais colégios”, “administraram a Províncias” e defendiam uma
“educação ministrada nos grandes centros urbanos”.
No seu trabalho missionário, Perier recorreu a imagens do inferno e dos tormentos
infernais para converter pelo temor, conforme narra na sua obra Desengano dos
Pecadores, destacando ainda a promoção de expressões indígenas de culpa e de medo
diante da possível condenação de suas almas, e promovendo, assim, um
autorreconhecimento do sucesso do seu trabalho de conversão.145


Doutor em História pela UNISINOS. Professor do Departamento de História da UFPEL e do Programa de
Pós-Graduação em História da FURG.
145
Sobre conversão indígena na América, veja-se: POMPA, 2003; SANTOS, 2017.

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O livro Desengano dos peccadores, necessario a todo genero de pessoas, utilissimo


aos missionarios, e aos prégadores desenganados, que só desejaõ a salvaçaõ das Almas146 se
detém na descrição de diversos tormentos considerados perturbadores das almas cristãs
para, de alguma forma, afastá-las de seus vícios. Entre estes tormentos estavam o do
cárcere do inferno que seriam aplicados aos pecadores que viviam em estado de engano.
A obra é uma compilação das leituras teológicas e filosóficas e das experiências
resultantes da própria atuação do jesuíta.
Se a primeira edição da obra data de 1724, desconhece-se a data da segunda edição,
mas é possível crer que tenha sido pouco tempo depois, pois segundo Innocêncio Silva
(1858, p. 39), no seu Dicionário do século XIX, “a obra foi tão bem acolhida naquele tempo
que teve logo uma segunda edição em Lisboa”; a terceira edição data de 1735 147 e a
quarta148 de 1765.149
Na segunda metade do século XVIII, cinquenta anos depois da primeira edição, a
obra seria condenada pela Real Mesa Censória portuguesa por amedrontar os leitores
com suas “ridículas estampas”, que exploravam visualmente os terríveis “tormentos do
inferno” (VILLALTA, 2015). De acordo com o historiador Luiz Villalta (2015, p. 207), a
condenação da obra se deveu à constatação de que não apenas dedicava-se à descrição
das penas infernais, objetivando “‘inspirar ao homem temor’”, como difundia “‘uma crença
errônea’”, sobretudo, junto ao “povo rústico”, por não ter “sustentação nem na Bíblia, nem
na tradição, nem na dos doutrinados Concílios e dos Papas”.

Significado dessa publicação no Portugal da primeira metade do século XVIII


Em 1724, ano em que o padre Perier escreveu sua obra, a Europa já conhecia uma
vasta literatura dedicada aos temas demoníacos, com destaque para os libelos – tratados
anônimos – e para obras assinadas, cujos autores abordavam a feitiçaria e a demonologia.
Segundo o historiador George Minois (2003, p. 93), no território onde hoje se localiza a
Alemanha, por exemplo, durante a segunda metade do século XVI, “duzentos e trinta e um

146 Disponível online: https://books.google.com.br.


147 Esta edição, de 1735, foi consultada e analisada pelo historiador Luiz Carlos Villalta (2015).
148 A existência de quatro edições da obra de Perier também é confirmada pela historiadora portuguesa Ana

Cristina Araújo. A Biblioteca Nacional de Portugal guarda as edições de 1735 e de 1765. O livro ainda hoje
é publicado, com edições, em espanhol, de 2009 e 2010.
149 Esta edição, de 1765, foi consultada e analisada pela historiadora Mary Del Priore (1993). A Biblioteca

Nacional do Rio de Janeiro guarda a edição de 1765 em seu acervo de obras raras

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mil e seiscentos exemplares de obras dedicadas ao Diabo” foram vendidas. Manuais


religiosos e outras produções literárias católicas que versavam sobre escatologia e sobre
as formas de bem morrer foram bastante comuns na Europa durante os séculos XVII e
XVIII, principalmente, em Portugal e na Espanha, conforme atestam os estudos de Ana
Cristina Araújo (1997), João Francisco Marques (2000), José Adriano Freitas de Carvalho
(1997) e Antonio Castillo Gomes (2014).
Quando a obra de Perier é publicada pela primeira vez, a Europa já conhece
inúmeras críticas e visões diversificadas a respeitos do inferno e dos demônios. Autores
como Erasmo, Descartes, Locke e Hobbes mostram-se céticos, ridicularizadores e irônicos
diante de discursos a respeito do diabo, encarados como “produtos da imaginação
humana” (MINOIS, 2003, p. 113).
Mesmo assim, no universo cristão-católico, a figura diabólica e o inferno enquanto
espaço eterno de sofrimento das almas pecadoras, ainda possuía ressonância. O livro de
Perier traz discursos narrativos e imagéticos; apresenta uma série de imagens que
ilustram os sofrimentos da alma pecadora condenada ao inferno e à convivência eterna
com os demônios. Para diferentes pecados havia dada representação imagética
correspondente, que visava a sensibilizar o potencial leitor, comunicando-o sobre os
horrores que atormentavam as almas enviadas ao inferno.150 A imagem era um
importante recurso para ativar a imaginação dos leitores, atingindo também indivíduos
analfabetos ou semialfabetizados e convencendo-os sobre o necessário apego às virtudes
cristãs.
O livro do padre Alexandre Perier foi escrito com intenção de “desenganar” o fiel
que vivia “enganado” nas matérias da doutrina e da fé, a partir de sua conscientização em
relação aos terríveis efeitos dos pecados cometidos na vida. Com um discurso que buscava
amedrontar e alertar para a terribilidade dos possíveis sofrimentos no além, Perier
argumentava em defesa da doutrina e da conduta moral católica que todo fiel deveria
preservar. Sua escrita é carregada de exemplos, extraídos das suas experiências
catequéticas no nordeste do Brasil e, também, de ficções e fábulas, usadas sob o
argumento de que, apesar de desprovidas da “força da verdade”, consistiam no “modo de

150
Na América portuguesa, os “vícios da carne” (incesto, poligamia, concubinatos e nudez) eram, segundo
Laura de Mello e Souza, aqueles que mais se destacam nos relatos dos cronistas e dos padres jesuítas que
se dedicavam à conversão dos indígenas (FLECK; DILLMANN, 2013, p. 301).

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manifestar mais claramente a verdade ao povo ignorante” (PERIER, 1724, p. 413). Embora
a obra não aponte para a autoria das imagens que ilustram sua narrativa, a historiadora
Ana Cristina Araújo, atribuí a autoria das gravuras ao belga Theodor de Bry (1528-1598).
Trata-se, portanto, de imagens produzidas no século XVI e acionadas pelo jesuíta no final
do século XVII (para missionação) e no início do século XVIII (para ilustrar seu livro e seus
argumentos).
Todas as imagens ilustram demônios, em maior ou menor proporção, com feições
humanas e características animalescas, e o pecador, com expressões de angústia, medo ou
desespero, sendo torturado com instrumentos cortantes ou perfuradores ou ainda por
animais. Segundo o historiador Keith Thomas (1988, p. 48) na época moderna, os homens
atribuíam aos animais os impulsos que mais temiam em si mesmos, como a ferocidade, a
gula e a sexualidade, daí talvez, a associação à figura demoníaca.
Se na primeira metade do século XVIII a obra foi bem aceita, tendo outras edições,
na segunda metade do século, censores já perceberam o livro de outra forma. Nesse
sentido, é interessante observar o parecer que frei Joaquim de Santa Ana e Silva, censor
da Real Mesa Censória, emitiu sobre o livro, em 1771, apresentando uma perspectiva mais
racional e cética: “o iletrado iria morrer de medo, o que podia despertar nele o fanatismo”
e “o letrado consideraria tudo ridículo, o que conduziria ao ruir dos fundamentos da
religião cristã”.151 O historiador Luiz Carlos Villalta (2011, p. 62-63) também destacou as
considerações feitas pelo censor Frei Joaquim de Santa Ana e Silva, para quem o livro
ultrapassava “as barreiras da verdade e da credibilidade”; a utilização das imagens,
também adjetivadas como “medonhas”, seriam efeitos da indiscrição, da ignorância e da
“culpável malícia” do autor, promovendo “uma crença errônea” ao povo rústico e
provocando o riso e o escândalo aos instruídos e prudentes.
As “ridículas estampas” eram outro argumento utilizado pelos censores na
condenação da obra. Como a obra descreve as penas infernais, inspirando temor no leitor
com auxílio de imagens, as mesmas foram consideradas “estampas medonhas” que
visariam a “aterrorizar o fiel, incutindo-lhe o medo do inferno”. O parecer emitido pelo
censor “revelou uma perspectiva que conciliava um propósito reformador, moderno,

Instituto de Investigação Científica Tropical, 2009. Disponível em:


151

<www2.iict.pt/index.php?idc=6&idi=15185>. Acesso em: 24 mar. 2012.

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avesso às superstições e aos fanatismos, com a preocupação sobre os efeitos das leituras
diferenciadas que os leitores fariam dessas mesmas imagens”.152
Em síntese, então, tais foram os significados desta publicação em Portugal da
primeira do Setecentos: um período de ampliação de publicações religiosas, o uso de
imagens como recurso para ativar a imaginação dos leitores e atingir
analfabetos/ouvintes e o fato de existir mercado consumidor/leitor para livros de
espiritualidade e relatos de experiências catequéticas no Brasil.

O que e como narrou a conversão de indígenas


O trabalho missionário no nordeste do Brasil foi junto aos índios Tapuias (PERIER,
1724, p. 375), a quem o olhar do jesuíta identificava como gentio “ignorante”, mas com
boas inclinações para aceitar a doutrina cristã.
Os indígenas teriam sido sensíveis especialmente na expressão de remorso de
consciência, no exame de consciência, na prática da confissão e na expressão de culpa
diante da oralidade do missionário ou da leitura que lhes fazia da sagrada escritura.
A tônica da narrativa de Perier está centrada no sucesso da missionação a partir
de gravuras com representações dos demônios, do inferno e dos tormentos infernais: “Os
gentios a uma simples representação do inferno, a um confuso conhecimento da
eternidade das penas, fugiam o vício e seguiam a virtude” (PERIER, 1724, p. 414). Abaixo,
algumas destas imagens contidas na obra Desenganos dos Pecadores e que teriam sido
fundamentais no trabalho de conversão, trazem a dimensão dos sofrimentos e tormentos
da alma pelos demônios.

152
Idem.

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Fonte: PERIER, 1724, p. 28, 55, 372.

Sobre as verdades da fé cristã e a leitura bíblica, Perier diz que:

“o verme da consciência é sem comparação mais fortemente pegado” à


alma e imortal como ela. Por isso, ele é apresentado como aquele que
“sempre rói e sempre pica, sem se poder consumir ou destruir um ao
outro. Esta verdade a conheceram também os gentios com o lume da
sagrada Escritura, que eles liam” (PERIER, 1724, p. 382-83).

E Perier avalia positivamente o seu trabalho ao destacar que “antes da vinda de


Cristo, os gentios tiveram suficiente notícia do inferno e da eternidade das penas”
(PERIER, 1724, p. 413). Os indígenas teriam, através do seu trabalho missionário,
conhecido outras verdades da fé, como a honra a Deus e a necessidade de “amá-lo, servi-
lo, e reconhece-lo, como seu soberano, e criador”. E demarca com o advérbio “até”, a
inclusão dos índios no universo da compreensão da fé: “Esta verdade, até os gentios a
conheceram” (PERIER, 1724, p. 419).
Ao conhecerem a necessidade de amar e temer a Deus, segundo Perier, os
indígenas também teriam consciência do agravamento dos pecados e dos sofrimentos da
condenação. Como já refletiram Eliane Fleck e Mauro Dillmann, ao analisarem os
discursos sobre os tormentos do inferno na obra de Perier, “os indígenas brasileiros, junto
aos quais o missionário Perier atuou, conheciam, segundo ele, a gravidade” do tormento
da desesperação (da consciência) (...) chamando-o um flagelo oculto, uma pena veemente,
a mais cruel e desesperada de todas” (PERIER, 1724, p. 377). O remorso dos pecados,

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entre os indígenas, nascia do temor a Tupã – encarado como o Deus católico, segundo
Perier – e da inclinação que tinha “em venerar a sua divindade” (FLECK, DILLMANN, 2017,
p. 313).
Os relatos do jesuíta Perier sobre o sucesso de conversão e sobre a adoção de
comportamentos cristãos pelos indígenas, são muito similares àqueles registrados pelos
missionários jesuítas que atuaram nos domínios coloniais espanhóis na América platina,
como os estudados e analisados por Eliane Fleck. A historiadora analisou as estratégias
de conversão adotadas pelos missionários jesuítas que atuaram junto às populações
indígenas que ocupavam a região denominada Província Jesuítica do Paraguai,
observando que esses religiosos registraram, não só a busca constante dos indígenas pela
confissão – pelo temor da não-salvação da alma –, como também a prática de penitências
– inclusive, de autoflagelação –, através das quais, segundo os religiosos, eles buscavam
purificação e benesses divinas. Entre as práticas de caráter penitencial adotadas pelos
indígenas já convertidos – e também pelos missionários – estavam os jejuns, as preces e
as procissões religiosas, que provocavam grande contentamento e admiração entre os
religiosos que as entendiam como “internalização da noção de pecado e de
responsabilidade moral” pelos nativos (FLECK, 1999, p. 83, 255).
Tanto na América portuguesa (SOUZA, 1993, p. 23), quanto na espanhola (FLECK,
2004, p. 269), os missionários jesuítas consideravam a conversão dos indígenas como
indicativo de sua redenção e como garantia da salvação de suas almas.
Como já destacado, para assegurar o êxito da missionação, Perier recorreu à
imagem do fogo do inferno,153 que, segundo ele, os levava a expressar sentimentos de
culpa e de medo da condenação de suas almas:

tinha (...) uma destas imagens, iluminada com a mesma cor do fogo. Não
é crível a impressão do inferno que fazia nos índios; tanto assim que
alguns vinham já alta noite a confessarem-se e perguntando-lhes eu,
porque não esperavam pela manhã, respondiam ter medo de morrer
aquela noite, com se lhes representar na imaginação aquele condenado,
que estava ardendo com os demônios no inferno (PERIER, 1724, p. 22,
Apud. FLECK, DILLMANN, 2015, p. 1167).

153
O historiador português José Pedro Paiva (1997, p. 56), valendo-se da mesma passagem de Perier,
procura demonstrar o quanto as imagens, no final do século XVII e início do XVIII, “causavam grande
impressão quando se tratava de convencer pelo temor”.

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Assim, Perier enuncia o sucesso da conversão através de referências aos


comportamentos e práticas dos indígenas, como o mencionado acima, de que os mesmos
com “medo de morrer” desejavam realizar a confissão na “já alta noite”. Também
demonstra, pelo olhar do europeu, as “formas de compreensão e usos da religiosidade por
parte dos conversos” (ALMEIDA, 2017, p. 10), ou, ao menos, as formas e usos que se
acreditava fazer, que se desejava, se imaginava e se estava convencido. O jesuíta também
relata a diferença significativa que experimentara entre a conversão por meio da
oralidade e aquela que conjugava a oralidade com a apresentação de imagens dos
condenados:

(...) Direi mais que nas missões que eu fazia nas vilas e nos engenhos, por
muito que eu estudasse de representar ao vivo os insofríveis tormentos
eternos bem poucos e raros se moviam. Porém, eu mostrando do púlpito
a imagem de um condenado, logo todo o auditório se desfazia em lágrimas
e gemidos (PERIER, 1724, p. 24, Apud, FLECK, DILLMANN, 2013, p. 290-
291).

Em síntese, como apontou a historiadora Claudia Rodrigues, a obra de Alexandre


Perier traz “um relato que dá conta da forma como o clero fez uso das representações
sobre os sofrimentos infernais como recurso didático no processo de catequese”. Ainda
segundo Rodrigues, “no período em que [Perier] esteve em missão no Brasil, procurou
facilitar a compreensão da escatologia entre os índios por meio do uso de estampas” e
“afirmou que por várias vezes conseguiu alcançar seu intento ao fazer uso da imagem”
(RODRIGUES, 2007, p. 445).

Considerações finais

O jesuíta Alexandre Perier, em sua obra Desengano dos Pecadores, recorreu a


imagens do inferno e dos tormentos infernais para ilustrar seus argumentos, narrando a
promoção de expressões indígenas de culpa e de medo diante da possível condenação de
suas almas, e promovendo, assim, um autorreconhecimento do sucesso do seu trabalho
de conversão pelo temor. Embora a obra se apresentasse como “utilíssima aos
missionários”, não era voltada exclusivamente ao reconhecimento dos indígenas e nem se
propunha a ser “um instrumento de conversão dos gentios que viviam na América”, fato
observado pela historiadora Ane Luíse Mecenas (2017, p. 22), ao constatar, em sua

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pesquisa, o “significativo número de catecismo e de gramáticas produzidos por membros


das mais diversas ordens religiosas, empenhados em melhor conhecer o espaço em que
atuavam e a língua dos grupos nativos que se propunham converter”.
A obra de Perier constitui-se também em evidência da circulação de ideias entre a
América e a Europa, na medida em que, segundo Ana Cristina Araújo (1997, p. 209)
conjugava conhecimentos escatológicos europeus e americanos, como por exemplo, no
tratamento dado ao Apocalipse, “adaptado ao universo mágico-religioso das comunidades
indígenas”. A boa aceitação da obra de Perier, no universo de publicações religiosas
portuguesas, está atestada nas quatro edições que a mesma recebeu na primeira metade
do século XVIII.
Se, por um lado, a experiência como missionário e pregador no nordeste da
América portuguesa permitiu que Perier identificasse a presença de Satã nas práticas
rituais indígenas, por outro, não o impediu de perceber a presença da influência
demoníaca também entre outros sujeitos sociais, como senhores do engenho, mulheres,
mercadores e clérigos, os quais, por seus inúmeros pecados, deveriam “desenganar-se”
nas matérias da fé para, assim, alcançar a glória futura da alma. (FLECK, DILLMANN, 2015,
p. 1187). Para os potenciais leitores do seu livro (leigos e religiosos), Perier reforçava a
positividade de seu trabalho missionário a partir das atitudes cristãs adotadas pelos
indígenas, como a confissão, o arrependimento, a busca pela virtude, o conhecimento das
penas, etc.154
Foi a partir das suas experiências de missionário no Brasil que o padre Perier
escreveu a sua obra considerada por ele como “necessária a todo gênero de pessoas”. Na
tentativa de adaptar a escatologia a um nível mais imediato de comunicação que o padre
Perier justificou as estampas utilizadas em sua obra. O seu trabalho de conversão dos
indígenas, na América portuguesa do final do século XVII, parecia ser mais eficaz com o
auxílio das imagens dos condenados, na medida em que sensibilizavam o “auditório”,

154 Ao analisar os “processos exitosos de conversão ao cristianismo” nas reduções jesuítico-guaranis


americanas do século XVII, a historiadora Eliane Fleck (2004, p. 226) apontou que a documentação “revela
aquilo que o jesuíta apresentava como indicativo da absoluta conversão pode ser tomado como uma
ressignificação da tradição cultural” indígena. Também Luisa Wittmann (2014, p. 62-63) ao analisar
atividades missionários dos jesuítas na América portuguesa quinhentista, enfatizou “a complexidade das
relações estabelecidas entre jesuítas e índios”, pois não seria raro “encontrar descrições que demonstram a
coexistência cotidiana de elementos indígenas e cristãos”, considerando que ocorria “ressignificação
constante dos signos religiosos apresentados pelos europeus, através de uma lógica cosmológica que era
ameríndia”.

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causando “impressões” e mobilizando atitudes religiosas nos gentios consideradas


legítimas para o bom cristão.

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A BOTÂNICA DE HIPÓLITO RUIZ LOPEZ E SEU VIÉS FARMACOLÓGICO:


PRODUÇÃO INÉDITA OU APROPRIAÇÃO DE CONHECIMENTO NATIVO?

Eric Thomas da Silveira Franz

Introdução

No ano de 1784, na cidade de Huánuco, localizada no Reino de Peru (uma então


colônia espanhola na América que, por várias razões, mantinha vivo o interesse da
metrópole por aquelas paragens) um viajante que por ali passava, surpreendia-se com
uma prática corriqueira dos habitantes locais. Sua admiração e curiosidade para com o
que vira, denunciava sua origem como sendo a de alguém que não vivera a realidade
andina desde a tenra idade.
Tal viajante teria chegado à cidade e procurado um lugar para ficar, onde pudesse
repousar da viagem e do labor que andara executando pelas matas peruanas já há alguns
anos. Tendo encontrado abrigo, observou um grupo de senhoras e percebeu que elas
esfregavam os dentes com uma espécie de palito vermelho. Fato é, que a prática lhe
causou um grande estranhamento, a ponto de mover-lhe ao questionamento: “que palito
era aquele e com que fim usavam?”155. A curiosidade do homem fez com que abordasse as
referidas mulheres e as indagasse sobre o ato. De maneira concisa, de pronto lhe
responderam que o palito tratava-se de uma raiz de uma planta chamada “Ratanhia” e que
em Lima a conheciam como “raiz para los dientes”, pois era utilizada para limpar e fixar a
dentição, assim como, para colorir os lábios conferindo-lhes um tom avermelhado.
Não tendo a resposta sido o suficiente para aplacar o interesse inquisidor do
viajante, perguntou às mulheres se a planta era facilmente encontrada na região e se seria
possível que lhe trouxessem uma destas plantas viva (mais tarde, tomaria conhecimento
de que a planta na verdade era trazida por índios de Canta e Huarocherí em dias de festa


Mestrando em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), bolsista CAPES/PROSUP.
Contato: eric.franz@hotmail.com;
155
“Qué palito era aquel y con qué fin le usaban?” (RUIZ, 1796, p. 5);

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e comercializada nos pulperos156 locais). Dentro de poucos minutos, tendo em mãos a


espécie com flor e fruto, a analisou e percebeu-se que não se tratava de uma espécie
desconhecida, mas sim de um exemplar de Krameria Triandra.
Agora que já não eram mais estranhos, devidamente apresentados, homem e
planta poderiam comungar. Na realidade com que nossa personagem vinha tomando
contato diariamente, outra prática bastante popular entre os habitantes nativos de
regiões de altitude elevada como a andina, era o uso da coca. A utilização das folhas desta
planta possuía uma ordem muito prática na vida destas comunidades, visto que dentre
suas virtudes podemos destacar a redução dos efeitos da altitude, porém, seu uso
excessivo tendia a reduzir o cálcio nos dentes e afrouxar a dentição. Se por um lado a coca
produzia tal efeito indesejado, em contrapartida, o uso do palito de raiz da Ratânia
poderia servir como uma medida preventiva, assegurando que os dentes permanecessem
em seus devidos lugares. É interessado na preservação da sua saúde bucal, que nosso
viajante passa a fazer uso da raiz, tal qual as peruanas haviam lhe ensinado.
Conforme perpetuava a prática incorporando-a a sua rotina habitual, mais uma vez
foi surpreendido, pois agora chamava-lhe a atenção o sabor da raiz. Um sabor que
segundo suas palavras, já no primeiro mascar indicava uma estipticidade superior a de
qualquer outra que já havia observado no reino vegetal até o momento. Movido por quais
fossem seus motivos, determinou que a virtude merecia maiores créditos.
Assim, com intuito de averiguar em uma ordem prática a potencialidade da planta
como fármaco, pôs-se ao trabalho. Recolheu uma porção de raízes e depois de bem
lavadas e cortadas em pequenos pedaços, as manteve em infusão em água fria durante
uma noite. No dia seguinte, as colocou para cozer em fogo aberto até que a água tingiu-se
intensamente de vermelho, separou esta primeira solução, repôs a água e novamente
levou ao fogo até que julgou ter retirado toda essa parte extrativa. Uniu as soluções,
passou o montante por toalhas (para fins de filtragem e para testar a possibilidade de
utilizar essa solução para tingimento de tecidos) e a evaporou até que o “extrato” ficasse
com uma consistência de mel bastante líquido. Retirou do fogo e expôs ao sol para que
terminasse o trabalho de redução do extrato. Deixou evaporar até que restasse uma
espécie de resina, dura e quebradiça, transparente como um cristal de cor violeta.

156
Tendas populares de venda de artigos comestíveis.

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Levando adiante seu plano de testar a adstringência contida agora no extrato,


remeteu uma amostra ao Doutor Don Cosme Bueno, médico e cosmógrafo do Peru, entre
outros médicos com quem mantinha correspondência. Porém, antes mesmo de deixar a
cidade, testemunhou o caso de um menino com cerca de onze anos - que apresentava um
forte fluxo de sangue pela boca e pelas narinas - e as tentativas frustradas do Cirurgião
Don Narciso Bracamonte de tentar conter os sangramentos com os medicamentos
comumente utilizados. Ao saberem do extrato de ratânia produzido por nosso viajante,
quiseram testá-lo e após três dias ministrando o fármaco em gotas (dissolvido em água),
testemunharam uma cura. Segundo relato do viajante e suas correspondências com
médicos americanos e espanhóis, muitas outras curas foram alcançadas com a utilização
deste extrato.
Mas afinal, que homem era este que a partir de um olhar curioso e de uma ação
digna de Sherlock Holmes - ainda que em um universo tão díspare ao da célebre
personagem do escritor inglês Sir Arthur Conan Doyle - percebera tão sutil indício de
propriedade farmacêutica em um exemplar da fauna andina e ainda foi capaz de produzir
e fazer circular um novo fármaco? Seu nome era Hipólito Ruiz Lopez e falaremos mais
sobre ele agora.

Um expedicionário espanhol e o exercício prático da ciência Botânica


Desta figura intrigante chamada Hipólito Ruiz Lopez, sabe-se que nasceu em
Belorado, na Espanha, em 8 de agosto de 1754. Quando jovem, estudou princípios de
latim, sob a orientação de seu tio, o sacerdote Basílio López, e com cerca de 14 anos,
passou a estudar princípios de Lógica, Física experimental, Química e Farmácia sob a
tutela do farmacêutico Manuel López que também era seu tio.
Ainda que residisse distante do Real Jardín Botánico de Madrid - graças a Manuel
López, que financiou seus estudos - passou a estudar Botânica nesta instituição, na
condição de pupilo de Casimiro Gómez Ortega e, talvez em função de sua notória
dedicação, era benquisto pelos catedráticos, apesar de o considerarem demasiado jovem.
Tal reconhecimento rendeu-lhe, aos 22 anos, o encargo régio de dirigir uma expedição
científica à América meridional, que mais tarde seria conhecida como a “Real Expedición
al Virreinado del Perú y Chile”, um empreendimento que teve em sua origem o interesse e

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o esforço conjunto das coroas espanhola e francesa por classificar o mundo natural do
território americano, que no momento configurava-se como colônia espanhola.
Ruiz casou-se com a filha de Gómez Ortega, com quem teve um filho chamado
Antonio Ruiz. Segundo o texto escrito por seu filho, intitulado “Elogio histórico de don
Hipólito Ruiz Lopez”, Ruiz teria falecido em 1816, em decorrência de um derramamento
massivo de sangue pelas fossas nasais. Aparentemente, a debilidade de sua saúde foi algo
com que precisou lidar ao longo de toda sua vida. Quando eleito para encabeçar a
expedição, seu tio tentou impedi-lo, por acreditar que a viagem lhe seria penosa e
prejudicial, como de fato deve ter sido, pois, em seus diários e nos estudos biográficos,
não são incomuns as referências aos afastamentos de Ruiz por conta de problemas de
saúde.
Ao realizar a expedição aos reinos do Peru e do Chile, Ruiz deveria atender às
demandas propostas pelas instituições (a saber, os respectivos jardins reais da Espanha
e da França) e pelas Coroas que então financiavam o empreendimento. Assim sendo,
coube a ele – juntamente com os demais integrantes – a missão de encontrar plantas
medicinais com valor comercial, promover o reconhecimento da flora americana e formar
duas coleções idênticas para ambos monarcas.
Ainda que em um primeiro momento as diretrizes sobre as quais estes homens
balizaram suas atividades parecessem estar diretamente voltadas a uma produção de
conhecimento botânico com caráter muito descritivo, considerando o habitat, o
recolhimento, a dissecação, as virtudes e os usos medicinais, notam-se preocupações com
aspectos relacionados à farmacotécnica, à química e a ensaios clínicos das plantas
americanas, o que deixa transparecer a ênfase na exploração comercial das drogas
naturais. Naturalmente, o conhecimento sobre a natureza americana deveria servir à
metrópole.
Fator primordial para essa nova percepção da natureza foi a mudança de como se
concebe o exercício prático da Botânica. Até então tida como uma ciência através da qual
o homem intenta conhecer e classificar a flora como um exercício de poder sobre a
natureza, agora passa a tomar novos ares, sendo vista como uma ciência “auxiliar” a
serviço da Farmácia. Ruiz compartilhava dessa percepção e foi um forte difusor dessa
ideia. Devido ao seu posicionamento frente a esta questão, encontra resistência na figura

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do clérigo valenciano Antonio José de Cavanilles, para quem a ciência botânica era uma
área autônoma e autossuficiente.
O embate entre estes autores ganha espaço nas suas produções acadêmicas e
maior importância a partir do momento em que Cavanilles assume a direção do Real
Jardim, que esteve sob os cuidados de Ortega até 1801. Ainda assim, já se viam nuances
desse pequeno conflito, quando, por exemplo, em 1796, Ruiz publica sua Respuesta para
desengaño del público á la impugnacion que ha divulgado prematuramente el presbítero
don Josef Antonio Cavanilles: contra el pródromo de la flora del Perú é insinuacion de
algunos de los reparos que ofrecen sus obras botánicas, onde, ao referir-se à Botânica, deixa
bem claro seu posicionamento em relação à farmacologia:

[...] y esto se sin hacer la crítica de lo que falta [...] al discernimiento del
Género e de la Especie sin dar la menor noticia de los usos y vitudes, como
si este conocimiento no fuera el resorte del Botânico, á quien de poco
serviria la esteril habilidad de distinguir todas las plantas del Universo,
ignorando sus propiedades y usos que pueda hacerse con ellas. (RUIZ, 1796,
p. 37)

Logo, para Ruiz o papel do botânico extrapola a simples descrição da flora e


abrange também os aspectos utilitários da mesma, justificando desta forma a necessidade
de se produzir conhecimento sólido a respeito dessas plantas e suas propriedades
farmacológicas, bem como sua capacidade de produção, extração e comercialização.
Tal forma de se pensar a ciência Botânica favorecia a construção de uma imagem
na qual as colônias americanas se tornariam fornecedoras tanto de simples, quanto de
compostos, algo que muito provavelmente instigou o olhar predatório das monarquias
sobre as terras americanas e serviu muito bem ao modelo colonial espanhol, visto que tal
projeto diferia muito do projeto português de colonização. Enquanto o império luso
intenta promover a ocupação e povoamento das terras então agregadas ao reino, como
que estendendo as fronteiras da própria Metrópole, no projeto espanhol, as colônias são
fonte para extração direta daquilo que interessa à Coroa (como a exploração da prata e a
produção de quina em território peruano), enquanto pouco se preocupa com o
povoamento das regiões sob seu domínio.

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De certa forma, Ruiz personifica a mentalidade espanhola dentre os membros da


expedição e não só por ser o “líder” do empreendimento hispano-francês. Em relação à
produção de conhecimentos técnicos, seu trabalho atende às demandas do Jardim. Além
disso, sua atuação em território americano também leva em consideração as exigências e
interesses dos monarcas, pois, como mencionado anteriormente, a constituição de uma
coleção idêntica para ambas as monarquias era uma das principais tarefas da expedição.
Mas o mais interessante é que Ruiz também parece ter se empenhado para atender aos
seus próprios interesses. Esta especulação parece encontrar respaldo na constatação de
que se dedicou a estudar plantas que possuíam como principal propriedade terapêutica a
adstringência (como o referido caso da raiz de ratânia), as quais, com certeza, muito
poderiam atenuar os sintomas de sua própria enfermidade.
Assim, podemos pensar que o interesse de Ruiz nos resultados da expedição estava
perpassado por várias vozes, que muito provavelmente o influenciaram subjetivamente:
a do encarregado do Real Jardim enquanto instituição a quem ele se reporta, a do rei
interessado na viabilidade de um retorno econômico da viagem, e de sua própria voz, uma
vez que se encontrava empenhado na cura ou no maior controle dos sintomas que o
assolavam com tanta frequência.
Quando nos debruçamos sobre os diários de Ruiz e suas obras escritas após a
expedição, encontramos menções interessantes aos usos de uma série de plantas, como a
Krameria Triandra e a Polypodium Calaguala. É através do trabalho de Ruiz que a
Krameria Triandra - ou Ratânia - foi introduzida na Europa por volta de 1790, ainda que
já estivesse muito presente no dia-a-dia dos nativos peruanos, para os quais a utilização
era corriqueira. O sumo de suas folhas podia ser utilizado no trato das cataratas, mas o
que mais chama a atenção do botânico é a virtude estíptica encontrada nas raízes desta
planta que, segundo o autor, caso fossem tomadas sob a forma de infusão, “contiene
qualquiera fluxo de sangre” (1796, p. 276), bem como a ausência de efeitos colaterais em
sua aplicação.
Quando retornaram à Espanha, Ruiz e seus colegas expedicionários, após enfrentar
todo tipo de desventuras, cheios de glória e cobertos por sinais da cansativa peregrinação,
foram muito bem recebidos por seus conterrâneos. Por influência do Ministro de Estado
Conde de Floridablanca e do Secretário de Índias Don Antonio Porlier, os botânicos foram

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reintegrados ao Jardín Botánico de Madrid na qualidade de professores, com um salário


equivalente à metade do que recebiam em território americano.
Havia, cabe ressaltar, uma preocupação muito grande em garantir a produção de
uma obra que contemplasse e trouxesse à luz o fruto do trabalho da “Expedição aos Reinos
do Peru e do Chile” de maneira a afirmar tanto a posição espanhola como responsável pela
difusão e como detentora desse conhecimento, quanto de contribuir significativamente
com os avanços da comunidade científica da época. Os trabalhos realizados durante a
expedição deram origem à principal produção de Ruiz (em coautoria com José Pavón), a
Flora peruana et chilensis. Devido à atenção que dedicou aos botânicos e ao incentivo
dados aos seus estudos, o Ministro de Índias teve seu nome homenageado com um gênero
de plantas, o Porlieria.

Conclusão
Nesta comunicação propomo-nos a defender a ideia de que a comunidade científica
espanhola - em ascensão em fins do século XVIII - se valeu de um conhecimento prévio já
existente e consolidado empiricamente nas comunidades indígenas americanas, para se
afirmar frente às demais nações europeias. Em razão disso, compreendemos que o envio
de expedições científicas à América espanhola e a atuação dos homens de ciência neste
território, até então pouco explorado, esteve vinculado a um projeto de domínio do
mundo natural e de um melhor aproveitamento dos recursos existentes nas colônias,
projeto para o qual a Botânica enquanto ciência à serviço da Farmácia despontava como
área essencial de conhecimento.
O caso de Hipólito Ruiz Lopez, ainda que não deva ser tomado como via de regra
ou como um modelo estático da maneira como o conhecimento do mundo natural
transitava entre indivíduos e culturas, nos permite conceber com maior dinamismo estas
trocas de saberes. Observando o relato do botânico sobre a ratânia, podemos refletir
sobre a forma com que, a partir do contato com uma prática tradicional indígena, surge
um questionamento mais científico que, levado adiante, encontra apoio no viés de
exploração comercial ao qual servia a expedição. A ratânia que, já descrita em 1758 por
Pehr Löfling (um pupilo de Carl Von Linné), porém, só neste momento vista como fármaco,
exemplifica um caso de apropriação e resignificação do conhecimento nativo, o que entra
em consonância com o discurso que aqui procuramos defender.

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TESTEMUNHOS, ESCRITA E VERSÕES EM DISPUTA: A INCORPORAÇÃO


DE “VOZES” INDÍGENAS EM REGISTROS DE JESUÍTAS NO CONTEXTO DA
DEMARCAÇÃO DO TRATADO DE MADRI (PARAGUAI, 1754-1760)

Marina Gris da Silva

A conjuntura de meados do século XVIII, na região das missões evangelizadoras de


indígenas da Província Jesuítica do Paraguai, se apresenta como deveras atribulada,
destacando-se aqui os conflitos que ficariam conhecidos como a “Guerra Guaranítica”,
rebelião indígena associada à demarcação do Tratado de Madri (1750) (ver QUARLERI,
2009). É um contexto marcado, além disso, por disputas entre versões dos
acontecimentos em curso e de perseguição à Companhia de Jesus, âmbito no qual a escrita
desempenhou um papel significativo. Nessas disputas, as menções a testemunhos – orais
ou escritos – de indígenas se fizeram bastante presentes nos documentos produzidos
pelos diferentes sujeitos implicados, e essas “vozes” – ou, talvez, “letras” – foram
frequentemente empregadas como “prova”, como meio para afiançar argumentações nos
mais diversos sentidos. Assim, se buscará, neste trabalho, observar como se dava a
incorporação de testemunhos indígenas nesses registros produzidos por sujeitos não-
indígenas, enfatizando-se aqui os jesuítas, no contexto dos conflitos desencadeados pela
demarcação do acordo de limites entre as coroas ibéricas.
Diante disso, se toma como ponto de partida um caso específico, que se mostra
bastante propício para a análise das questões mencionadas: o de Crisanto Neranda, um
Guarani letrado das missões jesuíticas do Paraguai, membro de uma congregação e
integrante da administração da redução de São Luís; e um relato escrito que é atribuído a
esse sujeito, que conta as situações que o seu narrador teria vivenciado no ano de 1754
após ser capturado por portugueses durante a “Guerra Guaranítica”. Mas a relevância
desse relato, enquanto documento e produto escrito, não se restringe apenas ao momento
da sua produção: ele parece ter sido manuseado, lido, citado e instrumentalizado por
diversos outros personagens, associando-se também a conjunturas posteriores e

Mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (PPGH-UFRGS).

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vinculando-se a outros sujeitos além daquele que é indicado como seu produtor direto,
como se verá.
Nesta análise é enfatizada a dimensão dos usos da escrita, compreendendo-se essa
tecnologia enquanto um produto humano, social e histórico. Assim, no sentido do que é
argumentado por autores como Antonio Castillo Gomez (2003) e Armando Petrucci
(2003), esses usos são observados no âmbito das relações de poder, considerando quais
sujeitos possuíam acesso à capacidade de escrever, para quais fins instrumentalizavam
essa capacidade, de que forma os textos alcançam e são recebidos por públicos mais
amplos e, em última instância, são conservados e sobrevivem. Dessa maneira, para
examinar os produtos escritos é preciso considerar não apenas os sujeitos e fatores
envolvidos no momento da sua produção – ou seja, o momento em que uma
determinada pessoa escreve um texto –, mas também a maneira como esses textos
circulam, são lidos, copiados, traduzidos, citados – enfim, manuseados – por terceiros.
Todos esses fatores interferem na maneira como os textos serão conservados – ou
descartados –, e esse aspecto da conservação pode ser visto, portanto, como o da
configuração de uma “memória escrita”. A esse respeito, Armando Petrucci ressalta a
necessidade de observarmos os processos que concorrem para a configuração de um

[...] patrimonio escrito de naturaleza dispar – literaria, científica,


religiosa, conmemorativa y documental – que ha llegado hasta nosotros
el que constituye en su integridad y complejidad la memoria escrita de la
sociedad que lo conserva, lo ordena, lo reconoce como propio, lo estudia
y lo transmite a las generaciones siguientes. Este patrimonio se ha ido
formando y sedimentando a través de los siglos y, a pesar de los
descuidos, de las destrucciones, de las censuras y de los olvidos ha
acabado por convertirse, para cada comunidad organizada y en
cualquiera de las fases históricas, en un inmenso sedimiento de
textualidad [...] (PETRUCCI, 2011, p. 457).

A conservação, portanto, não seria um processo linear e “natural”, mas marcado


por descontinuidades e pela ação – intencional ou acidental – dos sujeitos, que
intervém, então, na configuração dessa “memória escrita”.
Essas questões, diante do caso aqui analisado, assumem algumas
particularidades interessantes e colocam, ainda, a necessidade de problematizar
alguns outros elementos. Porque se trata de um relato atribuído a Crisanto Neranda,

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um Guarani da redução de São Luís, que teria sido produzido entre o segundo
semestre de 1754 e o início de 1755, e que conta, em primeira pessoa, as vivências
desse sujeito após ter sido capturado por portugueses em um conflito nas
proximidades do forte do Rio Pardo, a propósito da demarcação do Tratado de Madri.
Porém, não existe algo que possa ser considerado um “original” desse texto. O que se
tem são referências a uma primeira versão que teria sido escrita em idioma guarani,
por esse Crisanto, e da qual podem ou não ter sido feitas algumas cópias. Mas esse
documento – ou documentos – em guarani não foi encontrado até o momento.
Por outro lado, foram localizadas duas traduções diferentes ao idioma
espanhol. A primeira delas foi elaborada pelo jesuíta Bernardo Nusdorffer em janeiro
de 1755, e dela existem várias cópias que atualmente encontram-se espalhadas por
acervos diversos na Espanha157. E a segunda é atribuída ao intérprete correntino
Pedro Villanueva158 – agindo sob ordens do coronel e governador de Montevidéu
Joaquim Viana – e figura entre uma série de traduções de “papéis” em guarani que
teriam sido encontrados na redução de São Lourenço em 1756, quando as tropas
espanholas ocuparam o povoado. Dessa tradução, ao que tudo indica, também foram
feitas cópias por autoridades a serviço do Rei Católico. Além disso, partes extensas do
relato atribuído a Crisanto Neranda foram citadas em versões de uma relação
elaborada pelo jesuíta Juan de Escandón, entre 1755 e 1760, na qual ele transcreve
trechos do que parece ser a tradução de Nusdorffer159. No âmbito dessa análise, a
versão de Pedro Villanueva não será explorada, apenas aquelas atribuídas a jesuítas,
mas é importante mencionar a sua existência, pois isso ajuda a compreender como
esse documento circulou e foi manuseado por sujeitos variados.

157
Archivo Histórico Nacional (Madrid) - Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 56; Real Academia de la
Historia (Madrid) - Colección Jesuítas-Legajos, sign. 9/7284, c. 11-12-3-64; Archivo General de Simancas
(Valladolid) – Sección Estado, leg. 7424, n. 458.
158
Archivo General de Simancas (Valladolid) - Sección Estado, legajo 7410, n. 21.
159
Archivo Histórico Nacional (Madrid) – Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 54; Archivo Histórico
Nacional (Madrid) – Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 60; Real Academia de la Historia – Colección
Biblioteca de Cortes, sig. 9/2279, c. 9-11-5-151; Biblioteca Nacional de España – Sala Cervantes
(Manuscritos) – Ms. 4185.

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Esse aspecto traz a necessidade de considerar, também, os condicionamentos,


mediações e até mesmo manipulações por terceiros que os textos sofrem. E, além disso,
nas “letras” – pois aqui, mais do que as “vozes”, o que se destaca são as manifestações
escritas dos diferentes personagens – que se sobrepõem em um mesmo texto. Isso
introduz, talvez, a impossibilidade de se falar em “autores” únicos, e mesmo em
“originais”. Então, outra dimensão relevante para esta análise é a problematização da
“autoria”. Quanto a isso, são considerados os tensionamentos de Michel Foucault (2000)
acerca da categoria de “autor”, interpretada enquanto uma “função”, em uma busca por
conferir legitimidade, coerência e “afiançar” um texto, um testemunho, ou uma obra, e que
não é definida por uma simples atribuição espontânea de um texto ou discurso à pessoa
que o produziu, mas sim por uma série de operações complexas.
Além disso, como observa James Amelang (2003), é preciso colocar em diálogo as
dimensões individuais e coletivas da produção dos textos, bem como as mediações a que
estão sujeitos nos sucessivos momentos da sua instrumentalização, passando pela
tradução, pela cópia, e mesmo pela citação. Com isso, além do “autor” – ou a pessoa
responsável, em um primeiro momento, pela produção de um texto –, entram em cena os
personagens do “copista” e do “tradutor”, considerando, como afirma Luciano Canfora
(2012), que os atos de cópia – e tradução – podem ensejar um grau considerável de
reelaboração e intervenção nos textos.
Em uma breve contextualização para situar esta análise, se trata aqui do processo
de demarcação do Tratado de Madri, estabelecido entre as monarquias espanhola e
portuguesa em 1750 e que, entre diversas outras implicações, determinava a troca da
Colônia do Sacramento – então em posse dos lusitanos – pelo território onde se
localizavam 7 das 30 povoações missioneiras da Província Jesuítica do Paraguai. Com isso,
os habitantes dessas reduções se veriam obrigados a abandonar os seus povoados e se
mudar para o território que seguiria em posse dos espanhóis. Diante dessas pressões,
originou-se um movimento de revolta que desencadeou o conflito conhecido como
“Guerra Guaranítica”.
O Tratado se associava, além disso, a um movimento de reformas da monarquia
espanhola que – vendo-se em uma posição fragilizada e com suas finanças exauridas após
conflitos do início do século XVIII – buscava empreender medidas para dinamizar a
administração do império, aumentar a arrecadação e incrementar o poder do monarca, o

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que demandava a necessidade de estabelecer negociações e acordos com outras potências


europeias (ver ANDRIEN e KUETHE, 2014). Outro aspecto dessas reformas, ademais, era
o esforço por limitar o poder e a riqueza das ordens religiosas, que, nesse momento
específico, se voltava em grande medida para o controle da Companhia de Jesus
(ANDRIEN e KUETHE, 2014, p. 260-269). Isso culminaria na expulsão dos jesuítas dos
territórios espanhóis em 1767, medida que foi precedida por uma série de ataques à
ordem e à sua atuação nas missões evangelizadoras. Esses ataques, por sua vez, muitas
vezes tomavam a forma da disseminação de acusações aos jesuítas – tidas por eles como
“calúnias” e “boatos escandalosos”. E com o advento da “Guerra Guaranítica” os inacianos
passam, igualmente, a ser acusados da condução dessa revolta.
Ao longo desses processos, a escrita teve um papel bastante notável, tanto entre os
jesuítas quanto entre os demais sujeitos envolvidos. Por ser um cenário de conflito e de
polêmicas, ocorria uma intensa comunicação epistolar, com a divulgação de notícias e
acontecimentos, e de “versões” que circulavam entre os lados português, espanhol, jesuíta
e indígena, por meio oral ou escrito. No caso da documentação associada às autoridades
lusitanas, é possível notar um considerável tom anti-jesuítico, com a divulgação de
versões contrárias aos religiosos e empregando amplamente depoimentos que teriam
sido tomados de indígenas (prisioneiros ou aliados voluntários). E em casos como o da
“Relação Abreviada da República, que os religiosos jesuítas das províncias de Portugal e
Espanha estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias e da guerra que
neles têm movido e sustentado contra os exércitos espanhóis e portugueses” 160 – um
panfleto difamatório publicado em 1757, atribuído ao Marquês de Pombal –, inclusive
anexando traduções ao português de documentos escritos por indígenas das reduções
(que o autor da Relação alega que foram forjados pelos padres). Ademais, entre os
portugueses havia uma preocupação em atrair indígenas das reduções para os territórios
lusitanos (ver GARCIA, 2009), e para isso também foi empregada a escrita, com o envio de
cartas às autoridades indígenas e estabelecimento de acordos.

160
RELAÇÃO abreviada da República, que os religiosos jesuítas das províncias de Portugal e Espanha
estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias e da guerra que neles têm movido e
sustentado contra os exércitos espanhóis e portugueses. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, t. 4, p. 265-294, 1852.

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No caso dos habitantes das reduções, como apontado nas pesquisas de Eduardo
Neumann (2015), também é possível notar uma intensificação da escrita, empregada
pelos indígenas, entre diversos outros fins, para a comunicação em tempos de guerra. E
nesse processo, então, os habitantes das reduções também tomaram parte na
disseminação de versões, por conta própria ou por meio do emprego dos seus escritos por
outros personagens para afiançar a argumentação de um e outro lado da disputa – o que
eventualmente poderia subverter os objetivos iniciais desses “escritores indígenas” ao
produzir os documentos. Quanto aos jesuítas, esses religiosos, ao longo da sua atuação,
sempre fizeram um uso bastante intenso e exímio da escrita. Como observa Federico
Palomo (2013), os inacianos a empregavam não apenas para fins de comunicação e troca
de notícias, mas também como meio de reforçar os laços da ordem e, de certa forma, como
instrumento de “proselitismo”, de propaganda e memória, projetando documentos, ideias
e imagens que, em alguns casos, perduram até a atualidade. Esses aspectos, sobretudo o
último deles, são fundamentais para compreender o contexto e a documentação de que se
dispõe, visto que – diante de uma situação em que a Companhia de Jesus se via ameaçada
e constantemente questionada – os jesuítas empregaram amplamente a escrita como
arma de defesa.
Assim, os membros da Companhia de Jesus produziram cartas, relatos e
compilações de acontecimentos buscando disseminar versões que fossem favoráveis a
eles tanto entre os próprios jesuítas quanto diante de públicos externos, além de
“refutações” à Relação Abreviada, atacando minuciosamente esse panfleto acusatório.
Para tal, também divulgaram cópias de documentos que amparassem as suas
argumentações, traduzindo aqueles que haviam sido produzidos – em guarani – pelos
indígenas das reduções. E esse é o caso do relato atribuído a Crisanto Neranda, traduzido
por Bernardo Nusdorffer e disseminado por meio de diversas cópias, ao que tudo indica
entre ambos os lados do Atlântico. Esse religioso também se empenhou em reunir e
registrar informações acerca do que sucedia, a partir de diversas fontes, produzindo
compilações de acontecimentos conforme estes iam ocorrendo161, e também remetendo
essas informações a outros sujeitos.

161
RELAÇÃO do Padre Bernardo Nusdorffer sobre o plano de mudança dos 7 Povos, desde setembro de
1750 até fins de 1755 – Primeira à Quarta parte. In: Manuscritos da Coleção de Angelis – v. VII - Do Tratado
de Madri à Conquista dos Sete Povos (1750-1802). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional - Divisão de

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Outro caso relevante é o de Juan de Escandón, que elaborou uma extensa relação –
da qual existem versões ligeiramente diferentes, uma delas referente a meados da década
de 1750162, e as demais ao ano de 1760163 – não apenas para divulgar aos seus
contemporâneos uma “versão jesuítica” acerca dos conflitos relativos ao acordo de
limites, na qual ele enumerava provas contra as acusações à Companhia, mas também
para legar essa versão ao futuro, registrar e projetar uma memória. Nesse documento,
Escandón incorpora uma série de textos de terceiros, nem sempre indicando
inequivocamente a “autoria” deles. Um desses documentos é o relato atribuído a Crisanto
Neranda, do qual são citadas passagens extensas, intercalando-as com a argumentação do
próprio jesuíta. E, nesse caso, Escandón – assim como Nusdorffer – não apenas preserva
como enfatiza o nome da sua “fonte”, bem como a posição que ela ocupava no contexto
reducional e o caráter “autônomo” da decisão de Crisanto ao produzir um relato acerca
de suas vivências como prisioneiro. Essa preocupação em indicar o nome do autor do
relato, assim como a própria instrumentalização do documento por esses jesuítas, pode
ser associada ao episódio ao qual ele se refere e ao impacto que esse acontecimento
acabaria tendo no contexto missioneiro de meados do século XVIII.
Durante a “Guerra Guaranítica”, entre o final de 1753 e o mês de maio de 1754,
uma série de ataques à fortificação portuguesa do Rio Pardo foi levada a cabo pelos
indígenas sublevados. Esse forte – que, à época, cumpria a função de apoiar os trabalhos
demarcatórios –estava localizavado no território de uma estância da redução de São Luís
e próximo às estâncias de outras duas povoações – São João e São Lourenço. Com o início
da demarcação do Tratado de Madri, no entanto, as tensões se acirraram, de maneira que
os indígenas das missões – sobretudo aqueles cujas estâncias se situavam próximas à
fortificação – passaram a atacar a fortaleza. Em 1754, o último desses ataques foi
empreendido por indígenas de diversas reduções no final do mês de abril, e os eventos
que sucederam parecem ter adquirido bastante notoriedade no contexto. Assim, são
referidos e comentados por vários personagens em cartas e outros registros escritos,

Publicações e Divulgação, 1969; RELATÓRIO da Transmigração e Guerra dos Sete Povos do Rio Grande do
Sul (1750-1756), por Bernardo Nusdorffer – Quinta parte. In: TESCHAUER, Carlos (org.). História do Rio
Grande do Sul dos dois primeiros séculos, v. 3. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002.
162
Archivo Histórico Nacional (Madrid) – Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 54; Archivo Histórico
Nacional (Madrid) – Sección Clero-Jesuítas, leg. 120, c. 2, n. 60.
163
Real Academia de la Historia – Colección Biblioteca de Cortes, sig. 9/2279, c. 9-11-5-151; Biblioteca
Nacional de España – Sala Cervantes (Manuscritos) – Ms. 4185.

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colocando em circulação versões diferentes, que por vezes se contrapunham


radicalmente. Isso se deu não apenas porque a iniciativa de atacar os portugueses causou
um certo impacto, mas porque nessa investida 53 indígenas foram capturados como
prisioneiros e levados a Rio Grande para serem interrogados. Associado a isso, circulavam
acusações de que os próprios jesuítas teriam participado e capitaneado os ataques, e de
que a revolta seria, assim, responsabilidade dos religiosos. Dessa forma, o episódio
também acabou servindo como “munição” para os ataques à atuação da Companhia entre
os indígenas.
O caso, então, é referido em escritos de jesuítas, espanhóis, portugueses e
indígenas, com indícios de que a história também circulava de maneira oral. Em meio a
tantas polêmicas, existem alguns pontos que parecem ter chamado a atenção de maneira
especial. O primeiro deles se refere à forma de aprisionamento: se teria sido efetuada de
maneira justa (na versão dos portugueses) ou feita à traição (em versões de indígenas e
jesuítas). O segundo envolve um motim que teria sido empreendido pelos cativos durante
a viagem a Rio Grande, diante do qual os portugueses promoveram uma matança entre os
prisioneiros, com apenas 14 sobreviventes. Quanto a esse evento, os portugueses
enfatizam a justiça da reação diante do “acinte” que representava o motim, e os indígenas
e jesuítas evocam a matança ou a crueldade do contra-ataque lusitano. O terceiro ponto
envolve os depoimentos tomados entre os indígenas em Rio Grande: os portugueses
mencionam e divulgam as respostas que corroboravam as acusações aos jesuítas (de que
escondiam riquezas, maltratavam os indígenas e enriqueciam às suas custas, isolavam os
habitantes das reduções, e, principalmente, de que eram os responsáveis pela revolta),
enquanto os jesuítas tentam refutar esses depoimentos.
Por fim, existe a questão da libertação desses prisioneiros. Depois de interrogar
diversas vezes os cativos, o comandante português – que era o general Gomes Freire de
Andrada – decide permitir que eles voltem aos seus povoados. Essa ação se vincula a uma
política de “bom tratamento” desses indígenas, buscando conquistar o seu favor e atraí-
los para os territórios portugueses (ver GARCIA, 2009). Na documentação produzida
pelos sujeitos implicados nesses acontecimentos, no entanto, o fato é interpretado de
maneiras diversas: os portugueses o citam para afirmar a sua “benevolência”, mas
também para contrastá-lo com a sua capacidade de punir os revoltosos, caso estes não se

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submetessem164; os jesuítas enfatizam os “motivos ocultos” que estariam por trás dessa
atitude do general português; e, nos escritos de autoridades espanholas, aparecem alertas
ao uso do episódio por Gomes Freire para se vangloriar e “engrandecer” a própria
figura165.
E existem, ainda, indícios de que versões sobre o episódio circulavam também de
maneira oral, entre os próprios indígenas e outros sujeitos envolvidos. Jesuítas como
Bernardo Nusdorffer166 e Tadeo Henis167 se referem ao fato de que, por volta de meados
de agosto de 1754, os prisioneiros libertados começaram a voltar às reduções. No
caminho, estes iam contando o que havia acontecido, dando conta das privações a que
haviam sido submetidos, dos interrogatórios, das ameaças e, também, de detalhes mais
pragmáticos, como tamanho das tropas portuguesas e os recursos de que elas dispunham.
São citados especificamente três indígenas de São Luís, um dos quais provavelmente era
Neranda. E em uma missiva redigida por um jesuíta anônimo168, um desses três “luisistas”
é inclusive descrito como “capaz”. Como se verá, esse foi um dos qualificativos
empregados pelos inacianos para caracterizar Crisanto Neranda.
Em meio a essa guerra de versões, o relato acerca do que acontecera durante o
cativeiro dos 53 indígenas das reduções, atribuído a Neranda, foi bastante utilizado como
“fonte” – e também como “prova” – pelos jesuítas, que o traduziram, copiaram,
disseminaram e citaram. Ao observar o conteúdo do relato, é fácil perceber o motivo para
tal: o texto corrobora a versão dos inacianos em vários pontos, e – sobretudo no que diz
respeito às descrições dos depoimentos – fornece elementos para refutar diversas
acusações feitas aos padres e ao trabalho desenvolvido por eles nas reduções, inclusive
com exposições relativamente detalhadas sobre a rotina dos religiosos e dos indígenas,
bem como das condições de vida nos povoados. Dessa forma, faz sentido que Nusdorffer

164
Esse aspecto se mostra bastante pronunciado na missiva enviada por Gomes Freire de Andrada aos
líderes da revolta indígena após a libertação dos 14 prisioneiros sobreviventes [Archivo General de
Simancas (Valladolid) – Sección Estado – Legajo 7430, n. 53].
165
CARTA del Marqués de Valdelirios a D. José de Andonaegui sobre Ingerencia de las tropas portuguesas
en las operaciones contra los Indios y noticia llegada a la Colonia de un supuesto ofrecimiento de España a
Portugal de dos Obispados en Galicia a cambio de los siete pueblos (Buenos Aires, Setiembre 1754). In:
Documentos Relativos a la Ejecucion del Tratado de Limites de 1750. Montevideo: Instituto Geográfico
Militar/República Oriental del Uruguay; El Siglo Ilustrado, 1938.
166
RELAÇÃO do Padre Bernardo Nusdorffer sobre o plano de mudança dos 7 Povos... 1969, p. 276.
167
Biblioteca Nacional de España – Sala Cervantes (Manuscritos) – Ms. 19242.
168
Archivo General de Simancas – Sección Estado, leg. 7424, n. 453-454.

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tenha se dedicado a traduzir o relato e a disseminar uma série de cópias dessa tradução
em contextos extra-reducionais. E, também, que Escandón o tenha empregado como
fonte, citando extensos trechos em um texto seu que possuía precisamente o objetivo de
contrapor as “calúnias” de que era alvo a Companhia de Jesus e de apresentar, registrar e
disseminar uma versão favorável acerca da atuação dos jesuítas nas reduções.
O emprego desse relato pelos jesuítas, além de – evidentemente – associar-se ao
fato de que o texto expressava uma versão bastante favorável aos propósitos dos
inacianos, também era pautado por uma série de justificativas que muitas vezes eram
explicitadas nos escritos dos religiosos, visando embasar o uso de um ou outro
“testemunho”, ou refutar outras versões. Como mencionado, o nome do autor do relato
não é omitido, e, qualificando esse personagem, Nusdorffer e Escandón – nos documentos
mencionados ou em escritos correlatos, como cartas a outros jesuítas – indicam que ele
era um “Indio Capaz”; que desempenhava a função de mayordomo – ou seja,
administrador – de São Luís, um cargo vinculado ao cabildo da redução169; e que ele havia
decidido registrar as suas vivências de maneira autônoma, para contar os acontecimentos
aos demais indígenas das missões.
O qualificativo de “capaz” pode ser associado às habilidades e características que
esse sujeito possuía – escrever, ler, contar, ser sensato e confiável, etc. –, e comportava,
além disso, uma dimensão de adesão ao modo de vida – cristão – que os jesuítas buscavam
construir nas reduções. Nesse sentido, é interessante mencionar que, ao longo do relato,
é revelado que Crisanto também fazia parte de uma congregação, denotando que era um
“bom cristão”. Esse sujeito inseria-se, assim, no âmbito de uma “elite” reducional,
indicando uma relação de proximidade aos jesuítas e à fé cristã. E as posições que eram
por ele ocupadas – letrado, atuante no cabildo, “capaz” – foram usadas pelos jesuítas para
afiançar esse relato e as “versões” expressadas por ele. De fato, a narrativa atribuída a
Neranda expressa pontos de vista que seriam coerentes com a posição de um cabildante

169
Aqui é interessante mencionar que Crisanto Neranda reaparece, no ano de 1768, entre os subscreventes
de uma carta enviada ao então governador de Buenos Aires – Francisco de Paula Bucareli y Ursúa – pelo
cabildo e caciques da redução de São Luís [CARTA al Señor Gobernador, San Luis, 1768 (British Library –
Add. MS. 3260). Documento transcrito, traduzido e publicado no âmbito do projeto LANGAS – Langues
Générales d’Amérique du Sud. Disponível em <http://www.langas.cnrs.fr/#/description>]. Nesse
momento, Neranda desempenhava a função de Alcaide de 1 o Voto, mantendo-se, assim, vinculado à
administração dessa povoação missioneira.

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e congregante, além de um apego a um modo de vida específico que se produzia nas


reduções.
Quanto ao emprego ou citação de “testemunhos” atribuídos a indígenas, é possível
notar – por meio da análise e cruzamento de documentos elaborados nesse contexto por
jesuítas – que, nos casos em que eram aprovados pelos religiosos, os seus emissores eram
descritos – como Neranda – como sujeitos “capazes”, sensatos, que não eram indígenas
“comuns” (ou seja, “plebeus”). Emergia, ainda, a questão de o depoimento ser fornecido
livremente, por iniciativa própria do indígena. Em contraste, os testemunhos que os
inacianos buscavam refutar eram atacados, em primeiro lugar, mencionando-se a
incompetência ou o mau-caráter dos intérpretes que haviam atuado na interlocução.
Assim, os portugueses e espanhóis, ou mesmo sujeitos provenientes da América – como
correntinos e paraguaios –, não seriam bons conhecedores do contexto das reduções e do
idioma que os indígenas falavam. Além disso, esses intérpretes eram descritos como gente
simplória, beberrões, mentirosos, maus cristãos, etc. E também eram contestadas as
condições nas quais os depoimentos haviam sido tomados: nessas circunstâncias, de
acordo com os jesuítas, os indígenas eram coagidos, levados pelo medo ou desejo de
agradar seus captores, de maneira que as informações que forneciam não deveriam ser
consideradas. A esse cenário eram contrapostas as histórias que esses indígenas
contavam após serem libertados, e que – como no caso de Crisanto – eram muito mais
favoráveis à defesa da Companhia de Jesus.
Por fim, quando se tratava de casos de indígenas que, sem serem aprisionados,
voluntariamente haviam se aliado aos inimigos dos inacianos e fornecido depoimentos
acusatórios, o caráter e a “capacidade” desses indígenas também era menosprezado.
Quanto a isso, é interessante mencionar um episódio narrado pelo jesuíta Domingo Muriel
(1918) no qual informações difamatórias acerca da conduta dos jesuítas são transmitidas
aos portugueses por um indígena letrado e instruído – ou seja, que possuía habilidades
que poderiam ser interpretadas como pertencentes a um “Indio Capaz”. Diante disso,
Muriel o desqualifica por ser fugitivo e instável, e o seu caráter é julgado porque a sua
“capacidade” é empregada para fins contrários aos propósitos dos inacianos. Nesses
casos, então, os indígenas não são descritos não como “sensatos” ou “autônomos”, mas
como “mentirosos”, “astutos” e “maliciosos”. E, é interessante pontuar, esses sujeitos
permanecem anônimos. Também é importante mencionar que Gomes Freire de Andrada,

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em uma carta ao Marquês de Pombal, também se refere ao depoimento prestado por esse
personagem170, e, ao contrário de Muriel, enfatiza o seu caráter de fugitivo das reduções
justamente como indício da sua credibilidade e autonomia em relação aos jesuítas.
Essa forma de legitimar testemunhos na qual a atribuição de confiabilidade se
pautava pelo caráter dos sujeitos responsáveis por proferir determinada informação não
era inusitada para a época, como aponta Jorge Cañizares Esguerra (2007), e, assim, a
credibilidade de um relato ou interpretação podia ser medida por critérios “elitistas” e
hierarquias raciais e sociais, considerando a posição social dos sujeitos e o seu nível de
educação, além das suas motivações. E associava-se, evidentemente, às motivações e
pontos de vista do sujeito que avaliava o seu valor. Ainda no sentido do exposto por
Cañizares Esguerra (2007), esses critérios também poderiam remeter a certos debates do
século XVIII acerca do caráter e natureza dos indígenas, evocando concepções de Antigo
Regime acerca das distinções que permeavam as hierarquias sociais: enquanto os
“plebeus” eram degenerados, preguiçosos e “incapazes”, alguns poucos – aqueles que
pertenciam às elites – eram sábios, sensatos e “capazes”.
A análise desse caso permite considerar que os indígenas das reduções, além de
estarem produzindo versões escritas e provavelmente disseminando seus relatos de
maneira oral, também encontravam a valorização desses testemunhos por outras
pessoas, constituindo-se como personagens importantes em meio a essa “disputa de
versões. No entanto, isso se dava dentro de certos limites, introduzidos pelos
enquadramentos que esses outros sujeitos conferiam às “letras” e “vozes” indígenas, fosse
pelas maneiras de hierarquizar os seus emissores, pelos critérios que empregavam na
seleção e descarte dessas informações, ou pela própria decisão de atribuir ou não a
autoria a um indígena. Assim, trata-se de um texto que, ao que tudo indica, sobreviveu
apenas através das “manipulações” de que foi alvo, observando-se também uma
impossibilidade de responder se e até que ponto o relato foi de fato uma manifestação
“autônoma”, como certos jesuítas se empenharam em afirmar, ou se a produção dele se
deu em uma situação que apresentou – em maior ou menor medida – constrangimentos,
e se o relato sofreu interpolações ou edições mais “agressivas”.

170
CARTA de Gomes Freire de Andrada a Sebastião José de Carvalho e Melo (Rio Grande, 21 de junho de
1754). In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Demarcação no Sul do Brasil. Belo Horizonte, Imprensa
Oficial de Minas Gerais, v. 22 (1928), p. 201-324.

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Diante do exposto até aqui, o que se pode afirmar é que existe uma diversidade de
“produtores” envolvidos nos processos de elaboração desses registros, fornecendo uma
dimensão de “autoria compartilhada” na qual é possível inserir, também, sujeitos
indígenas. Desde os testemunhos orais que são vertidos à escrita, até, como nesse caso
específico, registros escritos. Trata-se de um relato que é atribuído – de maneira objetiva,
por mais de um personagem e em mais de um documento – a um Guarani chamado
Crisanto Neranda. Esse indivíduo tem o seu nome e a sua condição preservados e
associados a uma narrativa em primeira pessoa, uma ênfase que nem sempre se observa
na instrumentalização de testemunhos indígenas. E isso se deu, conforme o exposto, por
questões associadas à necessidade de valorizar e afiançar a versão que ele expressava.
Por esses motivos, Crisanto Neranda foi preservado como um “autor indígena”. Portanto,
esse caso se mostra bastante produtivo como foco de análise para pensar os
condicionamentos e motivações que agiam no momento de incorporar esses testemunhos
nos textos – atualmente são empregados como fonte pelas historiadoras e historiadores
–, e que poderiam acabar implicando na sobrevivência ou não dessas manifestações no
âmbito de uma “memória escrita”.

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“PARA QUE CADA PUEBLO SE GOVIERNE POR SI”: MODERNIDADE


POLÍTICA E ATORES INDÍGENAS NA REGIÃO DO RIO DA PRATA
(1810-1821)

Felipe Schulz Praia

Neste texto, procuro elucidar as formas que os indígenas interpretaram a


conjuntura de guerra que se impunha na região do Rio da Prata durante o período
analisado171. A intenção é, acima de tudo, demonstrar como esses atores sociais que
cumpriram um importante papel durante os conflitos organizaram discursos que,
baseados no novo sistema de referências culturais e políticas que se configurava nas
primeiras décadas do século XIX, buscavam remeter-se a experiências coletivas da
população indígena da região, a fim de angariarem a adesão de cada vez mais braços para
a guerra. Em outras palavras, busco responder às perguntas: de que modo esses novos
ideais – e, consequentemente, as disputas que se originam da crise que se apresentava no
período – eram lidos pelos ameríndios? É possível falar em “intepretações nativas” desses
conflitos?
Defendo que é possível falar em “interpretações nativas” e que elas respondiam a
lógicas específicas das comunidades indígenas, pois essas detinham uma experiência
histórica distinta de outros setores da sociedade, na qual pesavam, por exemplo, a
exploração de sua mão de obra e a constante disputa por suas terras, ações associadas à
figura do “homem branco” e do europeu na documentação172.


Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.
171
No espaço do vice-reino do Rio da Prata (que abarcava, em parte ou inteiramente, os territórios dos
atuais países Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai), inicia-se no ano de 1810 o conflito com as
autoridades espanholas, num movimento encabeçado por Buenos Aires, o porto de maior relevância
comercial e capital do vice-reinado. Nesse sentido, de um lado o grupo dirigente dessa cidade propõe um
projeto de Estado unitário e centralista, enquanto algumas províncias – formadas, principalmente, em torno
de cidades de importância comercial e política durante o período colonial – reclamam maior autonomia e
igualdade de direitos. Ao longo dos conflitos, é construído o projeto federalista defendido por José Artigas
– que inicialmente lutou ao lado das forças de Buenos Aires – e que logra angariar o apoio de grande parte
da campanha rural até ser derrotado em 1820, através de uma aliança entre portugueses e o governo
portenho.
172
A documentação consultada constitui-se basicamente de correspondências entre autoridades militares
e políticas envolvidas nos conflitos, bem como de relatos de viajantes que estiveram presentes nesse espaço
durante os anos de 1810 e 1821. Ainda que sejam escassos, é possível encontrar informes e cartas escritas
por lideranças guaranis. Em sua grande maioria, as fontes analisadas estão compiladas no Archivo Artigas
que se trata de um compêndio de documentos relativos a José Artigas e ao movimento liderado por este.

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Dessa forma, acredito ser possível perceber nas fontes, uma leitura do conflito não
somente em termos de “americanos versus europeus” ou de “colônia versus metrópole”,
como repercutido por uma historiografia tradicional que não levou em consideração a
atuação de setores menos privilegiados da sociedade; e que houve, ao longo dos diversos
conflitos que assolaram a região do litoral do rio Uruguai entre os anos de 1813 e 1820,
um forte apelo a um pertencimento à categoria de “índio”173 como recurso mobilizador
em oposição à figura do “branco/europeu” opressor, em especial no discurso artiguista.
Contudo, é preciso pontuar que o apelo a esse tipo de pertencimento se dá em função da
conjuntura conflituosa que se vivia à época. Esse é um espaço de fronteira, em que os
vínculos sociais assumiam grande relevância e um indivíduo, a partir de seu
posicionamento em relação a essa rede de vínculos, poderia identificar-se com diversas
formas de pertencimento.

Vocabulário político moderno nos discursos de lideranças indígenas


Durante os anos de 1812 e 1821, as principais batalhas envolvendo os sublevados
artiguistas, as forças do Governo de Buenos Aires e os luso-brasileiras ocorreram no
espaço das antigas missões jesuíticas, ao longo do Rio Uruguai. A documentação dá conta
de que durante todo o ano de 1813, se deram diversos enfrentamentos em função de
ataques de partidas artiguistas, em sua maioria compostas por indígenas, a povoados da
região, especialmente, nos de Yapeyú e de Mandisoví, localidades que estavam sob
jurisdição do governo de Buenos Aires à época. Artigas ainda não havia rompido
totalmente com os portenhos, mas nessa região já se pode notar a atuação de lideranças
guaranis que tinham ligações com o protector de los orientales. Domingo Manduré,
indígena oriundo das reduções guaraníticas ganhou fama durante esses episódios. Sendo

Composto por trinta e seis tomos, editados entre 1950 e 2003, essa coleção traz uma vasta gama de
documentos encontrados em arquivos de diversos países, como Brasil, Argentina, Uruguai, Portugal e
Espanha. O Archivo Artigas está totalmente disponível em domínio público
(http://www.bibliotecadelbicentenario.gub.uy).
173
Jacques Poloni-Simard deixa claro a necessidade de se tomar a categoria “índio” a partir de uma
perspectiva crítica, pois falar em “índios” é falar em uma categoria colonial, que surge e tem vigência durante
o marco da Colônia: “La definición exterior que se solía otorgar a los indivíduos en las colonias hispano-
americanas tiene la ventaja de oferecer una entrada clara para delimitar el objeto por estudiar, pero su
manejo acrítico es algo problemático puesto que reproduce el modelo de organización vigente durante el
período considerado, con el riesgo de reificar las repúblicas – y aun las castas –, dejando de lado no
solamente las diversas condiciones sociales mas allá del status jurídico, sino también los processos de
movilidad y de diferenciación así como las pertenencias múltiples” (POLONI-SIMARD, 2000, p. 88)

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orientado por José Artigas, Manduré tornou-se o principal “cabeça” das ações contra as
autoridades portenhas no Litoral174.
Passados dois anos, Manduré não figurava mais como o principal líder guarani
dentro do movimento artiguista. Em 1815, quando a Liga de Los Pueblos Libres alcança
sua maior adesão, José Artigas nomeia a Andrés Artigas como Comandante Geral das
Missões, cargo que exerceu até 1819, quando é aprisionado pelos portugueses. Durante
esse período, Manduré seguiu em comunicação com Artigas e até mesmo lutou contra os
portugueses no ano de 1816, mas não era mais o principal porta-voz do líder oriental nas
Missões, ainda que mantivesse o cargo de comandante de um dos povoados da região.
Neste sentido, é possível apontar essas duas figuras como os principais difusores
das ideais preconizados por José Artigas na zona do Litoral, em momentos distintos.
Ambos produziram documentos em que se dirigem aos indígenas da região e nos quais
pode-se perceber a utilização de um vocabulário típico da modernidade política mesclado
com uma gama de referências que dizem respeito, de forma mais específica, às
experiências vividas pelos indígenas missioneiros. Ao mesmo tempo, ao menos na
documentação consultada, são raros os ofícios trocados entre os próprios indígenas, o que
dá grande importância para estes documentos gerados por Manduré e Andresito.
Interessa, nesse primeiro momento, destacar quais eram os principais elementos
presentes nestes discursos para, posteriormente, entender-se de maneira mais complexa
a forma como foram compreendidas pelos habitantes dos povoados175.
Durante os conflitos do ano de 1813, Domingo Manduré trocou algumas
correspondências com o cabildo indígena do povoado de Yapeyú. Infelizmente, até o

174
A zona na qual se encontravam diversos povoados às margens do rio Uruguai (desde a Banda Oriental
até o território luso-brasileiro) é denominada na historiografia argentina e uruguaia como “Litoral”. Nesse
espaço a presença de povos de guaranis missioneiros era grande.
175
No entanto, essa não seria a primeira vez que os indígenas da região entrariam em contato com o
vocabulário político moderno. Capucine Boidin dedicou-se a examinar a Proclama a los Naturales de los
Pueblos de las Misiones, escrita pelo representante da Junta de Buenos Aires, Manuel Belgrano, em 1810,
bem como outros documentos escritos por este e que foram traduzidos para a língua guarani. O objetivo
principal da investigação empreendida pela autora é demonstrar como certos conceitos imprescindíveis do
vocabulário político moderno foram traduzidos para a língua guarani a partir da estratégia de tradução
sensus de sensu (o que indica que as traduções foram feitas por indígenas pertencentes à elite missioneira),
em que “no se procura traducir cada concepto (libertad, propriedad, seguridad, derechos naturales) sino
que se eligen palavras que tienen sentido para los traductores” (BOIDIN, 2014, p. 6). Dessa forma, seu foco
não é entender a tradução literal de cada uma das palavras escritas em castelhano nos documentos e sim
“examinar, desde la lógica própria de las versiones en guaraní, cualés son sus conceptos claves” (Ibidem).
Ver também: BOIDIN, 2016.

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momento só foi possível ter acesso direto a uma dessas cartas, com data do dia 8 de
setembro e que será tomada como referência para a análise. Nela, Manduré responde a
duas reclamações feitas pelos cabildantes, em relação a uma série de roubos e outras
desordens atribuídas às suas tropas. Em tom de conciliação e procurando convencer as
autoridades, faz um discurso em favor da causa que defende e rechaça as acusações: “[...]
nunca ha sido ni sera nuestro pensar declarar por enemigos a nuestros proprios
hermanos, quanto más el creer el que yo me interne donde no sea mandado, quando mui
distante es el pensar de nuestro Jefe”176. Já no início da carta se pode notar o apelo ao fato
de que, como indígenas, se encontram em condição de “irmãos” e não de inimigos, algo
enfatizado diversas vezes pelo autor do texto.
Ainda mais curioso é a insistência nas ideias de “liberdade”, de “autogoverno” e de
“igualdade”, questões sempre colocadas sob a bandeira da soberania particular de los
pueblos177 defendida por José Artigas. Para Manduré, a liberdade é algo que é conferido
aos indivíduos, por Deus, no momento em que nascem, configurando-se assim num direito
que cabe a todos:
[...] hermanos savemos que dios nos doto al criarnos con la liberdad, y
savemos que ante el somos iguales, y lo mismo ante la Lei, todas estas
reflexiones son las que me motivan decir a Vms. que llevan otro
fundamento178.

Manduré, demonstra neste trecho, a expressão de uma ideia de liberdade que está
arraigada na sociedade rioplatense desde pelo menos o século XVIII179. Como demonstra

176
AA. Domingo Manduré al Corregidor, Cabildo y Mayordomo de Yapeyú. Acampamento de Arapey, 8 de
setembro de 1813, p. 392
177
O respeito à soberania particular dos povos e os objetivos do projeto artiguista foram resumidos assim
por Ana Frega: “El proyecto artiguista contempló la unión de los pueblos de la Banda Oriental
del Uruguay bajo una autoridad común – la constitución de la Provincia Oriental – y postuló en
términos generales el derecho de los pueblos a constituirse en provincias, sosteniendo que la unión,
para ser firme y duradera, debía edificarse a partir del reconocimiento de las soberanias
particulares. Al interior de las provincias, a su vez, buscó defender la posición de “los más infelices”.
Fundación de una república en el Río de la Plata basada en el respeto de la soberanía de los
pueblos, la libertad civil y la igualdad: ese era el ‘programa radical’ de la revolución artiguista” (FREGA,
2002, p. 1).
178
AA. Domingo Manduré al Corregidor, Cabildo y Mayordomo de Yapeyú. Acampamento de Arapey, 8 de
setembro de 1813, Tomo XI, p. 392
179
Retomando as definições que aparecem no Vocabulário Português e Latino (1717-1727) de Rafael
Bluteau e também na edição de 1734 do Diccionario de la Real Academia Española (e que permanecerá
invariável nas edições de 1780, 1783 e 1791), Gabriel Entin e Loles Gonzáles-Ripoll afirmam que a liberdade
era entendida a partir de uma visão cristã, configurando-se numa faculdade outorgada por Deus ao homem
e que lhe dava o direito de fazer e dizer o que quisesse, a não ser que estivesse proibido por força ou por

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Capucine Boidin, esse conceito não era estranho aos guaranis missioneiros. Nas já
referidas cartas escritas por Belgrano em 1810, Boidin encontrou três conceitos chaves
nos textos: liberdade, propriedade e seguridade (BOIDIN, 2016). Estas três palavras são
traduzidas para o guarani por apenas uma expressão, qual seja ako libre pende-ko-háva180,
que significa, em castelhano, “está la libertad vuestra”. Esta expressão se referia a uma
categoria jurídica que já era conhecida pelos indígenas das missões há uma década, no
momento em que Belgrano publica sua Proclama, e está ligada a uma experiência coletiva
dos guaranis que se desenrola nos primeiros anos do século XIX: o processo de
liberalização de alguns indígenas do regime de trabalho de comunidades, a partir do
decreto do então vice-rei de Buenos Aires, marquês de Avilés, publicado no dia 18 de
fevereiro de 1800. Assim como nos textos de Belgrano, a palavra “libertad” e a palavra
“libre”, aparecem em cartas escritas em guarani no início do século XIX sem tradução,
sendo aplicada, geralmente, àqueles ameríndios que haviam sido liberados do regime de
comunidades. Desta forma, como demonstra Boidin, esta palavra “ya está integrada en el
hablar cotidiano y los juegos de etiquetas locales” (Ibidem, p. 42).
A novidade trazida pela concepção do líder guarani é de que a liberdade que
buscavam e o rompimento com essa situação de inequidade que se encontravam passava
necessariamente pela ideia de “autogoverno”. É justamente neste ponto que reside,
segundo Manduré, a diferença de “fundamentos” que guiam as suas ações e as ações dos
cabildantes de Yapeyú:
Veo que Vms, siguen una verdadeira defensa segun se dignan comunicarme,
pero lleva otro fundamento. [...] El derecho natural es uno, y el derecho de
libertad, que dicen Vms. otro la sujeción a nuestros superiores es mui justa,
pero es tiempo que conoscamos que unos trabajan de una suerte y otros de
otra, unos llevados del interes, y otros no; asi como muchos entre nosotros
mismos no procuran más que interpretarnos las cosas a su paladar. Asi
queridos Hermanos muchos años há que nos han governado otros, dirijanse
Vms. de por si y veran si es uno cierto lo que prevengo a Vms., pues en hacer
esto me parece ni es faltar a la obviedad181.

direito: “se trata de una libertad natural limitada por leyes – divinas y humanas –, que orientan la acción del
hombre de acuerdo a la razón” (GONZÁLES-RIPOLL & ENTIN, 2014, p. 18). A construção da noção de
liberdade se dá também em oposição à servidão em condição de escravo. No entanto, os indígenas estão
entre estes casos que a lei – muito mais humana que divina – irá cercear sua liberdade.
180
Capucine Boidin explica que o sufixo -hava que aparece na expressão se refere a uma situação que está
no futuro, ou seja, ako libre pende-ko-háva remete “àqueles que serão livres” e não aos que já gozam dessa
condição (BOIDIN, 2016).
181
AA. Domingo Manduré al Corregidor, Cabildo y Mayordomo de Yapeyú. Acampamento de Arapey, 8 de
setembro de 1813, Tomo XI, pp. 392-393

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Neste trecho, Domingo Manduré demonstra que a noção de que os indígenas


devem governar-se por si mesmo não o impede de dar importância ao respeito de uma
hierarquia de poder. No entanto, entende que as autoridades portenhas, às quais o cabildo
de Yapeyú estava sujeito, atuavam com interesses diferentes daqueles de José Artigas.
Essa concepção está ligada ao fato de que enquanto o governo de Buenos Aires ainda
mantinha a imposição de autoridades externas para cargos administrativos do alto
escalão na região missioneira, José Artigas estimulava que os próprios indígenas
deveriam governar seus povoados182.
A argumentação usada por Manduré mostra semelhanças com a que encontramos
numa proclama de Andrés Guacurarí Artigas direcionada aos habitantes indígenas dos
povos missioneiros183 que estavam ainda sob domínio português, no ano de 1816. Neste
momento, Andresito já ocupava o cargo de Comandante Geral das Missões, desde
fevereiro de 1815. Afirmando que “por un favor del Cielo, he sido llamado al mando de las
Misiones”184 e atribuindo também as vitórias militares que obtivera à ação divina, o líder
indígena afirma logo no início do texto:
Por tanto atendiendo, e inteligenciado que las mismas, o aún mayores
razones concurren en mi para libertar los siete Pueblos de esta banda del
tiranico domínio del Portugues baxo el qual han estado quince años los
infelices Indios gimiendo la dura esclavitud185

Mais uma vez fica nítida a ideia de que os indígenas sob domínio português não
estão em liberdade. Ao contrário, encontram-se em condição de “escravidão”. Ainda que
considerados como vassalos livres do rei, os indígenas eram submetidos a trabalhos

182
Essa concepção de Artigas é expressa em diversos documentos. Em correspondência do ano de 1815
endereçada a José de Silva (à época governador de Corrientes), José Artigas afirma ter recebido reclamações
dos “povos de índios” de Santa Lucia, Itati e de las Garzas (sob jurisdição de Corrientes) sobre a má conduta
de seus administradores, ao que comenta: “Yo no lo crei estraño por ser una conducta tan inveterada: y ya
es preciso mudar esa conducta. Yo deseo que los Indios en sus Pueblos se goviernen por si para que cuiden
de sus intereses como nosotros de los nuestros” (AA. José Artigas a José de Silva. Paraná, 9 de maio de 1815,
Tomo XXIX, p. 57).
183
É importante ressaltar que diferentemente do ofício escrito por Manduré (que é dirigido às autoridades
do cabildo de Yapeyú), o texto de Andresito é destinado a um público mais amplo, o que implica a utilização
de recursos linguísticos grandiloquentes. Ainda assim, acredito que isso não impeça de pontuar
semelhanças interessantes nos discursos de ambos.
184
AA. Proclama de Andrés Guacurarí y Artigas, Capitán de Blandengues y Comandante General de Misiones a
los naturales de esa província (...). 1816, Tomo XXIX, p. 44
185
Ibidem.

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forçados e essa prática ainda é mantida ao longo do século XIX na região do Rio da Prata.
Não são poucos os documentos que dão conta da exploração de mão de obra indígena
nesse período. Em 1809, Francisco das Chagas Santos, português que assumira o cargo de
Comandante da fronteira das Missões neste mesmo ano, envia aos corregedores, cabildos
e administradores dos povoados uma série de determinações a serem cumpridas por
estes com o objetivo de
remediar no modo possível e coibir os muitos, e diferentes abusos, que
infelizmente se acham inveterados nesta Provincia de Missões em tão
considerável prejuízo, e grandíssimo atraso dos 7 Povos, e dos habitantes
Guaranis que pouco resta para sua total subversão a Vmces186.

A necessidade de tomar medidas em relação a esses assuntos, deixa claro a


gravidade do problema aos olhos do comandante português e expõe uma realidade à qual
Andresito irá se referir em seu discurso no ano de 1816, quando afirma que os indígenas
só irão alcançar sua liberdade no momento em que tomarem para si o governo de seus
povos:
[...] con el fin de dexar a los Pueblos en pleno gose de sus derechos, esto
es, para que cada Pueblo se govierne por si, sin que ningun otro
español, Portugues o qualquiera de otra Provincia se atreva governar,
pues habran ya experimentado los Pueblos los grandes atrasos, misérias
y males en los governos del Español y Portugues187

“Índios versus brancos”


Ao se ater a leitura de documentos escritos por José Artigas ou mesmo por
autoridades ligadas ao movimento encabeçado por este, o que se observa é um apelo à
expropriação dos bens dos europeus que residiam na região, assim, delimitando de
maneira precisa quem era o inimigo a ser combatido.
Na região do Litoral, os ideais de “liberdade” e “autogoverno” somados a essa
delimitação clara de que o inimigo constituía-se no europeu e nos administradores dos
povoados levou a ações radicais que, num período de acirramento deste antagonismo

186
Francisco das Chagas Santos aos Senhores Corregedor Cabildo e Administrador do Povo de.... publicado em
Revista do Museu Júlio de Castilhos e Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul, janeiro de 1952, n.
1, p. 419. Ao longo deste documento, Chagas Santos insiste principalmente na necessidade de acabar com o
“pernicioso costume” dos administradores de “disporem a seu arbítrio dos Guaranis assim homens, como
rapazes e raparigas, dando-se a quem lhe pede, sem nenhuma atenção ao desarranjo de sua [sic] famílias”
(Ibidem) e também dar fim ao trabalho forçado de guaranis nas estâncias da região.
187
AA. Proclama de Andrés Guacurarí y Artigas, Capitán de Blandengues y Comandante General de Misiones a
los naturales de esa província (...). 1816, Tomo XXIX, p. 44 [grifo meu]

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entre ameríndios e brancos/europeus, buscaram não somente tomar seus bens como
também assassinar àqueles que eram identificados como seus opositores. Alguns
acontecimentos envolvendo justamente os líderes Manduré (em 1813) e Andresito
Artigas (em 1818) são expressivos dessa leitura “nativa” dos conflitos.
Em abril de 1813, o português Francisco da Costa Leiria relata ao governador Diego
de Souza que encontrava-se no povo de Yapeyú e, a pedido do próprio governador, dava
notícias das movimentações dos inimigos. O português teve a “infelicidade” de presenciar
um motim neste povoado (que, como se pode inferir por outros documentos, era liderada
pelo já citado Domingo Manduré):
Logo se alçaram duas Companhias dos Indios fazendo muitas atrocidades,
reunindo assim todos os mais que se lhe apresentavam; por não enfastiar
mais a V. Ex.ª levantou-se a Indiada de Japeju. Apanharam-se as Cartas do
Comandante desta Partida para o Cabildo de Japeju, nelas assinalando o
dia que vinham ao Povo para todos se reunirem e matarem o Cura e
mais Espanhóis que houvesse, seguirem o Tenente Governador para
lhe fazerem o mesmo, e continuarem na matança de todos os
Espanhóis que estivessem pelos Povos, eu como comprador do Povo
não escapava, já tinham nomeado um para Rei, e viverem sobre si a
forma e maneira dos Minuanos188

O documento traz valiosas informações para entender a repercussão do discurso


político moderno entre os indígenas, especialmente em sua versão artiguista. Em
primeiro lugar, fica clara a identificação das autoridades não indígenas como os inimigos
a serem combatidos. Os alvos da perseguição empreendida pelos indígenas são o cura do
povoado, o Tenente Governador Pérez Planes, os espanhóis e também o autor da carta
Leiria. Entendo, dessa forma, que a difusão desses ideais entre os indígenas permitiu,
àqueles que aderiram à causa artiguista, enxergar no conflito entre americanos e
europeus, também uma oposição entre índios e brancos, associando essas novas
referências políticas modernas à realidade local e buscando a eliminação das autoridades
não indígenas presentes em seus povoados, ao mesmo tempo que procuraram também
acessar recursos materiais pertencentes aos brancos e europeus. De forma alguma isto
significa que os indígenas não continuaram sustentando seus vínculos com indivíduos que

AA. Francisco Soares da Costa Leiria a Diego de Souza. Passo de Yapeyú, 26 de abril de 1813, Tomo XI, p.
188

321 [grifos meus].

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poderiam ser identificados como brancos e europeus189, mas simplesmente que, nesta
conjuntura revolucionária, o impacto desse discurso político moderno levou os
ameríndios a constituir uma percepção de que a presença desses “estrangeiros” no
território que ocupavam era um empecilho ao exercício de sua autonomia, justificando
assim inclusive o assassinato destes indivíduos
Em segundo lugar, ao elegerem o “modo de vida minuano” como exemplo a seguir,
os guaranis que adentraram Yapeyú, em abril de 1813 deixam transparecer uma
interpretação bastante particular dos ideais trazidos pelo discurso político moderno. Não
se trata de afirmar que pretendiam adotar por completo os costumes e práticas dos
charruas e minuanos. No entanto, atrelam o exercício de sua soberania a uma forma de
organização política em que as lideranças nativas detinham autonomia nas decisões
relativas ao grupo e não necessitavam responder a nenhuma autoridade externa às suas
comunidades (a não ser quando travavam alianças com estas).
Da mesma forma, a atuação de Andrés Artigas quando de sua entrada na cidade de
Corrientes em 1818 a fim de restituir ao poder Juan Bautista Méndez, artiguista que
estava em posse do governo desta cidade e fora sacado do seu cargo através de uma
revolta da elite correntina, demonstra também o aparecimento de um dualismo que
opunha “índios” a “brancos/europeus”.
Quando já havia destituído o cabildo e se encontrava como autoridade máxima de
Corrientes, o líder guarani tratou de organizar duas ou três festas para as quais convidou
os “principais vizinhos” da localidade. Mrs. Postlewaite – filha de um rico comerciante
inglês radicado nesta cidade – descreve que, ainda que estivessem todos à mercê de
Andresito, os correntinos e especialmente as mulheres não conseguiam disfarçar o
menosprezo com que olhavam para os índios. Assim, no momento marcado para as
celebrações, os convidados não se fizeram presentes, o que, segundo a autora do relato,
deixa Andresito extremamente ofendido. Tendo perguntado o porquê da ausência, lhe
fora respondido: “¿Quién puede darse el trabajo de concurrir a bailes de índios?” (Ibidem,

189
Em relação a este ponto, acredito ser bastante esclarecedor o fato de que quando Andrés Artigas adentra
a cidade de Corrientes em 1818, apesar de tomar as medidas de prender os filhos dos “notáveis” da cidade
e de obriga-los, mais tarde, a limpar a praça sob um forte calor, o líder guarani mantem boas relações com
o pai da autora da carta, um rico comerciante inglês pertencente à elite local, inclusive visitando sua casa
por ocasião de uma janta que fora oferecida a ele e os oficiais de seu exército (ROBERTSON & ROBERTSON,
2000). Ao mesmo tempo, são diversas as referências nas fontes à manutenção de relações comerciais entre
indígenas, tanto guarani quanto charruas, com portugueses, bem como a sua união para outros fins.

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p. 173). A partir de então, Andresito busca castigar aqueles que o ofenderam e, mais uma
vez, recorre ao recurso da inversão simbólica da hierarquia social:
Andresito había soportado muchas demostraciones públicas de
menosprecio por parte de la ciudad, dando más pruebas de indulgencia que
las que hubieran podido esperarse, pero esto último lo onfedió mucho y
desde entonces se mostró decidido a castigar a sus enemigos.
‘- Entonces – dijo – ¿no quieren venir a los bailes de índios?... Muy bien,
vamos a ver...’
Y así, en la mañana siguiente (un día muy caluroso) los tambores tocaron a
las armas y todas las personas respetables – excepto don Isidoro Martínez,
el anciano Durán y mi padre – fueron reunidos en la plaza y obligados a
cortar hierbas hasta dejarla limpia de un extremo a outro. Tuvieron que
tabajar así todo el día bajo un sol abrasador y la verdade es que, no obstante
la compasión que provocaban los obreros forzados, la ocurrencia del índio
inspiraba risa también. Porque – según entiendo – la plaza no se vio nunca
tan limpia como entonces. Mientras los hombres trabajaban en esta suerte,
sus esposas e hijas fueron llevadas al cuartel y obligadas a bailar durante
todo el día con los índios, afrenta ésta mucho más imperdonable que la labor
manual impuesta a las personas del sexo masculino (Ibidem, pp. 173-174).

O menosprezo com que os correntinos olhavam para os indígenas, como descrito


por Postlewaite, e os impactos das ações de Andresito podem ser melhores entendidos
tendo em mente que aquela cidade constitui-se no principal núcleo urbano do espaço
entre o rio Uruguai e o rio Paraná – intitulado na historiografia argentina como
Mesopotâmia (HALPERÍN DONGHI, 1994), em que se prezava pela manutenção das
diferenças sociais, entendida como natural dentro de uma mentalidade de Antigo Regime:
Su organización urbana reflejaba el buen orden, moral y jerarquias de un
espacio de Antiguo Régimen. El honor, en sus variables de precedencia y
virtude, era celosamente preservado por los vecinos, cabezas del cuerpo
social, quienes conformaban un gobierno de viris prudens. Las diferencias
sociales se visualizaban en el espacio como parte de un orden natural, y las
celebraciones que allí tenían lugar usualmente eran uma forma de auto-
representaciones de la sociedad, en la que se mostraban los lugares del
poder (WILDE, 2009, p. 342)

A estratégia utilizada por Andresito é justamente a inversão – ainda que


temporária e simbólica – de uma hierarquia social típica da situação colonial e deixa
manifesta sua sua intenção de colocar o “índio” em uma posição diferente daquela em que
se encontrava Assim, pode-se dizer que quando Andrés Artigas – ainda que tenha optado
por uma ação menos radical que a dos indígenas sublevados de 1813 – faz com que os
principais vizinhos de Corrientes limpem a praça da cidade e obriga suas mulheres e filhas

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a dançarem com os índios, estava virando “de pernas para o ar” o corpo social ali
estabelecido e não é difícil imaginar o quão estupefatos ficaram os habitantes da cidade.

Considerações finais
A partir da análise dos textos redigidos por Domingo Manduré (em 1813) e
Andresito Artigas (em 1816) fica expresso o apelo, com o objetivo de angariar apoio, ao
pertencimento a uma categoria de ordem colonial e, a qual, estavam inseridos todos os
interpelados por sua fala: a categoria “índio”190. Não se trata de afirmar que esses
indivíduos se identificavam única e exclusivamente como “índios” e que procuravam
atuar somente em função deste pertencimento, podendo se posicionar de formas distintas
de acordo com as mudanças durante os conflitos. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar
que muitos indígenas não se sentiram contemplados pelos discursos proferidos por essas
lideranças.
No entanto, é inegável que, em função da conjuntura que se impunha – de
questionamento a uma série de premissas antes dadas como “naturais” na sociedade a
partir das concepções modernas que estavam se difundindo –, a identidade indígena
assumia neste espaço, cada vez mais, um sentido social. E esse apelo social crescia em
oposição à figura de seu opressor, associada ao homem branco e, mais especificamente,
ao europeu. Dessa forma, quando Manduré declara a seus hermanos cabildantes de
Yapeyú que assim como são iguais perante a Deus, também o são perante a lei deixa
exposto senão o objetivo de romper com o estatuto jurídico dos indígenas na ordem
colonial, ao menos uma visão de que, diferentemente do que sua condição jurídica
expressava (ou seja, que eram “menores” e que necessitavam ser “governados”), os
indígenas podiam exercer seu próprio governo191.

190
Não é à toa a utilização das palavras hermanos e semejantes, além do fato de que Andresito sempre assina
como Andrés Guacurarí Artigas quando dirige a palavra aos ameríndios e como Andrés Artigas quando está
em comunicação com indivíduos não indígenas.
191
Guillermo Wilde ajuda a entender a contraposição da ideia de “ser índio” postulada por Manduré e
Andresito à condição jurídica ocupada pelos ameríndios na ordem colonial quando afirma que a Coroa
espanhola tentou, através de leis, impor “normativas tendientes a incorporar a las autoridades nativas al
sistema jerárquico de la Colonia, reconociéndoles sus privilegios preexistentes, pero también limitando su
ascenso” (WILDE, 2006, pp. 125-126). Nesse sentido, é expressiva a proibição contida na Recopilación de
Leyes de los Reynos de Las Indias, de 1681, a qual impedia os caciques de autointitularem-se “señores de sus
pueblos”, somente podendo chamar-se de “caciques” ou “principales” (Ibidem). É justamente em oposição
à essa intenção do Estado de controlar os indígenas e em oposição também à ideia de que não eram capazes
de se governarem que Manduré e Andresito construíram seus discursos, enfatizando a necessidade de
alcançar sua liberdade a partir da promoção do ideal de “autogoverno”.

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Ao mesmo acredito que seja possível enxergar o surgimento de uma interpretação


local que destoa daquela propagada pela historiografia nacionalista da segunda metade
do século XIX e do século XX. Essa interpretação respondia a lógicas específicas das
comunidades indígenas e explicitava uma oposição entre “índios” e “brancos”, distinta
daquela luta entre “americanos” e “europeus” que era travada num contexto mais
abrangente.

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PARTE 3

EMANCIPAÇÕES E PÓS-ABOLIÇÃO

Fernanda Oliveira
Paulo Roberto Staudt Moreira
Rodrigo de Azevedo Weimer

O Simpósio Temático Emancipações e Pós-Abolição insere-se nas discussões da


nova historiografia sobre escravidão e liberdade produzida, sobretudo, a partir da década
de 1990 no Brasil e do GT homônimo da ANPUH Nacional ativo desde 2013. A referida
historiografia tem problematizado os sentidos da liberdade e a centralidade da ideia de
raça para as experiências dos ex-escravizados; seus descendentes; e projetos e políticas
dos grupos dirigentes, na vigência da escravidão e além dela. A partir de então se
consolidou no Brasil o campo de pesquisa das Emancipações e Pós-Abolição que deu
origem ao mencionado GT. Neste ST, em diálogo com as referidas discussões, interessam-
nos pesquisas que investiguem as experiências negras, com atenção às diretamente
vinculadas aos significados de liberdade, gênero, racialização, memória da escravidão,
mundos do trabalho, espaços e dinâmicas de sociabilidade e trajetórias coletivas e
individuais, no mundo rural e urbano, durante a escravidão e no pós-abolição brasileiro e
dos demais países das Américas. Destacamos que são de interesse estudos sobre racismo
a partir das relações entre as ideias de raça negra e branca.

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O QUILOMBO COMO LUGAR DA MULTIPLICIDADE: INTERPRETAÇÃO E


NARRATIVAS HISTORIOGRÁFICAS

Vinícius Finger

A historiografia brasileira é marcada pelos movimentos políticos-culturais que


transformaram nossa sociedade. É possível dizer, que nenhuma ocorrência foi tão
traumática para a história brasileira do que o tráfico, aprisionamento e escravidão de
comunidades africanas e indígenas, por centenas de anos, ao longo da formação de nossa
estrutura social. Não só isso, mas a escrita da história brasileira especificamente, foi
influenciada pelos contextos sociais por onde se constituíam os sujeitos pesquisadores.
No caso, a exclusão de imensos núcleos populacionais presentes durante a formação de
nosso país dos meios de poder político e econômico, ocasionou na construção de
narrativas nacionais que ignoravam ou ativamente intentaram apagar, a vivência desses
sujeitos excluídos da sociedade brasileira. Mulheres, negros, indígenas, escravos,
trabalhadores pobres... enfim, uma multiplicidade de vidas ignoradas, excluídas dos meios
e práticas de produção do saber.
O debate contemporâneo sobre as características da cultura, foi desenvolvido a
partir de questionamentos sobre a formação individual dos seres. Essa problematização
do ser, em sua individualidade, contemplou novas abordagens de pesquisa sobre os
processos subjetivos. Como um sujeito se constituiria dentro de uma rede de relações
culturais? Ao serem tomados os princípios de multiplicidade das relações culturais e
subjetivas, as análises culturais sofreram alterações quanto aos seus métodos e meios de
análise. Ao invés de problemáticas voltadas as formações culturais coletivas, onde se
buscavam contrapor o “eu” e o “outro” ou “nós” e “eles”, novos estudos etnográficos,
passaram a se dedicar a analisar processos de formação individual dos sujeitos em meio
ou em transição a diversas culturas.
De modo que as problemátizações sobre a multiplicidade subjetiva dos seres,
contribuiram para este “giro” nas pesquisas culturais recentes. Ao invés de serem
apresentadas perguntas a grandes blocos simbólicos de uma sociedade, o questionamento
etnográfico atual, passou a tentar pensar a cultura como um constante processo criativo

Doutorando Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.


Contato:< vfinger2@hotmail.com>.

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dos seres. Uma problemátização, obviamente, moldada por questionamento


cosmopolítas. Sobre lugares onde o sujeito pode percorrer diversos posicionamentos
culturais em uma vivência. No caso, não seria uma questão da cultura a qual o sujeito
pertence, mas com quantas culturas ele é capaz de criar relações de significação. Segundo
Stuart Hall, expoente da pesquisa cultural identitária contemporânea, o estudo
antropológico deveria se focar, não nas estruturas simbólicas/mitológicas produzidas por
uma sociedade, já que estas são tão plásticas e mutáveis quanto os seres reconhecidos
dentro delas. Mas no estudo das práticas de apropriação cultural individuais. De como os
seres constituem suas identidades culturais (HALL, 2005). Logo, a pesquisa cultural,
deveria estar pautada pela observação dos modos e meios de constituição dos seres
dentro ou através dos processos de apropriação ou negação de diferentes formas da
cultura.
As concepções sobre a identidade moderna, fundadas nos princípios de
humanidade universalistas característico do Iluminismo, não mais funcionariam para
compreeender a complexidade das esperiências identitárias do sujeito pós-moderno.
Enquanto que a sociologia do século XIX havia apontado que a constituição de uma
identidade individual, ocorreria entre as relações de força de uma individualidade com as
estruturas sociais (o interno e o externo que constituem o ser). Modo pelo qual, as
identidades individuais eram finalmente “costuradas” a estrutur social. Esta ocorrência já
não mais se demonstraria verdadeira na sociedade global contemporânea (HALL, 2005,
p. 11-12). Condizentes na formação da identidade pós-moderna, estariam os conceitos de
complexidade, diversidade e inconstância. No sentido, em que a fragmentação das formas
sociais da vivência civil e o impacto da desregulamentação da relação “Estado-nação e
sujeito”, produzida pela a ação dos fluxos internacionais do capital neoliberal, os meios de
constituição identitários característicos da cultura ocidental acabaram por se deslocar da
relação “sujeito-estrutura”, para “sujeito-sujeitos”.
Essa nova forma de constituição identitária, não mais garantiria a estabilidade das
vivências sociais do indivíduo. A cultura, fragmentada e diversificada pelas novas
ordenações do poder econômico de consumo, em seus modos de ação nas práticas
subjetivas dos seres, produziria formas relacionais entre o mercado e a identidade. Não
tratamos mais de uma identidade ou de outra, mas de um constante processo identidade,
característico da vivência social contemporânea. Não uma vida (no sentido em que tais

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identidades não se constituiriam biológicamente), mas uma vivência, cuja trajetória


individual do ser, estaria maracada por diversas, contraditórias e por vezes, incompletas
formas de auto significação. Enquanto que o “eu” não constituiria o centro destas
multiplas vivências identitárias, a noção de sentido e unidade de uma identidade, estaria
assim mais condizível com formas de “narração do eu”, do que de uma vivência coesa
(HALL, 1996).
Os contemporâneos movimentos políticos-identitários, fundamentados em modos
de criação, reinvenção ou de “resgate” cultural, estariam na mesma medida,
condicionados pela busca do fortalecimento de identidades unificadas socialmente
reconhecidas pelas dinâmicas do poder governamental. A emêrgencia de movimentos
identitários a apartir da internacionalização do mercado e da mídia global (entre os
entermeios de reprodução cultural ordenada pelos fluxos do mercado), demonstrariam
as necessidades auto-significativas dos sujeitos em constante problematização
identitária, de construirem meios de representação política dentro dessa atual dinâmica
do poder econômico.
Uma das características da vivência pós-moderna, exatamente seria, a fragilidade
na qual se fundamentam as relações sociais. Presas em um constante ciclo de mudanças e
adaptações aos novos códigos de valores relacionais. O conceito de individualidade se
tornou líquido e leve, quando desprendido das estruturas sociais antes embasadas pela
ação do Estado-nação, pelas intenções de consumo (BAUMAN, 2001, p. 117). A
instabilidade produzida pela ação do mercado, funciona como meio e objetivo de
gerenciamento dos interesses individuais. Na medida que através da indução dessa
instabilidade social, reproduzida nos meios de constituição identitárias individuais, é que
se agenciam os próprios desejos de consumo. Não apenas os desejos de consumo
materiais, mas a prática de consumo como forma de completude da própria identidade
individual. O ser como um processo de ações de consumo; demonstrando a apropriação
dos devires de consumo, como meio de desenvolvimento das práticas econômicas atuais.
Ora, tal agenciamento da vontade de potência humana, para a produção de
subjetivações de consumo, não apenas se manisfesta na vivência dos seres. Mas também
nos lugares de socialização contemporêneas. Antes, os espaços civis, as praças públicas,
prédios e eventos, constituiam os espaços onde as práticas sociais do cotidiano eram
ritualizadas e reproduzidas de modo comunitário, como parte da formação das

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identidades nacionais modernas (literalmente, a Res pública). Porém, a ascenção de


dinâmicas de consumo como centro da produção econômica, produziram outros lugares
de socialização, que assimiladas pelas mesmas práticas de mercado, instigam vivências
fragmentadas. São heterotropias, ou seja, lugares onde a vivência espaço-temporal é
apenas dependente de sua própria estrutura. Como um “barco” no qual as formas de
convivência e interação social, são definidas pelas ordenações de seu específico meio
cultural (FOUCAULT, 2013, p. 117). São os centros de convivência de consumo: shopping
centers, lojas de conveniências, restaurantes fast-food, drive-thrus, entre outros espaços
constituidos pela própria cultura de consumo. Não são lugares inclusivos, contudo sua
prática de exclusão é baseada no poder de apropriação de novos valores (produtos ou
produções).
A instabilidade produzida pelo mercado e a fragilização da esperiência
comunitária e nacional, obviamente seguem os meios do poder econômico. Sendo as
práticas culturais de consumo desenvolvidas a partir dos centros econômicos. A relação
entre os centros produtores da cultura de consumo e as margens – ou seja, os lugares cuja
produção cultural não é potêncializada pelo mercado – é caracterizada pela sobreposição
da influência cultural dos primeiros sobre os outros. Todavia, tal sistema produtor de
valores culturais, sofre em mesma potência com movimentos descentralizados ou de
simples resistência as pressões culturais dos centros econômicos. É assim que se
desenvolve uma cultura diaspórica em meio a movimentos sociais em busca de uma
representação nunca antes possuída nas macro-identidades nacionais.
Os movimentos identitários nativistas (como por exemplo o Movimento
Tradicionalista Gaúcho – MTG) não necessariamente se contrapoêm as práticas do poder
econômico, na medida que podem ser desenvolvidas por grupos majoritários ou com o
controle do aparato midiático. Antes, tais movimentos buscam apenas “marcar” no
mercado cultural, valores específicos da elite regional ou local. Porém, o espaço de
projeção de mercado também permite que outros grupos sociais anteriormente não
contemplados por qualquer elemento das formas culturais de consumo, produzir novas
identidades culturais (feminista, anti-racista, homoafetivos e transsexuais etc.). Esse
processo diaspórico, como colocado por Stuart Hall, é desenvolvido tanto como
“reconstrução”, quanto pela “redescoberta” de elementos constitutivos de manifestações
culturais que já não mais existem como práticas.

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A experiência da diáspora, [..] não é definida por pureza ou essência, mas


pelo reconhecimento de uma diversidade e heteregeneidade necessárias;
por uma concepção ‘identidade’ que vive com e através, não a despeito,
da diferença; por hibridização. Identidades de diáspora são as que estão
constantemente produzindo-se e reproduzindo-se novas, através da
transformação e da diferença (HALL, 1996, p. 75).

No Brasil, além de outros processos identitários diaspóricos emergentes, o qual em


maior medida demonstrou a necessidade de um “resgate” cultural de seu berço original
(no caso, a África), entremeios a um constante fluxo de transição; foi a moderna
construção de uma identidade negra. Não a identidade, mas o processo identitário
correlativo as comunidades e a individualidade negra brasileira. Na ocasião do
desenvolvimento do movimento pan-africanista liderado por Abdias do Nascimento, do
mesmo modo em que este buscava criar uma forma identitária universal para o negro
brasileiro, no sentido de fortalecer sua representatividade política. Também embasava tal
movimento identitário em um resgate (ou reinvenção) das origens culturais africanas
comuns dos afrodescendentes do país. Porém, distinguir entre a heterogeneidade dos
discursos políticos e científicos sobre os sujeitos negros, se torna mister, no sentido de
perceber os movimentos de descontinuidade e de diversidade da vivência social negra. Da
qual a ação sobre seu processo identitário, produz lugares de instabilidade subjetivas e
de pertencimento social por vezes contraditórias, ao processo político de construção da
identidade negra brasileira contemporânea.
O caso específico destes lugares de instabilidade identitários, que aqui nos
interessa analisar, é o processo de reconhecimento institucional (seja pelo Estado, seja
pela academia científica) das comunidades quilombolas do país. O elevado número de
estudos sobre as comunidades quilombolas na atualidade recente, reflete não só uma
movimentação de interesses civis, identitários e políticos, mas também, o reconhecimento
institucional de novas metodologias de pesquisas culturais na história e na antropologia.
Especialmente, a partir da virada do último século, as práticas de pesquisas das ciências
humanas no cenário científico nacional, seja pela influência das movimentações políticas
emergentes em nossa recente democracia. Tornou possível serem observadas a variedade
de processos identitários referentes a vivência social negra no país. Não só por sua
relevância social, os estudos culturais sobre as identidades comunitárias quilombolas

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constituíram, nas últimas décadas, tema para debates científicos e políticos sobre as
relações sociais no Brasil.
O apontamento da existência de diversas correntes de análise quanto as pesquisas
sobre movimentos quilombolas e de cultura quilombola, é corroborada, pela variação de
eixos de análise decorrentes da própria pesquisa acadêmica nacional. De acordo com
Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, as pesquisas sobre a identidade negra brasileira ou de
cultura afro-brasileira, tenderam, nas últimas décadas, a se identificarem entre dois eixos
paralelos de construções narrativas sobre o sujeito negro. Uma correspondente a
proposta multiculturalista de análise das relações sociais no Brasil e outra corroborada
por uma imagem pluriculturalista das relações sócio-raciais das comunidades e
identidades nacionais (GUIMARÃES, 2002). De modo que em termos gerais, haveria um
debate inerente nas pesquisas deste assunto, relativo ao próprio conceito de cultura. De
modo mais específico, um debate quanto aos processos de assimilação, de troca, conflito
e de afirmação das práticas culturais entre os indivíduos de determinada formação social
e das dinâmicas de subjetivação identitárias.
Problematizar tais formações teóricas, porém, não pode ser tomado como uma
ação determinista. O spectrum de produção de análises e de narrativas sobre as
movimentações culturais relativas as afirmações identitárias nacionais, não pode ser
considerado em termos tão primários. É necessário ter-se em mente que as diferenciações
entre os eixos e intentos de pesquisas relacionadas a problemáticas pluriculturais ou
multiculturais, são também produtos de posicionamentos específicos de análise (ADESKY,
2001). Isto, tanto em consideração a maleabilidade das pesquisas científicas em geral, em
termos de epistemes e de possibilidades metodológicas, quanto da variação das
movimentações sociais e subjetivas constituintes destes mesmos processos.
De fato, a exata plausibilidade do apontamento dessa divisão nas pesquisas deste
tipo, apenas se sustenta diante das dinâmicas políticas da nova democracia brasileira. É
possível observar na Constituição Brasileira, ambas as proposições corroboradas em
termos de seus princípios fundamentais da cidadania sobre os posicionamentos
relacionados a uma vigência multiculturalista, assim como de uma proposição
pluriculturalista. Isso porque a própria Constituição, “opta tanto por uma posição de
aceitação implícita, quanto por uma postura de proteção explícita das culturas” (ADESKY,
1997, p. 182). Indicando com isso, a inegável relevância política de pesquisas sobre os

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modos de relacionamento social característicos da formação cultural brasileira. O que não


delimita de todo modo, as possibilidades de análise sobre os meios (se multiculturais ou
pluriculturais) da cultura brasileira em si, mas também, não deixa de produzir interesses
escusos à pesquisa científica.
O constante estado de instabilidade das pesquisas sobre quilombos no Brasil,
então, decorre não apenas das características heterogêneas dos próprios processos
identitários – especificamente, da identidade negra política preterida pelos núcleos anti-
racistas contemporâneos –, mas devido a influência externa ao fazer racional de pesquisa,
no processo de produção, verificação e veridificação institucional do saber. Ainda de modo
mais dramático, a instabilidade produzida pela variação dos meios de veridificação do
“saber-poder”, ou seja, do contexto institucional (por vezes, no caso, político-partidário)
em que um saber produzido é tomado pelas ações do poder como verdade. Processo que
deve ser diferenciado dos modos epistemológicos de verificação do saber científico
contemporâneo.
Em termos gerais, as possibilidades de verificação do saber científico estão
condicionadas pelos meios de construção documental e pelos mecanismos de análise,
interpretação e comunicação do saber. Por tratarem especificamente de blocos de dados
imensuráveis, as ciências humanas, diferente das ciências naturais e matemáticas, lidam
com a multiplicidade pura do viver e sua relação com a complexidade do universo. Por
isso, seu trato documental, não pode ser limitado apenas aos dados passíveis de serem
mesurados. Isso porque, os fatos/eventos ou fenômenos sociais, são constituídos por
outra série imensurável de fenômenos. Por outras ocorrências sociais; assim como pela
percepção dos seres viventes sobre o acontecido (dos que a viveram corporalmente e
daqueles que a vivem como forma narrativa). Disso o pesquisador/autor/leitor não está
separado. Além, da própria complexidade dos eventos sociais. Também, é natural
supormos a ocorrência de influências não mesuráveis da vivência específica do
pesquisador em sua análise. O saber produzido pelo mesmo, assim como ele, é também
sujeito de um contexto histórico e de uma existência social específica.
Percebendo os jogos de poder, característicos da pesquisa científica, com seus
agenciamentos políticos, econômicos, institucionais, corpóreos, epistemológicos etc., é
notável a anuência destes fluxos da experiência social do contexto histórico sobre a
produção de análises sobre quilombos na historiografia brasileira. Palco da influência

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destes agenciamentos sociais, nas pesquisas sobre quilombos, é o debate científico sobre
os modos das práticas culturais no Brasil. A análise culturalista, ao se fundamentar na
dualidade “eu-outro”, criou uma aparente limitação de análise sobre os modos de
convivência social e relações culturais no Brasil. Entre plataformas políticas, com
interesses partidários e econômicos sobre os regimes de governamento populacional,
análises multiculturalista e pluriculturalistas confeccionam análises sobre os movimentos
quilombolas, dentro de diferentes propostas interpretativas sobre a sociedade brasileira.
Essa análise culturalista demonstra a emergência de interesses escusos ao próprio
fazer científico ao se limitar em uma dualidade de sentidos. Ao contrapor apenas dois
modos de possibilidades de análises sobre os movimentos quilombolas. De um lado, a
essencialização das práticas culturais de uma identidade étnica em relação com outras
(pluriculturalismo). De outro, a problematização destas essências, a partir do jogo
sincrético das formações culturais (multiculturalismo). Debate qual, pode ser contraposto
pelos estudos culturais desenvolvidos por Homi Bhabha. Já que sua problematização
sobre as relações culturais, podem ser destacados como proposições de análise cultural
em meio as movimentações do próprio processo de globalização da cultura de consumo
internacional.
Para Bhabha, o “trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que
não seja parte do continuum de passado e presente” (BHABHA, 1998, p. 27). Viver o novo
é viver “no além”, em um lugar onde o sujeito não mais habita o seu espaço de
territorialização que constitui sua identidade, mas que também não se está
necessariamente no espaço de um “outro” sujeito. Ou seja, um espaço laico/neutro de
encontros. A relação cultural em si habitaria esse espaço. Essa noção de “além”
fundamenta-se então em uma interpretação que pensa as trocas como um espaço e não
apenas numa relação entre diferentes elementos. A cultura se desenvolveria no espaço
“além” e não em espaços específicos que comportariam e limitariam sua especificidade e
diferença. A produção de cultura, assim, só seria possibilitada ao habitar um espaço “no
além”. Logo, a cultura não seria um “algo”, mas sim um espaço de percepção.
Especificamente, um espaço de percepção temporal. De modo que, sua vivência se dá a
partir de uma série de compressões de momentos temporais no espaço. O “momento
passado”, tal como o “momento futuro” habitariam, então, o mesmo espaço que o
“momento presente”. As tradições poderiam servir como exemplo dessa percepção de

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tempo, por constituírem-se como construções culturais que na medida que se


desenvolvem através de uma compressão entre passado e presente, também implicam
numa dependência com o “momento futuro”. Daí exatamente, a necessidade dos rituais
de repetição que preservam e reconstroem as próprias tradições.
Sendo também interessante notar as possibilidades de pesquisas culturais
pautadas por dinâmicas de análise relacional de indivíduos dentro de uma problemática
interculturalista. Dentro da qual, as movimentações hibridas correspondem não ao meio
de formação cultural, mas exatamente consistem como o seu fim. No sentindo que, as
relações intersociais se desenvolveriam em constante estado de maleabilidade formativa
e dissociativa, tornando a própria ideia de unidade cultural, até mesmo para os indivíduos,
uma falácia narrativa (BENNETT, 1993). Certamente, que tal análise culturalista,
motivada sobre problematizações da subjetividade pós-moderna, não refletem os
interesses institucionais desejados pelo debate político-econômico atual sobre os
quilombos e a formação de uma identidade negra brasileira.
É neste contexto maior de problemáticas de pesquisas que os estudos sobre os
movimentos quilombolas estão hoje inseridos. O que não atribui apenas para as
problemáticas historiográficas a produção de pesquisas sobre o tema. De fato, é notável a
atual predominância epistemológica de pesquisas nesta área, de metodologias da
antropologia cultural em referência aos estudos históricos. Nas quais, como é colocado
por Eliane Cantarino O’Dwyer:
A participação intensa de antropólogos na luta pelo reconhecimento de
direitos étnicos e territoriais a segmentos importantes e expressivos da
sociedade brasileira, como as comunidades negras rurais e/ou terras de
preto, rompe com o papel tradicional desempenhado pelos grandes
nomes do campo intelectual, que garantem, com sua autoridade, o apoio
às reivindicações da sociedade civil, subscritando, como peticionários,
manifestos e documentos políticos (O’DWYER, 2002, p. 7).

O que não só aponta as características de grande parte dos estudos culturais atuais
sobre quilombos, como declara suas implicações políticas no governamento destas
comunidades em relação a sociedade brasileira. Longe, desta afirmação se constituir como
uma censura a tais pesquisas, o que aqui se busca realizar são alguns apontamentos
metodológicos quanto aos meios de verificação do saber produzido sobre os movimentos
quilombolas. Desse modo, uma problematização dos meios de verificação do real sobre o

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saber, se faz necessário. Considerando, a vivência corpórea dos sujeitos pesquisadores no


trato documental (seus sentimentos, suas práticas cotidianas, sua vivência ou convivência
com os documentos ou comunidades, pesquisadas etc.); os jogos de interesse institucionais
(da veridificação do saber institucional, do contexto epistemológico, da inserção
profissional do pesquisador/autor, da ordenação de temas e linhas de pesquisa etc.); os
agenciamentos econômicos (da possibilidade de consumo sobre o produto da análise, ou
seja, o livro, do investimento privado ou estatal sobre a pesquisa, da necessidade
produtiva do pesquisador dentro de um regime econômico etc.); e as dinâmicas de
convivência, subjetivação e identidade características das possibilidades de cidadania
dentro da atual estrutura político-partidária do governo brasileiro (se de direita ou
esquerda, dentro das dinâmicas de classe, de gênero, de auto-reconhecimento de raça/cor
etc.); ou seja, a imensurável multiplicidade pura constituinte de uma vivência de pesquisa:
como verificar o saber produzido pela análise sobre movimentos quilombolas no Brasil,
considerando suas probabilidades de alcance do real?

Para além do “eu” e o “outro”

Tendo observado o processo de desenvolvimento dos estudos sobre quilombos, é


interessante contrapormos algumas das matrizes teóricas de sua prática de análise
culturalista. Especificamente, quanto a limitante análise sobre dinâmicas do “eu” e do
“outro” nos estudos sobre movimentos quilombolas. Considerando a relação, sociedade
civil (escravista) e escravizados/quilombolas; como poderíamos superar os sentidos de
análise propostos na documentação sobre quilombos? Considerando que o historiador
possui acesso, na maioria dos casos, apenas a documentos escritos pela mão de sujeitos
com interesses contrários a estas comunidades e geralmente, ignorantes de suas práticas
cotidianas ou sistemas simbólicos. Como não nos perdermos nos sentidos narrativos
criados por esta documentação, por vezes tão violentamente pressa entre a negação dos
“outros” como modo de constituição de um “nós” eurocêntrico?
A documentação produzida pela estrutura escravocrata, estava embasada em
narrativas dualistas entre o “nós” e “eles”. A colonização luso-europeia no Brasil,
assimilando conceitos de “bem” e “mal” cristãos, não cansava de contrapor inimigos a
causa colonial. Tornar esse “outro” ou a cultura do “outro” no inimigo a ser batido,

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entretanto, não significa dizer que a relação entre a sociedade colonial-escravocrata


realmente podia se diferenciar totalmente das práticas cotidianas quilombolas de onde
tentava se afastar. O problema é que criar esse “outro” é não apenas descrever a si mesmo
como sociedade, mas também, viver o “outro” como forma narrativa (AGNOLIN, 2007, p.
523). Marcar o “outro”, descreve-lo, constituía parte do processo de formação de uma
nova ideia de “eu”.
A produção de análises sobre comunidades historicamente excluídas ou sem
representação historiográfica, é motivada pelos princípios éticos e políticos de nosso
contexto social. Desse modo, que os valores culturais de nosso meio, motivam a pesquisa
de comunidades e sujeitos antes “esquecidos” ou ignorados pela historiografia. Ao mesmo
tempo, tal intento é contraposto pela pouca documentação ou mesmo pela inexistência de
documentações produzidas por estas comunidade e indivíduos. Em agravante, os
documentos qual temos acesso, são em sua maioria produzidos por sujeitos e instituições
que descreviam estas comunidades dentro de uma dinâmica de dualista de bem e mal, ou
seja, como “outros”. Assim, lembrando que as possibilidades de alcance do real na história
são verificados por práticas interpretativas de análises dos sentidos; como poderíamos,
então, fundamentar cientificamente tais análise, já que estas estão certamente embasadas
em análises anteriores documentadas por outros sujeitos? É necessário que sejam
realizadas interpretações prévias sobre os contextos do produtor dos documentos, de sua
mentalidade e da estrutura social que produziu sua vivência.
Só que isso não resolve o problema de veridificação desse saber. Pois tal
desconstrução dos intentos de produção documental, surge como resultado da ação de
pesquisa do próprio pesquisador, ou seja, a análise documental de um historiador, não
exclui de sua prática intelectual sua própria subjetivação e seu meio de pesquisa (social,
econômico, cultural, discursivo etc.). É uma problematização sem limites: primeiro de si
mesmo e de seu contexto, depois dos sujeitos produtores do documento e de seu contexto
social, para então a tentativa, via análise discursivas entre os códigos linguísticos, os ditos
e não-ditos de determinado relato documental, de produzir interpretações –
cientificamente verificáveis pelas suas possibilidades de alcance do real – sobre estas
comunidades e vivências “esquecidas”. Alcançar elas, suas formações simbólicas, suas
práticas de cotidianos e de formações subjetivas, através de uma documentação indireta,
delimitada pelo seu próprio contexto de produção, é apenas metade do trabalho

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interpretativo do pesquisador. Pois, além disso, sua análise deve dar conta de analisar os
elementos que constituem o seu fazer de pesquisa, no sentido de poder criar
interpretações cientificamente válidas para além de apenas um contexto social ou
institucional.
Reconhecendo as limitações dos modos de veridificação científicos sobre o
conhecimento produzido pelas pesquisas históricas atuais. E de que os métodos e
problematizações da (nova) História Cultural, avançaram no entendimento da
complexidade do universo e da multiplicidade pura. Existe a necessidade de que seja
realizada, a partir das características das ciências humanas, uma crítica sobre os meios e
práticas de alcance do real científico. Uma análise para além da razão, pela qual seja
construída novos valores éticos e estéticos sobre a experiência de pesquisa constituída
pela vivência dos seres na produção do saber. Não uma nova ciência, mas novos meios de
avaliação da produção do saber, dando conta da inerente relação nas ciências humanas
da multiplicidade dos seres viventes com a complexidade dos elementos formativos dos
fatos/eventos ou fenômenos do universo.

Referências bibliográficas

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19/20, p. 165-182, 1997.

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PERCEPÇÕES DE UM JORNAL NEGRO DO SUL EM TORNO DA


VALORIZAÇÃO DO MESTIÇO NO CENÁRIO NACIONAL

Ângela Pereira Oliveira

O cenário sobre o qual essa pesquisa192 se debruça é a cidade de Pelotas,


geograficamente localizada na região sul do Rio Grande do Sul, em meados da década de
30 do século XX. A cidade de Pelotas e sua região contam com a presença do negro desde
os primórdios de seu processo de formação (LONER, 2009). Em relação às estratégias
adotadas por esses sujeitos na sua sobrevivência durante a escravidão e mesmo no pós-
abolição, momento esse em que houve uma ampliação dos mecanismos empregados na
busca por resistência, podemos apontar que essas se deram das mais diferentes maneiras,
dentro das possibilidades por eles alcançadas. O aumento da quantidade de espaços
voltados para a população negra no pós-abolição esteve diretamente ligada à falta de
representatividade, ao preconceito e a invisibilização das pessoas de tez escura pela
sociedade em geral, especialmente, aqui no sul.
Entre os locais negros por eles criados temos clubes culturais, esportivos e
beneficentes. Além desses, por exemplo, a imprensa também foi apropriada sendo
utilizada na defesa de seus interesses. Ela serviu como um mecanismo no qual puderam
expor, divulgar e registrar as suas ideias e opiniões, a partir do momento que criaram os
seus próprios jornais de cunho racial, denominados de imprensa negra pelo pesquisador
Roger Bastide (SANTOS, 2011).
Esse estudo toma por base a produção historiográfica que diz respeito ao campo
das Emancipações e pós-abolição, buscando dar conta de aprofundar ainda mais o
conhecimento sobre a história social do negro no Rio Grande do Sul. De acordo com essa
linha de estudos são questões centrais na produção histórica do conhecimento a respeito
desses personagens: a sociabilidade, a liberdade, a cidadania, a racialização, por exemplo.
Todos esses conceitos centrais listados, conforme afirma Gomes (2005), devem ser

Mestra em História pela Universidade Federal de Pelotas. Contato: <angelapoliveira2@gmail.com>


192 Este artigo tem por base a dissertação apresentada pela autora, intitulada de A racialização nas
entrelinhas da imprensa negra: o caso O Exemplo e A Alvorada – 1920-1935. Pelotas, UFPel, 2017.

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analisados a partir das perspectivas e das lógicas delegadas pelos envolvidos no processo,
ou seja, é preciso conhecer a visão da própria população negra.
A principal fonte empregada neste estudo foi o periódico negro A Alvorada, da
cidade de Pelotas, produzido entre os anos de 1907 a 1965, com diversas interrupções.
No entanto, foram analisados somente aqueles cadernos produzidos entre os anos de
1931 a 1935. A consulta a esse material se deu na cidade de Pelotas, no acervo da
hemeroteca da Bibliotheca Pública Pelotense, localizada no centro histórico da cidade. Tal
periódico era propriedade dos irmãos Penny, tendo sido vendido em 1946 para Rubens
Lima.
O jornal contou com a atuação de Rodolpho Xavier como um dos seus mais
importantes articulistas, escrevendo crônicas direcionadas a classe trabalhadora, mas
também trazendo outras narrativas, escrevendo, também, poesias. O semanário divulgava
assuntos relacionados à comunidade negra da região sul e sua atuação foi significativa
para que eles se vissem representados. A partir dessa fonte é possível conhecer mais
sobre os negros letrados de Pelotas e o grupo no qual eles se relacionavam, levando em
consideração as próprias percepções registradas por eles sobre suas vidas e o contexto
no qual estavam inseridos.
Em relação ao uso do vocábulo negro é necessário esclarecer alguns pontos.
Primeiro, a opção da autora pelo seu uso no texto é consciente de que ele pode vir a criar
uma falsa ideia de homogeneidade entre a população não branca, que de fato não existe.
No entanto, essa é uma escolha política, influenciada porque o termo não promove um
ocultamento do racismo (CUTI, 2010), ao tratar de um vocabulário racialmente instituído.
Além disso, outra grande influência para essa escolha é o fato de que assim se auto
identificavam esses personagens em sua imprensa, nesse caso, a autora optou por
respeitar a identidade assumida pelos sujeitos. No entanto, outros vocábulos de sentido
racializado não serão ocultos no texto, sendo invocados em alguns momentos.
Negro é uma construção histórica que está presente nas relações sociais e que tem
no processo diaspórico transatlântico o cerne de suas explicações. Determinar quem é
negro no Brasil não é uma tarefa fácil, mesmo para os dias atuais, como colocou Munanga
(2004). No entanto, dois são os elementos levados em consideração. O primeiro deles é a
cor da pele escura (que pode englobar diferentes tonalidades) e o segundo, a
autoafirmação, ou seja, a primeira mais voltada para como o sujeito é visto pela sociedade,

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já a segunda, como ele próprio se percebe e assume a sua identidade. As pessoas não
nascem negras, elas se descobrem e se tornam negras (SOUZA, 1983).
No cenário brasileiro atual a usurpação, por parte de pessoas brancas, em espaços
destinados as cotas raciais tem se tornado um grande problema social. A polêmica que
possibilita essa apropriação das vagas por parte de pessoas brancas consiste na
compreensão do negro enquanto autodeclarado como tal. Algumas pessoas que nunca se
declararam negras em outro momento (porque de fato não o são), acabando assim o
fazendo apenas para tirar proveito dessa política reparatória. Essa situação é uma entre
tantas que demonstra o quanto a cidadania do negro brasileiro é fragmentada. Mesmo
tendo alcançado essa conquista por meio de muitas lutas sociais eles continuam com a
incompletude de um direito conquistado em vista do privilégio de alguns brancos que não
aceitam a ocupação de determinados espaços sociais para a população negra.
Para Munanga a determinação de quem é negro no Brasil, geralmente, está
relacionada com a manifestação fenotípica da cor da pele escura (2004). Para Nogueira
(2006) estaria vinculada a aparência, ou seja, aos traços físicos e a fisionomia do sujeito.
As pessoas entendidas como negras podem possuir os mais variados tons de pele,
inclusive tons claros, tendo outras características que permitam a elas se identificarem e
serem identificadas como negras.
Essas variações demonstram a diversidade da população brasileira, mas também
acarretam em alguns impasses, entre eles, por exemplo, que o racismo se manifeste de
diferentes modos, sendo que o seu alvo principal acaba sendo aquelas pessoas que estão
mais longes dos padrões aceitos. Inclusive, entre os negros e os indígenas existem aqueles
que são mais aceitos pela sociedade em detrimento de outros, mesmo que pertencentes a
um grupo étnico, geralmente, os aceitos são aqueles cujas características negras ou
indígenas não sejam tão acentuadas, ou seja, que apresentem um maior grau de
mestiçagem.
No ano de 2015 o site Blogueiras negras publicou um texto explicando o termo
colorismo que posteriormente, foi transcrito no site do Geledés193. De acordo com a
publicação “quanto mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa
pessoa irá sofrer” em países pós-escravocratas. As inquietações na qual a autora se volta

193 O texto completo pode ser acessado em: https://www.geledes.org.br/colorismo-o-que-e-como-


funciona/amp/.

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ao passado para tentar entender são reflexos do contexto social e político no qual estamos
inseridos. Dito isso, esse estudo ao se voltar para os anos de 1931 a 1935 se propõe a
observar os debates realizados por uma comunidade negra de Pelotas, através de seu
jornal, A Alvorada, no que diz respeito às variações de cor dentro dos coletivos negros, em
especial, dialogando com as ideias construídas em termos do mito das três raças na
formação de uma identidade nacional.
Como já apontado, um dos conceitos centrais para o campo de Emancipações e pós-
abolição e que também é essencial nesse texto é a racialização. A autora entende o
conceito como um processo de categorização social partindo de traços de distintividade
racial, expressos por uma noção generalizada de raça (SCHUCMAN, 2012), ou seja, como
a ideia de raça começa a operar e como ela acaba se ressignificando com o passar do tempo
desembocando no racismo.
As características físicas que atribuem o lugar social de um sujeito por denotar o
seu pertencimento a uma raça só fazem sentido em contextos sociais racializados (SILVA,
2010). Para o caso brasileiro a principal característica do pertencimento a uma raça é a
cor da pele (ROSA, 2014). Nesse sentido, a cor se tornou uma metonímia para explicar o
pertencimento racial. Para a imprensa negra, evocar a cor também era uma maneira de
aglutinar os negros de forma política e racial.
A preocupação “retórica” dos jornalistas negros era justificável; afinal, o
emprego das palavras não estava dissociado das relações de poder, ou
seja, da política; era preciso combater o emprego de um vocabulário
revelador de concepções de mundo, de desigualdades, de hierarquias e
de certas permanências. (ROSA, 2014, p.259)

As distintas tonalidades de pele foram motivos de muitas tensões nessa


comunidade, diversas delas registradas no semanário A Alvorada. Essas tensões
demonstram o quanto à identidade de cor era/é complexa. Em uma das crônicas do jornal,
publicada em 1934, o articulista Rodolpho Xavier expressou-se em relação ao tema:

PRETOS E MULATOS
O “preto” sempre desconfiou, e ainda desconfia, do “mulato”? Por quê?
Porque tal desconfiança vinha, e vem do sangue de seus avós... o “negro
mina”, “Nagô”, “Moçambique” e “Benguela”, (ainda alcançamos esse
tempo!) desde que a “crioula” aparecia com filho “mulato” a repudiava e
dizia que o neto tinha sangue de “judas”, tinha sangue de gato porque era
filho de “branco”!

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A seu turno, o “mulato”, inconscientemente, procurava mais o convívio


dos brancos do que o de seus avós, pois se estes o repudiavam, aqueles os
aproveitavam para a “mestiçagem” pelo direito de posse que tinham de
suas liberdades. Daí a conclusão.
O “mulato” consciencioso compreendeu, e compreende, que a sua raça é
a negra; o “negro” também compreendeu que pela lei fatal de evolução
etnológica, o “mulato” não teve e nem tem a culpa de nascer “mulato”...
Deve se atribuir, em grande parte a desarmonia existente, a apatia e
indiferença que reinam no seio da raça negra à inconsciência que os
insensibilizou para o surto de seu próprio progresso, retardando a
evolução da raça por não saberem dar valor à inteligência e ao estudo,
pelo espírito apoucado que tinham, fazendo com que vissem em cada
defensor de sua raça, embora “mulato”, um inimigo racial! (...)
Rodolpho Xavier (A Alvorada, 15/04/1934, p.01).

O título da crônica, “pretos e mulatos”, é um indicativo de que não há


homogeneidade dentro da identidade negra. Em seu estudo a respeito de uma família
negra egressa do cativeiro ao longo do pós-abolição, Weimer (2015) destaca o caso de
Manoel Inácio, ora identificado como pardo, ora como branco. Para o historiador essas
mudanças na cor iam além da composição cromática ou biológica, a sua cor também
estaria vinculada a ocupação de um lugar social.
Em outro momento, em uma coluna de fofocas a respeito da comunidade local, o
jornal publicou uma crítica a “certos mocinhos” por ficarem brabos quando chamados de
negros. De acordo com a publicação “lhes corria pelas veias o sangue africano” e, após
destacar que ser chamado de negro não é ofensivo e que ser preto não é defeito, o
semanário expressou que “escapando de branco, negros são” (A Alvorada, 16/10/1932,
p.05). A fofoca se encerra dialogando que quem a escreveu se orgulhava de ter a cor do
carvão nacional, o que pode ser compreendido como uma maneira de expressar o
nacionalismo do negro brasileiro ao mesmo tempo em que promovia uma valorização do
ser preto nesse contexto em que havia muitos debates em torno das identidades
nacionais.
No início do século XX os intelectuais debatiam uma suposta superioridade do
mestiço em relação ao negro. Entre os defensores dessa visão estava, por exemplo, o
médico João Batista Lacerda (HOFBAUER, 2006). Gilberto Freyre que era um defensor da
mestiçagem biológica e cultural como um fator fundante do tipo social brasileiro, em seu
livro, Casa-grande e Senzala, de 1933, promoveu diversos elogios à miscigenação e a uma

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identidade mestiça do brasileiro. As ideias desses intelectuais não eram desconhecidas


pelos membros da A Alvorada.
Apesar do reconhecimento do negro enquanto pertencente aos grupos que
formaram a população brasileira, junto com o indígena e o português, aquele que acaba
sendo valorizado na formação de uma identidade nacional é o mulato ou mestiço. Esse
fato acaba acarretando no colorismo, no qual são aceitos os negros mais claros cujas
características de suas raízes negras não estejam tão acentuadas, delegando, por outro
lado, aos homens e mulheres cujas características africanas são mais visíveis, como a cor
de pele mais escura, uma maior exclusão.
No entanto, a percepção sobre a mestiçagem entre as camadas populares nem
sempre foi concebida da mesma maneira que a elite. Através do jornal A Alvorada é
possível perceber que eles criavam seus próprios discursos em relação à mestiçagem que
não aquela imposta de cima para baixo. A respeito da mestiçagem o escritor Rodolpho
Xavier escreveu em uma de suas crônicas “a mestiçagem de nada vale, quando não se tem
o espírito cultivado” (A Alvorada, 19/02/1933, p.01). Para ele que a mestiçagem não era
uma solução para os problemas nas relações sociais provocados pela racialização.
O preconceito de cor era algo tão fortemente enraizado na sociedade que buscando
fugir dele, alguns negros claros, mulatos, mestiços ou morenos, por vezes, adotavam a
estratégia de se afastar daqueles que se afirmavam enquanto negros, sendo essa prática
também um reflexo do ideário do branqueamento. Aqueles que optaram em positivar o
ser negro buscaram conscientizar aos mais claros de que estavam mais próximos de ser
negro do que branco, no que se refere ao tratamento que lhe seria concedido pela
sociedade. Mesmo ocupando espaços sociais que lhes garantissem mais prestigio do que
em relação aos demais negros, jamais seriam tratados em pé de igualdade com os brancos.
Dessa forma, o jornal ao promover essa conscientização investia na cooperação entre os
“não-brancos”.
Retomando ao artigo transcrito, Rodolpho Xavier constatou um estranhamento
nas relações entre mulatos e pretos, fato que, segundo ele, se justificava por conta do
mulato carregar “o sangue de Judas”. As dificuldades no relacionamento entre os negros
por conta da mestiçagem para Rodolpho Xavier era algo que deveria ficar no passado,
disse ele: “o mulato não tem a culpa de nascer mulato”. O escritor, assim como, as ideias
publicadas na A Alvorada tendia a promover uma união entre os negros independente das

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tonalidades de pele. Para Rodolpho Xavier não tinha mais sentido que as gerações atuais
nutrissem tais divergências, entendidas por ele como fruto de ignorância.
No entanto, nem todos dessa comunidade partilhavam dessa mesma percepção.
O semanário A Alvorada denunciou o caso de bailes de mulatos que não aceitavam a
presença de pessoas negras, por outro lado, as pessoas brancas não eram impedidas de
frequentar tais festas. Quem denunciou o ocorrido foi Humberto de Freitas. Em seu artigo
publicado na A Alvorada ele destacou que “somente uma pessoa de cor, mista, pretensiosa
e sem cultura, poderá deixar-se convencer que, por ter ‘abertinha’ a sua cor, não é negra!”
(A Alvorada, 14/02/1932, p.03). Em seu texto o autor retrata negros e mulatos como
“irmãos de raça”. Segue um trecho da denuncia expressa por Humberto no jornal negro:
Repercutiu dolorosamente no seio da sociedade etiópica pelotense, a
pretenciosa atitude dos dirigentes de certo grupo bailante que, deixando-
se embair por uma falsa maneira de selecionar, não observaram no
indivíduo, o valor moral, mas sim, como justificativa dos seus
“escrúpulos” sociais, basearam-se na diferença das cutículas. E, nas suas
condenáveis investigações etnológicas, acharam “defeitos” morais e
“contagiosos” nos negros de tez da cor do ébano... ser preto - no besunto
destas pessoas – é ser um indivíduo inferior aos indivíduos de outras
raças.
(A Alvorada, 14/02/1932, p.03)

Esse caso gerou muita repercussão no A Alvorada a ponto do jornal utilizar várias
edições para comentar o caso e aproveitar essa situação para promover a condenação a
esse tipo de atitude dentro da comunidade pelotense. A festa possui muitos significados,
mas aqui o que interessa é o seu papel de sociabilidade. Através desses espaços
destinados a sociabilidade, as pessoas poderiam conhecer os seus futuros companheiros.
Em relação à formação de famílias multiétnicas o jornal publicou que: “essa ‘seleção’ que
se observa em alguns elementos da raça negra indo constituir família em raça que julga
superior a sua, nada mais é do que um estado mórbido de pouca mentalidade que
pressupõe o negro “indigno” de constituir-se em família!” (A Alvorada, 19/02/1933,
p.01).
O I Congresso Afro-brasileiro, realizado na cidade de Recife, no ano de 1934,
contou com a participação de um representante do jornal A Alvorada. A proposta central
do evento era estudar a trajetória do negro e sua contribuição no processo de formação
da identidade sociocultural do país. Miguel Barros, representante da A Alvorada,
participou dos debates em torno da formação da identidade nacional dialogando com o

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conceito de raça. Sendo percebido enquanto mulato pela imprensa que cobriu o evento e
pelos seus, ele se une aos negros defendendo-os nos debates em torno da aculturação do
negro. Tendo sido feita uma cobertura pelo periódico em vista das correspondências
encaminhada pelo seu representante, o jornal apresentava e discutia junto com o seu
leitor o racismo.
Em uma crônica publicada na A Alvorada, cujo título era o Primeiro Congresso
Afro-brasileiro, o jornal rebateu: “não são de pigmentos, nem de indumentárias dos
indivíduos que se aquilatam as qualidades morais ou intelectuais” (A Alvorada,
23/12/1934, p.02). Na opinião do jornal o Congresso traria muitos esclarecimentos para
a população mestiça sobre a população africana, permitindo a sua valorização e um maior
reconhecimento daqueles enquanto negros, nesse caso, o jornal expressou: “as qualidades
fazem o indivíduo e não a cor”. Ainda, seguia o artigo: “raça considerada inferior, por
letrados e por analfabetos, o negro, indubitavelmente, tem de reagir ao preconceito
provindo das senzalas, das moendas e dos cafezais”.
A cor é uma das características que mais demonstra no convívio o caráter racial,
tanto nas relações sociais quanto nas crônicas escritas pela imprensa negra estudada. E é
principalmente em cima dessa característica física que o racismo se manifestava e ainda
se manifesta. O texto se propôs a analisar o início da década de 1930, no entanto, ainda é
um assunto bastante polêmico cujas discussões são inesgotáveis.

Fontes
Arquivo Histórico da Biblioteca Pública Pelotense
Fundo: Jornais
A Alvorada, de 1931 a 1935.

Referências
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Editora UNESP, 2006.

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SILÊNCIOS NEGROS NA HISTORIOGRAFIA CIENTÍFICA DA DITADURA


CIVIL-MILITAR (1964 – 1969)

Priscila Goulart dos Santos

“A carne mais barata do mercado é a carne negra


que fez e faz história
segurando esse país no braço [...]’’
A carne, Elza Soares

Aqueles nascidos de cor negra neste país posteriormente denominado de Brasil, ao olhar
para o passado, que história tem para contar? Quais histórias contam aqueles “cuja carne negra
fez e faz história segurando esse país no braço”? Nós negras e negros ao atentarmos para o
passado não temos “história para expor”194, o que temos (conhecemos na escola, ou através dos
meios de comunicação) são imagens de mercadorias (Willians, 2011) amarradas em um tronco
tendo seu corpo divido em partes por conta da quantidade ínfima das chicotadas a mando do
senhor branco. Esta é a história contada em todo livro didático de história do Brasil e também
a que aparece nas novelas e filmes, e este parece ser o lugar reservado para nós na historiografia
brasileira: a escravidão. O período da escravidão é o espaço das negras e negros na
historiografia brasileira, do mesmo modo que geograficamente nosso único lugar é África, e
culturalmente “nossa importância’’ é no samba e nas comidas, enfim “temos nossos lugares’’,
porém, é preciso problematizar estes “lugares”.
Segundo a historiografia a ditadura civil militar brasileira que iniciou em 31 de março
de 1964 terminou no ano de 1985, acontece que nasci dez dias depois do fim de vinte e um anos
de terror no Estado brasileiro, nasci em 10 de janeiro de 1986, ou seja, é um momento histórico
bem importante, pois se tratam dos dez primeiros dias de um processo de redemocratização do
Estado. Entretanto, há uma ausência da população negra na historiografia deste passado tão

 Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio


Grande do Sul, bolsista CNPq. Contato: <pris.poa@hotmail.com>
194 A historiografia brasileira já há muito produz uma nova história referente à população negra,

principalmente no que se refere aos estudos emancipatórios e pós – abolicionistas. Entretanto, quando me
refiro a uma história ausente, estou tratando não daquela produzida na academia, mas sim na historiografia
que chega às escolas, e que é a história que a maior parte da população negra que vai a escola pode conhecer.
Sem contar da história brasileira contada nos meios de comunicação que ainda é a história em que o negro
aparece apenas como o escravo, e o branco sempre como o vencedor/o poderoso.

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doloroso e recente para nós. Ora, onde estão nossas memórias de vítimas e de militantes
exilados? Onde estão nossas lutas (resistências)? E nossa arte e cultura (como resistência)? Por
que não estamos nos livros de comemorações de 40 anos do golpe? Ou no de 50 anos do golpe?
Que significados têm estes silêncios (historiográficos)?
Com a difusão das ciências nasce o mito da neutralidade cientifica que se esparge entre
os mais distintos pesquisadores. No entanto, “nenhuma ação ou pensamento é apolítico, toda
ação é política, portanto a neutralidade não existe’’ (Freire, 1983) ainda que o positivismo e o
pensamento cartesiano tenham tido grandes influências entre os pesquisadores, presentemente
já compreendemos que a subjetividade define a escolha dos objetos de análise, e principalmente
a formulação dos problemas de pesquisa. Neste sentido, entender que as pesquisas são
subjetivas nos auxilia a perceber que os discursos produzidos por elas têm ideologias políticas
e sociais.
Se os discursos possuem ideologias políticas e sociais, eles produzem silêncios. Numa
sociedade hierárquica escreve a história aquele que está numa relação de dominação, e quando
se trata de uma sociedade em sua origem escravocrata, quem escreve a história do Brasil? Nossa
sociedade é de origem escravocrata, portanto, este é um elemento fundamental para
entendermos o silenciamento historiográfico da população negra nas produções científicas,
jamais podemos esquecer que foram longos quatrocentos anos de escravidão negra. Bem
sabemos que a modernidade não inventou a escravidão, no entanto, a expansão dos países
europeus alterou a sua relação com o mediterrâneo e inaugurou uma nova escravidão que serviu
ao capitalismo mercantil,
Os escravos negros eram “a força e a energia deste mundo ocidental’’. A
escravidão negra exigia o tráfico de escravos negros. Portanto, a preservação
e o aperfeiçoamento do tráfico na África eram “uma questão de extrema
importância para este reino e as fazendas pertencentes a ele’’. [...] A liberdade
concedida ao comércio de escravos só se diferenciava da liberdade concedida
a outras atividades num único detalhe: a mercadoria em questão era o ser
humano. (Willians, 2011, p 63-66)

O historiador ainda salienta que o tráfico de escravos era um fim em si mesmo, uma vez
que se tratava de mercadorias que geravam altos lucros com a venda para os reinos que não
tinham como executar o tráfico. E ao mesmo tempo em que essa rede capitalista mercantil se
constituía e se fortalecia, discursos tanto científicos, quanto políticos e religiosos eram criados
para justificar e sustentar a escravidão.

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A escravidão no ocidente irá se diferenciar por conta do uso do elemento fenotípico para
inclusão ou exclusão social. As teorias teológicas cristãs criam os ideais de perfeição através
das cores: branco e preto, e até mesmo definindo caracteres fenotípicos de beleza. Já as teorias
científicas ganham força com a publicação do livro Origem das espécies de Charles Darwin,
que irá originar o ‘’ darwinismo social’’, influenciando todas as áreas de conhecimentos, Lilia
Moritz Schwarcz no livro Espetáculo das Raças (1993), nos fala dos equívocos das várias
interpretações da obra de Darwin,
[...] não são poucas as interpretações de A origem das espécies que desviam
do perfil originalmente esboçado por Charles Darwin, utilizando as propostas
e conceitos básicos da obra para análise do comportamento das sociedades
humanas. Conceitos como “competição’’, “seleção do mais forte’’,
‘”evolução’’ e “hereditariedade’’ passavam a ser aplicados ao mais variados
ramos do conhecimento: na psicologia, com H. Magnus e sua teoria sobre as
cores, que supunha uma hierarquia natural na organização dos matizes de cor
(1877); na linguística, com Franz Bopp e sua procura das raízes comuns da
linguagem (1867); na pedagogia, com os estudos do desenvolvimento infantil;
na literatura naturalista, com a introdução de personagens e enredos
condicionados pelas máximas deterministas da época, para não falar da
sociologia evolutiva de Spencer e da história determinista de Buckle.
(Schwarcz, 1993, p 73)

O darwinismo social impactou as políticas sociais, as ciências humanas e as religiões,


fortalecendo as sociedades escravocratas, pois respaldou o comércio de escravos e naturalizou
a escravidão. A comercialização de pessoas foi naturalizada com base em teorias que
auxiliavam a o processo simbólico de desuminazação que sofreiam os escravos, desta maneira
estas mercadorias constituíam basilares para economia. Negras e negros que não eram humanos,
eram mercadorias, logo não tinham o direito de ser ou dizer, muito menos de fazer ou ser
história.
Este sistema escravista concebido pela modernidade, que faz uso do critério cor e que a
“transformou seres humanos em mercadoria num sistema mercantil’’ (Willians, 2012) era
inteiramente original, neste sentido os elementos ‘’ cor’’ e mercadoria’’ que chegaram as novas
terras invadidas na condição de não-humanos, e por conseguinte subsidiados simbolicamente
pelas teorias cientificas racistas estes ao fim da escravidão serão impedidos de constituir a
sociedade enquanto cidadãos195.

195Poucos foram os negros que conseguiram conquistar um espaço na sociedade imperial. Houve os casos
daqueles que ingressaram na Marinha, na Guarda Nacional, que conseguiram cursar curso de Direito, de
Medicina, ver mais em SKIIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro; tradução de Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

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No Brasil, a escravidão foi o pilar econômico do período colonial até o golpe que deu
enceto da República. Ainda que no governo de D. Pedro II a Inglaterra tenha proibido o tráfico
de escravos, o a elite luso-brasileira passou a instituir uma rede de contrabando negreiro, uma
vez que
[os brasileiros] julgam os escravos indispensáveis à vida. No Brasil a lavoura
está na sua infância: uma foice, uma enxada e um machado é todo o
instrumento do lavrador [...] se a terra tem necessidade de alguma cultura, o
escravo, obrigado a trabalhos excessivos [...] em breve tempo perde a vida e
empobrece ao senhor: eis o que é mui frequente entre nós. Ora, neste estado
de atraso da nossa agricultura [...] acabar de um jato com a tráfico de pretos
africanos é querer o impossível. (Diogo Antônio Feijó apud Parron, 2011, p
98)

O governo de D. Pedro II (1840-1889) é marcado por discursos políticos–econômicos


em que a questão central do longo debate é a “revogação da lei de 183”1(Parron, 2011). Nesta
vasta rede discursiva de contras versos a favor, teorias cientificas e religiosas são utilizadas para
justificar a continuação do tráfico de escravos. A preleção da superioridade branca frente às
demais raças e a teoria de degeneração da miscigenação do conde Arthur de Gobineau
conquistará a elite brasileira fortalecendo o contrabando de escravos que perdurará durante todo
século XIX.
Já no final do século XIX, as discussões acerca da abolição, trarão para o destaque dos
discursos a “ideologia do branqueamento’’. Entretanto, o historiador Hofbauer nos diz que a
ideia de branqueamento complementa a escravidão, de modo que “o ideal do branco tem sido
(re)semantizado constantemente ao logo dos períodos históricos’’. (HOFBAUER, 2006: 27) de
modo que a crença na superioridade da raça branca e as possibilidades de transformações raciais
através de misturas, ou simplesmente a crença no possível desparecimento dos negros ao longo
do tempo não era uma novidade do final do século XIX.
A “ideologia do branqueamento” que auferiu força no Brasil, em meio à disputa
político–econômica pelo fim da escravidão, sustentada nas teorias biológicas raciais, ganham a
sociedade brasileira, que reproduz o discurso da superioridade racial na literatura, na música,
na história, e nas relações sociais. Ainda que as negras e negros através de seu trabalho e seus
corpos garantissem a base econômica do país, estes eram tidos como inferiores. Esta
inferioridade lhes reservou um lugar de exclusão social, hoje marcada pelo racismo e pelas

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desigualdades sociais. A estes sujeitos foi lhes negado a humanidade nos primeiros
quatrocentos anos em que aqui foram escravizados.
Direito de ser humano negado, depois lhes é negado um país, e por fim uma história.
Durante muito tempo as negros e os negros e o índios não estavam presentes na história do
Brasil, então nova onda historiográfica surgiu, e o país admitiu que no Brasil houve escravidão
(Cunha, 2005). Quando a sociedade admitiu que foram quatrocentos anos de escravidão, os
historiadores delegaram este lugar para as negras e negros na história brasileira. Isto significa
que há um hiato histórico, em que - nós considerados o “senso comum”196 - questionamos sobre
o que sucedeu em nossa história após a o período colonial e imperial brasileiro. Estes
movimentos discursivos produzem silêncios, criam sentidos e imagens que muito tem a dizer,
quando não falam. Hiatos históricos dizem muito quando se trata de uma sociedade construída
com base na escravidão negra. E um hiato pode ligar passado e presente em que o ausente do
silencio se faz presente ao longo de quase vinte uns anos de repressão política.
A realidade brasileira era (é) de uma sociedade plurirracial197, por conseguinte o “ideal
de branqueamento’’ era o que a elite e os intelectuais, a sociedade desejavam para o país, por
isso o Estado brasileira fará no início do século XX todo um trabalho político-econômico para
vinda dos imigrantes, pois era preciso instaurar o progresso, o Brasil republica queria ser
moderno, e principalmente queria esquecer seu passado depende de escravos. Era o Estado
fomentando a miscigenação que agora não tinha mais o cunho degenerativo, agora era a
possibilidade de embranquecer a nova sociedade brasileira.
Em suas relações externas o Brasil historicamente construiu o falso discurso de país
“do paraíso racial’’, e em meio ao processo de construção da identidade nacional a
“miscigenação pacífica” será um dos elementos para o cunho “democracia racial”, que através
de Freyre irá se difundir e se entranhar na sociedade brasileira de tal modo, que num primeiro
momento até militantes negros irão se apropriar desta representação discursiva.
Esta criação discursiva assegurou a população branca’ brasileira que a justiça havia sido
feita em relação às negras e negros, pois agora estávamos “em igualdade’’, e principalmente a

196 Aqui estou me referindo a senso comum aqueles que não estão dentro das universidades. Uma vez que
as novas historiografias infelizmente são compartilhadas em sua maioria dentro das universidades, em
eventos científicos e revistas cientificas. E assim a maior parte da população negra acaba por não conhecer
estas novas histórias. A maior parte da população negra que nem se quer consegue chegar ao Ensino Médio
acaba por conhecer somente a história da escravidão negra.
197 Desde o início das invasões dos europeus ao “novo mundo’’ um dos instrumentos de dominação foi o uso

da violência sexual, neste sentido no Brasil novos fenótipos foram gerados a partir destas violências.

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partir de tal imagem discursiva, foi nos determinado lugares sociais e na história. As
consequências sociais desta nova ideologia racista trarão agravantes para população negra,
Guimarães (2012) ao analisar o mito da democracia racial e as relações raciais no Brasil, aponta
para o fato que o uso do termo por Freyre não tinha relações com direitos sociais, mas sim se
tratava de uma “liberdade estética e cultura, e da criação e do convívio miscigenado’’.
A democracia racial criada numa sociedade remanescente da escravidão irá determinar
os espaços sociais “aceitáveis’’ e simbólicos que negras e negros deverão ocupar na sociedade
brasileira, neste sentido na história somos “aceitos’’ na condição de escravos, e no simbólico a
aceitação se dá na “promoção’’ da cultura afro-brasileira. Este “reconhecimento’’ oferecido
pela democracia racial, está longe de garantir os diretos sociais e civis à população negra,
O movimento negro ressurgiu, em 1978, como o fez em 1944, em sintonia
com o movimento pela redemocratização do país. Em sua agenda política
estavam três alvos principais: a) a denúncia do racismo, da discriminação e do
preconceito de que eram vítimas os negros brasileiros; b) a denúncia do mito
da democracia racial como ideologia que impedia a ação antirracista; c) a
busca de construção de uma identidade racial positiva através do afro-
centrismo e do quilombismo, que procuram resgatar a herança africana no
Brasil (invenção de uma cultura negra). (Guimarães, 2012, p 168)

Entender que o mito da democracia racial impede ações antirraciais, como um discurso
social que exclui negras e negros da sociedade em que a branquietude é o ideal e numa
sociedade em que uma efígie discursiva negra negativa foi historicamente construída,
sedimentada e disseminada, compreende-se quem pode tomar a palavra e fazer silenciar.
O mito da democracia racial que exclui uns, acaba por incluir outros e expõe as relações
raciais brasileiras, em que de um lado os excluídos alegam racismo e do outro lado os incluídos
alegam que no Brasil não existe racismo. Na década 50 a UNESCO patrocinou uma pesquisa
sobre relações raciais no país, quando os intelectuais brancos negavam a existência do racismo
que o Teatro Experimental do Negro denunciava, sobre esta discussão Guimarães (2012) mostra
o estudo realizado por Bastide e Fernandes (1955, UNESCO), em que os entrevistados “diziam
ter preconceito de ter preconceito, o que demostrava que o [preconceito racial] estava
arraigado’’ no meio social brasileiro.
A sociedade brasileira (ainda que muitas pessoas digam o contrário) tem arraigada em
si o preconceito racial. E é dentro deste ambiente que são produzidas as teses e dissertações
cientificas acadêmicas referentes ao nosso passado presente, que discursivamente foi
denominado ditadura civil-militar, portanto, eu pergunto: por que não há menções ao intelectual

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militante negro Abdias do Nascimento também exilado devido a regime militar? Onde estão as
memórias sobre ele para além do movimento negro? Onde estão as pesquisas sobre as lutas por
escolas nas periferias do Rio Grande do Sul durante os anos de 1964 a 1969198? E onde estão
as teses ou dissertações sobre as lutas por saneamento básico nos bairros periféricos de Porto
Alegre nos anos de 1964 a 1969? E as pesquisas sobre a resistência cultural negra em Porto
Alegre nos anos de repressão? Movimento estudantil só se faz na universidade?
O governo militar ao criar o inimigo – o comunismo – também pode continuar a
combater os “marginalizados sociais”, neste sentido a repressão e violência que negras e negros
já sofriam, foi então reestruturada pela Doutrina de Segurança Nacional, que tinha os meios e
o direito explicito ao uso da violência para reprimir militantes negros, e assim toda uma
violência foi institucionalizada e pontecializada pelo racismo,
“É difícil mensurar as diversas formas de violações sofridas pela população
negra durante o período da ditadura militar no país, basta rememorar notícias
de jornais, onde os negros e pobres figuravam em maior parte do noticiário
policial. [...] A discriminação racial contra os negros é muito mais antiga do
que a ditadura militar, remonta ao tempos coloniais e a escravidão.” (Relatório
Comissão da Verdade Rubens Paiva/SP)

Sabemos que o racismo não foi inventado pela ditadura, entretanto outro sentido lhe foi
dado. E assim como tráfico de escravos e o racismo era negado nos discursos do final do século
XIX e início do século XX, este também era negado pelos governos militares, de modo que
negando o racismo, foi possível evitar que a população negra criasse meios para denuncia-lo,
“[...] o governo não aspirava sofrer fiscalização internacional nessa área, o que levaria a um
desmascaramento da imagem que tentava impor de ter sido fruto de uma “revolução
democrática”199, e assim as denúncias de racismo eram tidas como invenções da esquerda,

[...] As esquerdas inventam as mentiras mais deslavadas, como esta em que o


Brasil, conhecido universalmente como hospitaleiro e amigo, aparece
machado pelo labéu do racismo e da xenofobia.
Então isso é uma questão que aparece também nos documentos relativos aos
movimentos negros. O racismo seria uma mera invenção das esquerdas para,
dentro dessa estratégia de guerra psicológica adversa, para inventar conflitos
inexistentes, denegrir o governo e, criando esses conflitos sociais, quem sabe

198 As escolas dos bairros periféricos da cidade de Porto Alegre além da maioria ter entre 20 ou 30 anos [o
que mostra que elas são fruto de lutas de um passado presente], seus nomes são de presidentes ditadores
militares, afinal foram construídas no período militar.
199 Relatório Comissão da Verdade Rubens Paiva/SP. Tomo I Parte III – Perseguição a população e ao

Movimento Negro.

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propiciar uma revolução. (Serviço Nacional de Informações, nº 10 outubro de


1971)200

A luta contra o racismo foi então mais um elemento de repressão ao Movimento Negro
que se reorganizou de modo mais político e nacional a partir de 1970, assim como também as
lutas por melhores condições sociais, muitos militantes associações de bairros, de escolas de
samba e outros clubes negros foram presos por lutar por direitos civis e sociais para população
negra, desta forma suas lutas foram consideradas lutas inimigas do governo. E tudo isto não
consta nas produções cientificas gaúchas sobre a ditadura civil militar. Quando o pesquisar
escolhe o seu problema de pesquisa, ou ao olhar para o passado e ao fazer as suas
problematizações, ele é subsidiado por teorias. Se todos os seres humanos fazem história, como
é possível problematizar o passado olhando apenas para uma parte dos agentes históricos?
Ao sair da escola básica a única história negra que conhecia era sobre escravidão, e ainda
hoje os estudantes que entram no curso de história da UFRGS conhecem a mesma história.
Será que não vale nos perguntar os motivos pelos quais ainda é esta a única história que
conhecemos na escola? A escola é instituição mais popular presentemente, é dentro dela que
aprendemos o que é a história do Brasil, e saímos desta escola sabendo que brancos são
conquistadores, vencedores de guerras, líderes, construtores, inventores, artistas, estudamos
sobre seus feriados, todavia referente as negras e os negros aprendemos que eles foram escravos
e ponto final, resumida a história brasileira que conheci, que meus atuais alunos conhecem, que
meus colegas no curso de história conhecem, e o mais triste é que mesmo quando resolvemos
fazer o curso de história, continuamos a aprender sobre grandes historiadores brancos e suas
histórias brancas, e se negros aparecem outra vez é na condição de escravos. Quando os
professores são questionados sobre a ausência de historiadoras e historiadores negros nos
programas, os relatos sempre são sobre como é difícil montar um programa, sobre como é novo
a inserção da população negra na universidade (pois nós não estamos aqui deste que o Brasil
foi invadido, o negro é algo novo no Brasil, por isso eles não estão preparados para ensinar
estudantes negros). Entretanto, há toda uma historiografia recente negra e que dentro da
academia também é excluída, de modo que caberão as negras e aos negros continuar no seu
devido lugar social histórico: a margem. Consequentemente, “a carne negra que faz história e
segurou este Brasil” continua fora da história.

200 Idem, Racismo, doutrina de segurança nacional e imagem do país.

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Os historiadores recentes admitiram que a ausência da população negra e indígena na


história do Brasil, em muito se deu por conta dos preconceitos e do racismo, sendo assim o que
podemos dizer sobre nossa história do passado recente? Quais as justificativas para que somente
algumas memórias sejam destaques? Insisto em dizer que todo o problema de pesquisa esta
baseado em teorias, em concepções políticas, e também em concepções sobre os seres humanos.
Que concepções referentes aos seres humanos podem estar por trás de produções cientificas
que ao olhar para o passado brasileiro, olhou em sua maioria para homens brancos (militantes,
instituições, intelectuais)?
Deixar de dizer algo é tão significativo quanto dizer, e um historiador ao optar escrever
uma história deixando outras invisibilizadas muito têm a dizer num pais de origem escravocrata.
A “harmonia racial” sustentada pelo mito da democracia racial, que delegou as negras e negros
o lugar da cultura e de alguns esportes como o seu lugar social, em muito influenciou as
produções cientificas nas mais diversas áreas, inclusive nas ciências humanas. A subjetividade
humana esta presente nas produções ciências, afinal a ciência inaugurada pela modernidade
nunca foi neutra e objetiva, toda produção parte de um contexto social histórico, e no caso
brasileiro o contexto é o racismo escondido no mito da democracia racial.
A ação política de dizer e não-dizer constitui um hiato histórico social, em que as
relações sociais não se constituem em harmonia, elas são resultados de enfrentamentos. Ainda
que aqueles que são historicamente silenciados venham a conquistar um lugar na academia, a
história é escrita e difundida por aqueles que têm o poder de “fazer calar’’, e neste jogo
discursivo, as ideologias históricas sobre negras e negros irão influenciar o dito e o não dito a
respeito do nosso passado presente.

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PARTE 4

E/I/MIGRAÇÕES NA AMÉRICA LATINA: QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS

Carmem Adriane Ribeiro


Marcos Antônio Witt
Rosane Marcia Neumann

O Simpósio Temático “E/i/migrações na América Latina: questões


historiográficas” tem como foco central a discussão da produção historiográfica no campo
dos estudos migratórios no contexto da América Latina. Partindo dos conceitos de
emigração, imigração e migrações, pretende reunir pesquisadores que integram e/ou
analisam a historiografia latino-americana, vinculada aos processos migratórios
pensados e concretizados desde o século XIX. Contemplará a produção memorialista, a
produção acadêmica e os clássicos a fim de proporcionar ambiente de intenso debate
sobre as obras e os autores.

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A COMISSÃO DE TERRAS E COLONIZAÇÃO DE PASSO FUNDO E


PALMEIRA E A RESOLUÇÃO DE CASOS DE POSSE E INTRUSÃO

Kalinka de Oliveira Schmit

Introdução
A migração de descendentes de imigrantes da região das colônias velhas para
novas áreas é denominada por Jean Roche, em seu livro A imigração alemã e o Rio Grande
do Sul (1969), como enxamagem. É resultado de uma combinação de fatores, tais como o
esgotamento das terras e o aumento populacional. Esse crescimento não permitia que a
região das colônias velhas absorvessem as novas gerações de colonos. Assim, para os que
pretendiam seguir trabalhando na agricultura como suas famílias, era necessário migrar
para novas frentes agrícolas.
Essa migração voltada para a reprodução da pequena propriedade chega ao
Planalto principalmente durante a República Velha. Porém, Rückert (1997) destaca que
já na década de 1870 a oligarquia fundiária regional reivindicava um projeto de
colonização para as áreas de mata, mas essa reivindicação fora atendida apenas após a
Proclamação da República.
Ocorre, porém, que já se encontravam na região dois grupos, os indígenas e os
caboclos, além de grandes latifúndios, em grande parte não utilizados. Estes grupos,
apesar de já ocuparem as áreas de matas muito tempo antes do processo colonizador se
voltar para a região, não possuíam títulos de propriedade sobre suas terras, o que os
tornava posseiros das terras que cultivavam.
Os caboclos não podem ser considerados um grupo étnico; eles devem ser
entendidos como um grupo resultante do meio em que vivem, ou seja, o ambiente
sociocultural é o que forma os caboclos. São incluídos nesse grupo os homens pobres que

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, sob orientação


da professora Dra. Rosane M. Neumann. Bolsista Capes pelo projeto “Bases históricas dos conflitos agrários
contemporâneos no norte do Rio Grande do Sul e Oeste de Santa Catarina: indígenas, quilombolas e
pequenos agricultores”. Contato: <kalinka.oschmitz@gmail.com>

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trabalham em atividades extrativistas além de cultivarem pequenas roças para o sustento


de sua família.
Por seu modo de vida, o caboclo sofria preconceitos por parte das elites locais. Essa
elite acabava por expandir sua propriedade sobre terras apossadas por caboclos, os
marginalizando; restava então ao caboclo se tornar “um peregrino, extraindo erva-mate
nos ervais públicos para a venda a particulares e a comerciantes”. (RÜCKERT,1997, p. 81)
Um evento que teve grande importância no desenvolvimento da propriedade
agrária e suas consequências foi a Lei de Terras de 1850, a primeira legislação
especificamente agrária no Brasil, e que tornou a terra uma mercadoria que deveria ser
adquirida através da compra, doação ou da herança. Com essa lei, a posse passou a ser
ilegal, tendo os proprietários o dever de regularizar suas áreas através dos Registros
Paroquiais, pagando todas as despesas necessárias para a cessão do título da propriedade.
Contudo, a promulgação da Lei de Terras de 1850 “acelerou a expropriação e a
marginalização dos caboclos” (RÜCKERT, 1997, p. 81), já que, por não possuir recursos
para a legitimação das terras que ocupava, o caboclo não tinha como obter o título de sua
propriedade – muitos nem sequer compareciam nas Paróquias para realizar o
procedimento – o que fazia com que suas terras acabassem por serem incorporadas em
áreas de grandes proprietários, interessados no crescente comércio de terras decorrente
do início do fluxo migratório para a região.
A Lei de Terras de 1850 fez com que o acesso à terra se modificasse; essa
modificação enfrentada por caboclos e indígenas que passaram a ser marginalizados das
próprias terras que cultivavam pode ser comparada, dadas as devidas diferenças, ao que
o camponês inglês sofreu com a política dos cercamentos no século XVIII, e que foi objeto
de estudo de E. P. Thompson em seu livro Costumes em Comum (1998).
Antes do processo de mercantilização da terra, o camponês inglês utilizava terras
baseados em costumes antigos, alguns vindos desde os tempos feudais, e que, por falta de
uma legislação escrita, possuíam diferenças de paróquia para paróquia. Já no Brasil, após
a revogação da lei sesmarial em 1822, passou a existir apenas o apossamento como forma
de conseguir terras, que perdurou até a promulgação da Lei de Terras de 1850.
Com a mercantilização da terra e a alteração do estatuto da propriedade, na
Inglaterra, os camponeses deixaram de ter acesso a áreas outrora comunais, que eram
essenciais para sua subsistência. Ficaram, portanto, à mercê dos proprietários das terras.

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Algo similar ocorreu no Norte do Rio Grande do Sul com o início da privatização
agrária. Caboclos/posseiros e indígenas, que utilizavam a terra desde muito tempo, mas
que não possuíam o título de propriedade, acabavam expulsos das mesmas, por conta de
ações dos grandes proprietários que possuíam meios e influências para aumentar ainda
mais suas propriedades e legitimá-las.
Ou seja, é possível perceber que tanto na Inglaterra quanto no Brasil, nesses
momentos de alteração da legislação agrária, quem se beneficiava eram os grandes
proprietários, que acabavam por prejudicar quem vivia do trabalho na terra, mas que não
a possuía legalmente.
Contudo, é importante frisar que posseiros não eram somente os caboclos que
viviam da agricultura de subsistência e da extração da erva-mate; posseiro também
poderia ser aquele grande proprietário que não possuía título definitivo sobre a área que
dizia ser sua. Apesar disso, Zarth afirma que de um modo geral, na documentação
analisada por ele, “o posseiro era um camponês que ocupava pequenas áreas e era vítima
constante de expulsão à medida que avançava a fronteira agrícola” (2002, p. 169).
Para esse trabalho é essencial a análise do conceito de intrusão. Esse conceito
começou a ser elaborado e utilizado a partir da criação das comissões verificadoras de
terras, que tinham como função discriminar as terras públicas das privadas, sendo
considerada como um trabalho de base para a colonização na Primeira República (SILVA,
2008). Zarth escreve que algumas fontes “denominam intruso ao camponês que ocupava
terras públicas ou privadas sem consentimento prévio de autoridade ou de proprietários.”
(2002, p. 170). Já Rückert (1997) discute que o posseiro passa a ser categorizado como
intruso quando, por não serem incorporados aos projetos de colonização, passam a
adentrar terras particulares.
Rückert segue afirmando que “a partir de 1890, é de interesse fundamental do
governo estadual dedicar toda a sua atenção à colonização do Norte, relegando, dessa
forma, os posseiros a um plano secundário.” (1997, p. 111). Porém, em nossas análises
dos relatórios produzidos pela Comissão de Terras e Colonização de Passo Fundo e pela
Comissão da Palmeira, é possível perceber um discurso de que, para iniciar de fato um
sólido projeto de colonização na região, seria necessário primeiramente resolver a
questão das posses dos elementos nacionais, pois somente assim se extinguiria qualquer
problema futuro envolvendo nacionais e colonos. É importante destacar, contudo, que o

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autor não utilizou em seu trabalho da documentação utilizada por nós e, portanto, não
teve acesso a tais dados para utilizar em sua pesquisa.
Há também o fato de que para a realização da divisão da terra em lotes coloniais,
seria necessário realizar medições em toda zona de ação das Comissões, separando terras
públicas de terras de particulares, e assim abarcando também as áreas apossadas por
nacionais, o que já delegaria um conhecimento sobre onde havia posses.
No período em análise nesse trabalho, os órgãos responsáveis pela verificação da
situação das terras públicas, da organização do serviço de colonização era, em âmbito
estadual, a Diretoria de Terras e Colonização – DTC –, e as Comissões de Terras e
Colonização – CTC – subordinadas à primeira, eram responsáveis por regiões do Estado.
Para o governo positivista do Estado, a organização da questão agrária era de suma
importância para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul, bem como o
acondicionamento dos colonos em suas propriedades e a regularização da questão dos
nacionais/caboclos. Pode-se afirmar que o governo estadual “tratava com muito rigor os
serviços de terras e colonização, bem como a questão da imigração” (CARON, 2009, p. 77).
Resolvendo-se a questão dos posseiros – legitimando suas áreas – se resolveria os
problemas que as posses causavam para a colonização.
Isso se deve em parte à doutrina positivista adotada pelo Partido Republicano
Riograndense – PRR –; é oportuno destacar também que por um longo período (1908-
1928), o diretor da Diretoria de Terras e Colonização foi Carlos Torres Gonçalves, grande
adepto do positivismo, que deixava transparecer isso em seu trabalho na Diretoria,
realizando trabalhos metódicos e mostrando uma grande preocupação na “condução dos
assuntos relativos à colonização e à imigração.” (CARON, 2009, p. 75).
Isso tudo influencia na ação das CTCs na organização da presença de nacionais em
terras públicas, a fim de resolver problemas, possibilitar o caboclo a ter o título de sua
terra, e ter espaço legal e sem ocupação para introduzir os colonos e imigrantes que
rumavam para a região Norte do Estado, em busca de novas terras.

As Comissões
As CTCs em questão foram criadas em momentos diferentes, como partes regionais
subordinadas à Diretoria de Terras e Colonização.

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As Comissões, apesar de terem a sua sede nos municípios de Passo Fundo e


Palmeira, – que naquele período tinham maior extensão do que atualmente –, também
abrangiam munícipios vizinhos em sua totalidade ou em parte, como por exemplo,
Soledade e Guaporé, no caso da CTC de Passo Fundo, e Cruz Alta e Ijuí, no caso da CTC da
Palmeira.
No caso da CTC da Palmeira, nos municípios de Cruz Alta e Ijuí, destacavam que
pouco restava a fazer de serviços de medição de terras, diferentemente da situação do
município da Palmeira, onde todo o serviço se iniciaria justamente em 1917 (RELATÓRIO
DE COLONIZAÇÃO, 1917, Ofício 300).
A CTC de Passo Fundo, criada no ano de 1907, foi fechada em maio de 1923 e reativada
em julho do mesmo ano. Enquanto isso, a CTC da Palmeira inicia suas atividades no ano
de 1917 – a ação da DTC na região norte do Estado se iniciou no ano de 1908
(NASCIMENTO, 2007) – quando se desmembrou da Comissão do Alto Uruguai, que havia
sido criada no ano de 1891.
Todavia, é oportuno informar que, ao fotografar a documentação produzida pela
CTC de Passo Fundo, não foi encontrado nenhum documento referente ao ano de 1917.
Ponderamos, no entanto, que isso não prejudica o recorte temporal escolhido para esse
trabalho, pelo fato de esse ano ter sido escolhido por conta do início das atividades da CTC
da Palmeira. Isso nos possibilita, então, comparar as ações de cada Comissão nesse
período – levando em consideração a forte influência positivista nos órgãos estaduais –,
já que se encontrava em fases diferentes de desenvolvimentos de seus trabalhos, reflexo
das fases distintas de colonização que estava ocorrendo na área de jurisdição de cada uma
delas.
Dessa forma, a Comissão de Terras e Colonização de Passo Fundo realizava, entre
seus diversos trabalhos, serviços voltados para a resolução da intrusagem e de
regularização de propriedades dez anos antes da Comissão da Palmeira. Isso não significa,
entretanto, que os problemas com intrusos e com áreas a se legalizarem não existissem
no ano de 1917 e posteriores; eles seguem ocorrendo, porém em menor número, em casos
mais pontuais.
Portanto, todo o trabalho que a Comissão de Passo Fundo teve em seus primeiros
anos, do início do trabalho de legitimação de terras e resolução dos casos envolvendo os

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nacionais, é possível acompanhar na CTC da Palmeira durante os anos analisados nesse


trabalho.

Os posseiros nos projetos de colonização

Como o trabalho de colonização seria o mais importante a ser realizado pela


Comissão, era de suma importância que se normalizasse a situação dos intrusos; para isso,
demarcariam pequenos lotes coloniais para estes, enquanto ainda se realizava o
assentamento de agricultores que pretendiam áreas. Assim, a atenção para a
regularização da propriedade dos intrusos, bem como para colonização, perpassa todos
os anos analisados aqui.
Isso pode ser percebido ao se analisar os pontos que constavam no programa geral
de trabalhos que deveriam ser executados pela Comissão, onde um dos primeiros pontos
era justamente a “demarcação de pequenas áreas para os numerosos intrusos instalados
nas terras, a começar pelas regiões mais infestadas deles.” (RELATÓRIO DE
COLONIZAÇÃO, 1917, Ofício 300). A partir desse ponto presente no programa geral de
trabalhos, é possível perceber que a Comissão entendia que, para um melhor
desenvolvimento do projeto de colonização na região, era necessário resolver a questão
da intrusagem, para daí voltar a atenção totalmente para o projeto de colonização.
Discutia-se que realizando os processos de legitimação de terras que haviam sido
requeridas antes de 1889, se “evitaria a intrusão efetuada por pessoas de fora do município,
e mesmo de ocupantes residentes no município.” (RELATÓRIO DE COLONIZAÇÃO, 1917,
cópia nº2), de acordo com esse trecho, podemos inferir que nessa região também ocorria
casos de intrusagem recentes, simultaneamente ao início da colonização e das ações para
a resolução de intrusão antiga; mostrando que não eram processos datados apenas de
antes da República.
Com a regularização da propriedade privada, acreditava-se que se impediria a
intrusão, além de fazer com que uma grande área (que era ocupada ilegalmente e mal
aproveitada) passaria para o Estado. Em três pontos do município esse trabalho requeria
urgência: Boi Preto, Campo Novo e Fortaleza. No Boi Preto, havia um total de 1.205
pessoas intrusadas, resultado também da expulsão de pessoas das terras da fazenda
Sarandi, realizada pelos proprietários. Percebemos então um alto número de pessoas na

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situação de intrusão e que, por isso, requeria grande atenção da Comissão, que deveria
trabalhar para solucionar os casos de intrusão.
No trabalho para solucionar a intrusão, e na ação contra esse constante fluxo de
indivíduos que poderiam se tornar intrusos, a Comissão atendia rapidamente os
indivíduos/famílias que chegavam, direcionando-os para áreas já loteadas, a fim de eles
não irem se apossar de áreas ilegalmente.
Muito se discutia sobre os motivos que resultavam no problema que era a
intrusagem. Do ponto de vista da CTC da Palmeira, foi a ausência do Estado na região por
muito tempo que permitiu que a desordem se espalhasse pelas terras públicas. Isto posto,
é então compreensível toda a atenção dispensada pela Comissão ao assunto, já que
visavam resolver o quanto antes essa questão.
Essa preocupação com a organização legal dos intrusos – os tirando dessa situação
–, resultado do mote positivista seguido pelo governo rio-grandense, ordem e progresso,
pode ser percebida quando se afirma que “a discriminação e demarcação de lotes
favoreceria a localização e facilitaria a compra de lotes e terminaria a desordem que
reinava no momento.” (RELATÓRIO DE COLONIZAÇÃO, 1917, cópia nº2). Isto é, para que
se instituísse o “estado normal” das coisas, era necessário que cada família se tornasse
proprietária da área utilizada para sua subsistência.
Com a grande relação entre tratar a intrusagem, a colonização e as medições e
demarcações de lotes, quando ocorria atraso nessas duas últimas, os casos de intrusagem
e o assentamento de novos colonos eram prejudicados, visto que havia um grande número
de intrusos e era intensa a chegada de novos colonos.
Havia uma preocupação com o bem-estar dos grupos intrusados, pois o “trabalho
de demarcação das terras ocupadas pelos nacionais e sua legitimação ou concessão em
condições favoráveis, base inicial e única eficaz do serviço de proteção.” (RELATÓRIO DE
COLONIZAÇÃO, 1919, resenha anual dos trabalhos da Comissão). Os nacionais que
também não possuíam moradias eram atendidos pela Comissão, que se preocupava com
o bem-estar dos seus patrícios, indo de encontro às posições defendidas por Carlos Torres
Gonçalves, diretor da DTC e o governo positivista, que buscavam a ordem para conseguir
o progresso.
Um problema enfrentado pelos funcionários de ambas as CTCS era a grande
extensão da zona de ação das mesmas, além do fato de que o número de funcionários era

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inferior ao necessário, sobrecarregando os funcionários existentes e dando margem para


que ocorressem irregularidades.
Já na documentação analisada da CTC de Passo Fundo, percebem-se relatórios
muito mais técnicos e burocráticos do que o conteúdo dos relatórios da CTC da Palmeira,
onde nacionais, indígenas e colonos apareciam mais marcadamente.
O caso da CTC de Passo Fundo é um pouco diferente, pois, além da década de
diferença de início dos trabalhos comparando com a outra, a região de abrangência sofreu
algumas alterações, pois ao longo de toda a existência dela, houve Comissões também em
Soledade e em Guaporé, mas que acabaram extintas e suas áreas passaram para os
cuidados da CTC de Passo Fundo. Essas alterações então propiciavam perdas de
documentos, confusão na hora de transportar essa documentação, o que poderia
complicar posteriormente na hora de verificar alguma posse ou propriedade, ou ainda de
realizar alguma indenização de áreas de terra.
Enquanto que na documentação da CTC da Palmeira não havia quase citação do
envolvimento de empresas, na de Passo Fundo isso era mais frequente, como em um caso
onde uma empresa estava interessada em uma área de terras, mas na área citada havia já
uma posse legalizada (de colono de origem europeia), e uma ainda não legalizada (de
origem nacional) (OFÍCIOS EXPEDIDOS, 16 de Maio a 15 de Julho de 1918, nº160). Esse
caso pode ser exemplo da aplicação da Lei de Terras de 1850, onde o posseiro nacional
podia não possuir meios de requerer suas terras, já que a partir do relatório podemos
supor que eram áreas próximas, e com isso contrastava com a propriedade legalizada do
colono – apesar de o mesmo apenas receber o título definitivo da área após a quitação do
pagamento do lote.
Como já dito, na CTC de Passo Fundo há menor ocorrência de relatórios sobre
intrusagem de terras durante o período em questão. No entanto, no ano de 1919 há um
caso onde havia ocupação com casas e benfeitorias em área que seria do Estado, mas que
também possuía uma posseira nacional, a perceber por seu nome, Ana Cláudia de
Quadros. O chefe da Comissão e outro funcionário deveriam realizar a desocupação da
área, agindo assim – pelo menos nesse caso que temos acesso –, de forma diferente do que
a Comissão da Palmeira realizava.
Contudo, dos ocupantes dessa área apossada, alguns já haviam requisitado junto
ao governo a compra da área apossada, e ainda havia outros que já possuíam o título

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definitivo das mesmas. Aqui então, há outro tipo de caso, onde os posseiros vão, por conta
própria, procurar o governo para legalizar a situação de suas terras, antes mesmo de a
Comissão entrar em contato com eles. Todavia, não foi possível acompanhar o resto desse
processo, por ele não constar junto com a documentação acessada no momento.

Considerações finais

A resolução da intrusagem era positiva em vários aspectos. O primeiro seria o


estabelecimento da ordem em um lugar anteriormente caótico; a segunda seria o melhor
relacionamento entre os caboclos e os órgãos governamentais e a população colona; e, por
fim, a possibilidade de trocas culturais entre os caboclos e estes últimos, o que
contribuiria para um melhor desenvolvimento dessa nova região colonial.
Com os caboclos se tornando proprietários legais das áreas que ocupavam,
também passavam a poder receber proteção e ter respeito da Comissão; já que com o
título não precisavam ser esquivos e deixariam de ter uma sensação de estarem
desprotegidos contra as mudanças (i.e. colonização) que estava em andamento. Além de
passarem a contribuir como mão de obra para obras realizadas pelas Comissões, dando
mais um retorno positivo para esse órgão estadual.
Após a análise dos documentos, podemos considerar que os trabalhos de medição
e demarcação de terras estão estreitamente ligados à resolução da questão de posseiros
e intrusos e, é claro, à questão da colonização. Já que, realizando esses dois trabalhos,
havia o conhecimento das áreas, o que propiciava um melhor trabalho de assentamento
de colonos e regularização dos casos de intrusagem.
Isso reforça a ideia de que a atenção dispendida sobre os casos de posses e intrusão
não pode ser considerada como inferior àquela que foi dispendida para a colonização, já
que um trabalho dependia do outro para ter melhor resultado. E a convivência entre
caboclos e colonos – possibilitada pelo assentamento dos primeiros em colônias – era
visto como algo positivo.
Pois, enquanto esperava-se que os colonos “ensinassem” técnicas modernas de
agricultura a esses indivíduos que cultivavam a terra de modo mais rudimentar do ponto
de vista dos defensores da colonização, os colonos impediriam de algum modo a formação
de quistos étnicos mais ligados a uma pátria longínqua do que ligados ao Brasil.

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Fontes

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Ofícios Expedidos 16 de Maio a 15 de Julho de 1918.

Arquivo Histórico Regional. Comissão de Terras e Colonização de Passo Fundo. Livro de


Ofícios Diretoria de nº2 a 753 de 1919.

Centro de Documentação e Pesquisas Históricas do Alto Uruguai. Comissão de Terras e


Colonização da Palmeira. Relatório de Colonização. 1917.

Centro de Documentação e Pesquisas Históricas do Alto Uruguai. Comissão de Terras e


Colonização da Palmeira. Relatório de Colonização. 1918.

Centro de Documentação e Pesquisas Históricas do Alto Uruguai. Comissão de Terras e


Colonização da Palmeira. Relatório de Colonização. 1919.

Referências bibliográficas

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Luce, Rosa & Cia Ltda no Alto Uruguai gaúcho – 1915/1930. Dissertação (Mestrado),
Universidade de Passo Fundo – UPF, Passo Fundo, RS, 2009.
GERHARDT. Marcos. História Ambiental da Erva-Mate. 2013. Tese (Doutorado),
Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Florianópolis, SC, 2013.
ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969.
NASCIMENTO, José Antonio Moraes do. Derrubando florestas, plantando povoados: A
intervenção do poder público no processo de apropriação da terra no norte do Rio Grande
do Sul. 2007. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
PUCRS, Porto Alegre, RS, 2007.
RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra – Ocupação e colonização do centro-norte do
Rio Grande do Sul – 1827 – 1931. Passo Fundo: Editora UPF, 1997.

SCHMITZ, Kalinka de Oliveira. Colonização no Planalto Rio-grandense: as Colônias dos


Coqueiros (1928) e Xadrez (1938). Trabalho de conclusão de curso (Graduação),
Universidade de Passo Fundo, UPF, Passo Fundo, RS, 2016.

SILVA. Marcio Antônio Both da. Construção do Intruso: o processo de apropriação da terra
na região serrana do Rio Grande do Sul (1889-1925). Revista Tempos Históricos, Marechal
Cândido Rondon, vol. 12, nº 2, p. 1-20. 2008.

THOMPSON, E. P. Costume, lei e direito. In: ________. Costumes em comum: estudos sobre a
cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 86–149.

ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX.
Ijuí: Unijuí, 2002.

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A PENA À SERVIÇO DA IGREJA CATÓLICA: O USO DA IMPRENSA NO


PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA SANTA SÉ (1871) E NA IMPLANTAÇÃO
DE UMA COLÔNIA TEUTO-CATÓLICA (1926)

Maikel Gustavo Schneider

Considerações iniciais

A Companhia de Jesus, “a mais célere comunidade de clérigos regulares, de fato a


mais poderosa das ordens religiosas modernas” (PIERRARD, 1982, p. 191), foi utilizada
pelos papas reformadores a fim de guiar as almas rumo a um itinerário simples para
chegar à salvação, com atuação destacada no Projeto de Restauração da Igreja Católica e
na assistência aos colonos e imigrantes no Sul do Brasil.
Acerca desse projeto da Igreja Católica, Arthur Blásio Rambo esclarece que

A Restauração Católica nada mais é do que a reforma da Igreja nas bases


doutrinárias e disciplinares que as circunstâncias dos tempos impuseram
e que, finalmente, foram formuladas nos documentos do Concílio. A
Restauração Católica fundamenta-se, em primeiro lugar, na volta ao
catolicismo tridentino, conduzido sob a autoridade direta do romano
pontífice. Opõe-se em princípio a qualquer tipo de composição e, mais
ainda, a qualquer forma de tutela do Estado. Foi nesse contexto que foi
entendido o conceito do Ultramontanismo ou Ultramontanos (ultra-
montes = além das montanhas), referindo-se aos teólogos, ao clero, aos
religiosos e ao povo em geral, que combatia o galicismo dos católicos
franceses que defendiam uma composição com o poder civil. Os
ultramontanos reivindicavam como autoridade máxima e única aquele
que tinha sua sede “ultra montes, além das montanhas, dos Alpes”, o papa
em Roma. (RAMBO, 2002, p. 287)

Insta mencionar que no Sul do Brasil alguns fatores foram decisivos na formação
de uma sólida base para que o Projeto de Restauração da Igreja Católica alcançasse o êxito
almejado pelos líderes religiosos, dentre eles, o fluxo migratório contínuo de imigrantes
católicos alemães e italianos, os incentivos e reforços que as ordens e congregações
religiosas recebiam para atuarem junto ao contingente humano, em especial os Jesuítas.
É preciso destacar, ainda, que esses religiosos estavam “inteiramente comprometidos


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Bolsista Capes.
Contato: <maikel.gustavo.schneider@gmail.com>

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com o projeto da Igreja, definido no Concílio de Trento, reafirmado pelo Concílio Vaticano
I [...], sempre sob autoridade inconteste do Sumo Pontífice” (RAMBO, 2002, p. 292).
Desse modo, no intuito de coroarem de pleno êxito o projeto da Igreja Católica,
constata-se que os religiosos valeram-se de três instrumentos básicos, a saber: o
associativismo, a imprensa e a escola juntamente com o professor paroquial (KREUTZ,
1991).
Nosso objetivo, na presente escrita, repousa sobre a imprensa, uma vez que “sem
dúvida que a difusão da imprensa foi um fator importante para o desenvolvimento do
Projeto de Restauração Católica entre os teuto-brasileiros”. (KREUTZ, 1991, p. 66). Por
oportuno, apresentaremos algumas publicações, em jornais católicos alemães, que
versam sobre o projeto de colonização Porto Novo, fundado em 1926, na região extremo-
oeste do estado de Santa Catarina, planejado, organizado e promovido pela Volksverein
für die Deutschen Katholiken in Rio Grande do Sul - Sociedade União Popular para Alemães
Católicos no Rio Grande do Sul, fundada em 1912 pelos Jesuítas. Os habitantes dessa
região eram colonos alemães católicos, formando uma comunidade alicerçada no rígido
controle social exercido pelo clero.
Desta forma, a imprensa será compreendida, nesta escrita, como uma estratégia
dos Jesuítas e da Igreja no amplo projeto de Restauração Católica, utilizada dentro do
campo religioso, capaz de forjar uma visão de mundo defendida pela instituição, bem
como para publicizar as obras e feitos de projetos patrocinados pela igreja.

O uso da imprensa no Projeto de Restauração da Igreja Católica

“Se Deus vos tiver comunicado o dom de falar e a ciência do escrever, a vossa voz
e a vossa pena estarão ao serviço da Igreja”. A partir dessas palavras, a carta pastoral
coletiva episcopal de 1890, convocava todos os clérigos e leigos a defenderem os
interesses da Igreja. Evidencia-se, com isso, a ciência dos bispos brasileiros diante da
grande importância que os meios de comunicação apresentavam, em especial a imprensa,
para a construção de ideias e visões de mundo, bem como para a formação de opiniões
públicas favoráveis à instituição.
“Destruidoras da família, da sociedade e da religião” (Pastoral Coletiva do
Episcopado Brasileiro, de 06 de janeiro de 1900), assim era classificada a imprensa que,

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naquela época, divulgava ideias sobre o liberalismo, a maçonaria e o protestantismo.


Diante disso, a Igreja Católica passou a condenar veemente esses meios de comunicação,
propondo a criação da boa imprensa católica como uma necessidade para enfrentar o mal,
combatendo-a com as mesmas armas.
Com essa percepção, surgiu uma imprensa que visava reforçar os valores das
comunidades católicas e cristãs, batalhando contra os textos proibidos e condenados pela
Igreja. “A imprensa, colocada ao alcance da coletividade, foi e é a principal arma, ou se
assim quisermos falar, a ferramenta universal a serviço de toda e qualquer realização do
espírito [...]” (AMSTAD, 2005, p. 289-290).
A partir desse contexto, é possível perceber que a Igreja começou a utilizar-se da
imprensa com o propósito de contestar os fatos e narrativas apresentadas por jornais e
revistas que denegriram a sua imagem e o seu agir enquanto instituição. Assim, o uso da
imprensa está vinculado à proteção dos valores e da tradição católica “o que significou,
em outras palavras, reordenar e manter os católicos como católicos, tanto sob o ponto de
vista religioso como das práticas litúrgicas.” (KLAUCK, 2009, p. 36).
Nesse aspecto, é necessário lembrar que “a religião legitima as instituições
infundindo-lhes um status oncológico de validade suprema, isto é, situando-as num
quadro de referência sagrado e cósmico” (BERGER, 1985, p. 46). Logo, os jornais,
almanaques e anuários editados pela instituição religiosa, em especial pelos Jesuítas, que
“foram o exército da Contra-Reforma, compromissado com o Papa, mergulhado na
disciplina e na obediência” (KREUTZ, 1991, p. 51), adquiriram status de verdade suprema
e sagrada, capazes de legitimar qualquer situação e imporem a visão de mundo e de
realidade defendida pela Igreja.
Sem embargo, na percepção da Igreja, não bastaria somente a publicação de textos
em oposição a má imprensa difundida por seus opositores. Era necessário um trabalho de
orientação juntos aos colonos e imigrantes a fim de que estes evitassem a má imprensa e,
principalmente, lessem a boa imprensa católica, papel esse que foi de competência dos
párocos. Assim, coube a estes sacerdotes a propagação e a recomendação aos fies da
leitura dos periódicos editados pela Igreja, ou por sua influência, e, ao mesmo tempo,
batalharem contra os escritos que não eram bem vistos pela instituição.
Então, a imprensa contribuiu de forma decisiva na tarefa de restauração e
doutrinação católica nas comunidades de fiéis. Por oportuno, passaremos a analisar agora

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a atuação desse importante meio de comunicação junto ao estado rio-grandense, que,


mais tarde, especificamente no ano de 1926, vai transpassar o Rio Uruguai e divulgar a
colonização em Porto Novo, no estado catarinense.

A imprensa alemã católica no Rio Grande do Sul


Inicialmente, Arthur Rambo (2003) identifica as três principais correntes
filosóficas-ideológicas que estavam presentes no Rio Grande do Sul no último quartel do
século XIX, gladiando-se diariamente na imprensa: liberalismo, protestantismo e
catolicismo. Sem embargo, os dois primeiros já possuíam órgãos oficial de imprensa e
seus textos eram publicados sempre com duras críticas à Igreja Católica.

Contra esses dois agressores os católicos não dispunham de nenhum


órgão capaz de defender a sua causa. A única coisa que os padres podiam
fazer em tais circunstâncias era instruir e esclarecer seus paroquianos em
sermões, no trato particular ou pela difusão de bons livros. Essa situação,
porém, não podia prolongar-se ao infinito. Foi então que o P. Feldhaus,
que se convenceu da necessidade de um jornal católico, imediatamente
deu os passos para a criação de um. Em 1871 mandou vir da Europa uma
pequena impressora manual.” (SCHUPP, SJ, 2004, p. 253).

Por tais razões, os católicos fundaram um jornal objetivando combater as


acusações e provocações da má imprensa. Nasce, assim, o Deutsches Volksblatt, jornal
direcionado exclusivamente para o público católico alemão, produzido em São Leopoldo,
a partir de 1871, sendo transferido em 1890 para a capital Porto Alegre, apresentando-se
aos leitores com as seguintes palavras em sua primeira edição:

Este jornal aparece de hoje em diante semanalmente e faz sua a missão


de apresentar ao público leitor de jornais as notícias mais recentes e os
acontecimentos de natureza política, científica e religiosa de forma mais
verdadeira e imparcial. Evidentemente, é preciso supor que o redator de
um jornal é obrigado a preencher graves obrigações perante o Estado, a
Igreja, a escola, a família e perante aquele que lêem e pagam seus
produtos. Animado com a melhor das boas vontades para cumprir esse
dever e oferecer aos leitores deste jornal uma leitura sadia e proveitosa,
o ‘Deutsches Volksblatt’ apresenta-se hoje ao público e pede
benevolência.” (Deutsches Volksblatt, 1875, n.º 49. apud SCHUPP, SJ,
2004, p. 254)

O Deutsches Volksblatt representou para a Igreja Católica no Rio Grande do Sul, em


especial para os Inacianos, um meio eficaz de propaganda e de oposição aos seus inimigos.

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Nessa primeira edição do jornal o redator Jakob Dillenburg, em um artigo publicado, deixa
claro que se “a tolerância e a equidade for lesada pelo lado oposto, o ‘Deutsches Volksblatt’
não pode ficar calado. Então será obrigado a defender seus princípios e irá defendê-los.”
(Deutsches Volksblatt, 1875, n.º 49. apud SCHUPP, SJ, 2004, p. 254).
Os católicos, em especial os Jesuítas, estavam em busca de um jornal que
representasse sua religião e sua religiosidade, objetivando a “verdade” nas informações,
além de notícias de cunho religioso, cultural, político e social, bem como, “com boa parte
reservada para a doutrinação” (KREUTZ, 1991, p. 66). Ademais, “sem dúvida que a difusão
da imprensa foi um fator importante para o desenvolvimento do Projeto de Restauração
Católica entre os teuto-brasileiros”. (KREUTZ, 1991, p. 66), além de servir como defesa
para os principais inimigos da Igreja Católica: como a maçonaria, a separação da Igreja e
do Estado, o ensino laico, o protestantismo e o positivismo.
Na obra “Cem anos de Germanidade no Rio Grande do Sul 1824-1924”, o autor Pe.
Theodor Amstad, SJ, deixa claro que, diante dos limites ultrapassados pela má imprensa,
“de modo especial em questões religiosas contra os católicos, estes terminaram perdendo
a paciência e fundaram um jornal próprio, o ‘Deutsches Volksblatt’, produzido em São
Leopoldo de 1871 a 1890 e depois transferido para Porto Alegre”. (AMSTAD, 2005, p.
295).
Diante disso, percebe-se que os Jesuítas conjugaram seus esforços na formação de
um jornal semanal, que buscava elencar um resumo das principais notícias da semana e
com grande parte de suas páginas reservadas para comentários e reflexões, que
objetivavam a doutrinação dos teuto-católicos, além de divulgarem seus projetos.
Presume-se que essa escolha [pelo jornal] possa estar ligada a fatores
como o custo mais reduzido para ser impresso e também para ser
adquirido, pois próximo às características de folhetins ou panfletos, seria
de fácil circulação e proliferação. Ao mesmo tempo, seria mais prático do
que livros ou revistas, mas mesmo assim algumas ordens religiosas
dedicar-se-ão a esse tipo de impressos (KLAUCK, 2009, 62-63)

Além do semanário, Lúcio Kreutz descreve que os inacianos também investiram


nos almanaques e anuários “que, saindo anualmente, apresentavam uma diversidade de
temas, primando, contudo, pela descrição de famílias e pessoas que, pela sua excelência,
deveriam servir de exemplo nas diversas instâncias da vida familiar”. (KREUTZ, 1991, p.
66).

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Um aspecto relevante que merece ser evidenciado é o apelo à manutenção da


hierarquia trazido pelo Projeto de Restauração Católica. Diante disso, em que pese os
religiosos terem repassado o jornal Deutsches Volksblatt para as mãos do jornalista
católico Hugo Metzler, em 1890, podemos afirmar que os Inacianos não abriram mão do
controle desse periódico. Nesse ínterim, “o apelo à obediência e a subordinação à
autoridade da instituição, como também a proposição de que os textos dos leigos sejam
corrigidos, são evidências explícitas das prerrogativas hierárquicas.” (KLAUCK, 2009, 56).
Já no ano de 1912, quando os Jesuítas fundaram a Sociedade União Popular para
Alemães Católicos no Rio Grande do Sul, em São Leopoldo, começou a circular o Skt.
Paulusblatt. “Nas suas edições mensais, a revista assumiu o papel de porta-voz mais
importante da Sociedade União Popular e de seu papel no Projeto da Restauração
Católica” (RAMBO, 2002, p. 301).
Para essa revista foi anunciado o Pe. Theodor Amstad, SJ, para o cargo de Secretário
Geral. Assim, a nomeação de um sacerdote para estar à frente da revista está longe de ser
por motivos de capacidade intelectual, mas sim para estabelecer a hegemonia e o controle
do principal meio de comunicação, formação e doutrinação da Sociedade União Popular.
Outra publicação que merece destaque, fundada no mesmo ano, é o almanaque
anual Der Familienfreund (O amigo da família), que surgiu para completar a tarefa de
divulgação, informação e doutrinação iniciada pelo Deutsches Volksblatt e,
posteriormente, pelo Skt. Paulusblatt, sempre em uma perspectiva católica e fortemente
aliados com o Projeto de Restauração da Igreja. Nesse sentido, “além das publicações
regulares, circularam inúmeras outras avulsas ou não, na sua imensa maioria perseguindo
o mesmo objetivo: a Restauração Católica” (RAMBO, 2002, p. 302).
Nos anos seguintes, as publicações acimas foram fortemente utilizadas também
com propósitos publicitários, divulgando o novo empreendimento da Sociedade União
Popular e dos Jesuítas: a colônia Porto Novo, fundada em 1926, exclusivamente para
alemães católicos. Assim, essa imprensa, até então rio-grandense, atravessa o Rio Uruguai
e alcança as terras do Extremo-Oeste catarinense, a fim de informar e doutrinar as famílias
alemãs católicas lá residentes.

A imprensa alemã católica à serviço da implantação da colônia Porto Novo

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A colonização na região Oeste de Santa Catarina está ligada, inicialmente, com o


fim da guerra do Contestado (1916) e com as possibilidades econômicas da região. Essa
área “tornou-se o principal polo de colonização de uma região onde atuaram muitas
empresas particulares – algumas empenhadas em formar núcleos etnicamente
homogêneos – que demarcaram e venderam as terras para imigrantes e colonos”
(SEYFERTH, 2004, p. 138/139).
O deslocamento migratório interno, a escassez de terras e os elevados preços
praticados no Rio Grande do Sul esgotaram as possibilidades de se estabelecer no Planalto
Rio-Grandense uma colônia da Volksverein. “Com isso, os colonos e os próprios
empreendimentos de colonização atravessaram o Rio Uruguai, e passaram a colonizar o
oeste catarinense” (NEUMANN, 2013, p. 171).
Desta forma, em 28 de janeiro de 1926, em uma reunião da qual participaram
Jacoob Becker e Pe. Johannes Rick SJ, como representantes da Sociedade União Popular, e
o Pastor Luterano Hermann Faulhaber, então diretor da empresa Chapecó-Peperi Ltda,
foi celebrado contrato de compra e venda da gleba de terras entre os rios das Antas,
Peperi-Guaçu e Uruguai, no Estado de Santa Catarina, totalizando uma área inicial de
382.057.816 m², que seria destinada à formação de uma colonização homogênea (PIAZZA,
1982). Nascia, assim, o Projeto Porto Novo e concretizava-se o sonho jesuítico: formar
cristãos novos em comunidades orantes e socialmente perfeitas (EIDT, 2011).
A partir da aquisição das terras e da demarcação dos lotes, a Sociedade União
Popular iniciou as propagandas para divulgação do empreendimento, por meio de
reuniões realizadas nas colônias rio-grandenses, de artigos, brochuras e de anúncios na
imprensa.
Desde o início da colonização em Porto Novo havia uma grande preocupação com
anúncios sobre o novo empreendimento da Sociedade União Popular. Na edição do
Deutsches Volksblatt de 14/01/1927 chama a atenção um anúncio que apresenta a colônia
católica alemã, destacando os preços e as condições de pagamento para os pretensos
compradores, bem como um plano de viagem para visitar a colônia:

Colônia alemã Porto Novo da Sociedade União Popular.


A "Volksverein" é proprietária legítima da Colônia Porto Novo. Deste
modo, a Sociedade União popular pode expedir diretamente a escritura
pública para os compradores que pagaram e arrotearem a terra, nela
construíram e moram. O valor atual do lote de 25 hectares é de

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Rs2:500$000. A partir de 1º de janeiro de 1928, o valor do lote de 25


hectares será elevado para Rs3:300$000. Deste valor devem ser pagos,
no mínimo, Rs1.000$000 de entrada. O restante pode ser parcelado em
acordo a ser firmado com a Administração da Sociedade, representada
em Porto Alegre pelo senhor Albano Volkmer, ou em Porto Novo, com o
senhor José Aloísio Franzen, na direção da Colônia.
Mediante pagamento à vista, atualmente há um desconto de 5%, sendo
que a partir de 1º de janeiro de 1928, após o reajuste do preço, o desconto
será de 10%. Associados da „Volksverein‟, além disso, tem um desconto
de Rs25$000 na compra do primeiro lote - e de Rs5$000 em cada novo
lote adquirido.
Plano de viagem: quem quer visitar Porto Novo, deve viajar até a cidade
de Neu Würtenberg, de onde constantemente partem caminhões para
Porto Feliz e, consequentemente. Porto Novo. Em Neu Würtenberg, a
Empresa Xapecó, Pepery Ltda. fornece todo o tipo de esclarecimento e
informação necessários. Viajantes que vierem por Santa Maria,
encontrarão hospedagem e informações sobre como continuar a viagem
no Hotel Müller. (ROHDE, 2011, p. 32-33).

No ano seguinte, os anúncios veiculados nos jornais sobre a colônia Porto Novo
alteraram seu foco, aumentando a agressividade e a presença, ante a fundação da colônia
de São Carlos, considerada concorrente do empreendimento da Sociedade União Popular.
A nova colônia, além de também ser destinada aos teutos-católicos, prometia em sua
propaganda uma estrutura muito semelhante a colônia da Sociedade União Popular, com
o diferencial da construção de uma ferrovia em um futuro próximo.
Diante disso, Pe. Rick, SJ, conhecido como “pai dos colonos”, responsável direto
pela implantação do projeto Porto Novo, publicou um artigo na edição de 06/06/1928, do
jornal Deutsches Volksblatt, sob o título “Fünf Monate in Porto Novo” (Cinco meses em
Porto Novo), onde argumentava nitidamente contra a nova colônia tentando demonstrar
que a via fluvial, apresentada por Porto Novo, seria de grande vantagem para o
escoamento da produção:

Faz-se grande propaganda com futuras ferrovias. Mas quem conhece


nosso país, sabe que não se pode contar assim com estradas de ferro
futuras. Um caminho por água vem a ser melhor. Ele existe, outrossim,
mesmo que não se ache aberto o ano inteiro.
[...]
Onde não há bom solo, de nada adiantam os trens, mas, onde há bom solo,
os trens podem ser construídos.
[...]
Quem conhece nossa terra sabe que não se pode contar muito com
futuros trens. Um caminho fluvial é melhor. Ele também está aí, mesmo
se não aberto durante todo o ano. Até o Paraná, um grande rio navegável,
devem ser em torno de 100 km; também esta via deverá interessar, pois

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a Argentina não deixará a região de Misiones despovoada se a divisa de


Sta. Catarina estiver colonizada (Deutsches Volksblatt, n.º 126, p. 1. apud
RABUSKE; RAMBO, 2004, p. 173-178)

Percebe-se, diante desses anúncios, uma propaganda veiculada pelos jornais


alemães católicos do Rio Grande do Sul dirigida diretamente para o seu público alvo,
objetivando demonstrar que a melhor escolha para um futuro próspero encontrava-se na
colônia da Sociedade União Popular, principalmente diante de sua homogeneidade étnica
e religiosa. Além disso, é nítida a influência dos Jesuítas, inclusive da edição dos textos a
serem publicados.
Outrossim, considerando que os Jesuítas foram os idealizadores e principais
incentivadores para a formação da colônia Porto Novo, constituindo-se esse um sonho
jesuítico, empreenderam eles todas as forças necessárias a fim de que a prosperidade
pairasse sobre o empreendimento. Por esse motivo, são inúmeras as publicações
encartadas nos mais diversos jornais anunciando que Porto Novo será “a maior região
comercial do Sul do Brasil” (RABUSKE; RAMBO, 2004, 172), nas palavras do Pe. Rick, SJ,
objetivando unicamente atrair mais compradores de terras.
Na edição datada de 03/10/1928, na página 03, do Deutsches Volksblatt,
encontramos publicado, com grande destaque, um quadro expondo dez razões para
aquisição de terras na colônia Porto Novo, encorajando os pretensos compradores a
adquirirem os lotes. O anúncio revela:

Por que vou para S. Canísio de Porto Novo?


1. Porque o solo é muito bom e todos os frutos (mesmo café) vingam;
2. Porque não mistura [brigas, confusões] ali e jamais haverá, como
praticamente em todo lugar em S. Catarina;
3. Porque há uma grande associação, a União Popular, por trás, que
também velará daqui por diante;
4. Porque não há ali terra para especulação;
5. Porque está tudo arranjado com igreja, escolas, dois sacerdotes e
porque já há muitos moradores ali;
6. Porque a colônia liga-se ao RGS;
7. Porque o melhor mercado, via fluvial, já está estabelecido na
Campanha e estados do Prata, onde os preços são melhores que em
Porto Alegre;
8. Porque a ferrovia de Iraí, se ela realmente for construída, fica bem
próxima para a ligação com Porto Alegre e São Paulo;
9. Porque não há formigas e nem virão porque não ocorrem geadas;
10. Porque quero cuidar física e espiritualmente dos meus filhos.
(Deutsches Volksblatt, n. 233, 03/10/1928, p. 03.apud NUNES, 2015,
p. 127/128)

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A partir dos anúncios aqui apresentados, é possível constatar que a Igreja utilizava
a imprensa não somente para transmitir sua palavra, doutrinando e informando seus
leitores, mas também para anunciar empreendimentos e obras que ela incentivava e
entendia como sendo primordiais para os católicos, a exemplo da colônia Porto Novo.
Podemos afirmar, ainda, que a imprensa tinha uma função pedagógica, doutrinária, e
informativa junto aos seus leitores, buscando preservar a família com ensinamentos
puramente cristãos.
Por derradeiro, com o estopim da Segunda Guerra Mundial a imprensa alemã foi
obrigada a adaptar-se à nova realidade, na medida em que foram obrigados a editarem
seus jornais em língua portuguesa, inclusive com alteração do nome. Aqueles que não se
adaptaram acabaram fechando as portas de suas redações. Desta forma, o Deutsches
Volksblatt passou a ser editado sob o nome brasileiro de “Gazeta Popular”, continuando a
atender aos leitores alemães católicos e, principalmente, aos interesses da Igreja, porém
com textos publicados em português.

Considerações finais
Muitos foram os papas que condenaram a má imprensa, aquela que estendia duras
críticas aos católicos e apresentava uma nova visão de mundo, alertando que ela é danosa
não somente para a Igreja, mas, principalmente, à família e à educação.
Para combater as “inverdades” divulgadas, “a Igreja Católica, em tempos
desfavoráveis, soube administrar os meios de gestar uma opinião pública favorável,
utilizando as armas que desde suas origens tinha acesso, como o púlpito e os
confessionários” (NEVES, 2013, p. 11). Com o advento da modernidade, foi obrigada a
combater com as mesmas armas daqueles que buscavam denegrir sua imagem, iniciando
o uso da imprensa.
Nesse aspecto, mister mencionar que o uso de jornais, almanaques, revistas e
folhetins não objetivam trazer instrução e conhecimento aos católicos, mas sim servirem
como profanadores das “verdades”, formando uma opinião pública regulada de acordo
com os preceitos ditados pelo clero. Desta forma, “a verdadeira função da religião não é
nos fazer pensar, enriquecer nosso conhecimento, acrescentar às representações que

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devemos à ciência, representações de outra origem e de outro caráter, mas nos fazer agir,
nos ajudar a viver”. (DURKHEIM, 1989, p. 493).
Diante disso, a partir do uso da imprensa dentro do Projeto de Restauração da
Igreja Católica, agindo na esfera pública como meio para formar opiniões, a Igreja buscou
afastar os fiéis da chamada má imprensa e longes de possíveis influências que pudessem
desvirtuá-los para outros caminhos - leia-se outras religiões/igrejas.
No que concerne ao Brasil, em especial na região Sul, os Jesuítas incumbiram-se
desse desafio, encabeçando e organizando uma imprensa alemã e católica completamente
alinhada com o amplo Projeto de Restauração da Santa Sé. Aproveitaram as publicações
não somente para a informação e doutrinação dos fiéis, mas também para divulgação de
obras e empreendimentos considerados como fundamentais para o futuro da Igreja nesta
região.
É o que podemos constatar a partir das propagandas e textos aqui apresentados e
vinculados pelos dois principais meios de comunicação dirigidos pelos Inacianos aos
alemães católicos: o Deutsches Volksblatt e o Skt. Paulusblatt. Ambos noticiários exaltavam
a Colônia Porto Novo, localizada no Extremo Oeste do Estado de Santa Catarina, pois os
Jesuítas há muitos anos sonhavam com a fundação de uma colônia homogênea,
direcionada exclusivamente para os alemães católicos, fato que não concretizou-se no
estado do Rio Grande do Sul. Assim, ao adentraram no estado Catarinense, conseguiram
concretizar seu principal sonho, formando uma comunidade de orantes que estava
voltada para os ensinamentos da Igreja, sem qualquer interferência externa.
Por fim, as propagandas veiculadas nos jornais e revistas foram o principal meio
de divulgação dessa colonização e de atração dos católicos, garantindo o capital humano
que a congregação necessitava para trabalhar. Acredito que a temática aqui esboçada
comportaria um amplo estudo acerca das publicações sobre a colônia Porto Novo na
imprensa alemã católica, algo ainda pouco explorado, buscando evidenciar as formas e os
argumentos que os Inacianos encontraram para atrair os colonos e concretizar seu sonho
utópico.

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ONDE ESTÁ O MEU PESQUISADO?: VELHOS LUGARES NA HISTÓRIA DA


COLONIZAÇÃO ALEMÃ E AS NOVAS PERSPECTIVAS TRANSNACIONAIS
PARA OS ESTUDOS MIGRATÓRIOS.

Patrícia Bosenbecker

Durante a construção da minha carreira acadêmica, meu objeto de pesquisa foi


alternando-se entre a colonização alemã no sul do Rio Grande do Sul, a instalação dos
primeiros grupos familiares na Colônia São Lourenço e a trajetória da família Rheingantz,
em termos de empreendedorismo imigrante. Em suma, podemos dizer que família
Rheingantz foi um dos mais influentes e importantes grupos empreendedores de origem
alemã do sul do Rio Grande do Sul. Ainda no terceiro quartel do século XIX, a família foi a
responsável pela construção de casas comerciais, uma colônia agrícola e fábricas de
chapéus, lã, algodão e aniagem. Esses negócios, que tinham por base a mão de obra
imigrante, estavam centrados nas cidades de Rio Grande e Pelotas.
Em um primeiro momento, a família permeou a região com pontos comerciais, que
abasteceram o sul da Província de São Pedro, com gêneros alimentícios. Nesse período,
de caráter mais comercial, os rumos da família eram conduzidos pelo primeiro Rheingantz
a aportar no Brasil, Jacob, ainda em meados do século XIX. O maior dos estabelecimentos
foi, no entanto, um complexo fabril, que, embora tenha trocado diversas vezes de nome,
ficou conhecido como Companhia União Fabril, erguida por Carlos Guilherme,
pertencente à segunda geração do grupo, já nascida no país. A primeira fábrica foi fundada
em 1873 e é considerada a primeira do Brasil no ramo de tecidos de lã. O complexo fabril
chegou a abastecer o exército brasileiro, contando, durante a Primeira Guerra Mundial,
com mais de 1200 funcionários (ROCHE, 1969, p. 507) e funcionando praticamente o dia
todo. As fábricas permaneceram na família até o final da década de 1950, quando eram
administradas pela quarta geração familiar, bisnetos do imigrante Rheingantz.
Um dos primeiros passos para a construção de qualquer pesquisa é, naturalmente,
a realização de uma revisão bibliográfica. Em se tratando de imigração alemã no Rio
Grande do Sul, as primeiras leituras buscam os textos denominados clássicos, como as


Doutora em Sociologia/UFRGS. Contato: pbosenbecker@gmail.com.

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obras produzidas por Ernesto Pellanda, Jean Roche, Telmo Moure ou Eugênio Lagemann,
entre os nomes mais conhecidos. Naturalmente, esses autores possuem diferentes
concepções sobre a industrialização ligada a imigração alemã, como mostrou Gertz
(2014), e não podem ser classificados no mesmo grupo historiográfico, contudo, essas
questões não são necessariamente o objetivo desse artigo, que foca sua análise nos espaço
ocupado pela família Rheingantz na historiografia da imigração alemão no Brasil. A minha
pergunta é como exatamente os Rheingantz são caraterizados, mostrados ou tratados por
esses autores essenciais? A minha preocupação durante a leitura que aqui realizo
evidentemente é encontrar informações sobre os membros da família Rheingantz ou
sobre a fábrica União Fabril e a colônia São Lourenço nestes livros.
O primeiro texto a ser analisado é o livro de Jean Roche (1969). Entre as questões
trazidas por esse autor está a classificação da Colônia São Lourenço como “uma ilha
agrícola numa mancha florestal, no meio de uma zona luso-brasileira de pecuária, na
planície” (ROCHE, 1969, p. 179)201. Jacob Rheingantz pouco aparece nos volumes e tanto
Jacob e o quanto o filho Carlos Guilherme marcam a fusão de empreendedorismos na
região sul do Estado sob o nome Rheingantz. Roche (1969, p. 193), apesar de delinear que
a influência alemã na região sul não foi influência decisiva ou a mais importante,
demarcou a contribuição comercial dos alemães em geral e dos Rheingantz em particular
nas cidades de Rio Grande e Pelotas, como nesse longo trecho:

É ainda Pelotas que abriga menos descendentes de alemães: a “Princesa


do Sul” é, com efeito, a cidade ‘da aristocracia do sebo’, o centro da
transformação dos produtos da pecuária, couros verdes e carne seca. É a
essa atividade que deve o esplendor do século passado, e nela os alemães
jamais se impuseram. [Os alemães] Desempenharam papel mais
importante em Rio Grande, controlando, há uns cem anos, o grande
comércio de importação. Era em Rio Grande, porta para o oceano do
Estado, que faziam escala os navios europeus que não podiam ou não

201Como já tratei na minha dissertação de mestrado: “Essa descrição define de maneira singular a situação
da referida colônia, fundada dentro dos limites do município de Pelotas, que era um pólo de colonização
portuguesa e o centro econômico da Província na época, posição demarcada pelo sistema de criação de gado
e de produção regional de charque, ou seja, pelas estâncias e pelas charqueadas. A expressão “ilha de
colonização” foi empregada no sentido de salientar o isolamento dos colonos, afastados dos grandes centros
de colonização e que, por tal razão, apresentariam diferenças sutis nas condições de vida comparando-se
com as dos colonos da região serrana do Rio Grande do Sul. No entanto, a multiplicidade de contextos e de
grupos que se entrecruzaram na região colonizadora mais ao sul do Estado gaúcho apagou a solidão da ilha
e a reconfigurou como espaço central de relacionamentos entre diferentes grupos étnicos.”
(BOSENBECKER, 2011, p. 6).

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queriam subir até Porto Alegre; certas casas de comércio da capital


possuíam uma agência em Rio Grande, às vezes mesmo era o inverso.
Também em Rio Grande se fundaram as primeiras fábricas alemães, a dos
tecidos Rheingantz e a dos charutos Poock. Os alemães, entretanto, nele se
isolaram no comércio e nunca foram contados senão por centenas, ainda a
maior parte deles olhava para a Alemanha antes que para o interior do
Estado, em cuja vida pouco estavam integrados.
Se excetuarmos, pois, algumas firmas comerciais e algumas marcas de
fábricas, sua presença quase não se fará sentir, e essas cidades [Pelotas e
Rio Grande] conservam até hoje202 esse aspecto tipicamente luso-
brasileiro: calçadas de mosaicos brancos e pretos, casas “uma porta e uma
janela”; fachadas cobertas de azulejos ou caiadas de verde e rosa
portugueses203.

O autor (ROCHE, 1969, p. 505) deixa claro que “A fundação da fábrica Rheingantz
marcara o início da indústria rio-grandense.”, contudo, o exemplo descritivo das grandes
empresas e empresários do ramo de tecidos (p. 534-537) é A. J. Renner. Anos mais tarde,
outro importante autor, Paul Singer (1977, p. 170-174) observou também que o início da
industrialização do Rio Grande do Sul teve seu centro em Pelotas-Rio Grande, antes da
década de 1890, e não em Porto Alegre, que se tornaria o maior polo industrial somente
após a Primeira Guerra Mundial, ressaltando ainda o importante papel exercido pelas
empresas Rheingantz no sul gaúcho para a consolidação dessa posição, mas não revelou
as ligações das gerações da família Rheingantz no extremo sul, a que coloniza e a que
industrializa, suas redes, nem como ela opera na metade sul. Claramente, não é este
objetivo do texto de Singer (1977), que foca sua análise no processo de desenvolvimento
de Porto Alegre, e, dessa forma, avalia a relação entre a industrialização da capital gaúcha
e colonização alemã da região norte do Estado.
Por outro lado, as cidades de Pelotas e de Rio Grande formavam o principal eixo
econômico do Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX, a economia local
baseada na produção e comercialização do charque e do couro dominou o Rio Grande do
Sul até o fim do século XIX. Com o crescimento da região norte da província, de
colonização alemã, através de um extenso processo de ocupação, do desenvolvimento da
agricultura e, do posterior incremento da agricultura comercial, o norte toma a posição

202 Jean Roche escreveu o referido livro durante a década de 1950, defendendo o trabalho como tese de
doutorado em 1962, na Universidade de Paris V, Sorbonne. O autor pesquisou e reuniu o material durante
estada de sua família no Rio Grande do Sul, entre 1945 e 1953. Veja mais informações em Dreher (2014).
203 Grifos nas citações dos autores são meus, demarcando os trechos que mais interessam na pesquisa pelos

membros da família Rheingantz.

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hegemônica do sul. Segundo Singer (1977, p. 164), a importância dos grandes


comerciantes da região colonial foi significativa, pois foram “vendistas” alemães que
reuniram o excedente da produção de subsistência dos colonos, através do escambo,
realizado antes da fase da agricultura comercial204. Além disso, esses mesmos
comerciantes compravam produtos coloniais, vendiam artigos importados, dominavam o
transporte nas regiões e passaram a investir em pequenas indústrias, que se
desenvolveram com maior força no fim do século XIX. Como já mencionei em outros
trabalhos (BOSENBECKER, 2011), Jacob Rheingantz monopolizou para si e sua família os
processos da evolução analisada por Singer205, pois não controlava somente o comércio
(ou o preço dos produtos) durante os primeiros momentos da imigração em São Lourenço
(possivelmente, os 10 primeiros anos da colônia), mas também o transporte de
mercadorias e a venda e distribuição de produtos manufaturados ou industrializados,
como tecidos e móveis, por exemplo.
A discussão sobre a industrialização das regiões e suas principais cidades (no caso
aqui, Porto Alegre e o eixo Pelotas-Rio Grande) parece interessar aos pesquisadores
preocupados com a relação entre o desenvolvimento industrial e a colonização alemã.
Nesse sentido, Telmo Moure (1980, p. 103) contribuiu com um artigo público na coleção
RS: imigração e colonização, no qual relata de tal forma o grupo Rheingantz:

Em 1874, em Rio Grande, com Carlos Guilherme Vater, imigrante alemão, e


Rheingantz, filho do fundador e organizador da colonização alemã em São
Lourenço, teve início realmente a industrialização no Rio Grande do Sul.
Eles fundaram a “União Fabril”, cuja maior parte do capital investido
pertencia ao segundo. Pelotas, a partir de 1881, foi escolhida por
Rheingantz para fundar uma fábrica de chapéus. Em 1884, ele desfaz a
sociedade com Vater da “União Fabril”, amplia o capital de 90 para 600
contos de réis e, dois anos após, possuía três fábricas em Rio Grande (uma
de tecido de lã, outra de algodão e a última de aniagem), a fábrica de

204 Segundo Singer (1977, p. 159) as colônias passavam por três fases de expansão colonial: a primeira fase
correspondia ao desmatamento e a agricultura de subsistência, a segunda fase se caracterizava pela
expansão agrícola e exportação de excedentes, e a terceira, correspondia à especialização agrícola, tendo
em vista a comercialização.
205 Podemos comparar a evolução econômica da família Rheingantz, investidores coloniais, comerciantes, e,

por fim, industriais, e seus investimentos no eixo Pelotas-Rio Grande, com a evolução e influência, em
especial referida por Singer (1977, p. 165 a 167), exercida por Henrique Ritter Filho, A. J. Renner e Frederico
Mentz, em Porto Alegre, que como grandes comerciantes expandiram suas atividades ao ramo industrial,
promovendo a industrialização da capital do Rio Grande do Sul a partir da exploração do comércio nas
colônias e com investimentos na área colonial do Vale dos Sinos e do Caí, como empresas de transportes,
pequenas indústrias, e comércios em geral, e, portanto, promovendo uma industrialização ligada às
“consequências da colonização alemã”.

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chapéus em Pelotas e um terreno na cidade do Rio de Janeiro, com a


finalidade de instalar uma subsidiária da fábrica de tecidos de algodão.
Ao contrário da fundição e estaleiro Becker, a indústria têxtil de Rio
Grande e Pelotas, estava voltada ao mercado interno brasileiro, hajam
vistas as preocupações de Rheingantz em expandir-se para o centro do
país.

No mesmo volume, outro artigo publicado por Lagemann (1980, p. 132) corrige as
informações, já que foi “Carlos Guilherme Rheingantz, filho do comerciante Jacob
Rheingantz, fundador da colônia de São Lourenço, dedicou-se ao comércio em Pelotas
antes de associar-se a seu sogro e ao alemão Hermann Vater para fundar a empresa
Rheingantz e Vater [primeiro nome da União Fabril]...” Até o presente momento, é
possível notar que Jacob Rheingantz é o fundador da colônia São Lourenço, uma “ilha” que
está localizada em Pelotas, local estranhamente escolhido pela família Rheingantz para
construir seus negócios, já que era o centro da economia luso-brasileira ou da aristocracia
regional. Em Rio Grande, é Carlos Guilherme que se consolida como o fundador de uma
grande indústria têxtil, inaugurando a industrialização gaúcha.
À primeira vista, parece existir certa inconformidade por Rio Grande e Pelotas
terem sido os polos onde a indústria nasceu e não uma cidade do norte do Estado, mesmo
que tal processo tenha ocorrido pelas mãos de alemães e descendentes. Este é o primeiro
aspecto que é preciso considerar, pois é importante operar uma inversão no pressuposto
de análise, se a intenção for entender o papel da família Rheingantz e do
empreendedorismo produzido por ela no sul do Estado. Assim, é preciso refletir sobre a
própria dinâmica das cidades de Pelotas e Rio Grande, como polos econômicos
provinciais, como grandes espaços receptores de imigrantes de várias nacionalidades
durante todo o século XIX, como cidades importantes que recebem agentes e
comerciantes estrangeiros sejam pequenos, médios e grandes, inclusive os mais
importantes exportadores e representantes comerciais internacionais206, como
hamburgueses, bremenses, ingleses, americanos, entre outros.
O segundo aspecto é buscar entender que a colônia São Lourenço não é uma ilha,
na qual a família Rheingantz levou os imigrantes alemães. A colônia estava localizada no

206 Veja artigo de Torres (2010), no qual o autor reproduz as principais empresas estrangeiras de Rio Grande

a partir do texto Impressões do Brasil no século vinte: sua história, seu povo, comércio, indústrias e recursos,
editado por Reginald Lloyd, em 1913.

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4ª distrito de Pelotas, em uma imensa área da Serra dos Tapes, cercada por estâncias
(BOSENBECKER, 2011), campos que se limitavam pela margem leste com a Laguna dos
Patos, que dava a ligação para as grandes cidades Pelotas, Rio Grande e até Porto Alegre.
Entretanto, os Rheingantz não podem ser considerados construtores de uma “ilha” de
colonização, nem subentendidos como pertencentes a uma situação isolada de imigração
alemã, pois possuem uma ampla rede de relações com fazendeiros, comerciantes e
políticos brasileiros, disputando espaços centrais no jogo político e econômico do Rio
Grande do Sul, nas duas gerações aqui tratadas, e consolidando a colonização como
empreendimento no seio charqueador da província (BOSENBECKER, 2017). Sem avaliar
esses dois aspectos – que os Rheingantz possuem uma ampla rede social e comercial na
região e que o eixo Rio Grande-Pelotas é um dos mais importantes polos econômico,
político e social da província – não será possível perceber o grande impacto da instalação
da Colônia São Lourenço, nem a explosão nas disputas agrárias da região, ou o predomínio
dos comerciantes alemães de grande porte nas duas cidades locais e o papel da família na
industrialização gaúcha.
Assim, o lugar da família Rheingantz na conjuntura da historiografia tomada aqui
como a clássica parece ter começado como um lugar estranho. Os Rheingantz construíram
grandes empreendimentos, mas não sabemos como ou com quais condições essa situação
pode ocorrer. Esse lugar, essa posição de grandes colonizadores e empresários, mas ao
mesmo tempo de deslocados empreendedores alemães que os Rheingantz ocupam nos
textos, é constituído pelo lugar diferente, uma vez que não estão conectados com o espaço
e as redes que chamaremos de “tradicionais” das “dinastias germano-rio-grandenses” de
empreendedores. Contudo, essa condição da família Rheingantz está construída sob uma
base documental histórica e, consequentemente, uma pesquisa muito tímida sobre a sua
situação social, econômica, política e cultural no Brasil.
Em outro sentido, a historiadora Sandra Pesavento (1980), no volume aqui já
citado RS: imigração e colonização, também avaliou a participação política dos imigrantes
e descendentes, especialmente na primeira República. Conforme a autora (1980, p. 180):

A participação política dos italianos, portanto, deu-se mais como massa


eleitoral de manobra, dentro dos quadros de uma política de cabresto de
uma estrutura oligárquica de mando. O apoio ao partido no governo
(PRR) revela-se indispensável no caso, na medida que representa a forma
de angariar favores. Os alemães, que conseguiram eleger deputados ao

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longo da primeira República, tiveram seus representantes da mesma


forma cooptados pelos esquemas de poder. Os nomes do Dr. Jacob Kroeff
Neto, Cel Frederico Link, Tem. Cel. Edmundo Bastian, Tem. Cel. Arno Philipp
e Major Alberto Bins são exemplos disto. Ingressando nos quadros do PRR,
recebendo títulos da Guarda Nacional, notabilizaram-se pela sua eficiência
em trabalhos de comissões e comitês. O fato de apoiarem a situação política
no Estado e de ocuparem posições de destaque na vida econômica os
tornava elementos legitimados pelo sistema e seus defensores.

Novamente, nenhum Rheingantz é citado. Conforme pesquisa recente


(BOSENBECKER, 2017), podemos comprovar que na segunda geração dos Rheingantz no
Brasil, Carlos Guilherme foi eleito para cargos no município de Rio Grande, da mesma
forma que seu irmão, Alfredo Jacob, gerente da União Fabril, foi administrador do Centro
Republicano e nomeado tenente-coronel pelo 59º batalhão da reserva da guarda nacional.
Já em Porto Alegre, outro irmão, o advogado Oscar Felipe Rheingantz foi secretário do
PRR e chegou a ocupar interinamente a direção da Instrução Pública do Estado, no inicio
da República. Assim, mais uma vez, os Rheingantz não estão presentes onde efetivamente
estavam, embora estejam no lugar de grandes empreendedores, como mostrou Pesavento
em outros textos também da década de 1980207.
A “pá de cal” é trazida por Carlos Henrique Oberacker Jr. (1968) em uma obra
intitulada “A contribuição teuta à formação da nação brasileira”. O autor (1968, p. 303)
retrata Jacob Rheingantz e a colônia São Lourenço da seguinte forma:

Bem mais distanciadas dessas três colônias alemãs principais [fundadas


na mesma época, Santa Cruz, Monte Alverne, Santo Ângelo], na Serra
Geral, fundou, em 1858, no hinterland dos municípios de Pelotas e São
Lourenço, na época ainda pouco importantes, o comerciante alemão Jacó
Rheingantz a colônia de São Lourenço.

Começa nesse trecho a construção clássica sobre o lugar dos Rheingantz na sua
primeira geração. Bem mais distante era a Colônia São Lourenço é o primeiro
pressuposto. Como já tratamos neste artigo, a colônia está praticamente no lugar errado
do Estado, ou seja, no sul, no interior de municípios pouco importantes, e não na metade
norte. Evidentemente, há dados incorretos mesmo em curta sentença, pois São Lourenço

207Em outros dois textos de Pesavento, “História da Indústria sul-rio-grandense” (1985) e “A burguesia
gaúcha” (1988), novamente os Rheingantz são citados como grandes industriais e é possível acompanhar
vários dados sobre a produção das fábricas, a relação entre a direção das empresas e os trabalhadores e, de
certa forma, o papel que os empreendimentos possuíam em termos econômicos e sociais no Estado.

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somente tornou-se município em 1884, e em 1858, a colônia foi criada no interior


(hinterland) de Pelotas, um dos mais importantes municípios em termos políticos, sociais
e econômicos do Rio Grande do Sul de então. O autor também alega que Rheingantz
comprou 52 mil hectares de terra do governo provincial, o que não está correto, pois o
colonizador adquiriu essa quantidade de terras somando dois terrenos devolutos
comprados do governo Imperial e de fazendeiros da região, além do mais sua família
continuou colonizando terras na região até 1893. Entretanto, Oberacker Jr. (1968, p. 305
e 306) é um dos poucos autores aqui tratados que demostra o motivo pelo qual
Rheingantz ocupa esse lugar diferente:

A colônia do Dr. Hermann Blumenau, a par da colônia Dona Francisca e


Santa Cruz, é considerada como a colônia alemã mais perfeita em todo o
Brasil. Efetivamente, e com razão, o nome Blumenau entrou para a
História, consubstanciando a quinta-essência do que seja a obra germânica
de pioneiro e de cultura. Hermann Blumenau, falecido em 30 de outubro
de 1899, em Brunsvick, foi muito mais do que um honesto diretor de
colônia. Era ele, para os seus colonos na mata virgem, um guia no setor
econômico e espírito-cultura, era o seu auxiliar na prática e conselheiro
nas seus necessidades pequenas e nas grandes aflições. Para o Dr.
Blumenau, colonizar significa muito mais do que uma questão
meramente comercial. Colonizar, para ele, era missão, e como ele próprio
dizia, a solução de um problema cultural, que merecia o sacrifício de toda
uma vida, da saúde e do patrimônio. Entre a sua colonização e a de um
comerciante como (306) Jacó Rheingantz há uma grande diferença. Não
que, para Jacó Rheingantz, a colonização tenha sido uma simples
especulação comercial ou apenas um caso de loteamento de terras.
Apesar de que ele também se tivesse preocupado com o aspecto cultural
da colonização não lhe foi possível praticar um ato cultural de tal
amplitude como o fez Hermann Blumenau. Rheingantz, sobretudo,
desleixou na sua colônia o desenvolvimento de um centro urbano, como
descurou de atrair camadas de burgueses. Somente o centro de uma
cidade e seus habitantes são capazes de dar a uma colônia a indispensável
complementação econômica e ainda de fornecer as bases em que poderá
florescer uma comunidade cultural, como sucedeu na colônia de
Hermann Blumenau, desde os seus primórdios.

Nesse longo trecho, está claro que o lugar construído para os Rheingantz no
referido texto não é um “não-lugar”, isto é, não é um espaço descaracterizado ou
desimportante, pois está representando o diferente, como o lado oposto ao que podemos
chamar de “lugar-ideal”, que, por sua vez, envolve justamente as noções de obra
germânica de pioneirismo e cultura, honestidade, guia econômico e espiritual, e sacrifício,

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entre outros termos utilizados pelo autor. Assim, a família Rheingantz parece não fazer
parte do “lugar-ideal”, estando afastados do ideal de “missão” colonizadora208.
A discussão promovida neste artigo tinha por objetivo refletir sobre a presença dos
membros da família Rheingantz em obras clássicas da história da imigração alemã no Rio
Grande do Sul. Infelizmente, as informações na maioria dos textos aqui citadas são
extremamente básicas, trazendo o nome de quem fundou qual empreendimento ou qual
a produção colonial e o número de imigrantes entrados em cada ano ou, ainda, o capital
social da fábrica Rheingantz e a produção da firma durante as guerras mundiais209.
Também procurei mostrar a dificuldade que encontrei, enquanto construía minhas
pesquisas com esse tema empírico, em dialogar com alguns autores e encontrar dados
mais precisos em textos clássicos da imigração alemã.210 Nesse sentido, a introdução de
outros pressupostos básicos e também teóricos é indispensável para a compreensão da
situação da família no interior do processo de colonização alemã no Brasil, como procurei
fazer na minha tese de doutorado ao utilizar a noção de empreendedorismo
transmigrante211.
A perspectiva do empreendedorismo transnacional, nos termos de Zhou, avança o
conceito de empreendedorismo étnico em quatro aspectos. No primeiro, mostra que os
empresários imigrantes não reagem apenas às desvantagens estruturais que enfrentam
nos países de acolhimento, pois procuram novas oportunidades ou nichos de mercado,
por exemplo, utilizando as suas competências biculturais e as redes étnicas. No segundo
aspecto, o empreendedorismo transnacional não impacta o grupo étnico ou imigrante da
mesma forma que impacta indivíduos ou famílias. O terceiro caso mostra que os efeitos
dos importantes recursos de capital social são desiguais. Por fim, o quarto aspecto

208 Ao que tudo indica, novas e aprofundadas análises podem ajudar a compreender esse lugar diferente
que a família Rheingantz ocupa, especialmente, a partir das concepções construídas pela família Oberacker.
Talvez esse processo possa ter início com a análise de um texto sobre a história de Jacob Rheingantz,
intitulado “Fahrt und Tat des Jakob Rheingantz”, que parece ainda não ter tradução para o português, escrito
por Oberacker (pai), que foi pastor entre 1910 e 1920, na região de colonização de São Lourenço,
precisamente em Arroio do Padre (atualmente município, emancipado de Pelotas, em 1996).
209 Veja, por exemplo, Roche (1969, p. 507), ao tratar da produção industrial durante a primeira guerra

mundial: “De 13 importantes fábricas de fiação, 10 fornecem 90% da produção total, e a União Fabril, que
vem na frente, 26% sozinha.”
210 Como Pellanda (1925), por exemplo, que apresenta uma série de dados empíricos, oriundos de relatórios

estatais e documentos da direção da colônia.


211 Os próximos parágrafos são oriundos da conclusão geral da minha tese de doutorado intitulada Três

gerações de empreendedorismo: capital e laços sociais entre Brasil e Alemanha a partir do estudo de caso da
família Rheingantz, defendida em 2017, no PPG-Sociologia/UFRGS.

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evidencia que, mesmo existindo negócios no país de acolhida, a vida cotidiana desses
imigrantes pode estar fixada no país de acolhimento ou no de origem, sem prejudicar o
conjunto teórico (ZHOU, 2004, p. 1059).
A partir dessa perspectiva teórica, foi possível observar que a família Rheingantz
construiu seus negócios muito distante de possíveis desvantagens estruturais ou
discriminações vividas no país de acolhimento. Ao contrário, aproveitou as oportunidades
e aliou-se às elites locais (nacionais), compartilhando interesses econômicos, sociais e
políticos. Aqui é importante destacar o alinhamento de ideias e interesses, pois os
membros familiares aprenderam os movimentos do jogo político, da mesma forma que
construíam alianças e, em certa medida, criaram inimizades com os nacionais. Por outro
lado, fizeram uso de redes migratórias e conhecimentos e laços binacionais, que lhes
garantiam contatos confiáveis em relações de solidariedade e confiança que são
fundamentais para os negócios de caráter migrante em qualquer país (BOSENBECKER,
2017).
Entre grupos imigrantes alemães estabelecidos na região aqui analisada, a família
Rheingantz sempre conquistou benefícios, apesar de outros comerciantes e alguns
parceiros no interior da rede terem conquistado oportunidades de negócios com as
alianças envolvendo a família. Por fim, é preciso notar que a família Rheingantz operou e
sofreu uma forma de adaptação alternativa na sociedade brasileira. Perfeitamente
estabelecidos no sul do Rio Grande do Sul, tiveram ampla participação política e social na
vida local, apesar de resguardarem suas práticas alemãs para viveram, assim, como
alemães na Alemanha (BOSENBECKER, 2017). Talvez esses aspectos possam contribuir
para futuras análises que estejam interessadas em avaliar as posições dos autores
clássicos com os dados mais atuais das pesquisas realizadas até o momento, da mesma
forma que novas pesquisas podem ampliar o escopo de dados e análises sobre a situação
dos imigrantes alemães nos principais centros urbanos do sul do Rio Grande do Sul.

Referências

BONACICH, Edna. A theory of middleman minorities. American Sociological Review, v. 38, n. 5, 583-
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E/I/RE/MIGRAÇÕES NA BACIA DO PRATA: DESAFIOS, ABORDAGENS,


HISTÓRIAS E GEOGRAFIAS

Roberto Rodolfo Georg Uebel

Introdução

A História da América Latina registra em suas historiografias, relatos e


sustentações, o papel dinâmico e dinamizador das migrações na formação dos Estados
latino-americanos, bem como do caráter social de seus povos, instituições e práxis
cotidianas. Herbert Klein, um historiador brasilianista da Universidade de Stanford,
aponta que não fossem as migrações - sejam as por iniciativa própria, as remuneradas ou
as forçadas, no caso da escravatura -, o continente americano, desde a gélida Terra do
Fogo até a mais gélida Groenlândia, teria seguido um outro caminho histórico e de
desenvolvimento (KLEIN, 1999).
Neste diapasão, este breve relato surge a partir de leitura interdisciplinar da
História Econômica e Geografia Política à luz da interpretação dos fenômenos migratórios
ocorridos no recorte temporal compreendido entre a última década do século XX e as
primeiras décadas do século XXI, procurando encontrar elementos de conexão entre as
histórias e geografias das migrações do passado com os fluxos do presente.
Partindo da hipótese de uma reconfiguração – aos moldes clássicos – das
migrações com direção ao continente latino-americano e, mais especialmente, à Bacia do
Prata, bem como utilizando-se como pano de fundo as ditas “novas migrações” de
indivíduos originários do Caribe, costa oeste africana e Sudeste Asiático, procuramos
identificar os principais desafios e abordagens quando do processo analítico em relação a
estas migrações, diferentes em formas e meios, mas semelhantes quanto aos processos
(FERNANDES; RANINCHESKI, 2009).


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Geografia (UFRGS). Bacharel em Ciências Econômicas (UFSM).
Pesquisador do Laboratório Estado e Território (UFRGS) e do Laboratório de Estudos Internacionais
(UFSM). Contato:< roberto.uebel@ufrgs.br>

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O breve relato, aqui condensado na forma de artigo, está dividido em cinco partes:
esta introdução, além de três seções descritivas, onde discorreremos os três termos
ligados às migrações – históricas e contemporâneas -, a saber: emigrações e seus desafios,
imigrações e suas abordagens, remigrações e suas histórias e geografias. Além destas
seções, em virtude da limitação de espaço para discussão, condensamos os resultados e
juntamos estes às considerações finais, que não encerram o debate e as ligações entre as
migrações do passado e as do presente, quase futuro.
Dentre os resultados encontrados, percebeu-se alguns fatores destoantes dos
processos migratórios considerados históricos: a) ressignificação das fronteiras
terrestres; b) velocidade do processo imigração, emigração, remigração; c) trânsito entre
as categorias de imigrante, refugiado, asilado político, expatriado e residente permanente.
Nesse sentido, a pesquisa encontrou não apenas novos desafios e abordagens à
Historiografia e à Geografia, mas também dinâmicas que demandam uma “atualização” do
debate destas ciências em relação às migrações na América Latina, notadamente
relacionadas à xenofobia, nacionalismo e separatismo.
Espera-se, portanto, com este texto e as discussões e críticas advindas da segunda
edição do Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-Americanos,
compreender e abrir o debate sobre os novos fluxos à Bacia do Prata – quais sejam de
haitianos, sírios, senegaleses, venezuelanos, bengalis, etc. – que certamente trazem ou
faceiam elementos das migrações históricas que compuseram e ajudaram a formar os
Estados platinos, bem como suas repercussões e contribuições à História e Geografia
latino-americana.

Emigrações e desafios: os platinos de lá e cá


Começamos a nossa análise deste perfil das migrações no âmbito da Bacia do Prata
a partir das suas emigrações, isto é, a saída dos seus nacionais para as outras regiões do
globo. Por emigração, entende-se o ato de sair do seu país de origem para outro, isto é, a
percepção de dentro para fora. Entretanto, não podemos confundir, por exemplo, um
imigrante brasileiro com um emigrante brasileiro, um pode ter a cidadania brasileira e ter
nascido na Palestina, o outro poder ter nascido no Brasil e ter pais uruguaios.
Este não é o primeiro e único desafio quando analisamos as emigrações platinas.
Spalding (1958) coloca que antes, até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, estes fluxos

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se davam majoritariamente de forma intra-regional, logo, as mobilidades se verificavam


no máximo entre Bolívia e Argentina, entre Brasil e Uruguai, etc. O cenário da história
recente, contudo, nos apresenta dinâmicas diferentes, bem como situações que num
primeiro momento se assemelham, mas no seu ínterim são completamente distintas e
distantes.
Se entre os séculos XVI e XX o trânsito de uruguaios e argentinos para o Sul do
Brasil, e vice-versa, era constante e inclusive com microterritorialidades que não se
identificavam com o seu Estado congênere – os gauchos são um exemplo claro disto -, a
partir do segundo quartel do século passado, com a afirmação das soberanias nacionais
da região, estes indivíduos passaram a expressar de forma mais visível e legal a sua
identidade civil nacional. Os gauchos, novamente, podem ser argentinos, uruguaios,
brasileiros ou até mesmo do Chile ou das Ilhas Falkland, e isso importa muito para as
nossas análises e para as estatísticas oficiais governamentais
Deste modo, fica evidente a primeira dificuldade de se analisar os fluxos
emigratórios na contemporaneidade, a começar pela sua categorização jurídica,
identitária, nacional e cultural. Um gaucho pode ser um migrante econômico, um
refugiado ou um asilado político, ele pode ser de Misiones, Santa Catarina ou de Rivera,
uruguaio, argentino, brasileiro ou filho de pais gauchos nascido na Califórnia, tomar
tereré, chimarrão ou chá de erva mate industrializado pela Coca Cola produzido no
sudeste do Brasil ou em Trinidad e Tobago, no Caribe.
Outros desafios surgem no âmago da análise histórico-geográfica das emigrações,
mas que aí encontram respaldo à época das primeiras migrações: quais as motivações,
rotas e meios utilizados para migrar? Isto encontra-se diretamente amparado no papel
das fronteiras platinas e que a Geografia Política tem dado um destaque especial nas
últimas três décadas, principalmente após os processos de integração iniciados com o
MERCOSUL e com a redemocratização dos cinco Estados platinos: Argentina, Bolívia,
Brasil, Paraguai e Uruguai, no final da década de 1980.
Ao passo em que um gaucho, nosso “personagem” de análise nesta seção, decide
emigrar por motivações econômicas ou políticas para um vizinho, após muita discussão
com seus familiares, busca de oportunidades de emprego (ou não) e escola para os filhos,
surge o desafio logístico de migrar: por qual meio de transporte e qual rota seguirá o seu
migration dream? Com a consolidação das soberanias territoriais da Bacia do Prata, as

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alternativas são limitadas: via terrestre ou via aérea, esta normalmente mais cara e sem
conexões diretas.
Nesse sentido, aparece para o historiador e geógrafo um novo desafio relacionado
ao papel que as fronteiras terrestres platinas possui na personificação da emigração intra-
regional. Se antes eram apenas postos de controle migratório e alfandegário, ou ainda
pontos turísticos, como em Iguaçu ou Rivera-Livramento, hoje representam uma
dinâmica apontada por Dorfman, França e Assumpção (2015) como de múltiplas
representações e relacionamentos; a fronteira surge como uma importante categoria de
análise nos estudos migratórios.
A fronteira não apenas separa e divide os platinos de lá e cá, afinal, todos são
banhados pela mesma bacia hidrográfica e seus rios tributários, mas também oficializa a
categoria do emigrante, o seu papel na sociedade que lhe acolherá e suas remessas
financeiras que contribuirão para o seu país de destino e o seu país de origem; isto, à época
das migrações históricas dos séculos XVIII ao XX, era extremamente limitado a
correspondências, envios de mantimentos ou inexistentes. A comunicação tecnológica é
outro avanço da contemporaneidade que comporta um dual desafio ao estudioso das
migrações, não se trata mais de birds os passage (PIORE, 1979), mas sim de definitive birds.
Fronteiras, soberania, identidades, todos estão intimamente ligados aos desafios
de se olhar um fluxo sob a ótica do emigrante e não são exclusivos dos tempos atuais – no
começo do século XX, Sudhaus (1940) já estudava os porquês dos teutos migrarem para
o Brasil, a dita reforma agrária alemã era apenas um dos itens, quando não excluído –
entretanto, hoje possuem uma relevância política e econômica incomensurável para o
país emissor.
Este último desafio faz não apenas o geógrafo ou o historiador se questionar, mas
igualmente os governantes, policy makers e capitalistas (ou na linguagem contemporânea:
empresários/empreendedores): por que os nossos cidadãos estão emigrando para outros
países, longínquos como Austrália e Nova Zelândia, ou a poucos quilômetros de distância,
como Argentina e Uruguai.
A questão política se coloca assim de forma extremamente importante na análise
dos fluxos migratórios contemporâneos, como nunca se colocara, nem mesmo na época
de Guilherme Gaelzer Netto (FERNANDES, 2015), e nos debruçaremos sob esta questão

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nas próximas seções, além dos temas adjacentes, tais como nacionalismos, xenofobias e
regionalismos.

Imigrações e abordagens: fluxos históricos e contemporâneos


Na seção anterior observamos quais são os principais desafios intrínsecos à análise
das emigrações no contexto da Bacia do Prata e quais destoam das migrações históricas e
tradicionais ocorridas nesta parte austral do continente sul-americano. Agora, faremos
um breve relato descritivo das imigrações e suas abordagens na história e geografia
recente e, se existentes, quais elementos podemos resgatar dos fluxos históricos.
Se a ótica da emigração é composta por lentes a partir do país que envia os
migrantes, no contexto da imigração temos uma percepção da sociedade e do país que
recebe, acolhe, integra estes indivíduos, conforme Rocha-Trindade (1995). Tal fato não
poderia ser diferente no recorte da Bacia do Prata, assim nomeada e surgida após as
migrações de lusos e hispânicos entre os séculos XVI e XVII.
À título de rememoração, processo este tão importante no resgate do debate
historiográfico contemporâneo, permeado por manifestações sociais de múltiplas cores e
ideologias, vide-se neonazismo recorrente nos Estados Unidos da América e o
antissemitismo na Europa Ocidental, ou ainda, a retomada do pró-czarismo na Rússia,
cabe salientarmos que a região platina fora constituída, assim como toda a América Latina,
por imigrações de todas as partes do planeta, além das suas primeiras nações indígenas,
também migrantes no passado antigo (NEVES; PILÓ, 2008).
Entretanto, os fluxos que mais se destacaram quantitativamente, em intensidade
numérica, foram os de origem ibérica, espanhóis e portugueses, seguidos por teutos,
italianos, eslavos, árabes, turco-otomanos, japoneses e chineses, além, é claro, das
centenas de milhares de imigrantes forçados por meio da escravatura africana, à época,
sem a existência de Estados soberanos africanos, que viriam a se consolidar apenas após
a Segunda Guerra Mundial, quatro séculos depois.
Já os fluxos contemporâneos, aqui entendidos após o fim da Guerra Fria e da
globalização técnico-científica-informacional (SANTOS, 1997), com direção à Bacia do
Prata são compostos por três grupos principais: mercosulinos, andinos e ibéricos, nesta
ordem. Contudo, novas mobilidades passaram a chamar a atenção a partir dos anos 2010,
em virtude da recaracterização da região como um novo polo alternativo de atração às

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migrações internacionais, representadas pelos fluxos de haitianos, senegaleses, ganeses,


venezuelanos, cubanos, bengalis, taiwaneses e malaios em direção aos cinco países
platinos.
É justamente a partir destes novos fluxos, que poderiam ser caracterizados como
inéditos, de acordo com as estatísticas oficiais, que surgem as novas abordagens ou
reconfiguração das abordagens tradicional vis-à-vis às migrações. À título de exemplo,
entre 2010 e 2016, os cinco Estados platinos receberam quase três milhões de imigrantes
(2.992.475 para ser mais exato)212 e outras centenas de milhares de refugiados; este
número é maior que toda a imigração italiana, teuta e polonesa para toda a região em
quase dois séculos!
Não apenas quantitativamente, mas também a essência das imigrações se
modificou e adaptou muito nos últimos dois séculos. Embora a motivação possa ser
econômica, política ou humanitária – aqui compreendidas como três grandes eixos da
imigração, do asilo e do refúgio –, suas nuances se transformaram ao longo dos anos, o
que por si só levou a ocorrência daqueles fluxos “inéditos” supramencionados.
Nesse sentido, a explicação que surge como fonte de esclarecimento aos estudos
de imigração nos dias atuais – e que certamente se alterarão nas próximas décadas – está
baseada em novas questões: a) ressignificação das fronteiras terrestres; b) velocidade do
processo imigração, emigração, remigração; c) trânsito entre as categorias de imigrante,
refugiado, asilado político, expatriado e residente permanente.
Utilizando um personagem migrante sírio do início do século XX, estabelecido na
cidade de São Paulo, veremos que este chegara via porto de Santos no território brasileiro
após meses de viagem de navio – provavelmente com alguma conexão na Europa – e já
previamente categorizado como estrangeiro imigrante, além de grandes chances de já ter
familiares estabelecidos no país, com um casamento pré-agendado e um emprego
definido.
Um século e muitas guerras depois, outro sírio migrara para o Brasil, agora vindo
de um voo com pouco menos de doze horas com conexão em Paris, Doha ou Lomé, ou
entrara de táxi, ônibus ou van no país pela ponte de Uruguaiana, Foz do Iguaçu ou

212 Números obtidos junto aos órgãos oficiais de migração e estatística da Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai

e Uruguai. As tabelas originais podem ser acessadas neste link: http://tinyurl.com/migraplata.

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Brasiléia; sua categoria é de imigrante indocumentado, mas ao chegar no posto de


controle migratório, poderá solicitar refúgio, um visto humanitário ou, em casos mais
raros e específicos, o asilo político; provavelmente este não terá familiares no Brasil e
desconhecerá seus conterrâneos do passado, um deles inclusive exercendo a Presidência
da República, após processo de impeachment irregular (o seu conterrâneo do passado
chegara aqui e encontrara uma República recém-estabelecida).
Ambos os personagens citados são reais, sírios, migrantes. Porém, a abordagem
que está no seu entorno é totalmente diferente e desafia os estudos de imigração do tempo
presente, os fluxos são voláteis, rápidos e logo se transformam em novos fluxos; a fixação
no território é temporária mesmo para os refugiados – qual refugiado entre as duas
Grandes Guerras pensaria em migrar para outro país que não o que lhe recebeu? Ou até
mesmo para o seu país/região de origem?
Deste modo, as abordagens voltadas às imigrações no contexto platino possuem
peculiaridades e demandam um caráter inter e multidisciplinar; o historiador jamais
entenderá o fluxo dos senegaleses para o Vale do Sinos sem a colaboração dos aportes da
Geografia, da Economia, do Direito, da Psicologia, da Cartografia, dos Estudos Feministas,
das Letras e de tantas outras áreas; também o investigador que estudará os cinco mil
senegaleses em Buenos Aires não poderá compreender esta imigração sem estudar o
conceito de remigração e os fluxos iniciados no Brasil poucos anos (ou meses) antes.
De uma contextualização de dois pontos – origem e destino – as imigrações atuais
se diferenciam das históricas pela multicontextualização e da necessidade das múltiplas
abordagens para entender um fluxo específico. Posto isto, na próxima seção analisaremos
esta nova categorização: as remigrações, suas Histórias e Geografias.

Remigrações: Histórias e Geografias


Para iniciar a discussão desta seção-relato, imaginemos primeiro um migrante
senegalês que se estabelecera no Sul do Brasil em 2014, ingressado pela facilitação do
então visto da Copa do Mundo de Futebol e regularizado no final de 2015 por decreto da
então presidente pré-deposta, Dilma Rousseff. O nosso migrante encontrara um trabalho
no setor coureiro-calçadista, trouxera a família e começara a se integrar na cidade que
fixara residência, esta muito menor que a sua Dakar de quase dois milhões de habitantes,

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uma das capitais mais modernas da África Ocidental, aos olhos e padrões ocidentais,
obviamente.
Contudo, com a consecução de um ciclo de crises iniciado previamente à sua
chegada, ainda em outubro de 2014 e consumado em agosto de 2015, este migrante (ora
considerado econômico ora forçado) é um dos primeiros funcionários a ser demitido, por
ser estrangeiro, ante a iminente falência da empresa em que trabalhava. Quais as opções?
Ingressar na informalidade, vendendo produtos oriundos de contrabando e descaminho,
mercado já saturado, ou migrar para outro país: Uruguai, Argentina ou o longínquo
Canadá. Ele escolhe o segundo, após passar algumas semanas no primeiro, desejando o
terceiro, que não lhe concede visto de trabalho. A ele se somam mais de cinco mil
remigrantes (TEDESCO; KLEIDERMACHER, 2017) com Histórias semelhantes em novas
Geografias.
A remigração, assim, passa a ganhar um papel de destaque nos estudos migratórios
contemporâneos, como nunca recebera quando das migrações históricas do passado,
inclusive do passado recente após a Segunda Guerra Mundial. Este fenômeno, muito além
de migrações internas ou intra-regionais, serve como elemento de junção da História e da
Geografia para a compreensão das migrações do mundo pós-globalizado e da pós-
verdade.
Com a dinamização das economias, da informação e das próprias crises inerentes
a estas, o ato de remigrar – ou de migrar para um país segundo para um terceiro ou quarto,
que não o seu de origem – surge cada vez mais como um processo natural do que mera
consequência ou alternativa a uma imigração que não obtivera sucesso. Remigrar,
segundo Iaria (2011), aparece como um mecanismo de igual integração (ou fomento
desta) entre comunidades, regiões e países – os acolhedores, no caso.
Se o Brasil e seus atores governamentais e instituições passaram a estudar e
também legislar sobre os novos fluxos da história recente, já supramencionados, seus
vizinhos o fizeram da mesma maneira, com nuances diferentes, obviamente, e tônicas
dadas de acordo com a ideologia governamental vigente – não confundir com ideologia
político-partidária.
A partir do momento em que Brasília, Buenos Aires e também Montevidéu,
Assunção e La Paz passaram a tecer políticas públicas voltadas às migrações, uma nova
Geografia Política regional platina começou a criar forma e suscitar o debate nas próprias

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instituições e fóruns regionais/internacionais. Podemos identificar a atuação, até então


inédita, de organizações como a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(CEPAL), Organização dos Estados Americanos (OEA), União de Nações Sul-Americanas
(UNASUL) e do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) em temas e debates ligados às
migrações econômicas e ao refúgio.
Deste modo, o conceito de migração transnacional (FAIST; FAUSER; REISENAUER,
2013), tão amplamente difundido pela Antropologia, Sociologia e Demografia, passa a ter
uma nova roupagem, no nosso entendimento, sob a forma da remigração, incluindo aí
elementos da História (e das estórias dos remigrantes) e da Geografia. Um conceito não
substitui o outro, mas sim é complementado e ceteris paribus atualizado às questões da
história recente.
Nesse sentido, se o historiador ou o geógrafo, ou outro pesquisador de qualquer
área, quiser compreender o fluxo senegalês, este não deverá se atentar apenas à História
e Geografia (política, cultural, econômica e social) do Senegal, mas também de todo o
contexto da Bacia do Prata – neste caso específico – e buscar os elementos que expliquem
a sua narrativa migratória.
Obviamente as remigrações platinas, segundo a nossa pesquisa, não se aplicam
apenas ao grupo específico dos senegaleses, também as observamos nas trajetórias e
mobilidades dos haitianos, chineses e inclusive de espanhóis e alemães, estes últimos
considerados grupos tradicionais, além de outras nacionalidades variadas. Este
fenômeno-conceito não ocorre apenas na Bacia do Prata, mas também em outras partes do
mundo, como nas remigrações de centro-americanos do México para os Estados Unidos,
de curdos da Síria para o Iraque e a Turquia e, mais recentemente, de rohingyas de
Myanmar para Bangladesh (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES,
2017), e tantos outros casos.
Observamos que a partir das remigrações também refloresceram sentimentos de
nacionalismos, supremacias, xenofobias, separatismos e regionalismos, até então
adormecidos ou timidamente restritos a pequenas comunidades sem voz e destaque
midiático. Trata-se de um reavivamento do pensamento Hobbesiano na
contemporaneidade ou de uma efetivação deste adormecido espírito de natureza em uma
sociedade que aparentava ser Lockiana? (KARNAL, 2017).

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Na próxima e última seção, portanto, discutiremos estes resultados advindos da


pesquisa e percepções acerca destes sentimentos antidemocráticos e desestabilizadores,
que agora encontram reverberação nas redes sociais, na imprensa e na política platina,
nos seus cinco países, sem distinção, igualmente graves e críticos sob uma perspectiva
histórica e geopolítica.

Resultados e Considerações Finais


Em virtude da limitação de espaço e tempo para discutir a grande temática das
migrações contemporâneas na Bacia do Prata e seus elementos conectivos às migrações
do passado, as ditas migrações históricas ou tradicionais, optamos por trazer às
considerações finais alguns resultados encontrados ao longo da nossa pesquisa
exploratória.
Citamos ainda na introdução que sentimentos então adormecidos – nunca extintos
– voltaram à tona a partir de alguns processos coexistentes, mas não inter-relacionados
no seu ínterim: a ascensão do discurso populista de extrema-direita, a globalização dos
acontecimentos e fatos geopolíticos, bem como as suas crises inerentes, as migrações em
redes – sociais, do trabalho, de fluxos – e perpetuidade da aversão ao estrangeiro nas
sociedades pós-modernas.
Neste diapasão caótico, como colocaria Visentini (2015), mas também sistêmico
(ARRIGHI; SILVER, 2001; WALLERSTEIN, 2004), no contexto platino nos deparamos
como novas peculiaridades xenofóbicas, separatistas e nacionalistas, que apesar de
encontrarem semelhança prática e conceitual com aquelas dos séculos XIX e início do XX,
trazem novas roupagens e meios de amplificação e difusão dos seus discursos.
É do nosso entendimento, a partir das pesquisas exploratórias aqui relatadas e
ainda não conclusas, que três formas e sistemas deram um novo sentido, capacitação e
reverberação a estas três peculiaridades: 1) a imprensa; 2) a política; 3) as tecnologias
sociais (muito além da simples Internet ou das redes sociais). Obviamente não se
pretende condenar os veículos de comunicação, os partidos políticos ou o Facebook,
Twitter, Apple e grandes corporações do Vale do Silício, embora muitos indivíduos e
comunidades tenham este desejo.
Contudo, estres três sistemas ou meios, por assim dizer, permitiram que vozes
antes restritas a reuniões esporádicas, a publicações clandestinas ou agremiações ilegais,

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atingissem, com todo o aparato que citamos no segundo parágrafo destas considerações,
a um número incalculável de indivíduos descontentes e propensos à naturalidade do ódio;
o meu descontentamento com o emprego que perdi, com a epidemia do ebola, com o
governo central que não distribui corretamente os recursos aos estados, províncias e
departamentos ou que os utiliza com “estrangeiros” facilmente se torna alvo e fonte
vitamínica a movimentos separatistas (visíveis no Sul do Brasil, em Santa Cruz na Bolívia,
no Mapuche na Argentina, etc.), nacionalistas (vide-se as marchas de verde e amarelo de
múltiplas cores e ideologias no Brasil de 2015/2016) e xenofóbicas, cujo exemplo
trazemos nesta fala de um político do Rio Grande do Sul: “Eu não gostei nada desse pessoal
vir para cá. Não vieram trazer benefício para o Brasil coisa nenhuma. Vieram trazer mais
pobreza. Então eu não sou favorável a esses caras aqui, de jeito nenhum. O pessoal daqui
precisa de muito apoio também e não tem” (G1 RS, 2014).
A imprensa também permite que o discurso de aversão encontre amparo e, muitas
vezes, sustentação factual – ainda que sob um manto da destacada fake news -, não raro,
apresentando manchetes deste corte: “Crescimento brasileiro absorve pobres do Haiti,
por enquanto” (REVISTA VEJA, 2012), “Seis imigrantes haitianos desembarcam em Porto
Alegre (CORREIO DO POVO, 2015), “Medo do ebola leva servidores a negar atendimento
aos senegaleses no Acre” (O ALTO ACRE, 2014).
Talvez nossos antepassados, migrantes oriundos do Hunsrück, Vêneto, Pomerânia,
Açores, Galícia, Hiroshima, Guiné ou de outros lugares, não dessem a devida atenção aos
recém-chegados lituanos, russos, libaneses, coreanos, e a imprensa da época, muito pouco
registrasse tais movimentos imigratórios; talvez o aparato estatal, muito menos
democrático nos cinco estados platinos, considerasse todos filhos das suas novas pátrias
e optasse por proibir a expressão em alemão, italiano e japonês e obrigasse que todos
falassem em português (no Brasil) e espanhol (na Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai).
A questão que se apresenta, deste modo, é que as novas Histórias encontraram
novas Geografias, muitas vezes sem uma equivalência ou sem uma imediata identificação
e posterior aceitação. As migrações, entretanto, continuarão ocorrendo, ora mais
acentuadas, ora mais restritas, de acordo com as condições econômicas daqueles que
migram e dos países de destino, logo, é papel dos historiadores, geógrafos e outros
profissionais ligados a este tema, observar e apontar os desvios das abordagens da
imprensa, da política, das redes sociais, quando estes atingirem o inaceitável e o

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antidemocrático, exemplo recente foi o caso do reavivamento supremacista neonazista


nos Estados Unidos, que imediatamente foi repelido pelos canais midiáticos, inclusive nos
países platinos.
Por fim, mas deixando a questão em aberto para aprofundamentos e debates
posteriores, que certamente não se encerrarão – assim como as novas descobertas que
fazemos acerca das migrações históricas a cada novo ano – destacamos que as múltiplas
abordagens encontram sim novos desafios e novas formas de se compreender a História
e a Geografia de um determinado fluxo emigratório, imigratório e, mais recentemente,
remigratório, imperando assim cada vez mais o caráter interdisciplinar dos estudos de
migração e mobilidade, devendo ser menos restritivos e exclusivistas, como ocorria até a
história recente, e multilocal, isto é, não restrito a pesquisadores latino-americanos
pesquisando fluxos na América Latina, mas sim cooperando e utilizando investigações de
europeus, africanos, asiáticos, etc. Apenas desta forma será possível avançarmos da
categoria de “estrangeiro” para a de “cidadão global” ou um simples Homo migrans.

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A IGREJA EPISCOPAL BRASILEIRA E O TRABALHO MISSIONÁRIO EM SANTA MARIA-


RS:PROTESTANTISMO DE MISSÃO E MIGRAÇÕES EM MEIO AO CAMPO RELIGIOSO

Paulo Henrique Silva Vianna

Introdução

No ano de 1899, agentes pertencentes a Igreja Episcopal Brasileira chegaram a


cidade de Santa Maria, regiã o central do Rio Grande do Sul. Os missioná rios que chegaram
ao paí́s, em 1889, possuí́am o objetivo de organizar uma casa de oraçã o na cidade, para
tanto alugaram uma sala, onde organizaram uma capela. Mais tarde, 1906, em conjunto
com a comunidade que organizaram, a denominaçã o inaugurou um templo matriz,
localizado em uma das principais ruas da cidade. Diferentemente da Inglaterra, que desde
o sé culo XVI tornou-se independente de Roma e promoveu sua reforma religiosa, a
Espanha e Portugal organizaram seus estados tendo a Igreja Cató lica romana como aliada.
No Brasil, o catolicismo romano permaneceu como a religiã o oficial, por todo o perí́odo
colonial e moná rquico, vindo a romper os laços estabelecidos pelo padroado apenas com
a Proclamaçã o da Repú blica. Apesar das tentativas de criaçã o de uma igreja nacional, uma
reforma autó ctone nã o foi realizada e as vertentes protestantes chegaram ao paí́s pela via
migrató ria (KICKHOFEL, 2000; KARNAL, 2015; BIASOLI, 2010; LEONARD, 2002).
Como uma consequê ncia das relaçõ es estabelecidas entre Portugal e Inglaterra,
chegaram ao paí́s os ingleses anglicanos, na primeira dé cada do sé culo XIX. Em 1824, foi
a vez dos protestantes alemã es e nas dé cadas seguintes se estabeleceram agentes que
possuí́am o objetivo de organizar missõ es religiosas. Estes grupos, se organizados para
fins de aná lise, sã o identificados pelas seguintes categorias: protestantismo de imigraçã o
e protestantismo de missã o. O protestantismo de missã o chegou ao Brasil ainda nas
primeiras dé cadas do sé culo XIX, no entanto, teve sua inserçã o efetivada a partir do
trabalho de um casal de escoceses que chegaram ao paí́s em 1855. Estes, deram iní́cio ao
ciclo do protestantismo de missã o e foram seguidos por missioná rios das igrejas


Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Mestrando do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista Capes/DS. Contato: <
viannapauloh@gmail.com>.

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presbiteriana, batista, metodista e episcopal. A Igreja Episcopal, dada sua origem


institucional na Igreja Anglicana que foi organizada nas colô nias inglesas na Amé rica; e a
configuraçã o institucional que assumiu no Brasil, també m apresenta dificuldades para a
associaçã o categó rica213. Contudo, para fins de estudo é incluí́da em meio as igrejas que
fazem parte do protestantismo de missã o (DREHER, 2002; MENDONÇA, 2005; CALVANI,
2005).
Ademais, o desenvolvimento deste trabalho está vinculado ao Programa de Pó s-
graduaçã o em Histó ria, da Universidade Federal de Santa Maria (PPGH – UFSM), ní́vel
mestrado, e tem como objetivo identificar as estraté gias utilizadas pelos missioná rios da
Igreja Episcopal ao buscarem sua afirmaçã o enquanto uma alternativa religiosa no campo
local. No momento, a pesquisa tem sido desenvolvida a partir dos registros de batismo
organizados pela denominaçã o em seus primeiros anos, na cidade de Santa Maria. O
objetivo consistiu em identificar o fluxo de leigos e també m o percurso dos missioná rios
no exercí́cio do trabalho missioná rio. Neste sentido, nos propusemos a buscar elementos
teó ricos que possibilitem compreender o movimento dos agentes da religiã o e dos leigos
em meio ao campo religioso.

Agentes em missão: panorama do desenvolvimento e expansão da Igreja Episcopal

Em dezembro de 1899, os missioná rios James W. Morris e Lucien Lee Kinsolving


chegaram em Santa Maria trazendo consigo o objetivo de organizar uma capela na cidade.
Naquele perí́odo, os missioná rios, que chegaram ao Brasil em 1889, haviam desenvolvido
uma sé rie de trabalhos, entre os quais estiveram a criaçã o de capelas nas cidades de Porto
Alegre, Viamã o, Nova Santa Rita (antiga Santa Rita do Rio dos Sinos), Pelotas, Rio Grande,
Sã o José do Norte e Jaguarã o. O trabalho na cidade correspondeu ao “primeiro trabalho
aberto no centro do Estado” (KICKHOFEL, 2000, p. 24).
James Watson Morris e Lucien Lee Kinsolving foram estudantes no Seminá rio
Teoló gico de Virgí́nia, instituiçã o fundada em 1823 e que estava vinculada a Igreja
Protestante Episcopal dos Estados Unidos da América. Assim, pode-se dizer que no ano de
1889 o Seminá rio possuí́a tradiçã o no envio de missioná rios, uma vez que em anos

213 Carlos Eduardo Calvani (2005) apresenta a questão.

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anteriores havia possibilitado o envio de agentes para regiõ es da Gré cia (1830), China
(1835), Africa (1836) e Japã o (1853). Outro aspecto importante do trabalho desenvolvido
no Seminá rio corresponde ao ví́nculo com Associaçõ es e Sociedades Missioná rias. O
diá logo entre as instituiçõ es parece ter sido importante para que estudantes da instituiçã o
teoló gica mantivessem o interesse pela criaçã o de missõ es religiosas fora do campo
religioso estadunidense. Apó s vá rios acontecimentos que ocorreram ainda nos Estados
Unidos, Lucien Lee Kinsolving e James Morris foram enviados para o trabalho missioná rio
no Brasil.
Em 26 de setembro de 1889, os agentes chegaram ao Rio de Janeiro. Apó s passarem
por Santos e Cruzeiro, Vale do Paraí́ba - “Mudaram-se entã o para a capital, onde
permaneceram durante seis meses, ou seja, até 12 de abril de 1890” (KICKHOFEL, 1995,
p. 54). Em 21 de abril, os agentes chegaram a Porto Alegre e estavam acompanhados de
Boaventura de Souza e Oliveira, sua esposa e seus dois filhos. Boaventura, o qual era
professor e leitor dos textos bí́blicos, havia sido nomeado catequista. Uma vez na cidade,
os missioná rios procuraram contatar o professor Vicente Brande. Este havia criado uma
escola mista que mais tarde foi incorporada a escola fundada por Kinsolving e Morris. Em
seus primeiros meses na cidade os missioná rios alugaram uma casa com a ajuda de
Vicente, participaram da sua pequena escola e visitaram famí́lias que estavam sob sua
direçã o. Alé m disso, os agentes també m participavam dos cultos realizados em sua
residê ncia aos domingos. Dessa forma, pode-se perceber, perceber atravé s da obra de
Oswaldo Kickhofel, que os trabalhos desenvolvidos no ano de 1890 permaneceram sem
muitas alteraçõ es, uma vez que, foi em 1891 que os missioná rios decidiram alterar sua
forma de atuaçã o.
Isto posto, a realizaçã o de cultos pú blicos foi iniciada na quadra da Trindade, em
1891, e as cerimô nias eram divulgadas em vá rios lugares. Para este trabalho os
missioná rios contavam com a participaçã o das crianças que frequentavam a escola
(possivelmente a escola organizada por Vicente Brande, citada a cima). Em 1891, Lucien
Kinsolving voltou aos Estados Unidos para a realizaçã o de seu casamento. No perí́odo em
que esteve fora do Brasil o trabalho missioná rio que estava sendo desenvolvido pelos
presbiterianos foi incorporado ao trabalho dos episcopais, sendo encarregado para o
pastoreio o professor Vicente Brande. No mesmo ano, 1891, outros agentes da Igreja
Protestante Episcopal dos Estados Unidos chegaram ao Brasil, Willian Cabell Brown, Mary

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Packard e John Gaw Meen. Nesse perí́odo, o trabalho vinha sendo desenvolvido nos
municí́pios de Porto Alegre, Santa Rita e Rio Grande e contava com o apoio de trê s
catequistas (KICKHOFEL, 1995, p. 56).
No ano de 1893, por solicitaçã o da American Church Missionary Society (Sociedade
Missioná ria da Igreja Americana), agê ncia responsá vel pela missã o no Brasil, a bispo
presidente da Igreja Protestante Episcopal dos Estados Unidos enviou o bispo diocesano
de West Virgí́nia para uma visita ao Brasil. George W. Peterkin, passou por todas as
congregaçõ es entã o existentes. Sua visita foi significativa por resultar no iní́cio da
organizaçã o institucional da Igreja Episcopal no Brasil, em decorrê ncia da presença do
bispo aconteceram as primeiras ordenaçõ es de ministros nacionais, confirmaçõ es e foi
elaborada uma declaraçã o de princí́pios. Em 1897, foi a vez do bispo inglê s Waite H.
Stirling visitar a missã o. Stirling residia em Buenos Aires, tinha sob jurisdiçã o o territó rio
das Ilhas Falkland (Malvinas) e as missõ es da Igreja da Inglaterra na Amé rica do Sul. As
visitas dos bispos, a integraçã o de leigos a membresia, a ordenaçã o de um corpo
sacerdotal e as Convocaçõ es214 representavam o desenvolvimento institucional da missã o
Episcopal no Brasil. Com o desenvolvimento das atividades, os agentes passaram a
trabalhar com a ideia de que a missã o possuí́sse um bispo responsá vel. Apó s alguns
acontecimentos a Câ mara dos bispos da Igreja Americana acabou por conceder o pedido
de eleiçã o e Kinsolving foi escolhido para a funçã o de bispo no Brasil. Nome que havia
sido eleito pela Convocaçã o extraordiná ria de 1898 ( KICKHOFEL, 1995, p. 93).
No ano de 1899, perí́odo em que os agentes da Igreja Episcopal chegaram a Santa
Maria, sua denominaçã o já possuí́a um percurso bastante significativo. Em 1897, sete
clé rigos desenvolviam atividades, 301 pessoas faziam parte da membresia oficial, haviam
6 escolas dominicais e 523 alunos. No mesmo perí́odo haviam igrejas nas localidades de
Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas, Viamã o, Santa Rita e Sã o José do Norte. Em 1907, ano
em que a missã o foi reconhecida como Distrito Missioná rio, o nú mero de clé rigos era de
13, os comungantes 1.366 e os alunos das escolas dominicais 1.046, divididos em 25
escolas (KICKHOFEL, 1995, p. 97). Segundo Oswaldo Kickhofel, os missioná rios haviam
percebido que outras denominaçõ es empregavam mal “sua influê ncia, seu poder e
dinheiro tentando atingir um grande nú mero de pontos isolados” (KICKHOFEL, 1995, p.

214 Reuniões compostas por clérigos e leigos nas quais eram discutidas questões pertinentes ao
desenvolvimentos dos trabalhos (KICKHÖFEL, 1995).

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70). Os missioná rios da Igreja Episcopal, por outro lado, buscavam estabelecer seus
trabalhos em centros mais populosos e alcançar as cidades vizinhas. A constataçã o de
Oswaldo parece correta quando observamos a atuaçã o dos agentes na cidade de Santa
Maria. A cidade passava por um surto de desenvolvimento215 e em pouco tempo as
localidades pró ximas foram alcançadas pela Igreja Episcopal.

Aspectos da expansão missionária e a chegada em Santa Maria-RS


Segundo Oswaldo Kickhofel (1995), apó s instalados em Porto Alegre, a primeira
localidade visitada pelos missioná rios foi a Fazenda do Contrato. Ao que se pode entender
o local pertencia ao coronel Zeferino José de Moraes Fraga e havia uma pequena povoaçã o
no local. Na fazenda, o trabalho foi iniciado por James Morris e pelo catequista Boaventura
de Souza e Oliveira. Este trabalho resultou na construçã o do primeiro templo da Igreja
Episcopal em territó rio brasileiro, o qual levou o nome de Igreja do Calvá rio e sua pedra
fundamental foi lançada em 18 de março de 1895. A construçã o foi possí́vel, em parte, pelo
envio de recursos do exterior. A primeira cerimô nia religiosa foi realizada com a
construçã o inacabada, em 13 de janeiro de 1896 e a inauguraçã o, por sua vez, aconteceu
em 19 de outubro de 1900.
No ano seguinte, 1891, os missioná rios da Igreja Episcopal tornaram-se
responsá veis pela missã o que os presbiterianos estavam desenvolvendo na cidade de Rio
Grande. A congregaçã o havia sido fundada em 1876. A transferê ncia da missã o
presbiteriana teria sido interpretada como um acordo entre os presbiterianos e os agentes
da Igreja Episcopal. Oswaldo Kickhofel defendeu a ideia de que o ocorrido nã o passou de
“uma simples transferê ncia da congregaçã o riograndina para a Igreja Episcopal”. Afirmou
ainda que nã o existe “nenhuma evidê ncia documentada desse suposto acordo”
(KICKHOFEL, 1995, p. 57-58).
A decisã o de estabelecer uma igreja em Pelotas teria sido tomada em maio de 1892,
e para isso, os missioná rios decidiram enviar o reverendo John Gaw Meen e o catequista
Antô nio Machado Fraga, que teriam chegado a cidade no dia 15 de setembro daquele ano.
Na cidade de Pelotas, até dezembro de 1892, a missã o dos episcopais foi organizada em

215 Nas últimas décadas do século XIX a cidade de Santa Maria passou se tornou um centro em
desenvolvimento. As mudanças passaram a ocorrer de forma mais acelerada com a chegada da ferrovia em
1885 (KARSBURG, 2007).

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salas emprestadas. Outro aspecto da missã o corresponde a realizaçã o de cultos em casas


particulares. Em 1892, os agentes inauguraram a sua primeira escola dominical na cidade.
Segundo Kickhofel (1995), a escola cresceu e contava com a participaçã o de 45 crianças e
16 adultos. Seguindo em sua narrativa o autor afirma que - “Pouco menos de cinco meses
depois que os dois evangelistas chegaram a cidade, a missã o já tinha realizado 60 cultos,
15 reuniõ es da escola dominical, um casamento, trê s batizados e um enterro”
(KICKHOFEL, 1995, p. 59). A primeira celebraçã o eucarí́stica só foi realizada em 30 de
julho de 1893.
Lucien Lee Kinsolving e James W. Morris chegaram a Santa Maria em dezembro de
1899, mas seus trabalhos iniciassem oficialmente apó s dois meses. Para isso, alugaram
uma sala na entã o rua do Comé rcio e a transformaram em seu templo religioso. A casa de
oração que organizaram foi chamada Capela do Mediador e teve sua inauguraçã o em 11
de fevereiro de 1900. O primeiro templo organizado por uma igreja protestante de missã o
na cidade de Santa Maria estava sob a responsabilidade de James Morris. Para a
inauguraçã o dos trabalhos outros religiosos juntaram-se aos missioná rios, Lucien Lee
Kinsolving (bispo), Mary Packard e Geroge Wallace Rible. Segundo Morris, a capela que
comportaria 130 pessoas, no entanto, recebia 250. Em março do mesmo ano foi iniciada a
escola dominical, que recebeu 20 crianças logo de iní́cio. Um coral de moças jovens e
senhoras foi criado com a supervisã o de Stella Morris, esposa do rev. James (KICKHOFEL,
2000).
Em pouco tempo o trabalho missioná rio atingiu a Estaçã o Colô nia, atual bairro
Camobi, Vila Rica (atual municí́pio de Jú lio de Castilhos), Sã o Martinho, Pinhal (municí́pio
de Itaara), també m se tornaram locais de atuaçã o dos missioná rios. Os registros de
batismo tê m sido utilizados para o desenvolvimento deste trabalho. A pesquisa nos
registros evidencia que nos anos de 1899 e 1900 nã o foram realizados batizados em
outras localidades que nã o no municí́pio de Santa Maria. Neste perí́odo, foram realizados
14 batizados, 1 em 1899 e 13 no ano seguinte. No ano de 1901, os registros demonstram
a ampliaçã o do trabalho missioná rio da Igreja Episcopal. Neste ano, foram realizados 74
batizados, entre os quais 31 foram realizados na cidade de Santa Maria. Faltam
informaçõ es em 11 registros, impedindo, assim, precisar o local das cerimô nias. Os
demais, 32, resultaram do trabalho religioso realizado nas localidades de Colô nia (4),
Restinga Seca (13) e Vila Rica (15). No ano seguinte, 1902, foram realizados 8 batizados,

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entre os quais 6 registram a cidade de Santa Maria como o local da realizaçã o216. Se
considerarmos as famí́lias das crianças batizadas, os padrinhos e os possí́veis convidados,
podemos considerar que neste perí́odo a populaçã o que manteve algum contato com os
missioná rios foi significativa.
James Morris esteve a frente dos trabalhos em Santa Maria até março de 1902,
quando foi substituí́do por George Wallace Ribble. O sucessor de Morris dedicou-se
també m a organizaçã o do grupo de mulheres. Em junho de 1902, foram reunidas as
mulheres para dar iní́cio a uma classe que ensinasse bordados e costuras para as alunas
da escola dominical. A chamada Filhas do Celeste Rei, deveria reverter os lucros das vendas
para a construçã o de um templo pró prio. No ano seguinte o grupo se reorganiza e funda a
Sociedade Auxiliadora de Senhoras - “desaparecendo a antiga Filhas do Celeste Rei, que
passou a ser simplesmente uma classe de bordados e costuras” (KICKHOFEL, 2000, p. 36).

Protestantismos e sua inserção no Brasil

Segundo Martin Dreher (2002), podem ser utilizadas cinco categorias para a
definição dos matizes protestantes encontrados na América Latina, são elas:
protestantismo de imigração, protestantismo de missão, pentecostalismo,
neopentecostalismo e transconfessionalidade protestante. Estas categorias são
contribuintes, uma vez que, possibilitam compreender os diferentes fenômenos
envolvidos na chegada das igrejas acatólicas/ protestantes ao Brasil. Contudo, como se
pode perceber, por meio do trabalho desenvolvido pelo historiador Émile G. Léonard
(2002), imigrantes estadunidenses favoreceram a chegada de missionários para atendê-
los e alguns dos agentes acabaram por desenvolver seu trabalho religioso em meio a
nacionais. Portanto, os movimentos que essas correntes mantiveram em meio ao campo
religioso brasileiro, não permitem que as categorias sejam tomadas de forma restritiva217.
Segundo a classificação, o protestantismo de imigração corresponde às
comunidades religiosas formadas a partir da entrada de imigrantes acatólicos e
protestantes. Inclui, portanto, os imigrantes ingleses anglicanos, chegados ao Brasil a
partir da abertura dos portos em 1808, as comunidades religiosas formadas por meio da

216 Livro 1. Batizados e enterros 1899. Arquivo da Catedral do Mediador. Igreja Episcopal Anglicana no
Brasil. Santa Maria-RS.
217Consultar Dreher (2002) e Calvani (2005).

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chegada de imigrantes protestantes, entre os quais, os luteranos de 1824, e também


outros grupos de imigrantes que organizaram suas comunidades religiosas218. Os
anglicanos também são referenciados por meio da categoria acatólicos, categoria
generalizante, mas utilizada como forma de evidenciar diferenças entre a Igreja da
Inglaterra e outras denominações. Os protestantes alemães também chegaram ao Brasil
na primeira metade do século XIX. O primeiro grupo chegou ao Rio de Janeiro em 13 de
janeiro de 1824, e estavam acompanhados por um pároco, Friedrich Sauerbronn. Em maio
do mesmo ano, os colonos e algumas famílias suíças fundaram, em Nova Friburgo, a
primeira comunidade de língua alemã na América Latina (KOSCHORKE; LUDWIG;
DELGADO, 2012). Sobre os anglicanos de origem inglesa, a obra organizada por Klaus
Koschorke, Frieder Ludwig e Mariano Delgado traz as seguintes informações:

Un tratado comercial firmado por Portugal e Inglaterra el 19 de febrero


de 1810 permitió por primera vez a los sú bditos ingleses protestantes
(acató licos) el ejercicio de su religió n en Brasil. La comunidad anglicana
de Rí́o de Janeiro se convirtió así́ en la primera comunidad protestante
del paí́s; su capilla, construida em 1819, en la primeira inglesia anglicana
-posiblemente, en la primera protestante- que se levantava em suelo
latinoamericano (KOSCHORKE; LUDWIG; DELGADO, 2012, p. 385).

O Protestantismo de missã o, por sua vez, chegou ao paí́s por meio de missioná rios
estrangeiros que mantiveram o objetivo de desenvolver trabalhos religiosos entre os
nacionais. O mesmo, foi estabelecido, permanentemente, em 1855, com a chegada de um
missioná rio escocê s autô nomo chamado Robert Reid Kalley e sua esposa Sarah Poulon
Kalley. Anos antes, em 1836, missioná rios metodistas haviam buscado desenvolver uma
obra missioná ria, mas retornaram aos Estados Unidos. O trabalho desenvolvido pelos
agentes, em territó rio brasileiro, resultou na presença das igrejas congregacional (1858),
presbiteriana (1862), metodista (1886), batista (1881) e igreja episcopal (1891). As
missõ es foram enviadas por igrejas estadunidenses, em sua maioria (MENDONÇA, 2005;
MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 1990; DREHER, 2002) 219. Como bem percebeu Clara

218 Mendonça também chama a atenção para os grupos que chegaram ao pais no século XX (MENDONÇA,
2005, p. 53).
219Segundo se pode perceber há uma divergência no que corresponde a inclusão da Igreja Adventista nesta
categoria (DREHER, 2002; MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 1990).

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Mafra (2001), a respeito da atuaçã o dos missioná rios, pode-se identificar estraté gias
diferenciadas e o caso de Robert Kalley e Ashbel Simonton, demonstram este aspecto.
Enquanto o primeiro buscou uma atuaçã o moderada e segurança para seus fié is, o
segundo acreditava que suas intençõ es deveriam ser conhecidas por todos (LEONARD,
2002; MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 1990). As diferentes estraté gias nã o ficaram
restritas a açõ es pessoais dos agentes, mas as denominaçõ es acabaram por adotar
diferentes vias no desenvolvimento de seus trabalhos. Enquanto os presbiterianos e
metodistas, por exemplo, buscaram se afirmar na sociedade brasileira por meio das
instituiçõ es de ensino, os batistas, apostaram em um “estilo imediato e massivo de
propaganda religiosa” (MAFRA, 2001, p. 27).
Assim, como afirmou Mendonça (2005) até o final do sé culo XIX todas as
denominaçõ es protestantes, fossem elas tradicionais ou histó ricas, haviam se
estabelecido em territó rio brasileiro. A denominaçã o que encerra o ciclo da entrada das
missõ es pertencentes ao protestantismo de missã o é “a Igreja Protestante Episcopal, mais
adiante conhecida simplesmente por Igreja Episcopal” (p. 52).

A adesão ao protestantismo e migração religiosa


Entende-se que os sistemas simbólicos podem organizar a representação do
mundo real e social dividindo-o em classes antagônicas. Esses sistemas fornecem o
significado e o consenso com base na lógica de inclusão e exclusão. Portanto, estão
predispostos a preencher funções simultâneas de inclusão e exclusão, integração e
distinção, bem como, de exclusão e associação. Sua função lógica é de atribuir ordem ao
mundo e a fixação de um consenso sobre o mesmo. Os sistemas simbólicos, assim,
legitimam uma ordem arbitrária, resultado da seleção de um conjunto de valores em
determinada sociedade. Neste sentido, a cultura “contribuiu para a conservação simbólica
das relações de força vigentes” (BOURDIEU, 2015, p. 12). Sendo assim, a religião como
sistema simbólico possui o mesmo caráter de ordenação do mundo e legitimação. A ela
atribui-se ainda o poder de sacralização, ou seja, de legitimar como sagrada a ordem
socialmente construída. Este sistema simbólico consegue submeter o sistema de
disposições em relação ao mundo real a uma mudança de natureza, transformando o
sistema inculcado pelas condições de existência (ethos), em um sistema racionalizado e
de normas explícitas (ética). Dessa maneira, todo sistema religioso possuí o potencial de

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promover permanências ou rupturas no ethos dos agentes (BOURDIEU, 2015). Quanto aos
missionários protestantes, parece que o desenvolvimento de seus trabalhos esteve
associado a uma ideia de ruptura possibilitada pelo conceito de conversão.
Émile Léonard (2002), escreveu que no Brasil de 1855, “fora das colônias
estrangeiras, não havia protestantismo algum”. Em 1888, a realidade já se configurava de
outra maneira. Segundo o mesmo autor, a Igreja Presbiteriana, até então a denominação
com maior crescimento, possuía mais de cinquenta comunidades - “para apenas vinte
missionários” (p. 95). Taylor, missionário batista, calculou, em 1895, que o número de
brasileiros que poderiam dizer-se evangélicos chegaria “em perto de 30.000”. No ano de
1940, ainda segundo Léonard, os protestantes contavam 1.074.857, número que incluía
as colônias de imigrantes protestantes (p. 95). Segundo Dreher (1998), o conceito de
conversão, compreendido como uma decisão de fé que possibilitava romper com as
tradições religiosas familiares e também integrar-se a uma nova comunidade religiosa,
enquanto um elemento da religiosidade do mundo moderno, esteve presente entre os
imigrantes acatólicos e luteranos que haviam chegado ao Brasil, no início do século XIX.
Entretanto, uma vez que as igrejas formadas por imigrantes, de modo geral, não
promoveram ações próprias que resultassem na divulgação do protestantismo em meio
aos nacionais, se pode compreender que foi através do trabalho missionário que a prática
da conversão se tornou conhecida de maneira mais abrangente. Segundo Mafra, “[…] a
conversão significava uma quebra abrupta nos laços de pertencimento da pessoa, uma vez
que a fidelidade maior transferia-se das redes tradicionais de pertencimento para o rol de
membros da igreja, estes sim engajados em uma ética de santificação” (MAFRA, 2001, p.
18). A ruptura possibilitada pela conversão, segundo a autora, “fazia parte da tradição dos
evangélicos norte-americanos, formando organizações solidárias por iniciativa individual
marcada por um recorte ideológico, bem ao estilo da sociedade civil descrita por
Tocqueville” (MAFRA, 2001, p. 18).
Trabalhamos com a hipó tese de que o conceito de conversã o, associado as ideias
de ruptura e ordenaçã o do mundo, possibilitou que agentes rompessem com a sua religiã o
de origem e adotassem o protestantismo como confissã o. Desta maneira, teriam
acontecido rearranjos no campo religioso brasileiro, uma vez que muitos agentes, até
entã o cató lico romanos, passaram a integrar as igrejas protestantes. Neste sentido,
compreendemos esse fenô meno de adesã o ao protestantismo como um fenô meno

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migrató rio e nã o apenas de fluxo religioso220. Ainda que este nã o exclua um possí́vel fluxo
e o acionamento de outras identidades, possibilita que os agentes se mantenham
vinculados a um grupo especí́fico e os torna consumidores dos bens de salvaçã o ofertados
por sacerdotes de determinado grupo. Sendo assim, nã o sã o as “rá pidas idas e vindas
entre as religiõ es” (ALMEIDA, MONTEIRO, 2001, p. 92), o que mais nos chama a atençã o
no momento, mas as permanê ncias que ocorreram ao longo da inserçã o do
protestantismo em meio ao campo religioso brasileiro. Essa migraçã o seria caracterizada
pela saí́da dos agentes de seus lugares de origem no campo religioso e seu deslocamento
em direçã o a outro lugar (instituiçã o religiosa).
As reflexõ es de Abdelmalek Sayad (1998), apesar dos diferentes objetos de estudo,
possibilitam compreender os agentes (tanto os missioná rios, quanto os leigos) como
imigrantes e emigrados. No entanto, ao contrá rio de uma sociedade de imigraçã o, que
busca manter os agentes como imigrantes e nã o os inclui enquanto cidadã os, a migraçã o
religiosa causada pelas igrejas do protestantismo de missã o, buscariam inserir os
migrantes em seu interior. Estas sã o reflexõ es que necessitam de uma maior elaboraçã o,
contudo a discussã o parece pertinente para o estudo do tema.

Considerações finais
Assim sendo, entende-se que o desenvolvimento do trabalho religioso que resultou
na presença da Igreja Episcopal em meio ao campo religioso nacional iniciou em 1889. A
partir de 1890 os agentes iniciaram oficialmente os seus trabalhos e em 1899 o trabalho
desenvolvido havia apresentado um crescimento considerá vel. Neste mesmo ano os
missioná rios chegaram a cidade de Santa Maria-RS e nos anos seguintes buscaram
alcançar localidades pró ximas. Os registros de batismo demonstram que no ano de 1901
um nú mero expressivo de pessoas foram alcançadas pelos agentes. Os registros
encontrados na cidade de Santa Maria mostram que 74 batizados foram realizados
naquele ano.

220 Almeida e Monteiro se dedicaram ao estudo do trânsito religioso no Brasil e apresentam dados que
demonstram o fluxo de agentes entre diferentes manifestações religiosas. Afirmam que esse macroprocesso
de síntese e diferenciação convencionou denominá-lo como trânsito religioso. Essa noção aponta, ao menos,
para dois movimentos. O movimento de circulação entre as instituições e o movimento de “metamorfose
das práticas e crenças reelaboradas nesse processo de justaposições” (ALMEIDA; MONTEIRO, 2001, p. 93).

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Considerando que o protestantismo chegou ao paí́s pelas diferentes vias


migrató rias, podemos compreender que a adesã o a essa perspectiva religiosa
pressupunha uma ruptura com as antigas tradiçõ es religiosas dos agentes. O conceito de
conversã o, portanto, enquanto um elemento de ruptura do universo simbó lico,
possibilitava reajustes e uma reconfiguraçã o na compreensã o a respeito do mundo. Esse
reajuste, se associado ao exclusivismo institucional, nã o caracterizaria somente um fluxo
religioso, mas um fenô meno de migraçã o religiosa, na medida em que os agentes deixavam
seu local de origem no campo religioso e se direcionavam para outro. Contudo, ao
contrá rio dos agentes que deixam sua sociedade de origem em direçã o a uma sociedade
que os recebe enquanto trabalhadores provisó rios, os migrantes do campo religioso, ao
serem incluí́dos nas igrejas de missã o, tornavam-se parte de um novo grupo social. O
presente trabalho encontra-se em fase de desenvolvimento e estas consideraçõ es
correspondem aos resultados parciais.

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(RE)LEITURA DA HISTÓRIA DE SÃO LEOPOLDO E DA IMIGRAÇÃO


ALEMÃ DO SÉCULO XIX ATRAVÉS DE FONTES JUDICIAIS: QUESTÕES
TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Caroline von Mühlen

Acerca do mundo colonial e agrário de São Leopoldo e, especialmente, sobre os


imigrantes alemães e teuto-brasileiros, existem incontáveis produções historiografias e
discursos. Essa história da imigração e colonização alemã no Rio Grande do Sul pode ser
enquadrada em três matrizes interpretativas. A primeira matriz interpretativa é formada
por autores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS).
Autores, como Aurélio Porto e Ernesto Pellanda, procuraram qualificar e glorificar o
imigrante alemão, afirmando que os imigrantes e seus descendentes eram “ordeiros”,
“operosos” e “amantes do progresso”.
A segunda matriz interpretativa é de vertente teuto-católica da imigração alemã, e
formada por sacerdotes jesuítas alemães expulsos da Prússia por Otto von Bismarck, no
século XIX. Carlos Teschauer SJ, Ambrósio Schupp SJ e Theodor Amstad SJ, por exemplo,
procuraram enaltecer a importância da religião e da preservação dos costumes, mas,
principalmente, destacando os malefícios que podem ser causados aos indivíduos que se
afastassem dos princípios do cristianismo ou deixassem de legá-los às futuras gerações e
descendentes.
A terceira matriz interpretativa compunha-se por luteranos. Fortemente
influenciados pela historiografia positivista alemã, figuras como Wilhelm Rotermund,
Carlos Henrique Oberacker Jr., Carlos Henrique Hunsche e Ferdinand Schröder
objetivavam recuperar a autoestima dos alemães luteranos, incentivar a busca pelo
direito à cidadania e preservar os valores étnicos. Essa influência permitiu que trabalhos
importantes fossem realizados, trazendo à tona temas até então não discutidos pela


Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Autora da obra:
Degredados e Imigrantes: Trajetórias de ex-prisioneiros de Mecklenburg-Schwerin no Brasil Meridional
(século XIX). Santa Maria: Editora da UFSM, 2013. Atualmente leciona História no Colégio Sinodal (Unidade
de Portão/RS). Contato: carolinevm7@gmail.com.

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historiografia clássica, como, por exemplo, sobre a deportação de apenados, os


mercenários alemães, acerca da cidadania, nacionalizações e identidade.
Contudo, as pesquisas relacionando imigração e política, a dinâmica social, a
escravidão, a deportação de alemães, as relações interétnicas incluem-se numa nova
perspectiva de análise, constituída, principalmente, por pesquisadores de programas de
pós-graduação, formando aquilo que podemos chamar de quarta matriz interpretativa da
História da Imigração e Colonização Alemã, iniciada por Marcos Justo Tramontini [1997,
2003] com a publicação da obra “A organização social dos imigrantes: a colônia de São
Leopoldo na fase pioneira (1824-1850)”.
Partimos do pressuposto de que um olhar mais aproximado, e a utilização de
processos criminais e outras fontes (até então pouco ou não utilizadas), permitirá a
apreensão de certos comportamentos, valores sociais, normas, formas de condutas,
costumes cotidianos presentes na sociedade leopoldense, na segunda metade do século
XIX, que, de certa forma, não foram privilegiados pelos autores que integraram as três
citadas matrizes interpretativas. Dessa maneira, o presente artigo objetiva trazer
considerações acerca da importância dos processos criminais como fonte histórica para
(re)pensar a história de São Leopoldo e da Imigração Alemã, bem como, atentar para as
possibilidades, métodos de pesquisa e cuidados necessários ao utilizar esse tipo de fonte.

“O que não está nos autos não está no mundo”221: os processos criminais como fonte
histórica

O processo criminal deve ser entendido como um “conjunto dos atos praticados
para que o Juiz possa emitir uma decisão segundo as ordens determinadas pela lei”
(BAJER, 2002, p. 9). Dito de outra forma, compõe-se de um “intricado mosaico” de peças
judiciárias, usando uma expressão de Paulo Moreira, através do qual a Justiça busca
reconstituir um acontecimento (crime), enquadrando-o ao Código Criminal vigente à
época e após seguir os trâmites legais, absolver ou condenar o(s) réu(s).222 Os autos, como

221Adágio Jurídico citado por André ROSEMBERG (2009, p. 159).


222“Como a justiça criminal não apenas julga os atos, mas também se preocupa, de maneira central, com a
motivação e a intencionalidade dos atores (...), as explicações e desculpas dos envolvidos e as versões das
testemunhas necessariamente entram nos processos, mesmo quando distorcidas por categorias,
preconceitos e estratégias dos operadores da Justiça. Nos garranchos de processos antigos, encontram-se

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bem lembra Boris Fausto, traduzem “o crime e a batalha que se instaura para punir,
graduar a pena ou absolver” (FAUSTO, 1984, p. 21). Dessa forma, quando “os atos se
transformam em autos” e “os fatos em versões” perde-se o acesso ao acontecido, em
decorrência do debate que se instaura entre os atores jurídicos (médicos, oficiais de
justiça, intérpretes, policiais, juízes, escrivães, advogados, testemunhas, jurados) ou
“manipuladores técnicos”223, onde cada um manipula os fatos de acordo com o seu ponto
de vista (CORREA, 1983, p. 25). A partir da leitura dos processos criminais, é possível
perceber a mediação dos “manipuladores técnicos” e a interferência desses agentes
judiciais nas relações e disputas de poder travadas entre as partes envolvidas,
reconstituindo-se, pois, “um modelo de culpa e um modelo de inocência” (SILVA, 2004, p.
56). Corroborando com essa premissa de que “os atos se transformam em autos”, Yvonne
Maggie (1992, p. 21) afirma que “o juiz julga o que está nos autos e não o que se passou
na verdade. Portanto, o que não está nos autos não pode ser levado em consideração”.
Assim, “o que está no processo está no mundo, isto é, os princípios que regulam e norteiam
o discurso dos juízes são também princípios ordenadores de discursos da sociedade de
um modo geral”.

O processo caracteriza-se a partir da sua funcionalidade, ou seja, de


documento oficial, normativo interessado no estabelecimento da verdade
sobre o crime. Assim, enquanto mecanismo de controle social do aparelho
judiciário, este documento é marcado por um padrão de linguagem, a
jurídica, e pela intermediação imposta, pelo escrivão, entre o réu, as
testemunhas e registro escrito. Apesar do caráter institucional desta
fonte, ela permite o resgate de aspectos da vida cotidiana, uma vez que
interessada a Justiça em reconstruir o evento criminoso, penetra no dia-
a-dia dos implicados, desvenda suas intimas, investiga seus laços
familiares e afetivos, registrando o corriqueiro de suas existências
(MACHADO, 1987, p. 23).

Esse tipo de corpus documental, conforme aponta Maria Helena Machado atenta
para algumas peculiaridades importantes, no que tange aos cuidados necessários com a

analfabetos discutindo suas interpretações de eventos e imputando motivos aos outros” (MONSMA, 2005,
p. 163-164).
223
Categoria criada pela autora Mariza Corrêa (1983) para definir os profissionais do sistema jurídico e
policial que tinham a função de ordenar a realidade conforme as representações sociais propostas pela
máquina judicial.

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utilização desse tipo de “documento oficial” e as potencialidades de pesquisa. Diversos


autores apontam que através desta fonte é possível resgatar “aspectos da vida cotidiana”
dos indivíduos envolvidos num “evento criminoso”. Sidney Chalhoub, por exemplo, no
prefácio à 2ª edição do livro Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio
de Janeiro da belle époque, discorre acerca do ceticismo dos pesquisadores quanto à
possibilidade de utilizar esse tipo de fonte para estudar temas que não estavam
relacionados diretamente com a criminalidade ou questões relativas às representações
jurídicas. Segundo o autor, esse entendimento não é pacífico, enquanto para alguns
historiadores “tais fontes ‘mentem’, os depoimentos são manipulados, respondem a uma
multiplicidade de interesses que os tornam praticamente inúteis”, outros, contudo
“achavam que seria possível utilizar essas fontes para recuperar o cotidiano dos
trabalhadores, seus valores e forma de conduta”. Trabalho, lar e botequim, lançado
originalmente em 1986, em meio às divergências e discussões travadas nos seminários de
pós-graduação, foi “quase um libelo em defesa da utilização abrangente de processos
criminais em estudos de história social”, evidenciando a legitimação de arquivos judiciais
e a utilização dessa fonte para a pesquisa histórica (CHALHOUB, 2001, p. vii e viii).
Ao mesmo tempo em que essa fonte pode ser considerada uma “mina de dados”,
por outro lado também é uma documentação bastante complexa de ser trabalhada pelo
pesquisador, pois “a tendência inicial é de emergir na controvérsia do processo, procurar
encontrar verdades, ziguezaguear ao sabor desta ou daquela versão”. Completando, Boris
Fausto afirma que “as emoções despertadas pelos materiais provocam ansiedade [e] ao
tentar introduzir uma ordem nos documentos acabamos por perceber que eles próprios
são em grande medida obras de ficção, aberta à imaginação de quem os lê” (FAUSTO,
1984, p. 28-29).
O cuidado e a precaução no manuseio que essa fonte exige são legítimos e
necessários, visto se tratar de documentos históricos e oficiais ou “peças artesanais”,
como define Boris Fausto. A primeira preocupação diz respeito às autoridades
interlocutoras nas “peças artesanais”. Mesmo sabendo que no processo criminal foram
incluídas novas peças e ele foi manuseado por diferentes autoridades, a figura central na
produção deste documento é o escrivão, pois cabe a ele “manipulador técnico” redigir o
documento, mediar as falas dos personagens e registrar as informações, conforme os

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termos técnicos. Como bem lembra João José Reis, “a história dos dominados vem à tona
pela pena dos escrivães de polícia” (RIBEIRO, 1995, p. 21).
Nos depoimentos dos réus, das vítimas e testemunhas, fica evidente que suas falas
são orientadas e transcritas pelo escrivão com objetivo de torná-las uniformes e
homogêneas. A pessoa inquirida “só discorre sobre aquilo que lhe é perguntado, sua
palavra é cortada quando a narrativa, a critério das autoridades, não é pertinente para o
esclarecimento dos fatos”. Fausto afirma ainda que “ao ser transcrito, o discurso
eventualmente complexo da testemunha é remetido a um conjunto de regras altamente
formalizadas”, apagando-se “os traços da emoção mais autêntica” (FAUSTO, 1984, p. 23-
4). Portanto, o escrivão não publica na integra todas as informações concedidas pelos
depoentes, mas somente transcreve aquelas que julgar mais relevantes para o julgamento
do caso.
Outro desafio ou preocupação dos pesquisadores que utilizam os processos
criminais como fonte histórica é não confundir a “verdade formal” (aquela apresentada
nos autos) com a “verdade informal” (informações que circulam entre as pessoas e no
local de acontecimento) (ROSEMBERG, 2009, p. 165). Acerca da possibilidade de acessar
ou não a verdade dos fatos de um determinado acontecimento, Sidney Chalhoub (2001, p.
39 e 40) lembra: “é obvio que é difícil, senão impossível descobrir ‘o que realmente se
passou’(...). Existem, é claro, pelo menos tantas dúvidas quanto certezas (...). Mas, por
favor, devagar com o ceticismo: há certezas”. Para escapar dessa problemática,
pesquisadores sugerem primeiramente conhecer o funcionamento, a dinâmica e as
nuanças dos processos judiciais, tentar compreender o processo como um mecanismo de
construção de verdade e como “se explicam as diferentes versões que os diversos agentes
sociais envolvidos apresentam para cada caso” (CHALHOUB, 2001, p. 40), buscando, por
fim, entender o significado dessas versões, uma vez que, nesta disputa de forças, onde
cada um quer fazer valer a sua versão como verdade, estas estão carregadas de uma carga
ideológica. De acordo com Chalhoub (2001, p. 41-2, grifo do autor), o pesquisador deve
buscar

as ‘coisas’ que se repetem sistematicamente: versões que se reproduzem


muitas vezes, aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou
contradições que aparecem com frequência (...) cada história recuperada
através dos jornais e, principalmente, dos processos criminais é uma

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encruzilhada de muitas lutas (...) Resta ao historiador a tarefa árdua e


detalhista de desbravar o seu caminho em direção aos atos e às
representações que expressam, ao mesmo tempo que produzem, estas
diversas lutas e contradições sociais.

Metodologicamente, alguns critérios de trabalho foram adotados para analisar os


processos criminais. Aqui chamaremos esses critérios de trabalho de procedimentos
operacionais, ou seja, esses procedimentos são de fundamental importância para a análise
da fonte judicial, uma vez que a preocupação é não cometer erros e anacronismos. O
primeiro procedimento refere-se ao conhecimento do aparato de leis e códigos criminais
vigentes à época que orientavam o trâmite processual dos processos estudados, bem
como as formas de punição atribuídas aos infratores. Concordamos com Carlos Bacellar
(2011, p. 44, grifo do autor), quando diz que “o historiador que se aventura nos arquivos,
de qualquer época, deveria ter preocupações em conhecer o funcionamento da máquina
administrativa para o período que pretende pesquisar”. Conhecer a legislação que definia
os crimes e a punições, também auxilia o pesquisador a compreender a estrutura de um
processo e a forma como era conduzida pelas autoridades.
O segundo procedimento de análise (intimamente ligado ao primeiro) busca
compreender os caminhos percorridos pela Justiça naquilo que tange à formação de um
processo criminal. Iniciado o trâmite judicial com a queixa (descrever o fato criminoso,
apresentar o nome e a descrição do acusado, o valor do dano sofrido e o nome das
testemunhas e/ou dos informantes), fazia-se o auto de corpo de delito, cuja averiguação
dos vestígios era realizada por peritos ou pessoas probas nomeadas pelo Delegado de
Polícia em exercício. Em seguida, o queixoso/ofendido assinava o Termo de Juramento e
respondia a várias perguntas visando a comprovar a legitimidade da denúncia. Nesta
primeira fase, também era realizada a qualificação e feitas perguntas ao acusado, bem
como se arrolavam as testemunhas que deveriam comparecer em hora e local
determinados pela lei para serem inquiridas. Se o Juiz decidir que existem provas
suficientes para pronunciar o réu, dava-se início à segunda fase do trâmite judicial. Nesta
etapa, o Promotor Público informava por qual crime o réu seria julgado, seu nome era
lançado no rol de culpados e o Juiz de Direito determinava o prazo de 24 horas para a
acusação e defesa apresentarem o Libelo acusatório e Contralibelo, respectivamente. Com
base nessas informações, um novo interrogatório era realizado, entretanto poucas

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informações novas eram apresentadas pelo réu. Por fim, o Juiz de Direito encaminhava os
autos criminais para a reunião do Conselho de Jurados que deveriam responder a algumas
perguntas e decidir pela absolvição ou condenação do réu, bem como o responsável pelo
pagamento das custas do processo.
O terceiro procedimento diz respeito à forma de leitura e análise da fonte criminal,
pois “a justiça, da mesma maneira que o antropólogo geertziano, produz interpretações
de interpretações’ (Geertz, 1973)”.224 A partir da leitura dos documentos, atentar para as
informações mais gerais e evidentes, bem como às entrelinhas e aos silêncios. Todas as
informações mais gerais e específicas foram anotadas numa ficha de dados. Sem tentar
solucionar os crimes, e amparados pela legislação da época, procuramos diminuir o risco
de cometer anacronismos e erros. Contudo, seria uma “expectativa inocente”, afirma
Sidney Chalhoub (2001, p. 41) acreditar que através da leitura dos processos criminais o
pesquisador poderia acessar aquilo que de fato ocorreu. Assim, a necessidade de incluir
outras fontes documentais e promover o cruzamento entre elas torna-se um
procedimento indispensável na pesquisa histórica (quarto procedimento). Cruzando os
dados genealógicos com os dados que emergem dos processos criminais, podemos
compreender as relações que se estabeleceram nesse grupo heterogêneo, composto por
luso-brasileiros, alemães e descendentes católicos ou luteranos.

Apontamentos sobre a criminalidade na Vila e Cidade de São Leopoldo


A antiga Feitoria do Linho Cânhamo passou por inúmeras transformações
administrativas (fundação da Colônia Alemã de São Leopoldo em 1824, elevação à
condição de Capela Curada em 1830, Vila em 1846 e Cidade ou Município em 1864),
econômicas (introdução da pequena propriedade, desenvolvimento da agricultura e do
artesanato devido à ligação com Porto Alegre, melhorias e introdução de novos meios de
transporte para escoar o excedente) e sociais (imigração de alemães em 1824, contato e
interação com os nacionais, gradativo aumento da população, em decorrência de novas
imigrações e migrações). Além das intensas transformações locais, as constantes guerras

224
“Como demonstram Marisa Corrêa (1983) e Boris Fausto (2001), as categorias da lei e os valores e
estratégias dos profissionais da justiça – delegados, escrivães, promotores, advogados e juízes – filtram o
que entra em um processo e modificam o vocabulário dos depoimentos, escritos em terceira pessoa. Em
geral, quanto mais adiantado o processo no percurso inquérito-julgamento-recurso, mais esses valores,
categorias e estratégias influenciam a reconstituição do conflito” (MONSMA, 2005, p. 159-160).

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envolvendo a Província do Rio Grande do Sul e o Império brasileiro (Revolução


Farroupilha 1835/1845, Guerra contra Oribe e Rosas 1851/1852, Guerra do Paraguai
1864/1870) intensificaram as relações sociais e marcaram a vida cotidiana dos
habitantes de São Leopoldo.
Nesse contexto de dificuldades e transformações, os crimes de sangue e as ofensas
verbais que ocorreram em São Leopoldo acabavam preenchendo algumas funções
fundamentais, e revelando aspectos importantes acerca do cotidiano local. Para o período
de 1846 a 1871 foram localizados 97 processos criminais julgados pelo Tribunal do Júri.
A partir da leitura e quantificação desses processos foi possível observar que os crimes,
na sua maioria contra a pessoa, ocorreram na forma de conflitos diretos. Não
identificamos fatores sazonais, época propícia, nem um período do dia específico que
determinasse a maior ou menor quantidade de crimes. Dessa forma, atentamos para o
fato de que os desafios, insultos, as divergências, rixas, cobranças de dívidas, os negócios
mal resolvidos, problemas com invasão e demarcação de terras, a abertura e o fechamento
de caminho podiam ser resolvidos no momento que ocorreu a questão, através de uma
explosão súbita de raiva, mas também motivado por questões que já existiam há algum
tempo, entre as partes. O local de ocorrência permitiu constatar dois momentos ligados
ao cotidiano dos indivíduos: o trabalho e o lazer dos indivíduos. Em locais públicos,
privados e isolados, 68% dos casos ocorreram na área mais rural da Vila e Cidade de São
Leopoldo, justificando, assim os tipos de crimes denunciados à Justiça.
Através da análise dos tipos de crimes, locais e motivos das querelas, bem como os
instrumentos utilizados para ferir, matar ou defender-se, evidenciamos que o padrão de
agressividade e violência percebida em São Leopoldo estava relacionado diretamente a
fatores locais e ao contexto cotidiano dos habitantes. Relhos, machados, enxadas, foices,
por exemplo, eram instrumentos utilizados no trabalho diário e nos momentos de
explosão súbita de descontentamento, podiam servir como instrumento de agressão ou
defesa contra pessoas que conheciam e possuíam algum tipo de relação cotidiana
(amizade, vizinhança, parentesco, colegas de trabalho). Entretanto, alguns indivíduos
também fizeram uso de armas brancas (faca, facão, cacete, canivete, pau) e de fogo
(espingarda). Vários desses instrumentos eram carregados diariamente à altura da
cintura, fosse para matar um passarinho ou outro animal, na lida do campo ou quando

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fosse necessário, evidenciando-a como uma prática cotidiana e um habitus local dos
indivíduos.
O perfil social dos crimes e dos envolvidos permitiu identificar que não se tratava
de criminosos profissionais, e que o índice de criminalidade não estava associado à
delinquência, pobreza e falta de instrução das partes envolvidas, mas, sobretudo, ao
cotidiano em que estavam inseridos. Se alemães e seus descendentes (a maioria da
população de São Leopoldo era de origem alemã) compareceram com mais frequência à
Justiça, na condição de réus e vítimas, tal constatação também foi percebida naquilo que
tange à origem étnica das testemunhas inquiridas nos processos criminais, compondo-se,
preferencialmente, por indivíduos do sexo masculino, casados, com idade entre 22 a 50
anos, que possuíam uma ocupação ou eram proprietários de seu próprio negócio,
enquanto as mulheres aparecem em número muito inferior.
A análise dos crimes de homicídios, tentativa de homicídios, agressão física e
ferimentos e crimes de injúrias e calúnias, permitiu percebê-los como um reflexo do
funcionamento da sociedade em que os indivíduos estavam inseridos e constatar que não
eram praticados contra estranhos e desconhecidos, antes entre pessoas que possuíam
algum tipo de relacionamento solidificado por amizade, parentesco, afinidade, trabalho e
vizinhança. Dessa forma, as relações sociais podiam, por um lado, ser permeadas por
redes de amizade, solidariedade e reciprocidade, mas, por outro lado, essas redes podiam
ser rompidas, gerando inimizades, divergências, rixas e conflitos. Através dos processos
analisados, foi possível constatar que existiam problemas de convívio e de
relacionamento entre os vizinhos nos distritos, tendo como pano de fundo questões de
terra, propriedade e posse, sendo, porém, um reflexo das condições sociais, econômicas e
políticas vivenciadas pelos habitantes de São Leopoldo durante o período em análise. Mas,
quando fosse necessário, a comunidade local podia se unir contra a atuação, conduta e o
abuso de autoridades para defender os seus interesses e estabelecer laços de confiança.
Por fim, cabe salientar que os crimes e suas motivações devem ser entendidos
como um reflexo dos medos, das preocupações, condições e necessidades de
sobrevivências dos indivíduos, diante de uma cidade em transformação e das dificuldades
vivenciadas na Vila e Cidade de São Leopoldo, entre 1846 a 1871, tornando os habitantes
nesse jogo social, ora réus, ora vítimas do contexto e espaço analisado.

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PARTE 5

ESTUDOS HISTORIOGRÁFICOS, HOMENS DE LETRAS E INTELECTUAIS


NA AMÉRICA LATINA

Cláudio Pereira Elmir


Mara Cristina de Matos Rodrigues

Nas últimas décadas, tem havido um incremento significativo dos estudos


historiográficos. Este é um campo de pesquisa em franca expansão, pelo menos, desde a
década de 1980, no caso do Brasil. Nos últimos anos, é possível identificar numerosos
trabalhos que se dedicam à conformação de lugares mais ou menos institucionais de
construção do conhecimento histórico. Dão mostras desse vigor investigações que
tematizam diferentes aspectos relacionados aos Institutos Históricos, aos Cursos
Superiores de História, entre outras agremiações, e aos homens de letras ou intelectuais
que os constituem, seja no século XIX ou em tempos mais recentes, no novecentos e nos
dias de hoje. Diferentes abordagens historiográficas contribuem nesta tarefa de cercar o
campo da história da historiografia. Para além do arrolamento de autores e de obras, das
classificações, das aproximações ideologizadas das instituições e de estudos mais
abrangentes e estruturais, comuns em décadas passadas, mais recentemente novas
perspectivas têm alcançado notoriedade entre as investigações feitas; muitas das quais
dedicando-se a visões mais verticalizadas acerca de um autor ou de uma obra, ou, ainda,
metodologias provenientes de outros campos disciplinares, como a comparação, a
prosopografia, os estudos de elites e de redes, por exemplo, que dão novo vigor ao campo.
A proposta deste ST é acolher comunicações que, de alguma forma, aproximem-se desse
cenário de estudos, contribuindo para o debate que qualifica o lugar da historiografia
entre os estudos históricos latino-americanos.

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“TÃO IMPORTANTE TESOURO NÃO SE DEVE CONFIAR A QUALQUER”: A


ATUAÇÃO DE DOMINGOS JOSÉ DE ALMEIDA NA CONSTITUIÇÃO DA
COLEÇÃO VARELA

Camila Silva*

A presente comunicação é parte de uma investigação sobre o processo de


constituição e patrimonialização da Coleção Varela, um dos principais conjuntos
documentais sobre a Revolução Farroupilha, atualmente custodiada pelo AHRS (Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul). Este fundo é composto por mais de dez mil documentos
(correspondências, decretos, ofícios, etc.), cujas transcrições são publicadas nos Anais do
AHRS desde 1978225. Além do acontecimento ao qual se refere, esta documentação
abrange diversos temas, tais como família, medicina, gênero, escravos, relações
fronteiriças, dentre outras possibilidades de estudo.
O arquivo, assim, é fonte de pesquisa para estudiosos de diferentes temáticas.
Todavia, o historiador, tão habituado com estes artefatos, parece muitas vezes restringir
sua abordagem ao conteúdo das fontes contidas nos acervos, sem que a ordem histórica
dos mesmos seja discutida. Salomon chama a atenção para esta problemática, alertando
que “o discurso metodológico e o discurso teórico da história pressupõe os arquivos como
dados, e evitam a todo custo uma reflexão sobre sua construção e sobre sua produção”.
(2011, p.14)
Contudo, alguns estudos têm modificado tal diagnóstico. Um balanço historiográfico
permite observar o crescente interesse por tematizações que privilegiam a história dos
próprios arquivos e dos fundos documentais que custodiam, interessadas nas dimensões
textuais e simbólicas e nos efeitos que deles decorrem em outras dimensões da vida social.
Este deslocamento se deve, em grande medida, a transformação do próprio conceito de
“arquivo”. Obras de filósofos como Foucault (2000) e Derrida (2001), tem contribuído
para uma mudança epistemológica no estatuto dos arquivos.

*Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação da UNISINOS. Bolsista/CAPES.


225Atualmente o projeto de transcrição é realizado a partir de uma parceria entre o Arquivo Histórico do
Rio Grande do Sul, o Centro Universitário La Salle e o Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Os Anais do AHRS encontram-se em seu volume 21 (CARDOSO,
MOREIRA e PENNA, 2015).

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Na esteira dos debates que conjugam arquivo, história e memória, a pesquisa


pretende analisar a trajetória de constituição e patrimonialização deste arquivo privado,
desnaturalizando o seu processo de acúmulo através do entendimento dos agentes
(individuais e institucionais) que interviram na seleção e preservação dos seus
documentos226. A investigação busca, assim, perceber a inter-relação de grupos e
interesses no processo social de produção da coleção, bem como os projetos de memória
nela inscritos.
A origem do arquivo adquirido pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul, em
1936, remonta ao final da década de 1850. Em 1859, passando dos sessenta e dois anos
de idade, o ex-ministro da República Rio-Grandense, Domingos José de Almeida227
empreendeu os primeiros esforços para a reunião dos registros sobre a guerra civil
farroupilha. Entre 1859 e 1862, Almeida escreveu reiteradamente para correligionários e
ex-líderes da extinta República, solicitando o envio de correspondências, periódicos,
proclamações, dentre outros documentos que testemunhassem o episódio. Com o
conjunto de documentos e a memória pessoal que preservava sobre o decênio farroupilha,
Almeida ambicionava escrever uma história da conflagração sob a ótica dos rebelados.
Apesar do silêncio de quinze anos, imposto pelo Decreto de 18 de dezembro de
1844228, no qual o Imperador D. Pedro II determinava o “esquecimento do passado”,
Almeida não seria o único a trabalhar na reunião de registros sobre a Revolução
Farroupilha naquele período. Conforme evidenciaram as historiadoras Gomes (2012) e
Boeira (2013), entre o final da década de 1850 e o início dos anos 1860, surgiram diversas
demandas pela constituição de espaços para a formação e preservação de uma memória
da guerra civil.

226 A pesquisa intitulada “Arquivo, história e memória: constituição e patrimonialização de um acervo


privado (A Coleção Varela – AHRS, 1850/1930)” é desenvolvida no Programa de Pós-Graduação da
UNISINOS, com a orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira.
227 O comerciante mineiro, Domingos José de Almeida, estabeleceu-se em Pelotas em 1819. O casamento

com Bernardina Barcellos de Lima, inseriu-o no círculo de uma família bem estabelecida na região sul da
Província. Conforme Menegat (2009), este matrimônio o inseriu em uma rede pertencente à elite
charqueadora pelotense. Quando participou da deflagração da Revolta Farroupilha, Almeida era deputado
na Assembleia Provincial. Posteriormente, exerceu o cargo de ministro da Fazenda e ministro do Interior,
na República Rio-Grandense (MENEGAT, 2009).
228 Através deste decreto o imperador D. Pedro I anistiava os farroupilhas e anunciava a pacificação,

declarando “maldição eterna a quem se recordar das nossas dissensões”. De acordo com Edna Gondim de
Freitas, este documento desapareceu dos arquivos oficiais, restando, porém, uma cópia preservada por
Domingos José de Almeida (BRASIL,1980).

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À exemplo do IHGB (Instituto Histórico de Geográfico Brasileiro), instituição à qual


correspondia, o IHGPS (Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro)
buscava “coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos concernentes à História
e topografia da província (...)”229, nas palavras do sócio fundador e também sócio
correspondente do IHGB, Caldre e Fião230. (1860 apud BOEIRA, 2013, p. 77) Embora o
decênio farrapo representasse um obstáculo ao projeto do IHGB de elaborar um passado
comum para a nação em construção, de acordo com Boeira, sua congênere sulina não
hesitou em publicar já no primeiro ano de funcionamento um documento proveniente da
extinta República Rio-Grandense231.
Também os periódicos cumpriram importante papel na construção de uma escrita
da história sul-rio-grandense, tendo sido a guerra civil abordada através destes veículos,
compreendidos por Gomes como um “meio alternativo de apresentação das narrativas
sobre a história regional”. (2012, p. 9) Como demonstra a autora, ao salvar os documentos
do esquecimento, os periódicos formaram não apenas um acervo relativo a própria
produção periodista, mas também, e aqui cabe destacar, um acervo referente aos
documentos transcritos e publicados, pertencentes a coleções públicas ou particulares.
(2012, p. 29) Exemplo disso, foi a criação da seção Coleção de documentos oficiais, peças
autênticas e notas importantes relativas à história da revolução da Província de São Pedro
do Rio Grande do Sul, na revista Murmúrios do Guahyba. (GOMES, 2012, p. 28)
Às margens das agremiações respaldadas pelo “conhecimento científico”, como
considerava-se o IHGB, Domingos José de Almeida, à época “martirizado por doença
grave”232, contava com diversas mãos para selecionar e reunir os documentos que

229 Cabe salientar que a finalidade do IHGPSP, declarada por Caldre e Fião, corresponde exatamente ao
artigo 1º do estatuto do IHGB, que determina: “O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tem por fim
coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a história e a geografia do Império
do Brasil (...)”. (IHGB, 1839 apud BOEIRA, 2013, p. 69)
230 O médico, jornalista e abolicionista, Caldre e Fião, foi presidente da Sociedade Partenon Literário e um

dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro. Em importante estudo sobre
a construção da história sul-rio-grandense nos periódicos porto-alegrenses com circulação entre os anos de
1856 e 1879, Gomes destaca o papel de Caldre e Fião na segunda geração de letrados da região. A autora
observa a existência de uma relação hierárquica entre a geração dos “homens de papel e tinta”, responsáveis
pela conservação da memória de um passado de lutas e guerras, e a dos “homens de terra e guerra”,
protagonistas deste legado. (2012, p. 219)
231 Trata-se de um decreto publicado na seção “Documentos” sobre a elevação da povoação de Nossa

Senhora da Conceição de Viamão à categoria de vila. (IHGPSP, 1860 apud BOEIRA, 2013, p. 143-144)
232 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,

1978. CV-680, p. 149. De acordo com Menegat, Almeida foi diagnosticado com epilepsia tardia, sintoma
comumente confundido com outras doenças durante o século XIX (2009, p. 168).

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formariam o seu precioso tesouro. A leitura das correspondências recebidas e enviadas


por Almeida entre os anos de 1859 a 1861, permite observar uma rede de colaboração
formada por alguns dos atores e testemunhas da guerra civil. Ao longo de três anos
Almeida recebeu decretos, jornais, apontamentos e memórias para a realização do seu
“projetado histórico”233.
Dentre estes colaboradores, notabiliza-se a participação de dois coadjuvantes:
Bernardo Pires e Manuel Antunes da Porciúncula. O primeiro, havia ocupado o cargo de
Chefe de Polícia na República Rio-Grandense. Pela leitura dos tratamentos trocados por
Domingos e Bernardo nas correspondências enviadas desde o período da guerra civil,
nota-se que estes possuíam estreitos laços de amizade234. É importante ressaltar que,
como Almeida, Pires foi considerado um “homem de cor”, tendo sido apresentado pelos
autores Spencer Leitman (1985) e Moacyr Flores (2004) como sendo mulato (MARQUES,
p. 33).
Em 3 de abril de 1859, Pires escreve à Almeida, em resposta à Circular enviada pelo
ex-ministro da República aos antigos correligionários, na qual convocava-os a auxiliar na
missão de “transmitir á presente e futuras gerações os portentosos feitos dos Rio-
Grandenses”235. Poucos retornaram a Almeida com a mesma solicitude de Bernardo, que
declarara: “Heide pois, como me cumpre, concorrer com os mais importantes documentos
que dos mais assinalados Passos da República Riograndense conservo com veneração em
meu poder, e breve os remeterei encaixotados a Pelotas (...)”236.
Naquele mesmo ano, Almeida recebera de seu amigo inúmeras proclamações,
exemplares dos jornais Estrella do Sul, Noticiador, e Recopilador, leis, decretos, boletins,

233 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
1978. CV-684, p. 151.
234 Expressões como “Amigo de meu Coração Amante”, “Bom Amigo de meu Coração”, “Receba o coração de

seu Amigo” são frequentes nas cartas trocadas entre Domingos José de Almeida e Bernardo Pires. Outro
indicativo do companheirismo entre os dois, foi a confiança depositada por Almeida em Bernardo ao
atribuir-lhe a responsabilidade de entregar dinheiro para sua esposa, Bernardina, em inúmeras ocasiões ao
longo da Revolução. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009.
CV-7397, p. 36. Do mesmo modo, Pires confiou o seu filho à Almeida, asseverando: “Conheço, e bem conheço
que V. Exa. trata a Manoel Pirez, como próprio filho, e isto basta para eu o entregar de bom grado a V. Exa.
(...)”. AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7405,
p. 42.
235 IHGRS, Fundo Bernardo Pires, BP 120, 1859.
236 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7425,

p. 54-55.

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avisos, dentre outros registros237. Dentre os documentos relacionados por Bernardo,


chama a atenção a até hoje polêmica cópia da carta que detalha o ataque em Porongos.
Em 1º de agosto de 1859, sob os cuidados do Capitão Manuel Soares de Paiva, Almeida
recebe a Carta de Porongos, acompanhada por alguns apontamentos de Bernardo Pires,
que diz:

Vai a Reservadissima (...), que detalha a surpresa dos Porongos, da qual


faço mui individual menção para que no caso de que possa ella ter lugar
de aparecer em nossa História ou mesmo publicada em jornais, que não
nos sirva de vergonha, e para isso = declaro solenemente que tal escrito
foi por mim copiado do original, ou cousa mui parecida, que Chico Pedro
Moringue mostrou ao Sr. Manoel Rodrigues Barboza em muita reserva, e
este me mostrou; mas note-se que foi isso muito depois dessa famigerada
surpresa, hum mez pouco mais ou menos; portanto, devemos crer que
fosse isso hum meio de ridicularizar e intrigar-nos huns com outros, pois
não posso conceber que Canabarro e Lucas combinassem em semelhante
traição, e tanto mais creio que fosse hum manejo de intriga assim
inventado, porque nunca poderia a surpresa sair tão exata ao plano feito,
como saiu, e também porque se Moringue venerasse as ordens de seu
senhor, não mostraria essa fantástica reservadíssima a hum homem que
mostrando-me: disse que bom seria tirar della hum traslado, como tirei,
nesses dias em que esse Ratoneiro da especie humana se assanhava em
derramar o precioso sangue de nossos Compatriotas, não em Campo raso,
mas debaixo dos auspícios da mais vil traição, como sempre foi de seu
vergonhozo costume; eis ahi porque os seus asseclas tanto clamão e se
esfalfam com a noticia de ser escripta a Historia da Revolução
Riograndense, mas não há de ella envergonhar aos Jardins, aos Gonçalves,
aos Almeidas, aos Amarais, Canabarros, Guedez, Silveiras e a outros
muitissimos Bravos que só se fizerão Credores de indeleveis elogios238.

Nota-se, nas palavras de Bernardo, uma preocupação em orientar o seu amigo para
uma interpretação que poupasse os generais David Canabarro e Manuel Lucas de Oliveira
de qualquer responsabilidade sobre as decorrências do episódio, que resultou no
massacre dos lanceiros negros. Para tanto, sugere ser a revelação da Reservadíssima uma
trama entre Francisco Pedro de Abreu, conhecido por Moringue ou Barão do Jacuí, e
Manuel Rodrigues Barbosa, aquele que teria lhe recomendado fazer uma cópia da carta.
De posse desta cópia, Almeida escrevera para alguns dos seus companheiros da
época da Revolução, a fim de averiguar algumas informações sobre o episódio. Para tanto,
foi solicitado a Bernardo Pires que ouvisse o relato do Capitão José Avelino da Silva Santos

237 Ibidem. CV-7427, p. 56-57.


238 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7428,
p. 58-60.

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Veleda e escrevesse um relatório239; a Antônio de Sousa Netto, que confirmasse alguns


fatos referentes a Porongos240; a Dionísio Amaro da Silveira, que dissesse qual foi o recado
por ele transmitido de Caxias a Canabarro241; e a João Antônio da Silveira, que informasse
“dos motivos por quê se não bateu (...) a Moringue nos Porongos” 242; para citar algumas
das tentativas de Almeida em confrontar os testemunhos oculares com o documento que
examinava.
Transcorrido pouco mais de um mês do recebimento da carta de Porongos, Almeida
responde às recomendações de Bernardo Pires sobre como deveria figurar Canabarro
diante das evidências que levantavam:

Custa com efeito crer que fosse combinado o último ataque de Porongos;
porém eu que aqui vi com antecedência duas cartas de Caxias anunciando
ao falecido Veador João Rodrigues Ribas o próximo termo da revolução;
pois que certos bichos, e que bichões! Estavam de acordo e podiam
prestar (formais palavras). E que se quisesse ver pedisse ao Moringue
parte do plano que tinha de executar para disso convencer-se. Este
precedente; aquele de não bolir-se no trem e arquivo de Canabarro;
aquele de serem mortos libertos somente e poucos homens de cor com
eles parecidos; aquele de se não seguir a ninguém na fuga como se
recomendara, escapando-se até a pé o Padre Chagas; e aquele finalmente
de prometer-me Canabarro um manifesto justificativo, quando lhe disse
eu que sua reputação escurecia por essa acusação, e nunca tratar de tal
manifesto; repito, ainda não deparei com meios de destruir tal acusação,
que desapareceria se Canabarro se apoiasse na alta política, asseverando
que para chegar a um acordo indispensável era uma derrota, visto que o
entusiasmo estúpido de muitos dos nossos companheiros obstruía todo
e qualquer arranjo (...). Se Canabarro se firmasse nisso acharia muitos
que, como eu, o acreditassem: de outra forma não sei como lavar-se de
nódoa de traidor. Esse terrível fato que tenho de descrever com fidelidade
e tantos outros que precederam a pacificação em desabono de
companheiros notáveis, me põem em terrível perplexidade acerca da
publicação do histórico de nossa revolução que prometi, que a todo custo
tenho de fazê-lo (...)243.

Apesar dos conselhos de seu amigo Bernardo, Almeida não parece ter
compartilhado, até o que se sabe, da versão de que teria sido a carta uma trama. No

239 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
1978. CV-725, p. 185.
240 Ibidem. CV-728, p. 186-187.
241 Ibidem. CV-732, p. 188-189.
242 Ibidem. CV-754, p. 202-203.
243 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,

1978. CV-673, p. 141-144.

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entanto, mesmo não poupando completamente Canabarro da pecha de traidor, Domingos


buscara criar outra possibilidade para interpretar o papel do ex-líder no desfecho da
Revolução. Na mesma carta, Almeida concluí afirmando:

(...) não se pode asseverar de Canabarro a suspeita de traidor ou de


profundo político. Neste último caso, para onde pendo, não por político
de que não pesca, mas por instinto e pelo prazer de machucar seus
antagonistas e vestir-se do título de pacificador, fez ele ótimo serviço à
Província, ao Império e à humanidade, sacrificando poucos a bem de
muitos; mas devia ser leal e franco depois do golpe que o enobrecia e
recomendava (...)244

Atribuindo a Canabarro o papel de pacificador, Almeida não apenas tentava


preservar a figura deste general, mas a da própria revolução, que representava um
importante capital simbólico para as famílias dos ex-líderes da epopeia. Outro documento
que iria abalar a imagem que Almeida guardava de um dos principais atores da guerra
civil, foi o Decreto de 18 de dezembro de 1844. Assim como o documento anterior, este
decreto foi enviado para Almeida por intermédio de Bernardo Pires. Este, afirma ter
conseguido através de Gaspar Gomes Dias, a quem Bento Gonçalves havia confiado o
documento245.
No primeiro momento, este decreto representou para Domingos a conivência de
Bento Gonçalves com a anistia Imperial, tema que havia dividido os revoltosos no final
decênio. Em carta datada de 17 de outubro de 1859, Almeida desabafa ao seu amigo
Manuel Antunes da Porciúncula:
Passar-te-ia nunca pela lembrança que os respeitos e amizades que
consagrei a Bento Gonçalves enquanto vivo e hoje às suas cinzas e
reputação, me obrigam a desistir do histórico da revolução em que de tão
boa fé tomamos tão ativa e penosa parte; e que até tenha resolvido
queimar tantos documentos, apontamentos e informações que hei
acumulado, como todo e qualquer vestígio desse drama espantoso?
Lembras-te que por causa da só palavra – anistiar – empregada na
Proclamação do Regente foi suficiente para machucar os brios dos
homens de então, sendo eu o único que a defendi na Assembleia
Provincial (...). Pois bem, um documento em sentido oposto que se tem
ocultado e que foi guardado e reservado por Bento Gonçalves me veio à

244 Ibidem.
245 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7732,
p. 63.

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mão, e em mim apagou o conceito que dele fazia, dele que tinha de figurar
em retrato no exórdio do meu projetado histórico!246
Manuel Antunes não respondera comentando os julgamentos proferidos por
Almeida nesta carta. No entanto, é importante observar a inter-relação entre os
indivíduos que selecionavam os documentos e os que neles estavam inscritos. Antunes,
como era chamado por Almeida, possuía um grau de parentesco com a família Gonçalves
Silva: sua esposa, Eleutéria Isabel Garcia, era irmã de Caetana Francisca Garcia, esposa de
Bento Gonçalves da Silva. Na posição de concunhado do já falecido Bento, Antunes, para
dizer o mínimo, provavelmente não estava em posição confortável diante das opiniões de
Almeida.
Posteriormente, Domingos retoma o tema com Antunes, explicando ter recebido a
cópia de uma carta endereçada por Bento Gonçalves à Caxias, na qual posicionava-se
contrário a anistia, asseverando: “Fui injusto, como acabo de ver, e por isso me apresso a
dissipar qualquer mau conceito que também dele concebeste”247. Somente após o recuo
de Almeida no entendimento de tal documento, Antunes manifesta-se sobre a questão:

(...) não fui surprehendido a respeito da infundada desconfiança que


haveis concebido sobre a conducta de Bento Gonçalves a vista de um
documento achado entre os papeis deste, que sombreou
extraordinariamente em vosso coração a opinião que gosava esse distinto
companheiro de tantos trabalhos e de tantas glorias? Elle tinha, é verdade
muitos defeitos, porem em patriotismo e firmeza não era excedido. Quem
melhor do que eu o conhecia? Certamente ninguem. Logo como poderia
eu dar assenso a qualquer imputação dessa ordem que nella se podesse
divisar a mais leve tintura de traição por elle praticada. (...)
conseguintemente me doia esse preconceito injusto; (...) Deixei portanto
a vosso genio incansável o cuidado de descobrir a verdade, e restituir o
merito a quem hoje repousa no soccego do tumulo248.

Nesta mesma carta, Antunes declara não ter entregue o retrato de Bento Gonçalves,
solicitado por Almeida para a escrita de uma biografia do herói farrapo, devido as opiniões
emitidas sobre o mesmo. O retrato acabou sendo enviado a outro sujeito, chamado
Bonomé, a quem Antunes confiou a biografia de Bento. Percebe-se, com isso, uma certa
desconfiança em delegar à Almeida a tarefa de escrever as memórias do seu parente e

246 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
1978. CV-684, p. 151-152.
247 Ibidem. CV-714, p. 176-178.
248 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7546,

p. 140.

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companheiro na guerra civil. Cabe lembrar, que a honra era um elemento muito
valorizado neste contexto, como destacou Barbosa ao analisar a composição e
organização das famílias Almeida, Gonçalves da Silva e Fontoura. Segundo a autora: “Estas
famílias da elite farroupilha e seus membros pertenciam a um universo em que a honra,
o prestígio, a dignidade, a família e as suas estratégias eram fundamentais para sua
existência” (BARBOSA, 2009, p.44).
Assim, é plausível afirmar que a preocupação com a honra dos ex-farroupilhas, seus
filhos e netos, influenciou na reinterpretação de Almeida sobre a relação entre Canabarro
e o episódio de Porongos, bem como sobre Bento e o Decreto de 18 de dezembro de 1844.
Na preservação da memória destes heróis, parecia estar em jogo também a própria
manutenção da posição social destas famílias, que dependiam, em parte, da sobrevivência
desta herança imaterial. Neste rol, incluísse a família Almeida, a quem interessava não
somente a habilitação da memória da Revolução Farroupilha, como também a
preservação dos laços com seus correligionários e familiares.
Após a resolução da questão “Bento Gonçalves”, Porciúncula prosseguira
respondendo as demandas de Almeida por informações e documentos, inclusive enviando
longos relatos sobre eventos do decênio farroupilha, no entanto, ressalvando:

Eu vos pesso, como vosso verdadeiro Amigo, que não desfaça


personalidades na vossa historia se não naqueles pontos em que isso
necessariamente for indispensavel, por que do contrario vos rodeareis de
um alluvião de inimigos, que não merece a pena de nelles fallar249.

De fato, Almeida parece ter angariado alguns opositores com sua determinação em
narrar uma história documentada da guerra civil, ao menos é o que se pode observar na
arena da imprensa político-partidária. Em 1858, Almeida fundou em Pelotas o jornal
Brado do Sul, que, em 1859 anunciava uma seção destinada à história da epopeia
farroupilha e seus atores. De posição oposta ao Brado, o jornal Noticiador manifestou-se
contrário a tal iniciativa, afirmando que:

(...) o Sr. Almeida, surdo às judiciosas reflexões do jornalismo, e às


ponderozissimas objeções de seus amigos, pretende dar publicidade aos
documentos históricos da revolução, que por dez calamitosos annos,

249 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7545,
p. 138-139.

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flagelou esta rica e bellissima provincia, e a transformou em inferno dos


vivos. Todos os homens sensatos veem nesta publicação intempestiva e
anti-política um incentivo dispertador de ódios, preocupações e
susceptibilidades, que a reconciliação e o silencio conseguirão sepultar
nos abismos do olvido250.

Procurando desabilitar Almeida para a escrita da Revolução, o periódico chega a


afirmar com escárnio que “o Sr. Almeida é o homem único, ao menos ele assim o pensa:
sem ele, heroísmo, gloria, e renome no pantheon da História, tudo, tudo, está perdido”251.
Não se pretende aprofundar o debate entre os dois periódicos neste momento. Contudo,
faz-se necessário sublinhar a existência de tal conflito e a tentativa em desqualificar a
imagem de Almeida, pois os confrontos entre os dois jornais eram frequentemente
mencionados e combatidos em suas correspondências pessoais.
Em contraponto aos ataques sofrido pelo Noticiador, Almeida buscava apontar suas
qualificações e metodologias utilizadas nas pesquisas que realizava sobre o evento que
almejava narrar. “Ainda que sem habilitações”252, como se autodeclarou a Bernardo Pires,
Almeida frequentemente mencionava os atributos que possuía para a missão que
propunha, relacionados a sua “extenuada memória”253 e a condição de testemunha ocular.
Ao receber, por parte de José Gomes Portinho, uma crítica quanto a demora em escrever
a história da Revolução254, Domingos justifica-se expondo os métodos por ele utilizados:
Rever papéis do ano de 1827 a hoje, e aqueles dessa época que tenho em
cópia recebido, cota-los, coordenar e arranjá-los cronologicamente; ler as
historietas de Coruja, do General Abreu e Lima, do Generalato do Conde
de Caxias e os Anais da Província de São Pedro, do Visconde de São
Leopoldo; ler as Memórias Econômicas-políticas” de um português (...);
ler e confrontar o que se disse acerca de tal assunto nas revistas do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, nos relatórios dos Ministros do
Império, e o que mais se escreveu em Porto Alegre, Rio Grande, Rio de
Janeiro, São Paulo, Minas, Bahia e Montevidéu em tão longo espaço de
tempo, para então escrever nossa heroica revolução, é trabalho muito e
muito superior às forças de um velho de 63 anos e a morrer todos os dias
(...)255.

250 Hemeroteca da Biblioteca Nacional, O Noticiador, 12/06/1859, p. 1.


251 Ibidem.
252 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,

1978. CV-673, p. 141-144.


253 Ibidem. CV-742, p. 194-195.
254 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 17. Coleção Varela. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. CV-7577,

p. 164.
255 AHRS. Anais do Arquivo Histórico do RS. Vol 3. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,

1978. CV-689, p. 156-157.

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Relacionando esta descrição com as práticas comuns entre os letrados do


oitocentos, é possível identificar algumas semelhanças. Conforme destacam alguns
estudiosos da história da historiografia, a principal tarefa da escrita da história no século
XIX foi coletar e publicar fontes documentais (ARAÚJO, 2003, p. 37-38). Ao analisar o
conteúdo publicado pela Revista do IGHB, Guimarães verifica que a maior parte da
produção durante o período de 1839 a 1889 correspondia a publicação de documentos
(1995, p. 513). Deste modo, a coleta e organização de registros, atividade que à primeira
vista poderia ser considerada como menor se comparada a escrita, apresenta-se como
sendo talvez a principal prática letrada do oitocentos.
Cabe ainda destacar na citação acima, a preocupação de Domingos em consultar a
produção historiográfica produzida no IHGB, Casa da História no Império. Os Anais da
Província de São Pedro, obra que recebeu muitos elogios entre os letrados da Corte
(BOEIRA, p. 158), foi objeto da atenção de Almeida em muitas correspondências, sendo o
seu autor, Visconde de São Leopoldo, duramente criticado pelo ex-farroupilha.
Assim, nota-se que, embora não tenha frequentado espaços formais de instrução,
Almeida tomou emprestado algumas das práticas usuais entre os letrados do oitocentos.
Além disso, o “homem de armas”, para habilitar-se a escrita do passado, buscou conhecer
os debates transcorridos entre os “homens de letras”, a partir do contato com as obras
que circulavam no IHGB. Logo, se por um lado seria um equívoco classificar Almeida como
um letrado, por não ter frequentado espaços formais de instrução; por outro não se pode
ignorar a proximidade das suas práticas com aquelas adotadas pelos membros de
renomadas agremiações, e nem tão pouco o seu passado marcado pela atuação política,
elemento comum entre muitos homens de letra que conquistaram posições no IHGB.

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Estadual do Livro, 1978.

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CRÍTICOS DA MODERNIDADE/COLONIAL OCIDENTAL:


LATINOAMERICANISMO E DESCOLONIZAÇÃO EM DARCY RIBEIRO E
LEOPOLDO ZEA

Raony Valdenésio Aduci Odremán Mendes*


Marcos Antonio Peccin Junior**

Introdução
O século XX, de maneira geral, é significativo para os países periféricos do mundo,
surgindo com maior impulso à possibilidade de se resignificar os modelos de existência
ocidentais, legitimando conhecimentos e culturas ancestrais, tradicionais, populares,
locais. As sociedades das antigas colônias, através dos nacionalismos recentes, visam à
autodeterminação e fomento de outras visões de mundo que foram negadas e que não se
enquadraram no único modelo de modernidade/colonial: o ocidental eurocêntrico. “A
colonialidade e o lado obscuro e necessário da modernidade; e a sua parte
indissociavelmente constitutiva” (MIGNOLO, 2003, p. 30).
O objetivo central desse artigo é analisar como e por qual meio o pensamento
latinoamericano de Darcy Ribeiro e Leopoldo Zea resignificam o discurso epistemológico
da modernidade/colonial eurocêntrica. As culturas e o saberes pluritópicos tornam-se o
meio pelo qual os povos e as minorias dominadas irão reverter a colonialidade e construir
a decolonialidade nos seus diferentes aspectos. A colonialidade se reproduz em uma tripla
dimensão: a do poder, do saber e do ser. Tal conceito exprime uma constatação simples,
isto é, de que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não findaram
com a suplantação do colonialismo256. É através desta tensão politico-cultural e contra

* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado


de Santa Catarina – FAED/UDESC, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - CAPES, email: raonymendesodreman@gmail.com
** Mestrando no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina –

FAED/UDESC, com o apoio do Instituto Federal do Rio Grande do Sul – IFRS. E-mail:
marcosapeccin@gmail.com
256Para Ramón Grosfoguel, “a expressão “colonialidade do poder” designa um processo fundamental de

estruturação do sistema-mundo moderno/colonial, que articula os lugares periféricos da divisão


internacional do trabalho com a hierarquia étnico-racial global e com a inscrição de migrantes do Terceiro
Mundo na hierarquia étnico-racial das cidades metropolitanas globais. Os estados-nação periféricos e os
povos não-europeus vivem hoje sob o regime da “colonialidade global” imposto pelos Estados Unidos,
através do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, do Pentágono e da OTAN. As zonas periféricas

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hegemônica ao mito da “história única” e ao projeto de modernidade eurocêntrico, que os


intelectuais mexicano e brasileiro, Leopoldo Zea e Darcy Ribeiro refletem a partir de uma
teoria critica contemporânea da racionalidade, dos modelos e dos paradigmas que
constituíram ao longo da modernidade a colonialidade e que levem a decolonialidade dos
grupos subalternos.
Gostaríamos de construir um argumento que responda a problemática de como o
filósofo mexicano Leopoldo Zea e o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro construíram
teorias descolonizadoras dos saberes257 através da afirmação de uma reflexão epistêmica
latinoamericanista? Para tanto lançaremos mão da seguinte hipótese: a circulação das
ideias e da construção de uma agenda político-cultural para pensar a afirmação de uma
reflexão latinoamericana que interponha a modernidade ocidental, difundindo a
experiência e a razão dos povos subalternizados da América Latina. A reflexão
epistemológica sobre a América Latina tem um lócus privilegiado de enunciação na
Sociedade Latino-americana de Estudos sobre América Latina e o Caribe – SOLAR e um
meio de circulação intelectual importante.

Uma breve trajetória dos intelectuais:


Leopoldo Zea nasceu em 1912 na Cidade do México e morreu em 2004 na mesma
cidade. Foi professor de filosofia da Universidad Nacional Autonoma del México,
Secretário de Relações Internacionais do México, Diretor do Centro de Estudos latino-
americanos, fundou e dirigiu diversas organizações (Comité de Historia das Ideas; SOLAR;
FIEALC e CCyDEL), publicou mais de 50 livros e 180 artigos e ensaios, recebeu inúmeros
prêmios e vários títulos de Doutor Honoris Causa em diversas universidades do mundo
(Grécia, França, Espanha, Rússia, Cuba, Venezuela, Argentina, Uruguai). Foi diplomata
pela Secretária de Exteriores do governo do México, representante da UNESCO, vinculado
ao Partido Revolucionário Institucional (PRI), foi membro da Secretária de Relações
Exteriores da Secretária de Cultura do México.

mantêm-se numa situação colonial, ainda que já não estejam sujeitas a uma administração colonial
(GROSFOGUEL, 2008, p. 126).
257O conceito de colonialidade se estendeu para outros âmbitos, para além do poder. Walter Mignolo (2010)

sugere que a matriz colonial do poder é uma estrutura complexa de níveis entrelaçados. A colonialidade do
poder passa e se expande pelo controle da economia, controle da autoridade, controle da natureza e dos
recursos naturais, controle do gênero e da sexualidade, controle da subjetividade e do conhecimento.

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Darcy Ribeiro foi antropólogo, educador e romancista. Nasceu em Montes Claros


(MG), em 26 de outubro de 1922, e faleceu em Brasília, DF, em 17 de fevereiro de 1997.
Diplomou-se em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1946),
com especialização em Antropologia. Etnólogo do Serviço de Proteção aos Índios, dedicou
os primeiros anos de vida profissional (1947-56) ao estudo dos índios de várias tribos do
país. Fundou o Museu do Índio, que dirigiu até 1947, e colaborou na criação do Parque
Indígena do Xingu. Escreveu uma vasta obra etnográfica e de defesa da causa indígena.
Elaborou para a UNESCO um estudo do impacto da civilização sobre os grupos indígenas
brasileiros no século XX e colaborou com a Organização Internacional do Trabalho na
preparação de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo, foi um dos
incentivadores para criação do Memorial da América Latina em São Paulo. Recebeu
diversos prêmios, honrarias e Doutor Honoris Causa na Universidade de Paris - Sorbonne,
na Universidade do Uruguai, da Universidade Central da Venezuela.
Nas duas trajetórias de vida, se vê o ímpeto pela ação política dos intelectuais na
construção de instituições e diálogos para fortalecer a integração regional e os saberes
latinoamericanistas. Tais intelectuais não separavam sua ação intelectual da sua ação
política para a promoção da temática latinoamericanista, com isso seguimos as
preposições de Antonio Gramsci (1982), que defende a articulação de três esferas em que
os intelectuais atuam: científica/filosófica, educativa/cultural e a política. Desse ponto de
vista, Leopoldo Zea foi um intelectual voltado a políticas acadêmicas de promoção da
reflexão acerca da América Latina através da criação de entidades de pesquisa (CCyDEL,
atual CIALC) redes intelectuais de debate (SOLAR e FIEALC), de programa de pós-
graduação interdisciplinar em estudos latinoamericanos (no centro de humanidades da
UNAM). Já Darcy Ribeiro foi um intelectual com forte vocação política, a partir da
sociedade civil desenvolveu ações para organização de instituições educacionais de cunho
interdisciplinar e autônomo (UNB, UENF/Darcy Ribeiro), lugares de memória da cultura
latinoamericana (Memorial da América Latina em São Paulo), também foi consultor
educacional para o desenvolvimento de universidades em diversas nações latino-
americanas.

A constituição da sociedade latino-americana de estudos sobre América Latina e o


caribe – solar

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A Sociedad Latinoamericana de Estudios sobre América Latina y el Caribe (SOLAR)


e a Federación Internacio- nal de Estudios sobre América Latina y el Caribe (FIEALC) se
institucionalizaram no começo dos anos 80, seguindo o pedido e as recomendações da
UNESCO de pesquisar, coordenar e difundir os estudos sobre o continente americano.
Tem como instituição responsável e sede administrativa o Centro de Investigações sobre
América Latina e o Caribe – CIALC da UNAM, que foi projetado e coordenado por vários
anos pelo filósofo mexicano Leopoldo Zea. Tinha por objetivo incentivar os estudos e as
pesquisas sobre América latina e o Caribe por intelectuais e universidades da região do
mundo. No seu documento de fundação colocam algumas orientações e recomendações
que deveriam ser seguidas, para que o principal objetivo fosse alcançado. Tal instituição
vai se constituir como lócus de enunciação das reflexões sobre o latinoamericanismo e a
integração das nações que integram o continente, buscando conformar uma rede
intelectual de pesquisa e debate político acerca do projeto de integração. De acordo com
Eduardo Devés-Valdés as redes intelectuais,

Se entiende por tal a un conjunto de personas ocupadas en la producción


y difusión del conocimiento, que se comunican en razón de su actividad
profesional, a lo largo de los años. Las formas de relación entre quienes
constituyen una red pueden ser variadas. Los encuentros cara a cara, la
correspondencia a través de diversos soportes y los contactos telefónicos
dan lugar a congresos, campañas, publicaciones, comentarios o reseñas
de libros, citaciones recíprocas y otras tantas formas en que se establecen
articulaciones en el mundo intelectual (2007, p.30 – 31).

Segundo o estatuto da SOLAR, os objetivos da instituição intelectual seriam: “1)


Fomentar, coordinar y difundir el estudio sobre la realidad social o cultural de América
Latina y el Caribe; 2) Vincular el estudio de América Latina y el Caribe al logro de la
integración en la libertad como instrumentos necesario para enfrentar adecuadamente
las relaciones internacionales en los aspectos económicos, políticos, sociales y culturales.
En tal virtud, ese estudio no se limitará al conocimiento de Estados y/o sociedades
aisladas sino que debe procurar análisis de mayor amplitud a escala supranacional y/o
continental; 3) Procurar que los conocimientos alcanzados a través de estos estudios
trasciendan a los diversos sistemas y niveles de educación, acción cultural y medios de
comunicación de los países de América Latina y el Caribe; 4) Trabajar para que en todos
los países del área se otorguen especial énfasis y se establezcan como obligatorio el

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estudio y conocimiento de la realidad Latinoamericana y el Caribe; 5) Apoyar la existencia


y fomentar la creación de instituciones que contribuyan a la realización de los objetivos
propuestos; 6) Promover los encuentros necesarios a la consecución de los mismos
propósitos”.
A coordenação geral de tal instituição vinculava institucionalmente em cargos de
chefia Leopoldo Zea e Darcy Ribeiro. Segundo o estatuto da SOLAR, “la sede permanente
de SOLAR es la Universidad Nacional Autónoma de México, a través del Centro
Coordinador y Difusor de Estudios Latinoamericanos (Acta constitutiva de SOLAR del 11
de agosto de 1982 y oficio del 12 de agosto de 1982 de Darcy Ribeiro al Rector de la
UNAM). El CCyDEL (actual Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe –
CIALC) de manera institucional tiene la responsabilidad de la coordinación general de
todas las actividades de la SOLAR, en apoyo del presidente en turno”, que por sinal
naquele momento, tinha na sua presidencia o filósofo Leopoldo Zea. Eduardo Devés-
Valdés reflete sobre a responsabilidade civil dos acadêmicos no interior de redes
intelectuais tais como a SOLAR. De acordo com o autor,

Apuntando a sintetizar lo expuesto: Un primer elemento si se quiere


obvio, implícito en todo el quehacer de la red, pero por ello mismo básico,
es la necesidad de desarrollar y difundir los estudios sobre América
latina, probablemente ésta es nuestra mayor responsabilidad como red
intelectual. Un segundo elemento es la responsabilidad de estudiar,
pensar, articular la realidad latinoamericana con la de otras partes del
mundo. Un tercer elemento es la responsabilidad de pensar el continente
como globalidad contribuyendo a su integración y emancipación. Un
cuarto elemento es la responsabilidad de elaborar conceptos, categorías
y métodos que permitan entender y dar cuenta de nuestra realidad. Un
quinto elemento es la responsabilidad de conocer nuestra historia, en
particular la trayectoria de nuestras ideas para iluminar la tarea
intelectual del presente. Un sexto elemento, la responsabilidad de
contribuir a pensar y constituir nuestra identidad (DEVÉS-VALDÉS, 2000,
p.363).

Como exposto até agora, a integração cultural por meio do pensamento


latinoamericanista virá uma prerrogativa a ser alcançada pela Sociedad Latinoamericana
de Estudios sobre América Latina y el Caribe (SOLAR). Segundo Alberto Saladino García,
En el latinoamericanismo se destacó Leopoldo Zea, por sus acciones de
promotor de instituciones y sus reflexiones fecundas, como organizador
de la teoría y praxis del latinoamericanismo, de la filosofía del
latinoamericanismo. Entonces, Leopoldo Zea concretó la filosofía del

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latinoamericanismo mediante la interpretación rigurosa de la realidad de


nuestra América y con base en ella propugnó la integración en la libertad
como medio para hacer frente a la problemática social irresuelta. Esto es,
demarcó epistemológicamente una nueva área gnoseológica como
mecanismo para trascender el colonialismo en sus diversas
manifestaciones. Así nos legó como herencia el latinoamericanismo,
como filosofía sin más en estricto sentido, esto es como pensamiento
descolonizador, por crítico, libertario y alternativo (2010, p. 185).

O pensamento decolonial latinoamericano e a epistemología endógena:

O saber e a ciência também trazem consigo o estatuto da colonialidade, pois como


sabemos, o saber e o poder são indissociáveis. A perspectiva de saber e conhecimento
ocidental são validados como entes universais, que levariam as sociedades “tradicionais”
a modernização tecnológica e cientifica. A subjetividade e a existência das nações
marginais aos centros de saber/poder não tiveram garantido um espaço na construção do
discurso da modernidade. O pensamento dicotômico da razão instrumental cartesiana
proibiu a incorporação de saberes e costumes de sociedades não europeias. Com isso a
razão subalterna visa construir um espaço de reflexão que incorpore outras vozes ao
discurso ocidental e amplie a noção de modernidade, num sentido mais pluriversal e
emancipador da condição humana.
Nas palavras de Walter Mignolo, “como tal, uma das versões da teorização que
antevejo e defendo é a de pensar a partir da fronteira e sob a perspectiva da
subalternidade (2003, p. 159)”. Em outras palavras, defende a constituição de um novo
sujeito epistemológico que pensa a partir das e sobre as fronteiras258. Com isso
assumimos uma postura de desconstrução do mito da “história e da razão universal” que
o ocidente articulou através do discurso de ciência e que foi fundamental no
desenvolvimento do colonialismo. De acordo com Walter Mignolo,

O pensamento liminar abrange um mundo de histórias locais e suscita


inéditas articulações da diferença cultural/alteridade que têm a
“diversalidade como projeto universal” (Mignolo, 2003, p. 420). É pós-
ocidental e anti-imperialista. Seu desafio está em formular teorias a partir
do chamado Terceiro Mundo, embora não sejam apenas para o Terceiro

258
Para Walter Mignolo, “já não estamos obviamente no inicio da era cristã e salvação não é um termo adequado
para definir o caráter prático do conhecimento, o mesmo se podendo dizer de sua pretensão à verdade. Mas
precisamos abrir o espaço que a epistemologia roubou à gnosiologia e tomar como seu objetivo não Deus, mas as
incertezas das margens. Nossos objetivos não são a salvação, mas a descolonização e a transformação da rigidez
de fronteiras epistêmicas e territoriais estabelecidas e controladas pela colonialidade do poder, durante o processo
de construção do sistema mundial colonial/moderno” (MIGNOLO, 2003, p. 35).

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Mundo, como que se tratasse de uma “contra-cultura ‘bárbara’ perante a


qual a teorização do Primeiro Mundo tem de reagir e acomodar-se
(Mignolo, 2003, p. 417). Uma sociologia não-colonizada não implica
desejar o lugar do colonizador mas exige não se abrir mão de sua
autodeterminação política, teórica e epistemológica, portanto, do
empenho em remapear as culturas do conhecimento acadêmico e os loci
acadêmicos de enunciação em função dos quais se mapeou o mundo
(MIGNOLO, 2003, p. 418).

De maneira alguma se busca descartar a razão moderna ou retroceder


utopicamente a experiência do tempo das sociedades coloniais a um estágio anterior aos
contatos e choques culturais entre europeus e outros povos não ocidentais. Tem-se por
objetivo reequilibrar a proporção dos saberes e difundir os argumentos e epistemologias
que integrem visões de mundo distintas, tais como a europeia, africana, asiática,
americana, não dando prevalência a uma ou outra razão, na medida em que todas elas
respondem a uma geopolítica do conhecimento. O giro decolonial e pós-colonial altera a
proporção entre locais geoistóricos (ou histórias locais) e a produção de conhecimentos.
Segundo Walter Mignolo,
O reordenamento da geopolítica do conhecimento manifesta-se em duas
direções diferentes, mas complementares: 1. A crítica da subalternização
na perspectiva dos estudos subalternos; 2. A emergência do pensamento
liminar como uma nova modalidade epistemológica na interseção da
tradição ocidental e a diversidade das categorias suprimidas sob o
ocidentalismo; o orientalismo (como objetificação do lócus do enunciado
enquanto ‘alteridade’) e estudos de área (como objetificação do “Terceiro
Mundo”, enquanto produtor de culturas, mas não de saber) (Mignolo,
2003, p. 136-137).

Disto isto, vemos na filosofia da libertação de Leopoldo Zea e na Antropologia das


Civilizações de Darcy Ribeiro uma possibilidade da emergência de saberes
latinoamericanos que reorganizam e interpõem a epistemologia das diferentes parcelas
da humanidade nas zonas de contato do pensamento fronteiriço. Passaremos brevemente
a apresentação e discussão de alguns pontos das teorias desenvolvidas pelos intelectuais
supracitados.

A filosofia da libertação de Leopoldo Zea


A filosofia assim como os outros saberes ocidentais irão dividir por meio de
conceitos assimétricos antitéticos os povos do mundo entre: civilizado/bárbaro;
moderno/primitivo; racional/passional; superiores/inferiores e etc. A modernidade

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eurocentrada não é mais um modelo a ser seguido, pois em nome da civilização ocidental
originou-se uma série de desastres e violências humanas, tais como: o Holocausto, os
campos de concentração, a 1ª e a 2ª Guerra Mundial, a Guerra Fria, os Colonialismos e
Imperialismos europeus e a Partilha do continente Africano e Asiático. Tais atrocidades
macularam para sempre o imaginário em torno da representação de ocidente enquanto
lugar civilizado, humanista e democrático em detrimento de um mundo bárbaro que
representa o hemisfério sul global. Nas palavras de Leopoldo Zea,

A contradição latino-americana entre “civilização e barbárie” foi proposta


pela mesma Europa para manipular povos. Agora, a barbárie, como o
nomadismo, aparece como expressão concreta do homem
necessariamente concreto; do homem de carne e osso, o homem que vive
e morre e que se nega a se perder no anonimato. Tudo isto parece estar
ficando claro, na Europa e no civilizado Ocidente, quando se tem
consciência do aparato de atraso em que converteu a civilização frente a
seus mesmos criadores. Busca-se outra forma de civilização frente a seus
mesmos criadores. Busca-se outra forma de civilização que cumpra o que
deveria ter sido sua obrigação moral: fazer que os homens entre si,
participem juntos, em tarefas comuns, mas sem renunciar à sua própria
identidade. Afirmar a igualdade a partir da própria peculiaridade. Negar-
se ser uma imitação de algo que não se é não querer ser algo distinto do
que se é. Enriquecer a experiência própria com as experiências dos
outros, sem, por isto, deixar de ser. Não aceitar mais justaposições, como
quem sabe o que é e o que pretende ser (ZEA, 2005, p.343).

Um fator central para a tomada de consciência do ser latinoamericano foi o


nacionalismo na sua vertente “terceiro mundista”, que tinha por objetivo a assunção de
um passado colonial e a superação da subjetividade colonizada operacionalizada via
racionalidade excludente dos discursos eurocêntricos de civilização, humanismo.
Segundo Leopoldo Zea,

Ao lado desta filosofia da libertação que mostrava que o homem buscado


está dentro de cada homem, que o paradigma é só o próprio homem,
independentemente de que seja latino-americano, norte-americano,
europeu, asiático ou africano, surge, como paralela expressão, o
nacionalismo. Um nacionalismo distinto do que surgiu inspirado num
romantismo do século XIX. Um nacionalismo que buscará em seus povos
o que a nova filosofia buscará nos indivíduos. Um modo de ser próprio,
um modo de ser que não tem por que ser semelhante a outros povos. Um
modo de ser que, à medida que se afiance, se fortaleça, escapará da
alienação dos novos colonialismos, da situação de subdesenvolvido, da
infra-humanidade como expressão de subordinação (2005, p. 370).

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A Filosofia dos povos subalternizados servirá como ferramenta à desalienação


desses seres humanos, na superação do colonialismo e da afirmação dos saberes e das
culturas negadas. Para Leopoldo Zea, “a possibilidade de uma filosofia asiática, africana
ou latino-americana aponta para esta desalienação. Os asiáticos, como os africanos e os
latino-americanos, querem saber qual é o seu lugar nessa humanidade planetária que a
expansão ocidental, que apesar de tudo, originou. Daí, também, uma vez mais, a pergunta
pelo ser dos homens que formam esses povos, pelo seu lugar neste cosmos criado pela
filosofia ocidental (ZEA, 2005, p. 372)”. A filosofia, portanto, assume um papel de ação e
práxis na superação da mentalidade colonizada, de acordo com Leopoldo Zea,
Não só ação, mas a filosofia da ação orientada para subverter e mudar
uma ordem na qual a autêntica essência do homem foi menosprezada.
Filosofia que aspira a realizar o mundo que a filosofia que a antecedeu
tornou patente como necessidade. Uma nova atitude que cumprirá a sua
função, assim como a que a antecedeu cumpriu a sua. E já não só uma
filosofia da nossa América e para a nossa América, mas uma filosofia sem
mais, do homem e para o homem, onde quer que se encontre (2005, p.
485).

A filosofia latino-americana, assim como a africana e a asiática, é uma entre outras


filosofias, que segundo a proposição de Leopoldo Zea, deve servir à reflexão acerca da
existência do ser latinoamericano em seu sentido ontológico. Ou seja, deve servir a
afirmação de uma identidade e cultura própria, não sendo mais uma “mera reprodução”
do ser ocidental, leia-se europeu/norte-americano. A superação da dicotomia
civilização/barbárie e a valorização do ser “bárbaro” é uma constante na obra filosófica e
histórica de Leopoldo Zea259. Alguns críticos da obra zeana colocam em evidência tal
aspecto de sua reflexão. Segundo Werner Altmann,

Seu discurso se formula e articula desde “la marginación y la barbarie” e


tem seu eixo central na alteridade latino-americana, isto é, em seu projeto
de realização histórica como realidade diferente que reconhece o outro
como outro para que este, por sua vez, escute sua palavra e a reconheça
como palavra humana. Seu discurso busca a comunicação universal e o
reconhecimento mútuo com base na solidariedade e a igualdade entre as
diferentes identidades culturais. Assim, na medida em que a constatação
da peculiaridade de nossa história aponta para a pluralidade cultural,

259A discussão sobre o caráter civilizado ou bárbaro da cultura, da identidade e das nações latino-
americanas tem uma longa tradição, de meados do século XIX em diante, na discussão intelectual latino-
americana. Somente para citar algumas obras: Facundo: Civilización y Barbarie - Vida de Juan Facundo
Quiroga (1845) de Domingo Faustino Sarmiento (1811 – 1888); Ariel (1900) de José Enrique Rodó (1872 –
1917); Calibán (1971) de Roberto Fernández Retamar (1930).

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como expressão da pluralidade da história, podemos concluir no sentido


da inserção igualitária do homem americano no destino universal. Nesses
termos, portanto, a libertação não antecede nenhuma vontade, ou
vocação, para o estabelecimento de novo domínio, mas sim o inserir-se
igualitário da cultura americana – de todas as culturas, em essência – no
destino universal. Daí a categorização que julgo pertinente para a filosofia
de Leopoldo Zea: o latino-americanismo universal (2005, p. 147).

Para Walter Mignolo, “Leopoldo Zea e Edmundo O’Gorman contribuíram, não


obstante, para valorizar o pensamento a partir da “marginalização” e da “barbárie”. Em
outras palavras, contribuíram para mostrar os limites da civilização e a ascensão da
teorização bárbara (judaica, marginal, pós-colonial, feminina, afro-europeia ou
americana, ameríndia, homossexual etc) (2003, p. 158)”.

Darcy Ribeiro e a antropologia das civilizações:

A perspectiva latinoamericanista de Darcy Ribeiro fará com que ele volte sua
atenção a configuração dos povos na América Latina, e principalmente aos povos
indígenas da nossa América. A produção intelectual de pensamento crítico voltado para a
América Latina se intensificou no seu período de exílio do Brasil. Leopoldo Zea trás uma
passagem de Darcy Ribeiro onde evidencia o impacto do exílio na sua antropologia das
civilizações. Ribeiro diz “me fiz latinoamericanista no exílio, os militares não sabiam que
estavam dando origem à integração de nossos povos. No meu exílio por Uruguai,
Venezuela, Peru e Chile e em minha passagem pelo resto dos povos que forma a América
Latina, minha visão de brasileiro se transformou em latinoamericana (RIBEIRO apud ZEA,
1996, p. 3)”.
Darcy Ribeiro vai pensar sua antropologia a partir dos encontros entre os povos
de diversas partes do mundo no continente americano, e da sua tensão dialética que levou
a conformação de novos povos e a quase extinção de outros. Em outras palavras, o
encontro entre culturas tradicionais e modernas e a conformação e remodulação dos
povos através dos choques interétnicos. Alguns críticos, que internalizaram a noção de
ciência do ocidente, vem no desenvolvimento desse tipo de interpretação antropológica
um peso grande da teoria evolutiva oriunda da antropologia de meados do século XIX.
Segundo Walter Mignolo,
Como “subalternização do conhecimento” pretendo, ao longo deste livro,
reconhecer e expandir um antigo conceito do “antropologiano” brasileiro

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(como ele próprio se denominava, em vez de antropólogo) Darcy Ribeiro.


A palavra “antropologiano” constituía, na verdade, um marcador da
subalternização do conhecimento: um antropólogo do Terceiro Mundo
(Darcy Ribeiro escrevia em fins dos anos 60 e no meio da Guerra Fria e da
consolidação dos estudos de área) não é o mesmo que um antropólogo do
Primeiro Mundo, pois o primeiro está no local do objeto, não na do sujeito
do estudo. É precisamente no interior dessa tensão que a observação de
Darcy Ribeiro adquire sua densidade, uma tensão entre a situação
descrita e o local do sujeito no interior da situação que está descrevendo
(2003, pp. 35-36).
Darcy Ribeiro propõe quatro configurações histórico-culturais dos povos, devido
aos seus diferentes processos de formação. Segundo o autor,

Distingo nas Américas quatro configurações histórico-culturais de povos,


nitidamente diferenciados por seus respectivos processos de formação.
Os povos-testemunho, resultantes do choque do invasor europeu com as
altas civilizações asteca, maia e incaica, nos quais jamais se deu uma
síntese viável entre a indianidade sobrevivente e os crioulos hispânicos.
Os povos-novos, feitos pela confluência de índios tribais, negros escravos
e brancos ibéricos aliciados nas plantações tropicais, para exploração de
produtos florestais ou de minas e metais preciosos, que deram lugar a um
ente étnico inteiramente novo, profundamente diferenciado de suas
matrizes e que ainda anda em busca de sua identidade. São povos que,
não tendo passado de que de orgulhar, só servem para o futuro. Povos-
transplantados, como a América saxônica e o Canadá, que são meras
implantações europeias em terras americanas, tal como o são também a
Austrália e a Nova Zelândia. Nesta categoria, situo também a Argentina e
o Uruguai que, apesar de construídos originalmente como povos-novos,
foram depois transfigurados pela enormidade da avalanche imigratória
que sofreram. Finalmente, os povos-emergentes, que são os indigentes
que começaram a se alçar no seio dos povos-testemunho, aspirando à
autonomia nacional (RIBEIRO, 2017, p. 75).

Esse choque entre civilizações relegou aos povos colonizados a violência da matriz
colonial se articula nas sociedades conquistadas através da imposição de uma religião
única, da sexualidade heteronormativa, do racismo estrutural que ampara a diferença
colonial. Para Darcy Ribeiro o eurocentrismo trás consigo alguns contrabando
ideológicos,
O patrimônio cultural que herdamos da Europa se destacam três
contrabandos ideológicos, pelos imensos danos que nos causaram. O
primeiro deles, nossa herança hedionda, foi desde sempre, e ainda é, o
racismo como arma principal do arsenal ideológico de dominação
colonial. O segundo, se refere à suposta qualidade diferencial da
civilização ocidental, que seria sua criatividade. Outro vezo etnocêntrico,
este mais vetusto, é o de olhar como um caso de benignidade humanística
a expansão da cristandade (RIBEIRO, 2017, pp. 84-85).

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Darcy Ribeiro constrói uma critica que vai de encontro à concepção de civilização
que se restringe ao ocidente e ao discurso moderno. Com isso se reafirma o caráter
múltiplo das civilizações e de suas contribuições a grande civilização humana. De acordo
com Darcy Ribeiro,
Uma civilização – a ocidental europeia – declina, depois de concluir seu
ciclo, outra amanhece. Melhor diria outras, dado o caráter policêntrico
dos vastos mundos em que tantos povos, se lavam das feridas do
europeísmo para serem, afinal, eles mesmos. Suas velhas identidades
negadas desde sempre, de repente são reencontradas. Mas, então, cada
um deles percebe que não é, todavia, um ente. É apenas uma
possibilidade: a utopia de si mesmo que tem, ainda de ser construída
(RIBEIRO, 2017, p. 95).

Dito isto, alguns interpretes veem na teoria dos processos civilizatórios de Darcy
Ribeiro uma grande contribuição às epistemologias oriundas das civilizações e culturas
do hemisfério sul do mundo que ficaram à margem do discurso de ciência e conhecimento
hegemônico. Desculpem a longa citação, no entanto acreditamos que Walter Mignolo
sintetiza oportunamente a contribuição de Darcy Ribeiro a antropologia realizada nas
margens e fronteiras do ocidente. Nas palavras do autor,
Seria útil comparar o estudo de Norbert Elias e o de Darcy Ribeiro sobre
os processos civilizatórios. Há quatro aspectos da comparação que eu
gostaria de destacar. Primeiro, enquanto Elias concebe o processo da
civilização como um fenômeno particularmente europeu dos últimos
cinquenta anos, Ribeiro o concebe como um longo, diversificado e
complexo conjunto de processos da espécie humana. Segundo, enquanto
Elias se concentra no processo civilizador, que é ao mesmo tempo a
consolidação da Europa (Ocidental) como potência mundial hegemônica,
Ribeiro considera a Europa um resultado recente dos processos
civilizadores humanos que foram precedidos por potências hegemônicas
anteriores e que será também transformada e dissolvida num futuro
governado pelo que Ribeiro chama de “revolução termonuclear e
sociedades futuras”. Terceiro, embora tanto Elias quanto Ribeiro
permaneçam prisioneiros do arranjo temporal das histórias humanas
implantados na modernidade, a preocupação de Ribeiro com a
colonização e com a expansão europeia lhe permite abrir as portas para
uma conceitualização espacial dos processos civilizadores e das histórias
locais dispostas em torno de centros sucessivos e sobreviventes de
hegemonia mundial. Quarto, e finalmente, o fato de que as preocupações
e o foco geocultural de Ribeiro são as Américas e não a Europa (caso de
Elias) obriga-o a analisar o processo da civilização europeia como um
processo de subalternização das culturas do mundo. Ora, o que é
relevante nessa comparação para entender a “teorização bárbara” como
uma gnose liminar e como uma epistemologia que emerge das condições
criadas pela última e talvez mais radical etapa da globalização é a

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possibilidade (para alguém como Ribeiro) de teorizar da margem


(margem no sentido de limiar e liminalidade, como dois lados ligados por
uma ponte, como um local geográfico e epistemológico): de ter não
apenas uma formação em “teorização civilizada”, mas também a
experiência de alguém que habita e vivencia, tendo inclusive formação em
“teorização civilizada”, precisamente em comunidades que foram
subalternizadas e colocadas à margem pelo próprio conceito e expansão
da civilização europeia. Assim, um antropologador é alguém que se
formou como antropólogo, sendo, ao mesmo tempo, parte do “outro”
(MIGNOLO, 2003, pp. 416 – 417).

Considerações finais

Esta pesquisa ainda está em estágio inicial, longe de esgotar todas as possibilidades
de críticas, ressignificação e novas perspectivas. No entanto, buscou-se identificar no
pensamento de Leopoldo Zea e Darcy Ribeiro a construção de uma reflexão própria
latinoamericanista, que possibilitasse a superação do eurocentrismo, através da tomada
de consciência da identificação cultural e regional dos povos latinoamericanos. A
construção desse conhecimento e projeto político-cultural crítico para a América Latina,
visando à difusão de teorias que propiciassem a integração latino-americana, se deu
através das redes intelectuais e da produção acadêmica fomentada no interior da
Sociedade Latino Americana de Estudos sobre América Latina e Caribe – SOLAR.

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EISENSTEIN NA AMÉRICA LATINA: PERCURSOS DE UM INTELECTUAL


REVOLUCIONÁRIO

Rafael Hansen Quinsani

Ao se debater o papel do intelectual na disputa pela hegemonia sua atuação pode


prevalecer em três esferas: a científico-filosófico, a educativo-cultural e a política. O
conceito intelectual é amplamente utilizado na sociedade e na academia para se referir a
produção de conhecimento por um grupo especial. Para além da simples diferenciação
entre trabalho tomado como abstrato e concreto, Antonio Gramsci sentencia que todos
são intelectuais, mas nem todos exercem essa função. Sua conceptualização de intelectual
estava relacionada a situações concretas da Itália, onde a intelectualidade seria aquela que
não estaria comprometida com a superação da condição de vida, mas comprometida com
as estruturas pré-existentes da sociedade. A partir destes elementos nos perguntamos
que tipo de intelectual foi Sergei Eisenstein? Sua vasta formação e experiência
revolucionária o colocam a serviço da ruptura. Entretanto, sua posterior relação com o
Estado soviético lhe atribuem compromissos e dissidências. Sua viagem ao México para
realizar um filme sobre a História e a Revolução Mexicana apresenta-se como uma
oportunidade única para refletir sobre estes questionamentos.
O cinematógrafo transformou o século XX num gigantesco cenário e laboratório de
experiências para a elaboração de uma linguagem cinematográfica, de uma forma de
expressão histórica. Adentramos no século XXI e a influência do cinema ainda permanece,
mas agora contando com mais colegas ao seu lado: os produtos televisivos e os meios
digitais somaram-se a essa gama de dispositivos para disputar o espaço social, moldar o
imaginário e influenciar o mundo concreto. Dentro deste contexto, a Revolução Mexicana
foi a primeira Revolução a descortinar o breve, porém intenso, século XX. Este processo é
sem dúvida um dos mais significativos na História contemporânea e mundial. Sua
abrangência, seus efeitos e experiências proporcionadas ainda trazem impacto no
presente vivido. O grande número de filmes realizados no México e no exterior permitiu
a criação de um corpus fílmico invejável: mais de quinhentas películas produzidas desde


Doutor em História pela UFRGS

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o início do processo revolucionário, em 1910. O volume de ficções também é considerável,


e sua realização incidiu em todas as décadas, seja no âmbito nacional, seja no
internacional. ¡Que viva México!, de Sergei Eisenstein, produzido entre 1930 e 1932 é
considerado a primeira interpretação filmográfica da Revolução, ancorado nas
transformações estéticas e artísticas surgidas após o movimento Bolchevique.
Pensar e analisar o cinema soviético implica não desconectar política e ideologia.
Em nenhum outro lugar cinema e política caminharam de mãos dadas como na URSS
(FURHAMMAR; ISAKSSON, 1976). Estas experiências artísticas foram resultados de um
processo histórico mais amplo: a tomada e afirmação do poder pelos bolcheviques em
1917. Desse modo, o cinema soviético pode ser classificado em etapas delimitadas
conforme o movimento de censura ideológica desenvolvido, que sinalizavam tendências
de estilo nas obras produzidas conforme a mitologia política oficial do momento
(JALLAGEAS, 2007 e HUESO MONTÓN, 2006). Encontramos cinco etapas: a fase
Revolucionaria, a fase stalinista, a fase do degelo, a fase da estagnação, e, por fim, a fase
da Perestroika260. Ser cineasta na URSS implicava ser diplomado numa escola de cinema.
O trabalho estava inserido numa extensa estrutura. Cada República tinha seu estúdio de
produção, e a Rússia dispunha de três, sendo o Mosfilm um dos principais. Para dar início
a um filme era preciso enviar sua sinopse para aprovação. Posteriormente, o roteiro
deveria ser submetido a três estruturas: o diretor de estúdio, o diretor artístico e a
Goskino, órgão com status de Ministério e que sobreviveu até o ano 2000. A remuneração
era concedida por metro de filme realizado. Na URSS havia ainda um elemento
centralizador da produção artística: o Realismo Socialista. O Realismo surge no século XIX

260Da Revolução de 1917 até o simbólico ano de 1929, encontramos um cinema que pode ser caracterizado
como revolucionário. A arte foi responsável pela materialização do espírito da Revolução e consolidação do
socialismo. O tema central das películas gira em torno do sonho com a Revolução; sonho que com o
estabelecimento do regime se transformou num símbolo nacional, e aos poucos passou a ser visto como
uma recordação. A fase stalinista delineou o período de 1930 a 1953, centrando o foco na construção da
imagem de um grande líder e no contexto bélico com o advento da Segunda Guerra Mundial. A fase seguinte,
caracterizada como fase do degelo, vai de 1953 a 1967, e é marcada pela renovação artística e
antiestalinista,260 a ponto de serem cortadas as imagens de Stálin dos filmes antigos, tal como a exclusão de
Lênin e Trotsky, ocorrida trinta anos antes. De 1967 a 1985, a fase da estagnação foi marcada pelo
neoestalinismo dos anos Brejnev, e iniciou uma lenta transformação na produção cinematográfica e
artística. A fase da Perestroika, de 1986 a 1991, abriu a inserção do cinema soviético no plano mundial e
também foi responsável por coproduções. Reunidos no 5º Congresso dos Cineastas Soviéticos, a categoria
demarcou desejos (o reconhecimento do cinema como trabalho intelectual) e posturas (a ruptura
administrativa) para a produção dos anos vindouros, que se transformou com o cinema pós-soviético a
partir da dissolução da URSS em 1991.

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como um conceito de acento político e ideológico. Seus lócus era a escola literária e
pictórica que se opunha ao Romantismo do período. Na URSS, este Realismo ganhou o
complemento “socialista”, e, fundamentalmente, se opunha ao formalismo visto como
antirrevolucionário e burguês.
Quando nos dirigimos ao cinema, compramos um ingresso e sentamos na poltrona,
a intenção primária é assistir um filme. Esperamos que seja um produto acabado,
produzido ao longo de um período de tempo, editado e finalizado. Não é o que ocorre com
¡Que viva México! O filme em questão não foi concluído. Somente após longos anos seus
negativos foram acessados e organizados pelo codiretor Grigori Alekandrov. Este status
de filme/não filme é elemento fundamental para compreendê-lo, pois este fator compõe
um ponto de destaque na trajetória do cineasta. Sua volumosa produção cultural
enfrentou inúmeros reveses e obstáculos. Compreender essa História é fundamental para
entender seu interesse pelo México e sua interpretação produzida.
Natural da Letônia, Sergei Eisenstein tinha dezenove anos quando o Outubro de
1917 eclodiu. Estudava Engenharia civil, mas já nutria uma paixão pelas artes plásticas e
pelo teatro. Era um leitor voraz. Seu rol ia de Arthur Schopenhauer, Oscar Wilde, Sigmund
Freud a Emile Zola e outros. Naqueles fervilhantes dias de outubro, juntou-se aos seus
colegas no movimento que apoiava o novo regime. Cresceu em uma família de classe
média. O pai era arquiteto e a mãe filha de comerciantes. Era uma criança cosmopolita,
tendo viajado para vários países até a adolescência (BORDWELL, 2005). Com o divórcio e
a mudança de sua mãe para a França, passou a viver com o pai em São Petersburgo. A
Revolução colocou-os em lados opostos, e seu pai mudou-se para a Alemanha. Sergei
juntou-se ao Exército Vermelho, onde trabalhou ativamente na produção de propaganda.
Neste período, estudou japonês e intensificou sua relação com os pictogramas, elementos
chaves nas reflexões futuras. Em Moscou, a partir de 1920, começou a trabalhar com o
teatro, tendo aulas com Vsevolod Meyerhold, até estrear no cinema em 1923. É
justamente a relação do teatro com o cinema que marca sua estreia, com o curta-
metragem O dário de Glumov (Dnievnik Glumova) para apresentação na peça O Sábio.
Seu primeiro longa-metragem é realizado no ano seguinte. A greve (Statchka) teve
a produção e as filmagens realizadas no ano de 1924, com as primeiras exibições em
março de 1925. Em seguida, veio aquele que se tornaria um dos filmes mais conhecidos
da história do cinema, e que causou inquietações e surpresa ao redor do mundo. O

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encouraçado Potemkin (Bronieenosets Potemkin) abordava a revolta dos marinheiros


ocorrida em 1905. O sucesso do filme e a proximidade das comemorações dos dez anos
da Revolução de outubro levaram o cineasta à produção de Outubro (Oktiabr), lançado em
1928. Seguiu-se O velho e o novo (Staroie I Novoie), lançado em 1929, com final sugerido e
modificado por Stalin, e Miséria das mulheres, felicidade das mulheres (Frauennot,
Frauenglück) que, filmado em 1929 na Suíça, foi proibido por tocar na questão do aborto.
Seus dois últimos longas foram Alexandre Nevski (Alexander Nevsky), lançado em 1938
(proibido após a assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop e liberado após a invasão de
Hitler, em 1941), e Ivã, o Terrível (Ivan Grozny) produzido entre 1945 e 1946, mas liberado
somente em 1958.
Além das obras finalizadas, Eisenstein teve diversos projetos cuidadosamente
anotados, mas que nunca chegaram às telas: a adaptação de obras de Benia Kribs, Isaac
Babel, Blaise Cendrars, Dostoievski; adaptações de O Capital de Karl Marx, e de Uma
tragédia americana, de Theodore Dreiser. Entre os projetos iniciados, mas inacabados,
destaca-se O prado de Beijin (Bejin Lovii), filmado entre 1935 e 1937, e interrompido pela
Direção Geral de Cinema.
A forte presença estatal na carreira do cineasta pode levar a uma visão de que sua
vida fosse restrita aos estúdios na URSS, o que é inverídico. Viajou pela Europa diversas
vezes, encontrou-se com cineastas, trocou ideias, debateu teorias e concepções. Ministrou
aulas no curso de direção cinematográfica entre 1932 e 1936, Rússia. Escreveu inúmeros
livros, artigos e ensaios, muitos à época ainda não descobertos, e publicados após sua
morte. Efetuou estudos sobre El Greco, D.W. Griffith, e Charles Dickens. Seus dois livros
clássicos sobre cinema são A forma do filme, escrito em 1929 e publicado em 1949, e O
sentido do filme, publicado em 1942. Em 1941, com Moscou bombardeada, ele e os demais
cineastas que se encontravam nesta cidade foram transferidos para Alma-Ata.
Dentro desta vasta produção intelectual sobre o pensamento e a reflexão do
cinema, as análises sobre a montagem cinematográfica chamaram atenção em todo o
mundo. Seus dois livros destacam a formação da dramaturgia, dos componentes do
quadro, as relações de forma e conteúdo, e a produção de sentidos. Eisenstein reconhece
que há muito por ser explorado nesta jovem arte de meio século. Ainda estava por ser
conhecido o que poderia ser criado com os meios cinematográficos, uma vez que o filme
permitia “estabelecer um contato internacional com as ideias contemporâneas”

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(EISENSTEIN, 2002, p. 11). As potencialidades técnicas e os recursos de invenção criativa


dotam o cinema de um caráter intelectual. As reflexões do cineasta soviético se inserem
no campo formativo, e antecedem vários anos àquelas realizadas pelos teóricos da revista
francesa Cahiers du cinema. Profundo estudioso de obras pictóricas, literárias e
cinematográficas, Eisenstein foi, talvez, quem mais se dedicou a estudar e refletir sobre
suas próprias obras.
Para este cineasta, falar de montagem não implicava apenas a junção de pedaços
de negativos em certa ordem, mas se referia ao pensamento humano e a cultura humana,
onde o passado se reincorpora ao presente. A montagem já existia na pintura, no teatro,
na música, na prosa e na poesia. Agora o cinema propiciava voar com o pensamento. As
reflexões de Eisenstein buscavam entender os princípios primeiros de cada fenômeno.
Pensava o cinema correlacionado com formas arcaicas de cultura. As percepções sonoras
e visuais conectam-se com premissas biológicas evolucionais. Chegou até a estudar a
evolução do olho – do imóvel, dos insetos, até o dinâmico e móvel de outras espécies. Esses
fatores embasaram sua visão de história do cinema, que traçava um caminho de uma
perspectiva imóvel do uso da câmera e dos movimentos, até o uso dinâmico e criativo.
Para estudar o movimento do ator em cena, valeu-se da biomecânica. Nutria interesse pela
mitologia comparativa da Índia, China, Egito, e América. Leu A mentalidade primitiva, de
Lévy-Bruhl, estudando elementos do pensamento pré-lógico, Freud e o pensamento
inconsciente. Enfim, um intelecto ímpar conectado com a produção de sua época. Sua ida
ao México tratará de inserir novos elementos nestas reflexões e estudos.
O interesse de Eisenstein pelo México era antigo. Havia lido o relato de John Reed
na adolescência. Seus estudos sobre mitologia perpassaram a América pré-colombiana.
Em 1927, o muralista Diego Rivera visitou Moscou e travou encontros intelectuais com
diversas figuras soviéticas. O interesse de Douglas Fairbanks e Mary Pickford pelo
cineasta iniciou contatos com Hollywood. A visita à URSS do escritor Upton Sinclair
aproximou a relação, e em abril de 1930 Eisenstein, Grigori Aleksandrov (assistente e
codiretor) e Eduard Tissé (diretor de fotografia) visitaram Hollywood, a academia, e
contataram cineastas como Walt Disney e Charles Chaplin. De junho a outubro desse ano,
os três trabalham em projetos para a Paramount. O primeiro trataria de satirizar o
American Way of Life; o segundo abordaria a corrida do ouro; o terceiro seria a adaptação,
já mencionada, de Uma tragédia americana, de Dreiser. Com a recusa do estúdio, Sinclair

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ofereceu a possibilidade de filmar uma história no México. A trupe chegou a este país em
dezembro de 1930. Sua estada não foi tranquila, pois o rompimento das relações do
México com Moscou, neste ano, o obrigou a prometer que faria uma obra “artística”, e não
de “propaganda comunista” (DE LOS REYES, 2010, p. 169-207).
Na viagem de trem para o México, teve contato com o livro Los de Abajo (The
Underdogs, na versão em inglês), de Mariano Azuelas. A obra contava com ilustrações de
Orozco que impressionaram Eisenstein. Também no trem, leu a obra de Anita Brenner,
Idols Behind Altars. Baseado neste livro, o esboço do filme previa um prólogo, quatro
capítulos e um epílogo. O Prólogo homenagearia David Alfaro Siqueiros. O capítulo
intitulado “Sandunga” seria dedicado para Jean Charlot. Já “Maguey” seria para Diego
Rivera. O episódio “Soldadera”, para José Clemente Orozco. “Fiesta” seria dedicado para
Francisco Goya. Por fim, o Epílogo para José Guadalupe Posada. Estas influências literárias
somaram-se à leitura de John Reed ainda na Rússia.261 Também leu a obra de Ernest
Grüening, Mexico and is Heritage, uma síntese histórica sobre o México. Sua influência
musical também está presente na estrutura do filme, que foi inspirada em uma sinfonia,
onde cada capítulo desenvolve movimentos contrastantes. As partes são autossuficientes,
mas estão ligadas entre si (ROBERTSON, 2005).
No que tange as suas ideias, a ida ao México deslocou seu olhar e reflexão para a
questão do tempo. Após a viagem, intensifica seus estudos sobre mitologia e etnografia,
focando na troca primordial, que, de acordo com os trabalhos antropológicos lidos por ele,
eram o fato fundamental da vida deste tipo de comunidade. O matrimônio e suas regras
definem a estrutura social. Sua complicada relação familiar e o abandono pela mãe podem
ter exercido influência para seu foco na questão do feminino.

261
Disse Eisenstein: “Vengo a México a hacer una película sobre este país, de cuyo pueblo y de cuyo arte soy
un gran admirador; una película que muestre al mundo entero las maravillas que aquí se encierran. En estos
momentos existe en Europa gran interés por México, y quiero mostrarlo tal cual es para lo cual espero
obtener la cooperación del pueblo, y para el desarrollo de mi proyecto, deseo entrar en contacto, desde
luego, con artistas, fotógrafos, etcétera. Durante un mes aproximadamente me dedicaré a estudiar el
ambiente mexicano y después procederé a la manufactura de la película basada en un asunto local. Tras este
estudio decidiré si la obra la basamos en un argumento determinado o en una exposición fiel del país, de
sus costumbres y de su pueblo, documentándome previamente en visitas que realizaré al Distrito Federal y
regiones inmediatas, al Itsmo de Tehuantepec y a Yucatán, pues no omitiré por ningún motivo las ruinas de
Chichén-Itzá, y mi interés por el folclore local es enorme. En la película seguiremos la misma técnica
empleada en Bronenosetz Potiomkin, es decir, un realismo absoluto, sin emplear “estrellas” ni artistas
profesionales. Iremos al campo, a los centros industriales, a los círculos sociales, a todos aquellos sitios que
se haga necesario, como lo hacemos en las cintas rusas, y así obtendremos lo que deseamos, sin
adulteraciones ni fingimientos”. (DE LA VEGA, 1994, p. 33).

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Após o início da projeção e do aparecimento do famoso símbolo da Mosfilm, nos


deparamos com a presença de Grigori na tela. Enquanto fotografias do México e da
realização do filme são apresentadas, ele narra como surgiu o interesse pelo projeto,
passando por Hollywood até Sinclair. Antes de rodar o filme, era preciso aprofundar o
conhecimento sobre o país em que se encontravam. Os muralistas Rivera, Siqueiros e
Orozco são apresentados como seus guias e professores. Impressionou os cineastas o fato
de que, ao percorrer uma distância de cem milhas, a diferença de épocas históricas
apresentarem-se de forma impactante. O Narrador destaca que as épocas separavam “O
México pré-colombiano da época da conquista espanhola, o México das regras feudais do
México moderno. Para um país incomum era preciso um filme incomum”. De início, a
questão da temporalidade, e as questões históricas a ela atreladas, é colocada. Diferentes
camadas do passado apresentavam-se diante dos olhos dos estrangeiros. O projeto deste
filme incomum pretendia se realizar sem o uso de atores e cenários. O objetivo de
Eisenstein era realizar uma “Sinfonia colorida sobre o México”.262
Após a apresentação de Grigori, tem início a projeção do prólogo. Diversas imagens
registradas com a câmera fixa preenchem a tela. Em planos gerais vemos montanhas,
pirâmides, nuvens. A inserção de closes começa a decompor as imagens iniciais até
recortar detalhes ornamentais. Os planos gerais das pirâmides enfatizam a composição
triangular e o uso da geometria no planejamento cinematográfico de Eisenstein. Alguns
indígenas sobem as pirâmides, numa quase inversão dos soldados que descem a escadaria
de Odessa, em O Encouraçado Potemkin. Chama à atenção a simbiose entre a natureza e a
arquitetura erguida pelo homem que os ângulos da câmera buscam. Uma narração em off,
com uma voz marcante, passa a pontuar a película. Rapidamente é inserida uma legenda
informando que o texto foi lido por Sergei Bondarchuck.
Diz o narrador: “O tempo no prólogo é eterno. Tudo o que está colocado aqui hoje
pode ter acontecido há dez anos atrás, ou mesmo há mil anos”. O presente estava

262
Eisenstein expressou uma peculiar interpretação: “México es primitivo, apegado a la tierra. El mensaje
que propone puede dar por sí solo material para muchas películas. Para hacer una buena película debe
tenerse una actitud positiva. Eso es posible en un país como México, donde la lucha por el progreso es aún
muy real. En los Estados Unidos hay automóviles y golf en miniatura. En mi breve visita he presenciado toda
la historia de la humanidad. En los campos de golf de Pulgarcito está simbolizada la historia de la
humanidad. Primero el recorrido era simple, iluminado sólo por su utilidad. Después los hicieron más
complicados [...] El futurismo llegó y floreció, ¡Entonces vino el frío! Y con él vino la destrucción. La
decadencia y la peste escribieron un último capítulo en la historia”.

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composto por múltiplas simultaneidades e heranças passadas. O olhar sincrônico cruzado


pelo diacrônico é tomado como referência. O narrador destaca o caráter pagão de cidades
sagradas, onde há “Um reino de morte, onde o passado domina o presente”. Em seguida,
vemos imagens de um funeral. O povo é caracterizado vivendo em escravidão para a ideia
de morte, do fim do homem físico. A presença da temática da morte voltará no epílogo do
filme, denotando um andamento circular da narrativa. Os planos fixos passam a
apresentar mulheres trajadas com vestidos brancos e adornadas com crucifixos. Homens
vestidos com o Huipil, uma espécie de túnica que cobre o corpo até a cintura, passam a
carregar o caixão.
Esta sequencia do enterro constitui-se num primoroso exemplo de
intertextualidade. Ao conhecer o mural pintado por Siqueiros, no Colégio de San Idelfonso,
Eisenstein ficou impressionado. O mural, pintado em 1923, é uma homenagem a Felipe
Carrilo Puerto, um comunista conhecido por seu apoio à reforma agrária, direitos dos
povos indígenas e sufrágio das mulheres, assassinado em uma manifestação.
Eisenstein ficou interessado na antiga cosmologia mexicana. Sua visão agrícola
tradicional demarca uma percepção mitológica circular do tempo e da História. A
circularidade da vida e da morte em culturas agrárias pré-modernas correlaciona a morte
ao renascimento. O culto da morte marca o calendário cerimonial dos astecas e suas
celebrações ritualísticas. O aspecto apocalíptico é muito forte na visão de mundo asteca e
seu calendário apresenta tempos de desgraças e terror.263 A inseparabilidade entre a vida
e a morte, do nascimento e da destruição, nas antigas culturas Maias e Astecas, é ilustrada
pelas divindades femininas. A imagem da deusa é dupla: representa a origem da vida, a
mãe zelosa; por outro lado, representa a destruição e a morte (SALAZKINA, 2009).
Também sua representação foi associada ao caráter natural e pré-moderno, com a
natureza e agricultura. Seu papel na esfera doméstica e como mães estão ligadas à
tradição e constituem o eixo da continuidade da sociedade.264

263Sobre a questão do apocalipse na cultura Maia ver o artigo: GUAZZELLI; COPÉ, 2012. p. 20-32.
264O cineasta soviético Andrei Tarkovski também teve sua obra marcada pela reflexão sobre a figura da
mulher. “O universo de Tarkovski é fortemente centrado no homem e marcado pela oposição mulher-mãe.
A mulher provocante e sexualmente ativa (cuja atração se manifesta numa serie de códigos, como os cabelos
longos e despenteados de Eugenia em Nostalgia) é rejeitada como uma criatura histérica e falsa, e posta em
contraste com a figura maternal, com seu cabelo preso e penteado. Para Tarkovski, quando uma mulher
aceita o papel de ser sexualmente desejável, está sacrificando o que tem de mais precioso, a essência
espiritual do seu ser; ela desvaloriza a si própria e assume uma existência estéril. O universo de Tarkovski

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A abordagem de Eisenstein sobre a construção da identidade nacional mexicana


através da herança indígena e seu foco sobre as mulheres busca construir uma
historicidade mediada entre o passado e o presente, o tradicional e o moderno. Constituía-
se num desafio para o cineasta fugir da armadilha do evolucionismo, que comemorava a
vitória da modernização, e uma construção centrada na mitologia, que imobilizasse
qualquer possibilidade de mudança social.
Eisenstein faz uso da pintura muralista para compor seu rol de referências. A
constante presença da água nas cenas remete ao trabalho de Diego Rivera, Nacimiento del
mar, pintado na sede da Secretaria de Educação Pública. O filme reitera o objetivo do
mural de tornar Tehuantepec como o berço da cultura indígena mexicana. Ali se
encontrou o paraíso perdido, fator constitutivo de uma mitologia. No Prólogo do filme, o
encerramento acontece com um funeral, já em Sandunga o nascimento de um filho após a
união do casal demarca a continuidade da vida. O cineasta também teria invertido “o
objeto” da troca pelo dote, deslocando o eixo narrativo para o protagonismo feminino.265
A obsessão do cineasta pelo assunto é verificada em suas anotações sobre os escritos de
Friedrich Engels sobre a família. O diretor constrói analogias com o matriarcado e retorno
ao útero como metáfora para o retorno ao oceano, ao primitivo, o paraíso primevo.
Os protagonistas de “Sandunga” constituem-se em abstrações operadas pela
narrativa. Não há menções a personagens femininos reais no filme de Eisenstein, e até
mesmo nos seus escritos sobre o México. As abstrações dos personagens femininos
incorporam a figura do “eterno feminino” que envolvia os pensamentos do cineasta há
bastante tempo.266 Entre 1920 e 1930, a figura indígena era uma imagem dupla: de
revolução e resistência. Os muralistas viam no indígena a “encarnação de ruptura
revolucionária” associada a Zapata e o caráter popular da Revolução. Nesse contexto,
conectar estes fatores com o passado pré-colombiano proporcionava uma continuidade
histórica que rompia com a conquista espanhola. Nesse novo Estado que nascia depois da
Revolução, a figura da mãe se encaixava nos propósitos. O nome da personagem

está impregnado de uma repugnância mal dissimulada pela mulher provocante; a essa figura, inclinada a
incertezas histéricas, ele prefere a presença tranquilizadora e estável da mãe”. (ŽIŽEK, 2009, p. 112).
265 Outro desafio à autenticidade proposta pela obra é que, ao invés do uso de amadores, o cineasta teria

trazido atores e atrizes de um cabaré que frequentou assiduamente na capital mexicana. (SALAZKINA, 2009,
p. 63).
266 Ironicamente, segundo um relato, a equipe de filmagem foi ameaçada por um grupo de homens que

acusavam seus equipamentos de enxergar através das roupas das mulheres. (SALAZKINA, 2009, p.88).

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(Concepción) também corrobora as escolhas do cineasta e sua intertextualidade com os


murais. Do mesmo modo, o interesse de Eisenstein se verifica pela analogia que pode ser
feita à situação cultural na Rússia: a abolição da servidão décadas antes e transposição de
uma cultura pré-moderna tradicional.
Uma grande influência visual na obra de Eisenstein foi Tina Modotti, atriz,
fotógrafa e ativista italiana. Da Europa rumou para San Francisco, onde trabalhou como
modelo e estudou teatro. Em Los Angeles integrou-se à vida boêmia, circulando com
atores, pintores, poetas, escultores. Em 1920 estrelou seu primeiro filme (The tiger coat).
Passou a trabalhar com o fotógrafo Edward Weston, que em 1922 organizou uma
exposição sobre o México. Foi ganhando autonomia temática e estilística e mudou-se para
o México, onde seu trabalho integrou-se ao projeto de construção de uma “Mexicanidad”.
Foi pintada por Rivera no mural El Arsenal, e tema de um poema de Pablo Neruda. Na
década de 1930, voltou para a Europa, integrou-se ao Partido Comunista, e participou da
Guerra Civil Espanhola com a Cruz Vermelha. Também foi repórter para a revista Ayuda
(BRANCIFORTE, 2006, p. 289-309; FERREIRA, 2008, p. 59-80).
Outra grande influência é a obra de Anita Brenner, antropóloga, historiadora,
jornalista e escritora, que propagou a visão indigenista do México (principalmente nos
EUA), operação realizada de forma consciente. Foi a responsável por promover a obra de
Orozco em Nova York. Suas novelas (com destaque para Ídolos tras los altares, 1928, e El
viento que barrió México, 1943) eram dotadas de uma linguagem visual, e desenvolviam a
ideia de que por trás do substrato da religião católica perdurava a cultura indígena (PICK,
2010; SALAZKINA, 2009).
Contudo, a postura de Eisenstein opera uma relativização desse indigenismo, uma
vez que foi fortemente influenciado por Orozco, que rejeita o “indigenismo mainstream”.
Esta influência sugere uma postura ambivalente de Eisenstein sobre o historicismo pós-
revolucionário. O fundo marxista de sua formação contribui para levar estes elementos
simbólicos do indigenismo para um segundo plano, elevando uma recodificação em prol
do trabalho e exploração de classe. E este ponto recebe grande influência do Muralismo e
suas concepções.
A pintura mural mexicana é um dos melhores exemplos da criação da conexão
entre arte e sociedade. Ela constitui o renascimento da pintura mural, pensada
inicialmente como antagônica à pintura tradicional, a dita pintura de cavalete. Suas

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peculiaridades e propostas teóricas chegam a levar analistas da arte a não inseri-las


dentro da estética moderna. No México, seu desenvolvimento inicia com a figura do
professor e artista Gerardo Murillo Conardo – “Dr. Atl” –, membro da Academia de San
Carlos, que, regressando ao México em 1903, chamou a atenção dos jovens artistas para o
Muralismo do Renascimento italiano. Quando Porfírio Díaz organiza, em 1910, uma
exposição de arte espanhola contemporânea, este grupo liderado pelo Dr. Atl realiza uma
exposição com enfoque na cultura indígena. Inicialmente, ele destaca o caráter espiritual
da arte muralista, dando relevância à concepção visual e decorativa desprovida de
polêmica social. Mas, conforme o desenvolvimento do processo revolucionário, suas
posições foram ganhando um caráter mais engajado, inclusive incentivando jovens
artistas a participarem da Revolução ativamente. Dr. Atl levava consigo suas prensas
móveis, onde imprimia jornais e panfletos, o que destaca a efervescência cultural deste
período.
As anotações de Eisenstein conectam o projeto do episódio Soldadera com os
anteriores. A relação do feminino com a ordem social, no caso a guerra. A nudez das
mulheres remete às cenas de Sandunga. A música que deveria acompanhar este episódio
seria La Adelita (NESBET, 2003, p. 125). No cinema mexicano, o discurso colonial-
patriarcal extirpa a figura da mulher revolucionária. Mesmo com a forte atuação das
mulheres nas mais variadas frentes, seja nos clubes, nos periódicos, como espiãs,
mensageiras, enfermeiras, soldaderas ou revolucionárias.
O melodrama produzido até os anos 1970 corrobora a visão da mulher como um
prolongamento biológico do masculino. Sua presença cinematográfica se resume a filhas,
mães e esposas (GUERRERO, 2002, p. 37-52). Se levarmos em consideração estes
elementos, Eisenstein foi um transgressor na sua época. O fato de ser um estrangeiro
certamente influenciou suas escolhas. Seu cabedal de leituras estava direcionado para
estas questões. Contudo, como frisamos anteriormente, não há menção a personagens
femininas reais. Ironicamente, o silêncio sobre a atuação feminina atingiu a obra
inacabada de Eisenstein.
O cineasta destacou a parceria das mulheres com os soldados. Como durante a
Revolução não existiam postos e hospitais, era graças à soldadera que a cura dos enfermos
e vitimados era realizada. Eisenstein também destaca que ela frequentemente combatia
junto com seu companheiro. Chamou sua atenção que as mulheres “passavam de um

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soldado a outro, e de um exército a outro”, em caso de morte do seu companheiro. O


diretor destacou que esse gesto parece reunir, na figura das soldaderas, a unidade do povo
mexicano frente à diversidade de suas nacionalidades. Neste ambiente de conflito, o
renascimento só poderia ocorrer pela figura feminina. Pancha (o nome que havia
concedido à personagem) conduziria a cena da entrada na capital das tropas zapatistas e
villistas.
Desse modo, ao compor uma interpretação da História mexicana através de uma
obra cinematográfica, Eisenstein articulou elementos de sua formação e possibilidades
que o contexto e o local lhe ofereciam, Soube manobrar e articular os obstáculos que
surgiram pela sua vasta experiência no modo de produção cinematográfico soviético.
Mesmo com uma obra inacabada a conclusão que chegamos é que Eisenstein constitui-se
num intelectual revolucionário.

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GUERRERO, María Consuelo. La revolucionaria en el cine mexicano. Hispania, v. 95, n. 1,


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A TEORIA DO REAL MARAVILHOSO DE ALEJO CARPENTIER: A


RECUPERAÇÃO HISTÓRICA E A BUSCA DE UMA IDENTIDADE
AMERICANA

Luciane Alves

Falar de Literatura Latino-Americana hoje ainda é falar da busca e da


problematização de identidades culturais. Em nosso continente soltar as amarras do
colonialismo é uma luta, mesmo que às vezes velada, presente em grande parte da
produção artística local. Os movimentos literários americanos apresentaram,
principalmente a partir do século XIX, a preocupação pela busca de elementos identitários
comuns aos diversos países e por expressões que fossem próprias de cada local de escrita.
Na tentativa de libertação da opressão cultural europeia a ênfase nas questões
próprias e singulares da América Latina esteve no topo da lista de temas abordados. No
caso da literatura hispano-americana este período corresponde ao Modernismo (paralelo
ao Parnasianismo e ao Simbolismo no Brasil), primeiro movimento estético originado na
América.
Foram muitos os fatores que abriram novas perspectivas para o cenário hispano-
americano, como destaca Bella Josef, “todo um complexo mundo de idéias influiu no
movimento, ao mesmo tempo que o incremento industrialista, novas correntes
migratórias e o desprestígio da Espanha pelo atraso na aceitação de novas concepções.”
(JOSEF, 1982, p 111). Entretanto, nem mesmo as formas de expressão local garantiram
legitimidade ao discurso latino-americano. Diante de uma perspectiva de análise que se
baseava na ideia de influência, a produção desta região continuou relegada a um lugar
inferior.
Silviano Santiago, em seu artigo O entre-lugar do discurso latino-americano de
1971, aponta o lugar de simulacro do discurso do continente: “A América transforma-se
em cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao original, quando sua
originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas em sua origem apagada
completamente pelos conquistadores.” (SANTIAGO, 1978, p.14)

Doutoranda em Estudos de Literatura - Teoria, Crítica e Comparatismo no PPG-Letras da UFRGS/Bolsa


CAPES.

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A reflexão do teórico evidencia a busca de uma origem que estaria sendo procurada
no lugar equivocado, baseada na semelhança com o conquistador, enquanto um início
autêntico estaria nas raízes culturais que foram extintas pelo processo de colonização.
Santiago afirma que “[a] maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental
vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza” (SANTIAGO, 1978,
p.16). Por esse motivo, o reconhecimento do hibridismo como produtor de uma nova
cultura é um fator determinante para que se entendam as produções pós-coloniais.
A formação dos discursos identitários se relaciona com uma parte importante da
obra ficcional e ensaística de Alejo Carpentier, principalmente no que é produzido após a
publicação de O reino deste mundo de 1949 e que finaliza com seu último romance, El arpa
y la sombra, de 1979. O autor cubano em suas reflexões sobre a produção literária latino-
americana expõe ideias bastante focadas nos temas regionais e na valorização da cultura
local. Seu projeto, no entanto, é marcado por uma visão ufanista do continente, que
procura defender a grandeza dos recursos naturais americanos como elementos de
superioridade em relação à cultura europeia. A visão unificadora da América vai ao
encontro dos projetos políticos defendidos na época, que triunfam com a Revolução
Cubana.
Um dos pontos mais importantes da produção de Alejo Carpentier é a teoria do real
maravilhoso americano, que surge como uma oposição ao surrealismo do grupo de André
Breton, do qual chegou a fazer parte enquanto vivia na França, mas posteriormente se
desiludiu. Há nas reflexões de Carpentier, uma tentativa de mostrar que o verdadeiro
maravilhoso pertence ao continente americano enquanto todos os postulados
surrealistas se baseariam em ideias fantasiosas e artificiais, apoiadas por criações
puramente ficcionais. Na América, o maravilhoso existiria na realidade cotidiana, na vida
das pessoas comuns e em cada prática resultante de uma mistura de culturas jamais vista.
O maravilhoso na América poderia ser encontrado naturalmente, sem a
necessidade de truques ou artimanhas como os jogos e técnicas dos surrealistas. No
continente ele estaria em estado bruto. Como afirma Carpentier,
[e]n América Latina basta abrir los ojos, abrir los oídos del
entendimiento, observar una cantidad de cosas nunca vistas, nunca
descritas que hay en torno nuestro, y ahí está todo un mundo surrealista,
al estado natural, normal, que es lo que yo he llamado lo real maravilloso.
(CARPENTIER, 1987, p. 158 - 159).

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O maravilhoso é definido por Carpentier como aquilo que é extraordinário, não é


nem belo nem feio, mas assombroso por seu caráter insólito: “[to]do lo insólito, todo lo
asombroso, todo lo que sale de las normas establecidas es maravilloso” (CARPENTIER,
2007, p. 143). Na América o maravilhoso nasce da união de elementos provindos de
culturas diversas que levam à formação de uma nova realidade cultural, assim como a
paisagem e todos os elementos naturais do continente. A partir da análise desta realidade,
o autor procura descrever a identidade americana, com a intenção de privilegiar sua
formação heterogênea, focado na historia da região sob uma perspectiva que contemple
as diferentes interpretações desta, não mais se limitando ao olhar do colonizador.
Na descrição de uma cultura tão ímpar a única linguagem possível para Carpentier
é a barroca, que para ele já faz parte da natureza e da cultura da América, associada à
mistura, ao exagero da paisagem, à aparente absurdez da história e da arquitetura
americanas e aos próprios americanos enquanto mestiços. Como aponta Irlemar Chiampi,
“[a] estratégia principal de Carpentier consiste em vincular o seu conceito do “real
maravilhoso americano” com uma reflexão linguística sobre o estilo barroco, de modo a
promover uma razão estética dessa opção retórica em sua prosa narrativa.” (CHIAMPI,
1980, p.9). A autora define que “[o] barroco em Carpentier passa, portanto, de uma
legibilidade estética para uma legitimação na natureza e na história.” (CHIAMPI, 1980,
p.10)
O efeito do barroquismo se apresenta como solução para o problema de
representação da América, como realidade insólita, estranha e de difícil definição através
da linguagem. As palavras se mostram inadequadas e insuficientes na nomeação e
descrição do continente. Para Chiampi, o barroco aparece como “uma ação verbal que
revela a resistência do real maravilhoso americano a ingressar na órbita cultural do Velho
Mundo, e obriga-nos a revisar o código que tentou provocar esse ingresso”. (CHIAMPI,
1980, p.80).
Na teoria do real maravilhoso é possível observar que a proposta está além de uma
simples reformulação do conceito de maravilhoso ou a contestação das ideias surrealistas.
O principal objetivo da teoria de Carpentier é a afirmação da América, seu valor, história
e cultura, recorrendo para isso a ideais nacionalistas de valorização extrema do que é
local. É importante lembrar que se tratava de um momento de renovação da política e da

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literatura latino-americanas, muito marcada pelos ecos da Revolução Cubana, o que em


parte pode justificar o caráter exagerado dos discursos.
Na literatura, este período corresponde ao chamado boom, um momento de busca
da libertação de modelos, de criação de novos estilos, novas temáticas, configurando uma
literatura que parte da América, de seus cenários e sua gente, mas que não se limita ao
regionalismo, procurando transformar o local em universal. Os autores vinculados a esse
período foram responsáveis pela consolidação de um lugar para a literatura latino-
americana no restante do mundo.
Este período também esteve fortemente marcado pelo exílio de grande parte dos
escritores americanos, ocasionado pelas ditaduras em seus países de origem. Por
publicarem seus textos através de editoras europeias, esta literatura acabou ganhando
destaque em outros locais. No caso de Alejo Carpentier, é possível notar que a “revelação”
da América para os demais países é entendida como uma missão do intelectual latino-
americano.
yo creo que el intelectual latinoamericano, su papel, es ese: luchar contra
los horrores de América, entender las maravillas de América y hacer lo
posible porque sean conocidas en el mundo y sean nombradas, y a la vez
tener un conocimiento de lo que ocurre en todo el mundo. (CARPENTIER,
1987, p 171)

A ideia de Carpentier é a de que se valorize a cultura, a história e a literatura


americana e que se deixe de buscar um modelo na Europa valorizando o entorno local. No
entanto, em sua tentativa de valorização e expansão da cultura americana, se revelou, uma
vez mais, o estabelecimento de fronteiras entre as culturas, onde o valor da América
aparece em comparação com a Europa. Não há a perda do sistema comparativo, ao
contrario, a visão da Europa como modelo acaba sendo reforçada, ainda que se mostre a
América como mais rica culturalmente. A permanência do sistema binário é um ponto
contestável nas interpretações de Carpentier, que acaba por reforçar a visão limitadora
que ele mesmo criticava nos surrealistas.
Em uma passagem do prólogo de O reino deste mundo, publicado originalmente em
1949, Carpentier comenta ironicamente que André Masson tentou desenhar a floresta da
Martinica e não pode, pois "la maravillosa verdad del asunto devoró al pintor, dejándolo
poco menos que impotente frente al papel en blanco" (CARPENTIER, 1983, p. 14) e logo
acrescenta que "tuvo que ser un pintor de América, el cubano Wifredo Lam, quien nos

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enseñara la magia de la vegetación tropical" (CARPENTIER, 1983, p. 14) referindo-se à


tela La Selva. O comentário de Carpentier permite que se entenda, que para ele somente
um artista americano é capaz de compreender a grandiosidade da América, não sendo
possível a um estrangeiro expressá-la.
Ao criticar os surrealistas através da figura de Masson, Carpentier parece esquecer
que Wifredo Lam também pertencia ao grupo, mostrando contradição em seu comentário,
pelo qual já não fica claro se o que o autor cubano rejeita são as ideias surrealistas ou o
olhar europeu. Além disso, a base de seus argumentos está em um modelo e um conceito
europeus, como comenta Rodríguez Monegal:

Atrás de Carpentier, críticos e até ficcionistas, puseram-se a louvar a


maravilha da América sem reparar que o maravilhoso é um conceito
literário europeu; que foram os descobridores e conquistadores, os que o
aplicaram primeiro à America para documentar sua estranheza de
forasteiros diante de uma realidade exótica; e que já tinha sido aplicado
(com a mesma intenção retórica) ao mundo das novelas de cavalaria, à
Grécia clássica dos deuses pagãos, à China de Marco Polo. Poucos viram o
erro de Carpentier ao atribuir um conceito cultural (o maravilhoso) a uma
realidade específica. (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1955, p.11)

A oposição de Carpentier à ideia de maravilhoso dos surrealistas reforçou a ligação


com a Europa, criando uma relação de interdependência entre o real maravilhoso e o
surrealismo, pois ao contestar o modelo anterior, o autor ajuda a mantê-lo. Segundo
Chiampi,
as teses expostas no prólogo a El reino revelam a dupla postura de
aceitação dos postulados surrealistas (os aspectos mágicos e irracionais
do real) e de recusa dos mecanismos de busca da sobre-realidade na
literatura, propugnados pelos poetas franceses dos anos vinte.(CHIAMPI,
1980, p.38)

Pensada a partir uma visão intertextual, esta interdependência se mostra como


algo natural e benéfico na constituição literária, pois todo texto é a releitura e a
transformação de outro texto. Carpentier proporciona um diálogo tenso e produtivo entre
a América e a Europa, mas peca em suas constantes comparações entre uma cultura e
outra, trocando a visão eurocentrista por uma forçada visão “américocentrista”.
Contraditoriamente, o autor defende a valorização e o conhecimento de outras culturas,
acusando os europeus de não fazerem o mesmo: “no creo en las culturas en círculo
cerrado. Y ya que usted me habla de lo europeo, le diré que un grave defecto de la mayoría

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de los intelectuales europeos está en su eurocentrismo, que es una cosa terrible.”


(CARPENTIER, 1987, p.167).
Posteriormente à publicação de O reino deste mundo, Carpentier reformulou o
texto do prólogo e o lançou em forma de ensaio com o título De lo real maravilloso
americano. Neste texto se encontra uma parte introdutória, onde descreve viagens à
China, ao Islã, à União Soviética e a outras partes da Europa, em que pretende mostrar
como a ignorância em relação a certos elementos da cultura alheia, principalmente o
idioma, leva ao não entendimento da mesma.
Para Carpentier, o verdadeiro entendimento de uma cultura só é conseguido por
alguém que pertence a ela. Dessa forma, exclui a interpretação do estrangeiro como
insuficiente. Essa visão reafirma o caráter unificador do continente americano, pois ao
sentir-se autorizado a falar de outros países além de Cuba, Carpentier demonstra que
além das especificidades de cada local há pontos de união mais fortes, que aproximam e
assemelham cada parte do continente. O que Carpentier procura é definir a “essência” da
identidade americana, calcada no processo de colonização.
A imagem da América e do americano é construída, portanto, a partir de uma ideia
essencialista de identidade, baseada em um passado histórico comum entre os povos
americanos que é a colonização. Além disso, a proposta de Carpentier se apoia no
hibridismo resultante da mistura de raças e culturas para justificar o sentimento de
pertença ao continente. Em suas análises estão presentes duas linhas base dos discursos
nacionalistas: a busca de um passado comum e as características biológicas dos
indivíduos. É possível perceber que a literatura é um dos mecanismos de projeção e
reforço das ideias que constroem as comunidades imaginadas, funcionando como meio
de criação e difusão destes discursos.
Com seu romance O reino deste mundo, Carpentier se propõe a mostrar o real
maravilhoso em prática, com a recuperação de uma parte importante da história do Haiti,
e da própria América, que parecia ter sido esquecida. O romance que se passa entre a
metade do século XVIII e início do XIX, procura contar a historia da ilha das primeiras
revoluções libertadoras até a morte de Henry Christophe, escravo autoproclamado rei em
1811. O escravo Ti Noel, protagonista, é o fio condutor da história. A narrativa acompanha
sua vida, da juventude até a velhice, e, nesse período de tempo, também acompanhamos
as mudanças e revoluções que culminam no reino de Christophe.

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Desde o principio, o texto mostra a tensão entre o mundo dos brancos (senhores)
e dos negros (escravos). Os primeiros representam a civilização, como sinônimo de
europeização, enquanto os segundos estão ligados ao primitivismo das tribos africanas,
com a dicotomia civilização/barbárie bastante presente. É interessante notar que o
narrador não representa nenhum deles como superior, pois nessa obra tudo depende da
perspectiva a partir da qual se percebe a leitura. Assim como os brancos se consideram
superiores, por serem civilizados e escravizarem os africanos, estes não respeitam a
cultura dos europeus e os consideram fracos.
No primeiro capítulo, há uma passagem bastante representativa do olhar dos
escravos em relação aos senhores. Ti Noel, ao acompanhar seu amo, o senhor Lenormand
de Mézy ao barbeiro, se diverte observando as cabeças de cera que sustentam as perucas
da moda europeia da época, e as compara às cabeças de porco que estão expostas no
açougue ao lado:

Por una graciosa casualidad, la tripería contigua exhibía cabezas de


terneros, desolladas, con un tallito de perejil sobre la lengua, que tenían
la misma calidad cerosa, como adormecidas entre rabos escarlatas,
patas en gelatina, y ollas que contenían tripas guisadas a la moda de Caen.
Sólo un tabique de madera separaba ambos mostradores, y Ti Noel se
divertía pensando que, al lado de las cabezas descoloridas de los
terneros, se servían cabezas de blancos señores en el mantel de la misma
mesa. (CARPENTIER, 1983, p. 22).

No local também havia algumas gravuras coloridas representando o rei da França


e cenas da vida dos brancos. Em certo momento, o escravo se depara com uma gravura
diferente das demais que representa um almirante ou embaixador francês sendo recebido
por um rei africano. Então, Ti Noel começa a lembrar de todas as histórias da África
contadas por Makandal, o líder dos escravos, e pensa que na África os reis eram reis de
verdade “no esos soberanos cubiertos de pelos ajenos, que jugaban al boliche y solo sabían
hacer de dioses en los escenarios de sus teatros de corte” (CARPENTIER, 1983, p. 24). Em
sua reflexão, Ti Noel vê os soberanos europeus como inferiores em relação aos africanos:

En el África, el rey era guerrero, cazador, juez y sacerdote; su simiente


preciosa engrosaba, en centenares de vientres, una vigorosa estirpe de
héroes. En Francia, en España, en cambio, el rey enviaba sus generales
a combatir, era incompetente para dirimir litigios, se hacía regañar
por cualquier fraile confesor, y, en cuanto a riñones, no pasaba de
engendrar un príncipe debilucho, incapaz de acabar con un venado sin

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ayuda de sus monteros, al que designaban, con inconsciente ironía, por el


nombre de un pez tan inofensivo y frívolo como era el delfín. Allá, en
cambio — en Gran Allá—, había príncipes duros como el yunque, y
príncipes que eran el leopardo, y príncipes que conocían el lenguaje de
los árboles, y príncipes que mandaban sobre los cuatro puntos cardinales,
dueños de la nube, de la semilla, del bronce y del fuego. (CARPENTIER,
1983, p. 24).

A oposição entre as culturas dos senhores e dos escravos é o que simboliza a


aceitação e a negação da presença do maravilhoso, que, como definiu Carpentier, depende
da fé. Os brancos, por não possuírem a crença dos escravos, não podem perceber o plano
arquitetado por Mackandal, que envenena e mata grande parte dos colonos. A
manipulação das ervas letais se dá através de um ritual do vodú, desconhecido pelos
senhores. Os colonos acabam descobrindo que Makandal é o culpado, mas não entendem
exatamente como ele colocou a peste nas terras. Por fim, o perseguem e o condenam à
morte.
A cena da morte de Mackandal parece ser o ápice do confronto cultural na primeira
parte da obra. A narração do momento é feita de modo que permite ao leitor escolher em
que prefere acreditar, sendo uma espécie de encruzilhada para quem lê, um momento de
passagem para o restante da obra, em que se deve escolher o caminho a seguir: a visão
dos brancos, acreditando que tudo é pura imaginação dos negros, ou a crença dos
escravos, do maravilhoso provocado pelos rituais do vodú:
En ese momento Mackandal agitó su muñón que no habían podido atar,
en un gesto combinatorio que no por menguado era menos terrible,
aullando conjuros desconocidos y echando violentamente el torso
hacia adelante. Sus ataduras cayeron, y el cuerpo del negro se espigó en
el aire, volando por sobre las cabezas, antes de hundirse en las ondas
negras de la masa de esclavos. Un solo grito llenó la plaza.
—Mackandal sauvé!
Y fue la confusión y el estruendo. Los guardias se lanzaron, a culatazos,
sobre la negrada aullante, que ya no parecía caber entre las casas y
trepaba hacia los balcones. Y a tanto llegó el estrépito y la grita y la
turbamulta, que muy pocos vieron que Mackandal, agarrado por diez
soldados, era metido de cabeza en el fuego, y que una llama crecida por el
pelo encendido ahogaba su último grito. (CARPENTIER, 1983, p. 42- 43).

Os escravos acreditam que Mackandal se transformou em mosquito, escapando da


morte, e comemoram a vitória do líder. Os brancos veem o negro sendo queimado na
fogueira e ficam horrorizados com a falta de compaixão dos escravos que, na visão dos
senhores, não se comovem com a morte do companheiro:

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Aquella tarde los esclavos regresaron a sus haciendas riendo por todo el
camino. Mackandal había cumplido su promesa, permaneciendo en el
reino de este mundo. Una vez más eran burlados los blancos por los
Altos Poderes de la Otra Orilla. Y mientras Monsieur Lenormand de Mezy,
de gorro de dormir, comentaba con su beata esposa la insensibilidad
de los negros ante el suplicio de un semejante —sacando de ello
ciertas consideraciones filosóficas sobre la desigualdad de las razas
humanas, que se proponía desarrollar en un discurso colmado de citas
latinas— Ti Noel embarazó de jimaguas a una de las fámulas de cocina
(...). (CARPENTIER, 1983, p. 43).

Para Carpentier, o maravilhoso em estado bruto se encontra em todas as ações de


Makandal, que é cultuado até hoje em algumas comunidades que praticam o vodú. Como
definiu de Chiampi, o maravilhoso é resolvido na narrativa com a mistura do mito com a
história. O que o autor propõe é a narração de algo que é maravilhoso, mas que é também
real. Como ele mesmo explica no prólogo:

[...] el relato que va a leerse ha sido establecido sobre una


documentación extremadamente rigurosa que no solamente respeta
la verdad histórica de los acontecimientos, los nombres de personajes
—incluso secundarios—, de lugares y hasta de calles, sino que oculta, bajo
su aparente intemporalidad, un minucioso cotejo de fechas y de
cronologías. Y sin embargo, por la dramática singularidad de los
acontecimientos, por la fantástica apostura de los personajes que se
encontraron, en determinado momento, en la encrucijada mágica de la
Ciudad del Cabo, todo resulta maravilloso en una historia imposible de
situar en Europa, y que es tan real, sin embargo, como cualquier
suceso ejemplar de los consignados, para pedagógica edificación, en los
manuales escolares.
¿Pero qué es la historia de América toda sino una crónica de lo real-
maravilloso? (CARPENTIER, 1983, p. 17- 18).

Para o autor cubano, a história da América é uma crônica do real maravilhoso, por
ser um lugar onde se misturam culturas heterogêneas, onde ainda permanecem muitas
mitologias e crenças associadas a elementos mágicos. A história de O reino deste mundo
não poderia situar-se na Europa porque a fé, que segundo Carpentier é necessária para
que aconteça o maravilhoso, só pode ser encontrada na América, onde o maravilhoso
ainda é aceito como verdade.
O autor ainda comenta que “de Makandal [...] ha quedado toda una mitología,
acompañada de himnos mágicos" (CARPENTIER, 1983, p. 17), pois, como se comentou
antes, ainda existem seguidores de suas doutrinas. Esse fato justificaria a visão de

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Carpentier em relação aos artistas europeus, de acordo com Paz Soldán "el artista que no
tiene la fe que tienen los habitantes de América Latina, que no cree en el milagro y la
magia, no podrá captar la compleja realidad del continente, su inagotable caudal de
mitologías. Sin esa fe, los europeos están destinados a concebir un arte artificioso" (2008,
p. 38).
É possível concluir, que a oposição que existe entre os brancos e os negros na
narrativa de O reino deste mundo é mesma que Carpentier estabelece entre o surrealismo,
sinônimo de europeu, e o real maravilhoso, a expressão da América. Os americanos
simbolizam a fé, enquanto os europeus são a falta dela.

Referências bibliográficas:

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexiones sobre el origen y difusión del


nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.

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MAR DE POSSIBILIDADES: UM DIÁLOGO ENTRE AS MARINHAS DE


EDOARDO DE MARTINO, A CRIAÇÃO DO MUSEU NAVAL E A IMPRENSA
MILITAR
Bárbara Tikami de Lima

O século XIX foi um período de grandes divergências no pensamento moderno, no


Brasil a centúria foi marcada por várias mudanças decorrentes da transferência da corte
portuguesa para o Rio de Janeiro. Assim, para atender as necessidades da coroa
portuguesa muitos artistas chegaram ao país, ligados direta ou indiretamente à Missão
Artística Francesa e à fundação da Academia Imperial de Belas Artes. Embora tenha uma
trajetória peculiar, dentre os pintores estrangeiros que passaram por nosso país podemos
destacar Edoardo de Martino. Suas pinturas podem ser um fecundo e interessante objeto
de pesquisa quando analisadas em conjunto das medidas que a Marinha Brasileira –
principal compradora e divulgadora da obra do artista – adotou para criar e consolidar
uma cultura naval267.
Norteado pelo constante convite à problematização dos significados dos oceanos
(BARREIRO, 2005) e pela importância que as pinturas de marinha268 assumem “num país
como o nosso, de litoral imenso e exuberante paisagem fluvial” (SOUZA, 1982, p. 9) este
artigo pretende apontar um possível diálogo entre as marinhas de Edoardo de Martino, a
criação do Museu Naval e o surgimento de uma imprensa militar, inserido no contexto de
construção de uma imagem da Marinha Brasileira.

I
A fim de ultrapassar a análise estética e formal das pinturas e desenhos de Edoardo
de Martino devemos levar em conta as individualidades e singularidades do artista.


Mestranda do PPGH - UNISINOS.
267 O Decreto-lei número 4.116 de 14 de março de 1868 estabelece a criação do Museu Naval com a
finalidade de recolher objetos que interessavam à cultura naval.
268 Em um estudo sobre a obra de Edoardo de Martino, é importante reputar o modo como a fronteira entre

os diversos gêneros da pintura ocidental é extremamente móvel (MORAIS, 1995). No Brasil, esta mobilidade
gerou uma taxonomia muito imprecisa. Tal fato nos leva a necessidade de um breve esclarecimento sobre o
termo pintura de marinha , entendido por “ todo e qualquer assunto que, no âmbito do paisagismo do século
XIX até meados do século XX, faça referencia primordial (e não necessariamente explicita) ao elemento
água” (LEVY, 1982, p.16).

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Entendido como um sujeito histórico e agente de mudanças que utiliza a arte para
produzir o novo em uma dinâmica relação com a sociedade (KERN, 2010). Essas
particularidades precisam ser reputadas em um estudo que envolva obras de arte, pois “a
criação artística é para Warburg um processo que oscila entre a imaginação e a razão”
(WARBURG, 1990 apud SAMAIN, 2012 p. 57). Orientados pelo pensamento do autor
alemão, vemos a importância de ter em mente que: o sentido do ato estético da empatia –
em seu constante devir – proporciona a força figuradora do estilo (WARBURG, 1990). Isto
nos leva a pensar as obras de Edoardo de Martino como o resultado de um trabalho
repleto de subjetividades.
Tendo em vista tais considerações é importante sabermos que Edoardo de Martino
nasceu em Meta di Sorrento no ano de 1838, estudou na Escola Naval de Nápoles, onde
obteve formação em desenho. Veio para a América do Sul como segundo tenente da
Marinha de Guerra Italiana. De acordo com Ana Maria de Morais Belluzzo (1988),
abandonou seu posto em 1868, devido ao acidente ocorrido próximo a Montevidéu em 07
de maio de 1866, pelo qual o pintor foi responsabilizado. Por isto, passou a se dedicar a
atividade artística nas cidades de Montevidéu, Buenos Aires e Porto Alegre.
No período em que esteve no Brasil, o artista teve uma carreira bastante prolífica.
Durante a Guerra do Paraguai, foi nomeado pintor oficial por dom Pedro II, o que lhe
garantiu o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa (PEREIRA, 1999). Participou das
importantes exposições da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, e
representou o Brasil, ao lado do famoso pintor Pedro Américo, na Exposição Universal de
Viena de 1873 (CARDOSO, 2007).
Apesar do sucesso profissional e de ter se casado com uma brasileira, Edoardo de
Martino partiu para a Inglaterra por volta do ano de 1875, onde faleceu em 21 de maio de
1912. Sua carreira na corte britânica também foi notória, em 1889 ele foi nomeado Marine
Painter in Ordinarice to Her Majesty Queen Victoria, após a morte da rainha continuou
sendo pintor da corte de Eduardo VII e Jorge V (BELLUZZO, 1988).
Atualmente, parte da produção deste pintor está sob a tutela da Diretoria do
Patrimônio Histórico e Documental da Marinha. Também existem trabalhos do artista em
outras instituições como: o Instituto Moreira Sales, a Biblioteca Nacional, o Museu
Histórico Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu de Arte de São Paulo, a
Pinacoteca de São Paulo e o Museu Mariano Procópio (VALE 2006).

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II
Para levar em consideração o impacto das pinturas e desenhos produzidos por
Edoardo de Martino na imaginação dos homens que estavam ligados a Marinha Brasileira
nós utilizaremos a ótica de Schmitt (2007), que entende por imagem:

(…) todos os casos de representação visível de alguma coisa ou de um ser


real ou imaginário: uma cidade, um homem, um anjo, Deus, etc. Os
suportes dessas imagens são os mais variados: fotografia, pintura,
escultura, tela de televisor. Mas o termo “imagem” concerne também ao
domínio do imaterial, e mais precisamente da imaginação. (SCHMITT,
2007, p. 12).

Independente do seu valor estético, as pinturas e desenhos de Edoardo de Martino


devem ser tratados como imagens de algo, capazes de representar as tendências culturais,
as concepções de figuração e os modos de fazer e olhar os objetos (SCHMITT, 2007).
Esta abordagem permite tratar paralelamente a obra de Edoardo de Martino, a
criação do Museu Naval e da imprensa militar como fontes inseridas no conjunto do
imaginário social da Marinha Brasileira (SCHMITT, 2007).
O envolvimento destes diferentes e variados tipos de documentos em um mesmo
estudo, necessita de uma breve explanação sobre a ideia de fonte histórica. Assim,
lembraremos a ressalva de Peter Burke (2004) sobre esta metáfora utilizada para
designar a matéria-prima dos historiadores. Para este estudioso, a denominação “fonte”
deve ser entendida com cautela, pois pode causar a quimera de um relato do passado
totalmente puro, tal qual uma nascente de água límpida. Deste modo, é necessário evitar
o olhar inocente sob os diferentes documentos utilizados no trabalho de produção do
conhecimento histórico. Estabelecer um diálogo entre as pinturas de marinha de
Edoardo de Martino, a criação do Museu Naval e de uma imprensa militar implica refletir
sobre os usos políticos da história e do passado que se quer conhecer (SALGADO 2005).
Este problema é bastante significativo para compreendermos a relação entre as diferentes
fontes que indicam a criação de uma memória cultural pela Marinha Brasileira. Neste
sentido é importante considerar a memória como uma propriedade que permite aos
indivíduos conservar, atualizar e reinterpretar impressões ou informações passadas (LE
GOFF, 1992).

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Consolidar os elos entre os vivos e os mortos, de modo a mobilizar os indivíduos


em torno de valores coletivos permite construir tradições por meio de diferentes
operações memorialísticas. Assim, a problemática que envolve a construção da memória
e do esquecimento nas sociedades contemporâneas, remete aos usos do passado e a
construção de patrimônios nacionais que são mimetizados como inconsciente coletivo ou
individual (FRANZINI e GONTIJO, 2009). No caso da Marinha Brasileira e a criação de sua
memória cultural no final do século XIX as imagens produzidas por Edoardo de Martino,
a criação do Museu Naval e de uma imprensa militar podem ser estudados como meios de
estabelecer tais operações memorialísticas. Estas reflexões também são relevantes para
destacar que Edoardo de Martino não viveu em um mundo à parte, ele partilhou algumas
percepções intelectuais com a instituição.

III
Para entender a obra de Edoardo de Martino – inserida no contexto oitocentista, e
em paralelo às outras medidas tomadas pela Marinha Nacional, com o intuito de construir
e concretizar sua memória cultural – nós devemos considerar a arte correlata à vida e
reflexo do meio físico e moral (BAUDELAIRE, 1996). Este fato enfatiza a necessidade de
uma explanação sobre o panorama do século XIX, pois ele imprimiu sensações que foram
refletidas em toda a obra do pintor (BAUDELAIRE, 1996).
Durante o germinar dos séculos XVI e XVII, o advento das grandes navegações
proporcionou a interação entre as diferentes sociedades. Assim, as rotas marítimas
constituíram importantes artérias que unificaram a Terra (BAUMER, 1977). Isto levou
Franklin L. Baumer (1977) a acreditar que o núcleo do espírito moderno está no sentido
do devir – um modo de pensar que engloba tudo e permanece em constante mudança ao
evoluir para algo novo e diferente. Este modo de pensar substituiu a concepção do
absoluto ao relativo e da imobilidade ao movimento (RENAN, 1890 apud BAUMER, 1977).
A nova ordem econômica e social, decorrente das navegações, fez o Brasil emergir
no início do século XIX em proporções nunca vistas anteriormente (BARREIRO, 2005).
Como na Europa, o cenário artístico nacional do século XIX também foi marcado pela falta
de unidade nos modos de pensamento. Neste contexto o neoclassicismo esteve vinculado
ao academicismo dos projetos oficiais. Enquanto o romantismo ganhava espaço nas obras
dos artistas mais independentes (FERNANDES, 2007).

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Desta maneira, os anos de 1800 estiveram marcados por uma infinidade de modos
de pensar (BAUMER, 1990) e foram bastante promissores para a produção cultural
brasileira. A vinda da família real para o Rio de Janeiro, devido à fuga das invasões
napoleônicas, também ajudou a abrir novos horizontes ao país. Grande parte das
mudanças políticas, econômicas e culturais realizadas pelo monarca D. João VI visavam
adaptar e consolidar o Brasil como sede do império português (BISCARCI e ROCHA, 2006).
É importante destacar que neste cenário, diferente de uma simples absorção passiva dos
padrões europeus a sociedade brasileira também foi atuante e responsável pelas
operações que moldaram seu ínterim (AGUILAR, 2000).
Dentre as medidas de aparelhamento do Estado podemos destacar a contratação
da Missão Artística Francesa. Esta iniciativa, deslocada da realidade local, trouxe uma
colônia de artistas e artífices com clara orientação neoclássica. Ela visava adequar a
produção de arte colonial ao século das luzes e instituir o ensino oficial das artes. Assim,
foi fundada a Escola Real de Ciências Artes e Ofícios, instituição que originou a Academia
Imperial de Belas Artes (FERNANDES, 2006).
Sob a proteção do imperador e mecenas, D. Pedro II, a Academia Imperial de Belas
Artes seguiu a laica estética neoclássica. Recebeu várias encomendas de pinturas oficiais
que objetivavam representar a nação. Estas pretendiam embasar a autonomia cultural e
a identidade da nação. Assim a instituição adotou uma “produção artística de temática
autóctone, que realçasse as potencialidades naturais do país, o índio como habitante
genuíno e elemento da brasilidade, e os temas históricos nacionais” (BISCARCI e ROCHA,
2006, p.1). A preocupação com a representação nacional e a institucionalização de um
tipo de saber específico, observada no meio artístico também pode ser percebida no
processo que levou a história a se tornar um saber autônomo guiado pelo signo da
cientificidade (GONTIJO, 2011). Assim:

Esse processo teve seu auge na Europa do século XIX, principalmente na


Alemanha e na França”. Sob o signo da cientificidade, a história
conquistou espaço nas universidades e escolas, apoiada pelo prestígio
intelectual das ciências evolutivas, ao mesmo tempo em que sustentava
um tipo de pedagogia muito adaptada aos projetos de Estado-nação que
então se consolidavam.

(…) Enquanto isso, no Brasil a produção historiográfica se desenvolvia


nos institutos históricos, que seguiam o molde das academias ilustradas

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francesas do século XVIII, reunindo letrados com diferentes tipos de


formação, inclusive autodidatas, e um leque muito amplo de interesses.
Tanto aqui quanto na Europa, a disciplinarização da história teve íntimas
relações com os debates sobre o nacional. Foi um meio ao processo de
consolidação do Estada-nação que se viabilizou o projeto de estudar e
escrever a história do país de modo sistemático. Projeto que deveria
delinear um perfil para a nação brasileira, capaz de lhe garantir uma
identidade própria (GUIMARÃES, 1988 p. 5-27)”.

No contexto de formação dos Estados nacionais e criação de suas identidades as


pinturas de paisagem, assim como a produção historiográfica, assumiram significativos
foros de expressão simbólica (AVANCINI, 2010). No Brasil a representação paisagística
passou por um desenvolvimento peculiar. Inicialmente foi associada a fins militares e/ou
econômicos, posteriormente passou por forte influência da ilustração científica dos
pintores viajantes (MIGLIACCIO, 2000). Somente no século XIX a pintura de paisagem
brasileira chegou à chave interpretativa proposta por Winckelmann. Na qual, o autor
mostra como as características e peculiaridades da paisagem foram consideradas a base
constitutiva do caráter moral de um determinado povo. Assim, representar a paisagem
significava exaltar as singularidades da nação (MATTOS, 2010).
Encarar as pinturas de marinha de Edoardo de Martino pelo prisma da ligação
entre clima, paisagem e povo permite associá-las à memória cultural que a Marinha
Brasileira pretendia construir. Isto nos leva supor que a instituição militar se apropriou
do gênero de paisagem histórica, difundido na Academia Imperial de Belas Artes
(MIGLIACCIO, 2000). Tal fato gerou a produção de uma iconografia oficial marcada pela
“paisagística marinha” (OLIVEIRA, 2007) e pode ser associada à necessidade da
instituição em difundir valores morais (ARAÚJO, 2007) capazes de enaltecer as virtudes
dos homens do mar.
De acordo com José Carlos Barreiro (2005) a necessidade de criação de uma
cultura naval, capaz de propagar os valores da instituição, está associada a duas
confrontações básicas: a dos homens mediante os perigos e grandiosidade da natureza. E
a do conflito de classes decorrente da rígida disciplina e estrutura hierárquica. Para o
autor, somente a disciplina e o comportamento homogêneo dos indivíduos poderiam
neutralizar os conflitos e proporcionar as condições de sobrevivência da tripulação.
Neste contexto, a difusão de uma cultura naval foi extremamente importante para
homogeneizar o comportamento dos indivíduos inseridos nesta constante tensão que

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envolvia o mar e os próprios homens. Tais valores não foram divulgados apenas por meio
das pinturas de Edoardo de Martino. Em 1868 a instituição militar legislou sobre a criação
do Museu Naval por meio do Decreto-lei número 4.116 de 14 de março do mesmo ano.
No ano de 1901 o Museu Naval expôs vinte obras, sendo quinze de Edoardo de
Martino (AMZALAK, 1901). Este dado pode ser ligado ao pensamento de Schmitt (2007).
Nele, o autor desconstrói a ideia de imagem como expressão de um significado pré-
existente, para enfatizar a participação imagética na construção desse significado. Tal
associação nos leva a interpretar a exposição de várias obras do artista no Museu Naval,
criado com o intuito de recolher todos os objetos que interessava à Armada Nacional como
indício de um vínculo entre a produção de Edoardo de Martino e um projeto ideológico da
Marinha Brasileira.
Se pensarmos que as obras de Edoardo de Marino foram produzidas em uma
dinâmica relação com a sociedade, devemos levar em conta a possibilidade de elas
expressarem: a intenção do artista, do financiador e de todo o grupo social envolvido em
sua produção (SCHMITT, 2007). Isto nos remete ao contexto do século XIX, onde
“campanhas externas como as que o Brasil travou nas Guerras da Cisplatina e do Paraguai
reforçariam a consolidação da ideologia nacionalista (…) em pleno processo de
constituição, envolvendo a criação de múltiplos imaginários” (BARREIRO, 2005, p.3).
Ao considerarmos a existência de ideias prevalecentes no meio que são absorvidas
quase automaticamente pelos indivíduos em seu ambiente mental, o diálogo entre as
pinturas de Edoardo de Martino, a Criação do Museu Naval e o surgimento de uma
imprensa militar torna-se ainda mais significativo. À medida que o pesquisador aborda,
não só o pensamento privado do artista, mas também o pensamento público e os estados
de espírito coletivo que existiram nesta memória cultural, tem-se um importante
indicativo sobre o modo de pensar desses homens do mar a respeito de si próprios e de
seu universo (BAUMER, 1977).
A existência de determinadas doutrinas ou ideias no seio da força armada também
pode ser observada por meio de outras medidas que foram tomadas pela Marinha. Dentre
essas medidas, que carecem de maior espaço para análise, podemos citar a reforma do
currículo das escolas de formação (DIAS, 1910), a compra das pinturas Batalha Naval do

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Riachuelo e Passagem de Humaitá do renomado pintor Victor Meirelles269, e a edição de


publicações específicas como vários periódicos produzidos por militares e para militares.
Segundo José Miguel Arias Neto (2013) existe uma considerável quantidade de
periódicos do século XIX que foram produzidos e destinados a militares, tanto do Exército
como da Armada. Para o autor, também há uma grande lacuna causada pela falta de
estudos historiográficos que abordem a imprensa militar tematizada como tal. Isto se
deve ao fato dos autores que se dedicaram a essas temáticas ainda não terem se
debruçado sobre esses documentos encarando-os como objetos de análise e/ou fontes
históricas.
Tais periódicos demandam uma abordagem além da descrição textual. Eles
precisam de uma análise específica e aprofundada. O que implica em reflexões acerca de
sua natureza, seu modo de produção, de seu público e de seu universo ideológico. Assim
poderemos compreender os territórios que suas ideias produzem e demarcam, que
ocupam e propagam, visando objetivamente à conquista de poder (ARIAS NETO, 2013).
As lacunas referentes à imprensa militar, apontadas por Arias Neto (2013) tornam-
se ainda maiores se associarmos esta produção às obras de Edoardo de Martino e à
Criação do Museu Naval. Assim, os breves apontamentos deste artigo indicam uma
necessidade de exploramos com maior profundidade a relação entre as diferentes
medidas tomadas pela Marinha Brasileira com o intuito de criar e divulgar sua memória
cultural.

IV
Olhar detalhadamente (DIDI-HUBERMAN, 2013) a produção de Edoardo de
Martino é importante não apenas pela relevância que o mar exerceu nas transformações
da história moderna (BAUMER, 1977), mas também por nos possibilitar compreender
como estas obras ajudaram a fomentar uma imagem associada à memória cultural da
Marinha Brasileira. Assim, as medidas tomadas pela força armada precisam ser olhadas

269 A encomenda e compra das pinturas de Victor Meirelles aparece no processo número
06.33 do Museu Histórico Nacional, disponível:
http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=MHN&pasta=Processos%20de
%20Entrada%20de%20Acervo&pesq=06.31.

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em conjunto das pinturas desse artista, já que se constituem em importantes indícios de


criação de uma memória cultural da instituição.

Referências bibliográficas.

AMBRIZZI, Miguel Luiz. O olhar distante e o próximo – a produção dos artistas viajantes.
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ARAÚJO, Ulisses Ferreira de; PUIG, Josep Maria; ARANTES, Valeria Amorin Arantes (org.).
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UMA HISTÓRIA DO COTIDIANO E DO PODER NA CIDADE DE MANAUS


NA ÓTICA DE UM SANITARISTA: DR. SAMUEL UCHÔA E O USO DE SEUS
RELATÓRIOS MÉDICOS (1922-1924)

Mariana Mariano de Oliveira

Ao analisar o Relatório apresentado, pelo Dr. Samuel Uchôa (1922- 1924),


vinculado ao Departamento Nacional de Saúde Pública (DSNP), foi possível construir esta
comunicação com o objetivo de abordar a ótica do médico sanitarista sobre o cotidiano e
o poder médico em Manaus entre 1922 e 1924. Em consonância com as diretrizes do
Estado, Uchôa atuou em um contexto sócio histórico de consolidação do pensamento
científico e das tecnologias na área da medicina observando as informações que deles
foram extraídas sobre a sífilis e as moléstias venéreas, bem como a eugenia; que integrava
o Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural do Estado do Amazonas (SSPREA).
Esta comunicação faz parte do trabalho de pesquisa que está sendo desenvolvida
para a dissertação intitulada “Uma história da sífilis na cidade de Manaus: tratamentos,
eugenia e prostituição (1922 a 1924)”, cujo recorte temporal se justifica devido ao uso
dos Relatórios Médicos do Dr. Samuel Uchôa, que integrou o Serviço de Saneamento e
Profilaxia Rural do Estado do Amazonas (SSPREA), vinculado ao Departamento Nacional
de Saúde Pública (DSNP), como fonte primária. Além disso, outras fontes foram utilizadas
para cruzar informações com estes Relatórios que serão citadas ao longo desta exposição.
Não se trata aqui de fazer uma biografia profunda sobre o Dr. Samuel Uchôa. O
interesse é conhecer sua trajetória e possibilitar a compreensão de sua atuação em um
contexto sócio histórico de consolidação do pensamento científico e das tecnologias na
área da medicina observando as informações que deles foram extraídas sobre a sífilis bem
como o discurso médico sobre o alvo vinculado a esta doença: a prostituta. Bem como as
ideias sobre a eugenia, propagada pelos médicos na época. Estes Relatórios do Dr. Uchôa
foram escolhidos devido à riqueza de informações acerca do cotidiano da cidade de
Manaus nos anos de 1922 a 1924, como um ponto de partida para uma abordagem mais


Mestranda em História pelo PPGH – Unisinos.

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ampla, buscando as complexidades, especificidades e diferentes formas de relações


dentro do ambiente social na qual este agente histórico atuou.
Conforme consulta na revista Amazonas Médico, de 1922, o Dr. Samuel Felippe
Domingues Uchôa, filho do Dr. Samuel Felippe de Souza Uchôa, neto do Dr. Domingues da
Silva, o primeiro médico cearense formado na universidade de Montpellier, iniciou os seus
primeiros estudo na cidade de Fortaleza, sua terra natal, nos estabelecimentos de ensino
Parthenon Cearense e Instituto de Humanidades.
Matriculou-se, em 1897, no Liceu do Ceará, fazendo seu preparatório até 1899,
quando partiu para o Rio de Janeiro, terminando o seu curso de humanidades em São
Paulo. Em 1900, ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, concluindo em
1905.
Fez parte, em 1904, da grande reforma Oswaldo Cruz, como auxiliar acadêmico da
campanha da febre amarela, posto esse que deixou nas vésperas de sua formatura. A esse
tempo exercia o cargo de interno da associação dos Empregados do Comercio do Rio de
Janeiro, na clínica do prof. Werneck Machado. No seu 5º ano na academia, conquistou o
lugar de interno do Hospital da Marinha, por concurso, obtendo a primeira classificação e
concorrendo com os distintos colegas drs. Jorge de Gouvêa, Almeida Pires e Octavio Rôxo.
Durante o seu 6° ano de academia ocupou o lugar de interno do Hospital de Beribericos,
em Copacabana, em que escreveu sua tese e tendo como professores da banca
examinadora Miguel Couto, Roca Faria, Henrique Rôxo e Nascimento Silva, elogios ao seu
trabalho, que dizia respeito a um ponto interessante de terapêutica com o título “Do valor
da Atropina na Oclusão” (1907). Em Junho do mesmo ano foi nomeado pelo Barão do Rio
Branco medico da comissão de limites do Brasil, no Território Neutralisado do Alto Juruá
(Rio Breu).
Nessa comissão serviu durante três anos gratuitamente e em seguida servindo à
comissão peruana. Em fins de 1910, regressou ao Ceará logo após para Senna Madureira,
Departamento do Alto Purus, em companhia do Dr. Godofredo Maciel, prefeito do
Departamento. No ano seguinte (1911) exerceu duas importantes comissões: ficou
incumbido pelo governo federal para fazer o recenciamento do Purús, e comissionado
pelo prefeito para debelar a varíola, no rio Yaco, afluente do Purus, apresentando por essa
ocasião substancioso relatório. Após exercer a clínica, durante algum tempo, em Senna
Madureira, e todo o Rio Yaco, partiu para o Velho Mundo, em 1912, numa viagem de

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estudos, regressando ao Rio de Janeiro, em Setembro de 1914, após um mês de conflito


europeu, que o surpreendera em Bad Toz, cidade próxima a Munique, na Alemanha.
Durante a sua estadia na Europa, frequentou os melhores centros de estudo, tendo
permanecido durante 10 meses em Berlim, como aluno matriculado da Real Universidade.
Chegado ao Rio, instalou o seu consultório exercendo, por espaço de 4 anos a clínica, sem
ter ocupado nenhuma função pública.
Fez parte da Missão Médica, enviada à França, durante a guerra europeia. Ao
chegar a Paris fez seu estágio, frequentando as diversas clinicas. No Hospital S. Nicolau,
incumbiu-se da assistência dos doentes queimados pelos gases asfixiantes. Porém, dias
após a inauguração do Hospital brasileiro de Vaugirard, em Paris, surgiram casos
fulminantes de gripe em diversas províncias do sul da França. O governo francês, pela
carência de profissionais, solicitou ao chefe da Missão a colaboração brasileira para essas
populações que as doenças dizimavam.
Organizadas as equipes, Samuel Uchôa seguiu para Montpellier tendo como chefe
o prof. Parreiras Horta. Ahi chegando, foi-lhe confiada a direção de 100 doentes no
Hospital de Béziers, na cidade de mesmo nome. Regressou ao país trazendo importantes
referencias do seu trabalho, não só do General Medico Comandante da Região, como do
Diretor do Hospital, Dr. Arrufat. Foi condecorado pelo governo francês e também pelo
Brasil com uma condecoração por Decreto do Governo da República.
O dr. Nabuco de Gouvêa, chefe da Missão Médica Brasileira, fez elogios ao Dr.
Samuel. Nomeado para a “Rockfeller Foundation”, em Agosto de 1919, fez o seu estágio
em o posto médico em Atibaia, Estado de São Paulo, donde saiu um mês após para instalar
e dirigir os mesmos serviços no Município de São Simão, no mesmo Estado.
Serviu em seguida nas cidades de Natividade e Conservatoria, no Estado do Rio. A
Comissão Rockfeller, tendo necessidade de incentivar nos seus postos a campanha mista-
malária e uncinariose- no Município de Maricá, visceralmente palustre, foi designado para
o importante cargo que redundava numa alta confiança de seus chefes. Sendo que o
Diretor Geral da “Rockfeller Foundation”, em Nova York, o dr. Whikilive Rose, em viagem
ao Brasil, fez elogios capacidade administrativa e competência do chefe do posto de
Maricá.
Após seis meses foi nomeado Diretor Estadual do Estado do Rio, preterindo 16
colegas alguns deles com dois anos de serviço. A 11 de Junho de 1920, menos um ano de

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comissão assumiu concomitantemente a direção do Estado de Minas Gerais. No fim desse


ano deixou a direção do E. de Minas, por se tornar difícil a sua fiscalização, tendo lhe sido
confiado em vez desse Estado a do Espirito Santo. Em outubro de 1921, realizou-se no Rio
de Janeiro um Congresso dos Diretores da “Fundação Rockffeler” no Brasil, ao qual
compareceram seis americanos e três brasileiros.
Com a intensificação dos serviços de saneamento e profilaxia rural no Brasil, houve
a necessidade de uniformização de todos os serviços. Nessas condições por proposta do
Diretor do Saneamento, foi nomeado em Março de 1921, chefe do distrito da Diretoria de
Saneamento, acumulando as funções de Diretor da “Rockffeler” nos dois Estados
referidos: Rio de Janeiro e Espirito Santo.
O Dr. Samuel Uchôa foi membro da S. M. C 270do Amazonas. Conforme
Schweickardt, Samuel Uchôa foi nomeado para chefiar os trabalhos em Manaus porque já
acumulava experiência em campanhas de profilaxia em diferentes Estados, inclusive no
Amazonas. O médico Samuel Uchoa foi convidado para chefiar e estruturar o Serviço no
Amazonas, permanecendo no cargo até 1927.
Conforme aponta Schweickardt, o perfil administrativo de Uchoa, valorizava os aspectos
da disciplina, do controle e da avaliação dos profissionais, assim como os critérios de
promoção e de atribuições dos contratados (UCHÔA, 1921). A estrutura auxiliaria o
médico, poucos meses depois, a organizar os postos rurais e itinerantes no Amazonas, e
pode ser resumida em uma frase: a “questão da disciplina é o grande segredo do nosso
trunfo administrativo” (idem, p. 5).
Talvez, por esta postura, Samuel foi convidado (5 de Novembro de 1921) pelo
Diretor do Saneamento do Departamento Nacional de Saúde Pública, para assumir a
chefia da Profilaxia Rural desse Estado, esse aspecto que irá se destacar com os desafios
da extensa região amazônica e pelos recursos limitados para um trabalho que poderia ser
caracterizado como “homérico”. O Serviço Sanitário do Estado foi reativado em 1926, e
teve como diretor o médico Samuel Uchôa, que acumulou a direção das duas instituições
(SOUZA, 1927, p. 128).
Samuel Uchôa montou quase toda a sua equipe com médicos locais, “em
homenagem ao meio e mesmo para ter por auxiliares homens acostumados a lidar com as

270 Não se sabe e não estava descrito na revista Amazonas Médico a descrição destas siglas.

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surpresas que as enfermidades apresentam nas zonas tropicais” (AMAZONAS MÉDICO,


1922, p. 29). Somente os médicos Luiz Paulino de Mello e Manoel Joaquim Cavalcanti de
Albuquerque acompanharam o chefe do Serviço, sendo que esse já conhecia o Amazonas.
O médico Albuquerque foi indicado para chefiar o Distrito de Manaus. Médicos,
enfermeiros e técnicos foram sendo contratados com o crescimento e demanda dos
serviços que chegava ao Escritório Central. Samuel Uchôa, ao incorporar médicos e
profissionais locais, reconhecia que havia um saber médico acumulado e uma tradição, no
que se referia ao combate às endemias.
O médico Samuel Uchôa também foi uma figura importante na ciência médica da
região, porque enfrentou o desafio de sanear a capital e o interior do Amazonas. O Serviço
de Saneamento e Profilaxia Rural do Amazonas, chefiado por Uchôa, criou uma rede de
postos itinerantes e rurais, utilizando da criatividade e de estratégias inovadoras para
disponibilizar os serviços de saúde nos lugares mais distantes do imenso Estado. As ações
de saneamento eram motivadas pelas ideias do movimento sanitarista, que pregava a
incorporação dos sertões através de uma política de saúde. Nesse sentido, o sanitarismo
regional também incorporou às suas ações um ideal nacionalista e contribuiu para a
incorporação da região no projeto nacional que estava em curso na primeira república.
As ações do Saneamento e Profilaxia Rural representaram um evento político de
saúde pública que trouxe inovações e adaptações das técnicas do serviço de saúde. O
Serviço foi uma ação coordenada e sistemática, pelo período de 10 anos, que conseguiu
atrair instituições, como as missões católicas, que atuavam no Estado, e os municípios do
interior para participarem dessa “missão”. Isso foi colocado em prática no Amazonas, na
década de 1920, através do Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural, que estava inserido
no movimento pelo saneamento do Brasil, que teve importante papel na reconstrução da
identidade do país, a partir da doença (LIMA & HOCHMAN, 2004).
Sobre os relatórios enviados por Samuel Uchôa ao Diretor Geral do Serviço de
Saneamento Rural são fontes importantes para entender as atividades na Amazônia
Ocidental.
O Dr. Samuel Uchôa foi responsável pelo Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural,
construiu uma rede de serviços, nunca antes vista na região, mostrando a possibilidade
de se aplicar uma política de saúde pública numa região, com características tão
peculiares e complexas como o vale amazônico. A diferença fundamental de outras

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“comissões de saneamento” é que esta não ficou restrita à capital do Estado, mas se
estruturou em uma rede de postos rurais e itinerantes.
Vale ressaltar que no Amazonas seguindo as prerrogativas já adotadas em outros pontos
do país, somente na década de 1920 os poderes públicos, começaram a entrar na
campanha sistemática contra as doenças venéreas através da estrutura criada com o
Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural do Estado do Amazonas obedecendo às
determinações das diretrizes nacionais do Departamento Nacional de Saúde Pública –
DNSP – com sede no Rio de Janeiro.

Dr. Samuel Uchôa e seu olhar sobre a “pequena suburra”

Segundo os relatórios médicos consultados do Dr. Samuel Uchôa, Manaus por ser
uma cidade cosmopolita devido a economia adquirida com a goma elástica e os atrativos
de enriquecimento, fez com que surgisse o seguinte cenário: o desenvolvimento da cidade
trouxe as doenças, devido à falta de estrutura para receber um grande contingente
sobretudo de migrantes desempregados propiciando pobreza somada à falta de higiene,
aglomeração populacional e áreas não apropriadas com falta de saneamento.
Neste contexto, para implantar os trabalhos na luta anti venérea em Manaus,
Samuel Uchôa inaugura em 21 de Abril de 1922, o Dispensário Oswaldo Cruz com o
objetivo de dar assistência aos que sofriam dos males venéreos e da pele.
A “crise amazônica”, segundo Uchôa, trouxe uma outra consequência, além da
econômica, a substituição das “mercadoras estrangeiras, mais ou menos conscientes das
necessidades da higiene, substituindo-as por desgraçadas paupérrimas e ignorantes, que
a fome e a nudez se forjam na escuridão” (UCHÔA, 1922b, p. 74). A preocupação dos
sanitaristas com a prostituição era pela disseminação da sífilis, o seu controle e as
consequências para as pessoas. A profilaxia individual, social e sanitária era condição para
o controle da doença, diminuindo os riscos para a saúde pública. A prostituição estava
sendo tratada não pelo seu aspecto criminal, pois se sabia que, na prática, não havia como
eliminar a cultura da prostituição, até porque ela fazia parte de todos os estratos sociais.
O Serviço adotou os princípios da política francesa, que era: “fiscalizar a
prostituição, tratando as meretrizes em que se manifestar a sífilis”. A abordagem do
problema das doenças não ficava somente no aspecto clínico e nos aspectos terapêuticos,

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mas a discussão passava por princípios de uma medicina social, em que os aspectos da
vida cultural, econômica e política também precisavam ser considerados. O tratamento
das doenças venéreas obedecia ao programa do Departamento Nacional de Saúde
chamado “open door”: “Educação, propaganda, tratamento gratuito, pesquisas científicas
rigorosas, boas estatísticas, tudo realizado com o máximo respeito ao doente” (MATTA,
1922b, p. 314).
O Dr. Uchôa tinha uma preocupação em eliminar as “pseudo-curas”, no tratamento
das doenças venéreas, pois a população fazia uso da chamada “botica da floresta”, e dos
medicamentos preparados por curandeiros populares. No combate à doença, os métodos
de cura (remédios e terapêutica) utilizados assim como as demais doenças venéreas eram
temidos e muitas vezes causavam malefícios físicos aos pacientes tão nocivos quanto o
problema da exposição pública por ser portador de uma doença venérea. Segundo
Carrara, “a vergonha da doença dificultava também a procura do médico ou, o que parecia
ser a mesma coisa, impedia que o doente adotasse uma “atitude racional” ante a doença.”
(CARRARA, 1996; 135). Portanto, a vergonha agia muitas vezes como aliada da
propagação da doença visto que era um forte freio que impossibilitava ou dificultava que
o (a) enfermo (a) buscasse um tratamento adequado para o mal que o (a) afligia. Essa
pressão se tornava ainda maior se as doentes fossem as prostitutas.
O movimento entre Manaus e importantes centros, como Liverpool, Hamburgo,
New York, Paris, também permitiu que médicos circulassem e tivessem contato com as
novidades da ciência. As intervenções profiláticas realizadas na capital amazonense
refletem as pesquisas científicas em processo tanto na cidade como em outras partes do
mundo, principalmente em relação aos mecanismos de transmissão das doenças
venéreas. Dessa forma, os médicos do Amazonas não somente acompanham as pesquisas
da área, como aplicavam os seus conhecimentos para o combate à sífilis. Nesse sentido,
Manaus estava no centro dos debates que se realizavam em torno do mal venéreo.
Foi verificado no “Livro de registro e fiscalização do meretrício em Manaus de 1925
a 1934 do Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural do Amazonas”, que a grande maioria
das mulheres cadastradas nele eram casadas ou viúvas, analfabetas; talvez isso seja
explicado porque muitas ajudavam na economia em casa com seus maridos ou
companheiros como aponta segundo Edneia Mascarenhas, preservação da moral e da
ordem públicas é a meta perseguida nesse novo contexto. A prostituição era um problema

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que preocupava os setores dirigentes naquele momento. O cuidado principal era com uma
maior vigilância sobre as prostitutas, a fim de que não viessem a ofender a moral pública.
Eram mulheres de todas as nacionalidades que para cá se deslocavam, atraídas pelo fausto
da cidade (MASCARENHAS, 2007). Várias eram as denominações pejorativas para as
mulheres que exerciam o oficio da prostituição- “decaídas”, “marafonas”, “rameiras”,
“horizontais”, “cocottes” , “polacas”, “cuínas”, “bacantes” e “ratuínas”- , reflexos dos
confusos sentimentos que a prostituição despertava na mente de homens e mulheres.
Assim como nos outros segmentos sociais, entre as prostitutas havia uma marca da
hierarquia social. A célebre imagem da prostituta em luxuosos cabarés, mantida pelos
ricos seringuais, só era real a um reduzido número de mulheres. Em Manaus a prostituição
mais comum era aquela ‘de rua’, de maior visibilidade e vulnerabilidade, alvo constante
de ataques por parte da imprensa local e das ações governamentais destinadas a coibi-la.(
DOS SANTOS, 2007).
Havia, no caso das meretrizes europeias, um forte componente etnorracial:
mulheres alvas e com sotaques estranhos foram logo associadas a um dos signos de status
dos poucos que enriqueceram com a borracha. Podiam vestir-se conforme a última moda
de Paris, e eram várias as casas comerciais especializadas na importação de roupas e
demais artigos de luxo do ‘mundo civilizado’. É o caso tradicional Au Bom Marché, loja
roupas para senhoras, existente até os dias atuais, na avenida Sete de Setembro (antiga
rua Municipal), não por acaso batizada com um nome em francês para combinar com a
ideia de elegância que a loja queria transmitir. A partir desse culto instituído à França, não
é difícil imaginar como a companhia de uma cocotte era valorizada (DOS SANTOS, 2007).
A “crise amazônica”, segundo Uchôa, trouxe uma outra consequência além da economia,
a substituição das “mercadoras estrangeiras, mais ou menos conscientes das
necessidades da higiene, substituindo-as por desgraçadas paupérrimas e ignorantes, que
a fome e a nudez se forjam na escuridão (Uchoa, 1922b, p.74).
Em Manaus o discurso sobre a prostituição vinha sempre associado à transmissão
de uma série de moléstias, e a intervenção do governo era propagada como uma forma de
proteger a saúde do povo e manter a moralidade. As opiniões podiam divergir em alguns
pontos, mas de modo geral a tendência era a opção pela manutenção da situação sem a
ingerência do Estado. Conforme aponta Gómez sobre modernidade como “projeto” que se
refere à existência de uma instancia central, que é entendida como a esfera em que todos

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os interesses encontrados na sociedade podem chegar a uma “síntese”, metas; ou seja, o


Estado moderno não somente adquire o monopólio da violência, mas que usa dela para
“dirigir” racionalmente as atividades dos cidadãos, de acordo com os critérios.
Exemplos dessa concepção estavam na legislação, a exemplo do enquadramento
do chamado ‘atentado ao pudor’ no Código Penal Brasileiro de 1890 (decreto n. 847, 11
out. 1890): tido como modernizador, constituiu uma estratégia para a perseguição das
meretrizes e da cultura social da qual eram parte. Outra forma de criminalizar a
prostituição foi a sua equiparação à vadiagem, outra categoria do Código Penal. Para as
meretrizes e mesmo para as demais mulheres do povo, contudo, a ação policial de
combate à vadiagem não passou de uma forma de reprimir suas existências. Alegando que
nas ruas onde se explorava o meretrício as decaídas exibiam-se escandalosamente,
ofendendo o poder público, falando palavras obscenas ou provocando debochamente os
transeuntes, as autoridades policiais procuravam enquadrar esses atos como crimes (DOS
SANTOS, 2007).
Nas palavras de Samuel Uchôa, em seu relatório sobre o saneamento e profilaxia
no estado do Amazonas sobre a fiscalização e localização do meretrício:

O isolamento das meretrizes em Manáos a determinado bairro deu-se


bem pouco tempo. Abusando de uma liberdade perniciosa, si é que a um
abuso se aplica o nome de liberdade, várias prostitutas vinham encravar-
se em ruas de famílias, causando os mais justificados vexames. Residiam
comumente em uma das melhores ruas da cidade,- a estrada
Epaminondas. O zelo policial levou-as felizmente a um perímetro certo,
compreendendo as ruas Independência, Itamaracá, parte da Lobo de
Almada, Henrique Antony e Joaquim Sarmento. Essa é a pequena suburra
de Manáos, acoitando grandes enfermidades. (UCHÔA, 1922; p. 72-73).

Como se vê, em Manaus o discurso sobre a prostituição vinha sempre associado à


transmissão de uma série de moléstias, e a intervenção do governo era propagada como
uma forma de proteger a saúde do povo e manter a moralidade. Uma das questões mais
presentes no processo de exaltação da ciência médica e nos discursos sobre o corpo,
gênero e sexualidade era a ‘ameaça venérea’ que preocupava os gestores públicos das
áreas urbanas: a sífilis. Que emergiu com as outras doenças veneras como uma ameaça
sanitária, individual e coletiva percebida pelos governos e profissionais da saúde (DOS
SANTOS, 2007: 83).

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Segundo George Vigarello, “os dispensários eram ‘vigias’ e graças a eles, que foram
elaborados discursos e práticas que confundem proteção da saúde com controle moral e
social, pesquisa de bacilos e estigmatização dos enfermos.” (VIGARELLO,2006;52). Nas
fontes encontradas é bem explícito tal passagem, Samuel Uchôa (chefe do Serviço de
Saneamento e Profilaxia Rural do estado do Amazonas) descrevia o seguinte: “os
dispensários se tornarão desse modo o eixo de todo o mecanismo da assistência, da
profilaxia individual e da coletividade, em seus aspectos múltiplo, produzindo a confiança
e a coordenação metódica e eficiente nos serviço em proveito do povo e da eugenesia”
(Relatório apresentado ao professor Dr. Eduardo Rabelo, Inspetor da Profilaxia da Lepra
e Doenças Venéreas, pelo Dr. Samuel Uchoa- Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas;
1923: 214).
Os médicos-cientistas sociais não somente aplicavam as leis, mas também eram os
responsáveis por sua criação. Além disso, foram planejadores e criadores de instituições
(CORRÊA, 1998). Podem-se atribuir-se essas mesmas características aos profissionais
médicos no Amazonas, pois foram ativos na organização da cidade, na elaboração de
políticas públicas de saúde e saneamento, na criação de instituições e na administração
da saúde pública.
Relacionar os nomes com as suas ações ajuda a dar sentido ao presente, e merece
um trabalho mais extenso e específico; mas, por ora, são apresentados como participantes
do grande cenário amazônico, cujo enredo tem a sífilis ligada à prostituição. Evidenciamos
a área médico-científica por razões de trabalho, mas podemos dizer que este ator estava
envolvido nos projetos de migração, extrativismo, economia da borracha, moradia e
criação de instituições. A cidade de Manaus era o palco onde se desenrolavam estas ações,
tendo como contexto a riqueza deixada pela economia da borracha, que mesmo com a sua
crise a imagem da belle époque permaneceu como um símbolo marcante na história da
cidade e de sua intelectualidade.
A propaganda e a educação higiênica estavam inseridas no discurso mais amplo do
movimento de saneamento. A educação higiênica era entendida como um dos caminhos
para o “melhoramento da raça”, pois a condição de doente e de atrasado era um
condicionante histórico e social, mais do que biológico, e que poderia ser superado pela
educação (HOCHMAN & LIMA, 2004, p. 502).

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O Saneamento Rural conduziu a política de saúde do Estado, mas teve o mérito de


incorporar os médicos, técnicos e religiosos que já atuavam na região, aproveitando o
saber acumulado sobre os problemas sanitários. Portanto, podemos concluir que mesmo
o Serviço sendo federal, a coordenação de Samuel Uchoa teve a liberdade de criar uma
estrutura que refletia a realidade do Estado e incorporar pessoas e instituições locais.

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HISTÓRIA NOVA DO BRASIL, UM PROJETO DE REFORMA NA


HISTORIOGRAFIA NACIONAL

Tiago Conte

Entre 1963 e 1964, um grupo de sete autores271, reunidos no Instituto Superior de


Estudos Brasileiros (ISEB), elaborou uma coleção de livros didáticos intitulada História
Nova do Brasil (doravante HNB). Esse projeto surgiu através de um vínculo entre o ISEB
e a Campanha de Assistência ao Estudante (Cases), órgão vinculado ao Ministério da
Educação e Cultura (MEC) que encomendou e se encarregou de distribuir os volumes pelo
país. O plano original da obra previa dez monografias, abarcando desde o descobrimento
do Brasil até o período florianista. Com foco nos professores de ensino secundário, a HNB
continha críticas ao ensino de história do Brasil ministrado no período, assim como aos
livros didáticos da disciplina. Além das dimensões didáticas e historiográficas da obra, a
conjuntura política que o Brasil atravessava realçou o caráter crítico da HNB, assim como
as reações que se seguiram. Com o golpe de 1964, a coleção foi apreendida e seus autores
foram presos, sendo que alguns depois se exilaram. No dizer de um autor, “Nunca, na
História do Brasil, um projeto ou confecção de livros didáticos para o ensino médio
provocara tamanho terror e represálias a seus autores” (COSTA PINTO, 2006, p.343).
Contudo, como explicar que uma série de livros didáticos tenha alcançado tamanha
repercussão naquele período?
Numa primeira análise, os significados da HNB remetem ao contexto no qual ela
foi produzida e lançada, na fase final do governo de João Goulart. Nessa época, a principal
pauta levantada pelo governo e seus apoiadores eram as reformas de base, que abrangiam
desde reforma agrária até as reformas política e universitária. No campo da cultura,
iniciativas como o método de alfabetização criado por Paulo Freire e as atividades do
Centro Popular de Cultura (CPC), sem falar nos cursos e projetos editoriais promovidos


Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, bolsista
Capes/PROSUC.
271 Joel Rufino dos Santos, Maurício Martins de Mello, Pedro de Alcântara Figueira, Pedro Celso Uchôa

Cavalcanti Neto, Rubem César Fernandes, Francisco Falcon e Nelson Werneck Sodré. Apesar de ter escrito
o primeiro volume da série, o nome de Francisco Falcon não foi publicado na relação de autores da HNB,
segundo Pedro Cavalcanti Neto (SANTOS et al., 1993, p.53).

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pelo ISEB, eram vistos como manifestações das reformas em curso: “Desafiar as chamadas
“estruturas arcaicas” estava na ordem do dia [...] O momento, portanto, também se
mostrava oportuno para ensaiar uma reforma no ensino da história pátria” (GUIMARÃES
e LEONZO, 2003, p.236-237). Nesse sentido, a HNB representava um projete de reforma
no ensino de história do Brasil, conforme Sueli Mendonça:
O clima político da época não permitia somente a crítica ao que se julgava
errado. Era necessário, também, buscar a realização das reformas sociais.
Portanto, não bastava questionar e demonstrar a péssima qualidade dos
livros didáticos; algo teria de ser oferecido como alternativa ao retrógado.
[...] Produzir um material didático alternativo à historiografia oficial [...]
passou a ser a tarefa central do grupo, ou seja, elaborar uma nova análise
da História do Brasil (MENDONÇA, 2006, p.337-338).

No caso da HNB, a trama institucional que permitiu sua elaboração remete a pelo
menos três locais: o ISEB, a Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) do Rio de Janeiro e o
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sem um levantamento essas relações, torna-se
impossível compreender os significados atribuídos à HNB no momento de seu
lançamento, que lhe conferiram uma dimensão política talvez imprevista por seus
autores.
Já se disse que a coleção foi composta no ISEB, mas a influência do instituto não se
resumiu a isso. Criado em 1955, o ISEB era um centro de estudos que visava formular uma
teoria nacional-desenvolvimentista para o Brasil, mobilizando para tanto especialmente
as ciências sociais (TOLEDO, 1977, p.32). Essa preocupação com um conhecimento
relacionado à sociedade brasileira levou o ISEB a se engajar nas questões políticas do
momento. Neste sentido, os isebianos promoviam cursos em sindicatos e outras
associações, escreviam artigos na imprensa e publicavam livros destinados ao público em
geral (LOURENÇO, 2008, p.390-391). Sobretudo a partir de 1961, a influência das
esquerdas se tornou mais marcante no instituto, que passou a defender a implantação de
pautas como as reformas de base. A posição em favor de um saber engajado e do
nacionalismo, por sua vez, foi expressa pelos próprios autores da HNB em sua introdução:
O que mais os repugna é o estudo desinteressado, a pesquisa atraente
mas inútil, a indagação do passado sem a resposta do presente. O que
mais temem é que suas linhas não sirvam ao nosso povo, na
democratização de nossa sociedade e na exploração nacionalista das
nossas riquezas (SANTOS et al., 1965, v.4, p.4).

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As discussões em torno do nacionalismo levaram a transformações e rompimentos


entre os isebianos. Enquanto para intelectuais como Hélio Jaguaribe ele adquiria um
caráter instrumental, de criar instituições capazes de planejar o desenvolvimento do país,
para autores como Álvaro Vieira Pinto e Nelson Werneck Sodré o nacionalismo se revestiu
de um “caráter messiânico”: “A missão histórica do nacionalismo seria a de vencer a
antinação, produzir o desenvolvimento, vencer as forças da espoliação das massas
trabalhadoras, vencer as disparidades regionais, permitir a integração nacional”
(OLIVEIRA, 2001, p.151). Não por acaso, na época em que a HNB foi elaborada Hélio
Jaguaribe havia se desligado do ISEB, enquanto Vieira Pinto e Sodré eram os autores de
maior destaque ligados ao instituto.
Contudo, ainda que a HNB tenha sido escrita no ISEB e estivesse engajada nos
debates do momento, ela não pode ser compreendida apenas como um produto daquele
local. Tão importante quanto foi a Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), onde todos os
autores, com exceção de Sodré, se formaram em História. Pois ainda que Sodré fosse o
nome mais destacado, a HNB foi elaborada por meio de um trabalho coletivo em todas as
etapas:
Havia um relator, escolhido por todos e variável, que elaborava um texto
preparatório. Cada um estudava esse texto e anotava, segundo as
pesquisas que fizera enquanto o relator elaborava parceladamente o
texto básico. Depois, reuniam-se todos, [...] discutiam o texto proposto e
as alterações que cada um apresentava, resultantes da leitura do texto
definitivo. Só então, [...] era elaborado o texto definitivo, que era ainda
revisto e objeto de leitura e nova discussão (SANTOS et al., 1993, p.33).

Segundo Pedro Cavalcanti Neto, essa elaboração dos textos era uma forma de
evitar que o grupo se tornasse um “papel carbono” de Sodré, meros reprodutores de suas
ideias (SANTOS et al., 1993, p.59). E tal preocupação era expressa pelo próprio Sodré, que
fez questão de ter seu nome posto em conjunto com os demais autores, sem maior
destaque. Em vez de ser uma coletânea de textos compostos por vários autores
separadamente, por esse método a obra adquiriu um caráter coletivo. Dessa forma, a
relevância da FNFi enquanto local de formação profissional da maioria de seus autores é
um dado que não deve ser subestimado ao se analisar a realização da HNB.
Tal relevância, semelhante ao que se observou no caso do ISEB, remete a um
cenário permeado de projetos e concepções específicos. Reunidos no Centro de Estudos
de História da faculdade, era ali onde se encontravam “não só os maiores responsáveis

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pela realização do projeto da História Nova, mas também o ambiente gerador das
inquietações que as reformas do projeto impunham” (COSTA PINTO, 2006, p.345). Um
diferencial da faculdade em relação à maioria das universidades brasileiras da época era
a existência de uma revista acadêmica dirigida pelos alunos, o Boletim de História. Nessa
publicação, o corpo discente defendia mudanças tanto no ensino quanto na escrita da
história brasileira, que deveria estar engajada nas questões do presente:

Sua intervenção social se dá no momento em que constrói uma explicação


que traga um entendimento sobre os impasses vividos pela sociedade em
que está inserido. A explicação histórica cumpre aqui uma função de
aliada da reforma social, na medida em que pretende convencer seus
ouvintes da necessidade daquelas para a superação dos entraves ao
desenvolvimento do país (PEREIRA, 1998, p.42).

A relação entre os programas defendidos acima com a HNB é relevante, pois cinco
dos sete autores da coleção participaram de números do Boletim272. Em sentido
semelhante, Pedro Cavalcanti Neto chegou a afirmar que a HNB foi uma consequência da
revista, um projeto de história militante para além dos limites da faculdade (idem p.54;
p.91). E nesse mesmo trecho é possível notar um discurso em favor do desenvolvimento
e das reformas que remete tanto aos isebianos quanto às plataformas do governo Goulart.
Neste mesmo contexto, a defesa por reformas no ensino e na escrita da história não
foram reivindicações gratuitas. Afinal, na FNFi a disciplina de história do Brasil era
comandada por Hélio Viana, catedrático que impedia quaisquer mudanças no ensino ou
nos conteúdos ministrados em aula. Por consequência, a formação dos alunos nesta área
era bastante precária, conforme os autores da HNB (SANTOS et al., 1993, p.16-17; p.52-
53). Isso em parte explica o porquê da HNB ter sido elaborada no ISEB, apesar da maioria
dos autores serem egressos da FNFi. Pois diante dos entraves impostos à pesquisa, as
propostas de inovação na área foram deslocadas para fora do ambiente acadêmico. Essas
diferenças se estenderam até ao uso de obras de referência na HNB, pois autores como
Caio Prado Jr., Celso Furtado e Nelson Werneck Sodré não constavam nas ementas dos
cursos universitários da época (PEREIRA, 1998, p.95; FERREIRA, 2013, p.378). Portanto,
a realização de uma historiografia com outros aportes teóricos e abordagens estava
vedada na FNFi, embora estivesse permeada de projetos surgidos naquele local.

272 Os únicos
autores da HNB sem publicações no Boletim de História foram Nelson Werneck Sodré (que não
tinha formação acadêmica em história) e Maurício Martins de Mello .

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Por seu turno, avaliar a influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) sobre a
HNB é algo um tanto mais complexo, pois a ilegalidade imposta ao partido impedia a livre
circulação de suas ideias. Sabe-se, porém, que no começo dos anos 1960 o PCB se
encontrava num período de revisão de práticas e princípios suscitado pela divulgação dos
crimes cometidos durante o stalinismo. O impacto do relatório divulgado no XX Congresso
do Partido Comunista da União Soviética em 1956 causou debates e mudanças na atuação
do PCB. Isso culminou na “Declaração de Março de 1958”, na qual o partido passou a
defender a participação no regime democrático, procurando formar uma frente com
outros grupos e partidos em favor de posições nacionalistas (SEGATTO, p.79, 1995). Mais
uma vez, nota-se que o nacionalismo serviu de causa e orientação para a ação política,
num ideário até certo ponto comum com as instituições analisadas anteriormente.
No entanto, a relação do PCB com a HNB também remete às trajetórias de seus
autores. Em depoimento, Joel Rufino dos Santos comenta como foi chamado a participar
do projeto: “Desse jeito, quando Nelson Werneck Sodré pediu ao Centro de Estudos de
História um assistente para sua cadeira no ISEB e o Partido, que o controlava (o Centro)
reuniu-se para votar a indicação, meu nome ganhou por pouco” (SANTOS et al., 1993,
p.15). Nessa declaração, nota-se que o PCB era influente no meio estudantil, mas nem
todos tinham o mesmo status dentro do partido273. E houve mesmo resistências internas
quanto à relevância de se elaborar uma nova história do Brasil, segundo Rubem César
Fernandes:
O pessoal favorável à linha chinesa é radicalmente contra. Eles acham que
não é hora de ficar estudando história, escrevendo história. [...] A teoria
está basicamente pronta, está feita, o problema é aplicá-la no Brasil. E,
para isso, não é no estudo, mas na ação (MENDONÇA, 1990, p.31-32).

Portanto, embora as relações entre o PCB e a HNB efetivamente existissem, isso


não implicava numa simples instrumentalização da coleção pelo partido. As relações
entre os intelectuais e o PCB se mostravam mais complexas, pois enquanto os primeiros
conferiam prestígio e visibilidade aos ideários pecebistas, o PCB oferecia canais por onde
esses intelectuais podiam publicar suas produções (CZAJKA, 2009, p.83-86). No caso da

273Elaine Lourenço destaca que, no livro alusivo aos trinta anos da HNB publicado em 1993, apenas Joel
Rufino menciona sua militância no PCB, dado que talvez não parecesse tão relevante para os demais
depoentes. Noutra entrevista, Pedro Cavalcanti Neto afirma que abandonou qualquer participação no
partido em 1962, portanto antes mesmo da HNB ter sido elaborada.

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HNB, essa relação ajudou a reunir os autores para a realização do projeto, mas tornou-se
motivo de censura e perseguição após o golpe de 1964.
Mas o principal vínculo entre a HNB com o PCB foi percebido pela participação de
Nelson Werneck Sodré na coleção. Conforme Leandro Konder, Sodré foi “O historiador
marxista afinado com a perspectiva do PCB que se destacou e alcançou respeitabilidade
nos anos 50” (KONDER, 1998, p.370). Professor de história do Brasil e diretor do
Departamento de História do ISEB na época (MENDONÇA, 2006, p333), seus cursos eram
muito prestigiados pelos universitários de então (PEREIRA, 1998, p.53). Foi num desses
cursos que Sodré convidou Pedro Cavalcanti Neto a participar na elaboração da HNB, e de
onde vieram os contatos para que outros egressos da FNFi fizessem parte do projeto.
Sabe-se também que Sodré era membro do Comitê Cultural do PCB, que
influenciou na composição dos departamentos culturais do ISEB a partir de 1961, época
em que o instituto esteve mais próximo das esquerdas. No entanto, as atividades desse
comitê não eram coordenadas pela direção do partido, relativizando o controle que o PCB
exercia no instituto:

Por mais que o referido comitê fosse endossado pelo partido, ele não era
um órgão subordinado e dirigido pelo partido. O que importa afirmar até
aqui é que, apesar da influência do ideário pecebista no interior do ISEB,
não havia uma política cultural dirigida ao instituto coordenada nem pelo
PCB nem pelo seu Comitê Cultural (CZAJKA, 2009, p.112).

Autor de intensa atividade na época, Sodré foi a principal referência para os demais
autores da HNB, tanto por reunir o grupo no ISEB quanto num plano teórico. Seus livros
sobre história do Brasil eram dos principais trabalhos a serem utilizados na elaboração
da série, mas os vínculos do autor com o PCB influenciaram na trajetória editorial da obra
e suas avaliações.
Lançada às vésperas do golpe de 1964, a primeira edição da HNB foi produto do
convênio entre o ISEB e a Cases, como mencionado anteriormente. Vinculada ao MEC e
dirigida na época por Roberto Pontual, que havia sido ex-estagiário no ISEB (SODRÉ,
1987, p.121), a Cases encomendou os volumes ao instituto e se encarregou de distribuir
os exemplares, que podiam ser solicitados gratuitamente pelo correio por professores em

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todo o país (SANTOS et al., 1993, p.61) 274. Dos dez fascículos inicialmente previstos, cinco
haviam sido lançados até o golpe de 1964, quando a coleção foi suspensa e seus autores
presos ou exilados. Objeto de editoriais na imprensa e mesmo de uma passeata contra sua
possível utilização nas escolas275, a HNB foi acusada de ser obra de propaganda marxista.
Por esse motivo, logo após o golpe a coleção foi submetida a um parecer do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), encabeçado por Américo Jacobina
Lacombe. Nele, os autores foram acusados de serem “mais materialistas que Marx”, que
“varrem da História do Brasil a influência de qualquer personalidade, qualquer corrente,
qualquer fator que não seja exclusivamente mercantil” (LACOMBE et al., 1964, p.291).
Desqualificando os autores da obra enquanto historiadores, o parecer recomendava o
cancelamento do vínculo entre a HNB e o MEC.
Uma segunda edição, lançada pela editora Brasiliense em 1965, previa um total de
seis volumes. Destes foram lançados os volumes 1 e 4, quando a edição foi apreendida e
submetida a um Inquérito Policial-Militar (IPM) específico que incriminou tanto os
autores quanto os livreiros que venderam exemplares da obra. Os livros lançados pela
Brasiliense reuniam sete das dez monografias planejadas na edição original, quando o
projeto da HNB já havia se expandido para dezesseis capítulos em função do grande
sucesso inicial (SANTOS et al., 1993, p.63). Diante das apreensões dos livros e da
perseguição sofrida pelos autores, Sodré destacou a contradição entre a desqualificação
da HNB e o potencial subversivo do qual ela foi revestida pelas autoridades:
Sobre essa coisa desimportante, errada, desqualificada, manifestaram-se,
em “pareceres”, o Estado Maior do Exército, o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, a Comissão Nacional do Livro Didático, etc. É muita
força para tanta fraqueza (SODRÉ, 1987, p.142).

No ambiente de polarização política da época, a HNB e o ISEB foram dos primeiros


alvos atingidos pela repressão que se seguiu ao golpe de 1964276. O instituto foi acusado

274 Joel Rufino dos Santos comenta que cinco mil exemplares da primeira edição haviam enviados a
professores registrados no Ministério da Educação e Cultura, o que representava uma grande tiragem para
os padrões nacionais.
275 O Estado de S. Paulo dedicou cinco editoriais contra a HNB em março de 1964, além de editoriais

publicados no O Globo e no Jornal do Brasil. A passeata ocorreu em Curitiba no dia 24 de março de 1964,
reunindo um público entre 4 e 30 mil pessoas, segundo estimativas da época. Mais informações sobre a
organização da passeata, a cobertura da imprensa local e as motivações políticas do evento podem ser
encontradas nos artigos de João Bertolini e no de Adriano Codato e Marcus Oliveira.
276 O ISEB teve sua sede depredada, os arquivos incendiados e foi oficialmente extinto por um decreto

publicado em 13 de abril de 1964, portanto logo nos primeiros dias após o golpe.

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de ser um cento de conspiração comunista, enquanto que a coleção foi considerada apenas
como obra de doutrinação que poderia chegar até as escolas secundárias, influenciando
assim um grande contingente de alunos pelo país. Nesse cenário, a contradição entre a
desqualificação da HNB e a repressão que se seguiu sobre os autores explica-se pela trama
de relações institucionais nas quais a coleção foi elaborada:
Ou seja, ainda que todas as acusações de despreparo, inabilidade e má
formação intelectual recaíssem sobre eles, o peso maior estava no fato
deles estarem associados ao comunismo (leia-se: PCB), por intermédio de
Nelson Werneck Sodré, elo de ligação dos autores com o ISEB – instituição
que, por sua vez, também estaria a serviço do comunismo internacional
(CZAJKA, 2012, p.305).

As primeiras análises atribuíram a HNB sobretudo a Sodré, por ser ele a figura mais
reconhecida no grupo e por ter sido dele a iniciativa de reunir os autores no ISEB. Seus
vínculos com o PCB eram notórios, e por esse conjunto de associações a HNB foi vista
como obra de propaganda comunista. Contudo, procurei demonstrar que essa relação não
era tão simples, pois a coleção continha projetos que vinham de outros locais, como a
FNFi. E embora um ideário reformista e nacionalista estivesse presente na HNB, seria
superficial tratar a coleção como produto de apenas uma organização específica, seja do
ISEB ou do PCB. Além disso, a dimensão historiográfica da obra ficou em segundo plano
diante das interpretações políticas sobre seu conteúdo. Seria a História Nova do Brasil
uma autêntica novidade em relação ao material utilizado na época, quais foram as
principais concepções teóricas sobre história que orientaram o trabalho? Seria a HNB a
primeira obra a interpretar a história do Brasil conforme o materialismo histórico 277 ou
essa leitura foi resultado da polarização política da época que regia as discussões? São
aspectos que ainda estão por serem abordados, pois até o momento a HNB não foi tema
de uma pesquisa de fôlego.

Referências bibliográficas:

BERTOLINI, João Luis da Silva. Passeata contra o Livro de História único: Curitiba, 24 de
março de 1964. In: ABUD, Kátia; SCHMIDT, Maria Auxiliadora (Org.). 50 anos da Ditadura

277 Essa questão é controversa mesmo entre os autores da HNB. Numa terceira edição, lançada em 1993 por
alusão aos trinta anos da série, Joel Rufino dos Santos e Pedro Cavalcanti Neto corroboram essa perspectiva
em seus depoimentos sobre a obra. Por outro lado, Nelson Werneck Sodré nega que a coleção utilizasse o
materialismo histórico “na plenitude de sua significação”, inclusive porque o trabalho era uma encomenda
feita pelo MEC. Assim, Sodré avalia que o uso de categorias associadas ao marxismo serviria de ataques
contra a HNB e o governo naquele contexto, reiterando a dimensão política que permeava a obra.

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SOBRE PROJETOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS: O HISPANO-


AMERICANISMO HISTORIOGRÁFICO E SUAS RELAÇÕES COM A
TRAJETÓRIA DE RICARDO LEVENE E O GRUPO DA NUEVA ESCUELA
HISTÓRICA ARGENTINA

Mariana Schossler

O presente trabalho apresenta um recorte de meu projeto de tese, que prevê a


análise de obras dos historiadores argentinos Guillermo Furlong SJ (1889-1974) Ricardo
Levene (1885-1959). Nesta tese, procuro trabalhar a escrita de ambos os historiadores
sobre a Revolução de Maio argentina (1810) e sobre um de seus principais líderes,
Mariano Moreno, a fim de investigar não apenas os resultados de suas produções, como
também as dessemelhanças entre as trajetórias e formação de ambos os historiadores,
mas também seus vínculos institucionais e suas inserções nos círculos historiográficos
argentinos.
Este recorte em específico tem por objetivo uma análise das relações estabelecidas
por um destes personagens, Ricardo Levene, ligado à Nueva Escuela Histórica e a
instituições como a Academia Nacional de la Historia, com a tendência do hispano-
americanismo historiográfico. Esta postura tinha entre seus principais expoentes o
historiador Rafael Altamira e procurava a positivação das interpretações sobre as
relações metrópole-colônia durante o período de dominação espanhola. Tal modelo de
explicação histórica foi adotado por Levene, o qual posicionou-se, em meio a polêmicas,
sobre os aspectos positivos e negativos da utilização do termo “colônia” nos estudos
desenvolvidos sobre o período na Argentina da primeira metade do século XX. Ao mesmo
tempo, interessa-me compreender se esta vinculação transpassa a questão pessoal e se
dá, também, com os historiadores da Nueva Escuela Histórica – escola historiográfica de
grande relevância para a Argentina da primeira metade do século XX – enquanto grupo,
como projeto coletivo de produção histórica. Minha intenção é, assim, compreender as


Doutoranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Bolsista PROSUP/CAPES.

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relações entre projetos coletivos e individuais dentro de um mesmo grupo, bem como a
inserção destes do contexto argentino onde se dão estas discussões.
Para iniciar esta discussão, acredito que seja importante caracterizar, de maneira
muito rápida e concisa, o surgimento da Nueva Escuela Histórica em si. Entre o final do
século XIX e inícios do XX, a Argentina vivia um momento específico de sua história,
denominado por Félix Luna (2010), de “los años de prosperidad”, já que, desde finais do
século XIX e nas primeiras décadas do XX, o país viu a ascensão da política e economia
liberais, predomínio rompido apenas com o golpe de Estado de Uriburu, em 1930.
É durante estes anos de prosperidade, também, que surge uma das principais
correntes historiográficas argentinas da primeira metade do século XX, a qual alguns
críticos denominaram em tom pejorativo historiografia liberal, e que ficou conhecida
como Nueva Escuela Histórica (NEH). Embora não fosse um grupo homogêneo, os
historiadores “filiados” à NEH tinham seu ponto de união no “[...] hecho de haber nacido
entre 1885 y 1889 en el seno de familias aluviales y por ello sin vínculos con el pasado
que aspiraban a estudiar, su paso por la Facultad de Derecho, así como cierta sociabilidad
político-académica” (DEVOTO; PAGANO, 2009, p. 140).
As ideias vigentes na Argentina, entre o final do século XIX e início do XX, e as
discussões historiográficas motivadas pelo Centenário de Maio, em 1910, ajudaram a
moldar a historiografia construída por esta corrente. A NEH se destacava, em primeiro
lugar, por sua vinculação tanto com universidades, onde seus membros atuavam como
professores, quanto com instituições leigas que valorizavam o conhecimento histórico,
como o Instituto Ravigani e a Academia Nacional de la Historia. E, em segundo lugar, pela
campanha de profissionalização da disciplina histórica, o que explica as reivindicações
para que somente historiadores, com a devida formação acadêmica, ocupassem postos de
ensino e de pesquisa.
Os membros da NEH buscavam suas principais referências teórico-metodológicas
em autores como Rafael Altamira, Xenopol, Langlois e Seignobos, e Bernheim, cujas obras
tinham como principal característica o rigor metodológico e a crítica às fontes. Além disso,
observa-se que os historiadores da NEH buscavam realizar as discussões acerca dos
conteúdos e resultados de suas obras, corroborando ou rechaçando hipóteses, não apenas

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no ambiente institucional ao qual estavam vinculados, mas, também, e principalmente,


através das “redes de crítica”.278

Los nuevos historiadores se expresaron e fueron reseñados acorde con el


funcionamiento de las “redes de la crítica”, que – a diferencia de la
práctica decimonómica – se instituía ahora como producto de un saber
objetivo o “científico”; de allí que sus sedes institucionales más
identificables fueron los círculos del aparato académico, revistas
especializadas y libros, que en general no excedían los acotados ámbitos
intelectuales. [...] Ciertamente la actividad crítica desempeñó diversas
funciones acorde con el particular status de quien la ejerciera: el
disciplinamiento de los “consagrados” sobre los recién llegados y el
intento de éstos por legitimarse y adquirir notoriedad a través de aquélla.
(DEVOTO; PAGANO, 2009, p. 150).

Entre os principais nomes filiados à NEH, destacamos Emilio Ravignani, Ricardo


Levene, Diego Luis Molinari, Rómulo Carbia e José Torre Revello, entre outros. Dentre
estes, chamam a atenção os casos particulares de Ravignani e Levene, não apenas por suas
trajetórias, mas, principalmente, pelas instituições às quais estavam filiados e dirigiam,
para além do âmbito universitário, sendo elas o Instituto de Investigaciones Históricas de
la Universidad de Buenos Aires (IIH), posteriormente denominado Instituto Ravignani, e a
Junta de História y Numismática (JHN), que foi renomeada como Academia Nacional de la
Historia (ANH). Flertando com a história oficial e estando muito próxima do Estado, a
ANH reuniu muitos dos membros da NEH, e teve forte atuação, inclusive com a publicação
de livros didáticos, assessoramento de comissões ou outros empreendimentos de cunho
histórico. E, mesmo com os sucessivos golpes de Estado de décadas posteriores, a
Academia conseguiu manter seu status e sua proximidade com os diferentes governos.
Para Fernando Devoto (1997) é necessário considerar, contudo, que nem todos os
membros da Nueva Escuela Histórica faziam parte do IIH e, também, da ANH, o que se dá
principalmente por conta de animosidades pessoais entre os membros do dito grupo. Por
outro lado, ao questionar a legitimidade de se agrupar historiadores sob a denominação
da NEH279, Devoto (1997) argumenta que, talvez, a especificidade desta escola

278 Essas “redes de crítica” nos auxiliam na reconstituição do ambiente intelectual a partir das discussões
suscitadas pela publicação de uma determinada obra, uma vez que resenhas e críticas apontam tanto para
concordância, quanto para os rechaços das ideias por ela divulgadas.
279 Um dos autores que dedicou trabalhos de maior fôlego à temática, Fernando Devoto (1993; 2009),

questiona a legitimidade de agrupar historiadores sob o rótulo de Nueva Escuela Histórica: “[...] un segundo
problema que surge en forma evidente es el de la legitimidad de agrupar a ese conjunto, en tantos aspectos
heterogéneo, bajo un mismo rótulo. El grupo de jóvenes historiadores [...] compartía ciertamente un

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historiográfica resida no controle institucional alcançado a partir das trajetórias de


Levene e Ravignani. Controle este que, para além de um projeto coletivo de escrita da
história, forjou as regras do métier do campo na Argentina da primeira metade do século
XX e legitimou o discurso dos profissionais autorizados a construir o conhecimento
histórico.
Para desenvolver o argumento deste trabalho, utilizarei a partir de agora como fio
condutor a trajetória de Levene, procurando compreender sua relação com o hispano-
americanismo historiográfico passando, posteriormente, à sua vinculação com os
projetos da NEH enquanto grupo. O historiador argentino280 defendeu sua tese junto à
Facultad de Derecho y Ciencias Sociales da Universidad de Buenos Aires (UBA) em 1905.
A partir disso, sua atividade profissional girou em torno da investigação histórica e da
docência, iniciada em 1911, nas disciplinas de História, Sociologia e Direito nos níveis
primário, secundário e universitário. Como professor, atuou junto à UBA e em La Plata.
A atuação de Levene como professor se solidificou quando do seu ingresso junto a
instituições de cunho historiográfico e o exercício de cargos importantes junto às mesmas.
O historiador ingressou em 1914, com 29 anos, na Junta de Historia y Numismática, na
qual exerceu cargos de secretário, vice-presidente e presidente. Foi sob seu comando que,
em 1938, a instituição foi reconhecida oficialmente e denominada Academia Nacional de
la Historia Argentina (ANH). Como historiador, Levene procurou seguir uma linha de
trabalho bastante específica. Segundo Escudero (2010), procurou construir uma tradição
historiográfica que se queria herdeira de Bartolomé Mitre281 e que pretendia que fosse
continuada por seus discípulos.
Como homem público, Levene teria procurado seguir um perfil "apolítico", não
aceitando cargos públicos e se mantendo à margem durante o governo peronista.
Entretanto, pode-se questionar se Levene teria realmente se conduzido de forma

conjunto de rasgos comunes que han permitido sobrevivir al paso del tiempo a la margen de que constituían
una escuela, más allá de diferentes opciones políticas, ideológicas e institucionales y de no desdeñables
enemistades personales que los enfrentaron a lo largo de la prolongada hegemonía académica que
ejercieron en la historiografía profesional argentina.” (DEVOTO, 1993, p. 10-11). Para o autor, deve-se
considerar, também, aspectos relativos à prática historiográfica dos membros do grupo para que se tenha
uma ideia de unidade, para além de questões exteriores à produção.
280 Entre suas principais obras estão Introducción a la historia del derecho indiano (1924), Lecciones de

historia argentina (1924) e, sobretudo, Historia del derecho argentino (1945).


281 Historiador argentino e presidente da Academia Nacional de la Historia Argentina, entre os anos de 1906

e 1915. Dentre as suas principais obras se encontram: Historia de Belgrano y de la independencia


argentina e Historia de San Martín y de la emancipación americana (sem datas de publicação definidas).

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apolítica. Durante a década de 1930, com a restauração conservadora, o historiador


argentino esteve próximo ao governo ao atuar como assessor em questões culturais e
educacionais e, também, como conselheiro do presidente Agustín P. Justo. É importante
considerar, também, que Levene procurou desenvolver a cultura histórica e patriótica
argentina com a colaboração do Estado. O historiador procurava realizar um trabalho
bastante próximo àquele feito por Ernest Lavisse282 na França, tentando construir uma
história nacional unificadora, sem demonstrar as fissuras da nação argentina.

Con tal cúmulo de actuaciones profesionales e institucionales, al llegar el


decisivo año 1945, y transcurrida la década del treinta, Ricardo Levene no
sólo estaba en la cumbre de su carrera profesional y desempeñaba
múltiples cargos en diferentes instituciones, sino que ocupaba, sin duda, un
lugar relevante en el mundo cultural e historiográfico argentino. A pesar
de la crisis institucional provocada por el Golpe de Estado de 1930 y las
incertidumbres políticas e ideológicas del período 1930-1945, el ascenso
institucional de Levene no conoció. Muy por el contrario, su carrera se
afianzó y el historiador intervino desde y en el Estado en tanto mentor
decisivo. (ESCUDERO, 2010, p. 56-57, grifos meus).

É neste contexto de prestígio profissional que se dá a maior atuação de Levene em


relação às discussões empreendidas pelo modelo explicativo do hispano-americanismo
historiográfico. No final do século XIX, os juízos negativos em relação à herança espanhola
na América tornaram-se dominantes na historiografia, o que, juntamente com um período
de decadência interna da antiga metrópole, motivou uma reação política e ideológica às
críticas sofridas, movimento conhecido pela denominação pan-americanismo, que
buscava a unidade dos países de raiz hispânica. O “programa para a solução do ‘problema
espanhol’ passava, por um lado, pela reforma do ensino e pela difusão da cultura técnica
entre o povo; e, por outro, pela reaproximação com a América, que num primeiro
momento teria caráter cultural, científico e diplomático, para então passar ao plano das
relações econômicas” (BEIRED, 2009, p. 45). Atuando em várias frentes, tal projeto
angariou simpatizantes também entre os historiadores, cujo modelo de explicação
histórica que passou a se constituir ficou conhecido como hispano-americanismo
historiográfico.

282Lavisse (1842-1922) foi um dos principais nomes da escola metódica francesa. Dedicou-se, a partir do
ano 1900, à publicação da monumental coleção intitulada Histoire de France, que serviu de modelo a
diversos historiadores, inclusive o próprio Levene. Lavisse também escreveu manuais escolares de História.

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Um dos principais expoentes de tal postura era Rafael Altamira (1866-1951),


historiador ligado à Universidade de Oviedo e de postura liberal, que ampliou o marco das
relações culturais entre a Espanha e suas ex-colônias ao partir “para uma missão na
América destinada a estabelecer relações com universidades e centros culturais e
científicos de diversos países” (BEIRED, 2009, p. 45). A partir do ano de 1909, passou pela
Universidade de La Plata (Argentina), onde ministrou um curso de três meses que marcou
a fundação dos estudos históricos nesta instituição. Note-se que é possível que o contato
não apenas entre Levene e Altamira, mas também o de vários dos membros da Nueva
Escuela Histórica com o mesmo, tenha se dado já durante a visita do espanhol à Argentina
em 1909. Ao mesmo tempo, Beired (2009) aponta que desde 1919 ambos os historiadores
mantinham relação de amizade e uma contínua correspondência, onde trocavam obras
por eles publicadas e as impressões sobre as mesmas, estabelecendo um interessante
diálogo.283 Altamira percorreu, também, outros países latino-americanos e foi aos Estados
Unidos a convite da Associação Histórica Americana, viagens nas quais proferiu diversas
conferências e estabeleceu contatos com intelectuais e políticos.
A perspectiva histórica de Altamira se inseria no marco da influência de Ranke, e
compreendia o sujeito da história como ator coletivo, ou persona social. No tocante ao
papel de seu país enquanto metrópole, “definia como admirável a obra da Espanha
tangente à organização do governo, à colonização e à civilização, a qual teria tido dois
objetivos principais: a conversão dos índios ao cristianismo e a difusão da cultura
espanhola” (BEIRED, 2009, p. 46). Observa-se, aí, uma positivação da atuação da Espanha
como organizadora de um sistema, sem levar em consideração as violências cometidas
em relação a grupos como os indígenas. Ao mesmo tempo, emite opinião favorável em
relação ao processo de independência das antigas colônias:

Considera-o legítimo tanto em função das ‘luzes’ alcançadas pelos


americanos quanto pela insuficiência das medidas do governo espanhol
para reformar o regime colonial. Além disso, menciona como fatores os
desacertos, abusos e anacronismo das autoridades espanholas e do clero.
Apontava mesmo a falta de flexibilidade dos liberais espanhóis nas Cortes
de Cádiz, que, apesar de acenarem com a plena igualdade de peninsulares
e americanos, terminaram por aprovar uma constituição que

283 No tocantea tal correspondência, seria interessante realizar um estudo sobre os conteúdos das mesmas,
o que elucidaria aspectos relativos às trocas realizadas entre os historiadores. Parte das correspondências
de Levene se encontram no acervo da sede da Academia Nacional de la Historia, em Buenos Aires.

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discriminava os não-brancos e que estabelecia a representação


desproporcional entre deputados espanhóis e americanos. (BEIRED,
2009, p. 47).

Mencionando os fatores que teriam levado ao processo independentista, faz uma


espécie de mea culpa, assumindo a responsabilidade da política espanhola em relação às
possíveis faltas cometidas para com as colônias. Ao mesmo tempo, ao considerar apenas
as medidas tomadas a partir das reformas bourbônicas284, ocorridas a partir da segunda
metade do século XVIII, como causa das Independências, continua por positivar toda a
dominação e as violências anteriores.
Tal modelo explicativo estaria, segundo Beired (2009, p. 44), inserido nas
discussões e problemáticas do hispano-americanismo historiográfico, pois

A interpretação do passado tornou-se um problema central para o


hispano-americanismo, uma vez que a herança histórica constituía
justamente o principal pilar de sustentação desse ideário. [...] a
pertinência do projeto hispano-americanista residia na formulação de
uma explicação histórica capaz de reivindicar positivamente o papel da
Espanha na história e em especial sobre o espaço americano.

A partir destas questões, postas de forma clara pelo grupo dos hispano-
americanistas e, de certa forma, capitaneadas por Altamira, surgiram diversas discussões,
algumas delas do outro lado do Atlântico, tendo como referência o historiador argentino
Ricardo Levene (SILVA, 2011), que assim como o espanhol, era um dos principais
historiadores de seu país na primeira metade do século XX. Levene levou as problemáticas

284Conjunto de medidas imposto pela metrópole no reinado de Carlos III (1759-1788) que tinham por
objetivo estabelecer um maior controle sobre as colônias. Dentre elas cabe destacar a criação do Vice-reino
do Rio da Prata em 1776, bem como o Regulamento de Livre Comércio entre Espanha e as Índias de 1778,
a instalação de burocratas de origem espanhola e sem vínculos com as elites locais e uma maior
centralização da administração partir da criação de intendências. Enquanto Fradkín & Garavaglia (2009, p.
177) consideram que “las innovaciones no fueran parte de un plan previamente elaborado, sino que se
fueran definiendo a través de iniciativas que tuvieron ritmos desiguales y muy disímil capacidad de
ejecución”, Lynch (1991, p. 6, grifos meus) argumenta que “La política borbónica alteró la relación existente
entre los principales grupos de poder. La propia administración fue la primera en perturbar el equilibrio. El
absolutismo ilustrado fortaleció la posición del Estado a expensas del sector privado y terminó por
deshacerse de la clase dominante local. Los Borbones revisaron detenidamente el gobierno imperial,
centralizaron el control y modernizaron la burocracia; se crearon nuevos virreinatos y otras unidades
administrativas; se designaron nuevos funcionarios, los intendentes, y se introdujeron nuevos métodos de
gobierno. Éstos consistían en parte en planes administrativos y fiscales, que implicaban al tiempo una
supervisión más estrecha de la población americana.”. Neste sentido, Lynch (1991) concorda com Halperín
Donghi (2015), afirmando que as reformas tinham por objetivo modernizar o império e tornar a
administração das colônias mais eficiente, embora não tenham apresentado o resultado esperado.

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deste modelo explicativo a esferas públicas na Argentina, em instituições como a


Academia Nacional de la História e em diversos textos publicados.
Entretanto, tal modelo explicativo adotado pelo historiador argentino foi sendo
construído, em sua produção, com o passar dos anos, atingindo a maturidade apenas nas
décadas de 1940 e 1950. É por isto que considero importante analisar, a partir dos
argumentos já expostos, a obra Ensayo histórico sobre la Revolución de Mayo y Mariano
Moreno285, publicada ainda em 1920. O texto do Ensayo (1920) veio a público em dois
tomos, o primeiro com cerca de seiscentas páginas e o segundo com pouco menos. Nesta
obra, Levene pretendeu dissertar sobre a Revolução de Maio a partir da trajetória daquele
a quem considera um dos principais líderes do movimento, Mariano Moreno, considerado,
por vezes, figura controversa286. Para fins de facilitar a compreensão por parte do leitor,
e por conta da grande extensão do texto aqui estudado, focarei esta análise na Revolução
em si e em seu significado. A obra é dividida em diversos capítulos, cuja organização se dá
em ordem cronológica, iniciando já nas últimas décadas do século XVIII – com a criação
do Vice-reino do Rio da Prata e as reformas bourbônicas, bem como o nascimento de
Moreno –, embora tenha por foco os acontecimentos ocorridos entre os anos de 1806 e
1810.

285Me referirei a esta obra, a partir daqui, apenas como Ensayo (1920).
286 Sabe-se que Moreno era formado em Direito pela Universidade de Charcas, e teve seu pensamento
bastante influenciado por ideias ilustradas. Por conta disso, Guillermo Furlong SJ considera seu
posicionamento político “exaltado”, em contraposição à moderação de outros líderes revolucionários, como
Cornelio Saavedra, embora o personagem seja considerado, até os dias de hoje, um dos principais
pensadores da questão independentista no Rio da Prata do início do século XIX (SHUMWAY, 2009; GAUT
VEL HARTMAN, 2010). Em 1805, assumiu cargos na Audiência e no Cabildo de Buenos Aires. Eleito
secretário da Primeira Junta, exprimiu sua concepção de governo para a nova nação em sua obra intitulada
Plan de Operaciones (1810). Segundo Gaut vel Hartman (2010), Moreno procurava, neste texto, estabelecer
as bases para uma revolução profunda das estruturas políticas do Vice-reino do Rio da Prata, o que levaria
em consideração não apenas a remoção das autoridades coloniais dos postos mais altos do governo, mas,
também, a obtenção da independência e a escrita de uma Constituição. Faleceu em 1811, durante uma
viagem à Grã-Bretanha, onde deveria atuar como embaixador. Apesar de considerá-lo um dos mais
importantes líderes de Maio, alguns autores consideram suas ideias pouco práticas. Um deles é Furlong, que
comenta: “Era, sin embargo, de un temperamento impulsivo, y era terco en sus opiniones y en los pocos
meses de actuación al lado de Saavedra, creyó que éste era poco enérgico. Quería llegar al fin cuanto antes,
sin etapas, contrariando así las leyes de la naturaleza, y las de la historia”. E, diferentemente de Saavedra,
suas ações não seriam condizentes com suas ideias políticas: “El renunciar a su puesto en la Junta, por la
incorporación de los diputados, y alejarse del país en un momento de los más trascendentales de nuestra
historia, no dice bien de él” (FURLONG, 1979, p. 122).

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Acredito que o capítulo em que Levene melhor discute esta questão encontra-se no
Tomo 2 e é intitulado La Revolución sin sangre. Neste capítulo em específico, o historiador
argentino disserta não apenas sobre o período da Revolução em si, mas também sobre as
intenções dos seus líderes e de como o movimento foi lembrado quando do período das
comemorações do centenário, em 1910.
Note-se, em primeiro lugar, que havia uma preocupação por parte de Levene em
demonstrar que a Revolução tinha um significado para aqueles que dela participaram.

¿Qué fué la revolución de 1810 para la generación que la llevó a cabo o la


vió estallar?
Si se circunscribe la observación al desarrollo tumultuoso de los sucesos
de Buenos Aires, producidos entre el 18 y 25 de mayo, no se alcanza a
vislumbrar sino la lucha de dos tendencias opuestas representadas
respectivamente por quienes defendían la autoridad y permanencia del
virrey y los que la combatían para reemplazarle por un nuevo y
democrático órgano de gobierno. (LEVENE, 1920, TOMO 2, p. 96).

Embora, durante seu texto, aponte as inovações dos escritos de Mariano Moreno e
tente colocá-lo na posição de pensador do movimento, Levene deixa evidente que a
questão revolucionária, para a maioria dos vecinos do Cabildo Aberto, girava em torno da
manutenção ou não do vice-rei no governo de Buenos Aires. Ao mesmo tempo, não havia
um projeto de governo definido, sendo que este teria sido elaborado durante o mandato
da Primeira Junta.
No tocante a esta questão, do significado da Revolução de Maio, coloca a
possibilidade de o período ser visto em um contexto maior das revoluções do final do
século XVIII, considerando que “si se eleva el punto de mira extendiendo la contemplación
del movimiento de mayo, en el espacio, como formando parte de una revolución más vasta
que había sacudido a Europa y conmovía a la América española, y en el tiempo,
reconociendo su laboriosa e intensa gestación” (LEVENE, 1920, p. 96), evidenciando as
influências estrangeiras do momento em questão.
Acredito que, ao lermos com maior atenção o Ensayo (1920), fica claro que as
influências estrangeiras são intensamente reafirmadas por Levene em seu texto. A
intenção de Levene, com seu Ensayo (1920) é, assim, muito bem definida, e já adiantada
pela última página do prefácio intitulado Una palabra:

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Obrero de un programa colectivo de construcción del pasado argentino,


este libro es fruto de pacientes investigaciones realizadas en nuestros
archivos. No es sino un ensayo, como dice lealmente su título. Las
fundadas observaciones que se formulen y nuevas pruebas documentales
que se publiquen, podrán rectificar o integrar la visión de la escena y de
los hombres de un momento de nuestra historia, que el autor ha
contemplado. (LEVENE, 1920, TOMO I, p. VII, grifos meus).

No trecho acima, Levene assume a intenção de construção de um passado para a


Argentina, passado esse que o autor quer ilustrado, preocupado com questões sociais e,
ainda, liberal, marcadamente influenciado pelo contexto histórico no qual nasceu, cresceu
e tornou-se historiador. Ao mesmo tempo, ao vincular este passado com o contexto
europeu, acaba por desconstruir várias das vinculações americanistas e, inclusive,
hispânicas do movimento. Percebe-se, assim, que em 1920 a vinculação de Levene com o
hispano-americanismo historiográfico estava em construção, alcançando sua maturidade
apenas algumas décadas depois, quando das discussões sobre a utilização do vocábulo
colônia nos trabalhos historiográficos argentinos.
Em estudo sobre a utilização dos termos “província”, “reino” ou “colônia” na
historiografia argentina do século XX publicado por Víctor Tau Anzoátegui (2016), o autor
discorre sobre algumas das medidas tomadas pelo historiador argentino junto à
Academia Nacional de la Historia no sentido da escrita sobre o período colonial por
historiadores filiados à instituição. Em 1943, preocupado em reivindicar a obra da
Espanha na América e com o uso indiscriminado da expressão “colônia”, Levene
apresentou na ANH um projeto de recomendação

[...] aos autores de livros sobre história argentina e americana,


convidando-os a não usar as expressões ‘período colonial’ ou ‘história
colonial’, substituindo-as por ‘período de dominação espanhola’, sob o
fundamento de que as leis das Índias estabelecem que estas não eram
colônias propriamente ditas, mas províncias anexadas à Coroa de Castela
e León, as quais não podiam ser alienadas. (TAU ANZOÁTEGUI, 2016, p.
17-18).

Tal recomendação se insere no bojo de uma discussão historiográfica sobre o


estatuto legal do termo, de acordo com o direito indiano, que consideraria colônias as
ocupações de territórios por espanhóis, enquanto os termos província ou reino seriam
mais adequados para definir o estatuto jurídico da América espanhola frente à Coroa

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ibérica.287 Defendendo a tese de que o termo colônia estaria carregado politicamente de


aspectos negativos pela historiografia pós-independências288, principalmente no início do
século XX, e objetivando a positivação do período colonial, Levene lança mão deste
artifício para ampliar e, desta maneira, impor, o modelo explicativo do hispano-
americanismo historiográfico para um grande número de historiadores argentinos. Esta
proposta é coroada com o lançamento, em 1951, de um livro intitulado Las Índias no eran
colonias, no qual Levene defende novamente sua tese, ampliando o debate para além das
paredes da ANH.

Em resumo, a sua tese da independência da América constituía a coroação


dos seus argumentos para provar o caráter benigno da ação da Espanha
sobre a América, pois permitia mostrar que a emancipação se inscrevia
na própria lógica do domínio espanhol, uma vez que expressava o
desenvolvimento de um povo que, ao amadurecer, podia abandonar a
tutela paterna; e, sobretudo, que a independência comportava uma
continuidade histórica e uma unidade civilizatória entre os dois lados,
cuja consagração no campo da historiografia argentina se encarnava no
próprio livro de Levene. (BEIRED, 2009, p. 49).

A partir da discussão exposta até o momento, cabe perguntar: afinal, havia alguma
relação entre os demais membros da Nueva Escuela Histórica com o modelo explicativo
do hispano-americanismo historiográfico ou seria este um projeto pessoal de Levene? Ė
interessante notar, como afirmei anteriormente, que, com a vinda de Altamira para a
Argentina em 1909, não apenas Levene, mas outros membros da NEH tiveram contato
com o espanhol. Entretanto, o historiador argentino parece, por sua proximidade com o
espanhol, ter construído, ao longo do tempo, uma relação mais sólida com este modelo
explicativo chegando, inclusive, às suas proposições mais extremas nas décadas de 1940
e 1950. Note-se, ainda, que historiadores como Beired (2009), Silva (2011), Tau

287Sobre os detalhes desta discussão, ver Tau Anzoátegui (2016).


288Tau Anzoátegui (2016, p. 15) aponta que: “O uso da palavra ‘colônia’ tem grau de aceitação variado,
conforme o ramo histórico no qual se a emprega (como, por exemplo, a economia, a arte, a política ou o
Direito), ou a postura individual do historiador. Não se pode tampouco ignorar o impacto ideológico do
vocábulo na mentalidade contemporânea através de dois modos radicais de contemplar esse período
histórico: a dos que consideram que a obra da Espanha na América foi positiva; e a dos que fazem um
balanço mais ou menos negativo do processo de conquista e colonização. Para aqueles, a conclusão de que
não foram colônias casa melhor com sua argumentação; para os últimos, a condição colonial das Índias é
que casa com a sua. Neste debate – explícito ou virtual – paira a ideia de que ‘colônia’ é uma categoria política
subordinada e até denegridora; e que ‘províncias’ ou ‘reinos’, ao invés, são denominações que por si só
enaltecem os territórios assim designados”.

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Anzoátegui (2016), que se debruçaram sobre a temática, ao estudarem a aplicação do


modelo explicativo por historiadores argentinos enfatizam a atuação de Levene como
capitaneador da implementação do projeto de Altamira em seu país.
Ao mesmo tempo, se o hispano-americanismo historiográfico não parece evidente,
em um primeiro momento, como projeto coletivo do grupo da NEH, o fato de Levene ter
proposto à Academia Nacional de la Historia a não utilização, pelos historiadores a ela
filiados, do termo “colônia” nos trabalhos historiográficos, aponta para a tentativa de
ampliação da influência do modelo explicativo entre os historiadores argentinos. Tal
artifício pode indicar, assim, a existência de um debate – que poderia ser circunscrito à
NEH ou não – sobre uma implantação mais efetiva do hispano-americanismo
historiográfico.
Neste sentido, a confluência entre o pertencimento de Levene à Nueva Escuela
Histórica e sua atuação junto à Academia Nacional de la Historia fazem com que um
projeto bastante específico se confunda ora como individual ora como coletivo. A
influência e os cargos importantes que o historiador ocupava fazem com que a
implantação do hispano-americanismo historiográfico na Argentina seja vista como uma
iniciativa que tinha como representantes Altamira e Levene, ignorando, muitas vezes, o
debate necessário para que um modelo se desenvolva e as proposições para utilização do
ponto de vista coletivo.
As vinculações institucionais e intelectuais entre os sujeitos constituem uma
estratégia de investigação que permite a ampliação dos debates sobre determinados
enfoques, possibilitando a relativização de algumas posturas consideradas pessoais e que
podem ter, em si, um caráter coletivo. É neste sentido que se pode – e deve – levar em
consideração o papel dos espaços institucionais e das mencionadas “redes de crítica” para
a legitimação de uma proposta como a do hispano-americanismo historiográfico. Talvez
Ricardo Levene possa ser considerado um representante de um projeto, mas não o seu
único executor.

Referências bibliográficas:

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americanismo, catolicismo, (des)qualificação e alteridade no Brasil e na Argentina (1910-
1940). Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2011.

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proposta de Zorraquín Becú, Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, n. 151, dezembro de 2016, p. 13-71.

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PARTE 6

POLÍTICA E DEMOCRACIA NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA

Carla Brandalise
Charles Sidarta Machado Domingos
Marluza Marques Harres

Este Simpósio Temático objetiva reunir pesquisadores e congregar esforços na


criação de um espaço para divulgação, discussão e apreciação de reflexões sobre temas
de História Política. De modo abrangente, a proposta incorpora pesquisas sobre a
constituição da democracia política no Brasil e na América Latina. Considerando a
atualidade do tema e o avanço das pesquisas nos cursos de pós-graduações em História,
especialmente com as inovações representadas pela Nova História Política, em diálogo
intenso com a Nova História Cultural, busca-se igualmente estimular o diálogo e a troca
de experiências sobre questões e problemas de pesquisa e de construção de uma
abordagem histórica renovada a respeito do universo do político. Para tanto, objetiva-se
congregar estudos que versem sobre : instituições governamentais e práticas
participativas; a organização e o funcionamento dos partidos; campanhas e projetos
políticos; a realização de eleições; os mecanismos de representação e mobilização da
sociedade civil; a ascensão do poder de pressão dos grupos de interesse; as condições de
exercício da cidadania e o reconhecimento de direitos; os meios de comunicação e a
retórica política; o estudo da democracia como utopia e como prática; entre outras
problemáticas atinentes.

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A REFORMA ELEITORAL PARA INTRODUÇÃO DO VOTO DIRETO NO


BRASIL E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A CIDADANIA NO BRASIL

Michele de Leão

Cobranças em favor de eleições diretas pressionaram o Imperador D. Pedro II, que


convoca o liberal Visconde João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu para organizar e
dirigir um gabinete, que teria como tarefa a realização da reforma eleitoral, por meio da
qual deveria ser introduzido o voto direto no Brasil. Assim, em janeiro de 1878, os liberais
retornam ao poder após uma década de governo conservador, já que estavam afastados
desde 1868 (ano em que ocorreu uma inversão política onde o ministério liberal de 3 de
agosto foi substituído pelo conservador de 16 de julho).
D. Pedro II requeria o máximo de cuidado para o transcorrer desta reforma, pois
ela era de grande importância. Destaca-se as palavras do próprio imperador:

Reconhecida a necessidade de substituir o sistema eleitoral vigente pelo


de eleição direta, cumpre que decreteis mediante reforma constitucional,
afim de que o concurso de cidadãos, devidamente habilitado a exercer tão
importante direito, contribua eficazmente para realidade do sistema
representativo. (Câmara, Anais, sessão de 15/12/1878. Acesso em
19/08/2007).

O projeto de reforma eleitoral elaborado pelo Gabinete Sinimbu é apresentado à


Câmara dos Deputados em 13 de fevereiro de 1879. Nas sessões que antecederam a
apresentação do projeto de reforma eleitoral, as eleições diretas já mereciam o interesse
dos deputados. Como, por exemplo, constata-se no discurso do próprio chefe do governo,
em 20 de dezembro de 1878, ao destacar a importância da reforma que se preparava:

[...] tratando-se de uma medida de maior importância, que interessa tão


de perto ao futuro das nossas instituições, de uma reforma destinada a
garantir o exercício dos direitos políticos de todos os cidadãos e assim
firmar a verdadeira base do sistema representativo [...]. (SINIMBU, 1878,
p. 105).


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
CAPES. Contato: <micheledeleao@gmail.com>

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O deputado Olegário de Aquino Castro enfatizou o valor do direito ao voto, em


janeiro de 1879, explanando que:

Não há direito mais eminentemente político do que o de votar; é o direito


político por excelência; é o de representação, pelo qual o cidadão é
admitido a tomar parte na administração do Estado, coadjuvando,
intervindo na marcha dos negócios públicos. (AQUINO CASTRO, 1979,
p.214).

Ainda na mesma sessão, Aquino Castro também evidenciou o quanto o sistema


eleitoral vigente encontrava-se corrompido, sendo necessário mudá-lo:

Depois do estado de verdadeira desmoralização a que se chegou o


sistema eleitoral estabelecido entre nós; depois da lição dada pelos chefes
conservadores na última legislatura, demostrando quanto era ilusória a
promessa da representação das minorias, é de rigorosa obrigação para o
partido liberal envidar todos os seus esforços para que a reforma eleitoral
se realize; e eu acredito que a nobre oposição, calando as queixas que por
ventura tenha contra o gabinete, somente no interesse da causa que é de
nós todos, há de ainda concorrer com os seus votos para a consecução do
fim a que nos propomos, pois que só depois da reforma eleitoral poderão
ser atendidas todas as outras necessidades de ordem inferior. (AQUINO
CASTRO, 1979, p.216).

O deputado Florêncio de Abreu, na sessão da Câmara dos Deputados do dia 30 de


janeiro de 1879, é mais um dos políticos que se dedica a apontar as incorreções do sistema
de eleições indiretas. Para o deputado: “O que nos cumpre fazer agora é reformar o
sistema eleitoral vicioso que temos, dar ao país os meios de pronunciar-se livre e
espontaneamente, para que possa funcionar o governo representativo, com câmaras
realmente eleitas”. (ABREU e SILVA, 1879, p.318). Sua manifestação abrange ainda as
restrições que deverão limitar o voto, pelas quais o deputado revela simpatia:

O nobre deputado por Sergipe, o Sr. Prado Pimentel, cujo talento aprecio,
e de cuja eloquência sou um dos admiradores, chegou até a dizer-nos, que
elevar o censo seria promover a mais estúpida das democracias, a do
dinheiro. Eu poderia simplesmente responder: que entregar o direito de
voto, cuja responsabilidade é tão grande, à ignorância e ao pauperismo é
que seria criar a mais degradada das democracias. (ABREU E SILVA, 1879,
p.319).

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A respeito do exercício do voto, Lucas (1985, p.134) reflete que ele se configura
como uma responsabilidade grande, pois: “Conceder o direito de voto às pessoas tem
valor simbólico – o de mostrar-lhes que a sociedade reconhece sua importância. Exercer
o direito de voto tem um valor simbólico - de permitir ao indivíduo identificar-se com a
sociedade”. Dessa forma, ao defender a proibição de voto ao analfabeto, o deputado
Florêncio de Abreu está negando ao indivíduo a oportunidade de ser reconhecido pela
sociedade e de identificar-se com ela.
Em meio a esses debates, dias antes de o projeto ser apresentado à Câmara, ocorre
uma reorganização ministerial com a retirada do governo dos ministros Gaspar da Silveira
Martins e Domingos de Sousa Leão, o Barão de Vila Bela. Os ministros rompem com o
Gabinete por não concordarem com a manutenção da inelegibilidade dos cidadãos
acatólicos à Câmara dos Deputados.
Em 13 de fevereiro de 1879 o Projeto Sinimbu é apresentado à Câmara dos
Deputados:

PROJETO DE REFORMA DA CONSTITUIÇÃO


A assembleia geral legislativa decreta:
Artigo único. - Os eleitores dos deputados para a seguinte legislatura lhes
conferirão, nas procurações, especial faculdade para reformarem os
artigos da Constituição que se seguem:
Os artigos 90, 91, 92 e 93, para o fim de serem as nomeações dos
deputados e senadores para a Assembleia Geral, e dos membros das
assembleias legislativas provinciais feitas por eleição direta.
O artigo 94, para o fim de só poderem votar os que sabendo ler e escrever,
tiverem por bens de raiz, capitais, indústria, comércio ou emprego, renda
líquida anual que for fixada em lei, nunca inferior a quatrocentos mil réis.
(BRASIL, 1879, p. 492).

O projeto propõe a reforma eleitoral por meio de reforma da Constituição de 1824.


Além de duplicar a renda mínima para alguém tornar-se eleitor (elevação de duzentos
para um mínimo de quatrocentos mil réis), o projeto Sinimbu propõe a exclusão do direito
de voto de todos aqueles que não saibam ler e escrever, condição esta inexistente na
Constituição de 1824. O projeto não traz nenhum apontamento em relação à elegibilidade
dos acatólicos, não fazendo também nenhuma referência ao artigo 95º289 da Constituição.

289De acordo com o artigo 95º da Constituição de 1824 estavam proibidos de serem nomeados deputados
aqueles que não professassem a religião Católica.

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Durante a discussão do Projeto Sinimbu na Câmara dos Deputados sucedem-se


manifestações dos deputados defendendo a exclusão dos analfabetos, a elevação do censo
e a questão da elegibilidade dos acatólicos à Câmara dos deputados. São poucas as vozes
que se levantam contra tais exclusões.
No dia 30 de maio do ano de 1879 o texto do Projeto Sinimbu é aprovado na
Câmara dos Deputados. No dia 10 de junho de 1879 é remetido ao Senado, onde é
submetido ao exame de duas comissões, uma de legislação e outra de constituição.
No Senado, a 14 de outubro de 1879, as comissões, após analisarem a proposta de
reforma eleitoral remetida pela Câmara dos Deputados, apresentaram seu parecer,
contrário ao projeto.
A proposição da Câmara dos Deputados é rejeitada pelo Senado em 12 de
novembro de 1879. O governo sugere a dissolução da Câmara, o que não parece acertado
ao Imperador.
Somados à rejeição, no Senado, do projeto de reforma eleitoral, outros fatos
serviram para enfraquecer o gabinete e provocar a sua retirada. Entre esses
acontecimentos estão a falência do Banco Nacional, de que Sinimbu deixara a presidência
no dia em que se apresentou como ministro, dando-se a falência cinco meses depois, e a
Revolta do Vintém, ocasionada pelo aumento da passagem do bonde no Rio de Janeiro. O
governo pede, então, e obtém demissão do gabinete.
Após a saída de Cansanção Sinimbu do governo, o comendador José Antônio
Saraiva é encarregado pelo Imperador de organizar um novo ministério para realizar a
reforma eleitoral, o que acontece em 28 de março 1880. Saraiva obteve do Imperador a
liberdade para realizar a reforma pelo modo que preferisse. Então, o novo governo optou
por executar a reforma eleitoral por lei ordinária, uma vez que o Senado já havia se
posicionado contrário à reforma eleitoral via reforma da Constituição de 1824.
Saraiva apresenta o projeto de reforma eleitoral do novo gabinete em sessão
extraordinária realizada em 29 de abril de 1880. De acordo com o projeto será
considerado apto a exercer o voto todo cidadão católico ou acatólico, que apresente as
provas de que possui renda não inferior a 200$. O projeto também limita o voto aos
indivíduos alfabetizados, já que cada eleitor deverá escrever o seu voto e assinar o seu
nome, como pode ser verificado no artigo 14 do projeto:

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§ 9.º O voto será escrito pelo próprio eleitor perante a assembleia


paroquial, em papel fornecido pela mesa e em lugar separado, disposto
para esse fim. Ao entregar sua cédula fechada, será o eleitor obrigado a
assinar o seu nome em um livro especial aberto, numerado, rubricado e
encerrado pelo juiz de direito. (BRASIL, 1880, p. 33).

José Antônio Saraiva defende o seu projeto dizendo que, conforme o projeto,
apenas se exige o necessário para dar regularidade à eleição, como a assinatura.
(SARAIVA, 1880, p. 29-34).
Saraiva, em sessão no dia 07 de junho de 1880, alega que o indivíduo que não sabe
ler e escrever pode ser qualificado eleitor, mas não vota porque não sabe assinar seu voto,
pois:

É um eleitor qualificado que pode exercer o seu direito, mas que não o
exerce efetivamente enquanto não faz o que todo o cidadão deve fazer,
que é aprender alguma coisa para ser digno membro de uma sociedade
política. (Muito bem.). (SARAIVA, 1880, p. 92).

Proibindo o indivíduo analfabeto de votar, o projeto barrava qualquer


possibilidade destes de participação política, pois, como afirma Lucas (1985, p.137), “O
voto é valioso porque proporciona uma forma mínima de participação para cada cidadão
e uma alavanca que ele poderá usar, quando desejar tomar alguma iniciativa política”.
O Projeto Saraiva suprimiu o impedimento dos acatólicos de serem inelegíveis
para a câmara dos Deputados, o que pode ser verificado em seu artigo 8º:

Art. 8º: É elegível para os cargos de senador, deputado geral, membro da


assembleia legislativa provincial, vereador, juiz de paz e qualquer outro
criado por lei todo o cidadão compreendido no art. 2º, salvas as restrições
adiante enumeradas:
§ 1º É condição especial de elegibilidade:
[...]
Para deputado geral ou membro da assembleia provincial ser maior de
vinte e cinco anos, salvo se o eleitor tiver algum grau científico. (BRASIL,
1880).

Discursando, Saraiva explica porque adicionou ao seu projeto o princípio da


elegibilidade dos acatólicos:

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Qual foi o princípio em que me inspirei quando adotei as disposições


relativas à elegibilidade dos acatólicos, libertos e naturalizados?
É o de que devia deixar à nação que sabe muito, que é sempre muito bem
inspirada, a mais ampla liberdade na escolha de seus representantes.
[...]
[...] todo o cidadão em iguais circunstâncias tem o mesmo direito de votar
e de ser votado, qualquer que seja a raça de que provenha, embora venha
de país, que não é o de nossa origem, e qualquer que seja a sua religião.
[...]
[...] verdadeira homenagem à Constituição é riscar essa incapacidade que
ela escreveu [...]. (SARAIVA, 16/11/1880, p. 208-210).

O projeto de reforma eleitoral do gabinete Saraiva é aprovado na Câmara dos


Deputados por maioria de votos, sendo apresentado no Senado em 2 de julho do mesmo
ano.
Mantendo posição semelhante à que sustentou diante do Projeto Sinimbu na
Câmara dos Deputados, José Bonifácio, agora ocupando uma cadeira no Senado, se
posiciona contrário às provas exigidas para o censo, as quais ele garante que irão reduzir
em muito o eleitorado, ele continua sua crítica à negação do direito de voto aos
analfabetos. Quanto à hipótese de elevação do censo, o deputado é firme na sua opinião:

Em uma palavra, a eleição direta levantando o censo é inconstitucional,


porque diminui ou faz desaparecer os votantes; guardando o censo da
constituição, não há perda dos direitos para ninguém; a eleição direta não
só respeita o texto constitucional, como está no espírito da constituição.
(ANDRADA E SILVA, 1880, p. 245).

Conforme José Bonifácio, seria inadmissível colocar a inteligência como critério da


capacidade eleitoral em um país como o Brasil, pois:

Uma exclusão de tal natureza, sem pôr gratuitamente a instrução ao


alcance de todos [...] seria uma odiosa exclusão, cuja última consequência
é sem dúvida entregar maiorias numerosas aos interesses intransigentes
de pequenas minorias. (ANDRADA E SILVA, 1880, p. 42).

Quanto à hipótese de elevação do censo, o deputado é firme na sua opinião:


Em uma palavra, a eleição direta levantando o censo é inconstitucional,
porque diminui ou faz desaparecer os votantes; guardando o censo da
constituição, não há perda dos direitos para ninguém; a eleição direta não
só respeita o texto constitucional, como está no espírito da constituição.
(ANDRADA E SILVA, 1880d, p. 245).

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Saraiva alega que o projeto não exclui a grande massa dos cidadãos do país: “[...] o
que o projeto exclui é a ignorância absoluta, os homens que não tem meios de viver, e nos
quais não se presume a menor inteligência e independência para a escolha do deputado
ou senador”. (SARAIVA, 1880, p. 196). Assim, para o chefe do governo, qualquer cidadão,
que por seu trabalho adquira uma diminuta renda ou qualquer instrução, entra no
eleitorado.
Quanto à elegibilidade dos acatólicos à Câmara dos deputados, o senador Silveira
Martins, que em 1879 optou por deixar de fazer parte do Governo Sinimbu justamente
pela não inserção da ideia de elegibilidade dos acatólicos, agora, no Senado em 1880,
continua com seu posicionamento favorável à proposta. Silveira Martins destaca que no
seu entendimento essa matéria é de grande importância para promover a vinda de
imigrantes para o Brasil. De acordo com o mesmo:

Os imigrantes em geral não podem vir gostosamente para um país a que


levam os seus capitais e os seus trabalhos, sem que nele haja inteira
igualdade de direitos. [...].
[...]
É, portanto, uma ideia de futuro político promover, pelo abaixamento de
todas as barreiras, a vinda de raças fortes e inteligentes para a
regeneração moral de nossa pátria. (SILVEIRA MARTINS, 17/10/1880, p.
239).

O projeto substitutivo do gabinete Saraiva, com a explícita exclusão dos


analfabetos do direito de voto, com a manutenção do censo pecuniário de 200$, aliado às
difíceis provas de renda, e com a concessão de elegibilidade dos acatólicos à Câmara dos
Deputados, obtém a aprovação de sua redação final, nessa casa, no dia 4 de janeiro de
1881. O Projeto Saraiva, então, transforma-se na Lei 3.029, de 9 de janeiro de 1881, a qual
passou à história com o nome de Lei Saraiva, da qual destaco o arts. 2.º, 8.º e 10.º:

Art. 2.º: É eleitor todo o cidadão brasileiro, nos termos dos arts. 6º, 91º e
92º da Constituição do Império que tiver renda líquida anual não inferior
a 200$ por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego.
[...]
Art. 8.º: No primeiro dia útil do mês de setembro de 1882, e de então em
diante todos os anos em igual dia, se procederá a revisão do alistamento
geral dos eleitores, em todo o Império, somente para os seguintes fins:

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[...] De serem incluídos no dito alistamento os cidadãos que requererem


e provarem ter adquirido as qualidades de eleitor, de conformidade com
esta lei, e souberem ler e escrever. (BRASIL, 1881, p.348).
[...]
Art. 10.º: É elegível para os cargos de Senador, Deputado à Assembleia
Geral, membro de Assembleia Legislativa Provincial, vereador e juiz de
paz todo cidadão que for eleitor nos termos do art. 2º desta lei, não se
achando pronunciado em processo criminal, e salvas as disposições
especiais que se seguem:
§ 1º Requer-se:
[...]
Para Deputado à Assembleia Geral: - a renda anual de 800$ por bens de
raiz, indústria, comércio ou emprego. (BRASIL, 1881, p.348).

A Lei Saraiva apesar de ser percebida por muitos como um avanço democrático ao
introduzir o voto direto e permitir a elegibilidade dos acatólicos, trouxe no seu âmago
medidas excludentes. Pois, a partir da promulgação da Lei, o modo de espoliar o povo de
participar das eleições se aprimorou, deixando de ser exclusivamente a pobreza (a renda
insuficiente ou a dificuldade de comprovação da mesma). Mantendo o censo pecuniário
da Constituição de 1824, à Lei Saraiva ainda foram acrescentadas duas medidas de
resultados demasiadamente excludentes: rigidez dos mecanismos de comprovação da
renda; e, a exigência do saber ler e escrever. O limite de renda de 200 mil réis não era
muito alto. Porém, a Lei tornou muito rigorosa a maneira de comprovar a renda. (LEÃO,
2013, p.105).
Nas eleições que seguiram à Lei Saraiva, muitos cidadãos com renda suficiente para
serem eleitores não votavam por não conseguirem comprovar sua renda ou por não terem
disposição de encontrar os meios de prová-la. No entanto, onde a lei de fato limitou o
eleitorado foi ao retirar o direito de voto dos analfabetos.
A reforma eleitoral não encaminhou a uma ampliação do eleitorado, muito pelo
oposto, provocou uma redução de 1.114.066 para 145.000 eleitores, representando 1,5%
da população total, ou seja, 1/8 do que era antes, já que em 1872, o número de votantes
fora superior a um milhão. Muito grave foi que este retrocesso continuou por muitas
décadas. O número de eleitores veio a ultrapassar o número de votantes de 1872 apenas
nas eleições de 1945, ano em que compareceram às urnas 13,4% dos brasileiros.
(CARVALHO, 2004, p. 38-40).
No que diz respeito à elegibilidade dos acatólicos a Lei Saraiva acabou provocando
uma incoerência ao permitir que estes fossem eleitos à Câmara dos Deputados, mas não

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suprimindo o artigo 17 do regimento interno daquela casa. Este artigo estabelecia que o
deputado eleito deveria prestar juramento “[...] aos Santos Evangelhos, manter a Religião
Católica, Apostólica Romana, observar e fazer observar a Constituição, sustentar a
indivisibilidade do Império, a atual Dinastia Imperante, ser leal ao Imperador, zelar os
direitos dos Povos e promover, quanto em mim couber, a prosperidade geral da Nação”
(PORTO, 2004, p. 395).
A contradição criada pela Lei só foi colocada em discussão quando em 06 de
setembro de 1888 o deputado eleito Antônio Romualdo Monteiro Manso declarou à
Câmara que não podia prestar juramento: “Não posso prestar juramento, porque é contra
as minhas convicções”. (MANSO, 1888, p.71). Manso foi convidado a se retirar da Câmara
para que a mesma decidisse o que fazer. O assunto foi discutido pelos deputados. No dia
11 de setembro de 1888 decidiu-se que ficaria dispensado do juramento o deputado que
declarasse ser aquele juramento contrário à suas crenças e opiniões políticas. (BRASIL,
1888, p. 139).

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É POSSÍVEL ALARGAR OS CAMINHOS DA DEMOCRACIA?


A CONTRIBUIÇÃO DO SINDICALISMO RURAL CUTISTA NO RS (1978-
1990)

Anacleto Zanella

O desenvolvimento do sindicalismo no meio rural no Rio Grande do Sul ganhou um


impulso muito grande no final dos anos 1970 e na década de 1980, impulsionado por
diversos fatores vivenciados nacionalmente, de modo especial o processo de luta do povo
brasileiro pela redemocratização no País, abraçado por amplos setores da sociedade, além
da grave crise econômica, que atingiu também a agricultura, trazendo consequências
como os baixos preços dos produtos agrícolas e o êxodo rural.
Entre os fatos que ocorrem nesse período que caracterizam o processo de
redemocratização do País e que vão influenciar decisivamente o movimento sindical rural
no RS estão: o trabalho de organização de base realizado especialmente por setores da
Igreja Católica (e também da Igreja Luterana) - a partir da Teologia da Libertação290 e da
Opção pelos Pobres na América Latina291; as grandes greves dos trabalhadores
metalúrgicos na região do ABC paulista e o surgimento da proposta do Novo
Sindicalismo292 que culminou na criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em
1983; o surgimento de vários movimentos sociais rurais no período como o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comissão Regional de Atingidos por
Barragens (CRAB) – que mais tarde vai se transformar no Movimento de Atingidos por
Barragens (MAB) e o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR).
Conforme Eder Sader, houve três agências ou centros de elaboração discursiva
para os novos movimentos sociais que surgiram no final da década de 1970, advindas de


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Contato:
<anacletoverpt@yahoo.com.br>
290 Voltaremos ao tema mais adiante.
291 Conforme Boff, a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellin, na

Colômbia, em 1968, foi marcante para a Igreja Católica, pois fez uma opção histórica “em favor dos pobres,
pela sua libertação integral e pelas Comunidades Eclesiais de Base”. Segundo o teólogo, “aqui se erige o
marco básico e oficial da nova Igreja que se propõe encarnar-se nas classes dominadas e mantidas
subalternas”. (BOFF, 1998, p.66).
292 Também trataremos sobre isso posteriormente.

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instituições em crise que abrem espaços para novas elaborações: 1) “Da Igreja Católica,
sofrendo a perda de influência junto ao povo, surgem as comunidades de base”; 2) “De
grupos de esquerda desarticulados por uma derrota política, surge uma busca de novas
formas de integração com os trabalhadores”. 3) “Da estrutura sindical esvaziada por falta
de função, surge um novo sindicalismo”. (SADER, 1988, p. 144).
Muitos pesquisadores já se debruçaram sobre esses novos movimentos sociais,
inclusive estudando o sindicalismo rural. No entanto, somos da opinião que esse debate
não está esgotado. Pelo contrário. No cenário atual marcado pelas crises política,
econômica, social e ambiental, esse debate precisa acontecer constantemente. Por isso,
este artigo procura identificar a importância que o sindicalismo rural cutista teve para a
ampliação dos direitos dos trabalhadores rurais no Rio Grande do Sul. Além disso, busca
elencar a sua contribuição para o processo de redemocratização que ocorreu nessa época
no País e o que essa experiência pode ensinar para o processo de fortalecimento da
democracia no Brasil nos dias atuais, nesse cenário de crise. É necessário ressaltar, no
entanto, que não temos a pretensão de trazer posições definitivas, pois vivemos um
cenário cada vez mais complexo e carregado de incertezas. O objetivo, portanto, é dar
nossa opinião nesse importante debate. Iniciaremos através de uma pequena análise em
relação aos conceitos de democracia, cidadania e movimentos sociais.

Democracia e Cidadania: conceitos que se completam

O sociólogo francês Alain Touraine escreve que “a democracia existe realmente


quando a distância que separa o Estado da vida privada é reconhecida e garantida por
instituições políticas e pela lei”. (TOURAINE, 1996, p. 43). Afirma ainda: “Ela não se reduz
a procedimentos porque representa um conjunto de mediações entre a unidade do Estado
e a multiplicidade dos atores sociais.” E prossegue: “É preciso que sejam garantidos os
direitos fundamentais dos indivíduos; é preciso também que estes se sintam cidadãos e
participem da construção da vida coletiva”. Diz também que “é preciso que os dois
mundos – o Estado e a sociedade civil – que devem permanecer separados, fiquem
também ligados um ao outro pela representatividade dos dirigentes políticos”. E,
finalmente, considera que existem três dimensões da democracia que devem se
completar: “Essas três dimensões da democracia – respeito pelos direitos fundamentais,

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cidadania e representatividade dos dirigentes – completam-se; aliás, é sua interdependência


que constitui a democracia”. (Grifo nosso).
Da mesma forma, o sociólogo brasileiro Liszt Vieira afirma que “a democracia não
é apenas um regime político com partidos e eleições livres”. (VIEIRA, 1999, p. 39). Para o
autor, “é, sobretudo, uma forma de existência social”. Escreve ainda: “Democrática é uma
sociedade aberta, que permite sempre a criação de novos direitos”. (Grifo nosso). E faz uma
importante consideração em relação ao papel dos movimentos sociais:

Os movimentos sociais, nas suas lutas, transformaram os direitos


declarados formalmente em direitos reais. As lutas pela liberdade e
igualdade ampliaram os direitos sociais, os direitos das chamadas
“minorias” – mulheres, crianças, idosos, minorias étnicas e sexuais – e,
pelas lutas ecológicas, o direito ao meio ambiente sadio. (VIEIRA, 1999, p.
39-40).

E para o autor, “um Estado democrático é aquele que considera o conflito legítimo.
Não só trabalha politicamente os diversos interesses e necessidades particulares existentes
na sociedade, como procura instituí-los em direitos universais reconhecidos
formalmente”. (VIEIRA, 1999, p. 40). (Grifos do autor). E prossegue: “Os indivíduos e
grupos organizam-se em associações, movimentos sociais, sindicatos e partidos,
constituindo um contrapoder social que limita o poder do Estado”. E conclui: “Uma
sociedade democrática não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, e está
sempre aberta à ampliação dos direitos existentes e à criação de novos direitos”. (Grifo
nosso).
Ao falarmos em democracia, cidadania e movimentos sociais, portanto, e em pleno
acordo com a visão defendida pelos autores acima citados, é possível concluir que há uma
relação muito direta na construção desses conceitos, ou seja, existe complementaridade
entre si. Ambos se completam. Um não vive sem o outro. No entanto, nos últimos anos,
com a queda do socialismo no leste europeu (simbolizado pela queda do muro de Berlim
em 1989), com a crescente globalização da economia e com o avanço do ideário neoliberal
no mundo, a democracia e a cidadania estão vivenciando uma profunda crise.

A crise da democracia

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São vários os cientistas sociais que se manifestam sobre a crise da democracia.


Entre eles, o filósofo italiano Norberto Bobbio que, primeiramente, faz uma constatação
de que, “historicamente, a ofensiva dos liberais voltou-se sempre contra o seu natural
adversário”, ou seja, “o socialismo, na sua versão coletivista”. E que, nos últimos anos,
“voltou-se também contra o Estado de bem-estar”. Mas, o autor vai mais além, afirmando
que o ataque agora é contra a própria democracia:

(...) agora é atacada a democracia, pura e simplesmente. A insídia é grave.


Não está em jogo apenas o Estado de bem-estar, quer dizer, o grande
compromisso histórico entre o movimento operário e o capitalismo
maduro, mas a própria democracia, quer dizer, o outro grande
compromisso histórico anterior entre o tradicional privilégio da
propriedade e o mundo do trabalho organizado, do qual nasce direta ou
indiretamente a democracia moderna (através do sufrágio universal, da
formação dos partidos de massa, etc.). (BOBBIO, 2000, p. 141).

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos segue na mesma toada, ou seja,


constata que a conjuntura atual é perigosa, na qual a democracia e a cidadania estão cada
vez mais descaracterizadas:

Vivemos, pois, uma conjuntura perigosa, no qual foram desaparecendo ou


sendo descaracterizados ao longo dos últimos cem anos os vários
imaginários de emancipação social que as classes populares geraram com
suas lutas contra a dominação capitalista, colonialista e patriarcal. O
imaginário da revolução socialista foi dando lugar ao imaginário da social-
democracia, e este, ao imaginário da democracia sem adjetivos e apenas
com complementos de direitos humanos. (SANTOS, 2016, p. 22).

É quando falamos especificamente do Brasil, essa realidade é ainda mais complexa


e difícil. Sobre isso, o historiador José Murilo de Carvalho formulou a seguinte questão:
“Como construir um país que combine três coisas: liberdade, participação e justiça
social?” (CARVALHO, 2004, p. 21). E constatou: “Temos liberdade, alguma participação e
muita desigualdade”. Prosseguiu, então: “A liberdade e a participação, para sobreviverem,
precisam gerar igualdade.” Na continuidade do texto, o autor identifica algumas
características que marcam a formação da sociedade e a política brasileiras – o
colonialismo, o patrimonialismo, o coronelismo, a escravidão, a exclusão e a desigualdade
social. E, no final de seu texto, fala sobre a frágil e recente democracia no País, comparando
a desigualdade atual com a escravidão que castigou os povos indígenas e especialmente

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os trabalhadores negros raptados junto a vários povos da África até quase o final do século
XIX:

O grande teste da democracia política de que gozamos desde 1985, e o


grande desafio dos brasileiros, será produzir e implementar políticas que
reduzam a desigualdade que nos separa e a violência que nos amedronta.
A desigualdade é hoje o equivalente da escravidão do século XIX. José
Bonifácio dizia da escravidão que ela era um câncer que corroía as
entranhas da nação e ameaçava sua existência. O mesmo se pode dizer da
desigualdade. (CARVALHO, 2004, p. 32).

Por isso, levando em conta as reflexões dos autores acima citados (José Murilo de
Carvalho, Boaventura de Sousa Santos, Norberto Bobbio, Liszt Vieira e Alain Touraine),
ficam evidentes duas constatações: 1) a democracia e a cidadania precisam caminhar
juntas, ou seja, uma não vive sem a outra; 2) e, infelizmente, com a hegemonia do
pensamento neoliberal, ocorrida nos últimos anos em todo o mundo, esse conceito de
democracia está numa situação de grave crise e em perigo. E as grandes chagas humanas
– fome, desigualdade, exclusão social, guerras, violência, destruição ambiental, entre
outras - estão longe de serem superadas. Assim, consideramos fundamental o estudo dos
Movimentos Sociais, pois, em nossa opinião, possuem um papel significativo no processo
de resistência e de ampliação dos direitos sociais e políticos das classes subalternas em
todo o mundo.

Movimentos sociais e democracia

A socióloga brasileira Maria da Gloria Gohn define os Movimentos Sociais:

(...) como ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que


viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas
demandas. Na ação concreta, essas formas adotam diferentes estratégias
que variam da simples denúncia, passando pela pressão direta
(mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem
constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.), até as pressões
indiretas. (GOHN, 2013, p. 13).
E para a autora, “os movimentos sociais progressistas293 atuam segundo uma
agenda emancipatória, realizam diagnósticos sobre a realidade social e constroem

Para a autora, existem movimentos sociais conservadores e progressistas. Entre os conservadores estão
293

aqueles que não querem as mudanças sociais emancipatórias, mas impor as mudanças segundo seus

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propostas”. E prossegue: “atuando em redes, articulam ações coletivas que agem como
resistência à exclusão e lutam pela inclusão social”. (GOHN, 2013, p. 14-15).
A educadora Conceição Paludo escreve que, nas décadas de 1970 e 1980, se
constituiu no Brasil um “Campo Democrático e Popular (CDP)” que atuava, “de um lado,
em contraposição aos desdobramentos do projeto de modernidade e, de outro, na
continuidade do aprofundamento de concepções e práticas que procuravam articular a
democracia com a justiça social e com a construção de um projeto alternativo de
sociedade.” (PALUDO, 2001, p. 45). Para a autora, nesse período, ocorre um alargamento
substantivo da Sociedade Civil brasileira e constituem-se novos movimentos sociais:

Neste período, sob a ação também do CDP, há um alargamento substantivo


da Sociedade Civil brasileira e das classes populares que, pela primeira vez
na história brasileira, constituem-se como sujeitos políticos e passam a se
expressar na cena pública de forma autônoma e falando por si mesmos.
Constituem-se os chamados novos movimentos sociais e, no caso
brasileiro, diferentemente do que aconteceu na Europa, são também
nomeados como movimentos sociais populares. (PALUDO, 2001, p. 46-47).

A cientista política Evelina Dagnino, por sua vez, endossa a concepção de que os
movimentos sociais brasileiros dessa época vão trabalhar com a visão de cidadania
ampliada: “A então chamada nova cidadania ou cidadania ampliada começou a ser
formulada pelos movimentos sociais que, a partir dos anos 70 e ao longo da década de 80,
se organizaram no Brasil (...)”. A autora continua: “A disseminação dessa concepção de
cidadania (...) orientou não só as práticas políticas de movimentos sociais de vários tipos,
mas também mudanças institucionais, como as incluídas na Constituição de 1988,
conhecida como a Constituição Cidadã.” (DAGNINO, 2004, p. 153-155). (Grifo nosso).
Em outro texto, Dagnino et al. (DAGNINO et al., 1998, p. 21) afirmam que: “a
experiência concreta desses movimentos incluiu um conjunto de processos que
introduziu uma concepção alternativa de democracia (...) e uma noção nova de cidadania”.
E ressaltam que tais processos foram caracterizados por: “a construção de identidades
coletivas, o desejo de autonomia, a busca de novas práticas organizacionais que
enfatizassem formatos mais democráticos e a constituição de sujeitos sociais, baseada no
desenvolvimento de uma noção de direitos”. E, mais adiante, falam sobre o significado da

interesses particularistas, muitos deles fundamentados em xenofobias nacionalistas, religiosas, raciais etc.
(GOHN, 2013, p. 14).

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luta pela cidadania dos movimentos: “O significado dessa luta se relaciona com a
percepção de que os direitos não constituem mera dádiva, mas devem ser conquistados
pelos cidadãos e pela sociedade como um todo”. (DAGNINO et al., 1998, p. 48).
Vamos concluir esta parte com o posicionamento de Eder Sader a respeito dos
movimentos sociais: “Eles mostravam que havia recantos da realidade não recobertos
pelos discursos instituídos e não iluminados nos cenários da vida pública”. E acrescentou:
“Através de suas formas de organização e de luta, eles alargaram as fronteiras da política”.
(SADER, 1988, p. 314). É nesse contexto, portanto, que analisaremos a experiência do
sindicalismo rural cutista no Rio Grande do Sul nas páginas a seguir.

O surgimento do sindicalismo dos trabalhadores rurais no RS

No Rio Grande do Sul, a fundação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs)


acontece a partir dos anos 1960. Conforme Cláudia Schmitt, o fato se relaciona com a
atuação de setores conservadores da Igreja Católica: “A ação da Frente Agrária Gaúcha
(FAG), associação civil fundada em 1961 por iniciativa dos Bispos gaúchos, pode ser
considerada como sendo decisiva no processo de constituição dos sindicatos.” (SCHMITT,
1996, p. 190).
Paulo Bassani, por sua vez, além de ressaltar o papel importante desempenhado
pela FAG na criação dos primeiros sindicatos de trabalhadores rurais no RS, enfatizou que
um de seus principais objetivos era enfrentar o MASTER294 e combater o avanço do
comunismo:

A FAG fora criada não apenas para disputar a organização sindical, mas,
fundamentalmente, para combater o comunismo. No discurso de criação
da FAG fica claro que o objetivo premente era o combate ao comunismo,
representado pelo movimento dos Agricultores Sem Terra que se
manifestava no interior do estado, principalmente em regiões de pouca
influência da Igreja Católica, e que poderiam se tornar uma ameaça nas
regiões onde a Igreja exercia maior controle, como a zona colonial.
(BASSANI, 2009, p. 50).

Bassani registra também que, no período pós-1964, ou seja, a partir do Golpe


Militar, “a FAG passa a criar um maior número de sindicatos, inclusive em regiões que

294O Movimento dos Agricultores Sem Terra do Rio Grande do Sul – MASTER – surgiu como uma iniciativa
de membros do PTB gaúcho, com a liderança do governador Leonel de Moura Brizola (BASSANI, 2009, p.
47).

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eram controladas pelo MASTER”. Dessa forma, conforme o autor, “a Igreja passa a agir de
maneira absoluta, condicionando a criação dos sindicatos sob sua tutela”. E conclui:

Com uma proposta sindical conservadora, a FAG pretende formar a


consciência camponesa gaúcha dentro dos pressupostos doutrinários
político-ideológicos que seus principais articuladores haviam formado, a
partir das interpretações da Doutrina Social Cristã. (...) O combate aberto e
declarado aos grupos de esquerda, como já mencionamos, foi uma das
características da práxis sindical conservadora da FAG. (BASSANI, 2009, p.
117-119).

Dessa forma, conforme o autor, a FAG, entre 1963 e 1977, organizou 224 sindicatos
de trabalhadores rurais no RS, pois seu caráter conservador não se contrapunha à agenda
do regime militar. Conforme Schmitt, “a representação sindical outorgada pelo Estado
institucionaliza-se, portanto, no meio rural (...)”. E prossegue: “No plano legal, a tutela do
Estado se manifesta na imposição da unicidade sindical, no controle sobre a vida
financeira dos sindicatos, na imposição do estatuto padrão, no poder de intervenção das
Delegacias Regionais do Trabalho (DRTs) sobre eleições sindicais (...)”. (SCHMITT, 1996,
p. 191). Além disso, a autora registra que os STRs institucionalizam nessa época o “balcão
de atendimento ao associado” e assumem o papel de “executores de políticas
governamentais”:

A partir da criação do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural


(FUNRURAL), os sindicatos tornam-se órgãos executores de políticas
governamentais específicas direcionadas à categoria, reforçando sua
legitimidade junto aos associados, não enquanto instâncias de
representação política, mas, sim, enquanto agências de prestação de
serviços. (SCHMITT, 1996, p. 191).

Portanto, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, quando surge o
sindicalismo rural ligado à Central Única dos Trabalhadores (CUT) no RS, eram grandes
as barreiras a serem superadas para construir um novo sindicalismo. Por outro lado, a
partir de vários fatores favoráveis e de forte trabalho de base, como será visto em seguida,
aconteceram importantes transformações no sindicalismo rural nessa nova fase.

Nasce um novo sindicalismo rural no RS

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Conforme estudo que realizamos, a retomada das lutas sociais no meio rural, no
final da década de 1970 e no decorrer dos anos 1980, caminhou de mãos dadas com o
ressurgimento do sindicalismo brasileiro de contestação em todo o País. A CUT, fundada
em 1983, procurou integrar todos os trabalhadores reunindo, sob uma mesma estrutura
sindical, diferentes vertentes de enfrentamento ao sindicalismo oficial surgidas no
processo de desintegração do regime militar, tanto no campo como na cidade. (ZANELLA,
2004, p. 183).
No bojo das grandes greves dos metalúrgicos do ABC paulista no final dos anos
1970 e da retomada das mobilizações dos trabalhadores em todo o país, desenvolve-se
uma nova concepção sindical denominada novo sindicalismo que terá papel decisivo na
criação da CUT. Para entendermos essa proposta sindical, trazemos o registro de
Rodrigues, que destaca duas importantes ideias – da demanda geral das classes populares
pela ampliação dos direitos democráticos e da luta e organização dos trabalhadores no
local de trabalho:

(...) a trajetória do chamado novo sindicalismo e, por extensão, da CUT, não


pode ser dissociada da demanda mais geral das classes populares por
direitos democráticos. Surgindo no período de declínio do autoritarismo
militar, esse movimento se consolidou enfrentando o regime de exceção e
defendendo a democratização no Brasil, mudanças sociais e econômicas
que fossem benéficas aos trabalhadores e associando estas reivindicações
mais gerais com a defesa de melhores condições de vida e trabalho para os
assalariados e aos temas mais diretamente ligados ao cotidiano do
trabalho. (RODRIGUES, 1999, p. 77). (Grifo do autor).

Zander Navarro destaca três fatores como determinantes na formação e no


desenvolvimento do sindicalismo rural combativo ligado à CUT no RS: “a liberalização
política no período, as mudanças estruturais na economia agrária do estado e seus
impactos sociais e a ação de setores progressistas da Igreja Católica, fatores esses que
exerceram influência bastante diferenciada no tempo e no espaço agrário”. (NAVARRO,
1996, p. 67).
Em relação à Igreja Católica, o autor destaca que esse apoio não era homogêneo,
ou seja, era realizado pelos mediadores religiosos influenciados pelos ditames da Teologia

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da Libertação295. (NAVARRO, 1996, p. 67-68). No entanto, o autor salienta: “Neste


contexto, a atuação da Igreja progressista foi decisiva. Quase sem exceções, foram os
mediadores religiosos que formaram os futuros quadros dos quatro movimentos sociais
(...)”296. (NAVARRO, 1996, p. 84). (Grifo do autor). O pesquisador ressalta a riqueza desse
momento, pois “se instalou um processo de renovação de práticas sindicais
extremamente promissor, quanto ao seu conteúdo democrático”. E destaca a importância
da mediação religiosa na construção da proposta do novo sindicalismo:

O ‘novo sindicalismo’, como os outros movimentos, nasceu de uma


inspiração metodológica estimulada pela ala progressista da Igreja
Católica, que incentivava a participação e o debate amplo entre os sujeitos
da história na definição de suas ações e objetivos – o que os críticos
chamariam de basismo, simbolizado idealmente na prática das
comunidades eclesiais de base. (NAVARRO, 1996, p. 86-87).

Para o autor, “transposto ao sindicato, os novos militantes passaram a desenvolver


intensas atividades de reuniões, semanas sindicais (conjunto de atividades formativas),
etc., entre outras atividades, em claro contraste com a história do sindicalismo oficial, que
usualmente via seus associados como ‘clientes’ e o sindicato quase que como uma esfera
privada”. O autor salienta que “o sindicalismo cutista, pelo contrário, abriu o sindicato (...),
instituindo uma transparência sem precedentes na história do sindicalismo rural”.

Conforme Claudia Schmitt, “o mapa de implantação da CUT no campo no RS


interpenetra-se em grande medida, com a distribuição dos conflitos agrários no espaço

295 Segundo Leonardo Boff, “o ponto de partida da Teologia da Libertação é, pois, a luta dos oprimidos que
fazem de sua fé uma inspiração especial para o engajamento social em vista da mudança da sociedade,
portanto, da libertação e não apenas do desenvolvimento desigual e associado ao desenvolvimento dos
países centrais”. E continua: “a palavra libertação quer designar um desenvolvimento autossustentado, não
mais vinculado a relações de opressão e de dependência, mas relações de equidade e solidariedade”. (BOFF,
1998, p. 200). O autor faz também uma diferenciação entre a Teologia da Libertação e o Marxismo: “A
Teologia da Libertação representa a primeira construção teórica da fé elaborada no Terceiro Mundo com
significação universal. A considerar-se bem, ela forneceu a melhor refutação prática do ateísmo moderno e
da crítica marxista da religião-ópio”. Conforme Boff, “o ateísmo moderno se dizia humanitário, pois negava
Deus em nome da liberdade das pessoas. A Teologia da Libertação tem mostrado que não necessitamos
negar Deus para afirmar a liberdade dos oprimidos. O Deus bíblico é um aliado dos oprimidos. Sua atuação
na história é em função da libertação dos que estão gritando sob a opressão”. (BOFF, 1998, p. 210).
296 Os quatro movimentos sociais que Navarro se refere são: Movimento Sindical Rural ligado à CUT;

Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST); e o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), todos com forte atuação no RS. Além
disso, atuavam de forma articulada com os novos Movimentos Sociais Rurais nos três estados do Sul do país.

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territorial gaúcho”. (SCHMITT, 1996, p. 214). A pesquisadora registra que “o sindicalismo


combativo” – também chamado de “renovação sindical” ou “novo sindicalismo” - encontra
sua maior expressão no norte do estado, que figura, nesse mesmo período, como centro
da luta pela terra e do processo de resistência à construção das barragens.
No caso da região Alto Uruguai (que fica no norte do RS), a proposta sindical da
CUT no meio rural (e também urbano) tornou-se hegemônica no decorrer da década de
1980. Para isso, constatamos dois fatores determinantes: o apoio decisivo da Igreja
Católica, através dos mediadores que atuavam nas Pastorais Sociais; e a forte relação de
apoio existente entre os vários movimentos sociais rurais na região (CRAB, MMTR, MST,
Sindicatos Urbanos e Rurais ligados à CUT, entre outros atores sociais). (ZANELLA, 2004,
p. 242).

Considerações finais

Nesse período, a partir dos estudos dos autores citados, consideramos que o
movimento sindical rural cutista no RS, especialmente no norte do estado, vivenciou um
processo extremamente positivo em seu desenvolvimento. Ressurgiu com força política e
organizativa e se transformou em importante ator social na luta pelos direitos dos
trabalhadores/as rurais , tanto na busca de melhores políticas agrícolas como na
conquista de direitos sociais como a aposentadoria rural, garantidos na Constituição de
1988.
Além disso, fruto de um trabalho intenso de formação religiosa, social e política,
muitas lideranças, especialmente da juventude rural, participavam de diversos
movimentos ao mesmo tempo: Sindicalismo cutista, MST, CRAB, MMTR. As grandes
mobilizações que vão ocorrer nesse período – luta pela terra, contra a construção das
barragens, em defesa dos direitos sociais na Constituinte, por melhores preços aos
produtos originários da agricultura, pelo seguro agrícola, entre outras, todas eram
apoiadas entre si.
Aos poucos, essas novas lideranças, em sua maioria, vão assumir também o
trabalho de organização partidária, especialmente do Partido dos Trabalhadores (PT),
inclusive vários líderes concorreram nas eleições municipais de 1988 e nos anos

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seguintes. Dessa forma, muitos líderes rurais vão ocupar cargos públicos de Vereador,
Secretário, Prefeito, Vice-prefeito, Deputado Estadual, Deputado Federal, entre outros.
Concluímos, portanto, que o movimento sindical rural cutista do RS - em conjunto
com outros movimentos sociais rurais e apoiados especialmente por mediadores
religiosos -, contribuiu decisivamente pela ampliação da democracia e da cidadania no
Brasil. Entre as contribuições dadas, destacam-se: o processo organizativo, o trabalho de
base, a formação de novas lideranças, a atuação na luta por mais direitos, a participação
na política, dando voz e vez às pessoas humildes (homens e mulheres) que vivem nas
pequenas comunidades rurais. No cenário atual em que a democracia corre perigo, essa
experiência deve ser estudada.

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FORA DA LEI, DENTRO DO JOGO: DENÚNCIAS DE ILEGALIDADES NAS


CAMPANHAS ELEITORAIS NO RIO GRANDE DO SUL (1945-1950)

Douglas Souza Angeli

O período da República Democrática (1945-1964) constituiu uma experiência de


aprendizado da democracia em proporções até então desconhecidas da política brasileira:
crescimento do eleitorado, partidos políticos nacionais e um sistema eleitoral competitivo
foram marcos dessa fase. Porém, percebe-se também algumas das fragilidades dessa
experiência (mas igualmente constitutivas da mesma). Se as eleições desse período foram
marcadas pela emergência de práticas de campanha eleitoral que geraram novas relações
entre candidatos e eleitores, nelas também é perceptível a sobrevivência de práticas
coercitivas e clientelistas.
A pesquisa sobre a mobilização eleitoral no município de Canoas entre 1947 e
1963, realizada no mestrado, teve como um dos focos evidenciar o papel das práticas de
campanha eleitoral que se davam para além da propaganda na imprensa: caminhadas,
comícios, visitas, churrascos, instalação de comitês, etc, mas também a existência de
práticas à margem da lei. A pesquisa de doutorado, em andamento, ao tratar das
campanhas eleitorais de 1947, 1950 e 1954 no Rio Grande do Sul, não negligencia esse
aspecto: denúncias de ilegalidades servirão para compreender o ambiente de práticas no
qual se davam tais campanhas. As fontes, telegramas na correspondência dos governantes
e denúncias na imprensa, indicam o padrão destas práticas e seu papel na competição
política, sendo este o foco da reflexão do presente trabalho.

Práticas de campanha eleitoral em Canoas/RS (1947-1963)

No estudo das campanhas empreendidas por partidos e candidatos nas eleições


municipais realizadas em Canoas/RS entre 1947 e 1963 foi possível perceber como os


Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Doutorando do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista do CNPq. Contato: <
douglasangeli@hotmail.com>

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agentes nelas envolvidos foram aprendendo a colocar em ação um conjunto de práticas


de mobilização. Momentos nos quais as formalidades eram parcialmente rompidas, como
os almoços e jantares – em que o churrasco era cardápio constante – faziam parte do
cotidiano das campanhas eleitorais, conforme destacam as notícias e evidenciam as
fotografias de diferentes eleições.
Nas eleições municipais em Canoas, o eleitorado operário era disputado por todos
os candidatos, e não somente pelos trabalhistas, como indicado pela notícia publicada em
1959 acerca do candidato Lagranha (PSD): “Sabemos que S.S. está trabalhando com afinco
junto com seus correligionários pela sua propaganda política, fazendo um trabalho sem
alarde, porém de grande penetração nas massas operárias de nossa cidade”297. Pontos de
referência para reuniões, celebrações e distribuição de propaganda dos candidatos, os
comitês seguiram como peça importante na capilarização das campanhas eleitorais.
Em 1959, o jornal Folha de Canoas divulgava as inaugurações de comitês,
principalmente das candidaturas do PTB e de seus aliados. A edição de 26 de julho trazia
na capa o anúncio de uma homenagem ao candidato a prefeito José João de Medeiros, ao
candidato a vice-prefeito Ariovaldo Aguiar e ao candidato a vereador João Galhardo, todos
do PTB, que seria realizada na vila Mathias Velho no dia seguinte. Fiel às práticas
gastronômicas típicas do período eleitoral, estava prevista uma “galinhada” para
satisfação daqueles que comparecessem ao evento298.
Já para a inauguração de um comitê do candidato Israel Alves (PSP), o cardápio
previsto contava com “um churrasco monstro regado a chopp”, sobre o qual podemos
supor que se tratava de um incentivo a mais para a presença de grande público ao evento.
Nota-se que o jornal mencionava a inauguração de um “comitê apartidário pró-
candidatura do Sr. Israel Alves”299, demonstrando, na adjetivação do espaço, um cálculo
referente a sua legalidade: conforme a legislação eleitoral, os partidos políticos e os
candidatos estavam autorizados a promover campanha eleitoral nos três meses que
antecediam ao pleito. Como as eleições se procederiam em 08 de novembro, o período

297 CAMPANHA do candidato do PSD. Folha de Canoas, Canoas, 04/04/1959, p. 07. [UPHAM].
298 SERÁ prestada uma homenagem. Folha de Canoas, Canoas, 26/07/1959, capa. Hemeroteca da Unidade
de Patrimônio Histórico e Arquivo Municipal de Canoas [UPHAM].
299 COMITÊ para o Sr. Israel Alves. Folha de Canoas, Canoas, 26/07/1959, capa. [UPHAM].

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oficial de campanha teria início somente em 08 de agosto, ou seja, duas semanas depois
da referida inauguração300.
Assim, se por um lado a presença dos candidatos nas vilas era um sinal da
necessidade, gerada pela democracia, da conquista do voto das camadas populares, por
outro há indícios do oferecimento de bens e vantagens em troca deste mesmo voto. A
partir desse ponto, a pesquisa do mestrado começou a trazer indícios de algo que não
havia aparecido nas fontes utilizadas no início do trabalho: as práticas de campanha
eleitoral que se davam à margem da lei. Assim, na parte final da dissertação houve atenção
para estes indícios. Antes de passarmos a esta questão, um quadro com as práticas de
campanha eleitoral identificadas em Canoas:

Quadro 1 - Práticas identificadas nas campanhas eleitorais de Canoas (1947-1963)


Categoria Práticas identificadas
Formação de alianças
Qualificação
Formação de setores (feminino,
Atividades partidárias Reuniões
jovem)
(pré-eleitorais) Convenções
Formação de núcleos e subdiretórios
Arregimentação de filiados
Escolha dos candidatos
Inaugurações de comitês Comícios
Capilarização da
Caminhadas Reuniões públicas
campanha
Visitas Distribuição de propaganda
Cerimônias e Inaugurações de retratos Almoços e jantares
confraternizações Pronunciamentos Churrascos
Confecção de faixas, cartazes Visitas a autoridades e imprensa
Divulgação da
Afixação de faixas e cartazes Publicação de notas e anúncios
imagem dos
Fotografias Programas de rádio
candidatos
Elaboração de propostas Debates e entrevistas
Inauguração de comitês fora do
Práticas à margem da período eleitoral Distribuição de alimentos
lei Destruição da propaganda de Oferecimento de vantagens
adversários
Boatos e intrigas Suposições
Práticas
Brigas Promessas
comportamentais
Injúrias Demonstrações de entusiasmo
Santinhos Cartazes Comitês
Cédulas Faixas Mapas dos comitês
Instrumental
Flâmulas Caixas de som Listas das mesas
Clichês Microfones eleitorais
Quadro elaborado pelo autor. Fonte: ANGELI (2015).

Indícios de práticas ilegais

300Conforme a lei n.º 1.164, de 24 de julho de 1950, que instituiu o Código Eleitoral, parágrafo 6º do artigo
151, a campanha “compreenderá em todo o país os três meses anteriores às eleições para Presidente e Vice-
Presidente da República e, em cada circunscrição eleitoral, os três meses anteriores às suas eleições gerais”.

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No jornal Expressão, de Canoas, o colunista E. M. denunciou a prática de


distribuição de alimentos durante a enchente de 1954: “Certos candidatos estão suprindo
a ausência de virtudes pessoais para atrair as preferências do eleitorado, com a
distribuição de gêneros alimentícios aos flagelados, ocasião em que aproveitam para
insinuar a propaganda eleitoral”301. Neste texto, o trabalhista Edson Medeiros acusava
alguns políticos de estarem se aproveitando da situação calamitosa da população para
permutar alimentos por votos. Durante a campanha de 1959, D. M., mãe de E. M. e esposa
de J. M, então prefeito, teria sido acusada de prática semelhante, conforme se conclui do
texto publicado pelo jornalista João Galhardo302: “Chega mesmo a afirmar [o prefeito
Sezefredo] que D. M., digníssima esposa do Sr. J. M, é corrupta porque perguntou a
diversos canoenses se possuíam título eleitoral, na ocasião em que lhes distribuía
insignificantes ranchos”.
Nas eleições seguintes, trocas de acusações entre o prefeito Sezefredo e os
apoiadores de José João de Medeiros (PTB) tomaram a forma de notas publicadas,
inclusive, na imprensa da capital. Conforme publicação do jornalista José Fontes, na
Gazeta de Notícias, problemas de família estavam sendo utilizados como arma de ataque
dos candidatos. Além disso, práticas como apedrejamento de carros, perfuração de pneus,
uso de palavras obscenas e destruição de propaganda eleitoral de adversários teriam sido
observadas durante aquela campanha eleitoral. Em artigo publicado no jornal Folha de
Canoas, o candidato a vereador e jornalista João Galhardo (PTB) denunciava as ações que
buscavam prejudicar a campanha dos trabalhistas: depredação de carros, injúrias,
provocações e destruição de propaganda303.
Na Câmara Municipal, ocorrências durante os dias da eleição e seus resultados
eram tema de debates nos dias que se seguiam. Na sessão do dia 04 de outubro de 1955,
o vereador Jacob Longoni (PRP) solicitou o registro de um incidente que, conforme
palavras suas, havia ofuscado o “brilho do polimento” do pleito realizado no dia anterior:
um cidadão de 80 anos teria sido convidado a entrar em um automóvel no momento em
que se dirigia ao local de votação. Aceitando o convite, o cidadão teria sido interrogado,
no caminho, com relação ao seu voto. O motorista, que havia oferecido a carona, teria

301 Enchente e política. Expressão, Canoas, 22/08/1954, p. 04. [UPHAM].


302 GALHARDO, João. Quem semeia ventos... Folha de Canoas, Canoas, 08/11/1959, p. 04. [UPHAM].
303 GALHARDO, João. Quem semeia ventos... Folha de Canoas, Canoas, 08/11/1959, p. 04. [UPHAM].

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insistido para que o idoso trocasse as cédulas com as quais pretendia votar por outras, de
candidato diverso. Conforme o vereador, o ocorrido teve o seguinte desfecho: “Como
afirmasse que seus candidatos já estavam escolhidos, naquele momento o cidadão de
avançada idade foi convidado a descer da condução aos empurrões”. Longoni solicitou o
apoio da Câmara no sentido de repudiar o ocorrido com veemência304.
Nas eleições seguintes, em 1959, novamente o plenário da Câmara Municipal seria
palco de discussões acerca da campanha eleitoral. Em 16 de novembro de 1959, ainda
repercutia a nota publicada pelo prefeito Sezefredo Vieira (PRP) nos jornais Correio do
Povo e Folha da Tarde – na qual acusava os candidatos petebistas de haverem difamado a
sua administração. O vereador Ariovaldo Aguiar (PTB) ressaltou que em sua campanha
eleitoral não havia proferido nenhum ataque aos adversários e que os vereadores eleitos
pelo PTB e que haviam sido mencionados por Manoel Calbo (PSD) na sessão anterior
estariam na Câmara a partir do ano seguinte e poderiam se defender. Em resposta, o
vereador Armando Würth (PSD) declarou que o prefeito eleito, José João de Medeiros, não
teria proferido os ataques durante os comícios, mas sim nas casas dos eleitores, onde
havia distribuído jornais difamatórios contra o orador. Conforme o registro em ata, Würth
ainda acusou o núcleo local da Legião Brasileira de Assistência de haver distribuído
alimentos e colchões, às vésperas das eleições, juntamente com propagandas do J. M. e de
seu filho E. M.305. E. M. seria criticado novamente quatro anos mais tarde, quando os
vereadores, em nova oportunidade, avaliavam os resultados eleitorais em sessão da
Câmara Municipal. Na ocasião, o vereador Melton Both (PRP) acusou E. M. de haver se
utilizado de “expedientes demagógicos às vésperas das eleições”, tais como a distribuição
de cobertores aos pobres306.
Assim, tivemos mais indícios de que a mobilização eleitoral empreendida pelos
partidos, candidatos e seus apoiadores era, por um lado, caracterizada pela divulgação da
imagem dos candidatos e de suas propostas, por meio da propaganda, dos comícios, dos
comitês, das visitas e de outras práticas pelas quais se buscava conquistar
democraticamente o voto do eleitor, mas, por outro lado, também era permeada por

304 CÂMARA MUNICIPAL DE CANOAS. Ata 491. 04/10/1955. Arquivo Câmara Municipal de Canoas [ACMC].
305 CÂMARA MUNICIPAL DE CANOAS. Ata n.º 859. 16/11/1959 [ACMC].
306 CÂMARA MUNICIPAL DE CANOAS. Ata n.º 84/63. 18/11/1963 [ACMC].

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ações ilícitas como distribuição de bens, a concessão de vantagens e a perturbação da


campanha dos adversários.

Legislação eleitoral e ilegalidades

As eleições de 1945 foram regradas por decreto assinado por Getúlio Vargas e
chamado de Lei Agamenon, em homenagem ao ministro da Justiça Agamenon Magalhães
– responsável pela elaboração do decreto. Em 1950 seria aprovada a lei n. 1.164,
instituindo novo Código Eleitoral – que seria vigente até 1965. Conforme Luciana Ghiggi
(2014), que analisou a legislação eleitoral do período 1945-1964, a lei eleitoral de 1945
favoreceu o continuísmo varguista, mas a experiência democrática pode ser considerada
bem sucedida do ponto de vista do sistema eleitoral – especialmente a partir do Código
Eleitoral de 1950. Conforme a autora, a legislação eleitoral buscou tornar o sistema
político-partidário mais justo, representativo e independente (GHIGGI, 2014, p. 35).
Quanto às infrações e crimes eleitorais, a Lei Agamenon previa a coação e a fraude
como motivos pelos quais a votação poderia ser anulada. Além disso, o item intitulado Das
Garantias Eleitorais estabelecia que a propaganda eleitoral (por meio de comícios,
radiodifusão ou reuniões públicos) deveria cessar 48 horas antes do pleito. O item onde o
tema aparecia diretamente era intitulado Disposições Penais, cabendo ao artigo 123
definir as infrações. No quadro abaixo, foram listadas as infrações relacionadas às
campanhas eleitorais:

Quadro 2 - Infrações relativas à campanha eleitoral conforme a Lei Agamenon


Infração Pena
Oferecer ou entregar aos eleitores cédulas de sufrágios, onde funcione
mesa receptora de votos, ou em suas proximidades, dentro de um raio Prisão de 15 dias a dois meses
de 100 metros
Oferecer, prometer, solicitar, ou receber dinheiro, dádiva ou qualquer
Detenção de seis meses a dois
vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer
anos
abstenção
Valer-se o funcionário de sua autoridade para coagir alguém a votar em
Detenção de seis meses a três
favor de um partido ou candidato, ou exercer pressão sôbre seus
anos
subordinados
Quadro elaborado pelo autor. Fonte: Decreto-Lei nº 7.586, de 28 de maio de 1945.

O Código Eleitoral de 1950 transformou outras práticas de campanha eleitoral em


ilegalidades. O artigo 129 tratava das garantias eleitorais, vedando, no item 7, a
propaganda eleitoral em jornais oficiais, estações de rádio e tipografias de propriedade

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da União, dos Estados, Distrito e Territórios federais, municípios, autarquias e sociedades


de economia mista. O artigo 131 estabelecia que a propaganda eleitoral só poderia ser
realizada em língua nacional, proibindo portanto a propaganda em língua estrangeira –
prática identificada em regiões de imigração. O capítulo VII tratava da propaganda
partidária e o artigo 151 da propaganda lícita aos partidos. Neste, o parágrafo 4º definia
uma infração: “Inutilizar, alterar ou perturbar meio de propaganda devidamente
empregado. O infrator, além de ficar sujeito à ação penal competente, responderá pelo
dano”. E o artigo 175 definia propriamente as infrações penais.

Quadro 3 - Infrações relativas à campanha eleitoral conforme o Código Eleitoral de 1950


Infração Pena
Trocar, arrebatar ou inutilizar cédula em poder do eleitor, ou oferecer
Detenção de quinze dias a
cédula no local da mesa receptora ou nas imediações dentro de um raio de
dois meses
cem metros
Oferecer, prometer, solicitar ou receber dinheiro, dádiva ou qualquer Detenção de seis meses a
vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção dois anos
Valer-se o servidor público da sua autoridade para coagir alguém a votar Detenção de seis meses a
em determinado candidato ou partido três anos
Referir na propaganda fatos inverídicos ou injuriosos em relação a
Detenção de seis meses a
partidos ou candidatos e com possibilidade de exercerem influência
dois anos
perante o eleitorado
Quadro elaborado pelo autor. Fonte: Lei. 1.164 de 24 de julho de 1950.

Percebe-se a manutenção das infrações já previstas na lei de 1945, inclusive com


as mesmas penas previstas, além da inclusão de uma nova ilegalidade, relativa a injúrias
ou veiculação de fatos inverídicos, algo que, conforme apontado anteriormente, foi
identificado no estudo das campanhas eleitorais no plano local. Para efeitos deste
trabalho, não buscamos fontes relativas à aplicação efetiva destas penas, considerando,
entretanto, que a inclusão destas práticas como infrações atestam, por um lado, a
existência de tais práticas como integrantes do conjunto de práticas de campanha
eleitoral e, por outro, sua definição como ilegalidade pelo Estado – o que passa a justificar
sua denúncia às autoridades competentes.
A tese de Lisandre Medianeira de Oliveira (2008), sobre o Partido Social
Democrático (PSD) no Rio Grande do Sul, aponta uma grande recorrência de práticas de
coação eleitoral e de uso da máquina pública nas eleições de 1945 e 1947 em todas as
regiões do estado. Em 20 de novembro de 1945, doze dias antes das eleições, foi expedido
o decreto-lei n° 8.188, que previa o afastamento dos prefeitos que participassem dos
diretórios locais dos partidos. Nesses casos, os juízes de direito poderiam acumular o

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cargo de prefeito. A partir disso, o interventor federal gaúcho “encaminhou à maioria dos
prefeitos um telegrama solicitando o seu afastamento e determinando que os juízes de
direito assumissem as prefeituras” (OLIVEIRA, 2008, p. 49). Para destacar o peso da
máquina pública municipal, sistematizamos os dados coletados pela autora, na
correspondência dos governantes sob a guarda do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
e também no jornal Diário de Notícias, no gráfico a seguir:

Gráfico 1 - Casos de participação de autoridades municipais na campanha eleitoral de 1945


conforme OLIVEIRA (2008) [em número de municípios]

Uso de recursos públicos na campanha 9


Demissão ou transferência de funcionários oposicionistas 5
Violência e coação eleitoral 7
Demais funcionários públicos envolvidos na campanha 20
Delegados envolvidos na campanha 8
Juízes de direito envolvidos na campanha 14
Subprefeitos envolvidos na campanha 21
Prefeitos envolvidos na campanha 89

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

Gráfico elaborado pelo autor. Fonte: OLIVEIRA (2008, p. 67-194).

Sobre as eleições de 1947, Lisandre Oliveira (2008, p. 174) chega a dizer que o
elemento decisivo na campanha eleitoral de Walter Jobim, vencedor do pleito, foi o uso da
máquina pública municipal. A autora destaca que as medidas legais relativas aos prefeitos
que seriam candidatos foram tomadas apenas em novembro de 1946, com alguns
prefeitos sendo afastados de seus cargos mas sendo substituídos, em muitos casos, por
pessedistas (OLIVEIRA, 2008, p. 174). Assim, daremos atenção às denúncias que foram
encaminhadas ao interventor Cylon Rosa (PSD) na campanha eleitoral visando às eleições
de janeiro de 1947 e às encaminhadas ao governador Walter Jobim (PSD) durante a
campanha eleitoral de 1950.

Denúncias de ilegalidades na correspondência dos governantes (1946 e 1950)


Pesquisando na correspondência dos governantes, no Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul, buscamos identificar denúncias de ilegalidades na campanha eleitoral para
o Governo do Estado – cujo pleito se deu em 19 de janeiro de 1947. Não foi possível

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localizar os telegramas enviados ao interventor Cylon Rosa em janeiro de 1947, razão pela
qual contamos com fontes somente dos meses de outubro, novembro e dezembro de
1946. Foram localizados também telegramas enviados ao governador Walter Jobim de
julho a outubro de 1950, correspondendo ao período da campanha visando às eleições de
03 de outubro daquele ano. Assim, contamos com 28 denúncias de 1946 e 17 de 1950,
sendo o seguinte panorama:

Gráfico 2 - Denúncias de ilegalidades na correspondência de Cylon Rosa (1946)

Uso da máquina pública 13

Impedimento de propaganda por autoridades 5

Ameaça e coerção por agentes públicos 5

Perturbação campanha adversários 2

Outros 3

Gráfico elaborado pelo autor. Fonte: Correspondência dos governantes (AHRS).

Gráfico 3 - Denúncias de ilegalidades na correspondência de Walter Jobim (1950)

Membros da polícia em campanha 7

Ameaças e coerção 6

Perturbação campanha adversários 1

Utilização estrutura pública 1

Outros 2

Gráfico elaborado pelo autor. Fonte: Correspondência dos governantes (AHRS).

Embora contemos com poucas fontes, o exame quantitativo indica diferenças


significativas entre as denúncias de 1946 e as de 1950, com destaque para o predomínio
de denúncias relativas ao uso da máquina pública em 1946, presente em 13 casos, contra
apenas um caso identificado em 1950. Em compensação, a maior parte das denúncias de
1950 tratam da participação de delegados nas campanhas eleitorais. As duas questões

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têm explicações distintas. Primeiro, é preciso notar que em 1947 os prefeitos ainda eram
nomeados pelo interventor federal e, portanto, as prefeituras estavam nas mãos do PSD.
As eleições municipais ocorreriam em 15 de novembro de 1947. Assim, em 1950, os
prefeitos municipais já eram eleitos. Embora o PSD tenha sido vencedor na maioria dos
municípios, já não possuía a totalidade devido a vitórias do PL, UDN e PTB. Oliveira (2008)
identificou 81 municípios onde o PSD concorreu nas eleições municipais de 1947. Nestes,
obteve vitória concorrendo sozinho em 38 (47%), foi vitorioso coligado com outros
partidos em 13 (16%) e derrotado em 30 (37%) (OLIVEIRA, 2008, p. 182-194). Isso
também explica que as denúncias de impedimento da propaganda por autoridades
apareça em 1946 mas não em 1950.
Quanto às denúncias de participação de delegados na campanha eleitoral de 1950,
que não constam nos telegramas de 1946, é preciso salientar que o artigo 235 da
Constituição Estadual de 1947 passa a vedar às autoridades e funcionários policiais o
exercício de atividade político-partidárias. A definição da prática como ilegalidade pode
explicar seu aparecimento com destaque entre as denúncias de 1950, visto que mesmo
nos dados coletados por Lisandre Oliveira (2008) sobre 1945, a participação de delegados
de polícia na campanha eleitoral é bem menos recorrente do que a de prefeitos e juízes.
Quanto ao número de denúncias encontradas, uma explicação possível diz respeito à
identificação partidária de quem as subscrevia:

Gráfico 4 - Origem partidária das denúncias de ilegalidades em 1946 e 1950

UDN 7
0
PL 6
2
PTB 5
12
PCB 4
0
ED 1
0
Diversos 3
1
Sem partido 2
2

1946 1950

Gráfico elaborado pelo autor. Fonte: Correspondência dos governantes (AHRS).

Em 1946, temos uma divisão mais equânime da origem partidária das denúncias
entre a UDN, o PL, o PTB e o PCB. É preciso destacar a ausência de denúncias advindas de

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partidários do PSD, partido governista: o PSD e as autoridades locais ligadas a ele são
geralmente os alvos das denúncias. Já em 1950, há o predomínio de petebistas como
denunciantes, seguido de longe pelos libertadores do PL. O PCB, já na ilegalidade,
desparece dessas fontes. Já a UDN, em 1950, estava coligada com o PSD, não sendo
encontradas denúncias cujos signatários fossem udenistas. Assim, dois fatores ligados a
tal divisão podem explicar a diminuição numérica das denúncias em 1950: a coligação da
UDN (responsável por 25% das denúncias de 1946) com o PSD e o PCB (responsável por
14% das denúncias em 1946) na ilegalidade. O acirramento da oposição entre PTB e PSD,
com maior estruturação do primeiro, podem explicar o aumento das denúncias
provenientes de petebistas307.
Em termos qualitativos, a descrição de algumas destas denúncias nos ajuda na
compreensão destas práticas e de seu papel na competição política (mesmo que definidas
como infrações pela legislação). Devido ao espaço reduzido do texto, destacamos apenas
algumas.
No que diz respeito a formas diversas de impedimento das campanhas
oposicionistas, denúncia recorrente nos telegramas de 1946, destacamos dois casos. Em
16 de novembro, o presidente estadual do PTB, José Vécchio, encaminhou denúncia ao
interventor acerca da prisão do trabalhista José Fernandes Sá, em Taquari, no “momento
[em que] afixava [em] via pública propaganda deste partido”308. Em telegrama de 10 de
dezembro, Vécchio faria outras duas denúncias: uma, relativa ao subdelegado e
subprefeito do 6º distrito de Porto Alegre que estaria ameaçando “eleitorado que se filia
[a] partidos independentes”; outra, dizia respeito ao prefeito de Quaraí, que estaria
tomando parte nos comícios buscando “cercear propaganda [em] alto-falantes [do] nosso
diretório só permitindo irradiações em hora e dia por ele marcados”309. Membro do
Comitê Estadual do PCB fez denúncia semelhante contra o delegado também de Quaraí:
“Companheiros nossos [de] Quaraí foram impedidos [pelo] respectivo delegado [de]
realizarem reunião interna [da] direção legal sob alegação [de] determinação superior
exigindo solicitação prévia [de] autorização”310.

307 As informações sobre as eleições, coligações e a dinâmica político-partidária do período tem como
referência o estudo de CÁNEPA (2005).
308 Telegrama de José Vécchio ao interventor Cylon Rosa. 16/11/1946. [AHRS].
309 Telegrama de José Vécchio ao interventor Cylon Rosa. 10/12/1946. [AHRS].
310 Telegrama de Sérgio Holmos ao interventor Cylon Rosa. 10/12/1946. [AHRS].

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No que se refere a categoria mais comum nas denúncias de 1946, uso da máquina
pública para a campanha eleitoral, destacamos alguns exemplos. Dirigentes do Partido
Libertador em Rio Grande encaminharam denúncia contra o prefeito: “Faz trafegar auto
caminhão municipal somente [para] campanha política cessando por completo [os]
serviços [nas] estradas”311. De Soledade, chegava a denúncia: “O subprefeito da cidade [...]
fundos centro qualificação eleitoral subscreve boletins [de] propaganda e percorre
interior do município em ostensiva campanha política acompanhado [pelo] Dr. Promotor
Público e professoras”312. De forma geral, este tipo de denúncia girava em torno do uso de
automóveis das prefeituras nas campanhas e do fato de autoridades municipais estarem
percorrendo os municípios em campanha – em detrimento dos serviços e dos cofres
públicos.
As denúncias de ameaças e coerção aparecem tanto em 1946 quanto em 1950.
Como exemplo, podemos citar o caso de Ijuí: o presidente local da UDN denunciava que o
delegado havia instruído inspetores de polícia a intervirem na eleição, “coagindo assim os
colonos, elementos acanhados para reagirem [devido ao] receio de perseguições” 313.
Semelhante à denúncia com relação ao prefeito de Bento Gonçalves: “Prega necessidade
[de] todos votarem [no] PSD impressionando elementos [da] colônia tal sentido chegando
avançar determinada estrada não seria melhorada caso moradores não acompanhassem
[o] PSD”314. O tema das ameaças aos “colonos” reaparece em 1950. João Goulart, como
presidente do PTB, encaminharia denúncia contra o subprefeito de Cerro Branco
(Cachoeira do Sul): “Anda de casa em casa [em] seu distrito entregando títulos e fazendo
propaganda e pressão [nos] colonos”315. Já o presidente municipal do PTB em Iraí
denunciava: “Verificam-se violências contra trabalhistas [no] interior [do] município.
Para quem se pronunciar trabalhista ou getulista. Promessa e relho. Foi violentamente
espancado um companheiro de Saltinho”316.

*****

311 Telegrama de Alfredo Allan e Antonio Pereira ao interventor Cylon Rosa. 23/11/1946. [AHRS].
312 Telegrama de Ruy Vilasboas ao interventor Cylon Rosa. 20/11/1946. [AHRS].
313 Telegrama de José Frederico ao interventor Cylon Rosa. 19/12/1946. [AHRS].
314 Telegrama de Achylles Mincarone ao interventor Cylon Rosa. 19/12/1946. [AHRS].
315 Telegrama de João Goulart ao governador Walter Jobim. 18/09/1950. [AHRS].
316 Telegrama de Vergílio Radaelli ao governador Walter Jobim. 19/09/1950. [AHRS].

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As fontes examinadas no presente trabalho fazem parte de dois momentos de


pesquisa: a dissertação de mestrado sobre as práticas de mobilização eleitoral em Canoas
e a pesquisa atual, em andamento para a tese de doutorado, sobre as campanhas eleitorais
no âmbito estadual. No primeiro momento, os indícios de ilegalidades nas campanhas
eleitorais locais chamaram a atenção para as práticas à margem da lei e seu papel na
disputa eleitoral. Tratavam-se basicamente de oferecimento de vantagens aos eleitores
(alimentos, colchões, favores) e perturbação das campanhas adversárias, especialmente
entre 1955 e 1963. Os telegramas da correspondência dos governantes indicaram alguns
padrões no concernente a tais práticas no conjunto do Rio Grande do Sul: ameaça e coação
eleitoral, uso da estrutura pública para as campanhas, envolvimento direto de
autoridades tais como prefeitos, subprefeitos, juízes e delegados.
Percebe-se, portanto, dois padrões distintos, permitindo estabelecer a hipótese de
que a competitividade eleitoral entre os partidos na experiência democrática propiciou
práticas de mobilização (legais e ilegais) menos violentas em detrimento das práticas
propriamente coercitivas – embora a violência e a coerção não tenham sido totalmente
suprimidas. Uma possível arguição a esta hipótese: a ausência de denúncias relativas ao
oferecimento de vantagens em troca do voto, na fase inicial da experiência democrática,
não poderia indicar que esta prática era vista como legítima pelos envolvidos na
competição política, não sendo a denúncia, portanto, vista como necessária? De toda a
forma, o exame de tais fontes está indicando a importância de compreender o papel das
práticas eleitorais que se davam dentro e fora dos marcos estabelecidos pela legislação, e
o processo pelo qual tais práticas se tornam ilegalidades e perdem (ou não) legitimidade
no jogo político.

Referências bibliográficas:

ANGELI, Douglas Souza. Como atingir o coração do eleitor: partidos, candidatos e


mobilização eleitoral em Canoas/RS (1947-1963). Dissertação [Mestrado em História].
São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2015.

CÁNEPA, Mercedes Maria Loguercio. Partidos e representação política: a articulação dos


níveis estadual e nacional no Rio Grande do Sul (1945-1965). Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2005.

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GHIGGI, Luciana. Legislação eleitoral e sistema político-partidário de 1945 a 1964:


continuidades e rupturas. Artigo final [Mestrado em Ciência Política]. Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2014.

OLIVEIRA, Lisandre Medianeira. O PSD no Rio Grande do Sul: o diretório mais dissidente
do país nas “páginas” do Diário de Notícias. Tese [Doutorado em História]. Porto Alegre:
PUCRS, 2008.

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A REORGANIZAÇÃO POLÍTICO-PARTIDÁRIA NO RIO GRANDE DO SUL: O


SURGIMENTO DO PARTIDO SOCIAL DEMOCRÁTICO (PSD)

Marcos Jovino Asturian

Introdução

O objetivo deste trabalho é o de apresentar resultados parciais de pesquisa em


andamento no Doutorado em Estudos Históricos Latino-Americanos da UNISINOS. A
formação dos partidos políticos no Rio Grande do Sul pode ser entendida por meio da
identificação das bases de sua economia e sua origem sócio-política. É imprescindível
compreender a sua relação intrínseca à dinâmica nacional – na sua condição de Estado
membro de uma Federação –, bem como os aspectos singulares do processo histórico
estadual. O Partido Social Democrático (PSD) – fundado em 1945 – surgiu no cenário sul-
rio-grandense sob a liderança dos interventores, congregando prefeitos, membros da
administração estadual e outras forças que apoiavam o governo estadonovista: como
proprietários rurais, industriais, comerciantes, funcionários públicos e outros. A sua base
é predominantemente rural e o seu perfil eminentemente conservador.

A reorganização político-partidária no Rio Grande do Sul

A formação dos partidos políticos no Rio Grande do Sul317 pode ser entendida por
meio da identificação das bases de sua economia e sua origem sócio-política. Além disso,
é imprescindível compreender a sua relação intrínseca à dinâmica nacional, ou seja, na
sua condição de Estado membro de uma Federação. Portanto, identifica-se o processo
histórico estadual pela inserção no sistema econômico brasileiro.
A estruturação e a dinâmica da economia sul-rio-grandense baseavam-se
principalmente na produção agropecuária, sendo constituída por três zonas
diferenciadas: zona rural da pecuária, zona rural da pequena produção e zona rural


Doutorando do programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
PROSUC/CAPES. Mestre em História Regional pela Universidade de Passo Fundo. Professor de Ensino
Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal Farroupilha – Campus Frederico Westphalen. Contato: <
mjasturian05@hotmail.com>
317 Entendemos que a formação inicial do sistema partidário – no Rio Grande do Sul – estende-se de 1945 a

1950 (CÁNEPA, 2005, p. 121).

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caracterizada pelas explorações em grande escala de arroz, trigo e gado (MÜLLER, 1979,
p. 365). Já, o desenvolvimento industrial era caracterizado em uma relação de
dependência do setor primário local e se apresentava disperso em pequenas unidades
produtivas. Enfim, o panorama econômico estadual era dependente dos mercados
externos, sobretudo do mercado nacional. 318

Observa-se que a forma de o RS se desenvolver estava nevralgicamente


ligada às exportações e menos ao seu mercado interno. Do ângulo do
capital mercantil e financeiro, em função, nas esferas da intermediação, do
capital produtivo na indústria e nas explorações agropecuárias, seus
modos de reposição e de ampliação passavam e estavam na dependência
de suas relações com o restante da economia brasileira. É isto que
caracteriza a economia gaúcha como dependente. Seu caráter periférico
advém dessa dependência, acentuando-se pelo fato de insistir na
exploração desse modelo histórico (MÜLLER, 1979, 365).

Embora permeado por crises cíclicas – inerentes às economias estruturadas no


setor primário e com baixo nível tecnológico –, observa-se que a economia estadual se
manteve sem apresentar graves problemas até a década de 1940. Contudo, ao final da II
Guerra Mundial, quando aumentou a concorrência dos produtos de outras regiões,
sobretudo das do centro do país, surgiram implicações na economia local. As
consequências dessas transformações são: o êxodo rural, o desemprego, a urbanização
desenfreada, problemas de infraestrutura de serviços urbanos, etc. Portanto, a crise
econômico-social fez com que surgissem grupos sociais emergentes, tornando-os
importantes no cenário político.
Segundo Sandra Pesavento (1990, p. 126),
[...] a identificação dos principais problemas enfrentados pelo estado pode
ser sintetizada em três questões fundamentais: a) a industrialização; b)
êxodo rural; c) transportes e energia. Tais questões envolviam diretrizes
político-partidárias, que por sua vez se revelavam associadas aos
programas de desenvolvimento econômico que se apresentavam para o
Brasil.

Assim, o panorama econômico-social do Rio Grande do Sul fez com que os grupos
políticos buscassem medidas concernentes à dinamização da economia local. A situação

318“[...] dependência do mercado externo, para o qual se destinam 60% da produção de bens, somados os
setores primário e secundário, sendo importante lembrar que 80% dessas exportações dirigem-se ao
mercado nacional” (CÁNEPA, 2005, p. 76).

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de dependência passou a exigir profundas mudanças, o que vai coincidir com a formação
dos partidos políticos em âmbito nacional e repercutir diretamente no caráter político-
partidário do Estado (CÁNEPA, 2005, p. 77).
Conforme Serge Berstein (1996), os partidos políticos nascem somente quando a
sociedade atinge um determinado estágio de desenvolvimento, ou seja, quando congrega
algumas condições de modernidade, tais como: a existência de uma especialização
profissional, a constituição de um conjunto nacional e de uma consciência nacional pela
expansão do mercado interno, o progresso dos meios de informação e, acima de tudo, a
mobilidade espacial e social.
Além disso, no interior do respectivo desenvolvimento, é necessário que ocorra
uma crise, uma ruptura para justificar a emergência de um partido. Logo, um partido
surge como a solução para problemas: no espaço entre um problema e um discurso é que
se situa a mediação política (BERSTEIN, 1996, p. 67-68).
Serge Berstein (1996, p 62-63), pautado nos cientistas políticos americanos,
estabelece critérios que permitem definir os partidos políticos:

[...] a duração no tempo, que garante ao partido uma existência mais longa
que a vida de seus fundadores, e implica que ele responda a uma tendência
profunda da opinião pública. Restaria tentar definir exatamente essa
duração mínima [...] tal definição exclui de fato as clientelas, as facções, os
partidos ligados unicamente a um homem; - a extensão no espaço, que
supõe uma organização hierarquizada e uma rede permanente de relações
entre uma direção nacional e estruturas locais, abrangendo uma parte da
população. Este segundo critério exclui do campo dos partidos os grupos
parlamentares sem seguidores no país e as associações locais sem visão de
conjunto da nação; - a aspiração ao exercício do poder, que necessita de um
projeto global que possa convir à nação em seu conjunto, e que, por isso,
implica a consideração de arbitragens necessárias aos interesses
contraditórios que aí se manifestam. Esta característica, função direta da
mediação política de que falamos acima, exclui os grupos de pressão
representativos de uma categoria definida, como os grupúsculos restritos
à defesa intransigente de uma ideologia, mesmo quando traduzem o nome
de “partidos”; - enfim, a vontade de buscar a apoio da população, seja
recrutando militantes, seja atraindo o voto dos eleitores, condição
indispensável para a realização do objetivo anterior.

Portanto, pela primeira vez na história republicana, adotou-se o caráter nacional


dos partidos como condição obrigatória para o registro de qualquer agremiação. A medida

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rompeu com a velha tradição brasileira de estruturação partidária regional que durante
anos beneficiou as oligarquias estaduais.
Concernente aos partidos políticos é necessário analisar as composições sociais
que eles representam. Existe uma ponderação que eleva a representação de certas
categorias socioprofissionais em função da imagem que o partido passa de si mesmo, de
dados culturais e de interesses sociais. Não obstante, é notório que os partidos também
são interclassistas em sua composição. E, mesmo que uma categoria seja representada
majoritariamente entre o eleitorado, ainda é essencial, para um partido que almeja o
poder, conciliar interesses diversos, ou seja, de outras composições sociais (BERSTEIN,
1996, p. 76-77).
O PTB, por exemplo, apresentou uma proposta mais diretamente dirigida à classe
trabalhadora, sobretudo urbana, apontando para a articulação de um partido de massas
com bases sindicais. Contudo, a aspiração ao exercício do poder, que passa por um projeto
global, fez com que o partido tivesse propostas para outros segmentos sociais, como o
pequeno produtor rural, o profissional liberal, etc.
Para Mercedes Cánepa (2005, p. 66), no Rio Grande do Sul,

[...] embora a criação dos partidos políticos em 1945 se tenha processado


em condições diversas a uma representação efetiva das principais forças
sociais em confronto, estas foram capazes de se organizarem num segundo
momento e, utilizando-se das instituições criadas, por assim dizer de “cima
para baixo”, se fazerem nelas representar. Na verdade, poderíamos dizer
que se assiste a dois movimentos conjugados: de um lado, são as forças
sociais já constituídas ou em constituição que buscam expressão através
das instituições políticas então criadas; de outro, é a classe política que, no
processo de construção ou afirmação de identidade, aproxima-se de
determinados setores sociais e, nesse processo, “transforma-se”, por assim
dizer, assumindo características de verdadeiras forças sociais. Os partidos
em sua atuação concreta seriam os elementos de “canalização” desse duplo
processo.

O Código Eleitoral determinou a intensificação das articulações partidárias,


associando clivagens regionais e forças políticas nacionais. A aglutinação das forças
políticas sul-rio-grandenses esteve permeada pelo padrão nacional: de um lado, as
correntes da oposição antivarguista, configurando-se em torno da União Democrática
Nacional (UDN) e de outro, as correntes do oficialismo, articulado principalmente a partir

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da interventoria estadual, o Partido Social Democrático (PSD), aparentemente fiel a


Vargas (BODEA, 1992, p. 17).

Partido Social Democrático (PSD)

O PSD, fundado em 17 de julho de 1945, começou a ser organizado inicialmente


nos estados, sob a liderança dos interventores, congregando prefeitos, membros da
administração estadual e outras forças que apoiavam o governo estadonovista, como
proprietários rurais, industriais, comerciantes, funcionários públicos e outros. A sua base
é predominantemente rural e o seu perfil eminentemente conservador e nada reformista,
quer no sentido político-administrativo, quer no social (FRANCO, 1974, p. 86-87).
De acordo com Oliveira (1981, p. 111),

A política continuou a ser concedida como um jogo entre elites, só que


agora submetido ao julgamento do sufrágio universal, excluídos os
analfabetos. A existência de eleições tem sido objeto de inúmeras
discussões. As afirmações de que eleições significam um mecanismo de
escolha de políticos ou mecanismo de seleção de políticos têm variado na
teoria democrática. Mas, independente do significado do processo
eleitoral, é preciso lembrar que a franquia democrática não ensejou
governos da classe trabalhadora, nem mesmo nas sociedades mais
próximas e uma divisão bipolar de classes. No caso específico do Brasil de
1945, distante desta situação bipolar, com marcada divisão de interesses
regionais e setoriais, o papel de conciliação do PSD, não só aparece ser o
resultado da análise ex post facto, mas é também assumida pelo que
poderíamos chamar de “filosofia” do partido. O pressuposto de não-defesa
de interesse de uma só classe aparece no próprio programa que explicita
que o PSD objetiva a efetiva e permanente colaboração entre o capital e o
trabalho, no sentido da paz social.

O programa do PSD, de 1945, procurava entremear os direitos fundamentais do


homem e a prática da democracia por meio de propostas concernentes à administração
geral e financeira, organização social, economia nacional, trabalho e previdência, saúde e
assistência, educação e cultura, transporte, comunicações e relações exteriores. Além
disso, enfatizava a prática democrática por meio da conscientização do povo em relação à
democracia e o respeito aos preceitos constitucionais (HIPPOLITO, 2012).
No que diz respeito às diretrizes gerais da economia nacional, o respectivo
Programa elucidava a intervenção estatal de forma direta ou indireta para promover o
desenvolvimento econômico no país. Contudo, é reconhecida a liberdade da iniciativa
privada, bem como o incentivo da entrada de capitais estrangeiros. Em suma, procurou

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demonstrar diretrizes sistemáticas de incentivo e desenvolvimento da indústria, da


agricultura, do comércio e do cooperativismo.

O discurso político, predominantemente liberal no Império e na Primeira


República, social na Segunda e autoritária na Terceira, tornava-se estatal
na Quarta. A longa e pormenorizada ênfase nos planos administrativos e a
superficial e mera esperança na formação de consciência democrática e
vigilante espírito constitucional, onde não falta o conselho paternalista
final de bom comportamento, sem propor como o Estado seria
democratizado e não só tornado mais eficiente e mais social, revelam a
tendência da época. Por exemplo, reivindicação de vários direitos dos
trabalhadores, porém, nenhuma referência aos sindicatos. Idem quanto
aos estudantes e professores, denotando absoluta subestimação das
instituições intermediárias, cerne da sociedade civil perante e sobre o
Estado. Só a este, dirigido por uma elite iluminada (“esclarecida”, como
então se dizia) competiria efetuar mudanças. Tudo, portanto, de cima para
baixo: mais uma versão da “revolução conservadora”, com “ditadura
republicana” fascinado Benjamin Constant Botelho de Magalhães, Floriano
Peixoto, Júlio de Castilhos e Getúlio Vargas, na vertente sempre autoritária,
embora social. O vezo tradicionalista continuou no programa seguinte do
PSD, em 1946 (CHACON, 1998, p. 160).

Getúlio Vargas, quando fundou o PSD, em 1945, reuniu, nesse partido, os


interventores estaduais, nomeados durante o Estado Novo. Essas lideranças eram
representantes de grupos ligados aos poderes locais de cada estado. No Rio Grande do Sul,
o partido também iniciou a sua organização a partir da máquina administrativa estadual
e municipais.

A mobilização das forças governistas por parte do PSD foi garantida


porque, durante o Estado Novo, as bases sócio-econômicas que apoiavam
o regime permaneceram associadas ao poder oligárquico, e não se destruiu
o poder estabelecido, nem em nível municipal, nem estadual, o que facilitou
a estruturação do partido (OLIVEIRA, 2008, p. 44).

Entre as principais lideranças pessedista, na fase inicial de estruturação partidária,


destacaram-se Protásio Vargas – irmão de Getúlio -, o interventor Ernesto Dornelles,
Walter Jobim – que fora Secretário Estadual de Obras durante um significativo período no
Estado Novo – e Oscar Carneiro da Fontoura. Contudo, no Rio Grande do Sul, o PSD não
foi organizado pelo interventor, mas por uma pessoa de grande projeção política e de
ligação direta com a interventoria: Cylon Rosa – Secretário Estadual do Interior nos anos
1944-1945 – que articulou o partido em nível tanto nacional quanto estadual.
No mês de junho foi formada a comissão diretora do PSD rio-grandense composta
por: Protásio Vargas – na presidência -, Walter Jobim, José Diogo Brochado da Rocha,

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Cylon Rosa, Oscar Fontoura, Osvaldo Vergara e José Coelho de Souza. A comissão
pessedista congregou, em sua composição, a confluência de três diferentes origens
partidária anteriores ao Estado Novo. “José Diogo e Osvaldo Vergara, provêm do Partido
Republicano Rio-Grandense. Protásio Vargas, José Coelho de Souza e Cylon Rosa
pertenciam à dissidência de abril de 1937 do Partido Republicano Liberal. Jobim e Oscar
Fontoura provieram do Partido Libertador” (ALBERNAZ, 2006, p. 108).
No Rio Grande do Sul, um mês após ter sido formada a comissão diretora estadual
pessedista, o partido já contava com aproximadamente dez diretórios municipais
distribuídos por diversas zonas do estado. O PSD tornava-se o partido com maior
organização no período. Em julho, o PSD realizou, em Porto Alegre, a primeira convenção
estadual do partido, onde lançou, oficialmente, a candidatura do general Eurico Gaspar
Dutra à Presidência da República e de Walter Jobim para o governo estadual.
Bodea (1992, p. 19), assim analisa as implicações da convenção estadual do PSD:

Nesta convenção começa a se delinear [...] o primeiro esboço de um conflito


que afetaria profundamente o futuro do PSD gaúcho: o choque entre líderes
políticos tradicionais e “elitistas” como Walter Jobim, Carneiro da Fontoura
e Cylon Rosa de um lado e líderes getulistas de massa, de estilo “populista”
do outro. A expressão máxima destes últimos era José Diogo Brochado da
Rocha, ex-diretor da Viação de ferroviários gaúchos. Na primeira
convenção estadual do PSD, José Diogo enfrentou e desafiou os próceres
pessedistas tradicionais com um estilo político distinto, caracterizado por
um apelo à mobilização de massas impregnado de uma tônica social-
reformadora e antielitista. No choque entre estes estilos de liderança,
Protásio Vargas manteve-se prudentemente eqüidistante. O conflito
prenunciava, no entanto, uma fissura política de sérias conseqüências na
história subseqüente do PSD gaúcho, que se manifestariam já a partir de
1946. Mas o resultado mais imediato do conflito na convenção de julho de
1945 foi a criação da chamada ala trabalhista do PSD, germe, na verdade,
da futura articulação do Partido Trabalhista Brasileiro [...].

Considerações Finais

Em última análise, então, percebe-se que o sistema eleitoral e partidário estava se


consolidando no país. O período entre 1945 e 1964 pode ser compreendido como um
processo de construção de uma experiência democrática brasileira por meio da
estruturação dos partidos políticos, do aperfeiçoamento dos mecanismos eleitorais e do
povo como ator político. A incipiente reorganização político-partidária sul-rio-grandense
teve como principal vetor o apoio ou a oposição a Getúlio Vargas. A formação dos partidos,

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no cenário estadual, pode ser entendida por meio da identificação das bases de sua
economia e sua origem sócio-política.
No Rio Grande do Sul, sobre a reorganização dos partidos políticos, observam-se,
de um lado, as especificidades regionais e, de outro lado, a sua relação intrínseca à
dinâmica nacional, isto é, o processo histórico estadual pela inserção no sistema
econômico brasileiro. O Partido Social Democrático (PSD) – fundado em 1945 – surgiu no
cenário sul-rio-grandense sob a liderança dos interventores, congregando prefeitos,
membros da administração estadual e outras forças que apoiavam o governo
estadonovista: como proprietários rurais, industriais, comerciantes, funcionários
públicos e outros.

Referências bibliográficas:

ALBERNAZ, Cássio Alan Abreu. Em busca da cidadania política: o queremismo no Rio


Grande do Sul frente à reorganização política e partidária (1945). Dissertação (Mestrado),
Pontifícia Universidade Católica – PUCRS, Porto Alegre, RS, 2006.

BERSTEIN, Serge. Os Partidos. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

BODEA, Miguel. Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ediufrgs,
1992.

CÁNEPA, Mercedes Maria Loguercio. Partidos e representação política: a articulação dos


níveis estadual e nacional no Rio Grande do Sul (1945-1964). Porto Alegre: Ediufrgs,
2005.

CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros: discurso e práxis dos seus programas.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. História e Teoria dos Partidos Políticos no Brasil. São
Pulo: Omega, 1974.

HIPPOLITO, Lucia. De raposas e reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira.


Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

MÜLLER, Geraldo. A Economia Política Gaúcha dos Anos 30 aos 60. In: DACANAL, J. H;
GONZAGA, S. (Org.). RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 365.

OLIVEIRA, Lisandre Medianeira. O PSD no Rio Grande do Sul: o diretório mais dissidente do
país nas páginas do Diário de Notícias. Programa de Pós-Graduação em História. PUCRS
(Tese). Porto Alegre, 2008.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1990.

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RESULTADOS ELEITORAIS DOS CANDIDATOS A DEPUTADOS


ESTADUAIS PARA A SEGUNDA LEGISLATURA DA ASSEMBLEIA
LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL DURANTE A EXPERIÊNCIA
DEMOCRÁTICA

Tiago de Moraes Kieffer

Considerações iniciais
Na segunda parte do livro O Parlamento em Tempos Interessantes (2005), obra
organizada por Flávio Heinz, é realizada uma pesquisa de caráter prosopográfico que tem
como recorte de análise os deputados estaduais da Assembleia Legislativa do Rio Grande
do Sul. O espaço temporal do trabalho assinalado é definido pela reabertura das
assembleias legislativas em 1947 até o ano de 1982. Uma das informações relevantes
sobre o perfil da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul que a pesquisa nos
apresenta é a hipótese de que a partir da Constituinte Estadual de 1947, aquele grupo de
políticos eleitos naquele pleito encerrariam as suas vidas no parlamento estadual e
dariam lugar para uma nova geração (HEINZ, 2005). O Partido Social Democrático (PSD),
por exemplo, reelegeu apenas um deputado estadual para a legislatura de 1951, a saber,
o montenegrino Jacinto Marinho Fernandes da Rosa (AITA, AXT e ARAUJO, 1996).
Neste trabalho temos por objetivo apresentar um levantamento dos dados
eleitorais relativo aos candidatos do PSD às cadeiras da segunda legislatura da Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul durante a experiência democrática319, focando em fatores
específicos que serão elencados posteriormente. Antes, porém, faz-se necessário
esclarecer algumas questões: Em primeiro lugar, o presente trabalho não tem a pretensão
de “inventar a roda”, antes faz parte de um projeto maior de mestrado em que serão
estudados os deputados estaduais do PSD – dentro e fora da Assembleia Legislativa do
Rio Grande do Sul – durante as duas primeiras legislaturas pós estado-novo (1947-1951
e 1951-1955). Nesse sentido, apenas iremos apresentar dados não contemplados pelas
pesquisas publicadas pelo Memorial da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul


Mestrando do programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
CAPES/PROSUP. Contato: < tiagodekieffer@gmail.com>
319 Eleição realizada em 03 de outubro de 1950. Legislatura iniciada em março de 1951 e finalizada em

janeiro de 1955 (HEINZ, 2005).

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(HEINZ, 2005; PESAVENTO, 1992; SOARES e ERPEN, 2013; DUARTE, 2003; TRINDADE e
NOLL, 2005) ou pelos já consagrados trabalhos na historiografia sobre o período (BODEA,
1992; CÁNEPA, 2005; CORTÉS, 2007; NOLL e TRINDADE, 2004)320.
Em segundo lugar, os dados aqui apresentados foram produzidos pelo Núcleo de
Pesquisa e Documentação da Política Rio-grandense (NUPERGS) e para nossa pesquisa
foram organizados e divididos pelas juntas eleitorais com a finalidade de perceber
números específicos relacionados ao PSD nas diferentes regiões do estado. Portanto, esse
trabalho será divido em 5 pequenas partes: 1) uma breve explicação sobre o quociente
eleitoral e mecanismos das sobras, para que se entenda o porquê de um deputado com
determinados número de votos seja eleito em um partido e em outro não; 2) número de
votos por candidato, tendo sido eleito ou não; 3) influência nos municípios; 4)
porcentagem em relação ao público votante no período 5) porcentagem em relação aos
outros partidos. Necessário lembrar que pela estrutura deste trabalho não será possível
apresentar todos os dados coletados, mas os principais deles, fazendo com que o mesmo
seja menos uma amostra de resultados do que uma demonstração de um caminho de
pesquisa.

Quociente eleitoral e mecanismos das sobras


Das 55 vagas disponíveis no parlamento gaúcho para a legislatura de 1951-1955,
21 cadeiras foram garantidas pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), 17 pelo PSD, 6
pelo Partido Libertador (PL), 4 pelo Partido da Representação Popular (PRP) e pela União
Democrática Nacional (UDN), 2 pelo Partido Social Progressista (PSP) e pelo Partido
Social Brasileiro (PSB) (HEINZ, 2005). O Partido Republicano (PR) não atingiu o quociente
eleitoral suficiente para conquistar uma cadeira na Assembleia Legislativa. Qual era o
critério para um partido ter maior representação que outros? O que seria esse quociente
eleitoral?
Para responder essa pergunta, devemos observar os códigos eleitorais
promulgados durante a República Democrática (1945-1964). O Decreto-Lei n° 7.586 de

320Há uma emergência sobre a necessidade de trabalhos que foquem especificamente o PSD no Rio Grande
do Sul. Grande parte do que se produziu teve como foco de análise o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
com destaque para o trabalho de Miguel Bodea (1992). Por causa dessa lacuna, não podemos deixar de citar
a pesquisa de Lisandre Medianeira de Oliveira (2008) que realiza uma reflexão sobre a relação do jornal
Diário de Notícias do grupo de Assis Chateaubriand com o PSD.

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28 de maio de 1945, popularmente chamada de Lei Agamenon, foi o primeiro Código


Eleitoral pós Estado Novo (1937-1945) que determinou que seriam realizadas as eleições
para presidentes, governadores, senadores federais, deputados estaduais e federais321.
Para os cargos de presidente, governadores e senadores, o critério estabelecido foi o voto
majoritário. Para a Câmara Federal e assembleias legislativas valeria o voto proporcional.
Para as eleições proporcionais, somava-se o quociente eleitoral, isto é, os votos válidos da
eleição, contando-se votos em branco. Após isso, a representação de cada partido era
calculada a partir do quociente eleitoral dividido pela votação partidária total: o resultado
dessa equação, seria o número de cadeiras do partido (GHIGGI, 2014). O artigo n° 48 do
Código Eleitoral de 1945 previa que

Os lugares não preenchidos com a aplicação do quociente eleitoral e dos


quocientes partidários são atribuídos ao partido que tiver alcançado
maior número de votos, respeitada a ordem de votação nominal de seus
candidatos (BRASIL, 1945).

Esse procedimento foi chamado de “mecanismo das sobras”. Segundo Campello de


Souza (1983, p. 120) “esse sistema de absorção das sobras, é evidente, beneficiaria
nacionalmente ao PSD, à UDN em uns poucos estados, e ao PTB ou ao PC”. Por sua vez, a
Lei n° 1.164 de 24 de julho de 1950, o segundo código eleitoral da experiência
democrática, eliminou o “mecanismo das sobras” e a somatória dos votos brancos para o
cálculo do quociente eleitoral. Assim sendo, os lugares que não fossem preenchidos pelo
quociente eleitoral seriam preenchidos a partir dos seguintes procedimentos

Art.59. Os lugares não preenchidos com a aplicação dos quocientes


partidários serão distribuídos mediante a observância das seguintes
regras.
1. Dividir-se-á o número de votos válidos atribuídos a cada partido pelo
número de lugares por êle obtidos, mais um, cabendo ao partido que
apresentar a maior média um dos lugares a preencher.
2. Repetir-se-á a operação para a distribuição de cada um dos outros
lugares.
§ 1° O preenchimento dos lugares com que cada partido fôr contemplado
far-se-á segundo a ordem de votação nominal de seus candidatos.

321 O nome da lei deriva de seu redator, o ministro da justiça Agamenon Magalhães. Entre outras coisas, a
lei eleitoral previa sobre o eleitorado, criação de partidos políticos e a criação de uma justiça eleitoral
(ANGELI, 2015).

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§ 2° Só poderão concorres à distribuição os partidos que tiverem obtido


quociente eleitoral.
Art. 60. Em caso de empate, haver-se-á por eleito o candidato mais idoso.
Art. 61. Se nenhum partido alcançar o quociente eleitoral, considerar-se-
ão eleitos, até serem preenchidos todos os lugares, os candidatos mais
votados (BRASIL, 1950).

Na eleição de 1950 para o legislativo rio-grandense, o PTB totalizou 246.781 votos,


o PSD 211.424, PL 70.029, PRP 54.910, UDN 53.312, PSP 25.073, PSB 12.745 e o PR
12.228322 (NUPERGS/UFRGS, 2017). Se calcularmos em relação à população votante do
período, diminuindo os votos nulos, brancos e de eleitores que não compareceram nas
juntas eleitorais, temos um total de 686.502 votos válidos, o que representa 35,94 % para
o PTB, 30,80% para o PSD, 10,20 % para o PL, 8% para o PRP, 7,76 % para a UDN, 3,65 %
para o PSP, 1,85% para o PSB e 1,80% para o PR (NUPERGS, UFRGS, 2017).
A partir dessa breve explicação, podemos entender o porquê de Luiz Marcantonio
Grezzana do PSD, com 3.873 votos não ser eleito, enquanto Adalmiro Bandeira de Moura,
do PSP, com apenas 1.370 votos garantir uma cadeira no parlamento. Ora, em média, para
ser eleito no PSD nessa legislatura, foi necessário um total de 5.071 votos, quase quatro
vezes mais que o único deputado eleito pela legenda do PSP (NUPERGS/UFRGS, 2017).

Número de votos por candidato


O deputado do PSD mais votado para a legislatura que estamos trabalhando nesse
trabalho foi o ex-prefeito de Palmeira das Missões, Pompílio Gomes Sobrinho (OLIVEIRA,
2008). Com um total de 6.796 votos, 6.657 foram garantidos na junta eleitoral responsável
pelos municípios de Palmeira das Missões, Iraí e Três Passos (NUPERGS/UFRGS, 2017). O
deputado eleito pelo PSD menos votado foi Jacinto Marinho Fernandes da Rosa, ex-prefeito de
Montenegro (OLIVEIRA, 2008) e que igualmente conseguiu a maioria de votos no município em
que realizou sua prática política em tempos anteriores. De um montante de 4.135 votos, 3.288
foram em Montenegro (NUPERGS/UFRGS, 2017).

322 Em relação aos dados eleitorais coletados no banco do NUPERGS, temos que ter o cuidado de analisarmos

separadamente as juntas eleitorais, haja vista que as informações sobre o PSD, por exemplo, estão
duplamente inseridas, logo o resultado de 211.424 votos no estado para a assembleia legislativa aparece na
plataforma como 422.848 votos. Ora, se não houvesse o cuidado de dividir esse resultado por 2, obtendo o
número correto, a lei do quociente eleitoral e quociente partidário não faria sentido, haja vista que o PSD
assumiria com o maior número de votos, mas não o maior número de cadeiras. Em relação aos candidatos
com votos válidos, a UDN inscreveu 53; o PTB (73), o PSP (61), o PSD (75), o PSB (26), o PRP (43), o PR (27)
e o PL (58) (NUPERGS, UFRGS, 2017).

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Essa lógica de maioria de votos nos municípios de atuação política se revela uma
lógica nas eleições para o parlamento gaúcho desse período: a problemática que se abre
é se essa influência revela práticas de mobilização eleitoral ou de utilização da máquina
pública em campanhas eleitorais anteriores, a partir da formação de uma elite durante o
Estado Novo. Essa hipótese é possível a partir da tese de doutorado defendida por Sandra
Maria do Amaral em O Teatro do Poder (2005). Nessa pesquisa de caráter prosopográfico,
Amaral (2005) identifica permanências das elites políticas durante o Estado Novo e
posteriormente na experiência democrática iniciada em 1945. Outra questão interessante
a ressaltar é que essas personagens citadas foram, salvo exceções que foram eleitos
democraticamente, prefeitos nas suas cidades de origem a partir de nomeações pelos
interventores do Estado nomeados por Vargas durantes o Estado Novo, indo ao encontro
da formação original do PSD, informação já consolidada pela historiografia sobre o tema
(OLIVEIRA, 2008). O que não é discutível, porém, é que foram eleitos para a segunda
legislatura, ou pelo menos concorreram, a partir do voto democrático permitido a partir
da Lei Agamenon em 1945.
Mais problemático ainda é pensar questões relacionadas com zonas de influência
eleitoral. Se somarmos a população votante nesse período, temos um total de 716.936
eleitores que foram às urnas, com um total de 95,75 % desse total de votos válidos. Se a
comparação for feita a partir do número de votos válidos para cada partido, Porto
Alegre323 tem um total de 12.437 votos, o que representa 12.50 % dos votos válidos na
cidade e 5,88 % dos votos totais do PSD no estado (NUPERGS, 2017). Sem dúvida
nenhuma, as zonas eleitorais relativas à capital são vencedoras em número de votos, mas
também são vencedoras em número de votantes, o que explica o porquê do resultado. Em
Antônio Pardo, por exemplo, o PSD fez apenas 1.308 votos, mas em números percentuais
um total de 47,84 % dos votos válidos, haja vista que o município tinha 2.734 votantes. A
análise fica mais complexa quando se constata que 1.249 votos foram realizados por
apenas um candidato, isto é, Luiz Marcantonio Grezanna, representando 45,68% totais e
95,48 do PSD (NUPERGS, 2017). Por sua vez, em Porto Alegre o candidato mais votado foi
Walter Peracchi Barcellos com 2.561 votos. Diferentemente da região de Antônio Prado,

323 Naanálise sobre Porto Alegre foi ignorada a junta conjunta de Porto Alegre, Canoas e Gravataí, o que não
comprometeu na análise, haja vista que se fossem somados os votos nessa junta o candidato Walter Peracchi
Barcellos continuaria como o mais votado.

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não houve uma maioria de votos muito grande em relação aos outros candidatos, haja
vista que 9 deles garantiram mais de 500 votos em Porto Alegre: Alfredo Augusto Barros
Hofmeister (1062); Antonio Cesar Alves (509); Candido Diderot Machado Carrion (531);
Eloi José da Rocha (551); Helio Carlomagno (713); Luiz Maluf (630); Mario Ignacio
Fernandes (978); Nicomedes de Freitas Beccoh (709) (NUPERGS, 2017). A partir desses
dados apresentados surge a questão que poderá ser respondida em futuras análises: é o
partido que é influente nos munícipios ou é o candidato?
Resultados eleitorais
Após a eleição de 03 de outubro de 1950 a bancada do PSD na Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul ficou assim organizada por ordem alfabética: Aldo Angelo
Arioli (5.165 votos, 89,50% na junta eleitoral de Erechim e Marcelino Ramos); Ariosto
Jaeger (4.255 votos, 3.483 na junta de Santa Rosa); Helio Carlomagno (5.540 votos, 24.89
% na junta de Cruz Alta); Jacinto Marinho Fernandes da Rosa (4.135 votos, 79,51% na
junta de Montenegro); João Batista Marchese (4.243 votos, 86,80% na junta de Estrela e
Encantado); José Marques da Rocha (5.026 votos, 37,88% na junta de Santa Maria e São
Pedro do Sul); Leodegario Adail de Moraes (4.730 votos, 18.78% na junta de Camaquã e
Tapes), Liberato Salzano Vieira da Cunha (6.328 votos, 77,46% na junta de Cachoeira do
Sul), Maryo Lampert (4.769 votos, 91,61% em Lajeado e Arroio do Meio); Miguel de Castro
Moreira (4.169 votos, 59.69% na junta de Rio Grande e São José do Norte) , Odalgiro
Gomes Corrêa (5.384 votos, 77,74% na junta de Passo Fundo e Getúlio Vargas), Pio Muller
da Fontoura (4.587 votos, 84,82% na junta de Santo Ângelo), Pompílio Gomes Sobrinho
(6.796, 97,95% na junta de Palmeira das Missões, Iraí e Três Passos); Porcínio Gomes
Sobrinho (4.413 votos, 84.82 na junta de Vacaria e Aparatos da Serra), Procopio Duval
Gomes de Freitas (5.185 votos, 56,10% na junta de Pelotas e São Lourenço do Sul), Romeu
Roese Scheibe (5.056 votos, 82,95% na junta de Carazinho e Sarandi) e Walter Peracchi
Barcellos (6.407 votos, 39,97 % na junta de Porto Alegre). Os suplentes foram Ernesto
Protásio Wunderlich (3.907 votos, 53,57% na junta de Rio Pardo); Flavio Mena Barreto
Matos (4.111 votos, 30,21% na junta de Livramento) e Lauro Franco Leitão (3.824 votos,
46,63% na junta de Palmeira das Missões, Iraí e Três Passos) (NUPERGS, 2017).
Nesse primeiro momento não podemos afirmar se nessa eleição houve casos de
mudança de partidos na hora de inscrição. Conforme Lucia Hippolito (2012) ao se referir
ao Congresso Nacional, a legislação eleitoral permitia que um candidato se elegesse por

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um partido e na hora da diplomação se declarasse por outro. Isso permitiria que


candidatos com menos votos fossem eleitos por legendas de partidos maiores, porém para
realizar esse tipo de afirmação para o caso regional riograndense nesse período seria
necessária uma extensa pesquisa nos jornais e “santinhos” da época para perceber se
houve modificações nas legendas.
Considerações finais
Essa breve explanação abre espaço para reflexões que tenham por objetivo pensar
questões relativas às influências políticas, estratégias de mobilização eleitoral, assim
como redes e sociabilidades. Hippolito (2005, p.53-54) defende, a partir dos relatos de
lideranças nacionais, que os pessedistas se forjavam “na prática cotidiana da política, num
longo aprendizado que se inicia, muitas vezes, nas lidas municipais”. Isso comprova o
porquê desses candidatos, sobretudo os eleitos, fazerem parte de uma trajetória política
ligada as interventorias regionais ou terem iniciado sua vida política nos municípios e não
no legislativo. Dos eleitos, não encontramos nenhum que já não havia participado de
algum cargo, seja democraticamente eleito ou por nomeação.
Lembramos mais uma vez que esse trabalho não teve o objetivo de realizar
conclusões, mas sim de levantar questionamentos que tenham as eleições e as práticas
políticas como centro da discussão. Sobre a democracia iniciada em 1945 e terminada em
1964 ainda há muito o que se pesquisar, sobretudo às questões que se referem ao poder
legislativo, ao PSD e a atuação das elites pós Estado Novo.

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O GOVERNO MENEGHETTI E A PREFEITURA DE CANOAS/RS NOS


MOVIMENTOS DE CONSPIRAÇÃO CONTRA JOÃO GOULART (1963-
1964)

Anderson Vargas Torres

Considerações Iniciais
O ano de 1964 foi derradeiro para a polarização vivida no Brasil: O presidente da
República João Goulart, para superar o isolamento324 que se encontrava acabou optando
por aproximar-se da FMP e das demandas da esquerda nacional-reformista aglutinada
naquela frente. Por outro lado, os seus adversários políticos, tanto civis como militares,
viram tal movimentação como prova definitiva das intenções “comunistas” do presidente.
A radicalização ficava ainda mais patente.
Como Fico (2014) afirmou, já não estava mais em andamento uma campanha de
desestabilização do governo, mas sim, de articulação de uma conspiração contra Goulart
e o trabalhismo325. Como se encerraria esse processo? As respostas viriam no mês de
março daquele mesmo ano, quando ficou clara as estratégias dos dois lados do campo
político daquele momento.
Canoas, uma cidade em pleno processo de industrialização naquele período e com
uma presença trabalhista marcante326, mudou de administração em 1964, assumindo a
prefeitura um político do PSD, Hugo Lagranha, que demonstrou ser parte da engrenagem
que articulava a queda do governo federal. Por outro lado, o PTB, antes governo naquele


Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: < a.vtorres@hotmail.com>
324 De acordo com Ferreira (2011), Goulart isolou-se devido sua tentativa de aprovar as reformas de base
pela via institucional, ou seja, aliando-se a partidos de centro e com projetos moderados. Grupos de direita
não aceitavam alterações que ferissem benefícios e privilégios, enquanto as esquerdas julgavam que
Goulart deveria abandonar a luta institucional e colocaras reformas na prática de forma mais radical.
Goulart precisou tomar uma posição e essa foi ao lado das esquerdas nacional-reformistas.
325 Segundo Fico (2014), a desestabilização ocorreu entre 1961 e 1963 e visava enfraquecer Goulart e o PTB

para o pleito de 1965. O processo de desestabilização teve o protagonismo de setores da sociedade civil
anti-trabalhistas como os empresários, muitos vinculados aos institutos do complexo IPES/IBAD. A
conspiração tornou-se mais efetiva a partir de meados de 1963 e contou com a atuação de setores civis, mas
também militares, e tinha como alvo a derrubada do governo Goulart.
326 Sobre Canoas entre os anos 1940 e 1960 no campo político e social, ver Angeli (2015), Viegas (2011) e

Torres (2016).

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município e que naquele momento passava a ser oposição local, dividiu-se entre apontar
as ações antidemocráticas de Lagranha - aquilo que ele nomeou como sua "pequena
revolução" - e defender Goulart, tomando posição frente aos eventos que acabaram
culminando com o golpe de Estado civil-militar contra o presidente da República e o
governo trabalhista. Tais situações serão vistas nesse artigo.

A "pequena revolução" de Lagranha: a articulação entre a administração


municipal e os movimentos de conspiração no Rio Grande do Sul

O Ano de 1963 findou em Canoas com a posse do novo prefeito municipal, Hugo
Simões Lagranha (PSD), e da nova legislatura da Câmara Municipal no último dia do ano.
Conforme já visto, o PTB local havia saído fragilizado do pleito do ano anterior: além da
derrota com uma diferença significativa de votos, os vereadores que assumiriam, a partir
daquele instante, o papel de oposição eram minoria na Casa. Enquanto o prefeito eleito
tinha 8 vereadores aliados (PSD, PL e PDC elegera dois vereadores, enquanto PRP e MTR,
um cada) na Câmara, os petebistas teriam 5 legisladores.
Somando-se a tal situação, o novo administrador não escondia o seu lado no jogo
político vivido no país naquela conjuntura. Lagranha era um ferrenho antitrabalhista,
ainda que buscasse construir uma imagem de apartidarismo, ou, dito de outra forma, de
interessado apenas em cuidar da cidade e da sua população, conforme lembra Angeli
(2015). Mas Lagranha tinha vínculos políticos estreitos com a cúpula estadual do seu
partido: basta lembrar que, ao longo do ano de 1963, havia sido assessor do governador
Ildo Meneghetti.
Todavia, a representação para os eleitores e a população como um todo da cidade
era a de que havia chegado à prefeitura um administrador. Assim era afirmado por aliados
como o vereador Dinarte Araújo, ao comemorar a vitória do pessedista:
(...) de imediato concedeu a palavra ao Vereador Dinarte Andrade Araújo
—Salientou (...) que a vitória dêstes dois homens públicos (Hugo
Lagranha e o seu vice, Jacob Longoni), não foram estritamente suas, mas
sim, a vitória da própria população de Canoas. (...) ponderou o Vereador
Dinarte Araújo que o povo já aprendeu a escolher os seus candidatos, e
que não mais adianta a demagogia. (...). Finalizando, declarou (...) que
podem todos ficarem certos de que a partir de 1° de janeiro de 1.964, tudo

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vai mudar na máquina administrativa do Município, com um Gôverno de


trabalho e realizações.327

Ainda que o vereador citado julgasse o prefeito eleito como um realizador, o


discurso de posse feito por Lagranha, em 31 de dezembro de 1963, demonstrava alguém
preocupado, dentro da sua perspectiva da conjuntura política brasileira do final de 1963
e início de 1964, com a situação política do país e da própria cidade, principalmente no
que se referia aos que ele nomeava como "acomodados". Inicialmente, o prefeito alegava
que a vitória não era sua, mas do povo de Canoas. Ele que detinha o poder na cidade e era
o verdadeiro vencedor, cabendo apenas ao prefeito administrar o município com zelo.
Depois, sua manifestação direcionou-se ao momento político nacional, que se fazia sentir
também naquele "torrão":

Conhecemos as duras trilhas, navegaremos em águas não mui tranqüilas,


enfrentaremos a fúria desencadeada pelo desajuste da conjuntura em que
vivemos, fruto de acomodações, alheamento e, até mesmo, impatriotismo
de interessados em transformar o que é nosso em ruínas. Dias tumultuosos
tem vivido a nação brasileira, os reflexos dessa situação atingiu nosso
torrão que é devorado pela inclemência dos descontroles. Evidente, não
poderíamos fugir à calamidade, resta-nos prudência, cautela e decisões
firmes, não recuar, não titubear, não fraquejar, também, não exorbitar, de
resto cabe-nos enfrentar e combater as orgias e os delírios dos
audaciosos328

Na luta política daquele momento, havia uma disputa em torno do que era ser
patriota: para as esquerdas, era fazer as reformas e alterar a estrutura socioeconômica
nacional. Para as direitas, era a manutenção da ordem e o combate aos "comunistas",
colocando no mesmo patamar grupos tão diversos politicamente como os comunistas e
os trabalhistas. Nessa disputa, Lagranha mostrava sem maiores receios a sua posição.
Para ele, a radicalização política nacional era responsabilidade do impatriotismo dos
grupos políticos reformistas. Era o que estava levando ao descontrole do país e que atingia
até mesmo Canoas. Cabia, para bem administrar a cidade, combater as "orgias e delírios
dos audaciosos", assim vistos por Lagranha os grupos políticos nacional-reformistas.

327 CÂMARA DE VEREADORES DE CANOAS. Ata 84/63, Canoas, 18/11/1963.


328 FCC, 2006, p.35-36 (grifos meus).

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Após insistir que lutaria por uma cidade com menos dissabores e orgulhosamente
servir ao povo canoense, Lagranha voltava sua carga aos seus opositores, tanto na esfera
nacional, como na local:
O Brasil, assim como esta cidade, está repleto de salvadores, de messias que
na realidade, apenas, querem é satisfazer seus egocentrismos, galgar
posições avantajadas; não creiam nessa espécie perigosa, não irão além do
que são, não tem essência, são vazios e oportunistas. (...) A inquietude da
época propicia alardes mirabolantes, não tentemos experiências, poderão
trazer duras penas, o desvelo demonstrará, em última análise, defesa e
amor à pátria.329

O recado tinha direção: o PTB, os trabalhistas e os nacional-reformistas. Para


Lagranha, eram vazios, egocêntricos, buscavam apenas ascender politicamente às custas
do povo. Eram uma espécie perigosa.330 Podiam propor "alardes mirabolantes", mas não
conseguiriam pô-los em prática. Esse excerto sintetizava o pensamento de Lagranha e seu
posicionamento na disputa política nacional. Expunha seus valores e crenças políticas.
Representava uma concepção política em voga naquele contexto nacional. Era uma voz
representativa dessa percepção no âmbito local.
Não apenas o prefeito, mas também a nova legislatura da Câmara Municipal
começava o seu trabalho nos inícios de 1964. Em nível nacional, o ano iniciava com a
inflexão de Goulart para as esquerdas, acatando as propostas da FMP e se distanciando da
política de conciliação. Por outro lado, as oposições também radicalizavam. Como lembra
Figueiredo (1993), entre as lideranças políticas da UDN e do PSD, já havia disposição para
impedir uma suposta "guerra revolucionária",331 que teria a participação de Goulart e dos
comunistas.
Em Canoas, os vereadores trabalhistas, então cumprindo o papel de oposicionistas,
começavam a pressionar Lagranha sobre demissões sumárias de funcionários públicos
municipais, supostamente por terem vinculações partidárias com o PTB. Logo no dia 6 de
janeiro, com apenas uma semana de exercício da gestão, os trabalhistas Osvaldo Alvarez
e Alberto Oliveira alegavam que uma exoneração teria acontecido por questões políticas:

329 FCC, 2006, p.37 (grifos meus).


330 Como lembra Chaves (2014), não havia uma delimitação clara do que era a esquerda para os seus
opositores — militares, como citado pelo autor, mas também as oposições civis. Abarcava desde os
trabalhistas mais moderados e ia até os setores mais radicais.
331 De acordo com o deputado udenista Bilac Pinto, Goulart organizava uma "guerra revolucionária" para se

garantir no poder e conclamava, assim, as forças de oposição a reagir com armas (FIGUEIREDO, 1993).

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Continuando com a palavra, (Alvarez) ponderou ter verificado que a atual


Administração, já nos seus primeiros dias de atividade, vem efetuando
pressões políticas contra o funcionalismo, culminando com a exoneração
de uma simples servidora por pertencer a mesma as hostes do P.T.B. —
(...) declarou que êstes acontecimentos muito lhe entristeciam, mas
esperava que estivesse enganado e, que não haverá mais demissão de
funcionários como muito se propala. — Seguiu-se com a palavra o
Vereador Alberto Rodrigues Oliveira, dizendo que repudiava a atitude do
Sr. Prefeito Municipal por ter exonerado uma funcionária. (...). Logo Após,
declarou o Vereador Alberto Oliveira que a funcionária exonerada foi
informada pela pessoa que estava respondendo pela diretoria do D.E.P.
que a mesma seria despachada pelo fato de ter trabalhado para
candidatos do P.T.B.332

Os vereadores trabalhistas mantiveram a postura de acusar a prefeitura de acossar


servidores que tivessem vínculos com os petebistas: Alberto Oliveira falava em
"verdadeira perseguição política aos funcionários"333 e Antônio Flores dizia ter ouvido o
próprio Lagranha declarar ao prefeito de Viamão "que perseguirá os adeptos do P.T.B. na
Prefeitura.".334
A situação defendia a postura do gestor municipal quanto às exonerações: Cirne
Schmitt alegava que as demissões estavam acontecendo devido à situação irregular
daqueles servidores junto à prefeitura: "(Schmitt) Diz ainda, que fazem críticas do Sr.
Prefeito pela demissão de funcionários, mas nunca se diz o porque da dispensa, não se diz
que a maioria dos dispensados estavam ilegalmente na prefeitura.".335 Ainda que Schmitt
buscasse respaldar a atitude de Lagranha, deixou escapar — assim ao menos fez entender
o relator da ata — que a maioria havia sido dispensada por irregularidades, logo, aqueles
que não estavam inseridos nessa maioria foram demitidos por outras razões,
possivelmente políticas.
Diversos documentos indicam que as questões político-partidárias e o acirramento
da polarização política nacional foram decisivos para as exonerações promovidas pela
administração canoense a partir de 1964. Luiz Pereira de Souza (MTR), eleito vereador
em 1963 e que exerceu seu mandato entre 1964 e 1967, lembra que Lagranha não tinha

332 CÂMARA DE VEREADORES DE CANOAS. Ata 02/64, Canoas, 02/01/1964.


333 CÂMARA DE VEREADORES DE CANOAS. Ata 13/64, Canoas, 09/03/1964.
334CÂMARA DE VEREADORES DE CANOAS. Ata 20/64, Canoas, 30/03/1964. Segundo o vereador, as

declarações teriam sido feitas em uma visita do administrador de Viamão a uma fábrica de Canoas.
335 CÂMARA DE VEREADORES DE CANOAS. Ata 12/64, Canoas, 02/03/1964. (grifos meus).

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simpatia pelos trabalhistas e possivelmente agiu para exonerar quem tivesse relação com
eles:
(...) vamos falar no Lagranha que eu conheci mais, o Lagranha era contra
o PTB. (...). É possível, é possível porque o Lagranha, ele era uma pessoa
honesta, mas muito dura, durão, e político. Quem não é a meu favor, é
contra mim. Então é possível que ele tenha exonerado muita gente por
pertencer ao partido.336

Um dos funcionários exonerados por Lagranha era Nilton Leal Maria. Maria fora,
posteriormente, vereador na cidade em duas legislaturas, entre 1973 e 1982, sempre
eleito pelo MDB. Antes, segundo seu relato a Ranincheski (1998), militou pelo PTB,
fundando a Ala Moça do partido na Vila Niterói. Segundo ele, esse foi o seu melhor
momento político na vida: "A melhor parte da minha vida foi quando não tinha cargo
eletivo, quando não era vereador. Eu fazia política de base, fazia política nas casas, nos
clubes, no colégio." (RANINCHESKI, 1998, p.123).
De acordo com Maria, Lagranha já havia chegado na sede da prefeitura ao lado do
seu antecessor, o Cel. Medeiros, em 31 de dezembro de 1963, dia da posse, disposto a não
manter funcionários trabalhistas:

No dia da passeata do Lagranha, o Coronel Medeiros pediu que o


Lagranha chegasse antes para que ele pudesse apresentar aos
funcionários, porque a prefeitura era um prédio velho. O Lagranha vinha
em uma caminhonete e disse: Eu não quero ver nenhum desses PTB
dentro da prefeitura (RANINCHESKI, 1998, p.126).

Maria também relatou que a alegação do prefeito para a sua exoneração era uma
foto de Brizola que tinha na gaveta de sua sala na sede da administração municipal:

Eu era chefe da arrecadação da tributação da prefeitura de Canoas, e o


Coronel Medeiros me convidou para ir lá churrasquear. Eu disse que não
podia ir. Isso foi em 1961. E a dona Ivone, funcionária, foi. Lá eles
distribuíram fotos do presidente e de Brizola. Quando ela voltou ela me
deu uma foto de Brizola. Eu peguei aquela foto e botei numa gaveta. É
aquela foto do Brizola que eu tinha na gaveta. Foi a alegação do sr. Simões
Lagranha para me pôr na rua da prefeitura, arbitrariamente. Ele me
chamou e me mostrou a foto. Aí eu disse: mas sou Jango, sou trabalhista.

SOUZA, Luís Pereira de. Depoimento (setembro/2012). Entrevistador: Anderson V. Torres. Canoas: (s.l.),
336

2012.

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E ele disse: Mas agora quem manda é a revolução, agora tu vai embora
bem quietinho. (RANINCHESKI, 1998, p. 123-124).

Deve-se, evidentemente, evitar o que Bourdieu chamou de "ilusão biográfica".


(BOURDIEU, 2006). Pode-se estar diante de um depoimento em que Maria buscou
construir sua história de forma coerente e linear em que se posicionaria como uma vítima
da arbitrariedade de Lagranha. Mas a documentação escrita confirma que o prefeito de
então usou o cargo para persegui-lo, assim como outros servidores que tivessem ligação
com o PTB. Lagranha não queria — e os relatos aqui citados caminham nessa direção —
proximidades com aqueles que via como adversários políticos naquele contexto. Desde
Brizola — simbolicamente expelido da prefeitura pelo seu retrato guardado por um
militante trabalhista — até as lideranças do PTB local não eram bem-vindos pelo político,
ainda que o discurso oficial dos legisladores aliados à administração alegassem outras
razões para as exonerações. Eram, a seu ver, como deixou evidente em seu discurso de
posse na prefeitura, uma espécie perigosa.
Tampouco se trata de julgar Lagranha: suas ações estavam de acordo com o
pensamento corrente que o mesmo seguia. Na luta política do período, Lagranha adotou
uma clara perspectiva antirreformista, coerente com aqueles com quem tinha ligações
políticas e com a linha adotada pelos partidos que o davam suporte, na disputa estadual e
nacional. Se antes do golpe de 1964 era preciso cuidado para não evidenciar o tom
político, após ele, Lagranha não se furtou em revelar que, de fato, fizera perseguições
políticas contra os trabalhistas. Em entrevista a Folha da Tarde em junho de 1970, quando
já exercia o segundo mandato, então nomeado pelos militares, revelou seu modo de
operação logo após tomar posse, em 31 de dezembro de 1963:

O filho do Medeiros, ex-prefeito, disse que Lagranha não duraria 90 dias


na prefeitura. Que o governo era do Jango e trabalhista. Lagranha era
reacionário ferrenho.
Eu disse que o problema era meu e que nós íamos dar um giro de 180
graus. E dei arrocho, meus gritos, minhas badernas, botei funcionário na
rua, encurralei os sem-terra, pintei o caramujo e chamei o DOPS.337

337 Folha da Tarde, Porto Alegre, 23 de junho de 1970, n°, p.16.

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Com relação a Maria, sua exoneração foi confirmada em 1966 por razões
políticas,338 e teve sua atuação investigada pela Comissão de Investigação do Estado em
1969.339 Alegava-se que havia militado no PCB e que poderia ser "subversivo". Reaparecia
nesses documentos a associação entre as esquerdas e o comunismo.
Um episódio ocorrido em Canoas nos fins de fevereiro de 1964 demonstrou o
quanto Lagranha estava vinculado a um pensamento político mais conservador,
identificado, por tanto, com os grupos antirreformistas na luta política daquele momento.
O caso de um grupo sem-terra de Canoas que se dirigia a uma cidade, pois haviam
prometido a eles um pedaço de terra. O trajeto dos camponeses foi interrompido em
Canoas pela ação da polícia e do DOPS, conforme noticiou a Última Hora: de acordo com a
matéria do periódico, os agricultores locais teriam sido parados, sob a justificativa de
estarem desrespeitando regras de trânsito. Todavia, a crise levou ao impedimento da
viagem daqueles sem-terra, e ainda tiveram vários líderes camponeses locais sendo
presos pelo DOPS340:
(...) sob o pretexto de que os caminhões trafegavam com pessoas na
carroçaria, policiais do DOPS, que levaram inspetores de trânsito para dar
cobertura à arbitrariedade, impediram, ontem, pela fôrça, que 400
famílias de camponeses de Canoas se transportassem para as terras que
lhes haviam sido doadas pelos herdeiros da sra. Gertrudes Xavier, no
município de Encruzilhada do Sul.
A apreensão dos veículos e a prisão de todos os líderes dos "sem terra" —
dirigentes da Associação dos Camponeses e do Sindicato de Canoas -
ocorreu pela manhã, no pôsto policial da BR-2, onde o DOPS já se
encontrava desde às cinco horas, decisivamente com objetivos outros que
não os de fazer cumprir o Código Nacional de Trânsito.341

Além das prisões e de impedir a continuidade do trajeto dos camponeses


canoenses, a notícia informava que o DOPS fazia um cerco à sede da associação dos sem-
terra, local para onde haviam se deslocado os agricultores para aguardar se poderiam
seguir rumo à fazenda em Encruzilhada do Sul.
O informativo não citava, em nenhum momento, o papel da administração local na
resolução da situação. No entanto, um dossiê produzido em 1969 pelo prefeito Lagranha,

338 PREFEITURA MUNICIPAL DE CANOAS. Gabinete do Prefeito. Ofício 87/492/69, Canoas, 19/06/1969.
339 GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria dos Negócios da Administração, Comissão
de Investigações, Porto Alegre, n°. 354, 13/06/1969.
340 Última Hora, Porto Alegre, 20 de fevereiro de 1964, n° 1223, p.7.
341 Última Hora, Porto Alegre, 20 de fevereiro de 1964, n° 1223, p.7.

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visando atingir vereadores que não o apoiavam na Câmara, e que fora enviado ao
governador do Estado naquele momento, Walter Peracchi Barcellos, deixava claro o papel
do gestor canoense naquele evento: a ação foi articulada entre os governos municipal e
estadual. Mais ainda, mostrava que a prefeitura agia vigiando e controlando os seus
opositores trabalhistas, relatava a participação de um vereador do MDB, Alcides
Nascimento — que, em 1963, tentou se reeleger para a Câmara, mas se classificou apenas
como suplente —, e como tentou impedi-lo de auxiliar os camponeses.
Êste cidadão, candidato em 1963, não se elegeu, mas como à época já
havia demonstrado os seus pendores e se manifestado expressamente em
favor de Jango e Brizola (...) entitulou-se também "sem-terra", para ajudar
a tumultuar esta cidade. Com habilidade, conseguimos às 23:00 horas do
dia 21.02.64, levá-lo para o local onde estavam concentrados, por
determinação nossa, os "sem-terra" de Canoas (...), depois de muita luta e
com a reportagem na Fôlha da Tarde de 22.02.64, conseguimos
caracterizar sua presença e classificá-lo de subversivo.342

O prefeito, ao relatar as suas ações naquele momento, mostrava que suas intenções
eram fruto da radicalização: caracterizava Nascimento como adepto de Goulart e Brizola
e, logo, um agitador, alguém que pretendia "tumultuar a cidade". Para inibi-lo, lançou mão
de métodos repressivos, como encaminhá-lo para próximo dos sem-terra e, assim, poder
qualificá-lo como "subversivo". Contudo, a julgar pela memória do prefeito canoense, foi
insuficiente para controlar Nascimento:

Com muita cautela, com muito jeito, depois de várias reuniões


conseguimos amenizar em parte o problema, porém o sr. Alcides
Nascimento continuava instigando os pressupostos agricultores para que
se deslocassem a Dom Feliciano e tomassem conta das terra da Dona
Gertrudes Xavier de Oliveira (...).
(...) fomos obrigados a apelar ao então Chefe da Casa Militar, Cel. Pacheco,
no Gôverno Hildo Meneghetti, para que prendesse o ônibus que
intempestivamente levava os agricultores para Dom Feliciano, na
madrugada de 21.02.64.343

A presença de Nascimento parecia mover, na visão de Lagranha, os agricultores a


tentar chegar nas terras que alegavam ter sido doadas para eles. O incômodo levou o
prefeito a apelar ao governo estadual, embora a conexão entre o Estado e o município já

342 PREFEITURA MUNICIPAL DE CANOAS. Gabinete do Prefeito, Ofício 87/523/69, Canoas, 26/06/1969.
343 PREFEITURA MUNICIPAL DE CANOAS. Gabinete do Prefeito, Ofício 87/523/69, Canoas, 26/06/1969.

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estivesse vigente desde o inicio dos eventos. De qualquer forma, o suplente da Câmara
seguia desafiando o cerco da prefeitura:
Retornando os "sem terra" ao local de origem (..) o sr. Alcides Nascimento,
coadjuvado e auxiliado pelo sr. João Lopes da Silva (...) conseguiram furar
a nossa vigilância e observações, e, por informes e informações,
soubemos que (...) fizeram com que as famílias que estavam na Rua
Primavera, Vila Rio Branco, se deslocassem para a BR-116 (...) numa
espécie de desacato aos nossos côntroles, reunindo-se defronte a
indústria Forjasul, instalando e transferindo o núcleo subversivo numa
demonstração e mostra para os que lá passassem, vissem o movimento
de protesto dos "sem terra".
Nessa altura dos acontecimentos, só nos restou uma solução, ou seja,
apelar, em 07.03.64, para o DOPS expulsar do local onde se encontravam
os comunistas e agitadores (...).344

O uso da repressão foi, ao fim, o expediente usado pela prefeitura, com o suporte
do governo estadual, ao ceder o DOPS para a ação, para encerrar a crise e afastar os
"agitadores". Lagranha seguia, dessa forma, o modelo de governo do seu correligionário e
ex-chefe durante o ano de 1963, Ildo Meneghetti. Conforme Cánepa (2005, p.394), o
governo de Meneghetti sempre se apresentou como o oposto do governo trabalhista de
Leonel Brizola. Este, administrara o estado interpelando os movimentos sociais,
especialmente agrários, e contava com a mobilização de amplos setores populares. Para
Meneghetti, a forma de governar do antecessor tratava-se de demagogia e descontrole.
Por seu turno, governou o Rio Grande do Sul fazendo uso frequente das forças de
repressão contra movimentos e mobilizações sociais345. Para tal, muitas vezes o governo
estadual contava com os aliados locais para denunciar possíveis movimentações nesse
sentido. Lagranha, dessa forma, agiu de modo condizente com as práticas estabelecidas
em nível estadual. Como o próprio prefeito declarou anos depois, no excerto de sua
entrevista ao jornal Folha da Tarde, havia "encurralado os sem-terra" na cidade e dessa
forma participava da desmobilização daquele movimento social.
O episódio não passou despercebido entre os vereadores canoenses,
especialmente os trabalhistas, muitos deles vinculados ou simpatizantes daqueles grupos
atingidos pela repressão da polícia do estado rio-grandense. Alvarez condenou o uso da

344PREFEITURA MUNICIPAL DE CANOAS. Gabinete do Prefeito, Ofício 87/523/69, Canoas, 26/06/1969.


345 Cánepa (2005), por exemplo, alude à repressão ocorrida contra um acampamento de sem-terras
instalado em Nonoai, interior do estado. Nesse caso, houve a expulsão dos acampados e a prisão de
sindicalistas que se dirigiam ao local para levar mantimentos aos acampados por parte da Chefia de Polícia
e da Brigada Militar.

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polícia de choque na remoção dos "sem-terra" — os "comunistas e agitadores" no relato


de Lagranha — enquanto o situacionista Cirne Schmitt alegou que foi necessário, pois
alguns agricultores "foram iludidos de que havia uma fazenda no município de
Encruzilhada do Sul, e que iria ser dividida.".346 Recaíram críticas à SUPRA também:
Antônio Flores, do PTB, pediu que fosse registrada em ata acusação de Schmitt de que a
entidade estatal desviava verba para os sem-terras.347

Considerações Finais
Conforme afirmam autores como Reis (2014), a conspiração348 contra Goulart e,
consequentemente, o golpe que ocorreu em março/abril de 1964, tinham funções
defensivas, de combater qualquer possibilidade de avanço e vitória das forças nacional-
reformistas. Para tal, assim que o golpe se consolidou, os militares e os seus aliados civis
colocaram em prática algo que já ocorria em estados e municípios com administrações
antitrabalhistas, mas que só ganharam legitimidade após o golpe. Tais movimentos, como
vigiar e perseguir adversários políticos, já estavam presentes em Canoas desde a posse do
prefeito do PSD. Lagranha colocou em prática as exonerações aos funcionários públicos e
o cerco aos movimentos sociais na sua gestão. O dossiê de 1969 assinalava com mais
ênfase o papel de Lagranha no controle e na vigilância da oposição trabalhista.
Lagranha, portanto, era parte, como liderança política local, de uma engrenagem
maior: a conspiração civil-militar para derrubar o governo trabalhista e impedir qualquer
avanço social e político que as lideranças vinculadas a aquela ideologia representavam.
Como afirma Wassermann (2010), os estudos sobre o golpe civil-militar de 1964 precisam
começar a atentar para o papel dos governos estaduais e as peculiaridades e
especificidades de cada caso. Parece aqui que, no caso gaúcho, pesou a articulação entre
o Estado e as forças políticas locais, que, no caso canoense, eram representadas pela
administração Lagranha. O golpe, argumentavam seus proponentes, era contra a
"subversão" e o "comunismo". Todavia, o alvo era o trabalhismo e o que essa cultura

346 CÂMARA DE VEREADORES DE CANOAS. Ata 13/64, Canoas, 09/03/1964.


347 CÂMARA DE VEREADORES DE CANOAS. Ata 02/64, Canoas, 16/03/1964.
348 Concorda-se, aqui, com Fico (2014), em que se deve diferenciar desestabilização e conspiração: a

primeira ocorreu durante os anos de 1961 e 1963, e consistiu em campanhas de grupos anti-Goulart para
desestabilizar e enfraquecer o governo trabalhista. Tais campanhas eram lideradas pelo IPES e IBAD, e
contavam com auxílio financeiro dos Estados Unidos, com pouca atuação de militares. Já a conspiração
visava derrubar o presidente da República e contou com a atuação decisiva dos castrenses.

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política representava, e para tal foi necessário o suporte e articulação de diversas forças,
não apenas sociais — políticos conservadores, setores empresariais, militares, etc. —, mas
também regionais e locais.
Não é por acaso que, no dossiê já citado, Hugo Lagranha descreve na introdução
que antes do dia 31 de março de 1964, quando o golpe iniciou e rapidamente se
consolidou, ele já havia instaurado uma "pequena revolução"349 no município:
Ao correr de nossas explanações, Vossa Excelência terá oportunidade,
com documentos anexos, constatar nossas afirmativas que são tôdas
baseadas em documentário que vem ser anterior a 31 de março de 1964,
iniciada a nossa ação logo após termos assumido o Gôverno Municipal
desta cidade, no dia 02 de janeiro de 1964.
Sem falsa modéstia, Senhor governador, iniciamos em nossa
administração uma pequena revolução que foi conjugada com o
movimento de redenção da Pátria Brasileira, em 31 de março.350

Na entrevista à Folha da Tarde — assim como seu discurso de posse também


permite entender —, a possibilidade de golpe já era aventada pelo próprio Lagranha,
antes mesmo dele ser eleito prefeito, em 1963: "E na Revolução eu já estava vinculado
antes de março de 1964, dentro de um esquema, fazendo as minhas andanças, que a
Revolução não era pra ter sido em março, mas sim, em novembro (de 1963)"351. Como ele
afirma, a "revolução" estava a caminho. Ao ter conhecimento e participar ativamente
assim que assumiu a administração de Canoas, torna-se claro que existia uma articulação
golpista nos fins de 1963 que envolvia também lideranças locais, como o caso dele denota.
Compreende-se, assim, que Canoas desenhou a disputa política em curso no país
de um modo específico em relação aos níveis estadual e nacional. A sua elite política
antitrabalhista também foi parte da articulação da conspiração contra o governo Goulart,
assim como os setores trabalhistas tiveram papel importante dentre as forças de apoio ao
presidente petebista. Possivelmente, diversas elites políticas municipais, não apenas do

349 O termo "revolução" foi consagrado nos os meios militares e civis apoiadores do golpe logo após o dia
31 de março de 1964, como forma de legitimar politicamente aquele evento. Segundo Chaves (2014), os
militares utilizaram — e ainda utilizam — esse vocábulo como arma na disputa pela memória do período
ditatorial, apresentando os governos militares como "democráticos" e como salvadores do Brasil do "perigo
vermelho": "Essa memória construída após 1964 e consolidada nas Forças Armadas cristalizou a imagem
dos militares como "bons homens" que lutaram contra a tirania das esquerdas. (...) Em suma, tal construção
memorialística desenhou a ditadura civil-militar como um período de prosperidade, de abundância, de paz,
de seriedade, em que os governos dos cinco generais residentes fizeram o melhor que puderam à nação."
(CHAVES, 2014, p.58).
350 PREFEITURA MUNICIPAL DE CANOAS. Gabinete do Prefeito, Ofício 87/523/69, Canoas, 26/06/1969.
351 Folha da Tarde, Porto Alegre, 23 de junho de 1970, n°, p.16.

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Rio Grande do Sul, mas de todas as unidades da federação, também tiveram atuação
conectada aos eventos nos níveis estadual e nacional, cada um guardando suas
particularidades. O plano local era um elemento importante, e os poderes desses também
agiram visando — como demonstrado em Canoas — favorecer ou a conspiração e o golpe
ou a defesa das forças nacional-reformistas. Havia, dessa forma, um vínculo entre as
diferentes esferas políticas. Mais do que um reflexo ou microcosmo do Estado e da nação,
muitos municípios — e o caso de Canoas evidenciou tal situação — foram uma variável
fundamental na polarização política e nas suas consequências.

Referências Bibliográficas
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eleitoral em Canoas/RS (1947-1963). Dissertação (Mestrado em História). Unisinos: São
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FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, J;


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democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964 –Livro 3. Rio de Janeiro: Civilização
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brasileira (1945-1964): o PTB, os eleitores e as eleições. In: Revista Escrita da História.
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A DEMOCRACIA E A PROPAGANDA MIDIÁTICA IPESIANA: UMA


PROPOSTA DE AÇÃO PARA UM BRASIL MODELO

Adriana Picheco Rolim

O apelo visual é, sem dúvida, um meio poderoso para legitimar discursos e inseri-
los com eficácia no tecido social. No início dos anos sessenta, mais precisamente entre
1962 e 1963, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), “seguindo o princípio de
que a propaganda audiovisual tinha grande poder” (ASSIS, 2001, p.26), difundiu uma série
de documentários destinados a desestabilizar o governo democrático do então presidente
João Goulart, o Jango como ficou conhecido. O IPES efetivou a sua existência em 29 de
novembro de 1961, e seus fundadores vieram de diferentes backgrounds ideológicos, “o
que os unificava, no entanto, eram suas relações econômicas multinacionais e associadas,
o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado”
(DREIFUSS, 1981, p.163). As premissas desta entidade visavam a manipulação da opinião
pública para determinados fins, para tanto, além de documentários foram concebidas
outras formas midiáticas de propaganda, relevando uma metodologia que configurou-se
em uma extensa rede de relações composta de diversos setores da sociedade.
A estimativa é de uma produção de vinte documentários, mas somente quinze, de
aproximadamente oito a dez minutos cada, foram recuperados. São eles: O Brasil precisa
de você, Nordeste: problema número um, História de um maquinista, A vida marítima,
Depende de mim, A boa empresa, Uma economia estrangulada, O IPES é o seguinte, Portos
paralíticos, O que é o IPES?, Criando homens livres, Deixem o estudante estudar, O Que é
democracia, Conceito de empresa e Omissão é crime, além de um desenho animado
intitulado : O homem e sua liberdade. O IPES também, patrocinou outros tipos de filmes e
edições de livros. A exibição destes documentários visava locais que abrangessem um
certo público, um público alvo, como por exemplo: nas sessões de cinema, em fábricas no
horário de almoço dos operários, nas praças em cidades do interior para a comunidade
campesina, favelas, sindicatos, universidades, entre outros espaços. A mensagem contida


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Contato:
< dripicheco@gmail.com>

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neles propunha um engajamento a um novo modelo de Brasil, imbuídos na preservação


da cidadania e do exercício da democracia, paralelamente, atacavam a morosidade das
instituições públicas promovendo uma forte campanha contra o governo vigente.
Buscando o alinhamento da população com as prerrogativas do grupo ipesiano, os
documentários concebiam mudanças para o quadro político, econômico e social do país,
amparando-se em questões como a superação do subdesenvolvimento, a moralização e
eficiência da estrutura governamental e um conjunto de propostas e ações para o
progresso do país, além de fortalecer o anticomunismo.
Os documentários do IPES atacam diretamente a gestão de Jango, referindo-se a
sua inoperância frente a resolução de problemas a muito enfrentados pela população e,
na esteira dos acontecimentos invocava a ameaça do comunismo a rondar a sociedade,
visibilizado nas figuras de Stálin, Hitler e Fidel Castro conjurados em um mal único. A rede
de ações do IPES, para Dreifuss (1981, p.164) consiste em “uma sofisticada e multifacética
campanha política, ideológica e militar” que se preparava para assumir o controle do
Estado. Sobre a sua formação, estruturação e ações deste órgão, que se autodenominava
como uma “entidade”, estão as aspirações de ordem conservadora e elitista da chamada
“elite orgânica”, bastante organizada e sistematizada.

A elite orgânica se empenhava na fusão dos militantes grupos


antigovernistas que se encontravam dispersos. Ela instituiu organizações
de cobertura para operações encobertas (penetração e contenção) dentro
dos movimentos estudantis e operários e desencorajou a mobilização dos
camponeses. Estabeleceu ainda uma bem organizada presença política no
Congresso e coordenou esforços de todas as facções de centro-direita em
oposição ao governo e à esquerda trabalhista. A elite orgânica também
estabeleceu o que pode ser considerado como efetivo controle da mídia
audiovisual e da imprensa em todo o país (DREIFUSS, 1981, p.64).

Ao falar sobre controle da mídia audiovisual, é preciso relevar que a imagem pode
configurar, dependendo da proposta, um poderoso instrumento de doutrinação de massa,
levando em consideração o tempo em que se leva para digerir discursos implícitos e
conectar os fatos com a realidade, na compreensão dos mecanismos do mesmo. Quando
as imagens vêm associadas a um discurso ideológico, atentando ao sentido moderno do
conceito, “como um conjunto de ideias que surgem de um dado conjunto de interesses
materiais ou, em termos mais gerais, de uma classe ou grupo definido” (WILLIAMS, 2007,

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p.215), geralmente por pressa, quem sabe, os homens tendem a não buscar conhecer os
seus pormenores, depositando sua crença em notícias demasiadas prontas, pois “o
homem comum, por norma, não se preocupa com aquilo que é ‘real’ para ele e com o que
‘conhece’, a não ser que tropece num problema qualquer. Tem como certa a sua ‘realidade’
e o seu ‘conhecimento” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p.14).
Durante o conturbado período entre a renúncia do presidente Jânio da Silva
Quadros e a posse do seu vice João Goulart, mais precisamente em outubro de 1961, era
fato de que uma propaganda opositora já se encontrava em movimento. O argumento
explorado pela oposição era o de que Jango estaria inclinado a aderir ao modelo de
comunismo soviético, fato muito explorado quando da renúncia de Quadros, este se
encontrava em viagem à China comunista. Assim criou-se um clima propício para
especuladores alardearem seu provável alinhamento aquele modelo doutrinário, para
tanto, tornou-se imperativo demonstrar que sua política de governo era inepta para a
nação.
O comunismo, desde antanho, foi o medo do outro, um medo que não encontrou
fronteiras, se havia a iminência do Brasil aderir a esta doutrina, um tanto amedrontada a
sociedade brasileira viu nesta possibilidade a materialização dos incontáveis horrores
soviéticos narrados pelas nações capitalistas. Neste ínterim, tornou-se fecundo para os
ipesianos ocupar o seu espaço na cena política e no meio social e também, “informar”
sobre os perigos que um abalo a democracia traria, com Jango no poder. Mesclando pavor,
falta de informação e propaganda as narrativas dos documentários do IPES puderam
simular no imaginário popular, um Brasil fora de ordem.
Segundo Ramos (2005, p. 20):

A tradição do documentário está profundamente enraizada na


capacidade de ele transmitir uma impressão de autenticidade. E essa é
uma impressão forte. Ela começou com a imagem fílmica bruta e a
aparência de movimento: não obstante a pobreza da imagem e a
diferença em relação a coisa fotografada, a aparência de movimento
permaneceu indistinguível do movimento real.

A partir disso as multidões eram preparadas para receber mensagens específicas,


inseridas em um quadro generalizado de desordem, sempre permeadas pela instabilidade
da democracia sendo ameaçada pelo próprio governo democrático. Os documentários

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acusavam as instituições do Estado como morosas, lentas e atrasadas e sugeriam entregar


a gestão de empresas estatais para empresas privadas ou para multinacionais, como
solução aos problemas elencados, isto em mais de um dos documentários, como por
exemplo nos: O Brasil precisa de você e Omissão é crime. Pensando no formato de mídia
do tipo documentário, utilizado pela propaganda ipesiana, podemos afirmar que está
intimamente ligado ao fato de que:

A capacidade da imagem fotográfica de reproduzir a aparência do que


está diante da câmera, compele-nos a acreditar que a imagem seja a
própria realidade representada diante de nós, ao mesmo tempo, ou o
argumento, apresenta uma maneira distinta de observar esta realidade
(NICHOLS, 2005, p.28).

Resolutas em um discurso progressista, a elite orgânica preparou-se para assumir


as rédeas da economia e da sociedade, desfazendo o serviço estatal público em prol de
interesses particulares, “estabelecida no interior das formações sociais nacionais dos
países onde as multinacionais operavam. Estas criavam ou favoreciam a formação de
‘elites’ locais ligadas organicamente por laços sócio-culturais” (DREIFUSS, 1981, p. 72).
Este discurso apresenta múltiplos inimigos diante do público alvo da propaganda
ipesiana, como o descalabro das instituições do Estado, a fome, a miséria, a inflação, o
precário transporte ferroviário, a seca no Nordeste, o nazismo, o fascismo, Stálin, Hitler,
Cuba e Fidel, um panorama confuso dentro de uma estrutura generalizante. Um conluio
de problemas econômicos e sociais, juntamente com a ameaça à democracia, foram o fio
condutor explorado nos documentários do IPES, aliados a um anticomunismo latente.
Sobre esta questão, ao contrário do que se costuma pensar, o anticomunismo não foi
somente fomentado pela política estadunidense, impulsionado pela Guerra Fria.
Conforme Motta (2007, p.234) estava relacionado com acontecimentos no Brasil durante
a década de 1930:

A URSS era perigosa não apenas por ser fonte para construção do
imaginário comunista. Ela passou a ser vista, sobretudo depois de 1935,
como potência agressora, Estado inimigo responsável por treinar,
financiar e infiltrar agentes subversivos no Brasil, devotados à destruição
da pátria e de seus valores básicos (religião, família e, dependendo do
autor do discurso, a liberdade).

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Pressupondo que as relações com a União Soviética não eram bem vistas e que em
1935 houve um levante comunista no Brasil352, é precípuo e fundamental compreender
que o sentimento anticomunista remonta de outros contextos em outras décadas e supõe
uma estrutura mais complexa em sua construção.

O sentimento anticomunista estava ativo e bem assentado nos valores das


elites e das classes médias, e o contexto de liberalização política avivaria
os temores por ele evocados. A legalização do Partido Comunista foi outra
das medidas liberalizantes do Estado Novo em seus estertores, e o
crescimento rápido e intenso dessa organização (cerca de 10% de votos
nas eleições de 1945), ao lado da eclosão de inúmeras greves e
reivindicações sindicais só fizeram intensificar o medo ao perigo
vermelho. A Guerra Fria forneceu aos grupos de direita nacionais suporte
internacional para apoiar seus intentos repressivos, mas é equivocado o
argumento de que a situação interna foi determinada pela externa. O
anticomunismo não precisava ser importado dos Estados Unidos, ele já
existia previamente e possuía aderentes inflamados (MOTTA, 2007,
p.236).

A partir disso, vamos pensar no contexto social e econômico dos sessenta. A


sociedade apresentava-se de forma conservadora, a população era predominante na área
rural, embora uma grande migração rumo aos centros urbanizados, atrás de
oportunidades de trabalho, estivesse ocorrendo. Investimentos na indústria trouxeram
transformações na sociedade brasileira e uma desaceleração da economia mundial
aparentava o fim dos anos dourados do capitalismo, enquanto isso, o mundo presencia o
crescimento das esquerdas no Ocidente. Entre 1961 e 1963, o muro de Berlim é
construído, perpetrando a imagem da divisão bipolar ideológica do mundo. Os Estados
Unidos rompem relações com Cuba e o presidente John F. Kennedy, com inclinação a
políticas de direitos sociais e de cultura racial, é assassinado em Dallas, Texas.
Acontecimentos que não só iniciam uma conturbada década para as sociedades ocidentais
como também explicita a guerra, outrora menos ruidosa, entre o capitalismo e o
comunismo.
No Brasil as notícias não são as melhores para a população:

Segundo uma pesquisa do Instituto de Arquitetos do Brasil, 50% da


população do país vive em favelas, mocambos, choças e outras

352
Movimento chamado de “Intentona Comunista de 1935”.

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‘habitações irregulares’ sem ‘condições mínimas de área, luz, salubridade,


conforto e higiene’. A maioria dos jornais afirma que a inflação e a
‘comunização’ do Executivo Federal são as grandes vilãs, a causa de todos
os tormentos do país. Com raríssimas exceções (como os jornais cariocas
Última Hora e Correio da Manhã), o tom da imprensa quanto à presidência
de João Goulart oscila entre a profunda desconfiança e a franca
hostilidade (BAHIANA, 2014, p.24-25).

No que diz respeito as mudanças no comportamento social, frente aos padrões


conservadores regidos pela moral e pelos bons costumes, os sessenta não foram nada
sóbrios. Envoltos em uma movimentação de contestação aos valores e tradições,
mostraram-se agitados, irreverentes e ousados aos olhos moderados da sociedade, que se
viram frente as mudanças de modelos e de conceitos das gerações mais jovens. Neste
cenário, surgem nos Estados Unidos movimentos sociais como: os Black Power, dos
negros, o Gay Power, dos gays e lésbicas e o Women´s Lib, movimento feminista de
igualdade de gênero, em um turbilhão de acontecimentos diante dos olhos incrédulos do
bastião “bom mocismo”. Juntamente com os movimentos/revoluções sociais, vem os
movimentos/revoluções culturais, atrelados a percepção de novas formas de
comportamento, como por exemplo:

O advento do Rock’n Roll nos EUA na década de 50 pode ser considerado


uma revolução na tradição juvenil seguida até ali. Foi a partir dele que o
mundo passou a assistir a profundas mudanças emergidas dos sujeitos
sociais juvenis que o aderiram e, daquele momento em diante, passariam
a não aceitar mais viver à sombra de seus pais ou de modelos sociais pré-
estabelecidos, como costumava ser até então (RAMOS, 2009, p.3).

As manifestações sociais, e porque não as culturais, embora pareça aos mais leigos
não terem ligação direta com os acontecimentos políticos, eles são sem dúvida um indício
de que os padrões vigentes estão em declínio, ou seja, estão em questionamento. Se há
problemas econômicos, há também uma procura por uma acomodação social e de
comportamento na vida cotidiana, segundo Berger e Luckmann (2004, p.33), “entre as
múltiplas realidades há uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência: é a
vida cotidiana. A sua posição privilegiada confere-lhe o direito à designação de realidade
predominante”.
Unindo contestações de comportamento e emergentes movimentos sociais com a
ameaça de adesão a um modelo comunista, estes tempos foram propícios para assombrar

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as mentes conservadoras brasileiras e seu estilo de vida, a pairar em uma atmosfera de


desequilíbrio dos padrões estabelecidos e aceitáveis. Os anseios de liberdade dos
expoentes jovens da geração de 1960, assumiram um movimento mais político, tendo em
vista que esta década “representou aqui a corroboração do processo de formação de uma
classe de jovens contestadores, seguindo os rumos do fenômeno que era mundial na
época” (RAMOS, 2009, p.12).
Toda esta efervescência cultural e social perfilava com os pressupostos da
produção e difusão de uma propaganda anticomunista concebida pelo IPÊS. A elite
orgânica brasileira não estava disposta a perder sua posição no cenário político e
econômico brasileiro. René Dreifuss, em seu “1964: a conquista do Estado” expõe o
tramado tecido pela elite orgânica e suas redes de relacionamento e compartilhamento
de ações, tramado este, que viabilizou a construção da economia e de padrões manejáveis
de comportamento através dos IPES e de vários canais conectados a eles.
Os canais irrigados para a infiltração doutrinária dos valores desta classe e de seus
adeptos, foram inúmeros e gananciosos, além da utilização de propaganda audiovisual,
como os documentários, outras formas de difusão midiática foram tecnicizadas, como
distribuição de panfletos, cursos em universidades, assistência a revistas e jornais,
conferências com setores civis, militares e ligações com a Igreja, neste último as atividades
deste órgão “tentavam incorporar o mais amplo espectro possível de intelectuais católicos
e figuras públicas também católicas que não eram aliados do governo ou que faziam
oposição à ele” (DREIFUSS, 1991, p. 254).
Afinal, qual o discurso irradiado pelos documentários do IPES? Podemos classificá-
lo como um discurso oculto, para James Scott (2013, p.60) “o discurso oculto dos grupos
dominantes é também um instrumento do exercício do poder. É constituído pela
linguagem- gestos, discursos, práticas- que os limites ideológicos que balizam o exercício
da dominação excluem do discurso público”. A produção e difusão dos documentários do
IPES, determinam a opção por linguagem midiática de cunho realista. Ao apresentar o
povo, por exemplo, diante da imposição da seca no nordeste brasileiro, o realismo faz do
expectador sua testemunha mais real. Para Peters e Rothenbuhler (2009, p.28):

Las comunicaciones massivas colocan imágenes en el lugar de los hechos


y relatos en el lugar de la verdad. Además, y precisamente porque son los

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mediadores de la experiencia, los medios son agentes de alienación.


Excluyen toda experiencia real: la que consiste en estar presente cuando
el evento ocorre.

O conteúdo narrativo nos documentários é entrecortado por imagens paradas e


em movimento, o discurso apresenta-se por uma linguagem direta e enfática, onde se
pode aferir as imagens de Stálin, Hitler, Fidel, a paisagem do Nordeste, as manifestações
sociais, recortes de jornais com notícias diárias, nada se movimenta, elas aparecem como
colagens, figuras de um outro lugar em uma reclamatória construída, quase surreal353.
Durante o desenrolar da narrativa, envia-se um aviso para a população: se esta não se
alinhar as premissas do novo modelo de ação para o Brasil, acabará acordando um dia
com a encarnação do próprio Hitler, Stálin ou Fidel presidindo o país. O público se vê
diante de um quadro sombrio e a sugestão de que se está ruim pode vir a ficar pior.
Por vezes nos filmes do IPES, a imagem é bastante tosca e infantil, como por
exemplo a de um mapa do Brasil, onde ele está representado por um desenho em uma
base de papel sobre uma matriz a definir a totalidade do seu território e, no centro do
mapa, um sugestivo desenho de um ponto de interrogação. Apesar de não ser uma
superprodução, a olhos contemporâneos, o objetivo de sua concepção e difusão nos leva
a indagar sobre como eram as cabeças que os conceberam. Dreifuss (1981, p.185) nos dá
um norte sobre estas cabeças, ao descrever a organização dos IPES:

Não era, como freqüentemente é descrito, um movimento amador de


empresários com inclinações românticas ou um mero disseminador de
limitada propagando anticomunista; era, ao contrário, um grupo de ação
sofisticado, bem equipado e preparado; era o núcleo de uma elite
orgânica empresarial de grande visão, uma força-tarefa estrategicamente
informada, agindo como vanguarda das classes dominantes. A freqüência
e intensidade de suas reuniões eram surpreendentes se comparadas com
padrões de delicada militância partidária.

A manipulação de imagens com o intuito de doutrinar, não é novidade no mundo,


nem exclusiva do Brasil. Sua utilização objetiva o meio social e busca atingir determinados
grupos, convocando-os a um alinhamento partidário e colaborador, a fim de atender as
suas demandas, pois governos, líderes, entidades e uma gama de pessoas bem articuladas,
beneficiaram-se desta ferramenta.

353 Documentário: “O Brasil precisa de você”.

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Ao praticar a autoridade sobre uma miríade de pessoas, não se há de pecar pela


falta da articulação de propósitos. Em relação a eles, os documentários difundidos pelo
IPES, durante o governo de João Goulart, carregavam em seu cerne o objetivo de “fazer
cabeças, despolitizar” (ASSIS, 2001, p.31) a população. A imagem em sua repetição
personifica um cenário que se quer como verdade maior, dá-se uma direção a um intuito.
O homem simples, e aqui é aquele que durante os sessenta trabalhava literalmente para
viver, destituído de outros prazeres e lazeres, acaba por identificar-se com as propostas e
denúncias estimuladas nestes documentários. Afinal, esta é uma entidade que parece ser
respeitável, visto por uma perspectiva singular, pois verbaliza situações vivenciadas pela
população em seu dia a dia.
Longe das grandes discussões políticas está o cidadão comum, perpetuamente
orbitando em torno dos seus problemas, quando ousa lançar a vista parca para fora desta
órbita, não vislumbra soluções efetivas. No desenrolar deste vislumbre, o ritmo por
armazenar a informação adequada, pesquisar e debater opiniões mais concretas sobre
como reverter a própria situação, este homem simples deixa escorrer por entre seus
dedos, a fina areia das promessas e, paradoxalmente, se esquece das lembranças
referentes a elas.

Numa tal sociedade todos os problemas são comuns, todas as soluções


para estes problemas são objectivadas em termos sociais e todas as
acções sociais são institucionalizadas. A ordem institucional abarca a
totalidade da vida social que se assemelha a uma execução continua de
uma liturgia complexa e muito estilizada. Não há, ou quase, distribuição
de conhecimento por papéis específicos, visto que todos os papéis são
executados em situações de igual relevância para todos os actores
(PETERS; LUCKMANN, 2004, p. 90)354.

A partir disso, achar um culpado configura uma tarefa bastante fácil, quando já se
tem um contexto de crise devidamente trabalhada pela ferramenta midiática. Não é
possível tratar de inimigos quando não se tem um rosto, um nome e talvez uma
agremiação. Ao dar nome para o problema e sugerir a solução, seja através de filmes e
fotografias, de propagandas com legendas atraentes e até ameaçadoras, a sociedade tende
a identificar mais rapidamente quem e o que deve evitar. O meio social é permeável, no

354 Grifos dos autores, sendo mantida a grafia original.

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que diz respeito aos abalos do seu status quo, se há uma presença a subverter os modelos
que se conhece e por sorte já se acostumou, a população não vai medir o quanto estes
abalos podem lhe causar ou afetar, um tanto cega irá buscar a força naquilo que lhe resta:
uma adesão a projetos de ação transferindo a sua atuação para outros agirem em seu
nome.
O filme documental interage com uma massa atenta a sua verbalização, que a
absorve como verossímil, a problemática apresentada a legítima como tal, pois “a
legitimação produz novos significados que servem para integrar os significados já ligados
a processos institucionais díspares” (PETERS; LUCKMANN, 2004, p. 101). Confinados em
um espaço social como as praças, fábricas, sessões de cinema, entre outros, está a
população, a propaganda ipesiana, os problemas econômicos e sociais do Brasil, o inimigo
culpado por tudo e, o gran finale, um novo modelo de ação que defenderá os princípios
democráticos do país. Este perlocutório de medidas extremamente míopes, atuou na cena
pública, pois segundo Scott (2013, p. 89-90), “ao controlar a cena pública, os dominadores
criam uma realidade aparente que se aproxima, idealmente, daquilo que pretendem que
seja visto pelos subordinados”.
O IPES como organização, preparou-se para ocupar um espaço dentro do Estado,
compreendendo este, como um Estado restrito voltado para o interesse de uma única
classe. Esta classe, a elite orgânica, amparou-se em um processo de doutrinação midiática
e de uma rede de relações através da consolidação de um conservadorismo moral,
travestido como defensor da democracia, empenhado em incutir no meio social a sua
verdade. O uso dos meios de comunicação de massa foi fundamental para que a população
acreditasse que o país estava prestes a ser destituído da sua democracia, tomando um
rumo adverso, cujo perigo sinalizava para uma ditadura comunista. Diversos estudos
debruçaram-se sobre a temática dos documentários do IPES, principalmente relevando-
os como uma propaganda desestabilizadora do governo de Goulart, porém sobre o seu
conteúdo, podemos acrescentar algo a mais, pois a difusão desta mídia foi também um
alerta, uma preparação da população para receber um novo governo, com uma nova
proposta e que consolidaria em 1964 com os militares no poder, apoiados é claro, pela
elite orgânica do IPES.
Os meios midiáticos e audiovisuais, com o formato preciso, de fácil recepção e
ideológicos, apresentaram uma verdade ao meio social, carregada de distintas ameaças.

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Exibidas em locais adequados a um público certo, encenaram um contexto de desordem e


visibilizaram o caos.

Uma comunicação eficaz do poder e da autoridade tem consequências


importantes na medida em que contribui para uma espécie de profecia
autocumprida. Se os subordinados acreditarem que o seu superior é um
homem poderoso, essa impressão ajuda-lo-á e, ao mesmo tempo,
contribuirá para reforçar o seu poder efectivo (SCOTT, 2013, p. 87).

No que diz respeito as mensagens contidas nos filmes do IPES, muitas foram as
consequências desta doutrinação em nome da defesa da democracia. Inseridos em um
contexto de ebulição cultural e mudanças de comportamento social, no Brasil e no mundo,
os alertas da propaganda ipesiana irradiaram um medo referente ao futuro do país,
reforçaram o sentimento anticomunista, destituíram o valor do funcionamento da
máquina pública, obstruíram a participação popular, conduzindo-a a adesão de um
discurso pronto, entre outros fatores.
Entretanto, não nos iludamos com a ingenuidade popular frente a salvação da
nação em aderir a este discurso pronto, porque também pode indicar uma certa
acomodação do indivíduo em mobilizar-se perante as mudanças relacionadas ao tão
problemático cotidiano do cidadão brasileiro. Não podemos deixar de relevar que os
documentários do IPES, trazia uma solução, mesmo que conduzida, para a manutenção da
ordem, pela destituição de um Estado espúrio, no que condiz a gerência dos serviços
públicos e pela expulsão do demônio do comunismo. A mensagem maior era colaborar
para proteger-se, pelo menos, em seu modo de apresentá-lo, eloquentes e quase
fanatizados, é assim que os filmes/documentários do IPES, tencionam ser, acredite ou não,
sem perder o embuste, pois: o Brasil precisa de você!

Referências bibliográficas:
Artigos periódicos: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O perigo vermelho vem de fora: o Brasil e a
URSS. Locus: revista de história, v. 13, n. 2, 2007, pp. 227-246.

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realidade de la construcción. In. MASSON-VEYRAT, Isabelle, DAYAN, Daniel (comps.).
Espacios públicos em imagenes. Gedisa, 2009, pp. 27-46.

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RAMOS, Eliana Batista. Anos 60 e 70: Brasil, juventude e rock. Revista Ágora, Vitória, n.10,
2009, pp. 1-20. Disponível em: http://periodicos.ufes.br/agora/article/view/1940,
acesso em 28 jun. 2016.

Livros: ASSIS, Denise. Propaganda e cinema a serviço do golpe- 1962/1964. Rio de Janeiro:
FAPERJ/ Maud. 2001.

BAHIANA, Ana Maria. Almanaque 1964: Fatos, histórias e curiosidades de um ano que
mudou tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 2° edição. Lisboa:


Dinalivro, 1999.

DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de
classe. Petrópolis: Vozes, 1981.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. 3° edição. Campinas: Papirus Editora, 2008.


SCOTT, James C. A dominação e a arte da resistência. Discursos ocultos. Lisboa: Lera Livre,
2013.

WILLIANS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo:


Boitempo Editorial, 2007.

Referências de fontes audiovisuais: HISTÓRIA DE UM MAQUINISTA. In.: Documentários


do IPES. São Paulo: Jean Manzon.1962/1963. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=0SrMI9SD6DU .Acesso em 4 mai. 2016.

NORDESTE PROBLEMA NÚMERO UM. In.: Documentários do IPES. São Paulo: Jean
Manzon.1962/1963. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=HHrUXEh_Rfg. Acesso em 17 mai. 2016.
O BRASIL PRECISA DE VOCÊ!. In.: Documentários do IPES. São Paulo: Jean Manzon.
1962/1963. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=wzWricBgMt8. Acesso em 25 mai. 2016.

OMISSÃO É CRIME. In.: Documentários do IPES. São Paulo: Jean Manzon. 1962/1963.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ZOCL6OkzCy4. Acesso em 23 mai. 2016.

O QUE É O IPÊS?. In.: Documentários do IPES. São Paulo: Jean Manzon. 1962/1963.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=zN6tIZEHXr8. Acesso em 10 mai. 2016.

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VIGIAR E CONTROLAR EM TEMPOS DE DEMOCRACIA: A DELEGACIA DE


COSTUMES DE PORTO ALEGRE COMO PORTA DE ENTRADA DO DOPS
(1946-1964)

Estela Carvalho Benevenuto

O contexto
A instituição policial moderna é fruto das transformações da sociedade urbana e
industrial, principalmente, a partir do século XIX e, se insere dentro de um contexto, de
crescimento das cidades, urbanização acelerada e uma necessidade de controle e
vigilância por parte do Estado e da sociedade. “Em seu sentido original, a expressão polícia
estava relacionada à manutenção da unidade da cidade e, portanto, a arte de governar”
(MOTTA, 2006).
Neste contexto, a medida que a sociedade torna-se mais complexa o ato de
controlar, vigiar e reprimir acaba por definir-se por uma das principais tarefas da polícia,
e este controle social tem a função de enquadrar e adequar os sujeitos a um modelo ou
status social tido como padrão aceito socialmente, de acordo com Foucault, instituições
como a polícia configuram-se em uma combinação de controle social e moral, sob o olhar
vigilante do Estado, da sociedade, pois a medida que a burguesia se constitui como classe
dominante, busca mecanismos de controle mais eficazes (FOUCAULT, 1986). Para
Norberto Bobbio, a polícia por ter este poder legitimado pelo Estado utiliza-se de
ferramentas de intervenção direta que são acionadas quando o indivíduo não se dispõe à
uniformidade do comportamento geral, neste ponto será papel da polícia colocar em
prática sanções, punições e outras formas de intervenção para garantir que o sujeito se
submeta ao seu contexto (BOBBIO, 2000). E, cabe a ela polícia administrar este monopólio
da força.
Desta forma as polícias especializadas começam a ser organizadas durante o
Império no Brasil, e com a Proclamação da República se acelera a necessidade de
estruturação de policias estaduais. Já em 1896, ocorre um processo de remodelação do


Mestra em História do Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos. Bolsista Capes/Prosup. Contato: < vsvanderster@gmail.com>

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sistema policial no Rio Grande do Sul, definisse as funções da chamada Polícia Judiciária
e Polícia Administrativa (MAUCH, 2011). A primeira tinha uma abrangência estadual e sua
função era investigativa, reunir elementos necessários para a instrução criminal e
julgamento; a segunda era municipalizada, sua tarefa era preventiva.
Nas primeiras décadas do século XX, permanece o processo de reorganização da
instituição policial, em nível nacional e regional. Em 1937, no início do Estado Novo
institui-se o decreto 6.880 que organiza a Carreira da Polícia e cria a Escola de Polícia. Um
ano depois, 1938, através do decreto 7601 se oficializa o DOPS (Departamento de Ordem
Política e Social), além de outras delegacias: Delegacia de Entrada, Permanência e Saída
de Estrangeiros; Delegacia Especial de Segurança e Vigilância e Delegacia Especial de
Costumes.
Entende-se que o contexto autoritário, ditatorial que vivíamos justifica o
aprimoramento do poder de polícia e, paralelo a isto o processo de modernização urbana,
crescimento das cidades e novos atores a esta realidade social. Todavia, a polícia política,
através de seu órgão DOPS permanecerá inserida na sociedade brasileira, oficialmente,
até 1983 e em alguns estados como o Rio Grande do Sul será extinta somente em 1986.
O que questiono, é a permanência de uma instituição de traços autoritários e
evasivos por tantos momentos na história política e social do nosso país. É certo que nos
períodos de ditaduras, 1937-1945 e 1964 a 1984, se fez mais explícita e atuante na
sociedade, porém isto não invalida sua ação nos momentos de abertura política. Minha
hipótese é que tal fato se deve a formação das forças de segurança por parte do Estado e
nossa tradição truculenta no trato social. Assim, esse DOPS desempenha uma ação de
profilaxia social, atua sobre os indesejados, vadios e subversivos, não se restringindo
somente aos opositores políticos do Estado/governo.

DOPS e Delegacia de Costumes: vigilância e controle da sociedade.

Tanto a Delegacia de Costumes quanto o DOPS, são setores da instituição policial


que desempenhavam tarefas nos ditos setores mais sujos e marginalizados da sociedade,
se utilizavam de recursos como a investigação preventiva, e a inserção nestes contextos
como forma de coletar informações. A polícia política, é empregada e compreendida neste
contexto para identificar uma forma de atuação policial direcionada à repressão das ações

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políticas oposicionistas ao poder vigente. Pode utilizar ou não a força armada, mas sua
principal função é manter e assegurar a ordem pública., “a formação do DOPS se deu num
momento de afirmação do federalismo, em que se procurava consolidar a autonomia dos
Estados e evitar o fortalecimento do poder federal”(MOTTA, 2006). Durante o governo
Vargas esta organização é mantida e reforçada. Com a abertura política, nenhum governo
democrático extinguiu o DOPS, inclusive após 1945, dado ao contexto de Guerra Fria, o
inimigo comunista parecia mais perigoso que nunca, e o “saber” acumulado pelos homens
de polícia, tornaram-se particularmente valiosos.
Neste contexto a Delegacia de Costumes, protetora da ordem e da moral e bons
costumes que têm por competência atuar nas chamadas contravenções penais de caráter
moral, tendo como alvo prostitutas, vadios, meliantes, atua em parceria com o DOPS. Para
a historiadora Erica-Marie Benabou, “a polícia de costumes francesa, durante o século XVIII,
tinha como função vigiar “aqueles que constituem o mundo galante”, mas também e por
meio deles, certas categorias da população masculina as quais a polícia dirige um interesse
particular”. E, este interesse se expressa na ação da polícia de costumes também no Brasil.
A figura perigosa pode estar travestida de homem ou mulher, estrangeiro ou brasileiro,
mas a questão moral atravessa seus atos criminosos.

O processo foi iniciado por inquérito instaurado pela polícia, quando da


prisão e encaminhamento de Maria Beatriz Duarte à Delegacia de
Costumes, onde foram coletados os depoimentos e posteriormente, das
testemunhas de acusação (17/02/1934). Em menos de um mês
(02/03/1934), o delegado Adido a Delegacia de Costumes, Dr. Djalma
Whitaker Lima, finalizou o relatório do gabinete de investigação de São
Paulo, concluindo a expulsão da portuguesa. Nesse relatório apresentava
como embasamento legal a interpretação do artigo 72 da constituição
1891, então em vigor, e concluía: Sendo a acusada presa em flagrante
quando tentava aliciar as vítimas passando o cartão do endereço do
prostíbulo”. (MATTOS, 2014, pág. 135).

A polícia de costumes moraliza e criminaliza os chamados atos imorais e, em um


determinado momento moral, crime e delito político formam a tríade para a atuação
destas duas policiais. Desta forma, os delitos que se enquadram na alçada da delegacia de
costumes podem se tornar crimes políticos, no momento em que desiquilibram ou
questionam o status da família e da sociedade brasileira.

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Entre os anos de 1946, e de forma mais intensa a partir de 1950, a ação do Dops
nos espaços marginais da cidade de Porto Alegre ocorreu de forma intensa, as delegacias
que se localizavam na área da central cidade, 3 e 4 DP eram a principal fonte de
informações para o DOPS e seus agentes. A delegacia de costumes, que também se
localizava nesta região realizava, em alguns casos a peneira do que seguiria para o DOPS,
ou ficaria retido em seu espaço carcerário. Em muitos casos, a situação era de averiguação,
todavia percebe-se que tal filtro era uma das estratégias de localizar e prender possíveis
comunistas, subversivos, opositores políticos.
Como neste caso:

Recolhimento de preso: às 12horas foi apresentada neste plantão pelo


praça da brigada militar, motorista em atitude suspeita de inclinação
sexual suspeita, à delegacia de costumes, indivíduo de nome Eduardo
Machado, branco, 32 anos, solteiro de profissão bailarino, de
naturalidade uruguaia, encaminhado para a Costumes e depois segue
para o inspetor Romeu (...) foi recolhido ao xadrez a disposição do DOPS
(16/4/1956). (Livro de Ocorrências e Detenções 8/4/1956 a 19/6/1956
n 42)

Tabela de prisões e encaminhamentos das delegacias centrais de Porto Alegre para as delegacias
de Costumes /DOPS

Meliante Caso Livro de Encaminhamento


Ocorrência e
Entrada da 3
DP
Adão Pedro Frequentador Livro de Averiguação na
Padilha- da Boite 007, 30/11/1959 Delegacia de
sapateiro, 23 após a a Costumes e na
anos, solteiro embriaguez 18/10/1960. mesma noite
fez saudações encaminhado ao
“comunistas” DOPS. Entregue
ao inspetor

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Fedele Embriaguez Livro de Entregue ao


Grazioso, 22/04/1956 DOPS, após ser
solteiro, 24 a 03/6/1957 recolhido na
anos, italiano vadiagem.
residente em Averiguação e
Porto Alegre, detenção em
garçom. 8/8/1956.
Gessi Prostituição Livro de Encaminhada a “ Se ainda
Oliveira, 20 10/2/1959 a Delegacia de fosse só
anos, 30/11/1959 Costumes, onde meretriz, mas
meretriz, passou o dia e é amante de
brasileira. depois entregue comunista e
ao motorista subversiva”-
policial do DOPS. Obs. No livro
de registro do
motorista da
DOPS ao
recolher a
meretriz.
Manoel Defraudações Livro de A disposição do Liberado em
Madronicelo, e delito 30/11/1959 DOPS. Entrada 14/5/1960
argentino político. a 18/10 em 13/5/1960. por
/1960 determinação
do secretário
de segurança

Os livros de registros de prisões da terceira DP não explicitam os crimes e


acusações, normalmente suas anotações se restringem ao momento de apreensão,
entrada e crime cometido e, qual a carceragem que o acusado era encaminhado. Neste
sentido, as relações entre a delegacia de costumes e DOPS são interligadas. Nas fontes
pesquisadas aparece com frequência o nome de alguns inspetores e investigadores que
eram responsáveis por dar sequência ao processo de prisão, demonstrando que
determinados acusados deveriam ter um tratamento diferenciado, fosse por agentes do

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DOPS ou delegacia de costumes, como no caso destes cinco operários apreendidos pela
delegacia de costumes em um bar da zona boêmia de Porto Alegre.

Lêoncio dos Santos Caetano, brasileiro, 39 anos, pintor; Bento Machado,


brasileiro, 64 anos, carpinteiro; José dos Santos, brasileiro, 45 anos,
jornaleiro; Henrique Antonio Ribeiro, brasileiro, 41 anos, pedreiro;
Valdomiro Castro Morais, brasileiro, 40 anos, carpinteiro. (Livro de
Entrada 17 – 29/08/1954)

Neste registro consta uma série de observações sobre o momento da apreensão e


os motivos pelos quais os sujeitos foram encaminhados para o DOPS. Escrevia assim o
inspetor da Costumes: Passo para a averiguação do inspetor Henleim os seguintes operários
que ao invés de encontrarem-se nos afazeres do trabalho encontram-se na vadiagem do
Hotel Madrigal”. Assim, os mesmos foram registrados no DOPS, ficaram algumas horas
sob a custódia policial e depois foram liberados pelo inspetor Henleim. Este registro, é um
dos muitos que eram efetuados pela delegacia de costumes, e outros departamentos de
polícia. O crime da vadiagem, além de ser um caso de polícia, poderia se tornar também
um crime político. É bem provável, que estes homens foram libertados por não terem
nenhuma vinculação sindical ou partidária, todavia chama a atenção à escrita da polícia
que ressalta o termo, “operário” e o local que estes operários se encontravam,
interessante que no registro de apreensão não há uma especificação do momento em que
foram presos, se era dia, noite ou madrugada. Mas, se ressalta a incoerência moral destes
trabalhadores em encontrarem-se na zona boêmia da cidade.
As apreensões da delegacia de costumes e do DOPS, durante o período democrático
buscavam através dos chamados crimes morais elementos para enquadrar ou não, nos
possíveis crimes políticos. Os registros que tratam destas duas delegacias, demonstram
muitas apreensões e poucas prisões de fato. Muitos poderiam ser suspeitos, porém, existe
um cuidado em não tornar todos culpados. A zona boêmia, de meretrício da cidade será
um dos locais de busca e apreensão destes possíveis meliantes. Muitos, eram
encaminhados diretamente para o DOPS, principalmente os estrangeiros que
desembarcavam de navios, estavam em trânsito ou chegavam como imigrantes. A porta
de entrada era o DOPS.
No mês de abril de 1956, registra-se alguns casos de estrangeiros que
permaneceram alguns dias reclusos no DOPS ao chegarem em Porto Alegre: Mário

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Américo Italo Gostaldi, 29 anos, solteiro, argentino, comerciante, entrada dia 05/04 – saída
12/04; Rafael Antônio Echeverry Holguim, 26 anos, colombiano, marinheiro, entrada dia
05/04 – saída 12/04; Eduardo Machado, solteiro, uruguaio, bailarino, entrada dia 05/12 –
saída 16/04 (Livro de prisões e detenções 23) . Nos registros policiais sempre se
destacava o nome, estado civil, nacionalidade, idade, profissão e, outras observações
ficavam a critério de quem realizava o auto de apreensão ou se outro agente considerasse
necessário, os dados mais detalhados ficavam restritos aos boletins de ocorrência.
Contudo, é possível perceber a necessidade de enquadramento dos recém chegados ao
país por parte polícia. Todos estes homens permaneceram mais de 48hs reclusos para
averiguação, mesmo não tendo nenhum tipo de registro que os vinculasse a partidos
políticos, sindicatos ou agremiações em seu país de origem. Ou uma possível entrada no
país de forma clandestina. Faço tal ressalva, pois nas anotações dos Livros de Entrada de
Estrangeiros e, do DOPS, não aparece uma acusação formal sobre tais indivíduos, mas sim,
a recomendação quanto a necessidade de se manter sob vigilância, e a busca de informações
junto aos órgãos competentes sobre tais indivíduos.
Nestes casos, a postura de vigiar e prevenir torna-se uma das principais tarefas
destas duas delegacias, em relação aos estrangeiros e brasileiros. Em períodos
democráticos, como vivíamos entre os anos de 1946-1964, a estratégia adotada pela
polícia política, através de seu departamento o DOPS em conjunto com outras delegacias,
principalmente Costumes será, também a vigilância e prevenção. Nos anos analisados são
poucos os casos de reclusões longas ou diligências policiais com o objetivo específico de
prender subversivos, comunistas através de atos discricionários. Tais ações só eram
realizadas quando os agentes da polícia tinham uma “certeza” do que iriam encontrar ou
subsídios que poderiam levar a uma prisão, como neste caso:

Às 9horas do dia 4 de 3 de 1964 o guarda civil n 205 Ari A. da Silva


acompanhou o Sr. Francisco Fernando B.B. Casado com 70 anos, residente
na rua Varela n 29, profissão condutor de Obras da Secretária do Interior
e Justiça por solicitação do sr. Delegado do 8 distrito, sr. Arlindo Oliveira
ao qual foi constatado que existia material subversivo sendo que a parte
prejudicada entregará o referido material ao sr. Delegado do distrito. Foi
encontrado os seguintes objetos: três sofás estofados, uma copa
completa, com armário, uma mesa de centro (...) uma mesa de cozinha,
uma cadeira e um banquinho, um cachete com livros subversivos, uma
pistola calibre 32 com dois canos, 2 balas... (Livro de Ocorrências 868).

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Neste caso não fica muito explícito o que é o subversivo, porém é provável que
fossem documentos, livros que versavam sobre o comunismo, que neste momento era o
principal inimigo da democracia no mundo, e claro também no Brasil. Nestas buscas e
apreensões que eram realizadas, todos os bens eram recolhidos, pois poderiam se tornar
provas contundentes contra o acusado, porém existia um cuidado em averiguar e ter
testemunhas dos atos empregados pela polícia, no caso relatado acima, o próprio acusado
abriu à porta, acompanhado pela polícia e mais três testemunhas que eram residentes
próximos a sua casa (Livros de Ocorrências 868). Isto demonstra um cuidado em buscar
as provas e também construir uma acusação e uma possível prisão.
As relações entre DOPS e a Delegacia de Costumes sempre foram muito próximas,
ambos departamentos surgem no Rio Grande do Sul no mesmo ano e tratam de crime,
criminosos e delitos que nem sempre foram considerados como crimes pela sociedade.
Vadiar, se embriagar, prostituir, posicionar-se politicamente, ser sindicalizado... A
sociedade industrial e urbana, moralizou e instituiu leis e regras que deveriam ser
policiadas e reprimidas. Então, mesmo em períodos que a democracia se faz presente em
nossa sociedade, instituições como a polícia desempenham também uma função
moralizadora.
Neste estudo, o DOPS e a Delegacia de Costumes são os principais elementos
catalizadores do que deve ser enquadrado como adequado para a sociedade brasileira. Se
em um período anterior da política brasileira, durante os anos do Estado Novo, esta
polícia política se legitimava por estarmos em uma ditadura, a partir do final de 1945 o
cenário muda. O Brasil inicia um processo de transição para a democracia, convoca-se
eleições legislativas destinadas a escolher uma assembleia constituinte (CARVALHO,
2012), e muitos dos avanços que haviam sido conquistados durante os anos de 1937-1945
são mantidos e outros são incorporados. Liberdade de imprensa, garantia dos direitos
civis, entre outras conquistas que legitimam uma democracia. Todavia, a polícia política
permanece atuante neste cenário, seja através da simples vigilância, controle dos
comunistas, estrangeiros, prostitutas... Ela está ali, pronta para atuar nos bastidores do
poder. E sua ação para o Estado se justifica, também pelo contexto de guerra fria, o avanço
do comunismo no mundo; tanto que o Partido Comunista brasileiro terá seu registro
cassado em 1947 e muitos dos membros serão perseguidos durante este período.

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Todavia nem sempre o crime de subversão está explícito, em muitas situações era
necessário buscar as informações, ir de encontro aos locais e pessoas que poderiam ser
enquadradas em crimes políticos, sociais. E, neste sentido as delegacias centrais fazem a
varredura para que o DOPS e a delegacia de costumes possam atuar. E a porta de entrada
de muitos destes meliantes políticos será a delegacia de costumes, o ato de vadiar pode se
tornar um ato de subversão, assim como o meretrício, a vadiagem, os lugares perigosos.
Assim, estes dois órgãos se tornam os “guardiões” da democracia, da moral e da sociedade
brasileira. Desta forma, a violência mais explícita nem sempre será utilizada, nos registros
e documentos encontrados não havia relatos que deem conta de tais estratégias, porém
se vigia e controla muito. Todos os espaços supostamente perigosos da cidade deveriam
ser monitorados: os bares, zonas de prostituição, área portuária, espaços de jogatinas.
Nestes lugares, acreditava-se que o inimigo estava presente, disfarçado de trabalhador,
imigrante, portanto, a presença e ação da polícia era essencial.
A estratégia da vigilância e controle foram uma das alternativas do Estado através
da instituição policial de manter a ordem e afastar os supostos inimigos. Percebe-se que
está ação sempre ocorreu procurando respeitar os princípios legais que caracterizam uma
democracia, porém não impediu ações e prisões sem justificativas, o princípio da
averiguação neste momento estava à frente de todos os outros. Muitos poderiam ser
suspeitos, assim a polícia poderia encaminhar e prender todos aqueles que se
enquadrassem em um perfil perigoso.

Humberto Esteban M. Rodriguez, sem residência fixa, 27 anos, solteiro,


uruguaio, garçom, à disposição do DOPS – entrada 9/04/1957 – Delegacia
de Costumes; Carlos Humberto Benvenuti Baschi, Montividéu, 19 anos,
solteiro, uruguaio, à disposição do DOPS – entrada 13/07/1957 –
entregue ao DOPS 15/07/1957 pela Delegacia de Costumes. (Livro de
prisões e detenções 19).

Fontes Primárias

Arquivo da Acadepol (Academia de polícia civil do Rio Grande do Sul):

Livro de Prisões e detenções 3 DP – 22 (08/10/1958 – 09/02/1959)

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Livro de Prisões e Detenções 3 DP – 23 (10/02/1959 – 30/11/1959)

Livro de Prisões e Detenções 3 DP – 18 (20/03/1955 – 22/04/1956)

Livro de Prisões e Detenções 3 DP – 19 (22/04/1956-03/06/1957)

Livro de Prisões e Detenções 3 DP – 20 (03/06/1957 – 27/12/1957)

Livro de Ocorrência 868 – (01/01/1964 – 30/04/1964)

Referêncas bibliograficas:

BENABOU, Erica-Marie. Prostituição e do vice squad no XVIII século. Edições Perrin, Paris,
1987.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Ed. UNB, 1997.

CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro, Ed.
Civilização Brasileira, 2012.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Ed. Vozes, 1986.

MOTTA, Rodrigo Patta Sá. O ofício das sombras. Revista do Arquivo Público Mineiro. V. 1,
p.53-70, 2006.

MATTOS, Maria Zilda Santos. Entre suspeitos e perseguidos expulsos: SP 1934-1940. IN:
VIANNA, Marley de Almeida Gomes (org.) Presos políticos, perseguidos estrangeiros na era
Vargas. Rio de Janeiro: Ed. Mauap, 2014.
MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre, 1986-1929.
Tese (Doutorado), UFRGS, Porto Alegre, 2011.

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POLÍTICA E DEMOCRACIA NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA: A CRISE


DOS MÍSSEIS E O GOLPE DE 64 NO BRASIL

Charles Sidarta Machado Domingos

De uma forma geral, a Guerra Fria não tem tido ênfase como componente
explicativo pela historiografia que se preocupa com o governo Goulart, suas opções
políticas nacional-reformistas e o fim da democracia representado pelo Golpe de 64 no
Brasil. Em razão disso, pretendo descortinar de forma mais detalhada a relação bilateral
entre Brasil e Estados Unidos (EUA) ao longo do ano de 1962 tendo como ápice o evento
conhecido por Crise dos Mísseis. Para tanto, nossos interlocutores serão a documentação
oficial produzida pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro, pronunciamentos do
presidente João Goulart, grande imprensa, cartas trocadas entre os presidentes Goulart e
Kennedy e documentos produzidos pelo governo dos EUA.
Logo no início do ano de 1962, em Punta del Este, no Uruguai, foi realizada a VIII
Reunião de Consulta dos Chanceles Americanos que tinha como objetivo principal discutir
acerca das escolhas políticas de Cuba e sua relação com o restante do continente. Nessa
reunião, a posição do governo brasileiro constituiu – juntamente com o governo mexicano
- o maior obstáculo para os interesses dos EUA que, apesar da resistência enfrentada,
logrou êxito em sua intenção de excluir o governo cubano do convívio dos demais países
da OEA.
Dois meses após a Conferência de Punta del Este, o presidente Goulart partia em
missão oficial aos Estados Unidos. Goulart fora recebido pelo presidente John Kennedy
em Washington e na mesma cidade esteve na OEA; em Nova York, esteve na ONU; e em
Omaha esteve no Comando Aéreo Estratégico de Defesa dos EUA.
Após dois encontros com o presidente John Kennedy, um “comunicado conjunto
dos presidentes dos Estados Unidos do Brasil e dos Estados Unidos da América” foi
divulgado à imprensa. Nessa declaração, era enfatizado que as reuniões entre os dois


Doutor em História/UFRGS. Professor no IFSUL. Contato: < csmd@terra.com.br>

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presidentes se desenvolveram em “um espírito de franqueza, cordialidade e compreensão


mútua”.355
Nesse mesmo sentido, era destacado
que a tradicional amizade entre o Brasil e os Estados Unidos tem
prosperado através dos anos como uma consequência da fidelidade do
povo brasileiro e do povo norte-americano aos ideias comuns da
democracia representativa e do progresso social, ao respeito mútuo entre
as nações e à determinação de ambos os Governos a trabalharem juntos
pela causa da paz e da liberdade.356

Portanto, temas que se mostravam importantes aos dois países estavam presentes
na declaração, como o respeito à democracia, a busca pelo desenvolvimento social e a
defesa da paz. Isso gerava uma ideia de aproximação, tanto entre os dois países quanto
entre seus dois presidentes. Além disso, também houve espaço na declaração para a
“democracia política, a independência e a autodeterminação nacional, a liberdade
individual”357 como princípios políticos que ambos os países comungariam. Dessa forma,
valores muito caros a ambos os governos estavam presentes. Sem mencionar Cuba ou a
VIII Reunião de Consulta, aparecia o princípio de autodeterminação, o que representava
que o governo brasileiro não recuara em sua Política Externa Independente. Ao mesmo
tempo, as noções de democracia política e liberdade individual, extremamente caras ao
governo dos EUA, também representavam que aquele país não retrocedera em relação ao
seu entendimento a respeito de Cuba.
O comunicado conjunto também mencionava a importância que Estados Unidos e
Brasil conferiam à Aliança para o Progresso, à ideia do desarmamento, e
à Carta da OEA. Também era mencionado, ainda que indiretamente, o problema das
encampações de empresas estadunidenses:
o Presidente do Brasil declarou que nos entendimentos com as
companhias para a transferência das empresas de utilidade pública para
a propriedade do Brasil será mantido o princípio de justa compensação
com reinvestimento em outros setores importantes, para o
desenvolvimento econômico do Brasil. O Presidente Kennedy manifestou
grande interesse nessa orientação.358

355 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados
Unidos da América e ao México. Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 33.
356 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados

Unidos da América e ao México. Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 33.
357 Idem.
358 Idem, p.35.

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A postura do presidente brasileiro se mostrava de negociação. Aceitava alguns


pontos de interesse dos EUA e mantinha certos pontos de vista próprios em evidência.
Não era do interesse do governo Goulart o confronto; inclusive, porque o Brasil não tinha
condições objetivas de prescindir da relação com os EUA. Antes pelo contrário, a posição
do governo brasileiro era de manutenção das relações entre os países em bom nível,
procurando recuperar a confiança dos EUA que ficara desgastada com as questões de
Puntadel Este e das encampações, pois o governo brasileiro precisava de recursos
financeiros, sob a forma de empréstimos. Em virtude dessas negociações, ficara acertado
que o dinheiro destinado às empresas encampadas não sairia do Brasil, sendo reinvestido
no país.
Já na Organização dos Estados Americanos, o presidente Goulart enfatizara o
princípio da PEI consoante à autodeterminação dos povos: o de não-intervenção. Se
tomara cuidado para não mencionar esse aspecto da Política Externa Independente no
comunicado conjunto com o presidente Kennedy, na OEA – mesmo que também sem fazer
referência direta ao problema cubano – Goulart assim se manifestava:

A força e o prestígio desta Organização repousam sobretudo em


princípios que constituem a razão mesma de sua existência e dos quais
ela não poderá jamais se afastar sem se trair. Só o respeito de todos à
soberania de cada um pode associar dignamente Estados livres e
independentes. O princípio que rege, acima de todos, a nossa convivência e
que torna possível a nossa unidade, é o princípio da não-intervenção. [...] A
criação da Organização dos Estados Americanos representa, portanto, o
reconhecimento formal por parte de todos os governos que a integram de
que a cooperação entre Estados soberanos, por mais íntima que seja, não
dá o direito a nenhum deles, nem mesmo à Organização que compõem,
de atuar em terreno reservado exclusivamente à soberania interna das
nações.359

O presidente brasileiro marcava posição dentro do hemisfério. Projetava a PEI aos


demais países do continente utilizando a OEA como caixa de ressonância. E para os
setores que habitualmente apoiavam seu governo, demonstrava força e protagonismo do
Brasil no exterior.

359BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados
Unidos da América e ao México. Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 11-12. Grifos meus.

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Em que pese os resultados financeiros da viagem aos Estados Unidos terem sido
insuficientes – algo em torno de 30 milhões de dólares360 – em termos políticos parecem
ter sido benéficos para o governo Goulart. Publicação oficial do Itamaraty demonstra a
repercussão da viagem nos principais jornais do país: Jornal do Brasil, Correio da Manhã,
O Jornal, Diário Carioca, O Globo, Diário de Notícias, Jornal do Comércio, Folha de São Paulo,
O Estado de São Paulo, Última Hora.361Na grande maioria das matérias – inclusive em
muitas de O Estado de São Paulo – se observa o apoio e o contentamento com a postura
exercida pelo presidente brasileiro nos EUA.
Ao regressar para o Brasil. depois de ter se encontrado com o presidente do México
Lopez Matteos, João Goulart foi recebido em um clima muito positivo. Afinal, era o
presidente brasileiro que conversara de igual para igual com o presidente dos EUA, que
naquele momento ainda contava com grande admiração tanto em seu país quanto no
Brasil.362
Assim, a visita do presidente dos Estados Unidos era esperada para breve, já no
mês de julho, mesma época em que o secretário-geral da ONU, U-Thant, estivera no país e
fora recepcionado com as devidas honrarias pelo presidente Goulart. O primeiro-ministro
era Brochado da Rocha e o governo Goulart começava a se preparar paras as eleições de
outubro e acreditava que a presença do presidente dos EUA seria importante para obter
bons resultados naquele pleito – pois a campanha de desestabilização política do governo
já vinha em grande desenvolvimento, principalmente através do IPES e do IBAD. O que o
governo Goulart não sabia, entretanto, era que muito do financiamento desses órgãos
provinha de dinheiro do governo dos EUA!(MONIZ BANDEIRA, 2001, p. 83; FICO, 2014, p.
77). Carlos Fico traz a dimensão dessa campanha de desestabilização:

Além de tudo isso, nunca houve na história brasileira um presidente da


República que tenha enfrentado uma campanha externa de
desestabilização tão grande como Goulart: “a campanha de Kennedy
contra [Fidel], [João] Goulart e [o premiê da Guiana Inglesa, Cheddi] Jagan

360Idem, p. 179.
361Idem, p. 63-193.
362Até então, a única ação que desabonava a imagem de Kennedy era sua participação nos episódios da Baia

dos Porcos. Ele era tido como um jovem, idealista e competente líder político de ideias progressistas – tais
quais a Aliança para o Progresso e sua política para os direitos civis em seu país. Sua verdadeira política
para Cuba; a máfia orbitando seu governo; as denúncias a respeito de sua eleição; sua participação na
política para o Vietnã seria de conhecimento público apenas na década seguinte ao seu assassinato, em
especial a partir de 1975, quando foi instaurada a Comissão Church (seu presidente era o senador Frank
Church)no Senado dos EUA para investigar ações da CIA (HERSH; 1998, p. 194-210).

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não teve precedente na história das relações interamericanas.[...] Ou seja,


podemos comprovar amplamente que uma enorme campanha de
desestabilização foi patrocinada, desde, pelo menos, 1962, por
organizações brasileiras e norte-americanas (sobretudo o USIS, o serviço
de informações, mas outras agências Estados Unidos também atuaram)
(FICO, 2014, p. 75-76).

O governo Goulart investia bastante nos bons resultados da eleição de outubro. A


sua estratégia era que, conquistando maioria na Câmara dos Deputados, obtivesse
melhores condições para fazer aprovar as Reformas de Base – pelo menos desde 1 de
maio, em seu pronunciamento em Volta Redonda, Goulart já mencionava a necessidade
de “reformas – que o povo se habituou a identificar como reformas de base”.363
Em razão da eleição, a presença do “reverenciado, nos EUA e também no Brasil,
John Kennedy” (AZEVEDO, 2007, p. 158) era importante, pois representaria um certo
afiançamento do governo Goulart com setores mais vinculados ao governo dos Estados
Unidos. Mas o governo Kennedy entendia isso muito bem. E não estava disposto a
colaborar com o sucesso de Goulart:

Foi no contexto da campanha para as eleições parlamentares de 1962 que


a intervenção norte-americana no processo político brasileiro
intensificou-se, ultrapassando, em muito, os níveis “normais” de
propaganda ideológica que os Estados Unidos habitualmente faziam em
qualquer país, enaltecendo os costumes norte-americanos e defendendo o
capitalismo contra o comunismo. O próprio embaixador Lincoln Gordon
confessou que foram gastos, pelo menos, US$ 5 milhões de dólares para
financiar a campanha eleitoral dos candidatos favoráveis à política norte-
americana e opositores de Goulart. Naturalmente, a autorização para tal
intervenção foi dada pelo presidente Kennedy. (FICO, 2014, p. 77 – Grifos
meus).

Além desse apoio ilegal aos candidatos de oposição ao governo Goulart e sua
Política Externa Independente, o presidente John Kennedy resolvera adiar sua vinda ao
Brasil para depois das eleições – com isso, impedindo que Goulart obtivesse ganhos
eleitorais com sua presença, estando de acordo com a “preocupação de Gordon de que a
vinda de Kennedy, tão popular entre os brasileiros, mesmo favorecendo a imagem dos
EUA, pudesse beneficiar Goulart, que insistia para que ela se realizasse” (AZEVEDO, 2007,
p. 161).

Discurso do Presidente João Goulart durante comemorações do Dia do Trabalho em 1º de maio de 1962
363

apud FICO, 2014: 243.

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As vésperas da eleição de 7 de outubro, a visita do presidente dos Estados Unidos


voltava a ser notícia no país. Porém, dessa vez, se estabelecia uma associação entre
Kennedy e o governador da Guanabara, Carlos Lacerda – o principal opositor do
presidente João Goulart – enfatizando que o presidente dos EUA gostaria de ter um novo
encontro com o governador da Guanabara, dado que já haviam conversado na Casa Branca
em 1961.
Recorda-se que o presidente Kennedy, na ocasião, quebrou o protocolo
da Casa Branca, ultrapassando em mais de 50 minutos a palestra que
manteve com o governador da Guanabara, na presença de seus principais
assessores e do embaixador Roberto Campos.364

Politicamente, procurava-se criar uma aproximação pública entre o presidente


John Kennedy e o governador Carlos Lacerda. Com isso, nesse contexto pré-eleitoral
imediato, objetivava-se fragilizar a noção de proximidade entre o presidente Goulart e o
presidente Kennedy, tão desejada pelo presidente brasileiro naquele momento. Além do
que, o estado da Guanabara era, junto a alguns estados do Nordeste, grande beneficiário
dos recursos da Aliança para o Progresso, dentro da estratégia para desestabilizar o
governo de Goulart que criava as “ilhas de sanidade administrativa”.
Mesmo tendo obtido bons resultados na eleição, o governo brasileiro sentia a forte
campanha de desestabilização a que vinha senso submetido nos últimos meses. Goulart
acreditava que a presença de Kennedy no Brasil lhe conferiria maior tranquilidade
política. E também entendia que um novo adiamento da visita representaria um desgaste
a mais para seu governo. Na tentativa de evitar isso, ofereceu o que podia: a reafirmação
do compromisso do Brasil com a democracia – o que seria uma forma de amenizar a
questão de Cuba – e a solução de vários problemas pendentes entre os dois países – que
passava, inequivocamente, pela questão das encampações de empresas de capital
estadunidense no país.
A programação do presidente Kennedy no Brasil foi tornada pública já em 19 de
outubro, data na qual o estadunidense já tomara conhecimento da existência dos mísseis
em Cuba. Entretanto, bem poucos eram os seus assessores que sabiam dessa realidade.
Sua recepção seria realizada dia 12 de novembro em Brasília, onde teria o primeiro
encontro com o presidente Goulart e discursaria no Congresso Nacional, ficando

364 O Estado de São Paulo, 04 de outubro de 1962, p. 3. BSF. Brasília/DF.

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hospedado no Palácio do Alvorada. No dia seguinte, John Kennedy passaria por São Paulo
e pela Guanabara para encontros com os governadores daqueles estados. No dia 14 iria
para Natal, onde “Kennedy deverá firmar acordo com o governador Aluísio Alves, pelo
qual o Rio Grande do Norte receberá 3.600.000 dólares da ‘Aliança para o Progresso” e
depois retornar para seu país.365
Na noite de segunda-feira, 22 de outubro, o presidente dos EUA realizara um
pronunciamento na televisão anunciado que a URSS estava instalando armamentos
nucleares em Cuba e que o seu país reagiria a essas ações. Enquanto isso, no dia 23 de
outubro, o secretário de Imprensa dos EUA, Salinger, em resposta aos questionamentos
sobre a crise com Cuba e seus desdobramentos, afirmava “que não foram alterados os
planos para a visita do presidente Kennedy ao Brasil de 12 a 14 de novembro”. 366 No
mesmo dia, o primeiro-ministro Hermes Lima recebendo o mesmo questionamento
afirmara “que, até ontem, o Governo não recebera informe algum de Washington sobre
um possível adiamento ou suspensão da viagem do presidente norte-americano”.367
No dia 25 de outubro, a Casa Branca informava que “devido à tensão internacional,
foi anulada a visita oficial do presidente Kennedy ao Brasil”. 368Também era mencionado
que o embaixador Lincoln Gordon “entregou hoje ao sr. João Goulart carta do presidente
dos Estados Unidos , informado-o de que precisou adiar a vistita que faria ao Brasil em 12
de novembro deste ano, prometendo marcar nova data em janeiro de 1963”.369
No mesmo dia, o presidente brasileiro respondia à carta do presidente dos Estados
Unidos. Aludindo às causas apresentadas pelo presidente Kennedy, o presidente Goulart
assim respondera:
Reconhecendo que a gravidade da conjuntura não lhe permite outra
alternativa, só me cabe dizer-lhe que minha esposa e eu fazemos sinceros
votos para que, o mais depressa possível, cessem os motivos que estão
determinando o adiamento da visita de v. exa.e da sra. Kennedy ao nosso
país.370

Além de demonstrar a boa relação entre os dois presidentes – algo muito caro ao
presidente Goulart – essa troca de correspondência também era bastante útil no sentido

365O Estado de São Paulo, 19 de outubro de 1962, contracapa.BSF. Brasília/DF.


366O Estado de São Paulo, 24 de outubro de 1962, contracapa. BSF. Brasília/DF.
367 Idem.
368 O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 1962, contracapa BSF. Brasília/DF.
369O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 1962, contracapa BSF. Brasília/DF
370 O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 1962, contracapa BSF. Brasília/DF.

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de justificar o adiamento da presença do presidente Kennedy ao Brasil, o segundo em


poucos meses.
Contudo, se investigarmos mais à fundo, podemos nos aproximar de uma outra
situação, que acreditamos estar mais de acordo com o que de fato se passara. O presidente
John Kennedy, com certeza, já sabia da existência do armamento nuclear soviético em
Cuba desde a manhã do dia 16 de outubro. No dia 22 anunciara ao seu país e ao mundo o
que estava acontecendo na ilha caribenha. Até então, manteve todos os procedimentos
para sua viagem ao Brasil. A decisão de desmarcar a visita oficial foi tomada,
possivelmente, no dia 24 de outubro, dado que sua correspondência ao presidente Goulart
fora enviada no dia 25. Entre o dia 23 e 24, houve dois acontecimentos que certamente
não contribuíram para que o presidente dos EUA considerasse Goulart como um aliado
privilegiado: a posição do Brasil na votação da OEA (dia 23) e a carta enviada pelo
brasileiro a Kennedy (dia 24). Em ambas situações o Brasil expressava suas reservas –
para dizer o mínimo – em relação as posições do presidente estadunidense a respeito do
governo cubano. Esse descontentamento de Kennedy também aparece em documentação
da época, em telegrama enviado pelo embaixador Roberto Campos ao Itamaraty:

Fonte da Casa Branca, que ainda não consegui identificar, teria


expressado suspicácia em relação à missão do General Albino Silva, que
interpreta como destinada a facilitar a sobrevivência de Castro,
acrescentando ainda que o Brasil e a Itália teriam sido no mundo ocidental
os países menos cooperativos na crise presente.371

A postura do governo brasileiro no transcorrer da Crise dos Mísseis foi a gota


d’água para o presidente John Kennedy. Jorge Ferreira emprega os termos “intolerável”372
e “imperdoável”373 para demonstrar a insatisfação do presidente dos EUA com o
presidente do Brasil. Sem sombra de dúvida, a posição da PEI, mesmo com a sua
moderação na questão de Cuba, constituiu o ápice do desgaste entre os dois governos. A

371 Telegrama da Embaixada em Washington. Num. 815. SECRETO. URGENTE. Assunto: Questão de Cuba.
Data: 01de novembro de 1962. AHMRE, Palácio do Itamaraty. Brasília/DF. Grifos nossos.
372 “A posição brasileira na crise dos mísseis cubanos foi intolerável para Kennedy” (FERREIRA, 2011, p.

320).
373 “Se o presidente norte-americano assassinado em Dallas, desde a crise dos mísseis cubanos, afastara-se

de João Goulart, por considerá-lo um perigo á segurança nacional dos Estados Unidos, seu sucessor, Lyndon
Johnson, manteve idêntica avaliação. Para eles, a recusa de Goulart em apoiar a intervenção militar em Cuba,
bem como romper relações diplomáticas e comerciais com a ilha, foi imperdoável” (FERREIRA, 2011, p.
400).

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tal ponto que não seria exagero ver aí a ruptura da dualidade existente no governo
estadunidense entre negociação/desestabilização e Aliança para o Progresso/Doutrina
da Contrainsurgência, passando a ter largo predomínio na política de Kennedy o segundo
elemento de cada relação em detrimento do primeiro.
Em 16 de novembro, o embaixador Lincoln Gordon encontrara-se
“demoradamente” com o presidente João Goulart e o primeiro-ministro Hermes Lima. A
grande imprensa ainda insistia para saber a respeito da visita de John Kennedy ao país –
assim como Goulart, que precisava melhorar suas relações com o governo dos EUA.
Porém, o tempo da política se modificara e o governo dos EUA perdera o interesse em
negociar com o país e ter o governo central como parceiro da Aliança para o Progresso.

O embaixador, por sua vez, disse que nem com o sr. Goulart nem com o
primeiro-ministro debateu aspectos da visita do presidente Kennedy ao
Brasil. As conversas a esse respeito, acrescentou, só serão iniciadas em
janeiro, isto é, depois do plebiscito “quando o regime estiver
consolidado”.374

Além de tirar da agenda a visita ao presidente Goulart, no fim do mês de novembro


– quando a quarentena sobre Cuba já tinha sido levantada – Kennedy continuava
recebendo setores de oposição ao presidente brasileiro, como fizera com os militares
vinculados à Escola Superior de Guerra (ESG). Dessa vez, Kennedy recebeu o recém-eleito
governador de São Paulo, Ademar de Barros. Após o encontro, Ademar de Barros se
jactava de ter vencido nas eleições o “candidato pró-Cuba, sr. Jânio Quadros, com uma
plataforma abertamente filonorte-americana”. Também elogiara o presidente dos EUA
“por sua ação no caso cubano” e teceu considerações sobre a importância da “amizade
entre o Brasil e os Estados Unidos”.375 Se para Ademar de Barros o seu encontro com
Kennedy colaborava na sua projeção política, para o presidente estadunidense era mais
uma forma de desestabilizar o governo Goulart.
O presidente brasileiro tinha consciência de que as relações com o governo de John
Kennedy não iam bem. O adiamento sem data da visita de do presidente estadunidense,
somado aos episódios como a atenção dispensada por Kennedy aos oficiais da ESG e ao
governador eleito de São Paulo reforçavam ainda mais esse entendimento do presidente

374O Estado de São Paulo, 17 de novembro de 1962, contracapa. BSF. Brasília/DF.


375O Estado de São Paulo, 30 de novembro de 1962, p. 3. BSF. Brasília/DF.

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João Goulart. O que ele não sabia, no entanto, é que o interesse pelo Brasil tinha motivado
uma reunião do Comitê Executivo do Conselho de Segurança Nacional – o mesmo órgão
que assessorou o presidente no transcorrer da Crise dos Mísseis – no dia 11 de dezembro
na qual o país foi o único assunto da pauta.376
Nessa reunião, o ExComm se preocupou tanto com a política interna quanto a
política externa que o Brasil vinha desenvolvendo sob o governo de João Goulart. Na
avaliação que predominou na reunião, era uma “condição necessária” a de que o governo
brasileiro alterasse essas políticas para obter a “colaboração dos Estados Unidos”. Já
sabendo que ocorreria um encontro de Goulart com representante estadunidense, os EUA
apresentariam as seguintes posições para o governo brasileiro:

Dentro das próximas duas semanas, antes do natal de 1962, haverá uma
discussão com o presidente Goulart em termos gerais, que refletirá os
pontos de vista do presidente Kennedy e que enfatizará (a) as
preocupações dos Estados Unidos com os desenvolvimentos políticos e
econômicos do Brasil; (b) o desejo de colaboração dos Estados Unidos
com o Brasil nas áreas econômica e política; e (c) a convicção dos Estados
Unidos de que tal colaboração será prejudicada enquanto persistirem
certas dificuldades.377

A ata da reunião enfatizava a preocupação do governo estadunidense com a


“estabilização econômica e clima para investimentos privados internacionais”, ou seja,
estavam preocupados com o endividamento externo do país e com casos como o da ITT.
Porém, havia também um grande destaque para a Política Externa Independente, em
especial sua atuação na questão de Cuba, onde recomendava-se que o representante dos
EUA levasse a seguinte posição ao governo brasileiro:
Ações que os Estados Unidos poderão iniciar na OEA com respeito a Cuba
para os propósitos de proteção dos interesses nacionais e hemisféricos
não devem ser evitadas por meio de uma reação adversa brasileira.378

Desse modo, o governo de Kennedy queria deixar claro para o governo Goulart que
mesmo que esse mantivesse sua Política Externa Independente os Estados Unidos não

376 Nessa reunião, além do presidente dos EUA, participaram o vice-presidente Lyndon Johnson, o secretário

de Defesa Robert McNamara, o secretário de Estado Dean Rusk, o secretário do Tesouro Douglas Dillon, o
procurador-geral Robert Kennedy, o diretor da CIA John McCone, o chefe da Junta Militar Maxwell Taylor, o
conselheiro especial de Segurança Nacional McGeorgeBundy, o secretário assistente de Assuntos
Interamericanos Edwin Martin, os conselheiros especiais Ralph Dungan e Arthur Schlesinger Jr e o
embaixador no Brasil Lincoln Gordon (SILVA, 2008, p. 197).
377 Políticas de Curto Prazo dos Estados Unidos para o Brasil apud SILVA, op.cit., p. 198.
378Políticas de Curto Prazo dos Estados Unidos para o Brasil apud SILVA, op.cit., p. 198.

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deixariam de manter sua política externa para Cuba. Não deixava de ser uma ameaça ao
governo brasileiro, procurando enfraquecer sua posição em relação a questão de Cuba,
pois Kennedy fazia questão de ressaltar que os EUA não recuariam no assunto. Nem em
Cuba, nem em qualquer outro país que ousasse desafiar, mesmo que minimamente, sua
hegemonia nos quadros da Guerra Fria.

Bibliografia

AZEVEDO, Cecília. Em nome da América: os Corpos da Paz no Brasil. São Paulo: Alameda,
2007.

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente,
pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2014.

FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. 3ª
ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.

GREEN, James N.; JONES, Abigail.Reinventando a história: Lincoln Gordon e as suas


múltiplas versões de 1964. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, n º 57, 2009.

HERSH, Seymour. O lado negro de Camelot. Porto Alegre: L&PM, 1998.

MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O Governo João Goulart – As lutas sociais no Brasil 1961-
1964. 7ª ed. ver. eampl. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

QUINTANEIRO, Tânia. Cuba e Brasil: da revolução ao golpe (1959-1964): uma


interpretação sobre a política externa independente. Belo Horizonte: UFMG, 1988.

SILVA, Vicente Gil da.A Aliança para o Progresso no Brasil: de propaganda anticomunista
a instrumento de intervenção política (1961-1964). 248 f. Porto Alegre: UFRGS, 2008.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2008.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

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REVOLUÇÃO CUBANA: MASCULINIDADES E FEMINILIDADES

Andréa Mazurok Schactae

Voltando o olhar para a Revolução cubana

A Revolução Cubana é um acontecimento que marcou a história Ocidental,


especialmente da América Latina, na segunda metade do século XX. As atuações políticas
de dois dos líderes do movimento revolucionário Cubano, Ernesto Guevara (Che) e Fidel
Castro, legitimam a Revolução Cubana como um símbolo de resistência ao imperialismo.
Todavia a construção dessa ideia sobre a Revolução Cubana, resulta de uma herança
cultural, que tende a colocar os homens, que representam um ideal de masculinidade,
como centro dos processos históricos na América Latina. Uma prática que contribui para
o esquecimento da atuação de outros homens, bem como das mulheres.
Para Luis Bonino, há no ocidente um modelo de masculinidade hegemônica que se
impõe sobre as outras masculinidades e é caracterizada pela continuidade do ideal.
Segundo o autor, as características que representam a definição de masculinidade
hegemônica são: a independência (individualidade, autonomia, egocentrismo, poder etc),
o domínio (combate, luta, heroísmo), a hierarquia (liderança, obediência, disciplina,
lealdade, sacrifício etc) e a heterossexualidade. Esses valores, que definem o que é ser
homem, segundo ele, estão presentes no imaginário social. (BONINO, 2002)
Ao voltar o olhar para historiografia, observa-se que as narrativas sobre a
Revolução Cubana, remetem ao processo de independência de Cuba, no final do século
XIX. Conforme afirma Fernandes, o nacionalismo cubano é resultado do processo de
independência, que uniu diferentes grupos sociais, contra um inimigo comum. Portanto,
o nacionalismo, [...] não cresceu a partir da dominação econômica, social e política dos
estratos conservadores frequentemente aliados aos controles externos e á própria
representação antinacionalista, mas da confluência de varias forças sociais divergentes,


Doutorado em História. Pesquisadora do GECIG-IFPR/NEG-UFPR. Professora do IFPR, Campus Telêmaco
Borba. Contato:< aschactae@gmail.com>

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empenhadas na liberação nacional [...] ou nas lutas contra imperialismo e a dominação


estadunidense. (FERNANDES, 2012, p. 90) Uma independência conquistada por homens
guerrilheiros, ao colocar a guerrilha como centro da sua análise da Revolução Cubana.
Para Aviva Chomsky, a Revolução Cubana também tem na guerrilha o centro de
sua análise. Para ela é a luta armada na Sierra Maestra, é central para compreender o
sucesso da Revolução, bem como uma herança de ideais revolucionários que remetem ao
processo de Independência, no século XIX. Portanto, para a autora, a Revolução é uma
aplicação dos ideais da independência. E a guerrilha é o sujeito que herda esses ideais,
pois:
(...). O Movimento 26 de Julho queria levar a cabo o projeto pelo qual José
Martí e tantos outros haviam morrido. Em 1898, as forças de ocupação
norte-americanas impediram que o exército rebelde de Cuba entrasse na
capital de Santiago. (CHOMSKY, 2015, p. 46)

Chomsky e Fernandes identificam o processo revolucionário como uma


continuidade dos ideais que moveram as guerras da independência, bem como um espaço
de rebeldes guerrilheiros. Essa idéia também é compartilhada por Luis F. Ayerbe (2004).
O pesquisador destaca que “a revolução de 1959 tem profundas raízes na trajetória
histórica nacional, com antecedentes que remontam ao período independentista.”
(AYERBE, 2004, p. 21) Portanto, esses estudos sobre a Revolução Cubana, tendem a
legitimar a masculinidade hegemônica, como referencia para os espaços de poder político
em Cuba do século XIX ao século XX.
Esses autores apresentam a Revolução, ocorrida na década de 1950, como uma
continuação do ideal da independência, bem como, um posicionamento contra a
influência imperialista norte-americana na ilha. Vale destacar que esse discurso também
é compartilhado pelas narrativas construídas pelo Estado Cubano, na segunda metade do
século XX, seja nos livros ou nos impressos de circulação semanal e mensal (revistas e
jornais).
Para os historiadores cubanos, Francisca López, Oscar Loyola e Arnaldo Silva
(2005) a Revolução é um processo de libertação nacional das influências do capitalismo e
do imperialismo norte-americano. (LOPEZ; LOYOLA; SILVA, 2005, p. 223-228) Portanto,
é observada como um processo resultante de uma conjuntura política e social, que
remonta a meados do século XIX.

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Nos discursos de Fidel Castro, publicados pelo Departamento de Orientación


Revolucionária del Comité Central del Partido Comunista de Cuba, publicados em 1978, a
história de Cuba é uma história de lutas, iniciadas no ano de 1868, e realizadas por
homens, que se uniram contra o imperialismo. Em entrevista com Ignacio Ramonet, Fidel
reafirma que o início da Revolução Cubana é marcado pela primeira guerra da
Independência, em 1868. (RAMONET, 2006, p. 42-43).
Observando algumas narrativas sobre a Revolução construída pela historiografia
e os discursos de Fidel Castro, percebe-se que todas essas construções discursivas,
explicam a Revolução Cubana, a partir da longa duração. Elas destacam a relação entre os
homens e a guerra/luta armada, como construtores da nação e da liberdade nacional em
Cuba.
Vale destacar, que esse período, final do século XIX e meados do século XX, é
também o período de construção de uma comunidade imaginada em Cuba, considerando
o conceito de Benedict Anderson (2005, p. 25. Portanto, é também tempo de construção
dos heróis nacionais. Para Raoul Girard, o herói

não trata-se essencialmente de um personagem, mas sim essencialmente


de sua imagem, de representação que dela foi feita e que parece ter
imposto muito amplamente a opinião, em outra palavras, é uma narrativa
que se trata, que é preciso ler e interpretar um pouco. (GIRARD, 1987)

Portanto, a narrativa da história nacional está atrelada a construção dos heróis,


que são representações da nação. Sendo assim, a nação luta contra o imperialismo e a
dominação estrangeira. Em nome da nação homens pegaram em armas. Essa é a ideal
central nas narrativas. Todavia, em diversos textos, publicados nas revistas nos anos de
1970, em Cuba, as mulheres também figuram como agentes desse processo histórico.
A partir dessa constatação esse texto tem como objetivo analisar os espaços de
poder ocupados por homens e mulheres nos movimentos que compõem a luta
revolucionária nos anos de 1950, observando os discursos da imprensa do Estado Cubano
na década de 1970.
As fontes utilizadas são publicações do Estado Cubano e bibliografias, cujos
documentos serão analisados a partir da categoria gênero, dialogando com os conceitos

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de comunidade imaginada, de Benedict Anderson; herói de Raoul Girardt e masculinidade


hegemônica, de R. Connel.

O lugar de homens e mulheres na luta armada: narrativas da imprensa cubana nos


anos de 1970

Os discursos de Fidel Castro, bem como, outras publicações do Estado Cubano,


são lugares de construção de uma narrativa sobre a Revolução, bem como, de construção
e re-construção da identidade nacional cubana. Voltar o olhar para as publicações dos aos
de 1970 é fundamental para compreender as narrativas sobre a Revolução Cubana, pois
os anos de 1970 foram marcados pela construção de um aparato de instituições,
organizadoras e legitimadoras do Estado Cubano.
Portanto, quando em janeiro de 1959 terminaram os combates e os rebeldes
ocupam os campos de poder em Cuba e deixam de ser rebeldes para se constituírem em
estabelecidos, iniciou-se não só o processo de estabelecimento de novas políticas de
Estado, mas construção de uma memória sobre o processo revolucionário. As novas
instituições que legitimavam o poder do Estado Cubano, entre as quais o Exército
Revolucionário, composto por homens e mulheres que haviam lutado para depor o
governo de Batista, e a Federación de Mujeres Cubanas (FMC), são espaços que expressam
a relação entre políticas públicas e construção de uma narrativa sobre a luta armada e a
Revolução Cubana.
As Fuezas Armadas Revolucionarias (FAR), foram criadas no ano de 1959, nesse
momento homens e mulheres, que compunham o Exército Rebelde, passaram a constituir
essa instituição. Vale destacar que esses puderam optar por outras carreiras. Após esse
momento inicial, as portas das FAR foram fechadas para as mulheres e a participação
delas ficou restrita as Milicias Nacionales Revolucionarias (MNR), criada em outubro de
1959, somente em 1983 foram incorporadas mulheres nas FAR. Em março de 1984 foi
criado o Regimento Femenino de Artillería Antiaérea (RFAA). (MOREIRA; SCHACTAE;
SOTO, 2015) Portanto, após o fim da luta armada, as mulheres mais uma vez são retiradas
do espaço das armas, e a re-abertura só ocorreu dentro de um contexto de abertura das
Forças Armadas do Ocidente para o ingresso de mulheres, que ocorreu no final da década
de 1970.

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A criação da Federación de Mujeres Cubanas, ocorreu no dia 23 de agosto de 1960


– inicialmente constituída por 17.000 mulheres federadas, 10 anos depois o número
passou de 1 milhão de federadas –. Essa instituição tinha entre seus objetivos unificar
todas as organizações femininas cubanas e uma única organização. O papel da dessa nova
instituição foi apresentado por Vilma Espín – que assumiu a cargo de presidente da
organização feminina –, durante o ato de criação da instituição feminina. Conforme afirma
Vilma,
(…)organización, la Federación de Mujeres Cubanas, se propone, (…), la
defensa de la mujer y el niño, la defensa de la paz mundial, la salvaguarda
de las generaciones presentes y futuras, y la defensa de la soberanía de
nuestro pueblo. Pues, además de eso, es nuestro propósito, en la nacional,
apoyar a la Revolución Cubana, y en lo internacional la solidaridad con
todos los pueblos de Latinoamérica y el mundo. Además de eso, hemos
acordado algunas labores específicas, como por ejemplo: el comenzar a
trabajar inmediatamente en la creación de guarderías o creches para los
hijos de la mujer trabajadora, (…). (BELL; LÓPEZ; CARAM, 2007: 267)

No ano de 1962 foi realizado o I Congresso Nacional da FMC e naquele momento


foi aprovado o estatuto e o programa de trabalho para os anos seguintes. Em setembro de
1974 ocorreu o II Congresso Nacional e conforme ocorreu quando da realização do
primeiro, foi amplamente divulgado pela imprensa cubana.
No ano de 1976, o Partido Comunista de Cuba – vale destacar que o I Congresso do
Partido Comunista de Cuba, ocorreu no ano de 1975 – afirma que o papel Federación de
Mujeres Cubanas, era:
(…)educar ideológicamente a través de cada tarea, crear conciencia para
en prender actividades cada vez más complejas, preparar a la mujer para
desempeñar su papel en la edificación del socialismo y para representar los
intereses y aspiraciones especificas de este importante sector de la
población. (DEPARTAMENTO DE ORIENTACION REVOLUCIONÁRIA DEL
COMITÉ DEL PARTIDO DE CUBA, 1976: 6)

A criação e uma instituição feminina e o fechamento das FAR, para as mulheres,


são indicativos que legitimam ideais de feminilidade e masculinidade em Cuba, que tende
a reproduzir ideais presentes no Ocidente, no qual os espaços de poder no Estado tende a
ser ocupados por homens. Além do mais, a Federación de Mujeres Cubanas tende a
homogeneizar práticas e discursos dirigidos as mulheres. Portando, todos os
questionamentos sobre os diretos das mulheres eram absorvidos pela FMC, a qual
representa o Estado.

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Com parte desse projeto de unificação está à criação de um periódico direcionado


para o público feminino, a Revista Mujeres. No dia 15 de novembro de 1961 foi publicado
o primeiro número do periódico, o qual permanece sendo publicado até os dias atuais.
A importância da Revista Mujeres para o Estado Cubano é percebida ao se
considerar diferentes possibilidades, entre as quais vale destacar três: a) orienta a
construção de um modelo ideal de feminilidade; b) permite identificar os diversos
femininos existentes em Cuba, os quais são filtrados pelo olhar de um periódico; c) é o
principal veículo de comunicação da Federación de Mujeres Cubanas. Portanto, é
importante uma análise do discurso desse periódico, pois ele é entendido como
construído e construtor de significados para o(s) feminino(s), bem como orientador de
relações de gênero, as quais resultam na construção de femininos e definem os espaços
ocupados pelas mulheres na sociedade cubana, construindo uma ordem diferente. Uma
ordem que redefine relações de poder entre masculino e feminino, embora a tendência
seja de o Estado reproduzir o domínio masculino sobre o feminino.
Ao selecionar uma das edições da Revista Mujeres foi considerado a questão do
acesso as revista – o arquivo consultado possuía uma coleção composta pelos números
pós ano de 1960 – bem como, o objeto abordado – o Pelotón Mariana Grajales. A edição
comemorativa do 15º aniversário do Exército Rebelde, de dezembro de 1971, vincula o
Pelotón Mariana Grajales ao Exército Rebelde. Além da matéria sobre a criação do Exército
Rebelde e sobre o Pelotón Mariana Grajales, há entrevista com algumas marianas e uma
entrevista com então Vice Ministro Chefe da Direção Política das Forças Armadas
Revolucionárias (FAR), o Comandante Antonio Perez Herrero – ao longo da entrevista, o
Comandante é questionado sobre o papel da mulher cubana nas FAR. Completando o
olhar da revista sobre as mulheres militares estão publicadas fotos de agentes militares
realizando atividades no espaço militar. Sendo assim, a escolha dessa revista se justifica
pelo conjunto de informações referentes à mulher militar, embora o foco seja o Pelotón
Mariana Grajales.
A matéria sobre o as marianas se inicia com uma foto representativa. Na foto estão
algumas mulheres do Pelotón Mariana Grajales e Fidel Castro. A composição da imagem
permite múltiplas interpretações,vale destacar que a relação de poder entre masculino e
feminino coloca o líder – homem – no centro e as mulheres legitimando seu poder. No
entanto, além de legitimar o poder masculino, a existência dessas mulheres no espaço da

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guerra é uma prática produz uma ruptura nessa ordem. As soldados e as guerrilheiras são
ao mesmo tempo legitimadoras e transgressora da ordem. Elas subvertem a ordem por se
constituírem em guerrilheiras e a legitimam ao colocarem os homens no centro e como
modelo de guerrilheiro, o qual é referência para homens e mulheres.
No primeiro parágrafo da matéria – identificada pelo título: “Pelotón Mariana
Grajales” – há seguinte afirmação: “Mujeres guerrilleras y estirpe de Mariana. Partes de la
historia independentista que desemboco en una batalla decisiva de emancipación social,
económica e política: la Revolución.” (REVISTA MUJERES, dez. 1971:13) Essa cololocação
confirma o ideal de feminilidade buscado pela Revolução, o qual é constituido pela
guerrilheira e pela mãe – mães que devem educar seus filhos como Mariana Grajales.
O discurso da revista reafirma o ideal de feminilidade que se constituiu no espaço
da guerra, a relação entre a guerreira e a maternidade, pois a construção de heroína
Mariana Grajales, destaca-se seu papel de mãe dos “grandes guerreiros”, os Maceos. As
marianas representam esse ideal e também assumem outros papéis sociais, conforme
apresenta o texto. Pois, atuaram como: enfermeiras, guias de mulas, abastecedoras de
alimentos para a os combatentes, transportadoras de munições e armas, professoras e
mensageiras. Essas práticas são definidoras da multiplicidade de papéis e identificações
que essas mulheres “marianas” desempenharam no espaço da guerra. Portanto, todas as
mulheres cubanas também são capazes de assumirem essas múltiplas atividades,
inclusive atividades tidas como pertencentes aos homens, o combate na guerra. Essa é a
idéia que norteia a construção do discurso apresentado pela Federación de Mujeres
Cubanas.
A matéria prossegue informando sobre as dificuldades que Fidel teve para realizar
seu projeto, pois muitos homens se posicionaram contra. Entendiam que o combate era
papel de homens. O posicionamento de Fidel, segundo a Revista Mujeres indicava que ele
“Queria que la mujer combatiera, pues ésta no era sólo para los menesteres
domésticos y como madre, sino como parte integral de la guerrilla. Que no
sólo era para cocinar, atender a los herido, buscar agua, sino que era
preciso reivindicar suposición social.(…).El comandante en Jefe, al defender
la presencia de la mujer en lucha de liberación, defendía el papel que debla
ocupar posteriormente.” (REVISTA MUJERES, dez. 1971:13)

Romper com a ordem em um espaço de poder e de construção de um ideal de


masculinidade é a finalidade de Fidel, conforme indica o texto. Essa ruptura permitiria

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construir uma nova ordem social, na qual homens e mulheres teriam direitos iguais e o
ocupar todos os espaços sociais.
Para serem reconhecidas como iguais as mulheres lutaram lado a lado com os
homens. Com o objetivo de legitimar essa idéia e de demonstrar que mesmo os homens
resistentes acabaram reconhecendo a capacidade das soldados, são citados trechos de um
informe do Comandante Eddy Suñol, elogiando a ação das guerrilheiras, e um do discurso
de Fidel, do ano de 1959. Parte do discurso de Fidel afirma que, “las mujeres son tan
excelentes soldados como nuestros mejores soldados hombres.” (REVISTA MUJERES, dez.
1971: 14)
Vale destacar, as colocações de Fidel e de Suñol são indicativas da necessidade de
comparar as soldados com os soldados. Para elas serem aceitas elas deveriam lutar igual
aos melhores soldados, pois se elas fossem com a maioria não seria possível legitimar sua
presença na guerra. Portanto, o espaço das armas permanece como espaço de poder dos
homens e eles sedem parte dele para as melhores soldados.
Ao lado do discurso de Fidel, está uma foto, na qual figuram algumas guerrilheiras
- Célia Sánchez, Lidia Rielo, Téte Puebla e Isabel Rielo (dispostas da esquerda para direita).
As mulheres com suas armas legitimam seu espaço na guerra e a identificação de
guerrilheira. Portanto, legitimam um espaço de poder dentro do Estado Cubano que
estava sendo construído pelos rebeldes.
Nas duas matérias analisadas são citados 17 nomes de mulheres que fizeram parte
do Pelotón Mariana Grajales – 1) Isabel Rielo, 2) Lidia Rielo, 3) Norma Ferrer, 4) Rita
Garcia, 5) Teté Puebla, 6) Olga Guevara, 7) Dolores Feria, 8) Angelina Antolin, 9) Eva
Rodrigues, 10) Juana Peña Hernandez, 11) Aurora Quiñones Rodriguez, 12) Isabel Rivero
Nuñez, 13) Bertha Arnau Ojito, 14) Laura Perez Rencol, 15) Orosia Soto Sardinas, 16)
Benita Ramos Osorio e 17) Vicenta Duret Sarmiento – entre as quais está a Capitã Teté
Puebla, atualmente General de Brigada das FAR. Foram realizadas entrevistas com as 08
últimas mulheres citadas, todas agentes das FAR.
Nos depoimento as mulheres falam sobre suas atividades no Movimiento 26 de Julio
e na Sierra Maestra. O conjunto dos depoimentos indica que para a Revista Mujeres o
Pelotón Mariana Grajales não se limitou as mulheres que participaram dos combates, após
a criação da unidade feminina, mas todas as mulheres que atuaram em diferentes ações
ao longo de todo o processo, isto é de 1956 até 1959.

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O Pelotón é representado como um espaço de atuação das mulheres em múltiplas


atividades que permitiram a vitória do Exército Rebelde. A vitória é apresenta como o
resultado de múltiplas ações que uniu homens e mulheres em torno de um projeto: a
revolução. As marianas para a Revista Mujeres, no ano de 1971, são todas as mulheres que
construíram o processo de luta contra Batista – nas cidades e na Sierra Maetras –,
independente dos papéis que ocuparam, são todas identificadas como componentes do
Pelotón Mariana Grajales.
O olhar da revista torna o pelotão um batalhão. Assim, as marianas não foram
apenas às mulheres treinadas por Fidel para combaterem, mas todas que correram o risco
e entram no espaço da guerra de professoras a guerrilheiras. E o espaço da guerra não
estava restrito a Sierra Maetra e aos combates com armas, mas todas as práticas que eram
contra a ditadura de Batista. Portanto, Lídia Doce e Clodomira Acosta Ferrales, as
mensageiras que desapareceram, em 12 de setembro de 1958, as quais foram torturadas
e assassinadas pela polícia do governo de Batista, e seus corpos nunca foram encontrados,
também são marianas, considerando o posicionamento da Federación de Mujeres Cubanas,
expresso na Revista Mujeres.
A participação das mulheres na luta revolucionária indica a construção de um
Estado marcado por uma ordem diferente. Considerando as colocações de Pierre
Bourdieu, é “o Estado, que dispõe de meios de impor e de inculcar princípios duráveis de
visão e de divisão de acordo com suas próprias estruturas, é o lugar por excelência da
concentração e do exercício do poder simbólico.” (BOURDIEU, 1996:107-108) O Estado
Cubano, colocou a masculinidade viril e os ideais da guerrilha como centrais na
construção de um modelo de cidadão. As mulheres foram respeitadas por igualarem-se
aos homens no espaço da guerra. Os homens não viris foram marginalizados e as mulheres
femininas, mantiveram seu espaço de mulheres.
Em dezembro de 1970, nas primeiras páginas da Revista Mujeres, está uma
reflexão escrita por Isolina Triay (1970), sobre Ernesto Guevarra, cujo título é: “Che: El
hombre del siglo XXI”. A autora reafirma o modelo de masculinidade e de cubania, ao citar
um fragmento dos escrito do Ernesto Guevarra, sobre o homem novo, no qual ele afirma
que: “... este tipo de lucha nos da oportunidad de convertinos en revolucionarios, el
escalón más alto de la especie humana pero también nos permite graduarnos de hombres
...”. (TRIAY, 1970, p. 7)

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Portanto, o espaço de luta tende a ser percebido como um lugar onde se constitui
homens. Essa construção discursiva, presente no Estado Cubano nos anos de 1970, tende
a reproduzir as relações de poder generificadas, presentes em outros Estados
militarizados no Ocidente, no mesmo período.

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A DIRECCIÓN DE INTELIGENCIA NACIONAL CHILENA (DINA) E A


CONEXÃO REPRESSIVA COM OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Renata dos Santos de Mattos

Em 11 de setembro de 1973, o bombardeio do Palácio de la Moneda marcou a


instauração da ditadura civil-militar de Augusto Pinochet no Chile e consequentemente, a
aplicação do Terrorismo de Estado (TDE) em sua amplitude. Buscando aprofundar o
conhecimento acerca desse regime ditatorial e da repressão perpetrada por ele, pretende-
se analisar como se deram as relações do mesmo com os Estados Unidos da América, mais
especificamente, o no que diz respeito ao estabelecimento de laços entre a Dirección de
Inteligencia Nacional (DINA) e a Central Intelligence Agency (CIA). Além disso, perceber
quais ferramentas foram utilizadas por ambos os países para "luchar contra el cáncer
marxista y (...) extirparlo hasta las últimas consecuencias” como declarou o general
Gustavo Leigh Guzmán, membro da Junta Militar que se estabeleceu com o golpe de Estado
no Chile. (PINOCHET, 1991, p.18)
Evidentemente era necessário extirpar o marxismo, como lembrou o general
Leigh, e extinguir o socialismo de Salvador Allende e da Unidade Popular para efetuar uma
bem sucedida alternância de poder para os militares, e para tanto, criou-se
posteriormente, um sistema de inteligência capaz não apenas de reunir informações,
como, simultaneamente, praticar ações brutais defendidas entre os regimes na América
Latina. Sob a proclamação das leis nº 5, 10 e 15 de 11 de setembro de 1973, a Junta Militar
recriminou o governo anterior, afirmando que a experiência socialista teria “quebrado la
unidad nacional fomentando artificialmente una lucha de clases estéril y en muchos casos
cruenta”379. Ademais, listou dezenas de nomes de políticos ligados ao ex-presidente,


Mestranda do programa de pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Bolsista CAPES. Contato: < renatasmattos.rm@gmail.com>
379 CHILE. Bando nº5. Archivo Chile.

Disponível em: <http://www.archivochile.com/Dictadura_militar/doc_jm_gob_pino8/DMdocjm0023.pdf>


Acessado em: 21/09/2017.

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intimando-os a entregarem-se no Ministério da Defesa para serem presos380, instaurando


o estado de sítio no Chile, além da completa censura aos meios de comunicação.381
Ainda em 1973, Pinochet contatou o coronel Manuel Contreras Sepúlveda, seu
braço direito e personagem fundamental desta breve análise, solicitando o treinamento
de um grupo de elite de militares, os quais formariam depois, o corpo de ação da DINA. A
ideia inicial consistia em centralizar as informações relativas à inteligência e à segurança
nacional, distribuídas nos diversos setores das forças armadas, num único órgão que
respondesse, direta e unicamente, aos mandos da Junta Militar. A partir desse momento,
a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), inspirada principalmente nas teorias de guerra
contrarrevolucionária da Organisation de l'Armée Secrète (OAS) francesa na Argélia e da
contra-insurgência dos EUA, como aponta Miguel Rojas Mix (2004, p.14), chegou ao Chile
com extrema força, levando a DINA a ultrapassar os limites de suas atribuições, atingindo
sobretudo, a esquerda.
Conhecida como “o monstro”382 pelo próprio Centro de Contrainteligencia de las
Fuerzas Armadas (CECIFA) do Chile, segundo aponta um relatório secreto da Defense
Intelligence Agency (DIA) dos EUA, a DINA ganhou plenos poderes para executar qualquer
ação no combate à subversão, até mesmo para além das fronteiras chilenas. Em junho de
1974 nasceu oficialmente a Dirección de Inteligencia Nacional sob o decreto-lei nº 521.
Classificada como "organismo técnico-profissional dependente direto da Junta de
Gobierno"383, esse órgão foi criado para auxiliar na extração e reunião de informações que
formariam o sistema de inteligência e segurança. Apesar disso, testemunhos de
sobreviventes e documentos desclassificados sobre a repressão política no Chile
comprovam uma atuação para além da oficialidade, conferindo à DINA um caráter
semiclandestino. Segundo Pablo Policzer (2014, p.117), anexado ao decreto que instituiu

380CHILE. Bando nº10. Archivo Chile.


Disponível em: <http://www.archivochile.com/Dictadura_militar/doc_jm_gob_pino8/DMdocjm0022.pdf>
Acessado em: 21/09/2017.
381CHILE. Bando nº15. Archivo Chile.

Disponível em: <http://www.archivochile.com/Dictadura_militar/doc_jm_gob_pino8/DMdocjm0021.pdf>


Acessado em: 21/09/2017.
382 DINA and CECIFA internal conflicts and the treatment of detainees, 05 February 1974. Freedom of

Information Act. Disponível em: <https://foia.state.gov/searchapp/DOCUMENTS/pdod/9c01.PDF>


Acessado em: 20/09/2017.
383CHILE. Decreto- lei nº 521, 11 de junho de 1974. Archivo Chile Disponível em:
<http://www.archivochile.com/Dictadura_militar/html/dic_militar_leyes_dm.html> Acessado em:
20/09/2017.

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esse órgão existiam outros três artigos, 9, 10 e 11 publicados somente no Diário Oficial
com circulação restrita, o que indica possíveis atribuições extras aos agentes da DINA e
desconhecidas da população, como as detenções.

Contreras e a DINA
Manuel Contreras, artífice do aparato repressivo no Chile, foi o "arquiteto de um
sistema de Inteligência singular" (DINGES, 2005, pp.108-109). Auxiliado por civis e
militares chilenos e estrangeiros, e independente dos demais setores das Forças Armadas,
construiu em um curto período de tempo uma complexa estrutura. Já no início de 1974 a
DINA contava com uma direção, Estado Maior, uma subdireção e quatro departamentos,
sendo eles: Governo do Interior, Contra-inteligência, departamento Econômico e de
Operações Psicológicas. Ao longo do mesmo ano foram adicionados o departamento de
Operações Exteriores e as direções de operações, administrativa, logística e de
documentação e assim, conforme as necessidades operacionais foram criados novos
setores. Estima-se que pela Dirección de Inteligencia chilena tenham passado mais de mil
agentes responsáveis direta ou indiretamente pelos centros de detenção, tortura e
extermínio de opositores políticos. (SALAZAR, 2013, p.114)
Tendo em vista organização interna da DINA, detalhada por Salazar, vale destacar
a existência da direção exclusivamente dedicada aos documentos produzidos por esse
órgão, indicando a presença de memorandos, correspondências, fichas ou qualquer tipo
de documento administrativo capaz de comprovar as ações e o seu modus operandi. No
entanto, é a ausência dessas fontes que marcam o período de transição para a democracia,
assim como a negação dos crimes cometidos pelos agentes da DINA e a localização de
desaparecidos, sendo necessário investir nos testemunhos de sobreviventes e
documentos de outras esferas da administração estatal para elucidar a história do tempo
presente do Chile. Recentemente, em 11 de setembro de 2013, 40 anos após o golpe de
Estado, foi enviado pelo historiador Danny Monsalvez da Universidade de Concepción ao
site The Clinic384, um documento intitulado “Manual de Operaciones Secretas” e a partir da
leitura dessa significativa fonte, a qual Monsalvez teve acesso, mantendo sigilo sobre sua
origem, é possível compreender mais profundamente no que consistiu o aparato

384Manual de Operaciones Secretas. Disponível em: < http://www.theclinic.cl/2013/09/11/operaciones-


secretas-el-manual-inedito-de-la-dina/> Acessado em: 22/09/2017.

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repressivo chileno e os objetivos do serviço secreto desenvolvido, especificamente, pela


DINA.

[…] tiene por misión realizar todo tipo de operaciones de Inteligencia en


el país y en el extranjero mediante maniobras ocultas y clandestinas que
no produzcan comprometimiento al Estado o sus autoridades y que
permita aprovechar sus resultados en beneficio de los interses nacionales
y de la própria organización 385

Dentre os interesses nacionais da ditadura estava a eliminação do “inimigo


interno” 386. Nesse sentido, a DINA investigou desde indivíduos ligados ao Movimiento de
Izquierda Revolucionaria (MIR), maior resistência armada contra a ditadura Pinochet, os
Partido Comunista (PC) e Socialista (PS), até funcionários do próprio regime e das forças
armadas. Reunir informações era a tarefa primordial desse órgão de inteligência, como
bem explicita o decreto-lei que o instituiu. Contudo, mais do que apreensão de dados,
Manuel Contreras instruiu seus agentes a agir violentamente e clandestinamente contra
os elementos subversivos à ordem estabelecida pela ditadura, incluindo como atributo do
serviço secreto no manual de operações uma das mais importantes características da
DINA.

Opera clandestinamente en cualquer lugar y todo tipo de objetivos. El S.S.


(serviço secreto) debe aprovechar que la gente piensa que la ley no será
vulnerada. Esta credibilidad nos dá la vantaje de vulnerarla ley. Lo
interesante es que al actuar clandestinamente hay que saber hacerlo a
objeto de mantener esta credibilida. Ahora bien, la ley tambien ofrece una
serie de garantias, las cuales deben ser explotadas com habilidad y en
nuestro provecho.387

E foi violando as leis sob o consentimento de Augusto Pinochet, que a DINA


manteve dezenas de centros de detenção em funcionamento, tais como Londres 38, Villa
Grimaldi, Venda Sexy, José Domingo Cañas, entre outros, abrigando presos políticos,

385 Manual de Operaciones Secretas. op.cit. p.1


386“Internal enemies
in Latin America were the key threat, according to the doctrine: local reformers, socialists,
or revolutionaries who sought structural change or challenged U.S. interests. The new security doctrine
encouraged the hemisphere’s military-security forces to view domestic social conflicts through the prism of
the East-West struggle, effectively internationalizing them.” Cf. MCSHERRY, J. Patrice. The Undead Ghost of
Operation Condor. Disponível em: http://www.logosjournal.com/issue_4.2/mcsherry.htm. Acessado em:
23/09/2017.
387 Manual de Operaciones, op.cit. p.4

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torturando-os, interrogando-os e muitas vezes os levando à morte e desaparecendo seus


corpos por todo o território chileno. As operações “Colombo” e “Condor” foram dois dos
principais momentos em que a DINA demonstrou sua determinação, organização e
treinamento rigoroso para eliminar seus inimigos. A morte de 119 militantes do MIR no
Chile e de representantes políticos importantes no exterior, como o ex-comandante- em-
chefe Carlos Prats e ex-chanceler Orlando Letelier, ajuda a compreender que a inteligência
chilena não apenas formou uma complexa estrutura com brigadas locais e apoio civil,
como também estabeleceu redes de informação com outros países, e é no cerne dessas
relações que está os Estados Unidos da América e a Central Intelligence Agency.

Os EUA e seus interesses

A presença estadunidense no Chile remonta períodos anteriores à ditadura


Pinochet e o governo de Salvador Allende. O continente americano adquiriu durante o
século XX grande importância tanto pelo fator geopolítico, altamente estratégico no
cenário da Guerra Fria, como pela questão de mercado, essencial dentro do bloco
capitalista. Apostando em mercados "cativos" na América do Sul, os EUA garantiu
liderança frente às grandes potências desenvolvidas da Europa, ou seja, foram
essencialmente as questões econômica e política os fatores centrais na relação entre a
América do Norte e a América Latina.
Os interesses norte-americanos no Chile estavam, sobretudo, ligados ao comércio
e extração do cobre e salitre por meio das empresas Kennecott, Anaconda e Braden Cooper
Co. No final da década de 1960, durante o governo de Eduardo Frei, segundo afirma Luiz
Alberto Moniz Bandeira, em razão dos incentivos do presidente democrata-cristão, "100
corporações americanas e, entre elas, as 24 maiores multinacionais baseadas nos Estados
Unidos tinham investimentos no Chile, principalmente no setor industrial.” (BANDEIRA,
2008, p.119) O imperialismo estadunidense havia penetrado tão profundamente na
economia chilena que, até os anos 1950, dos 80% da produção e do comércio mundial de
cobre do qual o Chile era responsável, 75% estava nas mãos de empresas norte-
americanas, colocando esse como um país latino-americano crucial dentro da disputa
capitalismo-comunismo. (BANDEIRA, op.cit., p. 99) Posteriormente, Frei buscou amenizar
as tensões internas e manter sua legitimidade na presidência, nacionalizando algumas
empresas e promovendo uma relativa reforma agrária.

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Ainda nos anos 1960, percebendo as articulações entre partidos de esquerda nas
eleições chilenas e países ao redor, John F. Kennedy expande o programa “Aliança para o
Progresso” para toda a América Latina. A partir desse momento, o Chile passou a sofrer
crescente ingerência da CIA e outros órgãos de inteligência com o objetivo de garantir a
vitória de Eduardo Frei - alinhado ao programa de Kennedy - na disputa eleitoral de 1964
contra Salvador Allende. A movimentação em direção ao golpe de Estado, que derrubou
Allende alguns anos depois, se deu através do financiamento dos partidos Nacional (PN)
e Democrata-cristão (PDC) pela agência de inteligência estadunidense, além das
chamadas covert actions388, que visavam desestabilizar o Chile econômica, social e
politicamente, a ponto de apenas uma intervenção militar solucionar o caos instaurado. A
nítida antipatia do chefe de Estado dos EUA, Richard Nixon e seu assessor Henry
Kissinger, pela América Latina somada aos interesses econômicos no Chile e o temor de
que o socialismo fosse levado adiante pelos países do Cone Sul gerou nos Estados Unidos
a tomada de uma dura postura contra Allende, sendo para eles "um dos maiores desafios
já enfrentados no hemisfério".389
Os EUA associados aos setores civis, militares, empresariais e midiáticos, como o
jornal El Mercúrio de Agustín Edwards, desenvolveu o que Moniz Bandeira intitulou de
“fórmula para o caos”, levando o Chile, por meio de ações encobertas, boicotes
econômicos, contrapropaganda e estímulo à violência ao golpe de Estado. A Comissão
Church do Senado norte-americano, composta por senadores e coordenada pelo
representante democrata de Idaho, Frank Church, ao investigar as operações
governamentais referentes às atividades de inteligência, lançou em 1975, relatórios e
posteriormente, um informe com a investigação das ações encobertas independentes
realizadas pela CIA no Chile, confirmando a presença da agência, a forte conexão
estadunidense com o golpe de 1973 e a manutenção de estreitas relações também nos

388De acordo com a própria Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, “covert actions” ou ações
encobertas são atividades que a CIA pode empreender em outros países para alcançar um objetivo ligado à
política externa dos Estados Unidos, porém sem deixar explícita para outros países a participação do
governo estadunidense. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/center-for-the-study-of-
intelligence/csi-publications/books-and-monographs/agency-and-the-hill/12-
The%20Agency%20and%20the%20Hill_Part2-Chapter9.pdf> Acessado em: 27/09/2016.
389"The election of Allende as President of Chile poses for us one of the most serious challenges ever faced

in this hemisphere". Foreign Relations of the United States 1969-1976, Volume XXI. Cool and Correct: The U.S.
Response to the Allende Administration, November 5, 1970– December 31, 1972. Memorandum from the
President’s Assistant for National Security Affairs (Kissinger) to President Nixon. November 5, 1970. p.439

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momentos seguintes.390 Um exemplo dessa íntima ligação é o contato do coronel Patrick


Ryan, segundo homem do Military Group (Milgroup) e anticomunista, que ao receber
informações sobre os acontecimentos no Chile informou ao Pentágono que o golpe de
Estado realizado por Pinochet e a Junta, teria chegado “perto da perfeição” e que,
finalmente o Chile estava “pacificado”.391
Apesar de conquistada a derrota de Allende, da Unidade Popular e da esquerda,
governo que na perspectiva norte-americana instauraria uma ditadura marxista no Chile,
os EUA não percebeu gravidade em nutrir relações com a ditadura militar que assumiu o
poder em 11 de setembro, contradizendo sua política de liberdade, associando-se a um
dos piores ditadores que já existiu.

As relações entre DINA e CIA

O apoio fornecido pelos EUA ao Chile era evidente. No entanto, a superpotência


tentou decolar-se dos desdobramentos do golpe sugerindo um reconhecimento tardio do
novo “governo”. A intenção era esconder do mundo a colaboração no golpe de estado em
que o governo estadunidense estava demasiadamente envolvido. Se por um lado a decisão
era aguardar outros países admitirem a Junta como governo legítimo primeiro, por outro,
a estação da CIA em Santiago se manteve atuante, colaborando, entre outras coisas com a
propaganda pró-Pinochet em todo o país.
Já sobre a ligação específica entre a DINA e a CIA, segundo o depoimento de Manuel
Contreras concedido nos anos 2000, nasceu desde o planejamento do órgão de
inteligência chileno392 até sua dissolução. O coronel afirmou que Pinochet o instruiu a
entrar em contato com a agência estadunidense para que seus agentes fossem treinados
com os melhores. Assim, Contreras alega que a CIA enviou oito agentes para o auxiliarem
na preparação operacional da agência chilena. O jornalista Manuel Salazar também indica
que foi a CIA, através de Ray Warren, chefe da estação da CIA em Santiago, quem colocou

390“Covert activities
in Chile following the coup were either continuations or adaptations of earlier projects,
rather than major new initiatives”. In: Church Committee, v.7, covert actions, Post-1973, p. 187.
Disponível em: http://aarclibrary.org/publib/church/reports/vol7/html/ChurchV7_0096a.htm Acessado
em: 24/09/2017.
391 Navy Section. United States Military Group, Chile. 1st October 1973. Disponível em:
<http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB8/docs/doc21.pdf> Acessado em: 24/09/2014.
392La CIA instruyó a la DINA. Entrevista de Nancy Guzmán a Manuel Contreras, ex-chefe da DINA. Archivo

Chile.Disponível em: <http://www.archivochile.com/Dictadura_militar/org_repre/DMorgrepre0015.pdf>


Acessado em: 24/09/2017.

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a DINA e o Serviço Nacional de Informações (SNI) brasileiro em contato e que


torturadores brasileiros foram ao Chile auxiliar no aprimoramento dos métodos de
interrogatório, confirmando o apoio estadunidense já nessa etapa. (2013, p.204)
De acordo com o Informe Hinchey, entregue pela Comunidade de Inteligência dos
Estados Unidos, respondendo a perguntas específicas sobre as ações encobertas da
agência estadunidense e a sua participação na violação dos direitos humanos, “Los planes
de acción encubierta de la CIA en Chile se dieron por oficialmente terminados en junio de
1974, cesando los desembolsos.”393 Coincidentemente, o momento em que a CIA diz ter
cessado suas atividades no Chile é exatamente quando a DINA é oficialmente decretada.
De fato, é possível afirmar que a negação se deu pela tentativa de afastamento dos EUA da
culpa em torno da violência perpetrada pela Dirección de Inteligencia. Contudo, isso não
traduziu a realidade, já que a CIA manteve interesse e presença no território chileno. John
Dinges (2005, p.158), estudioso dessas relações, afirma que “a CIA e a Defense Intelligence
Agency (DIA) relatavam as vitórias da DINA em relatórios a Washington que
demonstravam um senso de temor reverente diante da eficácia de suas operações”.
Outro elemento emblemático na cooperação das ditaduras civil-militares do Cone
Sul, a Operação Condor, está dentre as ações criadas pela DINA e consentidas pelos
Estados Unidos da América. O órgão de inteligência chileno desenvolveu um sistema bem
elaborado que contou com a participação inicial da Argentina, Bolívia, do Uruguai e
Paraguai, além do Brasil, Peru e Equador nos anos posteriores. Partindo da ideia de que o
“inimigo interno” estava em todos os lugares, ultrapassando as fronteiras geográficas e de
que era necessário alcançá-lo, diversas atividades desenvolvidas por agentes dos países
do Condor iniciaram um processo de grave violação da soberania nacional de diversos
países, dentre eles, os próprios EUA e a Europa. Em depoimento, após a dissolução da
DINA, Manuel Contreras afirmou à Suprema Corte do Chile que além do Federal Buerau of
Investigation (FBI), “a CIA também sabia sobre a organização Condor, e em muitas
oportunidades contribuiu com informações a esse respeito.” (DINGES, 2005, p. 186) Ou
seja, a superpotência norte-americana possuía pleno conhecimento tanto da estrutura
que se formou, como seus crimes e apesar da negação, há quem confirme sua participação,

393Informe Hinchey.
Disponível em: <http://www.archivochile.com/Imperialismo/us_contra_chile/UScontrach0005.pdf>
Acessado em: 24/09/2017.

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como Contreras o fez reiteradas vezes. Outra fonte que colabora para o conhecimento dos
eventos que se passavam no Chile com profundo conhecimento da CIA são alguns dos
documentos desclassificados do Departamento de Estado do EUA intitulados “Lists of
dead and disappeard chilean extremists”394, “Assassionation of general Prats”395 e “DINA
operations”396.
A relação entre os EUA e o Chile se pautou também pela estreita amizade entre
Pinochet e Henry Kissinger, homem importante do cenário político mundial. Conforme
Chistopher Hitchens, que se dedicou a escrever um livro sobre esse proeminente
personagem estadunidense, paradoxalmente vencedor do prêmio Nobel da Paz, diz que

Kissinger defendeu que as relações estreitas fossem mantidas com


líderes militares nos países vizinhos, tanto para facilitar a coordenação
da pressão contra o Chile como para gerar oposição dentro do país. De
maneira geral, isso prefigura o desenrolar da Operação Condor, um
conluio secreto entre as ditaduras militares do hemisfério orquestrado
com o conhecimento e a indulgência dos Estados Unidos. (HITCHENS,
2002, p.99)

O poder da DINA cresceu desenfreadamente, os demais setores de inteligência do


Exército e Força Aérea, por exemplo, eram contrários ao “monstro” que Contreras havia
criado e disputavam entre eles a relevância dentro da ditadura. Ao longo dos anos a
imagem da DINA ficou maculada, não apenas internamente, pelos órgãos que disputavam
poder com Contreras e de parte da direita, que discordava de suas ações extremas, como
também pelos EUA, que diante das denúncias relativas aos abusos dos direitos humanos
no Chile se viu numa difícil posição. Temendo ser relacionado à repressão, os EUA
demonstra preocupação, visível em inúmeros documentos desclassificados intitulados
“human rights”. No entanto, foi, principalmente após o atentado terrorista em solo
estadunidense que matou o ex-chanceler chileno Orlando Letelier e sua assistente Ronnie
Moffit que até mesmo agentes da CIA perceberam o grau de determinação da DINA em

394 29 July 1975. Freedom of Information Act.


Disponível em: <https://foia.state.gov/searchapp/DOCUMENTS/pinochet/8b8d.PDF> Acessado em:
28/09/2017.
395 24 October 1974. Freedom of Information Act.

Disponível em: <https://foia.state.gov/searchapp/DOCUMENTS/pinochet/8c6f.PDF> Acessado em:


28/09/2017.
396 30 january 1975. Freedom of Information Act.

Disponível em: <https://foia.state.gov/searchapp/DOCUMENTS/pinochet/8c2e.PDF> Acessado em:


28/09/2017.

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aniquilar seus adversários. A condescendência dos Estados Unidos da América com a


ditadura Pinochet finalmente parecia ter um limite, a sua própria soberania nacional.

Considerações finais

Tendo em vista o passado constitucionalista do Chile e de alternância partidária na


presidência, não existia no país um aparto de inteligência, segurança e informação como
o que foi montado por Manuel Contreras. Em pouco tempo a DINA se fundou como uma
força equivalente à Junta Militar devido aos poderes conferidos à Contreras por Pinochet.
Apesar de o informe Hinchey assegurar que rompeu a relação, os financiamentos
e as ações encobertas com o Chile, os acontecimentos da operação Condor e o próprio
coronel Contreras contradizem a versão oficial. Além disso, o tamanho da estrutura criada
em poucos meses indica um considerável investimento aos moldes dos subsídios
fornecidos pelos EUA para outras ditaduras da América Latina, que de outra forma, não
alcançariam seus objetivos com tanta eficiência. Um documento desclassificado da DIA
estadunidense, com data de 08 de fevereiro de 1974, dimensiona o que significou a
Dirección de Inteligencia dentro do Chile, ressaltando que existiam apenas três poderes
no Chile: “Pinochet, Deus e a DINA”397. Dessa forma, refletindo sobre os longos anos de
presença estadunidense na America Latina e especialmente no Cone Sul, acredita-se qie
não seria no momento de criação do aparato repressivo e imposição da força aos
opositores que os EUA permaneceriam na periferia dos acontecimentos.
A leitura de fontes históricas e autores que aprofundaram o estudo dessa antiga
associação entre o norte e o sul da América apresentam um progressivo distanciamento
e até mesmo temor por parte dos EUA com a desenfreada violência praticada pela DINA.
No entanto, se conclui que agindo em sintonia com as forças repressivas chilenas ou não,
os EUA, superpotência mundial, permaneceu em silêncio e paralisada diante dos atos
terroristas que assistiu e relatou, dentro e fora do Chile. Os resultados foram a eliminação
de uma juventude em busca de justiça social somados a quase vinte anos de uma brutal
ditadura e a implantação do neoliberalismo, tão caro aos interesses estadunidenses.

397Information report. Dina, its operations and Power. 8 February 1974. Freedom of Information Act.
Disponivel em: <https://foia.state.gov/searchapp/DOCUMENTS/pdod/9c02.PDF> Acessado em:
28/09/2017.

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Referências bibliográficas:

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1970-1973. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2008.

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Paulo: Companhia das Letras, 2005. pp. 108-109.

HITCHENS, Christopher. O julgamento de Kissinger. São Paulo: Boitempo, 2002.

KORNBLUH, Peter. The Pinochet File: A Declassified Dossier on Atrocity and Accountability.
New York: New Press, 2003. pp. 174-178

MCSHERRY, J. Patrice. The Undead Ghost of Operation Condor. Disponível em:


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MIX, Miguel Rojas. La dictadura militar en Chile e América Latina. In: WASSERMAN,
Cláudia; GUAZZELLI, Cezar Augusto Barcellos (Org.). Ditaduras militares na América
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PINOCHET, Augusto. Camino recorrido. Memorias de un soldado. Tomo 2. Santiago de Chile:


Instituto Geográfico Militar, 1991.

POLICZER, Pablo. Los modelos del horror: Represión e información en Chile bajo la
Dictadura Militar. Santiago: LOM ediciones, 2014.

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A TRAJETÓRIA DA ELITE POLÍTICO-ADMINISTRATIVA


DOS GOVERNOS DO RIO GRANDE DO SUL NO REGIME MILITAR

Ericson Flores

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende mostrar a trajetó ria dos membros dos governos estaduais do
Rio Grande do Sul entre os anos de 1967 e 1975. Foram, respectivamente, os governadores
Peracchi Barcellos e Euclides Trichê s. Ambos foram eleitos durante o regime bipartidá rio
e atravé s do sufrá gio indireto, conforme determinado pelo regime federal autoritá rio
vigente a é poca. A pesquisa consiste na apresentaçã o da trajetó ria polí́tica, seja nos
Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciá rio, e na experiê ncia administrativa pré via dos
secretá rios estaduais. Trata-se de um grupo de indiví́duos, cerca de trinta e trê s pessoas,
que formaram a elite polí́tico-administrativa do regime militar no Rio Grande do Sul, a
frente do Poder Executivo estadual durante oito anos. O trabalho consiste numa
prosopografia e procura verificar se estes agentes já possuí́am experiê ncia polí́tica no
momento em que passaram a fazer parte do governo ou se a entrada nos postos de
comando serviu para alavancar futuras carreiras polí́ticas. Os resultados da pesquisa
colaboram para ampliar o conhecimento sobre a atuaçã o do partido de sustentaçã o ao
regime militar (ARENA) e sobre os governos estaduais do perí́odo, ainda carentes de
pesquisas, pois a maioria dos estudos sã o sobre a oposiçã o.
Devido a relevâ ncia em pesquisar o perí́odo ditatorial civil-militar no Brasil (1964-
1985) e as lacunas historiográ ficas ainda existentes neste quesito, este trabalho procura
estudá -lo na perspectiva dos governos do estado do Rio Grande do Sul, seus protagonistas
e suas polí́ticas pú blicas.
Carla S. Rodeghero indica que

A construçã o de uma histó ria polí́tica do Rio Grande do Sul no regime


militar apenas começou a ser esboçada, com o auxí́lio de pesquisas
acadê micas, reportagens, testemunhos, memó rias e da constituiçã o de


Mestre em História. Professor no Instituto Federal Farroupilha (IFFar). Doutorando do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista CAPES. Contato:
<ericson.flores@terra.com.br>

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acervos escritos e orais. Ainda é reduzido o nú mero de trabalhos


monográ ficos sobre a ditadura no Rio Grande do Sul (RODEGHERO apud
BOEIRA; GOLIN, 2004, p. 83).

A autora indica que faltam estudos sobre a atuaçã o do Poder Executivo estadual,
na figura dos governadores Ildo Meneghetti, Peracchi Barcelos, Euclides Triches, Sinval
Guazzelli e Amaral de Souza. Com exceçã o do primeiro, os demais foram eleitos
indiretamente por um colé gio eleitoral, conforme determinado pelo Ato Institucional n.º
2. A maioria dos trabalhos acadê micos sobre o perí́odo aborda a temá tica dos perseguidos
pelo regime militar, torturados e desaparecidos. Nã o há muitos estudos historiográ ficos
acerca dos governos estaduais daquele perí́odo.
Entende-se que o objeto do artigo seja a elite, tomada na definiçã o de Raymond
Aron como, “a minoria que, numa sociedade qualquer, exerce as funçõ es diretrizes da
coletividade” (PERISSINOTTO et al. 2007, p. 113). Em relaçã o as formas de recrutamento
desse grupo dirigente, ou seja, a forma de escolha dessa minoria governante, incluiu-se
duas dimensõ es: a seleçã o só cio-econô mica dos indiví́duos e a seleçã o polí́tico-
institucional. Esta pesquisa levantou os tipos de cargos e posiçõ es que os indiví́duos
ocuparam antes de assumirem os postos no 1º escalã o do governo estadual. Tratou-se de
investigar se existiu um caminho tí́pico para o acesso a essas posiçõ es. Quais eram os
atributos (polí́ticos, pessoais, etc) que os indiví́duos deveriam possuir para serem
recrutados ao governo estadual? Em que medida estes agentes eram “profissionais” da
polí́tica? Qual a relaçã o entre a trajetó ria polí́tica dos secretá rios e o perfil e/ou ideologia
do governador?

Experiência política anterior ao exercício do secretariado

Como o cargo de secretá rio estadual nã o é eletivo, mas de livre indicaçã o e
nomeaçã o do chefe do Poder Executivo, será importante observar se tais indiví́duos
“entraram na polí́tica” somente quando efetivamente passaram a fazer parte do governo
ou o cargo foi apenas uma continuaçã o ou até mesmo o final de uma carreira polí́tica de
maior extensã o. A fim de verificar esta questã o, deve ser analisado o tempo (nú mero de
anos) de exercí́cio e os tipos de postos ocupados nos trê s setores pú blicos, Executivo,
Legislativo e Judiciá rio.

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Governo Peracchi Barcellos

Entre os 18 secretá rios que atuaram no governo Peracchi, foi possí́vel identificar a
trajetó ria polí́tica de quinze. Nã o foram obtidas informaçõ es sobre os seguintes
indiví́duos: Joã o T. Gonçalves Tamer, o primeiro ocupante da Secretaria da Administraçã o,
que foi transferido para a pasta da Fazenda na metade do terceiro ano do mandato de
Peracchi. Luí́s Lesseieneur de Faria, da Secretaria de Educaçã o e Cultura. Completa o
grupo A. C. Ferreira de Melo, o segundo a ocupar a pasta do Trabalho e Habitaçã o.
Dos quinze indiví́duos cujos dados permitem avaliar a experiê ncia polí́tica pré via,
apenas quatro nã o a possuí́am antes de assumir seus cargos. Poré m, destes quatro, trê s
eram militares, carreira profissional em que a atividade polí́tico-partidá ria nã o era
comum. Trata-se de Leovaldo (ou Leonardo) Vargas e Augusto Alvaro Leitã o, que
ocuparam a Casa Militar. Outro militar era Ibá Mesquita Ilha Moreira, general do Exé rcito
que ocupou a Secretaria da Segurança Pú blica. Apenas Henrique Anawate, o secretá rio de
Minas, Energia e Comunicaçõ es, era novo na polí́tica e permaneceu sem cargos eletivos
durante toda a carreira pú blica.
Dos outros onze secretá rios que já possuí́am experiê ncia polí́tica anterior ao
exercí́cio do cargo, quatro tinham menos de cinco anos. O menos experiente foi Hé lio de
Souza Santos, o segundo ocupante da Secretaria da Administraçã o. Nomeado em julho de
1969, substituindo o anterior. Tinha sido diretor da CORSAN da pró pria gestã o, durante
dois anos e meio. Anteriormente era do Partido Libertador e foi candidato a deputado
estadual em 1962, sem obter a eleiçã o.
Outros dois secretá rios tinham quatro anos de experiê ncia polí́tica pré via.
Umberto Pergher, titular da pasta de Obras Pú blicas, havia sido membro do 2º escalã o no
governo anterior, como chefe de gabinete do IPE (Instituto de Previdê ncia do Estado). Cid
Furtado, secretá rio do Trabalho e Habitaçã o, havia exercido o mandato de deputado
federal no quadriê nio anterior e tentou a reeleiçã o, sem obter sucesso. Este é um dos casos
tí́picos, quando o candidato a um cargo polí́tico-eleitoral qualquer nã o consegue eleger-
se, é “premiado” com um cargo de livre nomeaçã o. Neste caso a pasta foi um “prê mio de
consolaçã o”, soluçã o tí́pica no meio polí́tico. Importante mencionar que este indiví́duo,
apó s o exercí́cio do mandato na secretaria, conseguiu voltar a Câ mara dos Deputados,
obtendo mais dois mandatos nas eleiçõ es de 1970 e 1974.

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Joã o M. A. Dentice, chefe da Casa Civil, havia sido prefeito municipal de Bento
Gonçalves durante cinco anos, nomeado por Getú lio Vargas no perí́odo do Estado Novo.
Pode-se dizer, portanto, que um pouco menos da metade do secretariado tinha pouca
experiê ncia polí́tica, mas nã o eram novatos.
Nicanor Kramer da Luz, o secretá rio da Fazenda, tinha exercido um mandato de
deputado estadual pelo antigo PSD e havia sido prefeito de Vacaria. Um tempo de oito anos
em cargos eleitorais. Trê s membros do 1º escalã o tinham, pode-se dizer, larga experiê ncia
polí́tica e eram bem conhecidos no cená rio. Luciano Correia Machado, o secretá rio da
Agricultura, já havia sido prefeito municipal de Trê s Passos, por dois anos, no iní́cio da
carreira. Depois exerceu dois mandatos de deputado estadual e um de deputado federal,
totalizando 14 anos de exercí́cio polí́tico, sendo 2 anos no executivo e 12 anos no
legislativo, sempre pelo PSD.
Jair de O. Soares, o ú ltimo dos trê s que foram titulares da secretaria da
Administraçã o també m tinha larga experiê ncia administrativa. Era servidor pú blico
estadual, lotado na secretaria de Obras. Antes de assumir a pasta acima referida, havia
exercido vá rios cargos nos escalõ es inferiores da administraçã o estadual, totalizando nove
anos, intercalado com seis anos e meio na Assembleia Legislativa. Tinha, portanto, quinze
anos e meio de experiê ncia anterior ao exercí́cio do secretariado.
O secretá rio com mais tempo de experiê ncia polí́tica foi també m o que menos
tempo permaneceu a frente da sua pasta. Francisco Solano Borges permaneceu apenas
quatro meses e quinze dias na Secretaria do Interior e Justiça. Já havia exercido 4
mandatos de deputado estadual pelo Partido Libertador (PL), somando, portanto, 16 anos
de experiê ncia parlamentar. Cabe destacar ainda, que seu sucessor, José Danton de
Oliveira, era magistrado estadual e foi presidente da AJURIS (Associaçã o dos Juí́zes do RS)
por dois anos, antes de assumir a secretaria. També m possuí́a experiê ncia, mas no poder
judiciá rio.
Ainda no tocante a formaçã o do secretariado de Peracchi Barcelos, cabe ressaltar a
heterogeneidade partidá ria de origem dos titulares das pastas. Basta lembrar que entre a
implantaçã o do bipartidarismo e a eleiçã o indireta do governador, ainda nã o havia
passado um ano. Era natural, portanto, que as lembranças do perí́odo pluripartidá rio
eram bem vivas. Foi possí́vel identificar sete membros do secretariado que possuí́am
filiaçã o partidá ria no perí́odo anterior a existê ncia da ARENA. Eram trê s do PSD, 2 do PL,

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1 do PRP e 1 do PDC. Com esses representantes, todos filiados a ARENA, Peracchi procurou
manter o equilí́brio de forças do perí́odo pluripartidá rio. Isso fica percebido na citaçã o
abaixo, extraí́da do trabalho de Angela Flach:

Nesse sentido, Umberto Pergher, que foi Secretá rio de Obras Pú blicas no
governo de Walter Peracchi Barcellos, comentou a questã o da identidade
partidá ria entre os membros que compunham o Secretariado estadual
naquele momento. Ele enfatizou que, ‘até o Peracchi disse quando formou
o secretariado: “eu nã o quero ressuscitar os partidos antigos. Mas, como
sã o parcelas importantes dos que me apoiaram, eu vou contemplar essas
parcelas do eleitorado, poré m, sem que isso signifique o ressurgimento
dos velhos partidos, mesmo porque eu acho que eles nã o vã o surgir, e eu
nã o quero saber dessas antigas siglas”. E de fato, ele foi sempre de evitar
que houvesse qualquer surgimento (...) que os partidos se mantivessem
dentro da ARENA, porque o partido se criou, inclusive para dar
sustentaçã o ao Peracchi. Mesmo antes da sua eleiçã o nó s já
participá vamos e assim como os demais sempre havia a identidade. Quem
era da UDN se considerava da UDN, quem era do PSD se considerava do
PSD, quem era do PL se considerava do PL e quem era do PRP nã o tinha
porque nã o se considerar do antigo PRP. Havia aquela (...) aquela capa,
aquela tintura ideoló gica permanecia. E até hoje, as vezes a gente fala: “ah,
você é do antigo PRP”, embora já o partido tenha desaparecido há muitos
anos.’Essa ideia demonstra que, apesar das tentativas de dar a ARENA um
aspecto de coesã o, os seus membros continuavam atuando em prol de
interesses que beneficiariam seus pares, oriundos dos antigos partidos.398

Pode-se concluir, quanto ao governo Peracchi, e com base nos dados obtidos, que o
seu secretariado era formado por elementos heterogê neos no que diz respeito a
experiê ncia polí́tica pré via ao exercí́cio do cargo. Considerando os 15 secretá rios cujos
dados foram analisados, um pouco alé m da metade (oito) possuí́a pouca ou nenhuma
experiê ncia anterior a entrada no governo. Isso denota um governo que procurou renovar,
no espí́rito da “revoluçã o”, ou seja, do movimento protagonista do golpe de 1964. Por
outro lado, um pouco menos da metade (sete indiví́duos) já possuí́a largo tempo de
exercí́cio polí́tico e já fazia parte da elite estadual quando assumiu o cargo. Ou seja, o
governo Peracchi buscou, por um lado, a renovaçã o, mas por outro, continuou a prá tica
corrente de contemplar os aliados com cargos no 1º escalã o. Nesse sentido, nã o diferiu
dos governos anteriores.

398Citaçã o
do depoimento de Umberto Pergher, secretá rio de Obras Pú blicas do governo Peracchi Barcellos,
in FLACH, Angela, 2003, p. 190.

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Governo Euclides Trichês

O governo de Euclides Trichê s teve 18 ocupantes de secretarias estaduais ao longo


do quadriê nio. Destes, se pode considerar que oito nã o tinham trajetó ria polí́tica pré via.
Neste grupo, poré m, há trê s militares que ocuparam as secretarias da Segurança Pú blica
e a Casa Militar. O primeiro ocupante da pasta da Segurança foi o coronel do Exé rcito,
Athos Baptista Teixeira, que ficou dois anos e meio no cargo. Em seguida, assumiu o
també m coronel do Exé rcito, Ney Pinto de Alencar, que ficou até o final do governo. Este
será mencionado adiante porque tem seu nome envolvido em casos de tortura de presos
polí́ticos.
Os secretá rios da Agricultura (Edgar Irio Simm), da Indú stria e Comé rcio (Roberto
Pires Pacheco) e da Fazenda (José Hipó lito Machado de Campos), eram professores
universitá rios e nã o tiveram carreira polí́tico-partidá ria propriamente dita. Edgar Simm
chegou a ocupar postos na Prefeitura de Porto Alegre, entre outros o de secretá rio da
Fazenda e diretor financeiro do Grupo Executivo da Regiã o Metropolitana. Com Mestrado
em Economia Agrí́cola por uma universidade norte-americana, era professor universitá rio
há dez anos.
Roberto Pires Pacheco era Mestre em Administraçã o de Empresas pela
Universidade de Michigan (EUA) e havia estagiado em ó rgã os como o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial (BIRD) e na Comissã o
Interamericana da Aliança para o Progresso. Edilson Baptista Chaves ocupou a secretaria
da Indú stria e Comé rcio no final do governo, mas nã o foram obtidas informaçõ es a seu
respeito.
José Hipó lito Machado de Campos, da Fazenda, també m era professor universitá rio
e ocupara cargos no Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). Carlos
Verissimo de Almeida Amaral foi titular da pasta da Coordenaçã o e Planejamento por dois
anos, na segunda metade do governo Trichê s, em substituiçã o a Guilherme Socias Villela.
També m era professor.
Entre a maioria do secretariado que detinha experiê ncia polí́tica pré via ao
exercí́cio do cargo, a mé dia de tempo era de 9,6 anos. Isto pode ser considerado um tempo
mé dio de experiê ncia profissional no campo polí́tico-administrativo. O mais experiente
dentre eles era Otá vio Baduí́ Germano, o secretá rio do Interior e Justiça. Oriundo do PSD,

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antes de assumir o cargo já tinha exercido trê s mandatos de vereador em Porto Alegre e
dois mandatos de deputado estadual, o primeiro como suplente, mas assumindo vá rias
vezes. Para exercer o secretariado, licenciou-se do terceiro mandato de deputado estadual.
Tinha, portanto, vinte anos de atuaçã o pré via ao secretariado, aos 46 anos de idade.
Outro secretá rio com boa experiê ncia polí́tico-administrativa era Jair de Oliveira
Soares. Bem mais jovem, com 37 anos, també m começou no PSD. O titular da pasta da
Saú de já possuí́a 16 anos de atuaçã o. Havia sido chefe de gabinete da Secretaria Estadual
de Obras no 1º governo Meneghetti, quando Trichê s era o secretá rio. No perí́odo em que
Brizola foi governador, ocupou a chefia de gabinete da presidê ncia da Assembleia
Legislativa, onde era servidor concursado. No 2º governo Meneghetti, foi chefe de gabinete
do presidente do IRGA e voltou a ALERGS no mesmo cargo anterior. Na gestã o Peracchi
ocupou a chefia do Depto. Estadual de Compras até ser nomeado secretá rio estadual da
Administraçã o, cargo que ocupou por sete meses. Ressalta-se que todos os cargos eram
de livre nomeaçã o. Neste caso, a larga experiê ncia foi adquirida com idade pouco
avançada. Certamente o convite para a pasta da Saú de ocorreu porque já era “pessoa de
confiança” do governador há um bom tempo e possuí́a experiê ncia em cargos de gestã o
pú blica.
O secretá rio dos Transportes era Paulo Nunes Leal. Possuí́a 12 anos de atuaçã o
polí́tico-administrativa pré via. Chegou a ser governador do antigo territó rio de Rondô nia
por seis anos, em dois mandatos. Este cargo na é poca era indicado pelo presidente da
Repú blica. O curioso é que sua origem partidá ria era o PTB e fora nomeado pelo
presidente Juscelino Kubitschek. Era engenheiro militar do Exé rcito, como Trichê s, e
havia sido, por dois anos, superintendente de ferrovia federal. Alé m disso, fora colega do
governador na Câ mara dos Deputados no quadriê nio anterior. Provavelmente por esses
motivos, foi convidado para a pasta dos Transportes. Com 55 anos, era o veterano do
secretariado. Percebe-se com isso que o grupo escolhido por Trichê s era mais jovem. De
fato, dos quatro governos, foi o que teve a mé dia de idade mais baixa entre o 1º escalã o.
Com oito anos de experiê ncia pré via havia trê s secretá rios. A pasta da
Administraçã o era ocupada por Dolmy Antô nio Tarasconi, com 43 anos de idade.
Anteriormente era ligado ao PRP, partido que abrigava os integralistas. Havia ocupado
postos de escalõ es inferiores nos governos Meneghetti e Peracchi Barcellos. Sua trajetó ria
era, entã o, em cargos comissionados. Fato interessante é que esta secretaria, foi també m

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ocupada por pessoas ligadas ao antigo PRP nos dois governos que sucederam a gestã o
Trichê s.
O chefe da Casa Civil, Victor José Faccioni, era o segundo com oito anos de atividade
polí́tica, embora tivesse apenas 29 anos de idade, o mais jovem do grupo. Oriundo do PDC,
havia sido vereador e deputado estadual. Foi reeleito para a Assembleia Legislativa
quando convidado para a secretaria. Era, como o governador, de Caxias do Sul, fato que
pode ter contribuí́do para sua escolha.
O ú ltimo do grupo com oito anos de atividade anterior ao cargo era Guilherme
Socias Villela, o secretá rio de Coordenaçã o e Planejamento. Com 35 anos, já havia
acumulado alguns cargos nos escalõ es inferiores, sendo um no governo estadual
(Meneghetti) e outros no federal (ministé rios) antes de assumir a referida pasta.
Roberto Geraldo Coelho Silva assumiu a Secretaria do Trabalho e Açã o Social com
42 anos de idade. Nã o tinha muito tempo em cargos de natureza polí́tico-administrativa.
Foram trê s anos como prefeito de Rio Pardo. Ocupou ainda os cargos de diretor da COHAB
e do DEMHAB no quadriê nio do governo Peracchi. Portanto, com sete anos de exercí́cio
em cargos polí́ticos. O diferencial neste caso é que era promotor de justiça e professor,
portanto, com outro tipo de experiê ncia profissional.
O secretá rio de Energia, Minas e Comunicaçõ es era Henrique Anawate, o mesmo
que havia ocupado a pasta no governo anterior. Era um té cnico com boa experiê ncia na
á rea metalú rgica e administrativa. Nã o havia exercido cargos polí́ticos antes do mandato
no secretariado de Peracchi. Tinha 48 anos quando assumiu o cargo no governo Trichê s.
O secretá rio de Obras Pú blicas era o engenheiro Jorge Englert. Tinha 47 anos.
Nomeu sua irmã Carmen Englert para a chefia de gabinete da pasta, tí́pico caso de
nepotismo. Sua experiê ncia era té cnico-administrativa, pois desde 1962 era responsá vel
pelas obras civis da Aços Finos Piratini, empresa estatal a é poca, e coordenador-geral da
Diretoria Té cnica. Foi eleito vereador de Porto Alegre em 1969. Quando assumiu a pasta,
já era, portanto, um nome parcialmente conhecido no meio polí́tico.
Por fim, Mauro Costa Rodrigues, era o secretá rio da Educaçã o. Militar da carreira
do Exé rcito, exercia o magisté rio na caserna. Ocupava a patente de tenente-coronel
quando assumiu a secretaria. Havia exercido vá rios cargos no Ministé rio da Educaçã o e
Cultura, poré m, nã o por muito tempo nessas funçõ es. Aos 35 anos, era dos mais jovens
dentre os secretá rios estaduais do governo Trichê s.

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No que diz respeito ao governo Trichê s a presença de novatos foi expressiva. Dos
dezoito secretá rios estaduais, quinze possuí́am menos de dez anos de atividade polí́tico-
administrativa. Oito deles tinham até cinco anos de experiê ncia pré via. Sete indiví́duos
possuí́am entre 5 e 10 anos de atividade pú blica e somente trê s secretá rios eram polí́ticos
com larga experiê ncia (mais de 10 anos). Esses nú meros demonstram um governo mais
“renovador” do que o anterior. Parece mais o perfil do governador. Ele era, obviamente,
um polí́tico. Mas, como militar e, principalmente, engenheiro, Trichê s demonstrava sua
atuaçã o como té cnico.

Considerações Finais

Por razõ es de espaço, este artigo abordará somente os dois primeiros


governadores do perí́odo: Peracchi Barcellos (1967 a 1971) e Euclides Trichê s (1971 a
1975). Considerando estes dois, 33 indiví́duos passaram pelas secretarias estaduais no
perí́odo. Destes, dezesseis, ou seja, um pouco menos da metade tinham menos de dez anos
de experiê ncia polí́tico-administrativa. Isto, sem dú vida, denota um sentido renovador
nestes governos estaduais. O discurso dos generais-presidentes-ditadores, de certa forma,
pode ser comprovado pelo nú mero substantivo de secretá rios com mais tempo de
atividade té cnica do que polí́tica, propriamente dita.
Entretanto, ainda havia uma maioria (dezessete) de membros no 1º escalã o com
mais de dez anos de atividade polí́tico-administrativa. Destes, oito possuí́am entre 10 e 20
anos de atividade polí́tica, seja no Executivo, Legislativo ou Judiciá rio, e nove indiví́duos
contavam com mais de 20 anos de experiê ncia. Quase 30% daqueles agentes vinham de
longa carreira polí́tica em uma ou mais esferas de poder. Ou seja, por um lado se fazia
renovaçã o, mas por outro, procurou-se a manutençã o dos mesmos protagonistas que já
atuavam no campo ideoló gico liberal-conservador, oposto ao trabalhista-
desenvolvimentista. E, obviamente, mesmo entre os novos personagens, a linha polí́tico-
ideoló gica era a mesma dos antigos.
Com estes í́ndices pode-se concluir que a elite polí́tico-administrativa do Rio
Grande do Sul durante a Ditadura Civil-Militar foi formada por uma velha classe que se
alternava no Poder Executivo conforme os resultados eleitorais, mas que també m
procurou se renovar, de acordo com os ditames do novo regime implantado em abril de
1964.

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CENSURA E REDEMOCRATIZAÇÃO NA DÉCADA DE 1980: O CASO DO


FILME PRA FRENTE, BRASIL

Vinícius Viana Juchem

O contexto histórico do lançamento de Pra frente, Brasil


O governo de João Batista Figueiredo (1979-1984) foi responsável por uma série de
medidas que visavam contribuir para a abertura política (a instituição do
multipartidarismo399 – mesmo que não tenham sido incluídos os partidos de orientação
comunista, eleição direta para governadores, fim da eleição indireta para senador) ao
mesmo tempo em que controlava todo o processo. A promulgação da Lei da Anistia, em
28 de agosto de 1979, foi um importante passo para a redemocratização. Os debates com
relação a Lei da Anistia englobavam, principalmente, duas propostas com diferentes
significados. Por um lado, uma anistia ampla, geral e irrestrita teria como consequências
a devida apuração dos crimes cometidos pelos órgãos da repressão, além de suas
extinções. A outra proposta possuía um caráter mais ameno e tinha como finalidade
ajudar na reconciliação da nação brasileira com a construção de uma ordem democrática.
Foi a segunda proposta que o Congresso votou e aprovou por uma parca margem de 206
X 201 votos. Além da Lei da Anistia, 1979 também foi marcado pela morte do delegado
Sérgio Paranhos Fleury400 e da publicação de um livro de memórias sobre a guerrilha que


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
PROSUP/CAPES. Contato: <vianajuchem@bol.com.br>
399 Com a reforma partidária de 1979, o partido governista foi rebatizado de Partido Democrático Social

(PDS), enquanto o MDB acrescentou o P em sua sigla. Com a anistia, Leonel Brizola voltou ao Brasil disposto
a continuar na política. Disputou com Ivete Vargas no STF (Supremo Tribunal Federal) o direito de utilizar
a sigla PTB, partido fundado por Getúlio Vargas, mas não foi bem sucedido. Brizola fundou então o Partido
Democrático Trabalhista (PDT). Além desses partidos, surgiram também o PT (Partido dos Trabalhadores)
e o PP (Partido Popular). Esse último, um partido montado por políticos oriundos da ARENA e moderados
do MDB, contava com a liderança de Tancredo Neves.
400 Considerado um dos símbolos da repressão política, a carreira de Fleury foi marcada por denúncias de

corrupção, tortura e assassinatos (ele foi processado, nos anos 1970, por integrar o Esquadrão da Morte).
Sua incorporação pelo DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social) fez parte da política de recrutar policias
da Delegacia de Roubos, uma vez que tais quadros possuíam experiência no combate ao crime nas grandes
cidades. Em vez de investigarem criminosos comuns, agora os alvos eram os guerrilheiros. Para Gaspari
(2014, p.67) o comportamento de Fleury “[...] projetava a imagem de machão valente, quando na realidade
sua fama derivava da bestialidade do meio que vivera e sua ascensão ao posto chefe dos janízaros da
ditadura militar, do declínio dos padrões éticos dos comandantes militares da ocasião. Nunca na história
brasileira um delinquente adquiriu sua proeminência.”.

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se tornaria um sucesso de público e de crítica: O que é isso, companheiro? (1979), do


jornalista Fernando Gabeira.
Em 1981, o governo criou novas leis eleitorais que objetivavam dificultar as
chances de vitória da oposição. Os brasileiros puderam voltar em apenas um partido,
sendo que as coligações não eram permitidas. Como consequência, o PP se fundiu ao
PMDB. Nas eleições de 1982 para governadores, deputados estaduais e federais e
senadores, o governo perdeu em três Estados importantes: em São Paulo (que elegeu
Franco Montoro), no Rio de Janeiro (com a eleição de Leonel Brizola) e em Minas Gerais
(com a vitória de Tancredo Neves). Apesar disso, o PDS conseguiu a maioria no Senado e
na Câmara de Deputados.
A década de 1980 foi marcada a crise econômica, sendo a inflação um dos maiores
problemas enfrentados pela população. De acordo com Marangoni (2012), é possível
enxergar o período sob o viés econômico (negativo) e político (positivo):

Os anos 1980, na América Latina, ficaram conhecidos como “a década


perdida”, no âmbito da economia. Das taxas de crescimento do PIB à
aceleração da inflação, passando pela produção industrial, poder de
compra dos salários, nível de emprego, balanço de pagamentos e
inúmeros outros indicadores, o resultado do período é medíocre. No
Brasil, a desaceleração representou uma queda vertiginosa nas médias
históricas de crescimento dos cinquenta anos anteriores. Mas, sob o
ponto de vista político, aquela foi literalmente uma década ganha. Não
apenas se formaram e se firmaram inúmeras entidades e partidos
populares – fruto das maiores mobilizações sociais de toda a história
brasileira -, como se abriu uma nova fase histórica para o país, através do
fim da ditadura e da promulgação da Constituição de 1988.

No final dos anos 1970 e começo da década seguinte, ocorreram atentados que não
foram cometidos pela esquerda e sim por grupos de direita que não concordavam com os
rumos da redemocratização. Para Couto (1999), ocorreram três atentados terroristas
atribuídos a organizações de direita em 1979; no ano seguinte, quarenta e seis. Mas o
atentado do Riocentro, em 30 de abril de 1981, é o exemplo mais notório do terrorismo
praticado pelas Forças Armadas. De acordo com D’Araujo (2005, p.75), o Riocentro
representa “[...] uma história de impunidade que desmoralizou as Forças Armadas frente
à inteligência e aos meios de comunicação do país.” Uma bomba explodiu no colo do
sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário que estava dentro de um carro. O

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plano era causar pânico e confusão durante um show da cantora Elba Ramalho e culpar a
esquerda. Os desdobramentos das investigações não chegaram a apontar culpados que
integrassem as Forças Armadas. Já para Couto (1999, p.302), o episódio representou “[...]o
fim do projeto presidencial da linha dura e do terrorismo de direita. Na verdade, ele inibiu,
bloqueou a extrema direita, inclusive seu projeto de poder. Paradoxalmente, portanto,
contribuiu para dar maior consistência à abertura política.” Nos quatro anos seguintes, os
brasileiros se frustariam com a derrota do movimento das Diretas Já, comemorariam a
eleição presidencial indireta de Tancredo Neves e se entrisceceram com a sua morte antes
da posse.

Pra frente, Brasil: censura e crítica na ditadura militar


Ao analisarmos a produção cinematográfica brasileira sobre a ditadura militar,
percebe-se que foram lançados vários longas-metragens que abordavam temas polêmicos
como a guerrilha e a tortura ainda durante o mandato do presidente João Figueiredo
(1979-1985). Os pioneiros foram dois filmes pouco lembrados pelo público e crítica nos
dias de hoje: Paula – A história de uma subversiva, de Franscisco Ramalho Jr., e E agora,
José? Tortura do sexo401, de Ody Fraga, ambos de 1980. Mas o primeiro longa-metragem
sobre o período que foi sucesso de público e recebeu grande destaque na mídia foi Pra
frente, Brasil (1983),de Roberto Farias. Além do orçamento considerado elevado para a
época (Cr$ 35 milhões), da produção e distribuição da Embrafilme e da presença de atores
famosos por participarem de novelas da Rede Globo (Reginaldo Farias, Antônio Fagundes,
Carlos Zara, Cláudio Marzo, Natália do Vale, Elizabeth Savalla), contribuiu para o sucesso
o fato de o filme ter sido liberado após meses interditado pela censura.
Antes de Pra Frente, Brasil, Roberto Farias dirigiu filmes de prestígio como Assalto
ao trem pagador (1962) e sucessos de bilheteria como Roberto Carlos em ritmo de
aventura (1968), Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa (1970), Roberto Carlos a 300

401Para Leme (2013, p.18), o filme “[...] ficou pouco conhecido por pertencer ao âmbito da Boca do Lixo, a
uma modalidade de cinema cuja produção e consumo pode ser denominada de ‘marginal’, já que se realizava
à margem do circuito cinematográfico ‘oficial’, socialmente consagrado. Essas características também
podem ter colaborado para a liberação do filme pela censura, pois E agora, José, em sua precariedade de
produção, ficaria circunscrito ao público da Boca do Lixo, formado por consumidores de cinema erótico;
não concorreria em festivais nacionais e internacionais e não seria ‘digno’ de debates, não tendo
repercussão na imprensa.”

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quilômetros por hora (1971) e Trapalhões no Alto da Compadecida (1987), sendo este o
seu último trabalho para o cinema até o presente momento. Na Rede Globo, dirigiu
minisséries como As noivas de Copacabana (1992), Memorial de Maria Moura (1994) e
Decadência (1995). Irmão de Reginaldo Farias (protagonista de Pra frente, Brasil), ele
também presidiu a Embrafilme402 de 1974 a 1979.
Foi no Festival de Cinema de Gramado, em março de 1982, que ocorreu a primeira
apresentação pública de Pra Frente, Brasil. Venceu o prêmio de Melhor filme (Roberto
Farias) e Melhor montagem (Roberto Farias e Mauro Farias). O filme também foi
agraciado com o Prêmio da “Associação dos Cinemas de Arte da Europa” de Melhor Filme
no Festival de Berlim, Prêmio da Crítica no Festival Íbero-Americano de Huelva, na
Espanha, e o Troféu “Margarida de Prata”, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB). Após receber pareceres favoráveis a liberação, a diretora do DCDP/DPF (Divisão
de Censura de Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal), Solange Maria
Teixeira Hernandes, interditou Pra frente, Brasil. A justificativa foi o Decreto nº
20.493/46, mais especificamente o artigo 41, que proibia a exibição caso o conteúdo fosse
“capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades
e seus agentes.” Numa entrevista cedida a revista Veja, Roberto Farias se manifestou à
respeito dos motivos da interdição de Pra Frente, Brasil:

[...] chegaram a acusá-lo de integrar um ‘movimento subterrâneo’ de


desestabilização do governo. Nunca pretendi isso, nem conheço qualquer
filme que fosse capaz disso. Nunca pertenci a nenhum grupo ou partido
político e tive de provar que sou uma única pessoa e que realizara um
filme. (1983, p.3)

De acordo com Miguel (2007 p.132),

[...] o filme Pra Frente Brasil deve ser compreendido como uma obra de
inegável valor estético e como uma versão da História que adaptou
parcial ou livremente algumas memórias sobre um período dramático do
nosso passado. Sendo uma obra de ficção, seu autor possuí licença para

402Criada em 1969, a Empresa Brasileira de Filmes S/A (Embrafilme) era uma entidade de economia mista
na qual a União era a maior acionista. De acordo com Amancio (2007, p.173), durante os anos de 1970 e
1980 foi instaurado um “[...] projeto de um cinema financiado essencialmente pelo Estado, de cunho
nacional e popular, distante de uma independência estética, e majoritariamente voltado para a busca de
uma eficiência mercadológica.” Quando a Embrafilme foi extinta pelo presidente Fernando Collor, em 1990,
a produção e distribuição de filmes no Brasil sofreu uma diminuição drástica.

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expressar opções e pontos de vida próprios. Por isso, como qualquer


outra produção artística ou intelectual, o filme deve ser submetido a
análises críticas.

A ampliação das fontes no campo da história foi uma das principais características
no decorrer no século XX. De acordo com o Rosenstone (2010, p.16-17), “O desejo de
expressar a nossa relação com o passado usando formas contemporâneas, bem como o
desejo de agradar uma sensibilidade contemporânea, mais cedo ou mais tarde tinham de
nos direcionar para as mídias visuais.” Os historiadores que se dedicam a aprofundar a
relação entre o cinema nacional e a ditadura possuem uma extensa lista de filmes que
podem ser incorporados fontes de pesquisa. Além de Pra frente, Brasil, podemos citar
como exemplos os seguintes filmes: Que bom te ver viva (1989), Lamarca (1994), O que é
isso, companheiro?(1997), Ação entre amigos (1998), Cabra cega (2005), O Ano em Que
Meus Pais Saíram de Férias (2006) e Batismo de sangue (2007).
Dentre os historiadores que abordaram a relação entre cinema e a História, Marc
Ferro é certamente um dos mais destacados. Para ele, maioria dos cineastas

[...] evitaram cuidadosamente a abordagem frontal dos problemas


políticos. Eles os abordaram de viés. Quer se trate do fascismo, do
nazismo, do comunismo stalinista, os sucessos mais impressionantes dos
cineastas procederam sempre a encenação de uma experiência
particular: a de um casal, de uma família, etc. É por isso que nos fazem
participar de uma tragédia e sentir o que pode ter disso o terror. (2010,
p. 220)

Ao analisarmos a sinopse de Pra frente, Brasil, é possível perceber que o filme


utiliza a mesma abordagem citada por Ferro. Baseado no argumento “Sala escura”, de
Reginaldo Farias e Paulo Mendonça Filho, a história, roteiro e diálogos de Pra frente, Brasil
são creditados ao diretor Roberto Farias. O filme inicia com uma cena familiar: Jofre Godoi
da Fonseca – chefe de família de classe média e, segundo suas palavras, apolítico – se
despede da esposa e de seu irmão e embarca num avião. A situação toma rumos
inesperados quando Jofre aceita dividir o táxi com um homem que conhecera no voo.
Perseguidos por homens armados, o desconhecido é baleado e morre. Já Jofre é
sequestrado e severamente torturado por um grupo clandestino de combate à luta
armada. Esta é, portanto, a história de um homem que estava “na hora e local errado.”

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Dessa forma, a questão da aleatoriedade traz um elemento de identificação para o público:


qualquer um poderia ser confundido com um subversivo e torturado pela repressão.
Talvez a maior crítica que os historiadores podem fazer sobre Pra Frente, Brasil403
refere-se ao retrato da repressão desvinculada das engrenagens do Estado autoritário. Os
torturadores de Jofre (liderados pelo “Dr. Barreto”) eram militares ou policiais civis
encarregados de combater a guerrilha? Não são fornecidas respostas. Pode-se concluir,
inclusive, que são grupos paramilitares que agem à revelia das Forças Armadas. Ao se
referir ao combate a luta armada, no livro Ernesto Geisel, o ex-presidente afirmou que

Achava que era um conflito que era preciso enfrentar. Achava que era
uma questão que tinha que ser liquidada. O Brasil não podia estar vivendo
situações como a de meia dúzia de esquerdistas seqüestrarem um
embaixador! Ou roubarem bancos! [...] Havia líderes tradicionais, como
Marighella. Mais tarde surgiu Lamarca, com suas guerrilhas, e que teve de
ser liquidado. Era essencial reprimir. Não posso discutir o método de
repressão: se foi adequado, se foi o melhor que se podia adotar. O fato é
que a subversão acabou. (1997, p.223-224)

O uso sistemático da tortura como forma de obter informações era de


conhecimento das autoridades da época. Entretanto, o retrato que o diretor Roberto
Farias faz da repressão é cuidadoso em vista das implicações políticas do Brasil de 1982.
Em Pra frente, Brasil as Forças Armadas não são responsabilizadas por atos de tortura ou
qualquer outro crime praticado durante o período ditatorial contra os guerrilheiros. Em
sua única cena no filme, um major se mostra indignado com o sequestro de seu sobrinho,
ou seja, se posiciona contra os métodos violentos da repressão.
Mas um aspecto interessante que o filme aborda é a participação dos civis na
manutenção do aparato repressivo, uma vez que o auxílio financeiro do empresariado
brasileiro foi essencial. Conforme Gaspari (2014, p.64), foi realizado no segundo semestre
de 1969 um almoço com o empresariado paulista que contou com Delfim Netto, ministro

403O título do filme é o mesmo da canção composta por Miguel Gustavo e que foi o Hino da Copa do Mundo
de 1970, no México: Noventa milhões em ação/Prá frente Brasil, do meu coração/Todos juntos vamos prá
frente Brasil/Salve a seleção!!/De repente é aquela corrente prá frente/Parece que todo Brasil deu a
mão!/Todos ligados na mesma emoção/Tudo é um só coração!/Todos juntos vamos prá frente Brasil!/Salve
a seleção!!/Todos juntos vamos prá frente Brasil!/Salve a seleção!!/Gol!//Somos milhões em ação/Prá
frente Brasil, no meu coração/Todos juntos vamos prá frente Brasil/Salve a seleção!!/De repente é aquela
corrente prá frente/Parece que todo Brasil deu a mão!/Todos ligados na mesma emoção/Tudo é um só
coração!/Todos juntos vamos prá frente Brasil/Salve a seleção!! Todos juntos vamos prá frente Brasil.

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da Fazenda entre 1967 a 1974: “Sentaram-se à mesa cerca de quinze pessoas.


Representavam os grandes bancos brasileiros. Delfim explicou que as Forças Armadas
não tinham equipamento nem verbas para enfrentar a subversão. Precisava de bastante
dinheiro”. Foi graças ao financiamento da elite empresarial que a Operação Bandeirantes
recebia refeições congeladas (Supergel), carros (Volkswagen, Ford) e empréstimos de
caminhões (Ultragaz), entre outras facilidades404. O empresariado agia dessa forma
porque temia o avanço de ideias de caráter comunista e que a luta revolucionária lograsse
êxito. Sob a couraça de patriotas, defendiam seus interesses econômicos.
Para Attiná (p. 577-578), a guerrilha pode ser definida como um

[...] tipo de combate caracterizado pelo choque entre formações


irregulares de combatentes e um exército regular. Os objetivos por ela
perseguidos são mais políticos que militares. A destruição das
instituições existentes e a emancipação social e política das populações
são, de fato, os objetivos precípuos dos grupos que recorrem a este tipo
de luta armada.

Percebe-se que os personagens principais de Pra frente, Brasil não são


guerrilheiros. Mesmo apaixonado por Mariana e com uma posição política de crítica a
ditadura, Miguel se recusa a aderir ao pedido de aderir à clandestinidade. Do ponto de
vista historiográfico, a esquerda armada não teve condições reais de tomar o poder no
Brasil, seja pela pouco apoio da população, a eficiência dos mecanismos de repressão ou
o número limitado de membros, armamentos e esconderijos. O cenário da guerrilha
urbana representada em Pra Frente Brasil não deixa maiores esperanças para seus
participantes: seus membros são caçados e mortos. Em um determinado momento, a
guerrilheira Mariana, que até então era uma seguidora fervorosa da luta armada, propõe
a Miguel que ambos deixem o país e retornem quando o ambiente político estiver mais

404De acordo com Souza (2000), um homem que utilizava o codinome de Gama 10 tinha livre acesso às
dependências do DOI-Codi e intermediava as ofertas de ajuda: “As gratificações chegavam como salário
complementar, emprego paralelo, vantagens pessoais e ajuda de materiais [...] Tudo funcionava como
estímulo para o empenho e a dedicação desses homens do poderoso aparelho repressivo instalado na Casa
da Vovó [...] Empresários [...] comprometiam-se a financiá-los. Os valores eram secretos, mas suficientes
para a autonomia financeira de muitos. Havia apoios paralelos, visitas e até almoços reservados com
simpatizantes dos métodos empregados que iam ao local ‘dar uma força’ para os militares e civis do DOI-
Codi. (2000, p.13)

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favorável. Assim como Batismo de sangue, Pra frente, Brasil não retrata os guerrilheiros
como próximos de alcançar seus objetivos e sim acossados pelo perigo da repressão.
A execução do ex-patrão de Miguel, um empresário que colabora com repressão, é
inspirado num caso real que foi abordado no documentário Cidadão Boilesen (2009), que
inclusive conta com a participação de Roberto Farias. O foco é o envolvimento do
empresário dinamarquês Henning Boilesen, presidente da Ultragás no começo dos anos
1970, que colaborava financeiramente para a OBAN e o DOI/CODI e tinha o hábito de
assistir a sessões de tortura. Ele foi executado a tiros por membros da Ação Libertadora
Nacional (ALN) e o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) em 15 de abril de 1971.

Considerações finais
Inicialmente, abordamos questões relacionadas ao contexto histórico do Brasil no
governo de João Figueiredo, como o fim do bipartidarismo, a crise econômica e os
atentados cometidos pela direita, com destaque para o incidente ocorrido no Riocentro.
Em seguida, abordamos aspectos específicos sobre o filme de Roberto Farias: a biografia
do diretor, os prêmios recebidos e a polêmica sobre a sua interdição. Produzido pela
Embrafilme e lançado sob o olhar da censura, Pra frente, Brasil evita uma crítica frontal ao
governo federal: a repressão não é creditada ao Estado e sim a grupos clandestinos que
são financiados pela burguesia nacional. Os métodos dos agentes envolvem
principalmente o uso desmedido da violência. Não são mostradas investigações, ou seja,
eles são truculentos e também incompetentes, uma vez que sequestram e matam um
inocente. Já a luta armada é mostrada como uma batalha na qual os jovens personagens
parecem constantemente acossados pelas forças policiais. Após o confronto final com o
grupo que sequestrou Jofre e a morte do Dr. Barreto, os guerrilheiros são assassinados.
A perspectiva histórica de Pra frente, Brasil sobre a ditadura militar está
totalmente distanciada do ufanismo que marcou o período do chamado “Milagre
econômico”. Mesmo com um enredo ficcional, o filme assume uma posição que não pode
ser definida como de alinhamento ao governo militar (tanto que foi censurado), mas que
é comedido ao abordar a repressão e as Forças Armadas. O que fica nítido é a condenação
do uso da violência por parte dos agentes que combatiam a guerrilha urbana e
assassinaram Jofre. Neste sentido, a hipótese de pesquisa se mostrou correta: não é uma
crítica contundente ao governo militar, mas propõe questões que podem gerar debates

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sobre como o cinema interpreta os “anos de chumbo”. Passado mais de trinta anos do seu
lançamento, Pra frente Brasil é uma tentativa válida de produzir um cinema de cunho
político vigoroso e que também pode ser considerado um bom entretenimento

Referências bibliográficas

ATTINÀ, Fulvio. Guerrilha. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,


Gianfranco. Dicionário de política. Tradutor João Ferreira, Carmem C. Varriale. Brasília,
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Janeiro, v.8, n.15, p.173-184, jul./dez. 2007. Disponível em:<
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2009, 1 dvd (92 min.), son., p&b e color.

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3 ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.

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FERRO, Marc. Cinema e História. Tradução: Flávia Nascimento São Paulo: Paz e Terra,
2010.

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. 2.ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

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cinematográficas sobre o regime militar brasileiro. São Paulo: Unesp, 2013.

MARANGONI, Gilberto. Anos 1980, dácada perdida ou ganha? Desafios do


desenvolvimento.

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2012. Ano 9. Edição 72. Disponível em:


<http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2
759:catid=28&Itemid=23.Acesso >. Acesso em: 20 fev. 2017.

MIGUEL, Neliane Maria Ferreira. Do “milagre” à “abertura”: aspectos do regime militar


revisitados através de uma análise do filme Pra Frente Brasil. Dissertação (Mestrado),
Universidade Federal de Uberlância –UFU, Uberlândia, MG, 2007.

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ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. Tradução de Marcello


Lino. São Paulo: Paz e Terra, 2010

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INTELECTUAIS NEGROS/AS NA DITADURA CIVIL MILITAR VERSUS O


APAGAMENTO DA POPULAÇÃO NEGRA NA COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE

Tairane Ribeiro da Silva*

“A democracia racial brasileira talvez exista, mas em relação ao negro inexiste.” (RATTS;
NASCIMENTO,2007, p.94) Assim pensava a intelectual negra Maria Beatriz do Nascimento
sobre o mito da democracia racial predominante no país e fortemente defendida no
discurso dos ditadores no período da ditadura civil militar no Brasil. Para que seja
possível compreender o objetivo central desta pesquisa, que visa mostrar o apagamento
da população negra nas páginas do relatório da Comissão Nacional da verdade, publicado
no ano de 2014, pretendo mostrar intelectuais negras e negros contemporâneos a
ditadura civil-militar que denunciavam em suas obras o mito da democracia racial, a
repressão e o racismo contra a população negra em território nacional, trazendo a tona o
que era proibido falar: que certamente o Brasil não era a terra da harmonia racial tão
defendida pelo Estado e alguns autores cânones da época.
Para esta pesquisa trago três intelectuais negras e negros para contrapor o
discurso do Estado em prol do mito da democracia racial, que são: Abdias do Nascimento,
Lélia Gonzalez e Maria Beatriz do Nascimento. Eu poderia ter trazidos tantos outros tão
importantes na luta antirracista quanto estes intelectuais, mas acredito que eles tenham
muito fatores em comum que fazem com quem seja evidente a atuação da população
negra neste período e que um documento oficial não foi capaz de visibilizar e dar o devido
reconhecimento a esta parcela da população brasileira. É importante ressaltar aqui a
importância social e histórica do intelectual perante a sociedade para uma melhor
compreensão dos processos históricos com o passar do tempo e o autor contextualiza bem
dizendo que,

Conforme as relações de produção capitalista vão se intensificando e


tornando a vida social mais complexa observa-se maior envolvimento
dos intelectuais com os destinos das sociedades, chamando para si a

*Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Bolsista CNPq. Contato: < tairanee@yahoo.com.br>

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responsabilidade de dar respostas aos conflitos decorrentes desse


processo de intensificação e complexidade do mundo social. Tal cenário
é típico do século XIX com a emergência da classe trabalhadora e de suas
formas de representações como sindicados e associações, as disputas
entre as nações capitalistas por áreas de exploração econômica, a
intensificação dos conflitos entre capital e trabalho e do vertiginoso
processo de urbanização e da técnica, afetando diretamente a vida dos
indivíduos (CORREA, 2015,p.397).

Abdias do Nascimento nasceu em 1914, formado em economia pela Universidade


do Rio de Janeiro em 1938. Foi o fundador do Teatro Experimental do Negro no ano de
1945, com a proposta de formar um grupo teatral só com atores negros e negras, mas que
consequentemente foi expandido suas atividades em prol da alfabetização e
enaltecimento da cultura afro brasileira entre negras e negros no Rio de Janeiro
(DOMINGUES, 2007). Com a ditadura instaurada no Brasil, Abdias acabou sendo um
exilado político, indo para os Estados Unidos no ano de 1968, onde lá foi professor imérito
em diversas universidades americanas entre os anos de 1970 e 1980 e ao retornar ao
Brasil no final dos anos de 1980 com a Lei de Anistia, Abdias atua no Movimento Negro
Unificado e consequentemente entra para a carreira política, elegendo-se como deputado
e depois senador. Abdias faleceu no ano de 2011, deixando grandes obras e contribuições
nas questões de quilombismo, genocídio da população negra, racismos, mito da
democracia racial, entre outras questões.

Abdias do Nascimento

Lélia Gonzalez nasceu em 1935, formada em história, geografia e filosofia pela


Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, possuía doutorado em antropologia e foi
professora da universidade Federal do Rio de Janeiro. Lélia foi uma feminista negra, atuou
nas questões relacionadas às mulheres negras onde criou uma organização de mulheres
negras no Rio de Janeiro no final da década de 70, a fim de discutir questões que só

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poderiam ser debatidas com suas iguais. Lélia publicou vários artigos, periódicos,
entrevistas em jornais, além de dar palestras internacionais em universidades, congressos
relacionadas a mulher negra (RATTS, 2010). Uma de suas obras em destaque foi publicada
em parceria com o pesquisador argentino Carlos Hasenbalg chamado Lugar de Negro,
publicado no ano de 1982. O livro traz contribuições sobre a questão da população negra
nos anos de chumbo, de repressão, além de falar do movimento negro brasileiro. É
importante ressaltar que a mesma foi uma das idealizadoras do Movimento Negro
Unificado, fundado em 1978 e foi ativista deste movimento até o fim de seus dias. Lélia
faleceu no ano de 1995 em decorrência de problemas de saúde.

Lélia Gonzalez

Maria Beatriz do Nascimento nasceu em 1942 na cidade de Aracaju, mudando-se


para o Rio de Janeiro com a família na esperança de uma vida melhor. Beatriz formou-se
em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e durante sua graduação estagiou
no Arquivo Nacional com o importante historiador José Honório Rodrigues. Perto de
concluir sua pós-graduação em História na Universidade Federal Fluminense, Maria
Beatriz do Nascimento produz sua obra mais importante e de maior circulado que é seu
filme, chamado Ori, lançado no ano de 1981 sob direção da socióloga e cineasta Raquel
Gerber que fala sobre a trajetória de vida de Maria Beatriz para mostrar como se dava as
vivencias de comunidades negras (RATTS, 2007). Foi uma pesquisadora importante no
que tange as questões da história e cultura negra no Brasil, além de tratar das questões
dos quilombos. Maria Beatriz do Nascimento como muitas mulheres negras teve sua vida
tirada por conta do machismo, ao defender sua amiga do companheiro violento, sendo
assassinada por ele no ano de 1995.

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Sobre suas produções acadêmicas pouco se sabe ou são de difícil acesso, porém no
ano de 2007 o professor doutor e antropólogo Alex Ratts lançou a biografia sobre a vida
de Maria Beatriz do Nascimento intitulada Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de
Beatriz do Nascimento, onde estão reunidas todas as obras da pesquisadora como artigos,
periódicos e seus poemas todos relacionados às questões raciais, da população negra,
mito da democracia racial e questões sobre uma nova maneira de pesquisar os sujeitos
negros.

Maria Beatriz do Nascimento

A questão é: O que estes intelectuais negras e negros têm em comum e por qual
razão decidi trabalhar a partir de suas ideias? Primeiramente é importante ressaltar que
estes intelectuais estavam inseridos no espaço acadêmico e produzindo pesquisas em
prol das temáticas raciais e da população negra no período da ditadura civil-militar, além
de acadêmicos todos eles eram ativistas e militantes do movimento negro. Eles
denunciavam em suas obras a questão do mito da democracia racial, discurso defendido
pelo Estado e reproduzido na sociedade brasileira com a ilusão de que brancos, negros e
indígenas viviam em verdadeira harmonia e paz. Nesse sentido, Abdias do Nascimento
trás de maneira genial como era pautada a questão da democracia racial no Brasil

“Devo observar de saída que este assunto de “democracia racial” está


dotado, para o oficialismo brasileiro, das características intocáveis de
verdadeiro tabu. Estamos tratando com uma questão fechada, terreno
sumamente perigoso. Ai daqueles que desafiam as leis deste segredo!
Pobre dos temerários que ousarem trazer o tema á atenção ou mesmo á
análise cientifica! Estarão chamando a atenção para uma realidade social
que deve permanecer escondida, oculta” (NASCIMENTO, 1978,p.47).

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Trazer à tona a questão do mito da democracia racial é crucial para que se entenda
as relações raciais no Brasil e compreender as fortes repressões policias sofridas pela
população negra no período em questão. Nesse sentido abordo neste trabalho o quão
prejudicial foi (e ainda é) a perpetuação desse discurso até mesmo no que tange as
questões de políticas de reparação, como é o caso do relatório final da Comissão Nacional
da Verdade que é minha fonte principal de analise para este trabalho. A proposta da
criação de uma Comissão da Verdade é de apurar graves violações de direitos humanos
em países que passaram por governos ditatoriais, além de ser uma medida de reparação
do Estado com suas vitimas (WEICHERT, 2014).
Aqui no Brasil, a CNV publicou seu relatório final no ano de 2014, com a proposta
de reparar familiares das vitimas mortas e desaparecidas em decorrência da repressão da
ditadura civil-militar. O relatório está dividido em três volumes, onde no primeiro volume
tem a proposta de apresentar a Comissão Nacional da Verdade como a criação, as
atividades que foram realizadas, além de uma contextualização histórica do período da
ditadura civil-militar. O segundo volume fica encarregado de apresentar os textos
temáticos com as graves violações de direitos humanos sofrida por diversas camadas
sociais brasileiras e o terceiro e último volume trás a lista de mortos e desaparecidos que
totalizam em 434 mortos e desaparecidos. Neste trabalho eu utilizo o segundo volume do
relatório que trás a lista de textos temáticos com relação as violações de direitos humanos,
onde trago na imagem abaixo o sumário para que seja visível o esquecimento da Comissão
Nacional da Verdade de abordar as violações de direitos humanos com relação a
população negra:

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Fonte: Retirado do índice do volume 2 do Relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Fica evidente ao analisar o índice o esquecimento da população negra nesta


reparação feita pela CNV e nos leva a perceber que mais uma vez a história do negro no
Brasil é invisibilizada, pois ao não se debater as violações de direitos humanos com a
população negra, automaticamente há uma anulação a toda uma parcela da população que
assim como todas as outras que estavam vivendo e sobrevivendo a um regime ditatorial,
sofrendo fortes repressões e participando ativamente na luta contra a ditadura brasileira.
Ao fazer uma busca pelo relatório com a palavra chave “negro” a única menção que se faz
é sobre a questão do movimento negro de forma genérica, como se negras e negros da
época organizavam-se apenas nos movimentos negros espalhados pelo Brasil afora, além
de enquadrar os negros como minorias, assim como as mulheres, o movimento LGBT,
como mostro na imagem abaixo:

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Fonte: Retirado da página 301 do volume 2 do Relatório da Comissão da Verdade.

O esquecimento proposital da reparação a população negra nada mais é o que


Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez e Maria Beatriz do Nascimento abordavam em suas
obras, é o mito da democracia racial homogeneizando as raças e reiterando o discurso de
que todos são iguais e que o racismo não existe no Brasil. Lélia Gonzalez fala bem desta
questão da pacificação do Estado sob a população negra, corroborando que houve sim,
uma forte violação de direitos humanos a negras e negros em todos os períodos históricos
e na ditadura civil - militar brasileira, dizendo que

O golpe militar de 1964 procurou estabelecer uma “nova ordem” na


sociedade brasileira já que, de acordo com aqueles que o desencadearam
“o caos, a corrupção e o comunismo” ameaçavam o país. Tratou-se, do
estabelecimento de mudanças na economia mediante a criação do que foi
chamado de um novo modelo econômico em substituição ao anterior. Mas
para que isso se desse, os militares determinaram que seria necessário
impor a “pacificação” da sociedade civil. E a gente sabe o que significa esse
termo, pacificação, sobretudo na história de povos como o nosso: o
silenciamento, a ferro e fogo, dos setores populares e de sua
representação política. Ou seja, quando se lê “pacificação”, entenda-se
repressão (GONZALEZ, 1982, p.11).

Considerações finais

Negras e negros por muito tempo foram utilizados apenas como objetos de
estudos, o que acabou por retirar desses sujeitos seu papel agencia e ação. Apagamentos
e silenciamentos de nossas histórias como já foi mencionado ao longo do trabalho não são
sem querer e como ficou evidente nas linhas deste artigo, é que houve e ainda há um

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ISSN 2527-1148

discurso bem enraizado na cultura brasileira de um mito da democracia racial que é


prejudicial a uma parcela da população: a população negra brasileira. A ditadura civil-
militar brasileira fez números imensuráveis de vitimas e algumas ainda ficaram no
esquecimento em documentos oficiais, relatórios finais.
Logo julgo importante trazer para a academia o nome destes intelectuais negros,
que foram tão importantes para a construção de uma nova imagem do negro brasileiro,
que contribuíram para enaltecer a cultura negra no país, porém pouco se fala e logo não
são tão estudados quanto intelectuais brancos. Nesse sentido, falar e citar seus nomes e
suas obras é uma forma de contrapor um discurso oficial, combater os silenciamentos, os
esquecimentos que tendem a prejudicar a trajetória da população negra, de negros e
negras que lutaram, resistiram e sobreviram na ditadura civil-militar brasileira e como já
dizia o autor Haroldo Costa,

Cada vez que há um endurecimento, um fechamento político, o negro é


atingido diretamente porque todas as suas reivindicações particulares, a
exposição de suas ânsias, a valorização de sua história, desde que não
sejam feitas segundo os ditames oficiais, cheiram à contestação
subversiva (COSTA, 1982, p.16-17).

Referencias Bibliográficas:

COMISSÃO, Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014.

CORREA, Rubens Arantes. OS INTELECTUAIS: QUESTÕES HISTÓRICAS E


HISTORIOGRÁFICAS–UMA DISCUSSÃO TEÓRICA. Sæculum–Revista de História, n. 33, p.
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NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo


mascarado. Editora Paz e Terra S/A. Rio de Janeiro, 1978.

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“A ARTE DE FAZER” POLÍTICA: O USO DO CONCEITO DE TÁTICAS DE


CERTEAU PARA A ANÁLISE DAS CAMPANHAS ELEITORAIS FEMININAS

Valdenia Guimarães e Silva Menegon

Introdução
O presente artigo é resultado das discussões travadas no Curso de Doutorado em
História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS e do Programa de
Concessão de Bolsas de Iniciação Científica para Instituições de Ensino Superior Privadas
da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do
Maranhão – FAPEMA em parceria com a Faculdade de Ciências e Tecnologia do Maranhão
– FACEMA, no qual é desenvolvido um estudo sobre a propaganda utilizada por
candidatas eleitas ao legislativo de Caxias, estado do Maranhão nas eleições de 2004, 2008
e 2012. Importante enfatizar que o presente artigo é apenas um recorte da pesquisa que
ainda está em andamento e que traz resultados preliminares do estudo.
O artigo utiliza os trabalhos de Michel de Certeau, de modo especial, a obra “A
invenção do cotidiano”, deslocando a pesquisa para o enfoque dos conceitos de
estratégias e táticas, assim como as análises referentes às estruturas narrativas alinhadas
aos discursos, observando que estes sempre levam o sujeito a algum lugar.
Certeau se mostra um importante teórico nos estudos do cotidiano, e, portanto, das
pesquisas em âmbito regional ou local. O objetivo do trabalho é analisar, através do
conceito de táticas, um dos mecanismos utilizados pelas mulheres para o ingresso no
legislativo municipal. O mecanismo analisado é o jingle publicitário.
Este é um produto de cunho publicitário, cuja palavra deriva do inglês e se trata de
música feita para promover uma marca, produto ou pessoa (no caso as campanhas
eleitorais) em publicidades veiculadas em carros de som, rádio e/ou televisão. O jingle
publicitário tem como objetivo seduzir o público. No geral são curtos e possuem letras e


Doutoranda do programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia do Maranhão, FACEMA. Contato:
< valdeniamenegon@hotmail.com>

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melodias simples, no intuito de promover a rápida memorização e que sejam


inconscientemente lembradas por aqueles que as escutam.
Os estudos de Certeau se constituem uma importante ferramenta na análise sobre
estratégias e táticas usadas no campo da política, assim como em relação às pesquisas
acerca das práticas cotidianas. Utilizar Certeau para avaliar os mecanismos usados pelas
mulheres para o ingresso no legislativo, ao mesmo tempo em que se constitui como um
desafio, também é uma perspectiva inovadora de analisar os percursos usados pelo
feminino para garantir a ocupação desse lugar.
De modo especial, em âmbito local, a participação política das mulheres aparece
por variadas vezes como uma bricolagem diante da especialização masculina na arte de
fazer política. O artigo analisa jingles de campanhas eleitorais de 2012 de três candidatas
eleitas para o legislativo municipal para o pleito 2013-2016. A saber: Thaís Coutinho405,
Irmã Nelzir406 e Ana Lúcia Ximenes407.

Estratégias e táticas em Certeau


Michel de Certeau é o tipo de teórico com erudição em áreas diversas, daí a
variedade de temáticas à qual se dedicou. Uma das mais marcantes características desse
autor relaciona-se com a capacidade de buscar o conhecimento esquecido pela ciência da
história, o que ele denominava de saber morto (estudo sobre o passado), muitas vezes
relegado a fatos não narrados pela história.

405 Thaís Coutinho é natural de Caxias, está no terceiro mandato no Legislativo municipal; é sobrinha do
atual presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão; Filha do atual prefeito do município de
Matões; sobrinha da ex-deputada Cleide Coutinho. Entrou na política representativa a partir da indicação
do pai e do tio. Anterior ao mandato de Caxias foi vereadora em Matões, MA.
406 Irmã Nelzir é natural de Aldeias Altas, no Maranhão. Está no segundo mandato. É esposa do ex-vereador

Irmão Assis. Lançou candidatura após o mandato do marido. Foi indicada por ele nas eleições de 2012.
407 Ana Lúcia Ximenes é natural de São João da Serra no Piauí, teve dois mandatos. Foi a primeira mulher

presidente da Câmara Municipal de Caxias. É esposa do vereador Antônio José Ximenes, que teve seu
primeiro mandato em 1989, acumulando em seguida mais outras quatro legislaturas, sendo substituído por
Ana Lúcia na campanha eleitoral de 2004. Ela permanece na legislatura um mandato e é novamente
substituída por Ximenes na eleição de 2008. Ela retoma à Câmara Municipal em 2013, elegendo-se
presidente da Câmara, mas ao fim do mandato, deixa a legislatura e Ximenes é eleito para o seu sexto
mandato de vereador em Caxias.

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Certeau é conhecido pela densidade de suas produções que provoca aqueles que
se interessam por compreender sua teoria, rica para os estudos das ciências humanas e
de modo especial sobre temas relacionados ao cotidiano e ao estudo da religião.
A noção desenvolvida pelo autor sobre as questões relativas a lugar, tempo, táticas
e estratégias compõem-se de forte teor de análise de diversas práticas envolvendo grupos
e pessoas. Nesse sentido, a operação historiográfica é marcada pelo tempo que é analisado
– o passado morto e o lugar ocupado por aquele que escreve: o historiador. Esta relação é
intermediada pela escrita. É em função do lugar ocupado pelo historiador que são
definidos seus métodos e técnicas de pesquisa. A escrita, por sua vez, é uma operação que
provoca uma clivagem de textos, incluindo sua organização e direção, que passa da
desordem à ordem, no intuito de garantir uma inteligibilidade.
Já os conceitos de táticas e estratégias aparecem a partir do estudo sobre consumo,
no entanto é possível fazer uma série de inferências a partir do seu significado. Táticas se
constituem em mecanismos engendrados a partir do cotidiano e se estruturam por meio
da antidisciplina (capacidade inventiva de indivíduos fracos de se posicionarem diante
das normas da sociedade) e de operações multifacetadas e fragmentadas organizadas por
pessoas que não possuem um lugar específico, mas que agem em função do outro.
As estratégias são concebidas a partir de um lugar específico, sendo estruturadas
a partir:
[...] do cálculo das relações de força que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder [...] pode ser isolado. [...]
toda racionalização estratégica procura em primeiro lugar distinguir de
um ‘ambiente’ um ‘próprio’, isto é, o lugar de poder e do querer próprios”
(Certeau, 1998, p. 99).

Nesse sentido, os conceitos de táticas e estratégias se fazem bons elementos para


os estudos relacionados à participação das mulheres na política representativa, já que
estas têm se lançado na política partir de mecanismos tradicionais de participação, de
modo especial a partir da indicação familiar.

O uso do gênero como ferramenta de diferenciação de candidaturas de mulheres


Ao fazer a análise sobre as formas de inserção das mulheres na política
representativa, observa-se que estas utilizam operações específicas para o fazer política.
Para Certeau (1998, p. 92), as táticas “não obedecem à lei do lugar”, nesse caso, o lugar é

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o legislativo, que tem se constituído como um espaço masculino por excelência. O lugar se
refere à ordem segundo qual se distribuem elementos nas relações de coexistência,
representando, portanto, a configuração instantânea de posições.
O legislativo é esse lugar, caracterizado pelo debate, campo de disputas e de poder,
bem como de decisões que interferem na vida das pessoas. Já a Câmara Municipal é o
espaço em que legisladoras e legisladores se cruzam, movem-se. “É animado pelo
conjunto de movimentos que aí se desdobram”. Esse espaço é o lugar praticado. O lugar
relaciona-se à posição ocupada pelos indivíduos em um dado espaço.

[...] o Legislativo é reconhecido como um campo de poder produtor de leis


e normas determinantes de modos de viver, comportamentos e ações
públicas que garantem mudanças ou não nos modelos estabelecidos. É
também responsabilidade do Legislativo garantir os anseios da
população através da formulação de leis e controle das ações do
Executivo, assegurando recursos para implementação de políticas
públicas, de forma a viabilizar solução de problemas e medidas capazes
de superar os dilemas da sociedade. Nesse espaço de poder, os embates
políticos se dão através de articulações partidárias, que envolvem
diferentes interesses, nem sempre explícitos. (FERREIRA, 2009).

A Câmara representa tanto o espaço geométrico (físico, real, concreto) quanto o


espaço antropológico (subjetivo, abstrato e fenomenológico). “O espaço é o meio
homogêneo onde as coisas estão distribuídas segundo dimensões e onde elas conservam
sua identidade, a despeito de todas as mudanças de lugar” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.
10).
Em âmbito municipal, a Câmara é o Poder Legislativo, com funções de legislar,
fiscalizar os atos do Executivo e da administração dos seus serviços. Compõe-se de edis
eleitos (as) diretamente para uma legislatura de quatro anos. É um órgão colegiado,
deliberado pelo Plenário, administrado pela Mesa Diretora e dirigido pelo (a) presidente.
Para o ingresso nesse lugar, as mulheres têm utilizado táticas, representadas pelo
que se costuma chamar de um jeito feminino, estilos ou maneiras de fazer (política),
tirando partido das características que estão social e culturalmente associadas ao fato de
serem mulheres. Essas “maneiras de fazer criam um jogo mediante a estratificação de
funcionamentos diferentes e interferentes” (CERTEAU,1998, p. 92).
Neste sentido, reafirma-se o pensamento de que as mulheres, ao adentrar o espaço
da política, utilizam como prerrogativa, o fato que são, “por natureza”, mais ligadas aos

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afazeres domésticos e familiares, aos cuidados com as crianças enquanto os homens são
mais racionais, e, portanto, mais próximos dos cidadãos.
De acordo com Guionnet (2002), a mulheres são chamadas a abraçar a disputa
eleitoral pela necessidade de renovação das práticas políticas e são indicadas pelos dotes
que, supostamente, estão atrelados ao feminino:

[...] Là où les femmes expliquent qu’elles sont plus proches des citoyens,
plus humaines et plus pragmatiques parce qu’elles s’occupent des
enfantes, entretiennet les relations familiales et doivent mener une
double vie de labeur (domestique et remunere), les ouvriers vantaient
leurs qualités de travailleurs énergiques, honnêtes, simples,
désintéressés, généreux et dévoués.

Deste modo, a prática feminina, no modo de fazer política estaria mais próxima da
humanidade, do zelo, apresentando na sua proposta política, o fato de que estão mais
próximas das causas sociais e destacando como experiência, a participação anterior em
campanhas políticas dos esposos, pai ou outra liderança do sexo masculino.
Isso corrobora com a afirmativa de FERREIRA (2010), de que no geral, se considera
“que o fato de vivermos numa sociedade vista sob a ótica do masculino tende a nos fazer
pensar a sociedade tendo o homem como sujeito”. O próprio de Certeau.
Dessa maneira, as mulheres candidatas criam para si um espaço no jogo, maneiras
de utilizar a ordem imposta do lugar ou da língua. Sem sair do lugar onde tem que viver e
que lhe impõe uma lei, ele aí instaura pluralidade e criatividade. (Certeau, 1998, p. 92-93).
Ainda não imbuídas de poder propriamente dito, já que este tem sido associado
aos homens, as mulheres usam de táticas, que é, segundo Certeau, “a ação calculada que é
determinada pela ausência de um próprio”, isto é, as mulheres muitas vezes são usadas
como candidatas nos momentos de crise, quando há a necessidade de renovação das
figuras e dos discursos políticos, “a ausência do próprio”, que se configura variadas vezes
pela impossibilidade do cônjuge, pai, tio, concorrerem à disputa eleitoral.
Neste sentido, podemos entender que quando lançadas como candidatas, as
mulheres o são pela ausência do próprio (marido, irmão, pai, tio), o que intitula uma
estratégia daquele que exerce o poder: “apontam para a resistência que o estabelecimento
de um lugar oferece ao gasto do tempo”. Já quando estão na posição de candidatas em si,
as mulheres usam de táticas que “apontam para uma hábil utilização do tempo, das

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ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder”
(CERTEAU, 1998, p. 102)
Deste modo, as mulheres, ao que parece, não possuem meios para se manterem no
poder a não ser quando estão apoiadas em uma figura masculina. Neste sentido, elas “não
têm, portanto, a possibilidade de dar a si mesmas um projeto global nem de totalizar o
adversário num espaço distinto, visível e observável” (CERTEAU, 1998, p. 102). Ainda que
pesem seus projetos e suas redes de sociabilidades, as mulheres ainda dependem muito
da projeção política garantida pelos laços de parentesco ou de conjugalidade.
Ao entrarem na disputa eleitoral as mulheres costumam focar em características
consideradas femininas, ligadas, principalmente ao cuidado, à competência, à
determinação, à honestidade, ao pertencimento a determinada família considerada
tradicional na região ou sua ligação pessoal (pai, marido, tio) com determinado político já
com carreira consolidada.
Aqui aparece o conceito de tática:

[...] procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo – às


circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em
situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização
do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um ‘golpe’, aos
cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos (CERTEAU,
1998, p. 102).

Dentre os materiais de campanhas usados, os jingles políticos são os mais fáceis de


serem disseminados entre a população, já que possuem um apelo simples com o sentido
de chamar a atenção das pessoas de forma rápida e popularizar a candidatura.
Dentre as mensagens usadas em jingles de campanhas femininas em Caxias,
Maranhão, as mais utilizadas estão os que enfocam a força da mulher. Entrelinha, fica
subentendido que a identidade desta mulher deve ser copiada pelos seus seguidores
(eleitores e eleitoras). A utilização dos pronomes “eu”, “meu”, “seu”, “minha”, incorpora a
identidade dos demais à candidatura da mulher. É o caso do jingle de Thaís Coutinho:
Vamos lá Caxias/ na palma da mão/
Eu voto 40888/
Seu sorriso amigo/ seu jeito aguerrido/eu sou Thais/
É gente da gente/ tem simplicidade/ eu sou Thais/
Coração de mãe/ amiga leal/ eu sou Thais/
Com sua alegria/ seu jeito de ser/ eu sou Thais/
Por seu trabalho/ por sua luta/ eu sou Thais/

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É mulher de verdade/ tem dignidade/ eu sou Thais (Jingle Campanha


Thais Coutinho – eleições 2012)

Percebe-se também no jingle a incorporação das características que parecem ser


inerentes à própria candidata, pelos seus eleitores: “Seu sorriso amigo/ seu jeito
aguerrido/eu sou Thais”. Pelo fato de ser pessoa simples, “gente da gente”, a candidata
sai da sua classe social de origem (a elite econômica e política do município) para assumir
a classe social do povo, o que abarca o universo de seus eleitores, expressados na
simplicidade e na alegria.
O apelo presente no jingle remonta às características relacionadas ao feminino
(dignidade, amiga, mãe, aguerrida, alegria). Do mesmo modo, a propaganda vinculada à
candidatura de Nelzir Oliveira Costa Queiroz ao legislativo enfatiza, além do gênero, a fé:
11222 Nelzir/ 11222 vou votar/
Nelzir!!!/Mulher de ação/mulher guerreira/
Coração de mãe/ mulher verdadeira/
Suas mãos não se cansam de ajudar/
O povo carente e sofrido/ irmã conte comigo/
em você eu vou votar/
11222 Nelzir/ 11222 vou votar/
Sua coragem/ seu trabalho a gente quer/
Nelzir mulher de fé/
Sua luta/jamais desistir/
para Câmara de Caxias melhorar/
Fé, compromisso e ação. (Jingle Campanha Irmã Nelzir – eleições 2012)

Os atributos ligados ao feminino podem ser claramente observados na canção. Ser


mãe, mulher, ter fé, passam a ser equivalentes a qualidades que precisam ser destacadas
pelas mulheres ao disputar cadeiras no legislativo municipal. A vinculação a uma política
assistencialista aparece nos jingles aportam no trecho “suas mãos não se cansam de
ajudar”. Aqui parece um caráter messiânico vinculado às irmandades religiosas.
Esse caráter de irmandade aparece como uma singularidade da candidata
conhecida como “irmã Nelzir”. O apego ao espiritual, à fé a diferencia dos demais
candidatos, ao tempo em que forja um compromisso político de ação e transformação.
Irmã Nelzi tenta mostrar que seu caráter de envolvimento em uma manifestação
religiosa, posta a partir de seu nome de candidatura "Irmã", é usado como apelo espiritual
à fé, que poderá provocar um diferencial em sua proposta de candidatura, uma vez que,

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quem está mais próximo de Deus, em tese, poderá incorrer em menores riscos de pecar,
já que pessoas com envolvimento religioso "não pecam", "não erram" ou “eram menos”.
É possível perceber uma similaridade entre as mensagens veiculadas nos dois
jingles anteriores, a idealização de uma mulher perfeita, capaz de melhorar a situação do
espaço, nesse caso, o município de Caxias.
O jingle também faz um apelo ao lócus onde a campanha é realizada: o Município.
A mensagem atrela a luta da candidata à sua vinculação com a terra natal. “Vamos lá
Caxias/ na palma da mão/Eu voto 40888”, ou ainda “Sua luta/jamais desistir/para
Câmara de Caxias melhorar”.
Outra característica poderosa utilizada nas campanhas é a vinculação das
candidatas a cargos políticos anteriormente exercidos ou sua vinculação profissional:
saúde, educação ou ainda pode exaltar seu grupo religioso de origem. No caso de Thais
Coutinho, vincula-se a figura da candidata ao fato de ser mãe, mulher, leal, simples,
próxima dos eleitores.
No jingle da campanha de Ana Lúcia Ximenes, é perceptível a vinculação ao
consorte e padrinho político, além do fato de ter exercido o cargo de gestora na Secretaria
Municipal da Mulher.

Ana Lúcia fez o seu trabalho/


o Ximenes continuou/
agora está de volta para continuar o seu trabalho/
70888 é Ana Lúcia/
70888 para o trabalho continuar/
Ana Lúcia é o nome certo para Caxias melhorar/
Em defesa da educação/
isso eu quero e você também quer/
Ana Lúcia é a força da mulher/
Ana Lúcia é mais saúde/
Ana Lúcia é educação/
Ana Lúcia é a voz do povo e respeito ao cidadão/
70888: Faça o seu voto valer/
70888 vamos vencer/
No dia 7 de outubro/
vote Ana Lúcia Ximenes/
A força da mulher/
70888, vamos vencer/
vamos votar para valer. (Jingle Campanha Ana Lúcia Ximenes – eleições
2012)

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A mensagem apresentada também aponta para espaços de arregimentação de


eleitores (trabalhadores da educação e saúde, já que a mesma é funcionária pública),
fazendo alusão ainda à ideia de cidadania ou respeito ao cidadão.
Há um clamor que sugere que a candidata é do povo, que fará ouvir sua voz através
dela. “Isso eu quero e você também quer. Ana Lúcia é a força da mulher”. A ideia aqui é
trazer para o grupo político da candidata, o eleitor que busca melhorias em políticas
públicas específicas: educação e saúde.
Outro elemento que aparece é o apego ao local, enfatizando sempre “Caxias”, tendo
como foco, a permanência ou a mudança. No caso de Thais Coutinho e Ana Lúcia é
apresentada uma lógica de permanência. A primeira ligada ao mandato anteriormente
exercido e que necessita de continuidade e no segundo caso, o trabalho do marido que
necessita continuar, agora na figura da mulher. No caso de Irmã Nelzir, aparece a lógica
da mudança.
Os jingles repassam a ideia de construção de uma imagem onde as candidatas
eleitas projetam um autoretrato no qual são impressas as qualidades que se imagina
inerente ao político (honestidade, força, trabalho, fé, ajuda, alegria), o que caracteriza a
tentativa de garantir o sucesso da empreitada eleitoral.
Nos discursos, prevalece a vinculação com o sobrenome da família ou do marido
(conjugalidade), aqui tido como o principal capital simbólico utilizado pelas candidatas
eleitas para o legislativo municipal: “Ana Lúcia fez o seu trabalho/o Ximenes
continuou/agora está de volta para continuar o seu trabalho”.
As três candidatas analisadas e eleitas para o legislativo em 2012, apesar de
usarem o gênero como diferenciação em relação aos demais candidatos, não apresentam
em seus jingles, proposições vinculadas à luta pela igualdade entre homens e mulheres.
Isto reflete, de modo geral, a atuação defendida pelo grupo político da qual fazem parte
ou dos padrinhos políticos.
A adoção do gênero como diferenciação é explícito em suas campanhas eleitorais.
As três candidatas, usam o fato de serem mulheres como algo que as difere dos demais
candidatos, enfatizando características que a sociedade atrela ao feminino. A marca de ser
mulher está presente na definição da imagem divulgada nas campanhas femininas.
O discurso enunciado representa uma disputa de poder. O espaço político está
ligado às disputas de poder. Isso é algo que pode ser observado nos jingles: as candidatas

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não oferecem proposições de modificações de problemas sociais, ou de forma mais direta,


repostas às demandas apresentadas pelo feminino, ao contrário, não são apresentados
ideais políticos, nada que possa sustentar a ciência política hoje, a não ser a disputa pelo
poder.
Nesse sentido, as peças de publicidades, incluindo os jingles, buscam apenas
apresentar a imagem das candidatas, favorecendo o perfil de mulher batalhadora, voltada
à ajuda, ao auxílio, ao zelo como mãe, características que se voltam para o estatuto
definido pela sociedade como algo inerente ao feminino.
Desse modo, percebe-se uma forte vinculação ao gênero feminino, com a
valorização de atributos social e culturalmente atribuídos às mulheres, apontando estas
características como um predicado positivo das candidaturas de mulheres.
Percebe-se uma proximidade entre as mensagens veiculadas pelos jingles de Thais
Coutinho e Irmã Nelzir, onde as características atribuídas ao sexo feminino são bastante
exaltadas. Já na publicidade de Ana Lúcia Ximenes ocorre um distanciamento desses
atributos, reforçando características que no geral são vinculadas ao masculino: trabalho,
força, cidadania.
Nos jingles vinculados pela candidata Irmã Nelzir, o elemento que fica em
evidência é a fé, repetida em vários trechos: “fé”, “mulher de fé”, “irmã”, bem como o
caráter assistencial pautado na “ajuda” aos irmãos.
Ana Lúcia é a única a utilizar o sobrenome político do esposo Ximenes. Este é
apresentado como aquele que anteriormente deu prosseguimento ao seu trabalho feito
no mandato de 2005 a 2008, quando foi vereadora e este deve ser então retomado a partir
da nova candidatura.

Conclusão
A análise da participação política das mulheres possui diferentes vieses. Certeau
se constitui um importante teórico na compreensão dos mecanismos utilizados pelas
mulheres para a ocupação de espaços de poder e decisão.

Há evidências que levam a crer que, na indicação de candidaturas femininas se


constituem três tipos de lugares: a) lugar de poder: a propriedade de um próprio – ou no
caso, quem indica a candidatura feminina; b) lugares teóricos: sistemas e discursos

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totalizantes, ou seja, as falas e qualidades atribuídas às candidatas através do material de


campanhas, incluindo os jingles e; c) lugares físicos: onde as forças se distribuem, no caso
específico, a arena eleitoral que se converte na tentativa de ocupar cadeiras no legislativo.
Quanto aos jingles, estes apresentam como tática chegar o mais próximo possível
do eleitorado, sendo música de fácil e rápido entendimento. No caso das candidaturas
femininas, estes apresentam maneiras de fazer política atreladas ao universo feminino,
exaltando características atribuídas às mulheres: mãe, amiga, fé, dignidade.

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PARTE 7

PATRIMÔNIO E MEMÓRIA NA/DA CIDADE

Daniel Luciano Gevehr


Isabel Cristina Arendt
Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos

A cidade é um campo de estudos muito rico para os estudiosos da memória


e do patrimônio o. Elas se dão a ver e permitem sua leitura de muitas formas, o que
pode ser feito por especialistas de diversas áreas. Neste contexto, propomos um ST que
quer falar das cidades a partir de suas memórias e de seu patrimônio material e imaterial,
ligados ou não à imigração. Assim pessoas, festas e comemorações, lugares de memória
como escolas e professores, bares, praças, monumentos ou mesmo lembranças de sabores
e odores serão bem recebidos neste seminário temático.

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A COLUNA PRESTES 60 ANOS DEPOIS: DISPUTAS EM TORNO DO


PASSADO E CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA REGIÃO DAS
MISSÕES DO RIO GRANDE DO SUL

Amilcar Guidolim Vitor*

Introdução

Analisar questões relacionadas à memória e às expressões do patrimônio cultural


é antes de tudo verificar a necessidade de empreender uma discussão semântica destas
definições do que é memória ou patrimônio. Tal necessidade está relacionada ao fato de
que estes termos são empregados em diferentes situações e áreas do conhecimento,
especialmente nas ciências humanas e sociais.
Para a análise que aqui iremos desenvolver, trataremos os campos da memória e
do patrimônio tomando-os como parte de um universo de disputas ideológicas, politicas,
simbólicas e de representações sociais do passado, buscando entender como a memória
e o patrimônio são construídos socialmente a partir de interesses e disputas do presente.
Entendemos estes termos sob uma perspectiva histórica que os transformam em um
campo de litigio a partir do entendimento distinto que determinados grupos sociais fazem
de eventos e personagens do passado, ativando-os, representando-os e negociando com
este passado tendo em vista fazer lembrar e legitimar ou silenciar e negar.
Dessa forma, trataremos destas questões analisando o caso do Memorial Coluna
Prestes inaugurado no município de Santo Ângelo na região noroeste do Rio Grande do
Sul, - também conhecida como região das Missões em função de seu passado Jesuítico –
Guarani dos séculos XVII e XVIII, - em 1996, baseando-se nos acontecimentos da Coluna
Prestes na década de 1920, que teve em Santo Ângelo e região acontecimentos
importantes naquela que viria a ser uma marcha pelo interior do Brasil em oposição aos
governos dos presidentes Artur Bernardes e Washington Luís, percorrendo
aproximadamente vinte e cinco mil quilômetros em dois anos e três meses, entre outubro
de 1924 a fevereiro de 1927.

*Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa


Maria – UFSM; Professor do Departamento de Ciências Humanas da URI – Campus Santo Ângelo. Contato:
amilcar_vitor@yahoo.com.br.

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A idealização e implantação do Memorial Coluna Prestes foi um processo que


envolveu disputas entre grupos políticos que reconheciam e ao mesmo negavam a
importância do passado da Coluna Prestes em Santo Ângelo e na região das Missões,
especialmente influenciados por suas bases ideológicas que entendiam o passado da
Coluna Prestes ou da militância politica de Luiz Carlos Prestes de maneiras distintas.
Dessa forma, esses grupos representaram o passado da Coluna e o Memorial Coluna
Prestes conforme suas bases ideológicas, legitimando o Memorial como um espaço de
memória e patrimônio ou o contrário. Por meio de canais de representação se tinha um
passado a ser lembrado ou esquecido.

Memória e patrimônio: campos semânticos e litigiosos


No processo de escrita da história, o historiador se depara com conceitos e
definições que assumem diversos sentidos e significações, diferenças de interpretações
ou aplicação destes termos em determinadas situações. Especialmente quando se
trabalha com definições de cultura, identidade, tradição, memória e patrimônio há que se
levar em consideração que tais termos constituem-se em campos semânticos, dada a sua
aplicabilidade em diferentes áreas do conhecimento.
Neste contexto, tanto a palavra memória quanto patrimônio compõe um léxico
contemporâneo de expressões cuja característica principal é a multiplicidade de sentidos
e definições que a elas podem ser atribuídos (FERREIRA, 2006, p. 79). Assim, antes de
produzir qualquer tipo de discussão no que se refere a estes termos é necessário
especificá-los e retirá-los de uma macro análise que pode comprometer o sentido do que
se está tentando problematizar. Além do mais, “son conceptos complejos, ambíguos, y
polisémicos; porque son construcciones sociales cuyos significados cambiam
dependendo de la época, el tempo histórico y según quienes los empleen y para que fines
los utilicen” (AREVALO, 2004, p. 925).
Para a análise e discussão aqui proposta, entendemos a memória e o patrimônio
no campo da história como o resultado de um processo de disputas e de construção social
que tem por objetivo dar legitimidade a um passado em que se recorre com a intenção de
representar e reafirmar a sua importância em um universo local e regional. Para tanto,
analisamos o caso da implantação de um espaço de memória voltado a Coluna Prestes no
município de Santo Ângelo no noroeste do Rio Grande do Sul, o que veio a suscitar

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disputas em torno da memória e do lugar de memória criado, o Memorial Coluna Prestes,


inaugurado em 1996, com a intenção de constitui-lo em patrimônio cultural local e
regional. Nesse caso, ao mesmo tempo em que se ativou a memória do passado da Coluna
Prestes e se construiu um lugar de memória a ser patrimonializado, também se negou
tudo isso, o que também evidencia uma disputa em torno do passado a partir do processo
de produção de representações sociais acerca deste passado. Chartier (2002, p. 66) refere
que: “representar é fazer conhecer as coisas imediatamente pela ‘pintura de um objeto’,
‘pelas palavras e pelos gestos’, por algumas figuras, por algumas marcas – como os
enigmas, os emblemas, as fábulas, as alegorias”.
Para o autor as representações sociais podem ser concebidas como algumas das
respostas que as coletividades dão aos seus conflitos, divisões e opiniões manifestadas
distintamente, constituindo uma força reguladora da vida cotidiana e coletiva, pois é no
centro das representações e dos imaginários que o problema da legitimação do poder e
da afirmação dos grupos se encontra. Aqueles grupos que conseguem definir os canais de
representação, inclusive a interpretação atribuída ao passado, também detém o poder de
impor a visão e a divisão do mundo social que melhor lhes convém (POMMER, 2009, p.
46).
No que se refere às concepções teóricas acerca da memória torna-se
imprescindível destacar sua importância como elemento de influência no processo de
estabelecimento e representações de acontecimentos, personagens ou expressões do
patrimônio cultural. Sendo amplamente assediada através de discursos de diferentes
grupos ou instituições, a memória pode afirmar, alterar ou criar concepções que dizem
respeito a eventos do passado rememorados no presente, estabelecendo, dessa forma, a
relação entre passado e presente. (LE GOFF, 1996, p. 204).
A memória coletiva é amplamente regulada, tanto pela oralidade quanto pela
escrita para demonstrar a sua aceitação, ou não, em relação aos seres atuantes da
sociedade e suas ideologias. De acordo com a ideia de Halbwachs (2006, p.32): “É comum
que imagens desse tipo, impostas pelo meio em que vivemos, modifiquem a impressão
que guardamos de um fato antigo, de uma pessoa outrora conhecida”. A tentativa de
influenciar a memória coletiva faz parte de um processo que tem por finalidade atuar no
imaginário através das representações produzidas pelos diferentes grupos da sociedade.
Esses aspectos são sentidos frequentemente em relações que fazem parte dos embates

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pelo poder, principalmente o político. Conforme Le Goff (1996, p. 426) a memória coletiva
foi colocada como um importante instrumento na luta das forças sociais pelo poder.
Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações
dos grupos sociais e as ativações ou esquecimentos são mecanismos da memória coletiva.
Ainda sobre a memória coletiva, Nora (apud LE GOFF, 1996, 472) a define como sendo “o
que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado”.
Na relação que se estabelece entre memória e patrimônio Guillaume apud Candau
(2016, p. 158-159) defende que o patrimônio funciona como um aparelho ideológico da
memória, pois a conservação sistemática dos vestígios serve de reservatório para
alimentar as ficções da história que se constrói a respeito do passado. Na mesma linha,
Poulot apud Candau (2016, p. 159) afirma que a história do patrimônio é a história da
construção do sentido de identidade e dos imaginários de autenticidade que inspiram as
políticas patrimoniais. Assim, o relicário da memória se transforma em um relicário de
identidade que se busca no passado. (CANDAU, 2016, p. 159).
De acordo com Dias (2006, p. 50) o patrimônio cultural simboliza a identidade
cultural de uma comunidade, sendo a expressão mais explícita desta, pois ao se
identificarem com determinada expressão do patrimônio os membros de um grupo social
se filiam a um mesmo agrupamento, compartilhando significados e símbolos e facilitando
a produção de identidades coletivas. A memória é instância construtora e cimentadora de
identidades mediante a seleção do que se recorda e do que, consciente ou
inconscientemente, se silencia. (CATROGA, 2015, p. 74). Nesse sentido, é importante
pensar as questões que envolvem a memória no que se refere à Coluna Prestes e a
construção social do Memorial Coluna Prestes como patrimônio cultural, tendo em vista
que foi um processo litigioso em que grupos sociais buscaram evidenciar e representar o
passado da Coluna distintamente, ora o legitimando, ora o negando, tentando silenciá-lo.
Dando-nos suporte para essas afirmações em relação aos lugares de memória,
Pierre Nora vem afirmar que estes são criados porque não há memória espontânea. Eles
são construídos, pois o que defendem apresenta-se ameaçado e sem vigilância
comemorativa. A história rapidamente os varreria. Para o autor, se realmente vivêssemos
as lembranças que os lugares de memória envolvem eles seriam inúteis. E, também, se a
história não se apoderasse deles para transformá-los, eles não se tornariam lugares de
memória (NORA, 1993, p. 13). Cabe ao Historiador encontrar os lugares ativos para

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reencontrar os discursos dos quais estes lugares foram os suportes. O que faz o lugar de
memória é que ele seja um entroncamento onde se cruzaram diferentes caminhos de
memória, de modo que somente ainda estão vivos os lugares retomados, revisitados,
remodelados. (HARTOG, 2015, p. 165).
François Hartog (2015, p. 193), trata o patrimônio como uma espécie de alter ego
da memória, questionando o que se tem chamado de patrimonialização no que se refere
às políticas de memória, idealização e construção social do patrimônio cultural nas
últimas décadas. De acordo com ele, se inventariou todo tipo de novos patrimônios e se
declinaram novos usos do patrimônio. Assim, se percebe o quanto o patrimônio se tornou
um instrumento não apenas de afirmação e reafirmação de identidades, mas também um
instrumento político e alvo de disputas políticas. Cabe inserir nessa discussão, os escritos
de Llorenç Prats (1997, p. 20) acerca do patrimônio como o resultado de um processo de
construção social. De acordo com ele, o patrimônio não existe na natureza, não é algo dado
e nem um fenômeno universal, mas um artificio idealizado por alguém em lugar e
momento para determinados fins.
Em se tratando de invenção e da construção do patrimônio, Prats destaca que não
são processos antagônicos, opostos, mas fases complementares. De acordo com ele,
invenção se refere, sobretudo a processos pessoais e conscientes de manipulação,
enquanto a construção social se associa a processos inconscientes e impessoais de
legitimação. Nesse caso, a invenção, para se arraigar e perpetuar necessita converter-se
em construção social. Reside aí o papel importantíssimo que desempenham as
representações sociais como postulou Roger Chartier, na medida em que são capazes de
tornar presente um objeto ausente, principalmente no que se refere ao passado,
legitimando-o como parte essencial de um projeto de nação, de identidade ou como trata
Llorenç Prats, de patrimônio cultural. Segundo Canclini (1999 apud DIAS, 2006, p. 83-
84), o patrimônio cultural deve ser analisado como um espaço, não apenas de unidade,
mas também de disputas materiais e simbólicas entre classes, etnias e grupos sociais.
Portanto, no universo da presente análise, é de suma importância verificar que a
memória e o patrimônio são campos semânticos construídos socialmente de acordo com
interesses específicos de quem pretende representar o passado, tornando-se alvo de um
processo litigioso entre o que se quer lembrar ou esquecer, patrimonializar ou não.

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A coluna prestes na região das missões do Rio Grande do Sul: disputas em torno
do passado, da memória e do patrimônio
A Coluna Prestes foi um movimento rebelde da década de 1920 significativamente
marcante no processo de desestabilização do sistema político da Primeira República. Na
região das Missões do Rio Grande do Sul, assim chamada em função do seu passado
jesuítico guarani dos séculos XVII e XVIII, especialmente nos municípios de Santo Ângelo
e São Luiz Gonzaga o movimento rebelde que deu origem a Coluna Prestes foi articulado
e organizado por Luiz Carlos Prestes, então capitão engenheiro do exército que havia sido
transferido para Santo Ângelo depois de revoltas tenentistas408 ocorridas em julho de
1922 no Rio de Janeiro.
Em Santo Ângelo Luiz Carlos Prestes liderou as ações rebeldes em outubro de 1924
a partir de outros levantes tenentistas iniciados em julho do mesmo ano, principalmente
em São Paulo. Prestes sublevou o 1º Batalhão Ferroviário deslocando-se e concentrando
seu efetivo rebelde na cidade de São Luiz Gonzaga, também na região das Missões do Rio
Grande do Sul. Posteriormente, grupamentos de outras guarnições que também se
rebelaram no estado vieram a São Luiz Gonzaga onde o efetivo rebelde do Rio Grande do
Sul foi organizado.
Em 1925 rebeldes do Rio Grande do Sul e de São Paulo reuniram-se no Paraná e a
partir dali formou-se um movimento de oposição ao presidente Artur Bernardes que tinha
como grande objetivo destitui-lo do poder e promover aquilo que chamavam de
moralização da politica brasileira. Para tanto, o movimento passou a empreender uma
marcha pelo interior do Brasil, a qual teve a duração de dois anos e três meses. Entre
outubro de 1924 e fevereiro de 1927, os rebeldes do movimento que passou a ser
denominado e conhecido como Coluna Prestes, principalmente em alusão a um dos seus
principais lideres, Luiz Carlos Prestes, percorreram aproximadamente vinte e cinco mil
quilômetros passando por todas as regiões do Brasil até se exilar na Bolívia.
Passados mais de 70 anos do fim da marcha da Coluna Prestes foi inaugurado em
Santo Ângelo, em dezembro de 1996, o Memorial Coluna Prestes, espaço dedicado a
rememorar, representar e demarcar a cidade de onde teria partido a marcha da Coluna

408O movimento Tenentista se desenvolveu principalmente a partir de 1922 em oposição aos governos dos
presidentes Epitácio Pessoa e, posteriormente, Artur Bernardes. Levava esta denominação pelo fato de seus
participantes serem, em sua maioria Tenentes e Capitães do Exército. (PRESTES, 1997, p. 69).

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Prestes em 1924. Porém, houve muitas disputas em torno do passado, das memórias e do
patrimônio oriundo da Coluna Prestes, o que evidencia o quanto são significativas estas
questões das relações entre passado e presente para que possamos compreender os
impactos que isto possui nos discursos, nos imaginários, na criação de espaços voltados
para a construção e representação das memórias e do patrimônio cultural.
Quando da inauguração do Memorial Coluna Prestes, o Prefeito da época e um dos
idealizadores do projeto era o senhor Adroaldo Mousquer Loureiro, do Partido
Democrático Trabalhista – PDT. Loureiro recorda que “[...] como prefeito, inclusive eu
conversava muito com a Gládis (Diretora do Museu Municipal) sobre isso. Resgatar essa
história toda que é uma coisa importante, pra cultura, até mesmo pro próprio turismo
nosso [...]”. 409
Apesar de na década de 1990 a democracia estar restabelecida, havia ainda a
manifestação contrária de grupos políticos quanto aos assuntos ligados à Coluna Prestes
e a Luiz Carlos Prestes, especialmente pelo fato de Prestes ter sido uma das principais
figuras politicas do Partido Comunista Brasileiro – PCB durante mais de quatro décadas.
Em 1984 Prestes esteve em Santo Ângelo para um evento em rememoração aos 60 anos
da Coluna Prestes, o qual ficou marcado por forte embate entre setores políticos que ora
apoiavam a figura politica de Prestes, ora o repudiavam por sua ligação com o comunismo.
A vinda de Prestes a Santo Ângelo acontecia em um período marcado pelo processo
de transição do regime militar para a redemocratização política no Brasil. Dessa forma, as
disputas políticas entre setores que divergiam estavam acirradas em todo território
nacional. É neste contexto em que Prestes foi convidado a vir até Santo Ângelo. “A
iniciativa de convidar Prestes para um encontro em Santo Ângelo foi idealizada,
inicialmente, pela Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos de Santo Ângelo (SENASA)
[...]”(MEIHY; BIAZO, 2002, p. 13). O objetivo do encontro com Prestes era o de evidenciar
as obras de infraestrutura realizadas por ele quando de sua atuação como capitão
engenheiro em Santo Ângelo entre 1922 e 1924. Entretanto, tendo em vista o contexto
social da época e a importância política de Luiz Carlos Prestes, o evento acabou ganhando
proporções maiores.

409Arquivo de Entrevistas do Centro de Cultura Missioneira (CCM), de Santo Ângelo/RS. Depoimento oral
concedido por Adroaldo Mousquer Loureiro à Claudete Boff e Dione Mello Lenz, em 06/11/1998.

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Dessa maneira, o evento que era para discutir assuntos ligados à engenharia,
passou a ser direcionado para outro tema, o qual teve como foco e objetivo rememorar os
acontecimentos revolucionários de 1924 e que deram origem a Coluna Prestes, através
das palavras do próprio Luiz Carlos Prestes. Tal evento passou a ser divulgado como
“Coluna Prestes – 60 anos depois”. Se inicia neste momento a iniciativa de grupos políticos
da sociedade santo-angelense em utilizar a representatividade política de Prestes, pois,
“[...] aquele era um momento em que a presença de Prestes era requisitada em vários
lugares do Brasil, por várias instituições, meios de imprensa e intelectuais, preocupados
com os desdobramentos políticos do país [...]”(MEIHY; BIAZO, 2002, p. 14). Assim,
começaram a ser produzidas as representações em torno das ações políticas de Luiz
Carlos Prestes. Porém, “[...] era um período, pois, ainda desconfortável para a
implementação de propostas que pretendiam enfrentar os setores conservadores da
sociedade que apoiavam a permanência do regime ditatorial” (MEIHY; BIAZO, 2002, p.
14).
Por outro lado, grupos políticos ligados ao Partido Democrático Social - PDS, eram
a maioria na Câmara de Vereadores do município em 1984. Dessa forma, “[...] o retorno
de Prestes a Santo Ângelo foi, contudo, um evento polêmico em nível local, pois havia sido
marcado pela resistência das alas mais conservadoras da cidade [...]”(MEIHY; BIAZO,
2002, p. 14). A negativa deste grupo ficou explícita quando, “[...] a Câmara Municipal de
Vereadores negou o título de cidadão santo-angelense a Prestes, durante aquela sua visita
a cidade” (MEIHY; BIAZO, 2002, p. 15). Sobre esta negativa, compreende-se por parte
deste grupo político, a produção de uma representação contra Prestes, baseada em sua
atuação política, principalmente frente ao PCB. De acordo com Meihy e Biazo (2002, p.
15): “[...] a petição idealizada pela vereadora Denise Galeazzi e encaminhada, a seu pedido,
pelo vereador Adroaldo Mousquer Loureiro, não tinha conseguido aprovação, tendo
recebido dez votos favoráveis, nove contrários e uma abstenção. [...]”.
Naquela visita de Prestes a Santo Ângelo ficava claro o quanto sua figura politica
era interpretada de maneira controversa e representada conforme grupos políticos
identificavam-se, ou não, com o passado da Coluna Prestes, sua militância politica no
Partido Comunista Brasileiro e com o que ele simbolizava enquanto figura politica na
situação que o Brasil vivia em 1984. Prestes faleceu aos 92 anos em março de 1990.

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Passados aproximadamente dez anos da última vinda de Luiz Carlos Prestes a


Santo Ângelo, iniciou-se uma nova fase de rememoração e negociação com o passado da
Coluna Prestes na cidade. Adroaldo Loureiro, Vereador em 1984 e agora Prefeito de Santo
Ângelo, liderou este processo. Conforme o verificado no periódico Jornal das Missões, em
matéria publicada no ano de 2002: “Apesar da relevância histórica, apenas a partir de
1993, na administração do hoje deputado Adroaldo Loureiro, é que a rica história de
Prestes começou a ser resgatada no município que viu nascer a Coluna Prestes” (JORNAL
DAS MISSÕES, 2002, p. 11).
Após dois anos de atividades voltadas para a viabilização do projeto de
implantação do Memorial Coluna Prestes, o espaço foi inaugurado em 17 de dezembro de
1996, contando com a presença de autoridades municipais, estaduais e federais, como o
prefeito de Santo Ângelo Adroaldo Loureiro, o Governador do Rio Grande do Sul Antônio
Britto e o Senador da República Roberto Freire, além da viúva de Luiz Carlos Prestes,
Maria do Carmo Ribeiro e um dos filhos do casal, Luiz Carlos Prestes Filho, o qual esteve
diretamente envolvido com o projeto. Após o evento, as notícias sobre os atos de
inauguração do Memorial tiveram como principais destaques as palavras das autoridades
e de Luiz Carlos Prestes Filho. De acordo com o noticiado por A Tribuna Regional:

[...] o filho do líder comunista, Luiz Carlos Prestes Filho, leu o manifesto
que seu pai, Capitão Luiz Carlos Prestes, assinou em 28 de outubro de
1924 e que fora o primeiro documento político da sua vida. O Governador
Britto enfatizou que o gaúcho é um povo motivado a construir o seu
futuro e cultivar o seu passado, mas o Rio Grande do Sul somente será
grande se tiver orgulho dos seus ancestrais (A TRIBUNA REGIONAL,
1996, p. 14).

A idealização e criação do Memorial Coluna Prestes tiveram como objetivos, de


acordo com os seus idealizadores, rememorar e homenagear os acontecimentos rebeldes
de 1924 em Santo Ângelo e que deram origem à marcha da Coluna Prestes, além da
importância histórica da figura política de Luiz Carlos Prestes. Como se divulgava na
época: “Este espaço histórico-cultural tem como objetivo homenagear e resgatar um dos
fatos mais marcantes na história do Brasil, servindo como referencial para o seu
conhecimento e divulgação” (TAVARES, 1996, p. 04). Também com a criação do novo

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espaço de memória do município se tinham os objetivos econômicos, através do turismo


que se acreditava iria projetar Santo Ângelo nacionalmente.
Prevendo o aproveitamento cultural do Memorial Coluna Prestes a imprensa
santo-angelense já fazia projeção de como o local seria útil. “Formado pelas duas obras de
arte e mais um completo museu o Memorial santo-angelense se tornará uma visitação
obrigatória para uma vasta legião de pessoas que querem conhecer cada vez mais sobre
a história de Prestes” (JORNAL DAS MISSÕES, 1996, p. 02).
Principalmente o periódico Jornal das Missões, ligado ao Prefeito Adroaldo
Loureiro comemorava os benefícios que o Memorial Coluna Prestes traria para Santo
Ângelo. Tais benefícios não estavam relacionados apenas ao desenvolvimento cultural da
cidade através da valorização do passado em um novo local de memória, mas,
fundamentalmente, tratava-se de benefícios econômicos com o desenvolvimento do
turismo na cidade, agregando novos pontos de referência turística ao município. “O
Memorial não é somente um marco a respeito do fato de que a Coluna Prestes partiu de
Santo Ângelo, mas também já se tornou um dos principais pontos turísticos da nossa
cidade, provando o acerto de sua realização” (JORNAL DAS MISSÕES, 1996, p. 02).
Por outro lado, também houve resistências em relação ao Memorial Coluna Prestes
em Santo Ângelo e essas resistências eram sentidas desde a década de 1980, como já
evidenciado anteriormente quando da vinda de Prestes a Santo Ângelo em 1984. Em
depoimento ao Jornal das Missões, o professor Valmir Muraro, que fez parte da
organização do evento em 1984, relata a ideia que se tinha acerca do comunismo.

Os comunistas eram vistos como pessoas de uma periculosidade até


assustadora. Eu lembro que nas escolas depois de 64, antes do inicio das
aulas a gente rezava pedindo a Deus que nos libertasse das ameaças do
comunismo. As professoras diziam que o comunismo viria tirar os
animais e as terras dos colonos. Certamente esta visão anticomunista
associada à figura de Prestes o transforma num vilão (MEOTTI, 2009, p.
05).

O principal argumento utilizado para representar o Memorial Coluna Prestes como


algo desnecessário para Santo Ângelo esteve vinculado à ideia de que se estaria
desperdiçando dinheiro público para homenagear um comunista, pois, “[...] diziam que se
estava investindo dinheiro público pra uma coisa que não tinha valor. O Prestes,

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comunista, a Coluna, era um bando de arruaceiros, enfim, eram contra a democracia.


Depreciavam o valor da Coluna e a figura do Prestes”. 410
Apesar de todas as manifestações e representações contrárias, o Memorial foi
inaugurado em dezembro de 1996. Entretanto, aceitar não significa reconhecer o espaço
enquanto expressão do patrimônio cultural de Santo Ângelo, algo que até hoje não é uma
unanimidade entre toda a comunidade santo-angelense. Exemplo disso está expresso nos
escritos de um colunista do jornal A Tribuna Regional, onde o mesmo expressa todo o seu
descontentamento em relação à figura política de Luiz Carlos Prestes e o Memorial Coluna
Prestes.

Para vergonha e repúdio da nação, o nome de Luiz Carlos Prestes, covarde


assassino e vendilhão de sua pátria, é dado a logradouros públicos, por
indicação de autoridades executivas ou de políticos levianos e
oportunistas, sem o menor sentimento de patriotismo. Certamente,
desconhecem a verdadeira história ou esposam ainda filosofias
sanguinárias e ditatoriais. Em nossa querida Capital Missioneira, usamos
e veneramos o nome e a figura de Prestes, para fins turísticos, com o
argumento de que quando iniciou a marcha, hoje denominada “Coluna
Prestes”, este ainda não era militante do comunismo internacional e
defendia ideais, digamos, mais “patrióticos” (MULLER, 2009, p. 06).

Mesmo que o Memorial Coluna Prestes esteja afirmado na cidade de Santo Ângelo
enquanto um espaço de memória, de ressignificação do passado, de usos culturais,
econômicos ou políticos, ele ainda é um espaço em debate, o que gera e pode gerar
representações a favor ou contra o local, evidenciando o quanto a memória e o patrimônio
são campos de litígio, de disputas.

Considerações finais
Os campos da memória e do patrimônio são multifacetados, envolvem uma série
de elementos que devem ser levados em consideração, tendo em vista a abordagem que
se faz acerca destes campos semânticos. Nossa proposta foi buscar compreender estes
campos a partir de uma perspectiva histórica que pudesse evidenciar o quanto o passado
pode ser interpretado, reinterpretado e representado a partir de interesses específicos,

410 Depoimento oral concedido por Adroaldo Loureiro ao autor em 29/12/2011.

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seja de pessoas, grupos sociais e instituições, e o quanto isso pode vir a transformar o
campo da memória e do patrimônio em alvos de disputa por legitimidade.
Entendemos que no caso no caso do passado da Coluna Prestes e do Memorial
Coluna Prestes implantado mais de setenta anos depois dos acontecimentos, as questões
relacionadas à memória histórica da Coluna e da atuação politica de Luiz Carlos Prestes
suscitaram diferentes interpretações e representações acerca deste passado, tendo em
vista fazer lembrar ou esquecer, tudo isso motivado por ideologias e interesses distintos
na memória e no patrimônio que pudesse ser construído socialmente tendo como
referência o passado da década de 1920. Neste caso, ora se representava a atuação
libertária e revolucionária da Coluna Prestes, ora o perigo comunista da figura politica de
Luiz Carlos Prestes.
A memória e o patrimônio ligado a Coluna Prestes em Santo Ângelo e na região das
Missões constitui-se num campo litigioso, onde as representações sociais assumiram um
papel importante no sentido de legitimar o que deveria ser lembrado ou esquecido, o que
poderia ou não tornar-se patrimônio. Provavelmente situações deste tipo são muito
recorrentes na medida em que a memória e o patrimônio são campos construídos
socialmente, selecionados a partir de um processo de negociação com o passado, e na
mesma proporção em que existem memórias e expressões patrimoniais valorizadas,
dimensionadas e transformadas em espetáculo, existem outras silenciadas,
escamoteadas, esquecidas.
Nesse sentido, cabe ao historiador dar visibilidade e analisar estas questões. Muito
mais importante do que hierarquizar memórias e expressões do patrimônio cultural, é
necessário entender como se dá o processo de seleção destas memórias e destes
patrimônios, o que está por trás disso, quem está por trás disso e que impactos isso possui
na construção das identidades e na maneira como as sociedade enxergam seu passado.
Mais do que romantizar a memória e o patrimônio é fundamental entender sua
complexidade enquanto campos de seleção e disputa.

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Regional. Santo Ângelo, 14-15 dez. 1996, p. 07.

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PRÁCTICAS CURATIVAS Y MEDICINA ANCESTRAL EN EL LIBRO DE LAS


RECETAS

Carlos E. Brizuela*

Introduccion
En el Museo Inca Huasi de la ciudad de La Rioja, República Argentina, se encuentra
un texto manuscrito, con tapas de cuero, de 93 páginas, a tinta en papel con sello de agua.
Si bien al final de la última página hay una identificación, de la que podemos distinguir el
nombre “Javier” y un apellido ilegible, consideramos que es de autor anónimo. A este texto
lo llamamos El Libro de las Recetas (LR) ya que su contenido trata de recetas para curar
distintas enfermedades y afecciones, pero también sugerencias para otras cuestiones de
la vida doméstica. Hemos tomado contacto con el LR en nuestras visitas con alumnos de
la cátedra de Historia de la Medicina y Antropología Médica del Instituto Universitario de
Ciencias de la Salud. Del texto LR existe una transcripción realizada por Manuel Barrios,
con la colaboración de los frailes franciscanos que administran el Museo.
Esta tarea exploratoria nos plantea inicialmente algunos interrogantes respecto a
la antigüedad del LR, su autor o autores, motivaciones para escribirlo, destinatarios. No
tenemos las respuestas a estas incertidumbres; más bien, algunas pistas. Sin embargo,
hemos logrado un nuevo conocimiento de la historia de América desde la perspectiva de
las prácticas curativas, las epidemias, la intervención religiosa en la configuración de la
identidad cultural de los pueblos, entre ellos los del noroeste donde se halla La Rioja.

Las practicas curativas en la conquista y colonizacion española


El contenido del manuscrito refiere recetas (indicaciones, prescripciones) de los
elementos que intervienen (vegetales, minerales y/o animales), de cómo se aplican
(procedimientos) y de sus efectos, según la etiología y conocimiento de la enfermedad o
malestar.
Para las almorranas: Toma una visnaga411 y ponla cerca del intestino,
átala con un hilito; también es bueno para otras enfermedades.

*Profesor de Historia de la Medicina, Instituto Universitario de Ciencias de la Salud de la Fundación Héctor


A. Barceló, sede La Rioja.
411 Ammi visnaga: Planta herbácea, de la especie farenógama, de la familia de las apiáceas, de 1 a 1,5 m de

alto. Su uso medicinal es para relajante de las fibras musculares lisas, con un efecto espamolítico, sobre las

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Para los menstruos demasiados: Saumese la mujer con sal tibia y se


sanará. Tome cada mañana sumo de yerbabuena, y agua acebada, que
también es eficaz remedio.

Como vemos, no es una simple indicación empírica. Se trata de un modo de


entender las enfermedades (frías o calientes), derivado del conocimiento hipocrático que
trasmiten los textos médicos de la época.
El manuscrito no está organizado en partes o capítulos; tampoco tiene títulos o
subtítulos. Es posible que se haya escrito en distintas épocas, agregado recetas y
comentarios, tal como lo indican los dos tipos de caligrafía que se observan. Su estilo de
redacción evidencia el propósito de difundir esos saberes, y que ya se observaron en los
textos del médico Alfonso Chirino (1365/1429) en su obra “Menor daño de Medicina”,
quien pretendía alcanzar “un público lo más amplio posible”, en la obra del fraile Agustín
Farfan (1572) y en la del jesuita Juan de Esteneyffer (1712).
Chirino escribe en la obra citada, por ejemplo, una receta para el dolor de
estómago:
Toma flor de lengua de buey e rosas coloradas e flor de cantahueso de
todas partes iguales, cozido en buena miel e fecha electuario; después de
cozido, échenle un poco de anys bien limpio e tome cada mañana un
bocado dello.

En el Libro de las Recetas se ocupa también de:

los que tienen dolor de estómago y lanzan las comidas: Lanzar la comida
es muy mala enfermedad para lo cual se puede tomar semilla de emelda
y tostadas, pues está en la nariz, eso quitará las vascas412 y preservará de
lanzar (vomitar). Tomen orégano verde o seco y pisado bébanlo con agua
y quitará el dolor de estómago y vascas.

Un detalle interesante respecto a la difusión del saber médico de la época también


lo encontramos en el trabajo de Warren, quien afirma que “los recetarios se constituyeron

arterias coronarias y las vías respiratorias y urinarias. Con ella se combaten los cólicos nefríticos, asma
coronaria, arritmias, litiasis urinarias, etc. También es sedante y diurético. Lonicerus escribió que la planta
Ammi era caliente y seca y por lo tanto, podría ser utilizada para las "dolencias frías", destacando su eficacia:
"contra la irritación de estómago y matriz, estimula la orina y el ciclo menstrual". Las semillas de esta planta
también fueron utilizadas para tratar la esterilidad, espasmos en la uretra y piedras en el riñón, tales
dolencias fueron denominadas "dolencias frías". Al largo de los años, la investigación científica ha ido
confirmando estos efectos (www.vogel.es).
412 Vasca: Malestar, impulso a vomitar.

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en el canal clave por medio del cual el material originalmente incluido en historias
naturales y escritos de investigadores llegó a un mayor público como conocimiento
médico práctico y útil”. Menciona este autor los escritos de Bernabé Cobo413, fraile jesuita,
autor de un texto titulado Historia del Nuevo Mundo, algunas de cuyas partes se
difundieron en el Bajo y Alto Perú durante el siglo XVIII bajo la forma de guías médicas
caseras para uso entre los pobres (WARREN, 2009, p. 14-20)
La divulgación del conocimiento y las prácticas curativas locales se encuentra
claramente en el texto del fraile Agustín Farfán, cuyo Tratado de todas la enfermedades …
”está destinado a cirujanos romancistas, barberos sangradores y todos los que estuvieran
apartados de ciudades y pueblos grande”s, según se lee en su portada. Y agrega en el libro
1: “No escribo para ellos, sino para los que están donde no los hay”, y además: “Procuraré
con el favor de Dios ser claro, para que todos me entiendan, y los remedios serán los mas
caseros, porque se puedan hallar y hacer”.
También el jesuita Juan de Esteneyffer escribe Florilegio medicinal de todas las
enfermedades sacado de varios, y clásicos autores, para bien de los pobres y de los que tienen
falta de Médicos, en particular en las Provincias remotas, en donde administran los RR. PP.
Misioneros de la Compañía de Jesús, de donde se deduce que en este texto reúne material
de otros autores y su propósito es de acercar a los jesuitas de distintos lugares de América
el conocimiento médico existente. Recordemos que Esteneyffer era “Coadjutor formado
de la Sagrada Compañía de Jesús” y la publicación de la obra data de 1712. Mas aún: en el
prólogo, Juan Francisco de Castañeda, escribe: A los M. RR. Padres Misioneros de la
Compañía de Jesús de las Provincias del Gran Río Marañón, Amazonas Pax Crhisti. Y añade:
Habiendo llegado á mis manos, á costa de mucha diligencia, un libro medicinal, compuesto,
y trabajado por el fervoroso hermano nuestro Juan de Esteneyffer, que empleó muchos años
en la asistencia de los Padres Misioneros de Cinaloa, de las Provincia de México, donde viendo
la falta de Médicos, y de la medicina, compadecido de las graves necesidades, así de los

413Bernabé Cobo nació en Lopera, España, en 1580, y en 1596 arribó a las islas del Caribe en América,
pasando en 1599 a Lima, donde estudió en el Colegio Real de San Martín. Allí se dedicó a las humanidades
durante dos años, y se integró a la Compañía de Jesús, radicándose en Lima hasta 1609. Cobo se dedicó a
conocer los territorios andinos, donde conoció a curanderos y sanadores, de quienes aprendió las
propiedades de plantas, animales y otros elementos del mundo natural. Residió nuevamente en Lima entre
1613 y 1615; posteriormente se trasladó a Juli, cercana a Titicaca; estudió lenguas quechua y aimará y
estuvo dos años en la región de Collao, trabajando como misionero, al igual que en Cochabamba, Charcas y
Potosí, zonas mineras de auge en la época.

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misioneros, que por la continuación del trabajo, variedad de temples, y alimentos,


experimentan como de los pobres Indios, que puedan aquellas incultas Selvas, donde aún el
nombre de botica se ignora, y el de Médico no se sabe..
De la obra de Esteneyffer, Dn Juan Joseph de Brisuela, a la sazón Protomédico
Decano de la Nueva España, Catedrático en la Universidad de México, Médico de presos
del santo oficio y de Cámara del Duque de Alburquerque, hace una semblanza para
destacar sus virtudes entre las cuales, dice, “el autor llenó la venerable expectación de
Hipócrates …”, y “cumplió los ansiosos deseos de Galeno …”,a la que consultaran el
“Médico más curioso en las Universidades, el mas ejercitado en las Oficinas, el mas
práctico en los Hospitales…”, de lo que se infiere el carácter de divulgación de estas obras.
Finalmente, el propio Esteneyffer explica que curar es parte de la tarea que llevan
a cabo los jesuitas, y cita lo que Cristo le dijo al paralítico. “¿Quieres sanar? No peques
más”. Refiere que al acudir el enfermo al Padre Misionero, encuentra al médico y también
al confesor. Viesca considera que obra de Esteneyffer es de divulgación “de recetas
utilizables por cualquier persona que supiera leer y preparar los ingredientes según las
instrucciones” (Viesca, C. 1996:329)
El manuscrito Libro de las Recetas que guarda el Museo Inca Huasi sería uno de
esos recetarios que circularon en los dominios de los Jesuitas, quienes iniciaron su tarea
evangelizadora en La Rioja hacia la década de 1620-1630, y de donde fueron expulsados
en 1767. Aquí sus posesiones eran haciendas, estancias, el Colegio, la Botica, la iglesia,
abarcando territorios en Nonogasta y las serranías circundantes a esta Capital, las cuales
fueron recibidas y administradas por un corto período por los frailes Franciscanos, y
luego distribuidas por la Junta de Temporalidades.
Además, Warren sostiene que los sanadores tradicionales o practicantes informales
de medicina bien pudieron haber consultado estos escritos médicos (2009: 34), aseverando
que estos recetarios podrían haber pertenecido a coleccionistas de la época. Por otra
parte, estos textos se complementaron entre sí y formaron cuerpos de conocimientos de
diversa procedencia, como parece ser el Nuevo tesoro de pobres de Delgar, el que se
trataría de una compilación resuelta por los propietarios quienes juntaron los textos con el
propósito de consultar diversas tradiciones médicas, en lugar de seguir una sólo (2009: 35).
Por otra parte, y en relación al interés de divulgar en tierras americanas el
conocimiento médico, Matías de Porres, médico de cámara del Virrey del Perú y egresado

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de la Universidad de Sevilla, que llegó a Lima en 1615 integrando la comitiva del virrey,
donde ya estaba el médico Melchor de Amusco, protomédico del virreinato, escribió una
de las primeras obras médicas publicadas en Perú, “Discurso del Sarampión” en 1618414,
año en que ocurre la segunda epidemia, por lo que el Virrey encomendó una “relación
sencilla” sobre los síntomas de la enfermedad y “los posibles remedios”, impresa y
enviada principalmente “a los Corregidores y doctrinantes de todo el distrito (…) para q
estuviesen prevenidos quando el mal fuesse llegando a sus jurisdicciones” (MAR REY
BUENO, 2006, p. 351-352).

Los manuscritos en America


Los manuscritos circularon en América como documentos que contenían el
registro de los hechos narrados por los cronistas de los conquistadores. La obra de Bernal
Díaz del Castillo, quien documentara la conquista de México, es un manuscrito terminado
en 1568, así conocido en España en 1575, y publicada recién en 1632. Francisco López de
Gómara (1511-1564) fue, sin embargo, el redactor de los hechos contados por Hernán
Cortez sobre la conquista de México, y cuya tarea le ocupó entre 1542 y 1554, siendo
capellán y secretario del conquistador. La Historia General y Conquista de México fue
publicada en Zaragoza en 1552 por primera vez, y aunque su autor no conocía el Nuevo
Mundo, las descripciones de las batallas y ocupaciones tienen un gran mérito literario. Por
su parte, Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdez (1478-1557), publica “Sumario” en 1526,
conteniendo la descripción de las cosas que había visto en América, y luego una primera
parte de “Historia General y Natural de las Indias, Islas y Tierrafirme del Mar Océano” en
Sevilla, en 1535. Consta de 20 libros referidos a la agricultura, los árboles fructíferos, los
árboles silvestres, los árboles y plantas de uso medicinal, las hierbas y semillas que se
trajeron de España, de los animales de las islas y de los que trajeron de España, de los
animales acuáticos, de las aves, etc.
No podemos dejar de lado al “Libellus de medicinalibus indorum herbis”
manuscrito del indígena Martín de la Cruz, en nahualt, y traducido al Latín por Juan
Badiano, otro indígena que, como el primero, estaba incorporado al colegio religioso. Este

414En 1589 se declaró una epidemia de sarampión en los territorios de Nueva Granada, lo que motivó una
junta de médicos reunida en Lima, elaborando un “decálogo de actuaciones dirigido a los encomenderos,
puesto que eran los indios los principales objetivos de esta enfermedad”, según Mar Rey Bueno.

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texto, con sus ilustraciones, fue llevado a España por Francisco de Mendoza, hijo del
Virrey, con la intención de que el rey les otorgara autorización para comerciar las plantas
medicinales allí descriptas, tanto autóctonas como las europeas aquí adaptadas.
Recordemos que en Europa la imprenta de Guttember aparece hacia 1450; en 1552
se edita la Biblia de 42 líneas, primer libro impreso con los tipos móviles, y
posteriormente otros textos, generalmente vinculados a la iglesia o la corona. Sin
embargo, en América ya se documentaba escribiendo en papel maguey y en dialectos
locales de las comunidades originarias. En la Biblioteca Nacional de Antropología e
Historia de México existen 58 manuscritos, los cuales han sido propuestos para ser
incluidos en el Registro Memoria del Mundo de UNESCO, y que se suman a otros
propuestos por otros organismos. Según Juan Carlos Franco, historiador mexicano, estos
manuscritos testimonian la evolución de las lenguas autóctonas, así como los eventos de
la evangelización y conquista, y el mestizaje del lenguaje o adaptación de los vocablos
europeos al habla de las comunidades indígenas. Uno de los documentos es el libro de
tributos del Marquesado del Valle, el que incluía grandes territorios concedidos por el Rey
Carlos V a Hernán Cortez, escrito en náhuatl.
También manuscritos eran los llamados Códices (nombre usado en el Medioevo
europeo y aceptado por antropólogos e historiadores) realizados por los pueblos
prehispánicos de Mesoamérica (olmecas, teotihuacanos, mayas, aztecas, etc.), y formados
por una escritura de carácter logosilábico. La misma comprendía signos logográficos (que
designan palabras) y fonéticos (transcriben sílabas), o alfabéticos, y reconoce una
tradición indígena. Si bien hay evidencia de textos escritos en el período pre clásico (300-
900 dC), es el período posterior donde se sitúa la mayoría, a los que, se presume,
accedieron los conquistadores. Se parecían a biombos ya que sus páginas se plegaban y
podían tener una extensión de varios metros. Aquí se narraba cuestiones del pasado, la
geografía, la genealogía, la ciencia, la economía. La lectura de estos textos comprendía la
educación de la nobleza; los aztecas llamaban huey tlatoani (gran orador) al señor
universal.
Por su parte, los manuscritos médicos han sido las principales herramientas para
divulgar el conocimiento europeo, al cual se le añade desde el siglo XVI el conocimiento y
las prácticas curativas de los aborígenes locales. Es así que algunos de estos manuscritos

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se publicaron muchos años después, como es el caso de la Historia Natural de Francisco


Hernández o el propio Libellus …de Martín de la Cruz.
Eliane Cristina Deckmann Fleck sostiene que los espacios jesuitas de formación y
de las misiones desempeñaron un papel importante en la circulación de los saberes y las
prácticas científicas en distintos ámbitos de actuación de los jesuitas como en otros no
jesuitas. (FLECK, E. 2014, p. 32) Esta autora trabajó en un texto manuscrito atribuido a
hermano Pedro Montenegro415, cuyo ejemplar se encontraba en la Biblioteca del Museo
Fray Mamerto Esqui, en la provincia de Catamarca (aledaña a La Rioja) y del cual, según
anota, una copia se halla en la Biblioteca Nacional de Madrid con el título de Libro primeiro
de la propiedad y birtudes de los árboles y plantas de las misiones y provincias de Tucumán
con algunas del Brasil y del Oriente. Agrega que los jesuitas logran una “armoniosa síntesis
entre ciencia y religión, dedicándose (también) a la astronomía, cartografía, botánica
médica, física experimental e historia natural” (2014, p.37) Entendemos que, si bien
América podría considerarse como receptora de los conocimientos producidos en otros
países del mundo, los jesuitas se esforzaron por generar nuevos conocimientos, en cierto
modo, como consecuencia de la eficacia de los tratamientos locales que incluían vegetales
autóctonos, pero también por la ineficacia de las prácticas hipocráticas-galénicas
derivadas del conocimiento español y europeo. Saberes y prácticas curativas fueron
configurándose en recetas para uso de españoles, indígenas y esclavos, pero desde la
posesión y administración de los hermanos religiosos, y por consiguiente, con el agregado
de ritos, nuevos saberes obtenidos de la experiencia en cada lugar y situación y, en
consecuencia, enriquecidos con contenidos aceptados por su eficacia y mediados por las
creencias de extraños y originales. Agrega esta autora que “en la América portuguesa en
el siglo XVI los misioneros jesuitas actuaron como físicos, sangradores y cirujanos,
instalando boticas y enfermerías en los colegios de la Provincia Jesuítica de Brasil”, según
una nota de Deckman Fleck, (FLECK, 2014).

Unas conclusiones preliminares


El estudio realizado nos permite arribar al menos a las siguientes
conclusiones:

415 Materia Médica Misionera.

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En primer lugar, el Libro de las Recetas del Museo Inca Huasi es uno de los
recetarios (lista de recetas, sugerencias y comentarios de prácticas curativas) que
circularon en el período de conquista y colonización española en América, en los dominios
de los territorios de acción e influencia jesuita, y cuya redacción correspondería a mas de
un autor y en distintas épocas. Se entiende que este ejemplar se encuentra en el Museo
Inca Huasi, administrado por los frailes franciscanos en cooperación con el gobierno local,
por cuanto esta Orden se hace cargo aquí, aunque temporalmente, de los bienes de la
Compañía de Jesús en ocasión de su expulsión (1767). Este Museo también guarda textos
impresos con fechas ubicadas en el siglo XVI y XVII de carácter religioso, incluso un
ejemplar incompleto del hermano Pedro Lozano (1697-1752).
En segundo lugar, el contenido de las recetas y sugerencias parece homologar los
saberes y prácticas curativas y, en general, el conocimiento existente en épocas de la
conquista y colonización en América, y durante el proceso de mestizaje o intercambio
cultural. En este proceso resulta interesante destacar las creencias y otros factores de
identificación en la construcción de la idiosincrasia local, como lo muestra el uso en
América de categorías sociales y administrativas del feudalismo europeo, configurando el
sentido de las encomiendas y el rol de los encomenderos, ello en un proceso entrelazado
con las prácticas de la administración religiosa, como es el caso de la evolución del
concepto de pater familia transformado en patrono y patronazgo, según Dolores Estruch.
Esta investigadora de la UBA nos dice que las relaciones de patronato se extendían a lo
largo de todo el entramado social, donde el concepto de patronato se refiere a la
correlación entre las obligaciones del padre con su familia y con el sostenimiento del culto
religioso. De este modo existe una asociación entre los términos de padre, patrón,
patronato y patronazgo, los que dan cuenta del notable alcance que tenía el poder
doméstico ejercido por el pater familia dentro de la estructura social del Antiguo Régimen”,
cuya autoridad se respaldaba en el poder social, previo al poder político (ESTRUCH, 2016,
p. 47-61) Ello parece evidenciarse en el apoyo y sostenimiento que el encomendero podía
ofrecer a los jesuitas, como el caso estudiado por Estruch, complementando su misión
terrenal.
Es así que en la construcción social y simbólica de las relaciones entre
conquistadores y pueblos dominados intervienen factores que aún siguen vigentes en la
cultura de esta región del noroeste, y que incluyen la comprensión de la enfermedad y la

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salud, las prácticas curativas y todas aquellas intervenciones vinculadas al bienestar, no


siendo necesariamente médicas. Un aspecto importante en esta construcción nos lo
proporcionan Idoyaga Molina y Sarudiansky al sostener que diversas representaciones
del catolicismo dan soporte a teorías etiológicas de la enfermedad y a prácticas
terapéuticas. En este sentido, debemos mencionar la visión dual de la persona
conformada por cuerpo y entidades anímicas, incluyendo el espíritu que explica
manifestaciones y etiologías de enfermedades, así como prácticas terapéuticas, lo que
perdura en las vastas realidades rurales y urbanas del noroeste (MOLINA;
SARUDIANSKY, 2011).
El hecho de que el contenido del Libro de Recetas incorpore copia de otros textos
– de Breve tratado las enfermedades …, de Agustín Farfán, y de Florilegio medicinal de
todas las enfermedades … de Juan Esteneyffer – indicaría el reconocimiento de otras
fuentes, además de la necesidad de ofrecer tales saberes a quienes oficiaban las prácticas
curativas, sean o no religiosos. Vale la pena destacar que tales conocimientos, a la vez,
provenían de los ámbitos académicos, ya que sus autores se habían formado en el arte
médico en los claustros universitarios. Se trataba, entonces, de fundamentar, dar certeza,
al uso de las recetas que, sin embargo, con frecuencia aquí carecían de eficacia.
Por último, los elementos vegetales, minerales y animales mencionados en el Libro
de las Recetas son también compatibles con los que formaban parte de las prácticas
curativas de la época medieval en Europa, y que aparecen en otros textos, y que merecen
un estudio mas profundo y exhaustivo. Se observa, por cierto una suerte de sustitución
del animal o del elemento que este provee para la cura, como por ejemplo en caso de los
dientes de burro o el cuerno de cabra que se mencionan en el Libro de las Recetas.
Recordemos solamente que Dioscórides (Siglo I) incluye en su obra De Materia Medicae
como la limadura de marfil y la cornamenta de ciervo. De esto y otros elementos indicados
podría inferirse el traslado de ciertos saberes ancestrales a América y adaptados aquí, que
por otra parte formaron el corpus del conocimiento médico que los árabes inculcaban en
la baja edad media. También vale la pena destacar el libro Causae et Curae de Hildegarda
von Bingen (1098-1179), en el cual hace un esmerado desarrollo de algunas
enfermedades, sus causas y remedios, en los cuales incluye partes de animales y
numerosas plantas de su entorno natural. Hildergarda fue declarada Doctora de la Iglesia
por el Papa Bendicto XVI, y su conocimiento avanzado de las cosas del mundo, y en

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particular del arte curativo, fue reconocido como producto de las visiones que tuvo. Es
interesante observar su adhesión a la teoría humoral para explicar los procesos
patológicos y justificar la acción terapéutica de sus recetas, y las creencias que subyacen
en el entendimiento de los eventos terrenales, tales como la concepción o la naturaleza de
los fenómenos meteorológicos o de la acción de la luna en los hechos físicos. La Santa de
Bingen dice sobre la sangría:

Quien tenga carnes blandas y gruesas, sáquese sangre hasta dos veces al mes
mediante escarificación. Quienes en cambio sean delgados lo harán una sola vez un
mes cualquiera, si fuera necesario.

Pero también los animales podían sangrarse. Al respecto dice:


Si el caballo, la vaca o el asno fuera débil y flaco, se le extraerá la sangre que quepa
en medio vaso, es decir, según su constitución gruesa o delgada.

Para Hildergarda, el hombre, como el universo, se compone de sus elementos:


… los elementos son el armazón del cuerpo humano; y su flujo y sus funciones se
dividen por el hombre para contenerlo simultáneamente, de la misma manera que
están esparcidos y actúan por el mundo. El fuego, el aire, la tierra y el agua están en
el hombre…

También explica la función de los remedios, como por ejemplo:

Si alguien tiene los ojos húmedos y como llorosos, quite una hoja de higuera que por
la noche haya sido mojada por el rocío, cuando el sol ya haya calentado su ramita, y
póngala así caliente encima de los ojos hasta que se empiece a calentar un poco para
que se sobrepongan y contengan el humor…

Por último, la mención de plantas y árboles autóctonos de América en el Libro de


las Recetas nos permite reconocer los aportes que en las prácticas curativas incorporaban
quienes estaban interesados en hacerlas y en difundirlas, sean o no religiosos. El precoz
interés de los virreyes por el estudio en Europa de las propiedades medicinales de la flora
americana para su comercialización demuestra con claridad que la conquista y
colonización también tuvo, además del oro, otras expectativas. Este aporte, que parece
inagotable en la literatura consultada, merece también un exhaustivo estudio para
comprender su vigencia actual y enriquecedora de la antropología del noroeste argentino.

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El manuscrito Libro de las Recetas que se halla en el Museo Inca Huasi de esta
ciudad nos abre algunas líneas de investigación que necesariamente debe ser
interdisciplinaria, y allí es donde, creemos, radica el valor de su conservación. Es el
conocimiento ancestral y su práctica lo que nos permite encontrar anclajes en nuestra
cultura local y, a la vez, universal.

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FARFAN, A. Tratado de Medicina y de todas las enfermedades”. Este texto ha sido impreso
en México, en la Imprenta de Geronymo Balli, en el año MDCX (1610). Es interesante
observar que está dirigido a don Luis de Velazco, Caballero del hábito de Santiago y Virrey

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de la Nueva España. Este Luis de Velazco y Castilla (1539/1617) ha sido, entre 1590 y
1608, Virrey de la Nueva España y Virrey de Perú.

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argentino. En www.scielo.org.mx.

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CENTRO DE PRESERVAÇÃO DA HISTÓRIA FERROVIÁRIA DO RIO


GRANDE DO SUL: UM LUGAR DE MEMÓRIA DA FERROVIA GAÚCHA

Cinara Isolde Koch Lewinski*

Este trabalho apresenta uma parte da pesquisa acadêmica em desenvolvimento


sobre a constituição do Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do
Sul na década de 1980. O interesse em pesquisar o ato fundacional dessa instituição
surgiu no decorrer do trabalho como historiógrafa no Museu do Trem de São Leopoldo-
RS. Ao examinar a documentação administrativa da instituição, constatou-se que seria
importante estudar o período em que o Preserve atuou no Museu do Trem416 e, inaugurou
o sexto Centro de Preservação da História da Ferrovia do Brasil417, em 1985. Então, com
embasamento teórico e metodológico na história cultural, fez-se um estudo para
apreender a constituição do acervo do Centro de Preservação da História Ferroviária do
Rio Grande do Sul e deste modo, houve um entendimento sobre as escolhas do que foi
salvaguardado, por que e como foi preservado pela instituição. No entanto, a
compreensão não se restringiu a nível local, pois todas as instituições museológicas
criadas pelo Preserve garantiram a memória social da ferrovia, a partir das mesmas
justificativas e considerando semelhantes materiais históricos como significativos para
representar o patrimônio histórico cultural, dentro de um vasto repertório de vestígios
da RFFSA418. Segundo dados levantados pela Secretaria do Patrimônio da União foram
transferidos à União cerca de 52 mil unidades cadastrais correspondentes a terrenos e
edificações não operacionais da extinta RFFSA (BRASIL, 2009). Diante do gigantesco

*Mestranda em História pela Unisinos. Bolsista/taxa CAPES/PROSUP.


416 No dia 26 de novembro de 1976, foi inaugurado o Museu do Trem, sendo estabelecido em um convênio
entre a R.F.F.S.A.(Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima) e o Museu Histórico Visconde de São
Leopoldo. O Museu ficou instalado na estação ferroviária de São Leopoldo, que ainda estava em
funcionamento. O prédio tornou-se unicamente sede do Museu em 1980, quando a estação ferroviária foi
desativada. Dois anos mais tarde, a R.F.F.S.A. inicia um longo processo de restauro a fim de recuperar o
Museu, já bastante alterado, visando devolvê-lo a seus moldes originais. Em 1985 o Museu do Trem foi
reinaugurado e passou a abrigar o Centro de Preservação da História Ferroviária no Rio Grande do Sul pelo
Preserve. (CARDOSO; ZAMIN, 2002)
417 1º Centro de Preservação da História Ferroviária São João Del Rey (1981), 2º Centro de Preservação da

História Ferroviária de Recife (1982), 3º Centro de Preservação da História Ferroviária do Ceará (1982), 4º
Centro de Preservação da História Ferroviária de Curitiba (1982), 5º Centro de Preservação da História
Ferroviária do Rio de Janeiro (1984) e 6º Centro de Preservação da História Ferroviária de São Leopoldo
(1985). (PRESERVE, 1991).
418 Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima.

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patrimônio, o governo federal criou o Preserve, pois, na década de 1970/1980 o IPHAN419


ainda não era o órgão responsável e também não havia leis específicas para a preservação
do acervo ferroviário.
O Preserve (Programa de Preservação do Patrimônio Histórico) foi criado pelo
governo federal, através da Portaria nº 292, de 24 de abril de 1980. Inicialmente, era um
projeto com o objetivo de preservar a história dos transportes e tinha como proposta
conhecer o material histórico do Ministério supracitado, reunir em local adequado,
preservar e restaurar, com o intuito de documentar a evolução tecnológica de todos os
modais. Mais tarde, o projeto transformou-se em programa e buscou preservar a memória
do desenvolvimento de todos os meios de transportes no Brasil, por meio da salvaguarda
de bens avaliados históricos e representativos de cada modal. Porém, o programa foi
possível e levado adiante somente com o modal ferroviário, pois, o material para a
preservação ainda estava disponível e dos quais alguns ainda faziam parte de bens ativos
operacionais da RFFSA.
Essa mudança de orientação também trouxe transformações estruturais no
programa governamental. Em 1986, o Preserve/fe deixou de ser ministerial e passou a
ser administrado pela RFFSA , que adotando as bases das diretrizes instituídas no
programa inicial, desenvolveu o Setor de Preservação do Patrimônio Histórico
Ferroviário- Preserfe420, assumindo a responsabilidade pela manutenção e orientação dos
trabalhos referentes à preservação na empresa. Com esse intuito, o Preserve/fe se
engajou na busca de preservar o patrimônio histórico da ferrovia e assim, propiciou a
patrimonialização421 dos objetos, que outrora representavam modernidade e evolução.
Os bens não operacionais da RFFSA foram selecionados para serem ressignificados como
patrimônio, sendo utilizados para compor as exposições e para fazer parte da reserva

419 A Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, sobre o Programa Nacional de Desestatização (PND) ,
promoveu várias mudanças para tornar as malhas ferroviárias atrativas para as concessionárias. Dentre as
ações governamentais implantadas pelo referido plano estava a destinação dos bens operacionais para o
DNIT e dos bens não operacionais para diversos órgãos ou entidades, como o IPHAN. (BRASIL, 1997).
420 Foi criado através da resolução da Diretoria de Patrimônio, em 05 de setembro de 1985. (RFFSA, 1986,

f.2). Setor de Preservação do Patrimônio Histórico Ferroviário ligado a Superintendência de Patrimônio e


mais tarde transformado em Gerência. (BRASIL, 1988).
421 Segundo Chuva (2012), o ato de patrimonialização consiste em selecionar um bem cultural (objetos e

práticas) por meio da atribuição de valor de referência cultural para um grupo de identidade. Então, uma
nova trajetória impõe-se aos bens instituídos como patrimônio que passam a ser submetidos a uma nova
ordem jurídico-legal, bem como a condições de existência diferenciadas, marcadas por essa singularidade.
(CHUVA, 2012).

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técnica nos espaços organizados pelo programa de preservação. Com o desígnio de


divulgar a história e edificar uma cultura da preservação ferroviária, o Preserve/fe
deliberou sobre a escolha e a conservação desses objetos e símbolos do passado,
construindo um discurso que ficou materializado nos centros e núcleos de preservação e
deste modo, propôs uma memória oficializada.
A escolha dos lugares para implantação dos centros e núcleos considerou a
importância adquirida pela ferrovia para a comunidade local, a estrutura existente e o
apelo social, mas principalmente o valor histórico e arquitetônico das edificações. Então,
as antigas construções ferroviárias com a predominância da influência europeia foram
restauradas e adaptadas para receber os vários centros e núcleos de preservação da
história ferroviária no Brasil. Os recintos ferroviários foram considerados de grande valor
histórico por sua importância na construção de memórias individuais422 e coletivas423.
Muitas cidades se desenvolveram e outras surgiram em torno das estações e trilhos da
ferrovia, portanto, foram consideradas como se fossem um símbolo do desenvolvimento
urbano. Dessa forma, a estação de São Leopoldo-RS foi um desses espaços eleitos por ser
considerada “[...] um dos lugares, dotados de carga simbólica que os diferencia e identifica
[...].” (PESAVENTO, 2008, p. 5) para abrigar a história da ferrovia no Rio Grande do Sul. De
acordo com Carrazzoni, a estação ferroviária de São Leopoldo por sua importância
histórica e arquitetônica foi poupada da destruição por decisão de agentes responsáveis
pela empresa metroviária:

A Estação Ferroviária de São Leopoldo entrou em operação a 14 de abril


de 1874, quando do início do tráfego ferroviário entre Porto Alegre e São
Leopoldo. Sua arquitetura, singular em relação aos demais prédios da
região e mesmo do resto do Estado, testemunha a presença inglesa no Rio
Grande do Sul.

Preservá-la era indispensável, especialmente porque as obras do Trem


Metropolitano da Trensurb viriam projetar suas linhas sobre a área
ocupada pelo prédio da estação pioneira, urgindo a ação de protegê-la.

422 “[...] memória individual tem sempre uma dimensão coletiva, sendo a significação dos acontecimentos
memorizados pelo sujeito sempre medida pelo diapasão da sua própria cultura”. (CANDAU, 2013, p. 97).
423 “A memória coletiva é frequentemente o produto de um empilhamento de estratos memoriais muito

diversos, podendo essas camadas sedimentares ser alteradas quando das perturbações de memória. Dessa
forma, se pode admitir que Les lieux de mémoire, [...], nos falam realmente de algumas modalidades de
memória coletiva (memória real, memória-Estado, memória-nação, memória-cidadão, memória-
patrimônio), os lugares são na maior parte das vezes a condensação de memórias plurais mais ou menos
antigas, frequentemente conflituosas e interagindo umas com as outras ” (CANDAU, 2013, p. 91-92). [grifo
do autor].

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Graças a compreensão dos responsáveis pela Trensurb, o progresso desta


vez não destruiu o passado. (BRASIL, 1985, p. 09).

Apesar desse relato da coordenadora do Preserve expressar a conquista pela


conservação da edificação ferroviária no local de origem, também apresenta as
dificuldades encontradas em preservar o patrimônio cultural ao lado do desenvolvimento
urbano. No entanto, os problemas gerados pelo crescimento das cidades relatados por
Carrazzoni, muitas vezes escondem os verdadeiros motivos que levam “escolhas
expressas em projetos políticos historicamente constituídos” (FUNARI; PELEGRINI, 2006,
p. 57), nos quais determina os bens a serem preservados e aqueles condenados ao
esquecimento.

Sendo a preservação de monumentos uma atividade necessariamente


seletiva, uma constante opção entre o conservar e o destruir (ativo ou
passivo, no sentido de não impedir a destruição), ela será exercida por
determinados agentes, e segundo determinados critérios, que orientam e
também legitimam o processo de atribuição de valores – e
consequentemente, a preservação. (FONSECA, 2005, p. 52).

Portanto, as autoridades que detinham o poder de decisão sobre os bens


ferroviários julgaram e selecionaram o que fora digno de preservação, por meio da
legislação e de estratégias interligadas por diversos grupos sociais, apesar da ampliação
temática do patrimônio e a possibilidade de maior participação de grupos que outrora
não estavam incluídos no processo. No Rio Grande do Sul, a deliberação em preservar a
estação ferroviária de São Leopoldo foi tomada pela coordenação do Preserve.

Figura 1 - Imagem do Museu do Trem de São Leopoldo/RS

Fonte: Arquivo do Museu do Trem-SL

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Sendo assim, em nosso Estado o Museu do Trem abrigou o sexto Centro de


Preservação no Brasil. Durante a década de 1980, a antiga estação ferroviária e o armazém
de São Leopoldo foram restaurados. O primeiro prédio abrigou a exposição de longa
duração e o segundo foi transformado em reserva técnica, onde se preservou uma parte
do acervo documental424, audiovisual425 e tridimensional426 da Viação Férrea do Rio
Grande do Sul /Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima. O Museu do Trem foi
reinaugurado no dia 09 de março de 1985, como Centro de Preservação da História
Ferroviária no Rio Grande do Sul.
Como lugar de memória da estrada de ferro gaúcha sob a coordenação do
programa federal, a instituição ampliou o seu acervo por meio da seleção dos bens não
operacionais da RFFSA oriundos principalmente, de escritórios e outros recintos da
ferrovia em Porto Alegre e, das estações do interior que estavam sendo desativadas na
época. Esse material histórico foi catalogado de acordo com as regras do programa
preservacionista, seguindo as mesmas normas já implantadas em outros centros de
preservação instituídos anteriormente no país. Com o intuito de divulgar a história
ferroviária, o acervo selecionado foi utilizado para a composição da reserva técnica e para
a exposição ao público, estabelecidos com base nas técnicas e narrativas empregadas no
campo da Museologia, coordenada pela secretária executiva do Preserve, Maria Elisa
Carrazzoni. Então, a partir do estudo do objeto de estudo (Museu do Trem) revelaram-se
os interesses, os pressupostos teóricos e a função social que orientaram a constituição do
acervo ferroviário no Museu do Trem de São Leopoldo. Sendo assim, a investigação sobre
a memória institucionalizada pelo acervo do Centro de Preservação da História da
Ferroviária do Rio Grande do Sul conferiu sentido ao acervo, que segundo Julião (2006)
“[...] cria a base de informação para o público, que formula os conceitos e as proposições
das exposições e de outras atividades de comunicação no museu”. (JULIÃO, 2006, p.104).

424 Conforme Aróstegui (2006), a documentação escrita corresponde a dois grandes campos: a
documentação de arquivo; a documentação bibliográfica e hemerográfica.
425 Segundo a descrição do inventário do Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do

Sul, o acervo audiovisual é composto por fitas de vídeos, slides de retroprojetor, negativos de vidro e
fotografias impressas. (BRASIL, 2008).
426 De acordo com a descrição do inventário do Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande

do Sul, o acervo tridimensional é composto por peças de diversos materiais: metal, madeira, vidro,
porcelana, têxteis, etc. (BRASIL, 2008).

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Sendo assim, cumpriram o objetivo de difundir a história dos transportes, mas


também adquiriram a função de edificar uma cultura da preservação ferroviária, elegendo
referenciais significativos de acordo com a memória oficializada, através de um
complicado trabalho de seleção de objetos, monumentos e edificações que remetiam a
memória pela apropriação do território, ou seja, os vestígios escolhidos que recordavam
a ocupação do território, a evolução das cidades, o desenvolvimento tecnológico e a
história nacional. Enfim, esse testemunho material ressignificado como patrimônio serviu
como instrumento de conhecimento e de comunicação, desempenhando um poder
estruturante de construir uma realidade que tinha a tendência de estabelecer uma ordem,
em particular do mundo social que conjetura aquilo “[...] a que Durkheim chama o
conformismo lógico, quer dizer, uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do
número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências [...].”
(BOURDIEU, 1989, p. 9).

Considerações finais
Então, partindo da pesquisa sobre a constituição do acervo do Centro de
Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul na década de 1980 este estudo
demonstrou a importância da reflexão sobre os sentidos conferidos ao patrimônio
cultural e do valor de se fazer uma análise mais aprofundada sobre a construção e as
motivações que induziram a implantação dos Centros de Preservação da História
Ferroviária em todo o Brasil com a atuação do Preserve e, desse modo ir além do que
aparentemente foi exposto pelo programa federal. Sendo assim, para atingir os objetivos
propostos foi necessário examinar a documentação produzida na década de oitenta pelos
agentes do Preserve. Isso só foi possível, devido à preocupação da coordenação do
programa preservacionista em orientar os técnicos dos centros de preservação da
história ferroviária constituídos no Brasil em criar e manter inventários das coleções para
o seu controle. Deste modo, a gestão do Preserve com normas e diretrizes para todas as
instituições museológicas instituídas por ela tornou viável a reflexão sobre a história
ferroviária construída pelo programa preservacionista, assim como as representações
instituídas a partir da apresentação do acervo preservado.
Conforme apresentado neste artigo, os bens não operacionais da RFFSA foram
selecionados para exposição ao público e para a composição da reserva técnica nos

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espaços organizados pelo Preserve. Esse testemunho material ressignificado como


patrimônio serviu para construir uma história ferroviária única, sobretudo quando diz
respeito atividade econômica desse modal. No entanto, o Preserve não contemplou como
patrimônio todos os bens não operacionais da estrada de ferro brasileira que se
encontravam e se encontram pulverizados por todo o território nacional e da mesma
maneira, a história oficializada pelo Preserve não abarcou várias interpretações sobre as
memórias ferroviárias espalhadas pelo nosso país.
No Rio Grande do Sul, a estação ferroviária de São Leopoldo, inaugurada em
1874, foi eleita para abrigar o Centro de Preservação da História Ferroviária em nosso
Estado porque o Preserve percebeu o grande valor histórico e arquitetônico da edificação.
Apesar do programa preservacionista do governo federal ter feito uso do passado para
divulgar as representações a respeito da história da ferrovia sob o seu ponto de vista, não
se pode negar a importância desse programa que promoveu a preservação de parte do
acervo histórico da ferrovia no Brasil. No entanto, a difusão da história e a preservação da
memória ferroviária precisam ser observadas como operações de gestão de memória
coletiva que foram implementadas pelos agentes do Preserve. Portanto, tem-se que
considerar que tanto a eleição do que é considerado patrimônio histórico como as
elaborações e reelaborações do passado no domínio coletivo constituiu-se em uma
construção social. Portanto, este artigo tentou levantar algumas questões sobre a
patrimonialização do acervo ferroviário gaúcho, porém, as possibilidades de estudo sobre
o assunto não se esgotaram neste texto.

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A REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE RECREATIVA E ESPORTIVA


IMPÉRIO SERRANO, NO JORNAL O GUAÍBA, DURANTE A DÉCADA DE 70

Ricardo Figueiró Cruz*

Introdução
O Carnaval é considerado uma das maiores festas do Brasil. Caracterizada pela
multiplicidade de suas manifestações, trata-se de um evento nacional, mobilizando
comunidades de Norte a Sul do país. Inserida em meados do século XVII no Brasil, as
comemorações agitam desde os centros urbanos às pequenas vilas com diversas formas
de manifestações culturais.
Desta forma em Guaíba não é diferente. Durante a década de 70, Guaíba será palco
de disputas de carnavais e bailes de clube. E essa relação com o carnaval de rua e o
carnaval de clube vai estar muito presente no único jornal em circulação da cidade no
período, que é o Jornal O Guaíba.
Este estudo tem como objetivo analisar como era feita a representação da
Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano, no jornal O Guaíba, durante a década
de 70. Podemos destacar a importância desta análise, no fato dela ser importante para a
manutenção da memória da agremiação, e como forma de analisar como a agremiação era
vista por um meio de comunicação local, durante a década de 70.
O artigo está dividido em três partes sendo eles: a primeira parte intitulada
‘Império Serrano’, buscar compreender de forma sucinta a história da Sociedade
Recreativa e Esportiva Império Serrano; a segunda parte recebe o nome de ‘O Jornal e a
representação do carnaval’, vai discutir como o jornal representava o carnaval; e por fim
a última parte ‘Continua a melhor bateria’, analisa de forma destacada como é
apresentado à agremiação no Jornal O Guaíba, durante a década de 70.

Império Serrano

*Mestrando em Processos e Manifestações Culturais – Universidade FEEVALE/RS, sob orientação da


professora Dra. Ana Luiza Carvalho da Rocha. Bolsista: Concessão de Incentivo Interno FEEVALE.

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A Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano, é considerada a entidade


carnavalesca mais antiga em funcionamento, do município de Guaíba/RS. Como nos
mostra os inventários abaixo:

Tabela 1 - Inventário de blocos e cordões carnavalescos de Guaíba/RS

BLOCO OU CORDÃO FUNDAÇÃO CLUBE BAIRRO OBSERVAÇÃO


1 APACHES 1954
2 AZ DE OUROS VETERANOS ERMO
3 CARA DE PAU
4 CARA SUJA
5 COMANCHES VETERANOS ERMO
6 CUSTOU MAIS SAIU JANEIRO/1975 CENTRO
7 DÁ NO PÉ JANEIRO/1956 ITAPUÍ CENTRO
8 GENTE BEM
9 JACARÉ TE ABRAÇA DÉCADA DE 50 VETERANOS ERMO PARA CASAIS
10 MADUREIRA MADUREIRA VILA NOVA
11 MANDA CHUVA DA FOLIA
12 MANDINS DÉCADA DE 40 MANDINS CENTRO
13 NAQUELA BASE
14 OS BATUTAS
15 OS GAMADOS
16 OS INVASORES
17 OS PIRATAS VETERANOS
18 PILANTRAS
19 PRISIONEIROS 1967
20 ÚLTIMA HORA DÉCADA DE 50 VETERANOS ERMO
21 UNIDOS DO MORRO
22 VAI QUEM QUER
23 ZUERA DEZEMBRO/1974 COMÉRCIO CENTRO
FONTE: O AUTOR

Tabela 2 - Inventário das escolas de samba de Guaíba/RS

ESCOLAS DE SAMBA FUNDAÇÃO BAIRRO DESFILES TÍTULOS OBSERVAÇÃO


1 ADMIRADORES DO RITMO
2 COHAB/SANTA RITA DEZEMBRO/2008 COHAB/STA RITA 9 DESFILES 7 TÍTULOS - EM ATIVIDADE
3 ESTADO MAIOR DA COLINA MAIO/1993 COLINA - EM ATIVIDADE
4 FAMÍLIA REAL
5 FIGUEIRA
23 - EM
6 IMPÉRIO SERRANO NOVEMBRO/1971 ERMO 11 DESFILES
TÍTULOS ATIVIDADE
7 INTEGRAÇÃO
8 SAI DA FRENTE MAIO/1982 CENTRO
9 TRADIÇÃO 1989 FATIMA
10 TREVO DE OURO
11 UNIÃO DA VILA
12 UNIDOS DA COLINA
FONTE: O AUTOR
Ao analisar os inventários podemos perceber que existiu uma diversidade grande
de blocos e cordões carnavalescos, assim como Escolas de Samba, muitas tinham um curto
período de existência, outras tinham um tempo mais longo. As entidades em destaque são

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as que terão mais destaque durante os anos 70, e consequentemente ganharem destaque
no jornal.
Podemos pensar a formação do Império Serrano através do bairro, Ermo, onde está
localizado. Essa formação vai ver por uma população majoritariamente negra, e afastada
do centro da cidade, que se desloca para uma zona mais alta e periférica da região central,
onde estava centrada a parte comercial da cidade.

Figura 1 - Mapa de localização da Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano

Sendo assim, para Selau (2004) a técnica de história oral como metodologia
contribui para o desenvolvimento de uma série de técnicas e procedimentos
metodológicos que auxiliam a produção do conhecimento em história.
Para François (2006), a história oral poderia distinguir-se como um procedimento
destinado à constituição de novas fontes para a pesquisa histórica. Ainda segundo
François (2006) fazer historia oral significa, portanto, produzir conhecimentos históricos,
científicos, e não simplesmente fazer um relato ordenado da vida e da experiência dos
“outros”.
Em depoimento427 as senhoras Maria da Conceição e Marieta (2015), relatam que
o Império Serrano surge por volta do ano de 1969, na saída de três dos seus fundadores,
Liberato Garcia, Jairo dos Santos e Irajá Silvério, do clube Academia do Samba, ao fundar
a Escola de Samba Império Serrano, na mesa de um bar, escolhem esse nome por gostarem

427 Depoimentos recolhidos por mim, no dia 14/06/2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.

Maria da Conceição da Silva Garcia (63 anos), esposa do fundador Liberato Garcia (falecido) e Marieta
Ribeiro Almeida (71 anos), amiga da família Garcia.

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da agremiação de mesmo nome do Rio de Janeiro, mas o registro oficial da escola foi
realizado em 30 de novembro de 1971.
Como forma de investigar esse passado, devido à falta de documentação
recorremos à metodologia de história oral, revisitando memórias para assim traçar sua
história. O preenchimento das lacunas criadas na história do objeto em análise é o que se
busca revisitar, onde partes desses “não-ditos” não caiam no esquecimento, como nos
evidência Pollak (1989), “as fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento
definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em
perpétuo deslocamento”.

Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a


clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas,
assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete
forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil.
Encontramos com mais freqüência esse problema nas relações entre
grupos minoritários e sociedade englobante. (POLLAK, 1989, p. 5)

Para Halbwachs (1990) o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e


habitado por grupos de referência; a memória é sempre construída em grupos, mas é
também, sempre, um trabalho do sujeito. Pois o sujeito para Halbwachs (1990) é um
sujeito atrelado ao coletivo, logo não há memórias individuais, mas coletivas.

O jornal e a representação do carnaval


O estudo da fonte jornalística permitiu ampliar os horizontes para novas reflexões
e problemáticas nos conhecimentos sobre as sociedades do passado. Segundo Capelato
(1988, p.21):
A imprensa oferece amplas possibilidades para isso. A vida cotidiana nela
registrada em seus múltiplos aspectos, permite compreender como
viveram nossos antepassados – não só os “ilustres” mas também os
sujeitos anônimos. O Jornal, como afirma Wilhelm Bauer, é uma
verdadeira mina de conhecimento: fonte de sua própria história e das
situações mais diversas; meio de expressão de idéias e depósito de
cultura. Nele encontramos dados sobre a sociedade, seus usos e
costumes, informes sobre questões econômicas e políticas.

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Desta forma ao analisarmos o Jornal O Guaíba428, estamos buscando perceber uma


representação, pois para Chartier (2002) representações, é uma ordem para o
entendimento de uma estrutura social, pensando a partir da história cultural, rompendo
com a ideia marxista de uma estrutura econômica.

As representações são também portadores do símbolo, ou seja, dizem


mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos
ocultos, que, construídos social e historicamente, se internalizam ao
inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando
reflexão. (PESAVENTO, 2005, p. 40)

Podemos considerar que o discurso é um fator a ser analisado, pois para


Charaudeau (2006), pois a “linguagem enquanto ato de discurso, que aponta para a
maneira pela qual se organiza a circulação da fala numa comunidade social ao produzir
sentido” (p.33).

“Continua a melhor bateria”


Podemos perceber que essa representação no jornal sobre o Império Serrano vai
ser distinto, isso vai variar de acordo com o momento da agremiação. Pois para
Charaudeau (2006), “se olharmos para o público que se informa, reconhecemos que ele é
co-responsável do processo de espetacularização do mundo que as mídias nos propõem”
(p.253). Sendo assim, conforme a agremiação vai ganhando espaço social no carnaval, o
Jornal O Guaíba aumenta a visibilidade.
Podemos perceber que existem quatro formas de representar a participação do
Império Serrano no carnaval de Guaíba.
A primeira forma de representação e a mais eloquente é a sua bateria, ou ritmo.
Em diversos exemplares do jornal, e em pequenas notas, vai ser observada como sendo a
mais esperada, ou a mais empolgante do carnaval, e por muitas vezes vai ser alvo de
especulação pelas demais entidades carnavalescas.
Segue enxertos do jornal evidenciando esses discursos:

Em 1962, junto com um grupo de jovens fundou o Jornal O Guaíba, fechado por motivos comerciais dois
428

anos depois. Por insistência do então prefeito João Salvador Jardim, reabriu O Guaíba em 1º de maio de
1969, que se mantém até hoje, 48 anos.

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Figura 2 - Jornal O Guaíba (15/02/1975 - nº 84)

Figura 3 - Jornal O Guaíba (06/03/1976 - nº 105)

Figura 4 - Jornal O Guaíba (26/02/1977 - nº 148)

Uma segunda forma de análise são as “falas” do presidente Liberato Garcia, figura
que vai ganhar destaque no carnaval de Guaíba, referente a expectativas do carnaval:

Figura 5 - Jornal O Guaíba (04/02/1978 - nº 196)

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Figura 6 - Jornal O Guaíba (24/02/1979 - nº 250)

O terceiro ponto, é a forma que era representado o Império Serrano com o


resultado do carnaval, onde era feito uma pequena análise dos melhores e piores
momentos do desfile da entidade.

Figura 7 - Jornal O Guaíba (02/03/1974 - nº 64)

Figura 8 - Jornal O Guaíba (11/02/1978 - nº 197)

E por último, podemos perceber a colocação por quesitos, sendo eles: Alegoria,
Animação, Originalidade, Ritmo e Fantasia.
Figura 2 - Jornal O Guaíba (06/03/1976 - nº 105)

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Figura 3 - Jornal O Guaíba (26/02/1977 - nº 148)

Figura 2 - Jornal O Guaíba (03/03/1979 - nº 251)

Para corroborar com essa análise, podemos recorrer ao Diário de Campo, realizado
em 17 de julho de 2017, na sede do Império Serrano. Dessa forma podemos perceber que
o carnaval realizado nos dias de hoje, ainda retumba a ideia de melhor bateria.

Eu: - Edison, observei nos jornais da época, o quanto a bateria do Império


era esperado no carnaval.
Edison: - Nos ainda temos a melhor bateria do carnaval, ainda é
reconhecida. Aquela época o Império nem sabia fazer carnaval, íamos
cada um com uma fantasia, ai veio um cara de Pelotas e disse como
tínhamos que fazer, ai que ganhamos o melhor carnaval, mas melhor
ritmo sempre era do Império. (Diário de Campo – 17/06/2017)

Considerações finais
A Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano, vai se constituir de forma
primeira em 1969, tendo somente sua formação jurídica em 1971, nesse sentido pode
perceber de acordo com os inventários que a agremiação, vai surgir em um momento que
já se tinha algumas entidades já estabelecidas, desta forma devido às lacunas deixadas
pela documentação utilizamos os relatos orais.

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O Jornal O Guaíba, surge em um momento em que o município não tinha uma


empresa de mídia presente, devido isso podemos pensar que sua fundação está ligada a
um contexto pós-ditadura militar, e indicado por um prefeito, mas isso carece pesquisa,
onde podemos abrir para possíveis pesquisas.
Após a análise do Jornal O Guaíba, podemos perceber como era representado a
Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano, na década de 70. Desta forma podemos
ver que a grande visibilidade da agremiação ao decorrer do período, é o Ritmo. Desta
forma ela vai ganhando espaço no carnaval, e se tornando a entidade mais vitoriosa do
carnaval guaibense, conforme inventário das escolas de samba.

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PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,


vol. 2, nº 3, 1989, p. 3-15.

SELAU, Maurício da Silva. História Oral: uma metodologia para o trabalho com fontes
orais. Esboços. Florianópolis: v. 11, nº 11, p. 219-228, 2004.

JORNAIS

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Jornal O Guaíba (02/03/1974 - nº 64)


Jornal O Guaíba (15/02/1975 - nº 84)
Jornal O Guaíba (06/03/1976 - nº 105)
Jornal O Guaíba (26/02/1977 - nº 148)
Jornal O Guaíba (04/02/1978 - nº 196)
Jornal O Guaíba (11/02/1978 - nº 197)
Jornal O Guaíba (24/02/1979 - nº 250)
Jornal O Guaíba (03/03/1979 - nº 251)

FONTES ORAIS

Maria da Conceição da Silva Garcia – realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14 de
junho de 2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.

Marieta Ribeiro Almeida – realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14 de junho de
2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.

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“PER SACCO E VANZETTI”: UM MONUMENTO PARA DOIS ITALIANOS,


E/IMIGRANTES E ANARQUISTAS

Eduardo da Silva Soares*

Introdução
Início do século XX. Milhares e milhares de italianos atravessam o oceano em busca
de melhores oportunidades de vida. Dias e noites viajando entre trens e navios. Tantas
vidas sedentas por um sonho: “fazer a América!”.
A história das migrações é a história do trabalho (CROCI, FRANZINA, CARNEIRO,
2010; FRANZINA, 2007). Estas pessoas criam oportunidades que modificam as suas
percepções de realidade. Alguns deles conhecem o movimento operário. Outros
conseguem lotes de terras e colonizam regiões do “novo mundo”.
A trajetória de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti429 é diferenciada da maioria.
Tanto é que eles se tornam merecedores de um monumento após 71 anos de suas mortes.
Eles vão para os Estados Unidos da América (EUA) em 1908. Sacco se especializa e
trabalha nas fábricas de sapatos. Vanzetti migra pelos EUA, sempre com empregos de
baixa qualificação. Termina como vendedor de peixes. Eles conhecem e se envolvem no
movimento anarquista, sendo Vanzetti um escritor no periódico Cronaca Sovversiva.
Sacco assinava o referido jornal, além de colaborar com dinheiro para a causa libertária.
Em 1920 são presos, julgados e condenados (GRIPPO, 2011). Nos sete anos de prisão,
ocorrem protestos, publicações e uma luta judiciária. Porém, apesar de todos os apelos, o
Estado de Massachusetts os leva a cadeira elétrica, no dia 23 de agosto de 1927.
Contemporaneamente, em 2017, um evento marca o “eterno” dia 23 de agosto. É
um evento em Torremaggiore, uma comuna italiana da Puglia. A organização visa uma
ação de sensibilização para:

1. Abolição da pena de morte em todos os países do mundo.


2. A afirmação da Cultura e da Prática da integração social, da tolerância,
do respeito recíproco entre homens e mulheres, independente da

* Doutorando em História (PPGH/UFSM). Professor de História e Geografia da E.M.E.F. Imperatriz


Leopoldina, Cachoeira do Sul, RS.
429 O autor estuda, em seu projeto de tese, as impressões do caso Sacco e Vanzetti no Brasil. Sob orientação

da professora Dra. Glaucia Vieira Ramos Konrad.

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diversidade de idade, sexo, censo, raça, religião, convicção ideológica e


filosófica, diversa habilidade física e/ou sensorial, [...] o completo
desenvolvimento e o pleno inserimento na sociedade civil [...] de todos os
cidadãos [...] remoção de qualquer obstáculo, dificuldade e/ou prejuízo
lesivo dos interesses e dos direitos dos mesmos [...].
3. A promoção e a valorização da dignidade do Homem e da Mulher, em
quanto cidadãos do Mundo, coabitantes de um planeta que é de todos e
para todos [...] (MEMORIAL DAY, 2017).

Por/para todos os Sacco e Vanzetti do mundo, eis um teor contemporâneo para


eles. Destarte, este estudo problematiza um monumento, os seus elementos e os ritos de
inauguração. Afinal, estamos falando de dois emigrantes italianos, anarquistas e
condenados à morte. Este é um caso que aborda o preconceito contra os italianos e a classe
social. E, o presente estudo, a constituição de um monumento para estes sujeitos sociais,
dotados de (re)significações, conforme as representações que os grupos orientam às suas
imagens.
Um monumento será capaz de ajudar as pessoas a lembrar de promover a
integração social, a valorização da dignidade humana e a unir a todos que acreditam na
necessidade de lutar contra a pena de morte? Antes de tentar responder esta grande
questão, passa-se para a problematização do monumento em questão.
Neste sentido, no primeiro momento, investiga-se o que é um monumento e para
que ele serve. Discute-se quem foram os seus promotores e os sentidos a ele atribuídos.
No segundo capítulo, pensa-se nos ritos de inauguração e nos elementos mais específicos
da obra. A última parte surge como uma tentativa de síntese, visando colaborar com os
estudos da memória e dos monumentos.

O monumento e a inauguração de um espaço de memória para dois anarquistas


Pensar o monumento deve servir para pensarmos o passado, através das leituras
de um presente que objetiva um futuro. Portanto, pensando na reflexão de Choay (2001,
p. 17-8), que diz: “o sentido original do termo é do latim monumentum, que por sua vez
deriva de monere (“advertir”, “lembrar”), aquilo que traz à lembrança alguma coisa”.
Portanto, pensa-se na colaboração de um monumento construído em um cemitério, de
Torremaggiore, para dois anarquistas executados judicialmente, nos EUA.
Advertir e lembrar algo negativo. Positivar uma situação extremamente
traumática para o mundo da década de 1920. A morte de dois italianos, possivelmente

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injustiçados, deve sugerir a construção de uma sociedade mais preocupada com a


solidariedade entre todas as pessoas, conforme o objetivo do evento ocorrido em 2017.
Mas, por outro lado, refletindo sobre Pollak (1992), pensa-se que a memória e as
identidades sociais flutuam e são modificadas. Os interesses dos grupos que constroem
este monumento, reforçam a italianidade.
A melhor maneira de não deixar esquecer uma coisa é construindo os espaços de
memória. Aqui, o espaço é, também, de morte. O lugar é um cemitério. Espaço que obriga
a recordar os antepassados. Entretanto, considerando estas suposições, pensa-se em
como o conceito de monumento deve ser pensado. Assim, estuda-se Choay (2001, p. 18),
que considera considera monumento é “tudo o que for edificado por uma comunidade de
indivíduos para rememorar [...] acontecimentos [...]. A especificidade do monumento
deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória”:
Desta forma, o monumento de Sacco e Vanzetti marca a memória das pessoas que
o conhecem, pois, nele consta com um pronunciamento do governador Dukakis, de
Massachusetts, de 1977. Citação que “limpa” a culpa de Sacco e Vanzetti. “Reabilita” a
memória dos seus nomes, das gerações descendentes e de todos os italianos.

Foto: O monumento do cemitério.

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O monumento do cemitério possui as funções de não deixar esquecer, para que


nunca mais ocorra algo semelhante. Neste sentido, é importante reforçar as percepções
de Llorenç Prats (2004, p. 32):

(...) as ativações ou representações patrimoniais são: 1) sistemas de


símbolos; 2) que atuam para suscitar entre os membros de uma
comunidade (local, regional, nacional…) motivações e disposições
poderosas, profundas e perduráveis; 3) formulando concepções de
ordem geral sobre a identidade dessa comunidade; 4) e dando a estas
concepções uma aparência de realidade tal; 5) que suas motivações e
disposições pareçam emanar da mais restrita realidade.

Observando estas pontuações, relaciona-se a sequência do trabalho em três


direções: 1) para a criação: promotores do monumento; 2) para a inauguração: o ritual a
ser traçado; 3) o monumento estruturado: os elementos contidos.

Promotores do monumento
Segundo Carlucci (p. 1): “a iniciativa de edificar em Torremaggiore um
monumento a Ferdinando (Nicolá) Sacco e Bartolomeo Vanzetti vem empreendido pelo
Círculo de Refundação local e a tal propósito vem constituído um comitê promotor
expandido aos administradores públicos e aos representantes de todos os partidos
políticos locais”430. Outra questão pertinente a ser frisada foi que “era início de 1997, 70º
aniversário da morte dos dois anarquistas italianos, e o “caso Sacco e Vanzetti foi
combinado aquele de Silvia Baraldini o qual, qualquer dia depois, o Comune de
Torremaggiore concedesse a “Cidadania honorária”431.
O mesmo documento destacou que “a senhorita Fernanda Sacco, que da
reabilitação da memória do tio Ferdinando fez uma razão de vida.”432, conseguiu

430 Grifos do autor. “L’iniziativa di edificare a Torremaggiore un Monumento a Ferdinando (Nicolá) Sacco
e Bartolomeo Vanzetti venne intrapresa dal locale Circolo di Rifondazione ed a tale scopo venne
costituito un apposito comitato promotore allargato ai Pubblici Amministratori ed ai rappresentanti di tutti
i partiti politici locali”.
431 Grifos do autor. “Era agli inizi del 1997, 70º anniversario della morte dei due anarchici italiani, e il

‘caso Sacco e Vanzetti venne abbinato a quello di Silvia Baraldini alla quale, qualche giorno dopo, il Comune
di Torremaggiore concesse la ‘Cittadinanza onoraria’”
432 Grifos do autor. “La Signorina Fernanda Sacco, che della riabilitazione della memoria dello Zio

Ferdinando ne aveva fatta una ragione di vita”.

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mobilizar a sociedade de Torremaggiore para edificar “a nova tumba”433[4]. O monumento


abrigaria “os restos mortais dos dois mártires”434 (p. 5). Até que,

(...) no fim de 1997 o prefeito Marolla fez sua iniciativa tomada aos inícios
do ano da Refundação Comunista [...] comunicou [...] que o Monumento
a Sacco e Vanzetti, compreensivo também que o lóculo funerário, será
estado a poucos metros de distância do ingresso monumental do
Cemitério e que o 70º aniversário da morte deles será estado
enquadrado em um Convênio internacional sobre abolição da pena
de morte435.

A construção do monumento foi muito bem articulado. Não poderia ser algo mal
elaborado. No caso, o poder público controla e articula as ações. O Círculo de Refundação
promove um comitê formado por administradores públicos e representantes de todos os
partidos políticos locais. As datas, o formato e os elementos são pensados e valorizados
conforme o jogo de interesses deste grupo.
Na verdade, o objetivo central do monumento parece ser plural, não sendo
limitado a um. Deste modo, pensa-se nos objetivos que o formam e, neste primeiro
momento, cabe destacar a luta pela abolição da pena de morte como um deles. Ao longo
do texto serão percebidos os demais, porém, aqui cabe ressaltar que a figura Sacco e
Vanzetti, simboliza, também, defender os direitos humanos e a extinção da pena de morte
como medida punitiva.

A inauguração
A inauguração teve uma série de acontecimentos que marcam a
apresentação pública do monumento. O evento não deveria marcar apenas o grupo mais
interessado pelo projeto, mas, também, a comunidade inteira. Destarte, não era
necessário participar do ritual inaugural, para saber que ele estava acontecendo, pois o
cortejo, ao passar pelas ruas da cidade, ganha destaque e reconhecimento “de todos”.

433“la nuova tomba”.


434“i resti mortali dei due martiri”.
435 verso la fine del 1997 il Sindaco Marolla fece sua l’iniziativa intrapresa agli inizi dell’anno da

Rifondazione Comunista [...] comunicò [...] che il Monumento a Sacco e Vanzetti, comprensivo anche del
loculo funerario, sarebbe stato eretto a pochi metri di distanza dell’ingresso monumentale del Cimitero e
che il 70º anniversario della loro morte sarebbe stato inquadrato in un Convegno internazionale sulla
abolizione della pena di morte.

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A sequência das imagens comprovam esta ideia. Todas elas estão sob domínio
público. Sendo acessíveis aos curiosos e pesquisadores436.

Fotos 1 e 2: (1) Cortejo nas ruas até a “Igreja Santa Maria da Estrada”. (2) Na igreja: Fernanda
Sacco com a urna cinerária (mista) do tio e de Bartolomeo Vanzetti

O evento foi marcado por uma caminhada, ou melhor, um cortejo pela cidade.
Parando na igreja, houve o momento em que a urna cinerária ganha destaque. Porém, não
é perceptível, até o momento, o que ocorre de fato na igreja. Não se sabe se há uma missa,
uma benção ou qualquer ação religiosa em relação aos restos mortais de dois anarquistas
e ateus.
Posteriormente, os participantes se direcionam ao cemitério da comuna. Há a
presença de uma banda marcial, a qual parece dar um sentido “épico” para aquele
momento.

Fotos 3 e 4: (3) O cortejo entra no cemitério da comuna. (4) Acondicionamento, no monumento,


da urna cinerária. Fernanda Sacco colocou na urna um bilhete com um escrito: “Tio, não te
conheci mas sempre te amei”.

436 Disponível: http://www.ifontanaritorremaggioresi.com/il-monumento-a-sacco-e-vanzetti-a-


torremaggiore.html Acesso em: 01/01/2017.

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Atentamente, o cortejo leva os seus participantes ao cemitério. Lá é a urna


cinerária que fica guardada no monumento. Simbolicamente, Sacco e Vanzetti estavam
presentes naquele lugar. Pois bem, os eventos oficiais possuem a características de ter os
oradores. São estes que ensinam os verdadeiros sentidos e significados do que está
ocorrendo. Então, em outras palavras, eles orientam o público e entenderem o que se
passa.

Fotos 5 e 6: Marolla, Ferdinanda Sacco, vice Sindaco Dario Comba de Villafalletto (cidade natal de
Vanzetti). 6 - Corrado Augias, deputado do Parlamento europeu, jornalista e escritor.

Dentre os discursos, destaca-se o de Corrado Augias. Ele sistematizou um


fragmento do significado político que se poderia alcançar com aquele monumento, ou
melhor, com o que ele significava ao falar de dois emigrantes executados injustamente
pelo Estado dos EUA. Ele disse: “dois italianos, deixando as suas colocações políticas muito
diferentes, foram esmagados e condenados à morte na cadeira elétrica também porque
eram italianos, não somente porque eram anarquistas, mas também porque eram
estrangeiros”.
Portanto, havia o interesse em reforçar a italianidade. Falar que muitos sofreram
injustiças, mas, porém, agora os italianos estavam fortes e unidos437. Aqui está outro
objetivo central. Reforçar a identidade italiana como algo positivo. Mas, então, os
elementos do monumento vão ser objetivos e não deixam dúvidas em relação aos
interesses que os seus promotores propõem? Vejamos.

437A sequência do discurso, o qual optou-se por não tratá-lo na sua integralidade por falta de espaço, indica
esta direção. Saudava-se a unificação italiana e a força internacional que possuía, naquele momento.

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Os elementos do documento
Os restos mortais de Sacco estavam em uma tumba. Uma espécie de “gaveta
mortuária” que guarda as cinzas do falecido. Então, considerando a importância histórica
desta personagem, a sua sobrinha Ferdinanda Sacco e os grupos ligados aos direitos
humanos, iniciaram o projeto do monumento para Sacco e Vanzetti.
Eles retiram os restos mortais do antigo lugar e passam para o novo. Mas, o
monumento, mesmo que seja no cemitério, é mais que um abrigo ao que sobrou de um ser
vivo. Ele é um espaço de memória que deve narrar os fragmentos da vida de alguém, seja
através de símbolos ou apenas do lugar, como espaço físico.

Tumba de Ferdinando (Nicola) Sacco.

Neste caso, o espaço de memória vem acompanhado de um monumento erguido e


constituído de duas grandes partes. A base, com dois relevos que denotam a origem e o
destino “final” de Sacco, e uma placa com o trecho do discurso de Dukakis, governador de
Massachusetts de 1977, que declarou a dupla italiana inocentes dos crimes que lhes fora
imputados.

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Fotos 8, 9 e 10: Elementos do monumento: (8) Castelo de Torremaggiore, onde nasce Sacco. (9) A
estátua da Liberdade simbolizando a chegada deles nos EUA. (10) Trecho do discurso do
governador Dukakis, de Massachusetts, reconhecendo a inocência de Sacco e Vanzetti.

Conforme é perceptível nas fotografias, na parte superior esquerda, observa-se o


castelo de Torremaggiore, representando o nascimento até a emigração de Sacco. A
estátua da liberdade, encontra-se na parte inferior esquerda, se remetendo a chegada nos
EUA. O monumento, ainda na visão dos construtores, serve “para recordar Fernando
Sacco”438 (CARLUCCI, p. 3), destacando o que “representa para todas pessoas que viram a
dramática história dos dois italianos, Sacco e Vanzetti”439, sendo o monumento construído
para todas as gerações que não foram contemporâneas deles. As pessoas devem
compreender a importância da luta contra a pena de morte, sendo então a liberdade
dotada do sentido de defesa da vida, dos direitos individuais e para que “o homem possa
viver a própria existência com dignidade”440. Conforme Carlucci (p. 5):

(...) a particularidade da planta simboliza uma parte do mundo que


participou o drama dos dois mártires. Sua superfície é esculpida parte do
Castelo de Torremaggiore e do burgo representando o Codacchio, lugar
de origem de Sacco, e, ao extremo oposto, o lugar de desembarque, parte
da paisagem americana caracterizada pelos arranha-céus.
O bloco repousa em uma faixa basamental em granito de cor preta e na
parte alta um plano inclinado, essa também em granito preto, símbolo de
luto. O plano inclinado crescente, representa as forças e os vários

438 “per ricordare Ferdinando Sacco”.


439 “rappresenta per tutti coloro che hanno vissuto la drammatica storia dei due italiani, Sacco e Vanzetti, e”
440 “l’uomo possa vivere la propria esistenza con dignità”.

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momentos que hão operado, não sem dificuldade, para o reconhecimento


da inocência dos dois italianos.
Na parte alta verão gravado as generalidades e na parte da base a data e
o lugar da morte441.

Ainda, havia o detalhe referente a Nova York, com a representação do porto


daquela cidade. O “grand finale” seria a citação de Matteo Marolla, prefeito em 1997, que
disse, em seu discurso de inauguração do monumento: “a memória para um futuro sem
injustiça”442. A liberdade anunciada no documento não deve ser percebida como aquela
defendida pelos dois anarquistas. A liberdade tem o seu fundamento mais ligado à ideia
de poder viver, ou, melhor, contrário à pena de morte. Esta hipótese é levantada a partir
das declarações de Dukakis (p. 1 apud CARLUCCI, p. 11), que, em linhas gerais, inspirou a
reflexão sobre os seguintes pontos: 1) existe a crença de que eles foram condenados por
serem ligados a “doutrina do anarquismo”; 2) que a “atmosfera do processo deles” teve o
“prejuízo contra estrangeiros” que havia na década de 1920; 3) que a Justiça
estadunidense mostrou-se “dúbia” na sua “vontade e habilidade de conduzir a acusação e
o processo de Sacco e Vanzetti com justiça e imparcialidade”.
Para selar a condição histórico e jurídica do caso, o então governador mandou
registrar:

Em seguida, e por tais razões, eu Michael S. Dukakis, Governador do


Estado de Massachusetts, em virtude e da autoridade do Supremo
Magistrado a mim atribuída pela Constituição do Estado de
Massachusetts, e de todas as outras autoridades que me atribuíram,
proclamo quarta, 23 de agosto de 1977 “Dia comemorativa de Nicola
Sacco e Bartolomeo Vanzetti”, e declaro também que cada estigma e cada
vergonha venha para sempre cancelada dos nomes de Nicola Sacco e
Bartolomeo Vanzetti, dos nomes das famílias deles e descendentes e em
seguida, do nome do Estado de Massachusetts: e eu, deduzido a
população de Massachusetts a parar nos seus empenhos cotidianos e a
refletir sobre este evento trágico e desse trazer a coragem de impedir as

441 “La particolarità della pianta simboleggia una parte del mondo che partecipò al dramma dei due martiri.
Sulla sua superficie verrà scolpito parte del Castello di Torremaggiore e del borgo rappresentante il
Codacchio, luogo di origine di Sacco, e, all’estremo opposto, il luogo dell’approdo, parte del paesaggio
americano caratterizzato da grattacieli.
Il blocco poggia su una fascia basamentale in granito di colore nero e nella parte alta un piano inclinato,
anch’esso in granito nero, simbolo di lutto. Il piano inclinato in ascesa, rappresenta le forze e i vari
movimenti che hanno operato, non senza difficoltà, per il riconoscimento della innocenza dei due italiani.
Nella parte alta verranno incise le generalità e nella parte basamentale la data e il luogo del decesso”.
442 “la memoria per un futuro senza ingiustizia”.

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forças da intolerância, do medo e do ódio e de unir-se agora para dominar


a racionalidade, a sabedoria e imparcialidade cujo o nosso sistema legal
aspira. Deus proteja o Estado de Massachusetts. O Governador Michal E.
Dukakis443 (DUKAKIS apud CARLUCCI, p. 11).

Cancelando o erro do passado não trouxe Sacco e Vanzetti à vida. Mas, obviamente,
o sentido simbólico era extremamente positivo para a sobrinha que luta por toda a vida.
Para todos os refugiados e/ou e/imigrantes, era um sinal de alerta e responsabilidade
internacional para a luta pela extinção de injustiças daquele tipo. E, para os italianos,
acaba por ser um reforço do valor nacional que possuem. Ainda mais por ser um país de
vasta experiência migratória, teria, ele, nos casos de criminosos, uma “mancha” na sua
história de “enviar” pessoas trabalhadoras aos outros países.
Então, pontua-se, um dos objetivos do monumento foi o de restabelecer a memória
daqueles indivíduos, já aos EUA serve como um alerta. É necessário atentar-se
diariamente para a xenofobia e o prejuízo étnico das pessoas julgadas. Em um país com
histórico de perseguição aos vermelhos e, atualmente, aos muçulmanos “terroristas”444,
parece ser realmente necessário tal lembrança, ou, melhor, não deixar que esqueçam dos
próprios erros do passado.

Considerações finais
Compreender estes monumentos ajuda a entender o que simboliza o caso Sacco e
Vanzetti. Eles, feitos imagens e semelhanças dos seus defensores, não servem apenas aos
anarquistas como símbolo de luta. Outros grupos se apropriam das suas trajetórias e

443 Quindi,e per tali ragioni, io Michael S. Dukakis, Governatore dello Stato del Massachussets, in virtù e della

autorità di supremo Magistrato in me conferita dalla Costituzione dello Stato del Massachussets,e di tutte le
altre autorità a me attribuite, proclamo martedì,23 agosto 1977 " Giorno commemorativo di Nicola Sacco e
Bartolomeo Vanzetti ",e dichiaro inoltre,che ogni stigma ed onta venga per sempre cancellata dai nomi di
Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti,dai nomi delle loro famiglie e discendenti e quindi,dal nome dello Stato
del Massachussets ; ed io,dedotto il popolo del Massachussets a sostare nei suoi impegni quotidiani ed a
riflettere su questi tragici eventi e da essi trarre il coraggio di impedire alle forze della intolleranza,della
paura e dell'odio e di unirsi ancora per sopraffare la razionalità, la saggezza e l'imparzialità a cui il nostro
sistema legale aspira. Dio protegga lo Stato del Massachussets !. Firmato : S.E., il Governatore Michael S.
Dukakis il Segretario di Stato,Paul Guzzi».
444 Nos EUA do início do século XX, principalmente no período conhecido como Red Scare (Alerta Vermelho),

os anarquistas são conhecidos como terroristas, ou seja, aqueles que praticam atentados à bomba nos
prédios públicos. Contemporaneamente, os EUA investem na luta contra o “Terror” de grupos radicais
islâmicos. Estes combates ideológicos geram o senso comum dos “outros” como figuras perigosas,
estabelecendo estereótipos depreciativos para determinados grupos sociais.

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impõem (re)leituras daquele passado, ressignificando o acontecimento conforme os seus


interesses.
Então, buscando verificar os fragmentos que formam o monumento, são
estudados os ritos de fundação, os discursos de inauguração e os elementos que
constituem o monumento. Para criar legitimidade social, há um cortejo que passa pelas
ruas da cidade. Passando por uma igreja e terminando no cemitério, sabe-se que os
transeuntes acabam conhecendo um pouco do que está acontecendo. Esta é uma
apresentação de poder e organização para as pessoas. Existem os oradores, que com os
seus discursos orientam as pessoas a melhor entenderem aquele monumento e os seus
significados. A interpretação sempre é direcionada, pois, quem formula um espaço de
memória, possui interesses que devem ser explícitos. Além da fala, o monumento possui
os elementos que lhe dão forma. Desde as imagens em alto relevo até uma citação. Estes
componentes indicam o teor do monumento.
Ao chegar no final deste trabalho, entende-se que não existem conclusões
fechadas a respeito do monumento estudado. Desta forma, procura-se colaborar com os
estudos sobre o patrimônio e os espaços de memória para dois trabalhadores pobres,
anarquistas e e/imigrantes. Deste modo, não se propõe respostas com este trabalho, mas
novos questionamentos.

Referências bibliográficas:
CHOAY Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP,
2001.

CROCI, Federico. FRANZINA, Emilio. CARNEIRO, Maria Tucci. Apresentação. In: CROCI,
Federico. FRANZINA, Emilio. CARNEIRO, Maria Tucci (Orgs). História do Trabalho e
Histórias da Imigração: trabalhadores italianos e sindicatos no Brasil (séculos XIX e XX).
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2010, p. 17-19.

DUKAKIS, Michael S. Stato del Massachussets. In: Sacchevvnzett. S/D.

FRANZINA, Emilio. La storia dell'emigrazione come storia del lavoro. EUT Edizioni
Università di Trieste, 2013, p. 39-54. Disponível em: http://hdl.handle.net/10077/976
Acesso em: 07/04/2017.

HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

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LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas:


Ed.UNICAMP, 1990.

Memorial Day: per Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti. 90º anniversario della loro
uccisione con la sedia elettrica, 40º della loro riabilitazione. Disponível em:
http://www.torremaggiore.com/notizie/2017/sacco-vanzetti-memorial-day-2017-
torremaggiore/ Acesso: 10/09/2017.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro. V.5,
nº 10, 1992, p. 200-212.

PRATS, Llorenç. Antropologia y patrimonio. Barcelona: Ariel, 2004.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História.
Revista do Programa de Pós-Graduação em História e Departamento de História da PUC-
SP. 1992.

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EMPREENDEDORES ITALIANOS EM PORTO ALEGRE (1880-1920)


MEMORIA ESQUECIDA DA CIDADE

Egiselda Brum Charão*

Introdução
O artigo apresenta uma reflexão sobre a atuação dos empreendedores italianos no
espaço urbano da cidade de Porto Alegre entre o final do século XIX e inicio do século XX.
Utiliza como fontes os cemitérios, os relatos de viagens, publicações jornalísticas e
almanaques comemorativos disponibilizados para consulta em museus e na internet
(web, web sites e portais445). A investigação foi guiada por três propósitos, o primeiro
busca entender as estratégias de inserção social do imigrante italiano nos espaços de
comércio. Nesse intento leva em conta definição de Fernando Devoto (2009, p. 42-2) que
envolve na categoria imigrante “[...] uma variedade de situações e ocupações e uma
multiplicidade de motivos de imigração [...]”. O segundo visa conhecer, a partir dos locais
de partida e chegada as condições propiciaram ao imigrantes a construção de uma
trajetória empreendedora na capital. O terceiro objetivo centra-se nos lugares de
memória que tem a ver com complexo onde estão armazenadas denominados arquivos
que salvaguardam imagens, objetos e textos, que são públicos e ao mesmo tempo
privados, reais e também arquivos fictícios ou virtuais.
A pesquisa é relevante porque se centra na nova perspectiva tanto para
problematizar a utilização das fontes público-privadas e virtuais que guardam a memória
de um grupo urbano de relevância social e econômica no período mencionado, no caso os
empreendedores italianos; quanto para entender as variáveis da imigração urbana,
buscando compreender em que medida os empreendedores italianos se inseriram e
contribuíram para o desenvolvimento da capital gaúcha no período no período
mencionado.

* Doutoranda em Historia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS – Financiada dela
CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
445 São formas de acesso às fontes facultadas por indivíduos, sociedades ou coletividades e instituições que

tem por finalidade disseminar informações. Para saber mais consultar a obra Fontes de informação na web:
uso e apropriação da informação como possibilidade de disseminação e memória do Movimento Negro no
Estado da Paraíba (SILVA, 2010, 77f.).

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Os passos da investigação foram norteados pelo método indiciário que consiste em


um conjunto de princípios e procedimentos que abrange a proposta de um método
utilizado para a descoberta ou a investigação de fatos. O procedimento foca no detalhe,
nos dados marginais, nos resíduos tomados enquanto pistas, indícios, sinais, vestígios ou
sintoma (GINZBURG, 1979). A elaboração do texto pontua três tópicos que não seguem
uma ordem cronológica: Empreendedores italianos e seus empreendimentos em Porto
Alegre, Percurso da Itália até estabelecimento na cidade de Porto Alegre e as fontes, os
acervos e o método indiciário como possibilidade para o estudo da imigração urbana em
Porto Alegre.

Empreendedores italianos em Porto Alegre


Para a seleção dos imigrantes foram utilizadas duas fontes de partida, o Cemitério
da Santa Casa de Misericórdia e São Miguel e Almas, ambos situados na capital, o relato
da Viagem efetuada por Vittorio Buccelli e publicado em 1906 e fontes disponibilizadas
na internet. A escolha recaiu sobre dois imigrantes: Giagomo Bernardi proveniente da
Provincia de Vicenza, distrito de Moróstica na Região do Vêneto, um indivíduo Vicenzo
Monteggia de Laveno, Lago Maggiore, do Piemote.
Após um longo percurso envolvendo a vinda446 do norte da Itália e o deslocamento
pelo interior do Rio Grande do Sul estes imigrantes tornaram-se empreendedores na
capital gaúcha em áreas de negócios voltados para colonização de terras, a agricultura
pecuária e indústria. Empreendedor

É alguém que identifica a oportunidade e cria algo inovador numa


condição de incerteza tendo como resultantes no processo uma nova
maneira de realizar um trabalho. [...] Pode se definir como “a pessoa que
inicia e/ou opera um negócio para realizar uma ideia ou projeto pessoal
assumindo riscos e responsabilidades e inovando continuamente”
(CHIAVENATO, 2006, p. 3).

Os italianos elencados para o estudo imigram para Porto alegre no “período


áureo” que compreende os anos entre 1888 e 1914 (DIÉGUES, 1964, p.g4). Tanto neste

446Quanto à vinda dos imigrantes, observa-se se que havia um projeto que pode ser divido em dois
momentos: o primeiro demandava em muitos casos anos de preparativos para partida com mobilização
familiar para dispor de recursos. O segundo momento focalizava os arranjos da partida com viagem até o
porto e compra da passagem além da comunicação com familiares ou conhecidos no local de chegada.

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período como nos decênios posteriores, observa-se uma escassez de pesquisas que
manifestem uma ênfase acerca da presença italiana na capital. O recorte se insere no
contexto da grande migração quando os imigrantes chegavam aos portos brasileiros com
a finalidade de povoar e colonizar áreas de mata intocada no sul (SINGER, 1977, p. 156).
Outros tantos desembarcaram nos centros urbanos, muitas vezes, individualmente com
vistas a trabalharem no comércio e pequenas indústrias e nesse cenário formavam redes
de relações. Essas redes compreendidas como um [...] conjunto de mecanismos que
motivam e orientam a conduta dos homens em relação uns aos outros (BRANCALEONE,
2008, 103) possibilitam e mediação a inserção social de indivíduos na sociedade
receptora.
O fenômeno migratório urbano aludido no anuário do estado do Rio Grande do Sul
sinalizava a existência de algumas nacionalidades migratórias mais bem aceitas em
relação a outras:

O numero de immigrantes no estado do Rio Grande do Sul em 1891 foi


consideravel, tendo sido, segundo os dados officiaes de 24,325. Os
immigrantes em 1890 comprehenderam 3,593 familias, constando de
13,034 pessoas maiores de 12 annos de idade e 7,423 de menos dessa
idade. Os italianos excedem em muito os outros immigrantes e, em
verdade, constituem grande proporção da população do estado.
(ANUÁRIO, 1893, p. 151).

Os italianos podiam ser encontrados nas cidades monopolizando algumas


profissões e trabalhando como comerciantes e industrialistas. De modo geral eram
maioria tanto nas turmas de trabalhadores das estradas de ferro e obras publicas, quanto
nas colônias italianas dos distritos próximos a Porto Alegre (ANUÁRIO, 1893, p. 151).
Olhando pelo viés do desenvolvimento urbano era na capital que se apresentava um
panorama propício para novos empreendimentos comerciais.

Giacomo Bernardi e a Fazenda Moderna


Foi nesse cenário que Giacomo Bernardi, natural da Provincia de Vicenza, na
Região do Veneto, imigrou para o Brasil em 1883. Integrava uma leva de imigrantes
italianos destinados à Colônia de Caxias, não se sabe por que razão ele mudou-se para a
cidade de São Jerônimo onde se estabeleceu por dois anos trabalhando como gerente de
uma fabrica de tijolos e artefatos de cimento. Após ter somado certo capital financeiro,

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mudou-se para Porto Alegre onde passou a dedicar-se à produção de hortaliças e frutas e
criação de gado leiteiro. Iniciou com um pequeno empreendimento e foi conquistando
mercado da capital com fornecimento de leite para o Mercado Público que abastecia a
cidade.
Por volta do ano de 1984, quando contava com um capital significativo comprou
uma vasta extensão de terras onde hoje se situam o Bairro Passo da Areia. O
empreendimento contava com aproximadamente 150 hectares (em torno de 15. mil
metros quadrados) de terras. A Fazenda fornecia diariamente 300 litros de leite para o
Mercado Público de Porto Alegre. Com a finalidade de melhorar a produção de leite
importou e efetuou o cruzamento de animais da raça Holandesa e Jersey e em poucos anos
havia constituído a Fazenda Modelo.

Figura 1 - Bernardino Bernardi Giacomo Bernardi Bortolino Bernardi

(CINQUANTENARIO II, 2000, p. 368)

O viajante italiano Vitório Buccelli (1906) descreve a propriedade com esmero,


priorizando os ângulos positivos: o primeiro apresenta uma casa com um pequeno terraço
localizada em um terreno plano. Na frente da casa se encontrava a família composta um
homem gordo, simpático e jovial, duas meninas, dois jovens e algumas crianças pequenas.
A casa era circundada por um jardim onde cresciam arvores frutíferas de espécies
indígenas, estrangeiras e vinhas plantadas de maneira a lembrar dos vinhedos da
Toscana. As frutas e o vinhedo ocupavam dois hectares de terra usados como campo
experimental de cultura racional.

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Figura 2 - Propriedade de Giacomo Bernardi (1900)

(BUCCELLI, 1906, p. 131-134)

É sobre o sucesso do empreendimento que o relato do viajante se detém quando


conta que a fazenda recebeu três prêmios por ocasião da Exposição Agro-pecuária da
Sociedade Agrícula-indutrial Centro Econômico do Rio Grande do Sul, em reconhecimento
da eficácia do experimento os produtos frutíferos e da criação de gado.

A criação de gado e feita com rigor científico, conforme se observa no estábulo


que é muito eficaz sendo inclusive melhores que os da Europa embora sejam de
madeira coberta de zinco. O estabelecimento e composto de um grande galpão
ladeado por mangueira gigantes que se estendem até onde aparecem os últimos
vestígios da floresta virgem no terreno desarborizado..Na propriedade havia
somente uma máquina agrária profissional que se adaptava perfeitamente a
cultura tropical. Tinha vindo especialmente para a fazenda, direto da França
através da Casa A. Bajac di Liancourt dos Estados unidos da América 447
(BUCCELLI, 190 6, p.131-34).

O excerto informa sobre um sistema racional de produção tanto na criação de


gado, de hortaliças e frutas aliado à utilização de instrumentos tecnológicos adaptáveis ao
clima Brasileiro. As máquinas eram adquiridas por meio de agentes que recebiam
catálogos disponibilizados aos representantes do produto.

447 Tradução da autora.

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Figura 3 - Máquinas Agrícolas

(ALMANAK LAEMMERT, 1902, p. 893).

O desenvolvimento de técnicas de criação, o manejo racional das terras e a


tecnologia implicaram no aumento da produção de grãos, de forragem e no avanço da
modernização da agricultura.

Entende-se por modernização da agricultura, as modificações introduzidas na


base técnica de produção, isto é, substituição das técnicas tradicionais por
técnicas modernas. Em vez de instrumentos rudimentares de trabalho, usa-se
maquinas e implementos agrícolas, tratores, insumos e defensivos agrícolas.
Mas, acima de tudo, modifica-se a organização da produção com a introdução do
assalariamento no campo (altera-se a base técnica), incorpora-se a agricultura
ao circuito global de produzir, consumir e principalmente atrelada ao setor
financeiro (MULLER, 1997, p. 61).

Foi dentro deste processo que mais tarde os filhos de Giacomo, Bernardino e
Bertolino se associaram ao pai e continuaram incrementando o empreendimento
conforme informa o diário oficial de 1913, página 3906, em requerimento do Presidente
da Associação de Criadores de Gado ao Sr. Alfredo Gonçalves Moreira onde solicita ao
governo autorização para os Srs. Giacomo Bernardi & Filhos importarem touros da raça
flamenga e gado vermelho das planícies do norte da Europa (DIÁRIO OFICIAL, 1913. p.
3906). A vinda dos animais tinha como fim refinar o gado leiteiro para aumentar a

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produção de leite e com isso criaria um excedente que seria ser manufaturado se
transformando em queijo e doces.
Cinco anos antes da morte do pai, em 1929 os irmãos, se associaram e fundaram
a empresa Irmãos Bernardi e Cia. Compraram e lotearam os terrenos de Eugênio Rubbo e
Francisco Zanenga que compreendiam o atual Bairro Cristo Redentor. Giacomo Bernardi
faleceu em 1936 e foi sepultado no Cemitério da Santa Casa, deixou uma herança
significativa para os filhos constituída tanto de bens materiais como de prestigio
comercial e econômico advindos das atividades agrícolas, pecuárias e industriais as quais
se dedicou desde sua chegada em Porto Alegre.
A sepultura de Giacomo Bernardes construída em estilo eclético está orientada
pela a imagem de Santo Antônio448, o santo da devoção familiar. A obra tumular se situa
na parte antiga dos enterramentos onde estão aquelas pertencentes aos políticos,
comerciantes e industriários, ou seja, a elite econômica da capital gaúcha. Na lápide se
observa a inscrição do nascimento, em 1854 na localidade de Vicenza na Itália e do
falecimento em Porto Alegre em 1936. A grafia italiana da localidade de nascimento do
Patriarca está associada a sua identidade, articula sentidos produzindo significados que
despertam a construção da memória ancestral. O túmulo guarda os restos mortais dele da
esposa e dos filhos ligados não apenas por laços de sangue, mas também por laços de
pertencimento.

448 A devoção ao santo é recorrente nos imigrante oriundos do


norte da Itália, pois a aproximadamente meia
hora de distância de Veneza, encontra-se Pádua, a terceira maior cidade do Veneto onde está localizada a
Basílica de Santo Antônio.

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Figura 4 e 5 - Mausoléu da Família Bernardi e


Detalhe

(CEMITÉRIO DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PORTO ALEGRE).

A ligação do patriarca com o passado e o local de origem é evocada tanto na


devoção a Santo Antonio, quanto na herança histórica simbolizada pelas colunas romanas
que sustentam o nicho do Santo. A elaboração da obra com elementos da antiguidade
configura sua origem e o identifica com seu grupo. Deve-se considerar, nesse processo
que continuidade, tradição e transformação coexistem e concorrem para a construção de
uma nova ordem real ou imaginada que sempre pressupõe um retorno (TETI, 2001, p.
577).
Nessa direção a construção do tumular é depositária de uma enunciação
relacionada à memória ancestral. A memória, no caso dos familiares em relação à origem
da família transmuda experiências vividas por Giacomo do passado para o presente. Nesse
sentido a memória evocada através dos símbolos produz a sensação ilusória de que é
possível reavivar o que passou, tornando o passado uma presença acessível. (CANDAU,
2011, p. 15).

Vicente Monteggia e a Colonia Villanova d’Italia


Vicente Monteggia, natural de Laveno-Mombello, Lago Maggiore, distrito de
Moróstica, no Piemonte nasceu em 1856. Industrial, agricultor, comerciante, organizador
de empresas, construtor e técnico em construção de estradas (Agrimensor) que imigrou

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para o Brasil em data imprecisa. Sabe-e que veio para o Rio Grande do sul em 1885 onde
se radicou na Colônia de Beto Gonçalves. Provavelmente sua vinda ocorreu em resposta à
oportunidade de trabalho que se criara, graças ao desenvolvimento da zona colonial,
concomitante com desenvolvimento urbano infraestrutural que os centros urbanos
viviam em função da imigração europeia.
No caso de Monteggia ele desenvolveu na nova pátria uma profissão de técnico de
construção de estradas, se inserindo no que se conhece por deslocamentos de carreira:
Aquele em que o indivíduo se desloca respondendo a oportunidades de ocupação de
postos oferecidos por uma organização a que pertence, ou, de indivíduos associados a
uma profissão que já exercem. (TILLY, 1978 apud TRUZZI, 2008, p. 200). O trabalho exigia
mudanças constantes. Em 1886 estava residindo em Alfredo Chaves, atual Veranópolis,
mesmo local onde se estabeleceu em um lote de terra, construiu um moinho e casou com
a imigrante italiana Marietta Morandi. Permaneceu residindo em Alfredo Chaves
enquanto prestava serviços ao governo nos trabalhos na construção de estradas e de
linhas férreas e telegráficas.
Sobre esse período relatos dão conta que no mês de outubro em 1892 se
encontrava trabalhando como fiscal da Comissão de Terras quando realizavam serviços
para abrir a estrada que ligaria Campo dos Bugres ao Paese Novo (Antonio Prado). No
inicio de 1993, o Dr. José Montauri Aguiar Leitão Engenheiro chefe da Comissão de Terras
e Colonização encarrega Vicente Monteggia de administrar a construção coordenando os
serviços de construção da estrada. (BARBOSA, 1915, p.31).
Quatro anos depois, em 1897 o Dr. José Montauri assumiu a intendência de Porto
Alegre e no mesmo ano Vicente Monteggia, atendendo ao convite do intendente, se
estabeleceu com a família nos arredores na capital. Lembra-se que o imigrante “de posse
de uma técnica manual de trabalho mais elaborada, tornava-se viável passar da condição
de trabalhador especializado a proprietário de pequena oficina e mesmo a industrial, ou
fixar-se nas oportunidades industriais oferecidas pelas cidades” (SEYFERTH, 1990, p. 59-
70).
Estimulado pelo intendente, Vicente Monteggia adquiriu vinte hectares de terra e
fundou a Colonia Villanova d’Italia, onde desde 1892, já estavam estabelecidas famílias
italianas oriundas da região norte da Itália. No mesmo ano que se estabeleceu em Porto
Alegre, fundou a escola destinada a instrução dos filhos dos imigrantes. No ano seguinte,

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viajou para Itália com o objetivo de recrutar de famílias trentinas, mantovanesas,


cremonesas e de outras regiões da Itália (BUCCELLI, 1906, p. 141) que adquiriram glebas
de terras por ele loteadas e as transformaram em chácaras, com plantações de videiras,
árvores frutíferas.

Figura 6 - Vicente Monteggia

(SILVA; PERES; SCHEDKOWITZ, s/d).

O empreendimento migratório urbano foi possível em decorrência da Lei de Terras


de 1850 segundo a qual o imigrante adquiria seu lote contraindo dívidas com o governo,
ou com as empresas colonizadoras, nesse caso era um empreendimento particular de
colonização. Após alguns anos de trabalho, o colono que comprara o lote, conseguia quitar
seus débitos, tornando-se proprietário de sua terra (SEYFERTH, 1990; SANTOS, 1995).
Ao intermediar a vinda de famílias para o Brasil Monteggia promoveu o que se
chama “deslocamento em cadeia que envolve a mobilidade de indivíduos motivados por
uma série de arranjos e informações fornecidas por parentes e conterrâneos já instalados
no destino” (TILLY, 1978 apud TRUZZI, 2008, p. 200). Depois da vinda da primeira leva
de imigrantes muitas famílias da mesma região continuaram se deslocando em pequenos
grupos nos anos subsequentes449, provavelmente para suprir a mão de obra demandada

449Os deslocamentos, tanto anteriores como posteriores à criação da Colônia podem ser constatados no
Cemitério São Jose e no Livro Tombo da Igreja São José. Acredita-se que haja mais informações no Cemitério
de Belém e na Igreja Nossa Senhora das Graças que administrava a capela e o cemitério Villanova d’italia
sendo os casamentos, batismos e enterramentos efetuados pelo padre da referida igreja.

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pelas colônias estabelecidas ou para preencher os lotes que não haviam sido negociados.
(MALMANN, 1991, p. 10).
Assentados em lotes no local já estabelecido, a Colonia da Villanova d’Italia, os
imigrantes se associam ao fundador que passou a orientar vários empreendimentos na
comunidade, sempre apoiado tanto do intendente municipal como dos governos
estaduais. Depois de construir a escola, construiu a capela, um salão e parque de
atividades sociais e o restaurante450 Napolitano onde se apreciava a comida do cardápio
italiano. Todos os espaços estavam estrategicamente localizados próximo ao armazém 451,
local de sociabilidade da comunidade e onde eram efetuadas as transações comerciais
como compra e venda e troca de mercadorias.

Figura 7 - Colonia- Fugazzi Tommasso di Orzinuove

(BUCCELLI, 1906, p. 149)

De forma estratégica Monteggia monopolizou em suas mãos todos os negócios da


Villa como único comerciante e industrialista era o agente de compra e venda na colônia
o que lhe garantia muito poder e acessibilidade à comunidade. Outra estratégia que
garantiu prestigia do empreendedor favorecendo o aumento do seu patrimônio foi a
implementação de sistemas de comunicações, pois não há comércio sem comunicação.

450Nas dependências do restaurante funcionou também o primeiro cinema do bairro.


451Eram nos armazéns e bolichos, como eram denominadas as casas comerciais, que se concretizavam as
vendas, compras e troca dos produtos dos agricultores por produtos manufaturados (MULLER, 1997, p.47).

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Com esse propósito investia em estradas, instalou o primeiro telefone e adquiriu


caminhões facilitando o transporte dos produtos até o mercado.
Entre 1898 e 1900, Monteggia conseguiu a autorização do intendente e
juntamente com os colonos construiu a represa no Arroio Cavalhada com o objetivo de
canalizar a água para mover a turbina hidráulica do moinho. Aumentou investimento
instalando um engenho de moer cana de açúcar no porão moinho e produzindo a cachaça
Arzonte Fino, premiada no centenário do Ri de Janeiro em 1922 e em Teresópolis em 1923.
(MALLMANN, 1991, 17).

Figura 8 e 9 - Moinho (Parte externa) Moinho (Parte Interna)

(BUCCELLI, 1906, p. 146) (BUCCELLI, 1906, p. 147)

Nesse ponto se salienta que geralmente partiam dos comerciantes os movimentos


progressistas como: construir escolas, igrejas, trazer energia elétrica, etc. Se o
comerciante possuísse condução, o transporte de pessoa/ para festas e funerais.
(SARTORI, 1981, 138). Destacava-se a liderança do empreendedor tanto na comunidade
local quanto nos círculos políticos da capital. Observa-se que na a virada do século XX os
imigrantes acumulavam um capital respeitável o que lhes garantia uma aura de prestigio.
Dentre os sicilianos que tiveram a atuação estão La Porta, Provenzano e Lo Pumo, entre
os calabreses foi notório o papel de Antonio Frasca, Fedele Marranghello, Giuseppe
Failace, Leonardo Perrone, Antonio Rosito, e Gennaro Conte, dentre outros
(CONSTANTINO, 2008, 113-117).
.

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Figura 10 - Armazém e Casa de Negócio de Vicente Monteggia

(CINQUANTENÁRIO, 1925, p. 362) .

Na condição de proprietário do armazém452 a comercialização dos produtos da


Villa ficava a cargo do fundador que comprava a produção dos colonos, manufaturava e
vendia no mercado da capital e ao mesmo tempo supria outras demandas inerentes à
produção colonial trazendo comercializando outros produtos como tecidos, sal,
medicamentos etc. Após assistido a palestra sobre organização de cooperativas convidou
o Dr. Partenó para explicar aos moradores da Villa esse sistema de organização para
compra e venda de produtos. Após a exposição do sistema, nas dependências do armazém,
em 1911 foi criada sob a coordenação de Stefan Partenó453 e dos moradores, a
Cooperativa Agrícola e Caixa de Credito Rural contando inicialmente com 108 sócios.
Sobre as cooperativas.

Em 1911, por intermédio do Governo do Estado foi criada a lei que


regulamentava o sistema cooperativo para o setor vitivinícula. [...]
Surgiu então a figura do Dr. Giuseppe Stefano Partenó, italiano que
por convite do governo veio para o estado com objetivo de
organizar as cooperativas. [...] Em 1912 fundou a primeira
Cooperativa Agrícola de Caxias. (SANTOS, 2014 142)

452 Nesse viés a classe dos comerciantes não deve ser considerada como uma resultante, mas como uma
força cujo impulso se faz em todos os setores da vida econômica: produção, circulação e trocas da das
riquezas, crédito, construções urbanas, colonização (ROCHE, '1969 p.582).
453 Giuseppe Stefano Paternò. Advogado, catedrático, especialista em cooperativismo, com grande

experiência apoiado pelo ministério da Agricultura e Comércio do Estado, ministro Pedro de Toledo, e do
governador Borges de Medeiros, o italiano chegou a Porto Alegre em 1° de setembro de 1911. Realizou sua
primeira conferência sobre o cooperativismo no Teatro São Pedro. (GIRON, MACHADO; HERÉDIA. 2017).

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A cooperativa da Villanova nasceu em um momento no qual havia a necessidade


de organização dos pequenos produtores e do desenvolvimento da economia rural, não
só para a Colonia da Villanova d’Italia, mas também nas Colônias da Serra.
Hum ano após a criação da Cooperativa, Monteggia coordenou a construção da
estrada que se estenderia da Cavalhada até Belém Velho passando pela Villanova d’Italia
e seguiu promovendo benfeitorias na Colonia até sua morte em 1933. Foi seu desejo ser
enterrado no Cemitério São Miguel e Almas o que ocorreu como consequência de
divergências referentes às obras de construção da igreja e do Cemitério São José454,
somadas desentendimentos anteriores com moradores locais.
Figura 11 e 12 - Mausoléu da Família Monteggia
Detalhe interno

(CEMITÉRIO SÃO MIGUEL E ALMAS DE PORTO ALEGRE)

Suntuoso erigido em estilo eclético o mausoléu da família foi construído em


granito, mármore e ferro, expressa no detalhe religioso a reprodução da família santa do
vitral. A construção se encontra no espaço do campo santo onde estão enterradas famílias
de imigrantes italianos que ascenderam economicamente na capital gaucha. Nesse
sentido, o túmulo, portanto, simboliza a riqueza, poder e prestigio acumulados durante a
vida do imigrante. Devido à relevância social, política e econômica recebeu homenagem

454Toda sorte de desentendimentos no espaço social da Villanova nesse período estão registrados no Livro
tombo da Igreja São José.

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póstuma do governo do estado e do município em placa e monumento inaugurado com


festa na frente à Igreja São José (BRUM, 2009, p.426), também recebeu um tributo no qual
se deu seu nome á rua do bairro através da Câmara de Vereadores da capital.

Considerações
Acredita-se que Vicente Monteggia e Giácomo Bernardes, vindos do norte italiano
devam ser incluídos no rol de líderes que compuseram o quadro de imigrantes em Porto
Alegre no período. Observa-se que de forma incipiente existia investimento tecnologia
nos negócios de Giácomono Bernardi, porém o empreendedor priorizava o conhecimento
empírico associado ao científico melhorando a qualidade de seus produtos. Vicente
Monteggía, por seu lado investia em tecnologia de ponta e na diversificação dos negócios
ao mesmo tempo estimulava os colonos a se valerem do mesmo princípio na produção
alternando plantio de produtos. Essa estratégia garantia um mercado sustentado pelas
redes de relações fortemente alicerçadas em ideias progressistas.
Quanto às fontes utilizadas no texto, podem ser pensadas como suportes de
memória, só fazendo sentido se forem organizadas e disponibilizadas e disseminadas por
meio de produtos informacionais que permitem não apenas a socialização, mas também
a produção de conhecimento inspirada nos acervos constituídos que são tanto materiais
quanto virtuais. Lembrando os acervos materiais os virtuais foram e são constituídos
utilizando-se de técnicas e tecnologias diversas, de acordo com o tempo e o contexto,
dentro do processo civilizatório do homem, nas suas diversas áreas de atuação e
convivência.
Por fim no que tange ao patrimônio e a memória da cidade os documentos escritos
públicos ou privados (de cunho bibliográfico e jornalístico, oficiais, disponíveis na
internet) e as obras erigidas nos espaços cemiteriais dizem das modificações e
sobreposições da formação de um grupo humano. Sob a perspectiva antropológica e social
informam a cidade, a estrutura social, comunidades, sobre a língua, ritos, crenças e
costumes. As fontes aqui levantadas integram o que pode ser chamado patrimônio da
cidade Porto Alegrense porque fornecem dados e possibilidades sobre aspectos que
identificam a cidade.

Referências bibliográficas:

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PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS E EXTROVERSÕES DE EDUCAÇÃO


PATRIMONIAL SOBRE A REDUÇÃO JESUÍTICA DE SANTO ÂNGELO
CUSTÓDIO

Raquel Machado Rech*

Introdução
No Brasil a Educação Patrimonial foi discutida como foco principal a partir de 1983
depois no 1º seminário no Museu Imperial de Petrópolis - RJ. Inspirado na pedagogia da
Inglaterra desenvolve experiências que começam a tomar corpo, inicialmente, com ações
educativas voltadas para o trabalho no museu.
Através do incentivo do IPHAN é lançado em 1999 o Guia Básico de Educação Patrimonial
(HORTA et al, 1999) tornando-se um marco referencial nos trabalhos de educação
patrimonial no Brasil. Esta publicação desperta no universo educacional e nas questões
de salvaguarda do patrimônio cultural, caminhos para desenvolver na escola, na
comunidade, através do estado, do município a sensibilidade para manter a memória de
um local viva, em movimento. Nele encontramos a seguinte definição para o conceito de
Educação Patrimonial:

Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho


educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de
conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. A partir da
experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da
cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados o
trabalho de Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um
processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua
herança cultural. (HORTA et al, 1999, p. 6)

Quanto ao objeto de estudo na ação educativa, somos levados a pensar em


diferentes etapas metodológicas sugeridas para elaborar projetos de educação
patrimonial: a) observação (percepção, identificação do objeto); b) registro (visual ou
escrito, fixação do conhecimento); c) exploração (análise do problema e levantamento,
interpretação, evidências); e d) apropriação (releitura, interpretações de diferentes fontes,
envolvimento).

* Doutora em Arqueologia/IPHAN-RS.

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Além deste guia matriz, no portal do IPHAN na internet (www.iphan.gov.br)


encontram-se disponíveis uma vasta de demais guias, manuais, catálogos, livros e
cartilhas sobre educação patrimonial que servem de referência e base na elaboração de
novos projetos, dadas as especificidades culturais de cada local.
Essa metodologia pode levar os educadores a utilizarem os objetos culturais na
sala de aula ou nos próprios locais onde são encontrados, como peças chave no
desenvolvimento dos currículos e não simplesmente como mera ilustração.
Sendo assim, o aproveitamento e a localização do patrimônio material ou imaterial
desperta no aluno, com grande eficácia, um aprendizado na prática da história do que está
sendo pesquisado.
No Brasil há legislações específicas que condicionam a aplicação de projetos de
educação patrimonial em diferentes etapas dos estudos arqueológicos. Desta forma, é
possível elaborar diferentes ações de divulgação das pesquisas arqueológicas, as quais
revertem em inúmeros benefícios propiciando a apropriação consciente de diferentes
patrimônios culturais, auxiliando a fortalecer os sentimentos de identidade, pertença e
cidadania de comunidades locais.
Assim, a oportunidade de atuação em programas arqueológicos permite a
aplicação de uma vasta e criativa gama de atividades bastante elaboradas e diversificadas
de extroversão das pesquisas à comunidade.
Neste sentido, lançaremos foco aqui sobre ações educativas originais destinadas à
produção do conhecimento histórico referente à antiga redução jesuítico-guarani de
Santo Ângelo Custódio – o último dos Trinta Povos das Missões Jesuíticas a ser implantado
no contexto das Missões do Prata – cujas ruínas atualmente jazem no subsolo do Centro
Histórico da moderna cidade de Santo Ângelo, estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

Legislação sobre Educação Patrimonial no Brasil voltada para a Arqueologia


A legislação arqueológica brasileira satisfatoriamente condiciona a realização de
atividades de educação patrimonial a projetos de pesquisa arqueológica. É importante
salientar que tal extroversão oportuniza e reforça a apropriação consciente do patrimônio
cultural local de uma comunidade.
No Brasil a questão da extroversão pela divulgação das pesquisas científicas já era
prevista para os projetos acadêmicos no âmbito da Portaria SPHAN nº07/1988, a qual

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condicionava pedidos de permissão de pesquisa arqueológica à apresentação de


propostas de utilização futura do material produzido para fins científicos, culturais e
educacionais, bem como os meios de divulgação das informações científicas obtidas.
Posteriormente, a Portaria IPHAN nº230/2002 estabeleceu a obrigatoriedade de
atividades de Educação Patrimonial para os levantamentos arqueológicos em obras
submetidas ao licenciamento ambiental.
Com a Instrução Normativa IPHAN nº01/2015 – um aprimoramento da legislação
voltada para pesquisas arqueológicas no licenciamento ambiental – também é exigida esta
obrigatoriedade.
Mais recentemente, a Portaria IPHAN nº137/2016, institui um conjunto de marcos
referenciais para a Educação Patrimonial enquanto prática transversal aos processos de
preservação e valorização do patrimônio cultural no âmbito deste Instituto.
Diante deste cenário é possível elaborar diferentes ações de divulgação das
pesquisas arqueológicas, dentre seus as quais podemos destacar alguns dos inúmeros
benefícios que podem causar a uma comunidade, tais como oportunizar o conhecimento
crítico do estudo de sua história; propiciar a apropriação consciente do seu patrimônio
cultural; bem como fortalecer os sentimentos de identidade, pertença e cidadania de uma
comunidade local.
Embora obrigatória nos projetos arqueológicos, a educação patrimonial também é
uma ação bastante prazerosa e permite muita criatividade na extroversão dos resultados
das pesquisas arqueológicas para além da comunidade científica, alcançando a
comunidade em geral. Neste sentido, compartilhamos da ideia de que:

A Educação Patrimonial é um instrumento de “alfabetização cultural”


que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia,
levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória
histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao reforço da
autoestima dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura
brasileira, compreendida como múltipla e plural. (HORTA et al, 1999, p.
6)

Aplicação de Educação Patrimonial em Arqueologia: o caso de Santo Ângelo


A oportunidade de atuação em programas arqueológicos de longa duração
permite uma aplicação de atividades muito mais elaboradas e diversificadas. Desta forma,

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pode-se fugir da predominância de um tripé básico de ações caracterizadas por


palestras/cartilhas/oficinas, cuja crítica construtiva foi muito bem abordada por
BARCELOS & SILVA quanto a essa questão.

Sob esta ótica, em Santo Ângelo foi possível elaborar ações educativas originais
destinadas à produção do conhecimento histórico referente à antiga redução jesuítico-
guarani de Santo Ângelo Custódio, cujas ruínas atualmente jazem no subsolo do Centro
Histórico da moderna cidade de Santo Ângelo.
Cabe aqui ressaltar que dos Sete Povos localizados na banda oriental do Rio
Uruguai (atual Noroeste do estado do Rio Grande do Sul, Brasil) apenas os municípios de
São Borja e São Luiz Gonzaga ainda não exploraram o seu subsolo com escavações
arqueológicas para fins de pesquisas e atrativos turísticos. São Miguel, São João Batista,
São Lourenço e São Nicolau são administrados como Parques Nacionais pelo IPHAN e
Santo Ângelo desenvolveu legislação municipal e tem gerência local sobre seu patrimônio
arqueológico.
Neste sentido, as ações criadas no escopo dos projetos arqueológicos
desenvolvidos pelo município de Santo Ângelo proporcionam a oportunidade de divulgar
para a comunidade escolar e para o público em geral, na forma de extroversão criativa e
variada, o vasto resultado das pesquisas realizadas sobre os vestígios desta antiga
redução existente no subsolo do Centro Histórico da cidade de Santo Ângelo.
É importante salientar que Santo Ângelo é um dos raros municípios brasileiros que
mantém o cargo de arqueólogo dentro de seu quadro técnico-científico.
No amplo território do município de Santo Ângelo os tipos de vestígios
encontrados compreendem remanescentes pré-históricos da ocupação humana na
região, que remonta a até 8.000 AP (implementos líticos lascados). Já seus vestígios
relacionados aos remanescentes históricos – referentes à constituição edilícia e demais
evidências da cultura material – referem-se tanto à antiga redução de Santo Ângelo
Custódio que floresceu no séc. XVIII, quanto ao repovoamento ocorrido no mesmo sítio a
partir do séc. XIX e que deu origem à moderna cidade de Santo Ângelo.
Diante deste quadro ações de extroversão foram elaboradas em decorrência
de dois grandes programas de pesquisas arqueológicas coordenados pela presente autora

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ao longo do decênio compreendido entre os anos de 2006 a 2015, período em que atuava
enquanto arqueóloga do município455.
Ambos programas (sendo que o segundo é mais amplo e segue em andamento
contínuo subsidiado pela municipalidade) vem permitindo a descoberta, resgate e o
mapeamento dos vestígios da antiga redução em subsolo, gerando sempre novos
materiais para pesquisas, publicações, exposições, e atividades de educação patrimonial,
sendo estes:

1º) Programa de Acompanhamento e Monitoramento Arqueológico das Obras de Modificações


da Praça Pinheiro Machado, Antiga Redução de Santo Ângelo Custódio – convênio entre
a Prefeitura de Santo Ângelo e a Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões/URI (biênio 2006 - 2007);456 e

2º) Programa de Vistoria, Prospecção, Resgate e Monitoramento de Obras no Centro Histórico


de Santo Ângelo, Área do Sítio Arqueológico da Antiga Redução de Santo Ângelo Custódio –
gerido pela Prefeitura de Santo Ângelo (desde 2007).

O primeiro programa foi elaborado por ocasião das comemorações do


aniversário de 300 anos da redução, o qual concentrou-se num monitoramento
arqueológico das obras de remodelação da Praça Pinheiro Machado – a qual ocupa o
mesmo espaço da antiga Plaza Mayor da redução existente no local durante o séc. XVIII.
Um de seus principais objetivos foi o de integrar vestígios arqueológicos identificados
em subsolo com a remodelação da praça, perfazendo um marco comemorativo do
tricentenário desta redução jesuítica, culminando num Museu a Céu Aberto. Este
primeiro programa gerou diversas atividades de extroversão, dentre as quais:

 Visitas guiadas às escavações (2006);


 Exposições de fotografia digital (2006-2007);
 Quinzena de Jornadas de Arqueologia no Colégio Onofre Pires (2007)
(com oficinas de arqueologia em pátio de colégio na área da redução);
 Oficinas de História e Arqueologia Missioneira (2007-2008)457
(com oficinas de arqueologia na Praça Pinheiro Machado, antiga praça central da redução);

455 Como consequência de sua implantação, os resultados de tais ações seguem sendo conduzidas naquele
município pelas decorrentes gestões municipais e pelos novos recursos humanos que dão continuidade aos
projetos outrora implantados.
456 Este Programa contou com a coordenação geral da arqueóloga Raquel Rech e com a co-coordenação por

parte da URI da profa. Claudete Boff, então coordenadora do Centro de Cultura Missioneira e de seu Núcleo
de Arqueologia (NArq/CCM-URI), responsável pela atuação dos estagiários dos cursos de História e Geografia
desta universidade no projeto.
457 Realizado em parceria com a então historiadora lotada no Museu, profa. Bedati Finokiet;

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 Museu a Céu Aberto da Redução Jesuítica de Santo Ângelo Custódio (2006-2007) 458
(resultado final das escavações com exposição permanente à comunidade in situ);

O segundo programa supramencionado deu continuidade ao anterior, porém


abrangendo toda a área do Centro Histórico da cidade – local onde em seu subsolo jaz os
vestígios da antiga redução jesuítica.459 Um de seus principais objetivos é do de investigar,
resgatar e mapear vestígios previamente à realização de obras nesta área antes da
obtenção da licença para as obras. Para este segundo e contínuo programa foram
elaboradas as seguintes atividades de extroversão, de caráter permanente:

 Projeto de Educação Patrimonial Jornadas de Arqueologia Missioneira.


(agraciado Prêmio Darcy Riberio em 2010); 460
 Cartilha Digital do Projeto de Educação Patrimonial Jornadas de Arqueologia Missioneira
(RECH et al., 2015) elaborada também como resultado de bolsas concedidas pela FAPERGS;
O Projeto de Educação Patrimonial Jornadas de Arqueologia Missioneira

Dentre todas as ações de educação patrimonial oriundas dos dois amplos projetos
de pesquisa arqueológica implantados em Santo Ângelo apresentados acima, cabe
apresentar aqui um olhar mais detalhado sobre o Projeto de Educação Patrimonial
Jornadas de Arqueologia Missioneira.
Este projeto foi originalmente elaborado no ano de 2009 para ser executado pelas
diferentes equipes de estagiários e bolsistas deste Núcleo de Arqueologia do Museu
Municipal Dr. José Olavo Machado (NArq-MMJOM) e atender a extroversão das pesquisas
arqueológicas realizadas na área do Centro Histórico de Santo Ângelo, visando ensinar de
forma lúdica sobre o passado desta antiga redução que vigorou na primeira metade do
séc. XVIII.

458 Implantado paulatinamente através de processos licitatórios com recursos oriundos do Ministério do
Turismo, bem como dotação própria da Prefeitura de Santo Ângelo através diferentes etapas: identificação das
áreas mais expressivas para exposição dos vestígios no decorrer das escavações (2006 e 2007); erguimento
das muretas de proteção dos vestígios escavados e selecionados para exposição in situ (2006 e 2007);
instalação de coberturas provisórias (2006 a 2009); implantação de painéis e placas explicativas junto às
"janelas arqueológicas" (2009); implantação das telas de ventilação e cobertura de vidro das "janelas
arqueológicas" (2009); e colocação de grade de proteção na boca do poço d´água (2010).
459 Dado seu caráter contínuo, este projeto segue doravante sendo coordenado atualmente pela Bacharel

Thalis Garcia, a qual assume o cargo técnico-científico de arqueóloga do município de Santo Ângelo desde o
ano de 2016 (NArq/MMJOM/PMSA);
460 Este projeto foi um dos reconhecidos pelo Prêmio Darci Ribeiro 2010, concedido pelo Instituto

Brasileiro de Museus vinculado ao Ministério da Cultura (IBRAM/MinC), considerado figurando dentre


as melhores ações educativas de museus brasileiros (RECH & FARIAS, 2012, p.100-107).

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Aplicado em meio aos vestígios reducionais escavados e expostos in loco, mais


especificamente no entorno da Praça Pinheiro Machado e da Catedral Angelopolitana, este
projeto atende à legislação nacional que determina a execução de atividades de educação
patrimonial em pesquisas arqueológicas.
Destinado inicialmente a alunos de 4ª Série e 5º Ano do Ensino Fundamental das
Redes Municipal e Estadual de Ensino de Santo Ângelo – quando se ensina a história das
Missões Jesuíticas na grade curricular – o projeto foi elaborado priorizando um ensino
lúdico-interativo.
Este projeto segue as premissas do Construtivismo, preconizado por Jean Piaget,
que trouxe a ideia de que o aprendizado é construído pelo aluno. Educar para Piaget é
‘provocar a atividade’ partindo do princípio de que o desenvolvimento da inteligência é
determinado pelas ações mútuas entre o indivíduo e o meio. Esta concepção de
conhecimento e aprendizagem parte da ideia de que o homem não nasce inteligente, mas
também não é passivo sob a influência do meio, isto é, ele responde aos estímulos externos
agindo sobre eles para construir e organizar o seu próprio conhecimento, de forma cada
vez mais elaborada.
Nesta concepção, o conhecimento não se traduz em atingir a verdade absoluta, mas
numa questão de adaptação a seu meio ambiente. Assim, o sujeito do conhecimento está
o tempo todo modelando suas interpretações com base nas suas experiências. O próprio
mundo sensorial com que se depara é um resultado das relações que se mantém com este
meio, de atividade perceptiva para com ele, e não um meio que existe independentemente.
Daí a importância da forma lúdico-interativa com que este projeto se propõe a
ensinar sobre a história da antiga redução jesuítica de Santo Ângelo Custódio que vigorou
durante o século XVIII no mesmo local onde hoje está localizado o Centro Histórico da
moderna cidade de Santo Ângelo, explorando a sensorialidade dos participantes por meio
de audição de músicas barroco-missioneiras (composições do padre jesuíta Domenico
Zipoli); além da degustação de “lanches temáticos” com sabores consumidos na época das
missões (priorizando a erva-mate, o milho, e frutos e dos pomares da quinta); além da
própria experiência tátil da experimentação de escavações simuladas no local.
Por meio desta forma lúdico-interativa ao que o projeto Jornadas de Arqueologia
Missioneira se propõe a ensinar sobre a história da antiga redução jesuítica, identificamos
neste projeto o que Paulo Freire define como ‘ensinar exige curiosidade’:

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O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções,


a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do
objeto ou do achado de sua razão de ser. Um ruído, por exemplo, pode
provocar minha curiosidade. Observo o espaço onde parece que se está
verificando. Aguço o ouvido. Procuro comparar (...) Investigo melhor o
espaço (...) Admito hipóteses (...) Elimino algumas até que chego a sua
explicação. (FREIRE, 1996, p.98)

Para facilitar o ensino de forma lúdica, este projeto insere uma nova modalidade
que confere grande importância para o processo de ensino-aprendizagem: a interação
entre personagens históricos e alunos. Isso ocorre através de intervenções cênicas
interativas de atores caracterizados de personagens históricos461 durante a explanação
interativa dos conteúdos ensinados, que versam sobre a vida quotidiana nas missões,
trazendo o foco para a redução de Santo Ângelo Custódio, pertencente ao passado desta
comunidade.
Nesse sentido, o papel do teatro x educação traz uma colaboração ainda não
experimentada nos projetos de educação patrimonial relacionados à pesquisas de
Arqueologia Histórica já realizadas em Santo Ângelo, preenchendo assim um papel
fundamental no processo de ensino-aprendizagem:

Por ser uma disciplina ligada aos acontecimentos do passado, a História


auxilia o indivíduo a perceber a trajetória do ser humano na construção
da realidade em que está colocado. Através dos acontecimentos e dos
questionamentos que o passado nos coloca, a História nos auxilia a
repensar as questões da atualidade. Ela aguça no homem o exercício da
reflexão. Exercício este que não é exclusivamente apenas da História, mas
também de outras ciências humanas, que possuem em sua gênese a
ativação do pensamento crítico-reflexivo. Isso ocorre no momento em
que procura analisar ao fundo a formação de cenários históricos em
diferentes aspectos da vida em sociedade e nos mais diferentes
momentos da história da humanidade. (MARCHI, 2007, p.36-37)

A seguir, demonstramos um panorama geral do Projeto de Educação Patrimonial


Jornadas de Arqueologia Missioneira. Sua execução em diferentes momentos pela equipe
do NArq/MMJOM, contempla experiências cognitivas, lúdicas e sensoriais com os
participantes:

 Palestras audiovisuais na atual Praça Pinheiro Machado (local da Plaza Mayor da


antiga redução);

461Estagiários do NArq-MMJOM treinados com roteiros oferecidos pelos então diretores das Oficinas
de Teatro da Secretaria Municipal de Cultura de Santo Ângelo, Darlan de Mamman Marchi e Juliani
Borchard, entre os anos de 2009 a 2011.

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 Visita guiada às “janelas arqueológicas” do Museu a Céu Aberto da Redução


Jesuítica de Santo Ângelo Custódio (para visualização de resultados das pesquisas
arqueológicas executadas na cidade);
 Pausa para “lanche temático” (onde são experimentados sabores consumidos na
época reducional);462
 Audição de música barroco-missioneira;
 Intervenções cênicas de personagens históricos x arqueólogos x alunos;
 Oficinas de arqueologia com escavações simuladas;
 Oficinas de cerâmica (elaboração de miniaturas de cerâmica guarani);463
 Oficinas de desenho (de livre escolha aos pontos mais marcantes da atividade);464
 Emissão de certificados de participação; e
 Emissão de uma Folha de Atividades Pós-Oficina, cuja matriz é cedida às escolas
participantes para continuidade dos estudos de forma lúdica em sala de aula.

Este projeto teve grande receptividade na rede escolar de Santo Ângelo, tornando-
se programação já inserida na grade curricular das redes municipal e estadual de ensino
da cidade alcançando centenas de alunos a cada ano sendo direcionado à rede municipal
durante o 1º semestre letivo, à rede estadual durante o 2º semestre letivo465 e à rede
particular em datas comemorativas.466
O projeto teve enorme alcance e reconhecimento fazendo com que no seu segundo
ano de atuação fosse um dos projetos reconhecidos pelo PRÊMIO DARCI RIBEIRO 2010,
concedido pelo Instituto Brasileiro de Museus - IBRAM/Minc, por configurar dentre as
melhores ações educativas de museus brasileiros, tendo sido selecionado para publicação
em revista editada pelo IBRAM/Minc467 (RECH & FARIAS 2012).

A Cartilha Digital do Projeto de Educação Patrimonial Jornadas de


Arqueologia Missioneira

462 Os lanches temáticos são preparados por meio de uma lista de sugestão de alimentos fornecidos para
serem elaborados pelas merendeiras das escolas participantes.
463 Oferecidas apenas eventualmente, quando há grupos muito grandes de alunos, para haver um rodízio

entre as atividades oferecidas.


464 Ídem à nota anterior.
465 Contanto com o apoio das Secretarias Municipais de Cultura, Turismo, e Educação, bem como da 14ª

Coordenadoria Regional de Educação (14ª CRE) para a articulação logística de deslocamento,


fornecimento dos lanches temáticos e impressão dos certificados de participação dos alunos.
466 Na Semana do Município, em março; ou na semana do “Dia do Arqueólogo”, em Julho.
467 Edital Nº 9 de 18 de Junho de 2010: Resultado do Concurso Prêmio Darcy Ribeiro, publicado no

D.O.U. em 8 de julho de 2010.

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A iniciativa de ampliar a antiga Folha de Atividades Pós-Oficina, cedida às escolas


participantes do Projeto de Educação Patrimonial Jornadas de Arqueologia Missioneira
numa Cartilha Digital (RECH et al., 2015), cumpriu dois objetivos principais:
Primeiramente cumpriu com a ampliação do público-alvo a ter acesso a esta
atividade educativa, pois se antes a antiga Folha de Atividades Pós-Oficina era fornecida
somente às turmas das escolas participantes, atingindo apenas algumas de centenas de
alunos por mês de atividade, com a disponibilidade desta Cartilha Digital via internet o
público passa a ser qualquer pessoa interessada em conhecer e praticar o estudo de forma
lúdica sobre aspectos da Arqueologia Histórica Missioneira, principalmente sobre a
Arqueologia e História da antiga redução jesuítico-guarani de Santo Ângelo Custódio, que
as pesquisas desenvolvidas pelo NArq/MMJOM podem, assim, extroverter à comunidade.
Outro objetivo alcançado com a transformação da antiga Folha de Atividades Pós-
Oficina ampliada numa Cartilha Digital foi resultado da concessão de 2 bolsas do
Programa de Bolsas de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio
Grande do Sul (PIBIC/FAPERGS) ao NArq/MMJOM durante o ano de 2015. Sendo que aos
bolsistas selecionados para a concessão destas bolsas foram os então estagiários Eduardo
Lima da Luz (então acadêmico de História da UNIJUÍ) e Laís Francine Weyh (então
acadêmica de Pedagogia da URI), os quais ficaram incumbidos de aprimorar e criar
novas atividades para a cartilha. Sua elaboração contou também com a colaboração do já
bolsista e estagiário da Prefeitura Municipal no NArq durante o ano de 2015, Leandro da
Silva Zimmermann (acadêmico de História da Faculdade Anhanguera), que também
colaborou incondicionalmente com as tarefas de aprimoramento das atividades de
educação patrimonial voltada à arqueologia.
Subdividida para diferentes públicos que vão desde a Educação Infantil pré-
escolar, com ênfase no ensino lúdico; quanto ao Ensino Fundamental, tanto voltado para os
anos iniciais, 1º ao 5º Ano, baseado em princípios de interdisciplinaridade e
contextualização voltados para o letramento, alfabetização e incentivo à pesquisa, quanto
aos anos finais, 6º ao 9º Ano, baseado em princípios de interdisciplinaridade e
contextualização; para contemplando o público escolar de idade maior, há também
algumas atividades voltadas para o Ensino Médio, as quais exigem um maior grau de
complexidade e concentração.

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Desta forma, a transformação da antiga Folha de Atividades Pós-Oficina numa


Cartilha Digital pode ampliar seu público-alvo para toda a comunidade escolar, bem como
demais interessados em geral, sendo a extroversão destas atividades à comunidade de forma
virtual propiciada através do Blog do Museu Municipal Dr. José Olavo Machado através do
link: http://museuolavomachado.blogspot.com.br/2016/05/cartilha-digital-do-projeto-de-
educacao.html.
Estas ações, planejadas para serem desenvolvidas de forma contínua, seguem
sendo desenvolvidas pelas equipes subsequentes que atuam no NArq/MMJOM. Para
tanto, foram escritos Termo de Tranferência de Direitos Autorais para que ambos projetos
permanentes possam ser continuados pelas novas equipes a lotarem o Núcleo de
Arqueologia do Museu doravante.468

Conclusão
Dentre as inúmeras atividades de extroversão das pesquisas arqueológicas levadas
a cabo em Santo Ângelo realizadas como consequência de 2 grandes programas de
pesquisas arqueológicas coordenados pela presente autora ao longo dos anos de 2006 a
2015, período em que atuava enquanto arqueóloga do município são passíveis de
destaque as seguintes extroversões à comunidade:

• Museu a Céu Aberto da Redução Jesuítica de Santo Ângelo Custódio (2006);


• Projeto de Educação Patrimonial Jornadas de Arqueologia Missioneira (2009);
• Cartilha Digital do Projeto de Educação Patrimonial Jornadas de Arqueologia
Missioneira (2015).

Estas ações permitiram trabalhar ações educativas sobre a história de Santo


Ângelo, no Sul do Brasil, o qual abriga em seu subsolo vestígios da antiga redução
jesuítico-guarani de Santo Ângelo Custódio a última a ser implantada no contexto dos
Trinta Povos das Missões na Região do Prata.

468Tendo em vista aprovação em processo seletivo junto ao IPHAN-RS, o que levou à necessidade de
desligamento desta autora da coordenação do NArq/MMJOM no final do ano de 2015, a Prefeitura de Santo
Ângelo providenciou novo processo seletivo para lotação da vaga de arqueólogo do município, sendo que a
partir de 2016 cabe à nova coordenadora deste Núcleo, a Bacharel Thalis Garcia e suas novas equipes a
tarefa de dar continuidade à condução destes projetos de cunho permanente, as quais vem sendo
continuadas de forma meritória pelas novas equipes do NArq/MMJOM.

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A possibilidade de difusão cultural para a comunidade escolar dos bens materiais


que contam a história de seu passado e da evolução da sua história local por si só justifica
a realização de projetos de educação patrimonial, assim como a preservação da história
da cultura material de um determinado local oportunizando à comunidade o
conhecimento crítico de sua história e a apropriação consciente do seu patrimônio
cultural, levando ao fortalecimento dos sentimentos de identidade e cidadania.
Dentre inúmeras atividades de extroversão das pesquisas arqueológicas levadas a
cabo em Santo Ângelo durante a década em pauta, destaca-se a criação do Museu a Céu
Aberto da Redução Jesuítica de Santo Ângelo Custódio; dando foco ao turismo-cultural na
cidade; um projeto de educação patrimonial contínuo destinado à comunidade escolar
local, o Projeto de Educação Patrimonial Jornadas de Arqueologia Missioneira; bem como
uma Cartilha Digital disponibilizada no Blog do Museu Municipal de Santo Ângelo,
estendendo a extroversão das pesquisas para o grande público em geral, permitindo a
ampla difusão dos resultados das atividades desenvolvidas pela equipe do Núcleo de
Arqueologia do Museu Municipal Dr. José Olavo Machado - NArq/MMJOM, que, em última
instancia, visa ensinar de forma lúdica sobre o passado desta antiga redução que vigorou
na primeira metade do séc. XVIII, fazendo-se um elo de ligação entre o passado pré-
histórico e a história mais recente do repovoamento no local.
Estas ações, planejadas para serem desenvolvidas de forma contínua, seguem
sendo desenvolvidas pelas equipes subsequentes que atuam no NArq/MMJOM, sendo que
o desafio para a atualização do projeto e da cartilha fica sendo um permanente desafio
para as futuras gerações de pesquisadores que assumirem esta instigante tarefa de gerir
sobre os estudos e pesquisas históricas e arqueológicas sobre a história de Santo Ângelo.

Referências Bibliográficas:

HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriana Queiroz.


Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN, Museu Imperial de Petrópolis, 1999.

BARCELOS, Artur Henrique Franco; SILVA, Adriana Fraga da. Entendi. Não entendi. A
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Paulo Abreu; CAMPOS, Juliano Bitencourt; RODRIGUES, Marian Helen da Silva Gomes.
Arqueologia Pública e Patrimônio: Questões Atuais. Criciúma: Ed. UNESC, 2015. p.17-50.

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KERN, Arno Alvarez. Arqueologia Histórica Missioneira. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

MARCHI, Darlan de Mamann. Palco, Política e Poder: o Teatro do Oprimido no Ensino de História
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Ângelo, RS, 2007.

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RECH, Raquel Machado; ZIMMERMANN, Leandro da Silva; WEYH, Laís Francine; LUZ,
Eduardo de Lima da. Cartilha Digital do Programa de Educação Patrimonial Jornadas de
Arqueologia Missioneira. Santo Ângelo: PMSA e FAPERGS, 2015
(http://museuolavomachado.blogspot.com.br/2016/05/cartilha-digital-do-projeto-de-
educacao.html).

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ENTRE A CIDADE SEREIA E A CIDADE LEVIATÃ: A MUNICIPALIDADE E A


AGENDA URBANA NO BRASIL OITOCENTISTA

Williams Andrade de Souza*

Nos tempos coloniais, o direito de almotaçaria reservava ao juiz almotacé a


responsabilidade pela fiscalização e execução da tríade agenda do viver urbano: o
mercado, o construtivo e o sanitário. No Brasil do século XIX, parte daquelas atribuições
permaneceria integrada ao governo municipal, ainda que circunscrito a uma lógica da
divisão dos poderes então estabelecida, ficando as autoridades municipais incumbidas
estritamente das prerrogativas da administração e vigilância das minúcias daquela
agenda (PEREIRA, 2001; ENES, 2010; SOUZA, 2016).
Segundo a Lei de 1º de outubro de 1828, que deu forma às Câmaras Municipais,
marcou suas atribuições e o processo para a sua eleição, permaneceria sob a alçada das
municipalidades o “governo econômico local”, um conjunto de atribuições
administrativas que contemplava: “urbanismo em geral e obras públicas; saúde;
assistência social; polícia ‘social’; proteção ao trabalho e à propriedade”, contribuindo
diretamente para a promoção e manutenção da tranquilidade, segurança, saúde e
comodidade dos habitantes, com o asseio, segurança, elegância e regularidade externa dos
edifícios e ruas das povoações, só para citar alguns (TORRES, 1957, pp. 422, 432; Lei de
1º de outubro de 1828. In: COLEÇÃO, 1878).
O crescimento do número de vilas e cidades e seus habitantes no Brasil oitocentista
se deu paralelo à ampliação daquela tríplice agenda, pari passo também à formação do
espaço público. O Recife figuraria entre aqueles lugares representativos onde dita tríade
fomentou tanto a cidade sereia, com seus encantos e benesses, quanto a cidade leviatã,
com seus desalentos e problemáticas. De 1828 a 1855 o município pulou de sete
freguesias para dez, sendo quatro delas urbanas e as outras seis rurais, nesse segundo
momento. No mesmo intervalo de tempo, o salto populacional foi 67,7 % (de 38.159 para
63.993), 25.834 novas almas, 65% das quais viviam na cidade propriamente dita. O perfil
dessa gente era majoritariamente de livres ou forros: 74,03% contra os 25,97%

*Doutorando em Estudos Históricos Latino-Americanos, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista
Capes/PROSUP. E-mail: willandsouza@hotmail.com

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escravizados, e a escravidão caracteristicamente urbana, pois pouco mais de 62% da


categoria escrava convivia nos bairros centrais469.
Nesse contexto espaço-temporal e universo de composição social, quais as
características da agenda do mercado, do construtivo e do sanitário e a atuação do poder
municipal sobre ela? Atentar para essa questão pode nos ajudar a pensar como a
municipalidade poderia, por meio da administração, imprimir certos ritos da
modernidade na localidade e seus habitantes, fortalecer o seu papel enquanto instância
político-administrativa e fomentar ou circuitar a institucionalização do Estado liberal
brasileiro nos oitocentos.

A agenda do mercado
Desde os tempos coloniais, a regulação e vigilância da mercancia nas vilas e cidades
fazia parte da administração camarária. Além de zelar pelo abastecimento de gêneros de
primeiras necessidades, a municipalidade deveria também regular o cotidiano do
mercado, suas práticas e sociabilidades nele vivenciadas. Essa agenda teria maior ou
menor peso de acordo com o número das casas e/ou espaços de negócios e a sua dinâmica
local. Em 1828, por exemplo, no Recife foram contabilizadas seiscentas e setenta e duas
lojas, das quais 65% eram de secos e molhados e 35% eram classificadas como tavernas.
Desse segundo tipo, 78,3% estava instalado nos três bairros centrais – Recife, Santo
Antônio e Boa Vista –, contra 21,7% nos arrabaldes (FIGUEIRA DE MELLO, 1852).
Se tomássemos apenas as tavernas veríamos que elas podiam ser encontradas em
várias partes do município, ofertando bebidas e gênero alimentício a granel, dando-lhes
uma função social para a subsistência da gente que delas se serviam (LOUSADA, In:
SERRÃO; PINHEIRO; FERREIRA, 2009, pp. 227-248). Apesar de sua importância, nem
sempre elas eram vistas com bons olhos. Seja por estarem associadas aos portugueses,
seja por ser um comércio “democrático”, servindo para a utilidade de toda sorte de gente,
sendo estigmatizadas por alguns coetâneos como um lugar supostamente promíscuo e
ávido por toda a sorte de vícios e más artes (FELDMAN, 2014; LUSTOSA, 2015, p. 8;
CÂMARA, 2013; CHALHOUB, 2001)470.

Dados consolidados a partir de FIGUEIRA DE MELLO, 1852; RELATÓRIO, 1856.


469

Era comum ali se reunir pessoas de cor, escravizados ou livres pobres para tomar vinho ou aguardente,
470

comer petiscos, fazer batucada e se confraternizar em meio a muitas cantigas e vozerias, portanto, um lugar

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Esse quadro só tendia a evoluir, pois a população crescia acompanhada do


aumento das casas comerciais, principalmente as especializadas em animar as almas ao
calor do álcool e batuque. No ano de 1845, por exemplo, o total das casas de negócios do
Recife já chegava a 1.778, das quais 437 eram tavernas (Diário de Pernambuco, nº 290,
29/12/1845, p. 1, c. 2). Apesar de não fazer a classificação dos secos e molhados, a lista
elencou especificamente os dados para cada tipo de casa de comércio, inclusive os
referentes às tavernas, indicando que aquele negócio também prosperou bastante,
chegando a crescer 85,9%. Segundo esses dados, podemos inferir que, no mínimo, o
consumo de bebida e a folia das batucadas também aumentaram no município, portanto,
maiores possibilidades de perturbações públicas e desordens sociais, pelo menos nas
impressões dos coetâneos.
Apesar do somatório de casas de comércio ser relativamente expressivo, o
abastecimento de gêneros de primeiras necessidades era um problema no Recife, assim
como a burla dos pesos e medidas praticada nas casas de venda local. Este último era tão
comum nos ramos comerciais da cidade que um denunciante do Diário de Pernambuco
disse ter comprado quatro libras de carne em um açougue particular da Rua do Rangel,
mas ao pesar sua mercadoria em duas outras vendas diferentes, em cada uma delas o peso
divergiu completamente uma das outras (Diário de Pernambuco, nº 129, 12/06/1840, p.
4, c. 2). Os casos às vezes eram tão sérios que até chegava às vias finais de denúncias e
pleitos judiciais (Diário de Pernambuco, nº 144, 17/05/1844, p. 2-3, cc. 1-4).
Com tantas casas comerciais e tão pouca gente para zelar pela administração da
cidade, não era difícil encontrar quem se pusesse a burlar as regras, enganar os fiscais das
freguesias e mesmo corromper os administradores da aferição dos pesos e medidas. Era
bastante complicado para as autoridades supervisionar e evitar os vícios e larapices
praticados nesses locais. E as queixas lamuriosas dos consumidores e concorrentes
sobejavam nos registros jornalísticos de então471. Não obstante, códigos de posturas,
editais e até um regulamento sobre polícia dos mercados públicos e um regimento das

de divertimentos. Nesse enredo, se embriagavam, faziam algazarras e se metiam em malquerenças e


confusão, aperreando alguns cidadãos e ocupando as autoridades, logo, encenando aquele como um lugar
de perigo e confusão. Ainda que nem sempre aprontassem façanhas ilícitas ou desordens, o simples
ajuntamento daquela estirpe social já causava ojeriza a determinados grupos na cidade, gerando
reclamações em presença dos representantes da lei ou denúncia e avisos nos periódicos da época.
471 Cf.: DP, nº 267, 11/12/1829, p. 1, cc. 1-2; nº 220, 09/10/1833 p. 876, c. 2, nº 13, 18/01/1836, p. 3, c. 1.

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aferições foram propostos para o município472, no sentido de minimizar uma realidade


tão cara principalmente para as classes menos favorecidas.
Quanto ao negócio dos preços e atravessamentos de mercadorias mais
especificamente, a coisa não ficava muito atrás, e os reclames e denúncias pululavam nos
jornais da época. Em 1843, os próprios marchantes se organizaram em sociedade e
coartaram a travessia dos gados comprados no pasto, diminuindo os custos logísticos,
supostamente barateando o preço das carnes ao comprador final e, por fim, combatendo
a ação dos atravessadores, “única causa dos grandes preços dos gados na feira”, como
diziam os anunciantes. Dois anos depois, o Diário Novo registrava a chegada de um
carregamento de farinha de mandioca vindo de Santa Catarina, o qual logo foi cobiçado
por compradores que nem mesmo do ramo o eram, mas como oportunistas queriam
quantos carregamentos de gênero de primeira necessidade aparecessem, para então os
repassar por um preço maior no mercado miúdo. O denunciante chamou dito
procedimento de “infame guerrilha de atravessadores”, e tachou os seus praticantes de
“salteadores de nova espécie”473, tamanha era a sua indignação com os hábitos de uma
verdadeira facção que se locupletava com a miséria alheia.
Nesses poucos exemplos, pelo menos dois dos três itens do tripé culinário principal
da alimentação no Brasil de então – a farinha e a carne seca (SILVA, 2005) – eram
atingidos com fraudes e artimanhas ilícitas que os tornavam principalmente mais caros
para a população. Mas estas também impactavam parcela importante dos homens de
política e negócios, os quais se viam premidos entre o lucro, a ordem social e a própria
decência e moral.

A Agenda construtiva
As autoridades do Recife tinham enorme dificuldade para enfrentar as desordens
da má planificação e pouca infraestrutura, principalmente em se tratando da área
urbanizada. Nos arrabaldes, as questões da tortuosidade, estreiteza e desleixo das ruas
eram menos agravantes, seja pela diminuta área construída, seja pela presença humana
mais rarefeita. No geral, os problemas daí advindos ressoavam de várias partes, mas

472 Sessão extraordinária de 28.09.1843. Livro das Sessões da Câmara Municipal do Recife, (1838-1844), n.
8, ff. 281-284; Ofício de 05/11/1844, CM, n.º 22, ff. 124; DN, nº 214, 05/10/1843, pp. 1-2, cc.1-3.
473 DN, nº 125, 07/07/1843, p. 4, cc. 1-2; nº 131, 18/06/1845, p. 3, c. 2.

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principalmente a partir das autoridades. A Câmara Municipal era uma das instituições
protagonistas dos principais ataques às questões da má planificação citadina e a
executora de boa parte de seus reparos. A clandestinidade de muitas edificações feitas
sem licença ou cordeação, nem aforamento ou título de posse de seus terrenos era uma
das queixas mais patentes, e também um prato cheio para os fiscais autuarem e tentarem
fazer cumprir os embargos e as multas pecuniárias impostas pelas leis municipais.
Em 1833, o fiscal e futuro vereador, Rodolfo João Barata, bradava interrompendo
obras e solicitando as respectivas licenças das pessoas que estavam edificando ou fazendo
intervenções estruturais no Aterro dos Afogados. Dois anos mais tarde tal medida atingia
a Elias Coelho Cintra, outro futuro vereador, que então fazia uma cerca de espinhos em
sua propriedade naquela povoação. Já o fiscal da Boa Vista, em 1835, denunciava à Câmara
que no Aterro daquela freguesia e na Trempe estavam sendo construídas casas fora do
alinhamento previsto na planta do bairro. No ano seguinte, o mesmo fiscal pedia o “termo
de achada” para a obra sem licença e cordeação que João Francisco de Albuquerque fazia
na Rua da Alegria. Ainda naquela freguesia, o fiscal Francisco de Barros Falcão de Lacerda,
filho do vereador José de Barros Falcão de Lacerda, denunciava que alguns proprietários
tinham feito os batentes e passeios de suas casas fora da bitola do nivelamento um do
outro, em menoscabo das posturas474, só para ficarmos nesses casos.
As demandas construtivas particulares se somavam às necessidades de obras
viárias, como as construções ou reparos de ruas, estradas públicas e as várias pontes que
interconectava o município. As intempéries do tempo, as enchentes, ação das marés e o
constante uso público punham em desgastes, danificavam e até destruíam as frágeis
passagens de madeira e pedra do Recife. Isso exigia um trabalho infindo de manutenção
desses espaços da cidade. Para o caso das pontes, ao longo da primeira metade do século
XIX, inúmeras foram as intervenções e gastos camarários para dar conta dos problemas
infraestruturais que envolviam tão importante instrumento integrador das freguesias
urbanas e rurais, o que nos faz elencar as pontes e suas necessidades de conserto e
reconstrução como marca ora da cidade leviatã, ora da cidade sereia, fazendo parte do

474 DP, nº 132, 20/06/1833, p. 561, c. 2; nº 156, 25/08/1835, p. 3, c. 3; Câmara Municipal do Recife, sessão
ordinária do dia 24 de setembro de 1835. DP, nº 213, 04/11/1835, p. 2, c. 2; Câmara Municipal do Recife,
sessão ordinária do dia 23 de junho de 1836. DP, nº 146, 09/07/1836, p. 2, c. 2; DP, nº 45, 24/02/1840, p.
1, c.3.

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cenário construtivo em alta no município do Recife, inclusive atraindo as atenções e


beneficiando gente de certo cabedal de investimento.
Segundo a lei de 1º de outubro de 1828, a Câmara Municipal deveria cuidar das
obras públicas e particulares, regulando-as por meio das posturas, além de vigiar,
conservar, reparar e até construir outras quaisquer. A instituição procurou
profissionalizar e aperfeiçoar as suas ações nesse sentido, contratando os serviços de
engenheiros estrangeiros, como João Bloem, para inspecionar e zelar da arquitetura geral
e particular da cidade, levantando, ajustando ou ratificando as plantas necessárias ao
alinhando das ruas e edifícios, e estabelecendo a regularidade externa dos antigos e novos
arruamentos, eliminando não só as deformidades existentes, mas também prevenindo as
do futuro475. Ou seja, sistematizaria um trabalho ostensivo, mas também preventivo, para
enfrentar os problemas construtivos e infraestruturais (cf.: SOUZA, 2012. Especialmente
o tópico 3.1: a Câmara e os engenheiros: intervenções e remodelação do espaço físico da
cidade; ARRAIS, 2004).
Na administração do presidente da província de Pernambuco, Francisco do Rego
Barros (1837-1844), foi restabelecida e reestruturada a Repartição das Obras Públicas,
que se tornou uma parcela indissociável da administração provincial, funcionando como
organismo central, um tipo de órgão executivo (ZANCHETI, 1989). Mas esta não substituiu
a Câmara Municipal da capital no exercício da administração dos negócios do alinhamento
e aformoseamento citadinos. Enquanto a Repartição das Obras Públicas cuidava de
serviços infraestruturais de grande calado e impacto provincial (MESQUITA, 1981;
COSTA; ACIOLI, 1985), a municipalidade seguia com o seu expediente administrativo,
criando, por exemplo, posturas adicionais de composição sanitário-urbanística ou
estético-higienista, como as de 1838-1839, que vieram se somar ao código de posturas
publicado em 1830-1831, ambos ratificados e ampliados pelo código de 1849 (cf.: SOUZA,
2002. Especialmente o capítulo 4: as posturas do Recife imperial regulamentando a
urbanização da cidade). As adicionais daquele ano tinham como objetivo expresso
salvaguardar a “Arquitetura, Regularidade e Aforamento da Cidade”. Minuciosas regras
construtivas, proibições e proposições arquitetônicas foram impostas, um verdadeiro
reflexo de quão problemáticas eram aquelas temáticas. Uma série de novos planos de

475Sexta sessão de 12.08.1830. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833), f.


53 (verso), IAHGP. Ofício, 12.08.1830, CM, nº 8, f. 25, APEJE.

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arruamento, criação de logradouros, alargamento de ruas, tapamento de becos,


demolições de casas se sucederam. Ruas foram calçadas, pontes e praças criadas, vias
foram drenadas, atoleiros aterrados, pântanos secados e canais elaborados.
Por toda a parte os vereadores e suas comissões se punham a rever e remodelar o
traçado urbano, remover casebres e palhoças, impor um modelo construtivo com o fito de
aformoseamento, afastar a feiura e a pobreza a fim de supostamente tornar a cidade mais
nobre e segura, adentrando, assim, no universo privativo com suas normas, interdições e
demolições. Nem todos queriam ou podiam se adequar às regulamentações impostas pela
municipalidade. Muitos burlavam as regras, faziam vista grossa, reclamavam ao
presidente provincial, interpunham recursos judiais. Isso provocava impasses e gerava
dificuldades operacionais e governativas. Mas na medida em que esses percalços eram
trabalhados e superados, a cidade dava um aparente e tímido passo na direção da
adequação de sua fisionomia e melhoria estrutural, enquanto que o ente municipal com
sua câmara maior destaque ganhava.

A Agenda sanitária
Em relação aos problemas sanitários e da saúde na cidade, muitos observadores
citaram a ruas enlameadas, não asseadas e até imundas, repletas de animais a dividir o
espaço com as pessoas, casas, lojas e suas mercadorias. Porcos, cachorros, muares e
galináceas, entre outros tantos, contribuíam para o mau asseio, a imundície e a fedentina
que compunham o cenário das ruas do município. No ano de 1859, por exemplo, o alemão
Robert Avé-Lallemant, referindo-se às transformações físicas que observava no Recife,
disse que ele era “a verdadeira cidade do futuro Brasil”, mas tinha “também seus lados
fracos”: lamaçais, ruas fétidas, e por toda parte porcarias eram lançadas nas ruas pelos
próprios moradores das casas; a sujidade era tamanha, a ponto do observador
equivocadamente afirmar que “numa polícia de limpeza parece que ninguém pensou”
para a cidade (AVÉ-LALLEMANT, 1980, pp. 279-80).
Os domésticos também não se eximiam de reclames. Em 1830, o Intendente da
Marinha reclamava com a Câmara Municipal sobre não se lançar o lixo e fazer despejar
sujeiras no Porto. No mesmo ano o Comandante Militar da Polícia também se avexava com
o entulho de lama e imundícias da Rua Nova, pedindo para se mandar abrir e desentupir
o cano de escoamento das águas pluviais ali estagnadas. Quatro anos mais tarde, o juiz de

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paz, José Higino de Miranda, convidava os moradores do quarto distrito da freguesia de


Santo Antônio a limpar as ruas e becos locais, pois a maior parte deles estava cheia de
entulhos, lamas e imundícies. Em 1839, um vizinho do Beco do Rosário reclamava que o
local virara depósito de dejetos, foco de imundície que poderia resultar em grande
epidemia. Na década seguinte, alguém rogava ao fiscal da S. José que lançasse as suas
vistas para um cano de despejos que emporcalhavam a Travessa do Dique com a Rua das
Cinco Pontas, nos fundos da venda de José da Silva Moreira476, só para ficarmos nestes
exemplos. As ruas e os poucos quintais das casas, literalmente, eram os depósitos de lixo
das pessoas. Sem um sistema de coleta apropriado, o resultado não podia ser outro,
sujeira para tudo quanto era lado e os males dela advindos (MELLO, 1991. Especialmente
o capítulo XI: o apurado perfume da municipalidade; ver também: FREYRE, 2004).
Para a questão do lixo nas vias públicas, além da atuação dos fiscais incumbidos de
supervisionar e fazer limpar os logradouros públicos ou espaços privados, a Câmara
estabeleceu os lugares destinados para se lançar os inservíveis da população, assim como
criou uma companhia de ribeirinhos para limpar a cidade e recolher seu lixo. Mesmo
assim, não dava conta da crescente demanda por esse serviço477. Já em relação ao
problema das águas servidas, o código de posturas de 1831478 já visava acabar com aquele
mau costume, interditando até o lançamento de água limpa das janelas das casas e
sobrados nos logradouros, contudo sem muito sucesso. Os hábitos da população, somados
às ruas mal calçadas e com pouca ou nenhuma estrutura de drenagem, favoreciam dito
cenário insalubre479.
A alternativa em se criar lugares específicos para colocar o lixo, ainda que
minimizasse seu depósito em plena via pública, logo provocaria outros transtornos. Em

476 IAHGP, Série manuscrito. Ata extraordinária de 17.05.1830, Sessão extraordinária de 18.09.1830. Livro
das Vereações e Accordãos da Câmara do Recife, (1829-1833), n. 7, ff. 39, 57 (verso) - 58; DP, nº 494,
24/09/1834, p. 1876, cc. 1-2; nº 13, 18/01/1836, p. 3, c. 1; DP, nº 232, 23/10/1839, p. 3, c. 3; DN, nº 156,
20/07/1844.
477 Câmara Municipal do Recife, sessão extraordinária de 5 de dezembro de 1842. DN, nº 15, 10/01/1843,

p. 2, c. 1. Ofício,16/06/1843, CM, n.º 21, f. 73. Três anos depois, as verbas orçamentárias para tal serviço
foram reduzidas e a municipalidade mandou obstar tais trabalhos até o presidente da província rever a
questão. CM, ofício de 31/03/1846.
478 Código de Posturas Municipais, Título 7º, § 3º, Sobre diferentes objetos que prejudicam ao público. DP,

nº 248, 22/11/1831, p. 1006, c. 1.


479 Encontramos constantemente fiscais e juízes de paz relembrando a população sobre essas

determinações, o que significa a teimosia e repetência de dita prática social. Cf.: DP, nº 217, 09/11/1835, p.
3, c. 1; nº 33, 10/02/1854, p. 3, c. 5.

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um extenso relatório entregue ao governo provincial, o engenheiro chefe das obras


públicas, L. L. Vauthier, apresentou um termo circunstanciado dessa realidade e a sua
causa. Além de enumerar as vias esburacadas e encharcadas mais problemáticas de cada
bairro, o funcionário alertou o presidente sobre outras coisas mais perniciosas que
tornavam a cidade insalubre e incômoda aos seus habitantes: os cada vez mais extensos e
volumosos depósitos de despejos de todas as imundícies então produzidas na urbe,
especialmente os restos das matanças de animais para o consumo. Aqueles despejos,
atingidos pela intempérie do tempo e chafurdados por animais também imundos,
espalhavam pelo ar o fedor e a corrupção e infectavam as praias de rios e mar. Ou seja, os
locais onde era permitido se lançar dejetos, inservíveis, animais mortos, entre outros,
viraram lixão a céu aberto, a ponto do médico e ex-vereador, em 1848, Dr.º Simplício
Antônio Mavignier, dizer que a cidade estava cercada por “uma muralha de lixo e de
imundície”480.
Outros temas sanitários de igual vulto e importância também eram aclamados
entre os cidadãos. Em 1846, um anônimo mencionou a necessidade de se estabelecerem
mercados de víveres mais apropriados na cidade. Mesmo alegando que a Câmara
Municipal já tinha determinado por editais e posturas municipais de 1833 os lugares onde
o comércio de gêneros de primeira necessidade estava autorizado, o anunciante
salientava que, além do aumento da população e o crescimento da urbe a demandar mais
investimentos nessa área, as praças comerciais então existentes estavam repletas de
casebres sujos, cuja fachada e interior eram depósito de imundície e de insuportável
infecção, necessitando de imediata intervenção481.
Enfim, as fragilidades da higiene e saúde pública eram múltiplas. O gerenciamento
dos transtornos delas advindos era ainda maior. Mas, diferentemente do que insinuava
Robert Avé-Lallemant, a Câmara Municipal e outras instituições voltaram seu olhar e ação
para uma polícia sanitária da cidade já nas décadas de trinta e quarenta. Ainda que com
eficácia um tanto incipiente, multiplicavam-se editais, posturas sanitárias específicas e
ações profiláticas e de fiscalização para remoção de lixo, inservíveis e animais putrefatos,
aterramento de buracos nos logradouros, esgotamento e secagem de pântanos,
transferência de fábricas de fogo ativo e padarias para locais distantes de residências,

480 DP, nº 12, 12/01/1843, p. 1, cc. 2-4; n.º 171, 04/08/1848, p. 2, c. 1.


481 DP, nº 13, 17/01/1843, p. 2, c. 2.

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higiene dos estabelecimentos comerciais, prisões e casas de saúde, proibição dos


enterramentos nas igrejas, a criação de cemitério e de um lazarento e hospitais ou locais
de quarentenas para salvaguardar a cidade de epidemias e etc.482
As necessidades de intervenção na cidade se davam em grande medida pelas novas
sensibilidades forjadas ao sabor das renovações formativas, dos saberes, das influências
externas advindas das luzes, mas também da própria interpretação que os agentes tinham
do processo. Ao passo em que ditas problemáticas para algumas pessoas era uma
realidade arraigada, costumeira, própria as suas vidas e de difícil demoção, para outras se
tornavam uma realidade inconveniente. Ou seja, o desenvolvimento e alargamento da
vida urbana, atenuaram os problemas que cada vez mais passaram a ser entendidos como
entraves para os que se coadunavam aos novos princípios da propalada civilidade e
politesse então reinantes.
No conjunto, a agenda do viver urbano sinaliza a condição própria de uma cidade
que crescia em número alarmante sem receber com a mesma rapidez e eficácia as devidas
intervenções combativas e infraestruturantes. Mas também era uma realidade
“inventada” à medida que novos saberes e interesses político-econômicos iam tomando
forma e ganhado foro de verdade. Nesse sentido, também indicam que muitas das ações,
travestidas de melhorias urbanas e civilidade dos povos, não passavam de estratégias de
controle e exclusão social (PECHMAN, in: BRESCIANI, 1993, pp. 29-34). Era nesse
contexto que os ritos do Estado moderno iam se desenhado e se firmando em cada
localidade do Brasil oitocentista.
A instituição camarária e os homens que nela atuaram tiveram papel importante
na (trans)formação e gestão de tal universo citadino e seu termo, sendo, portanto,
fundamentais para a constituição e governo do ente município em seus múltiplos aspectos.
Pensar a capacidade governativa das elites políticas face às demandas da cidade e as artes
de fazer dos indivíduos que nela habitam ou transitam pode nos ajudar na reflexão sobre
o próprio Estado em formação e consolidação.

482A Câmara Municipal, por exemplo, estava atenta à propagação de epidemias vindas de fora da província.
Além de buscar o auxílio das forças policiais da província para o Provedor da Saúde na vistoria dos navios
no porto, também colaborou na fundação de lugares para quarentena de embarcações, pessoas e
mercadorias vinda de portos com casos epidêmicos. Tratava-se de cautelas sanitárias, mas também fiscais,
pois vedavam “a comunicação do mal e os efeitos do contrabando”. CM, ofício de 10/07/1833.

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REVELANDO A MEMÓRIA PATRIMONIALÍSTICA DE CAXIAS-MA PELA


LENTE DO FOTÓGRAFO SINÉSIO SANTOS

Marinalva Aguiar Teixeira Rocha*

Considerações Iniciais

A memória busca reconstituir elementos do passado, no sentido de manter viva


a história e as lembranças de um tempo de outrora. Para Le Goff (2013, p. 437), “a
memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado
para servir ao presente”. Nesse sentido, a imagem fotográfica constitui-se uma
importante fonte de caráter documental que, nos últimos anos, vem ocupando espaço
por servir para resguardar e preservar, por meio dos registros, os aspectos histórico-
culturais e patrimoniais de um lugar. A fotografia, dessa forma, é vista como recurso
iconográfico que pode ser utilizada na (re) construção do passado.
Torino (2013),em seus estudos, reflete sobre a crise de identidadeque, atualmente,
é vivenciada pelo homem no mundo contemporâneo, fato que se deve às mudanças de
valores que vem ocorrendo, de forma acelerada, fazendo com que se tenha necessidade
de (re) valorizar algo que ficou perdido (objetos, acontecimentos...). Tal crise leva o sujeito
a buscarregistros que os situem no presente. Nesse aspecto, “a fotografia reúne um
inventário de informações acerca daquele preciso fragmento de espaço/tempo retratado”
(KOSSOY, 2001, p. 47).
O presente trabalho, o qual se servirá da imagem fotográfica para sua
explicitação, foi elaborado a partir do estudo de textos que versam sobre memória,
patrimônio e fotografia, com vistas a discorrer a respeito da importância do acervo
fotográfico de Sinésio Santos, para a (re) constituição da memória, artista que registrou,
por mais de quatro décadas, os mais variados lugares e acontecimentos público e privados
de Caxias-MA, tais como: inaugurações, comícios, festas religiosas, apresentações
culturais, formaturas, aniversários, velórios, reuniões, discursos político; imagens

* Doutoranda em História- UNISINOS- Universidade do vale do Rio dos Sinos.

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arquitetônicas, logradouros, enfim o que se pode considerar como registro do patrimônio


material e imaterial.
É interessante informar que não se pretende discorrer, neste trabalho, sobre a
biografia do autor, mas descrever a respeito do valor de seus registros fotográficos,
enquanto fonte histórica iconográfica, eficaz para a (re) elaboração da memória e para a
representação do patrimônio cultural de Caxias-MA. É importante dizer, ainda, que as
imagens aqui utilizadas foram cedidas pela família do autor, cujo arquivo fotográfico se
encontra preservado em sua residência.A relevância da pesquisa se justifica pela
grandeza de se tecer a historiografia de um lugar, partindo das imagens capturadas por
um fotógrafo.

Aspecto memorialístico da imagem fotográfica


A imagem fotográfica, enquanto registro documental dos diferentes eventos,
pessoas, paisagens etc, tem se tornado uma importante fonte para pesquisas, sobretudo,
àquelas que versam sobre história e memória. É fato que fotografia e memória
estabelecem um eixo que se articulam mutuamente. A foto, ao retratar um momento ou
uma pessoa que fez parte de um tempo remoto, funciona como um suporte de memória
que faz menção ao passado e que aguça as lembranças. Segundo Kossoy (2001, p. 161),

O fragmento da realidade gravado na fotografia representa o


congelamento do gesto e da paisagem e, portanto, a perpetuação de um
momento, em outras palavras, da memória: memória do indivíduo, da
comunidade, dos costumes, do fato social, da paisagem urbana, da
natureza. A cena registrada na imagem não se repetirá jamais. O
momento vivido, congelado pelo registro fotográfico, é irreversível.

De acordo com o exposto, percebe-se que a fotografia, além de rememorar e


reativar momentos esquecidos, podesuscitar fragmentos da realidade que, de outra
maneira, não seriam (re) lembrados. A fotografia transporta o sujeito para lugares,
épocas, despertando sentimento de alegria, horror, saudade, enfim “a fotografia tem
poderes que nenhum outro sistema de imagens jamais desfrutou” (SONTANG, 2004, p.
174). Parafraseando Kossoy, a fotografia permanece viva, pois o momento registradoficou
estático, preservado para tempos futuros. As paisagens, as pessoas, mesmo que tenham
desaparecido ou se transformado, o registro fotográfico guardará aqueleinstante da
realidade que ficou congelada, “é que as fotografias mostram, em seu conteúdo, o próprio

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passado” (2001, p. 158), são fragmentos de diversos e contínuos episódios que, ao serem
analisadas, concede ao observador uma possibilidade de revisitar o que ficou na história
vivenciada em outros tempos. Ciavatta (2002, p.30) acentua que “o olhar fixado no objeto
fotográfico não é apenas uma característica do artefato, um aspecto do suporte que
sustenta sua existência. Cada registro é parte de uma história e constitui ele próprio um
princípio de memória”.
Vale dizer que a fotografia permite que se conheçam aspectos significativos da vida
ocorridos em determinado tempo, alargando a sua utilidade para muito mais do que uma
simples ilustração e recordação, porque, além disso, ela informa sobre a história social,
serve como fonte documental, retrata estilo de época, permite, ainda, que se conheça o
patrimônio material e imaterial de uma sociedade, por meio do que expressam as imagens
capturadas pelo fotógrafo em um dado período, como, por exemplo, os detalhes da
arquitetura, os costumes e tradições de um povo. Nas palavras de Kossoy (2001, p. 162),

Fotografia é memória e com ela se confunde. Fonte inesgotável de


informação e emoção. Memória visual do mundo físico e natural, da vida
individual e social. Registro que cristaliza, enquanto dura, a imagem de
uma ínfima porção de espaço do mundo exterior. É também a paralisação
súbita do incontestável avanço dos ponteiros do relógio: é pois o
documento que retém a imagem fugidia de um instante da vida que flui
ininterruptamente.

Como suporte documental, detentora de informação histórica, a fotografia é um


recurso de registro e testemunha de relevantes informações culturais que instigam a
memória de cada um, para buscar nas lembranças fatos ou imagens já não vistas nos dias
atuais, mas que ficaram registradas através da lente de um fotógrafo. Nesse caso, Caxias
de outrora é rememorada por seus moradores por meio da representação das imagens
fotográficas reveladas, a partir dos anos 1950, pelo fotógrafo Sinésio Santos. Conforme
postula Ciavatta (2008, p. 41), “[...] como fonte de recordação e de emoção, a imagem
fotográfica associa-se à memória e introduz uma nova dimensão no conhecimento
histórico, tradicionalmente obtido por meio da linguagem oral e, principalmente, da
linguagem escrita”.
Mauad (2004) vê a fotografia como fonte histórica que permite ao historiador
realizar novas formas de análises, sem se preocupar com a finalidade do registro, isto é,
se foi realizado com o intuito de comprovar algo que não foi claramente explicitado ou,

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simplesmente, para registrar um modo de vida. Le Goff (2013) intensifica em seus


estudos, as noções sobre fotografia considerando-a, de forma simultânea, duas maneiras:
imagem/documento e imagem/monumento. Para ele, a fotografia vista como
imagem/documento, é considerada como índice, no qual qualquer aspecto que tenha sido
registrado em uma determinada época dará informações desse passado. Enquanto
imagem/monumento, a fotografia é um símbolo, representando o que foi determinado
pela sociedade como única imagem que será eternizada para o futuro. Considerando todas
essas proposições, afotografia é um instrumento capaz de estabelecer comunicação entre
gerações, promovendo a preservação e socialização de marcas histórico-culturais de
todas as épocas, dada o seu caráter memorialístico.
Abordar a fotografia, enquanto fonte documental, é essencial para a constituição e
preservação da história, uma vez que essa fonte testemunha o cotidiano de um grupo, em
um tempo, e serve para resguardar as lembrançasdesse tempo, no âmbito individual e
coletivo. A memória é ativa, o ato de recordar é um processo dinâmico que está sempre
retornando ao passado para manter vivas as lembranças. Nesse sentido, a fotografia pode
ser reconhecida como um importante registro das reminiscências. Para Halbwachs (2004,
pp. 75-6),
a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda
de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras
reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada.

Contemplar uma fotografia pode significar trazer para o presente o que está posto
no passado, pois essas imagens, muitas vezes, ativam a imaginação, acionando a memória.
Segundo Ciavatta (2008, p. 51), “a fotografia atua como elemento de legitimação da
memória familiar e da história que se constrói sobre o grupo”. Os retratos dos
acontecimentos, dos lugaresservem como suporte material para a (re) construção do
aspecto memorialístico de um grupo, o que leva a imagem fotográfica a ser reverenciada
como um importante recurso nas discussões sobre essa temática. Para Kossoy (2001, p.
26), “O mundo tornou-se, de certa forma, ‘familiar’ após o advento da fotografia; o homem
passou a ter um conhecimento mais preciso e amplo de outras realidades que lhe eram,
até aquele momento, transmitidas unicamente pela tradição escrita, verbal e pictórica”.
Pollak (1992) fala de dois elementos constitutivos da memória: acontecimentos
vividos pessoalmente e aqueles “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos que a pessoa

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possa não ter participado, mas o grupo a qual ela se sente pertencer tenha vivenciado.
Nesse sentido, por meio da circulação das imagens fotográficas de uma dadaépoca, é
possível que a pessoa consiga se identificar com esse tempo, ativando o que conceitua
Pollak de “memória quase que herdada”.

Revelando o patrimônio cultural caxiense sob a ótica do fotógrafo Sinésio Santos


As mudanças por qual passa a cidade gera, em seus moradores, esquecimento de
fatos e tradições considerados como patrimônio, pois o avanço tecnológico e as
constantes informações colocadas, diariamente, à disposição das pessoas, levao homem a
se tornar fascinado pela modernidade, o que, de certa forma, o distancia da noção de
preservação dos bens culturais. “A modernidade gera a perda da experiência devido a
fatores como: o bombardeio de informações, a mecanização e divisão do trabalho
industrial que pode ser traduzido em automatização” (MARTINS 2014, p. 9).
A ideia de preservação do patrimônio cultural passou a ser discutida, no Brasil, a
partir dos anos 1930, período em que coincide com o afloramento do modernismo
brasileiro (escola literária que inaugura uma nova fase na literatura, contrapondo-se às
tradições acadêmicas, propondo liberdade de criação artística e cultural). Nesse contexto,
e com o surgimento de novas mentalidades, começa-se a vislumbrar, no meio cultural, a
necessidade de criar mecanismos paraa valorização do patrimônio. Martins (2014, p. 11)
informa:

A questão do patrimônio nasce do embate entre a necessidade de


conservar a cidade existente – os monumentos e bens culturais que dizem
respeito à história e à memória social / coletiva, numa tentativa de
conjugar os tempo passado e futuro, que habitam juntos com o tempo
presente da cidade e também pela sempre presente necessidade de salvar
o que está em desaparecimento.

A partir do Século XX, a questão de patrimônio, como bem cultural, começou a


ganhar força e as noções sobre espaço urbano, cultura e passado ganharam outras feições
no que tange à sua preservação, pois a ideia era conservar o conjunto de bens
evidenciados como parte de uma cultura e tradição. A noção de patrimônio, atualmente,
estabelece duas categorias: patrimônio material e patrimônio imaterial. O primeiro
compreende um conjunto arquitetônico, monumentos, enfim as edificações consideradas

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elementos da cultura de um povo; o segundo, as manifestações artísticas, culturais e


religiosas, as festas tradicionais, paisagens, ou seja, “um conjunto de expressões culturais
que não estão representadas pelo chamado patrimônio tangível ou de ‘pedra e cal’”
(ABREU, 2010, p. 59). Esse conjunto de elementos necessita ser reconhecidos como
importantes para uma dada comunidade, se estabelecendo na memória dessa
comunidade, pois “os objetos que compõem um patrimônio precisam encontrar
‘ressonância’ junto ao seu público”, segundo Gonçalves (2007, p. 246). Ainda no que se
referea esse aspecto, Fonseca (2003, p.63) ressalta que a questão do patrimônio imaterial

ou, conforme preferem outros, patrimônio intangível, tem presença


relativamente recente nas políticas de patrimônio cultural. Em verdade,
é motivada pelo interesse em ampliar a noção de ‘patrimônio histórico e
artístico’, entendida pelo repertório de bens, ou ‘coisas’, ao qual se
atribuiu excepcional valor cultural, o que faz esses bens serem
merecedores de proteção por parte do poder público.

Coube ao artista Sinésio Santos, um dos pioneiros em Caxias na arte de fotografar,


o primeiro passo para deixar registrado desde os anos 1950, através de sua lente, um
conjunto deimagens que compõem, atualmente, o patrimônio cultural da cidade. As
fotografias produzidas por esse autor dão conta de aspectos significativos de Caxias,
revelando, nelas, os momentos que constituem a narrativa histórica do lugar, como
também as transformações ocorridas nos espaços. A arte de Sinésio foi a responsável pelo
registro patrimonial da cidade. Nesse sentido, vale destacar, a título de ilustração, alguns
registros, revelados pelo fotógrafo, conforme se vê a seguir:

Figura 1 - Vista Panorâmica de Caxias- década de 1950

Fonte: Acervo Sinésio Santos

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A foto acima retrata um dos fatos mais representativo para a constituição história
de Caxias, memoriza um acontecimento que marcou a história da cidade: a Guerra da
Balaiada. Hoje, esse espaço cedeu lugar para praça, Museu, Universidade, casas,
encontrando-se bastante modificado, mas, ainda, conservando vestígios da Batalha. O
canhão, ícone da Guerra, ainda é conservado, estando posicionado, atualmente, em outro
ângulo. Tal objeto simboliza uma época marcada por sentimento de revolta, tristeza,
opressão, enfim, de perdas para um grupo reprimido e ganhospara os ditos detentores da
ordem. Do alto do morro, onde se encontra o canhão, observa-se uma cidade cercada por
uma vasta vegetação, o que permitia aos seus moradores desfrutarem de um clima
agradável.
A presença do cruzeiro, situado ao lado do canhão, mostra a religiosidade do
povo caxiense que, mesmo vivendo em meio aos horrores da guerra, conseguiacultivar a
fé e a esperança de novos tempos. A imagem dessa cruz já não mais existe, ficou apenas
na história. A fotografia reúne informações que podem ser captadas, tendo em vista a
maneira de observar de cada pessoa.
Por meio dessa imagem, revive-se um passado, buscam-se na memória aspectos
da paisagem que já não são mais possíveis serem moldados. É através da memória que se
torna viável retomar momentos que aconteceram há muito tempo e que foram
esquecidos, mas que se tornam presentes ao serem relembrados. Como exemplo, mostra-
se essa foto a qual se encontra imbuída de simbologia, marcando sua passagem nesse
espaço. Com isso, os resíduos da guerra, quando observados, remetem os moradores a um
passado muito distante, mas que pode ser relembrado, dando sentido aos elementos que
compõem o espaço, bem como às constantes visitas dos turistas e às atividades que ali são
desenvolvidas.
Utilizando de sua câmera, Sinésio registrou aspectos que fazem referência a um
contexto histórico representativo e que demonstra as grandes transformações pelas quais
passou a cidade, permitindoque as novas gerações mantenham contato, por meio da
memória fotográfica, com a historiografia da cidade. Assim, se compreende patrimônio
como algoque representa o passado e que seráconservadopara gerações futuras, sob a
perspectiva da preservação e valorização de algo que pode ser compreendido como
referência cultural e histórica de um grupo, incluindo-se, nesse sentido, as tradições.

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Dessa forma, a fotografia a seguir apresenta-se como testemunha visual de um passado


presente na memória da maioria dos caxienses.

Figura 2 - Festejo de São Benedito

FONTE: Acervo de Sinésio Santos

A foto acima representa para os caxienses uma das maiores lembranças de cunho
religioso, pois o Festejo de São Benedito foi, em tempos de outrora, considerado um dos
grandes acontecimentos da região leste maranhense, período em que se abrigava, na
maioria das residências e hotéis, uma numerosa quantidade de visitantes, alguns atraídos
pela missão religiosa; outros, pelo desejo de encontros e (re)encontros com pessoas
queridas. Esse momento, esperado com muita pompa, era singular na vida dos moradores,
ocasião em que todos economizavam recursos financeiros para exibirem os melhores e
mais caros trajes. Essa festa, além de servir como atrativo de cunho social e religioso trazia
para Caxias um aumento da renda financeira, pois, nessa época, o comércio alimentício,
hoteleiro e varejista conseguia acrescer seu capital, o que proporcionava uma melhoria
econômica aos comerciantes.
Hoje, o largo transformou-se em praça; a rua, onde as pessoas circulavam em um
constante ir e vir, à procura de um par ou para desfrutar do ambiente festivo, abriga carros
e motos, os quais, em tempos passados, não existiam. A paisagem foi alterada, os hábitos
de as pessoas ocuparem os bancos sob as árvores para saborearem os petiscos ali

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comercializados foram trocados por outros entretenimentos, fatos que ficaram na


memória dos mais antigos e que merecem ser narradas para os mais novos.
Nos últimos anos, a igreja católica percebeu a necessidade de resgatar tal evento,
talvez pensando em aproximar um pouco mais os fiéis, que se encontravam distantes, ou
na tentativa de reaver uma tradição desconhecida pelos mais jovens, tradição essa que
demonstra a fé dos caxienses, assim como preserva a memória da comunidade. Nesse
sentido, a arte de Sinésio representa um instrumento que desempenha um importante
papel no que se refere à preservação cultural, considerando que a fotografia serve, não
apenas, para fornecer registros, como fonte histórica e documental, mas também como
bem cultural, que resguarda memória e valores individuais e coletivos. O festejo de São
Benedito, atualmente, é tido como patrimônio imaterial de Caxias, considerando que,
segundo Fonseca (2003, p. 69),

Patrimônio não se constitui apenas de edificações e peças depositadas em


museus, documentos escritos e audiovisuais guardados em bibliotecas e
arquivos... Interpretações e instituições, assim como lendas, mitos, ritos,
saberes e técnicas, podem ser considerados exemplos de um patrimônio
dito imaterial.

Os registros fotográficos de Sinésio Santos servem para compor parte da narrativa


que conta a história de Caxias por meio do olhar de um fotógrafo, o que leva as pessoas a
viajarem no tempo e a percorrerem espaços que já se transformaram, existindo apenas
nas lembranças. A fotografia é, portanto, um documento visual que serve para a
reconstrução de histórias individuais e coletivas constituídas no tempo e no espaço, que
conserva fragmentos de um passado a ser revelado e reinterpretado com o olhar do
presente, compondo, dessa forma, o patrimônio do lugar.

Considerações Finais
O objetivo do presente trabalho foi discorrer sobre a importância do acervo
fotográfico do artista Sinésio Santos como constituinte da memória e revelador do
patrimônio de Caxias-MA. Nesse sentido, vale dizer que a imagem fotográfica não deve ser
vista, unicamente, enquanto registro, mas, sobretudo, como fonte de informação e de
memória. Para corroborar com o que foi descrito no texto, procurou-se apresentar,
fazendo algumas considerações, duas fotografias, as quais foram reveladas pelo fotógrafo

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na década de 1950 e que encontraram ressonância no tempo presente, pois as citadas


imagens servem como referência a um passado representativo da história sobre Caxias.
Um aspecto importante a considerar é que a produção fotográfica de Sinésio Santos
constitui um importante acervo documental para as pesquisas de caráter historiográfico,
considerando a sua riqueza mnemônica e seu valor histórico e cultural para a cidade,
sendo possível, por meio delas, perceber os cenários caxienses de outrora.
O acervo deste fotógrafo oferece uma ampla possibilidade de observação,
considerando serum recurso que propicia a produção historiográfica da cidade,
principalmente no que tange ao registro do patrimônio. Por meio das fotografias, é
possível conhecer, ainda, as tradições, os acontecimentos familiares, relembrar os
momentos que marcaram épocas, enfim percebê-las como uma importante fonte de apoio
à memória.

Referências Bibliográficas
ABREU, Regina. Patrimônio Cultural: tensões e disputa no contexto de uma nova ordem
discursiva. In: Seminários temáticos de Arte e Cultura Popular. Rio de Janeiro: Museu casa
do Pontal, 2010, p53-63.

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conceitos fundamentais para a interpretação da imagem fotográfica, Editora DP&A, 2002.

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Estudos e Investigações Antropológicas, v. 1, n. 1, 2014.

MAUAD, Ana Maria. Fotografia e História: possibilidades de análise. In: Maria Ciavatta;
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212. Rio de Janeiro, 1992.

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Letras, 2004.

TORINO, Isabel Halfen da Costa. A memória social e a construção da identidade cultural:


diálogos na contemporaneidade, diciembre, 2013, disponível em:
www.eumed.net/rev/cccss/26/memoria-social.html.

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ABRINDO O BAÙ DAS MEMÓRIAS DE ARTISTAS DO GRUPO TEATRO


SOMBRAS

Elizeu Arruda de Sousa

Introdução
O artigo em pauta introdutória objetiva estabelecer a correlação, com posteriores
comentários, entre algumas conceituações atinentes à memória e os depoimentos de
cunho memorialístico de artistas do Grupo Teatral Sombras (GTS). A cidade de Caxias-MA
configura-se no espaço do qual a referida companhia cênica é oriunda, desenvolvendo
suas atividades artísticas no período de 1987 a 1995. Com suas encenações, o Sombras
fez soprar ventos de inovação no cenário das artes caxienses, uma vez que trouxe para a
boca de cena um teatro diferenciado e engajado com as causas sociais e políticas,
revelando a crença no poder transformador das manifestações artísticas.
Mencionando a fundamentação teórica que respaldará o artigo em focalização,
informa-se que, na vertente dos aspectos conceituais e caracterizadores da memória,
serão registradas as considerações de autores como: Bergson (1999), Lowenthal (1998),
Pollak (1992), Torino (2013), Le Goff (1992 e 2003), Hallbwachs (2004), Bosi (1987).
Essas informações teóricas, em grande medida e ao longo desse trabalho, serão
entrelaçadas de forma comentada com trechos das entrevistas de artistas do Grupo
Teatral Sombras; nas falas dos entrevistados estarão registradas as memórias deles como
integrantes e partícipes da mencionada companhia cênica.

Correlacionando as conceituações da memória às memórias de artistas


A memória, provocada pelos aspectos concretos da realidade e verificados no
presente, promove a suscitação dos aspectos espirituais/emotivos no indivíduo e
estabelece a presentificação e prolongamento do passado, realiza a revivescência, de
forma evocativa, dos fatos e atividades outrora ocorridos, rememorando-os e
conservando-os, tudo isso possibilitado pelas ações das lembranças com seu teor


Doutorando em História- UNISINOS/RS. Mestre em Estudos Literários-UFPI. Professor Assistente IV do
Departamento de Letras- CESC/UEMA.

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subjetivo e emocional. Essa é a linha conceitual adotada por Bergson e que se entrelaça
com o que o autor revela: “A memória é um fenômeno que prolonga o passado no
presente; é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos
sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida"
(BERGSON, 1999, p. 247).
Esse aspecto da memória de capturar do passado acontecimentos marcados
pela emoção, afetividade e torná-los recompostos no momento de evocação
rememorativa pode ser corroborada no trecho de uma entrevista fornecida por um dos
artistas do Grupo Teatro Sombras, concedida ao elaborador desse artigo:

Nós éramos amigos dos pais, nos tornamos parte da família de cada um.
Frequentávamos as casas uns dos outros. Ao chegar nas casas, era como
se fôssemos da família. Tínhamos as confraternizações que ocorriam em
nossas casas. Fomos conhecendo também as fragilidades de cada um. O
Sombras se tornou uma grande família, ficamos tristes quando vemos
alguém com problemas de saúde (SILVA, 2016).

No depoimento acima, é trazida à tona a memória dos laços afetivos e


emocionais que foram sendo construídos entre os que compunham o grupo, de tal forma
que se sentiam partícipes de uma grande família, chegando a se tornarem assíduos
frequentadores dos lares uns dos outros, nos quais eram muito bem acolhidos pelos
familiares dos colegas. Fazendo vir a lume uma lembrança festiva, é informado que nessas
residências ocorriam as confraternizações do grupo. Mesmo decorridos vinte anos de
extinção do grupo, a entrevistada revela, em sua fala, a perduração de um sentimento de
afeto e familiaridade que envolvia os artistas do GTS. Percebe-se, quando relembra a
forma amigável dos componentes do grupo se relacionarem, uma certa saudade em seu
discurso e uma tristeza pela atual condição de ausência de saúde de alguns dos
participantes da companhia teatral.
Dentro da relação estabelecida entre passado e memória, pode-se dizer que
eles encontram-se intimamente entrelaçados: só existe memória porque se tem um
passado composto por situações e experiências vividas e pregressas, e o passado só pode
ser lembrado, reconstituído pelos mecanismos da memória. “Toda consciência do passado
está fundada na memória. Através das lembranças recuperamos consciência de
acontecimentos anteriores, distinguimos ontem de hoje, e confirmamos que já vivemos

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um passado (LOWENTHAL, 1998, p. 75). O passado só terá uma existência consciente, em


termos de vivências e experiências, para nós se tivermos a guarda do vivido em nossas
memórias. Por isso, pode-se declarar que os atores do GTS entrevistados confirmam e
atualizam as suas ocorrências do passado atreladas à companhia cênica a partir do
momento em que acionam suas memórias, trazem-nas à superfície da sua consciência,
como se pode verificar no trecho de depoimento que segue:

O SESC de Caxias estava comemorando os cem anos da Abolição da


Escravatura (1988); iam ter diversas manifestações: exposição
fotográfica, música, dança e a Diretora do SESC disse para nós que queria
uma peça de teatro, que não precisava ser com essa questão do negro.
Nessa época, a gente tava fazendo a leitura de um texto chamado “A feira”,
de uma escritora paraibana chamada Lourdes Ramalho; a gente
aproveitou desse espetáculo que a gente já tava ensaiando, fazendo
leitura e tudo e sugerimos para ela; ela topou, falou: Tudo bem vocês
apresentam o espetáculo que vocês quiserem só que tem que ser dentro
dessa semana do mês de maio que vai marcar os cem anos da Abolição da
Escravatura, os cem anos da Lei Áurea. Foi o nosso primeiro espetáculo
chamado “A feira” (ARAÚJO, 2016).

Por intermédio da memória aqui desperta pela solicitação de que o entrevistado


informasse sobre de que forma ocorreu a primeira apresentação do Grupo Teatro
Sombras, tem-se, como se pode constatar pela narrativa acima registrada, a reconstituição
do passado com o uso da oralidade por parte do autor do depoimento. Em sua fala, o
passado se torna tão vívido que ele chega a lembrar de falas utilizadas pela Diretora do
SESC , que entrou em contato com a companhia para requisitar que fosse encenada uma
peça na programação de comemoração do centenário da Abolição da Escravatura. Há
também as recordações das atividades culturais que estavam sendo desenvolvidas pelo
SESC naquele período comemorativo do mês de maio. O depoimento do integrante do GTS
ilustra o que assevera Lowenthal: “O passado nos cerca e nos preenche: cada cenário,
cada declaração, cada ação conserva um conteúdo residual de tempos pretéritos. Toda
consciência atual se funda em percepções e atitudes do passado”.
Focalizando o aspecto seletivo da memória associado à relação entre presente
e passado, Bergson (1999, p. 266) afirma:

A memória tem por função primeira evocar todas as percepções passadas


análogas a uma percepção presente, recordar-nos o que precedeu e o que

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seguiu, sugerindo-nos assim a decisão mais útil. Dessa forma, nossa


memória escolhe sucessivamente diversas imagens análogas que lança na
direção da percepção nova.

A partir de uma situação ou estímulo do presente que seja similar, semelhante


a uma ocorrência ou experiência do passado, a memória convoca e ergue as lembranças,
as recordações de tempos idos, selecionando as impressões e imagens mais marcantes,
que tenham sido acolhidas com mais contundência no espírito de quem as viveu. Processo
parecido deverá ocorrer com os artistas do Grupo Teatro Sombras (GTS) que foram
ouvidos acerca das memórias vinculadas às suas participações na referida companhia
cênica; a situação do presente que evocará as lembranças de um passado será o fato de
que eles serão notificados da realização de uma pesquisa sobre a trajetória do GTS,
reconstituída a partir das recordações dos artistas que lhe compunham, bem como o
conhecimento das interpelações e temáticas que farão parte da entrevista que eles
concederão.
Nesse ato de lembrar instituído pelos integrantes entrevistados do Grupo
Teatro Sombras, será estabelecida, pelos artistas ouvidos, uma seleção dos fatos que se
fixaram de forma mais penetrante em suas subjetividades; o que fora mais marcante para
uns não fora para outros, o que fora esquecido por alguns não fora esquecido por outros,
e assim as lembranças de uns irão complementar as recordações de outros, formando um
painel memorialístico mais integral, mais fidedigno e mais próximo da realidade histórica
do grupo cênico pesquisado. Dentro desse enfoque, é que abaixo, tem-se, através das
falas de dois artistas do GTS, as memórias sobre um mesmo fato, com vistas a revelar o
que possuem de diferenças:

Montamos um bloco carnavalesco, na época havia uma competição entre


blocos; pegamos personagens de várias peças e saímos; fui de dona de
casa empurrando um carrinho de feira, tinha uns bobões na cabeça. Era
tipo os “Sombras” na avenida com personagens do dia a dia, vestidos de
forma comum para se mostrar essa vida comum (SILVA, 2016).

A gente até participou de um carnaval na época dos blocos; a gente


participou com o bloco chamado Trem da Alegria; a gente fazia uma
crítica ao grupo Sarney; àquela coisa de estar muito tempo no poder e se
colocar na linha, nos vagões com seus asseclas. Foi um bloco muito
interessante, muito bom, pois era uma crítica mesmo ferrenha em cima
da políticos estaduais e nacionais porque Sarney na época era Presidente
da República (AQUINO, 2016).

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Uma mesma ocorrência: a participação dos artistas em bloco carnavalesco, quando


evocado pelas memórias de duas pessoas ganham versões distintas em alguns aspectos.
No primeiro depoimento, a entrevistada ressalta a conotação artística e cênica do bloco,
lembrando inclusive de toda a composição do personagem: roupa típica de dona de casa,
bobs no cabelo, tendo como acessório um carrinho de compras; no entanto, não vincula a
ação do grupo com o propósito de uma crítica política.
Já na segunda narrativa, o entrevistado denomina o nome do bloco (Trem da
alegria) e afirma que o grupo fazia uma acentuada contestação satírica a uma oligarquia
política do Maranhão, assumindo uma identidade discursiva de contraposição ao poder
mandatário vigente. O que se constata é que “como a lembrança, o esquecimento também
é seletivo: somos dotados da faculdade da memória e do esquecimento e, como aptidão
inata, natural ou adquirida, possuímos a capacidade de usá-la da forma mais conveniente”
(TORINO, 2013, p. 8).
Para o entrevistado, o mais relevante na lembrança da atuação do bloco
carnavalesco era o influxo de criticidade política de que se revestia aquela manifestação,
o que condiz com a sua formação de militante do PC do B um dos combativos partidos de
esquerda e de oposição da época. Em relação à entrevistada, embora simpatizante do
ideário dos partidos de oposição, não era militante e dificilmente frequentava as reuniões
das siglas esquerdistas.
Ainda que sejam observadas essas distinções citadas, as narrativas de ambos
possuem um ponto de imutabilidade em suas falas: a formação pelos artistas do grupo de
um bloco carnavalesco. “Se destacamos essa característica flutuante, mutável, da
memória, tanto individual quanto coletiva, devemos lembrar também que na maioria das
memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis (POLLAK,
1992, p. 2). Nesse viés da presença de aspectos idênticos ou bem semelhantes em
memórias de diferentes pessoas acerca de um mesmo ocorrido, tem-se, a seguir,
depoimentos de dois artistas que fizeram parte do Teatro Sombras, o primeiro ficou no
grupo pouco tempo e sua visão é de espectador; o segundo entrevistado foi um dos
coordenadores da companhia cênica caxiense e seu olhar é de que participou ativamente
da encenação:

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Lembro de ter visto o Naldo fazendo a “Lagoa Mundaú”, em que ele fazia
um revolucionário: um cara parecidíssimo com os nossos ídolos; era um
cara revolucionário, politizado no meio da questão ecológica; era a
questão da poluição da lagoa de Mundaú e a inutilização do rio a morte: a
morte do rio e, consequentemente, o desaparecimento da questão da
renda daquele povo que vivia de pescar em torno da lagoa do Mundaú
Esta peça “Lagoa Mundaú” é de um alagoano chamado Pedro Onofre
(OLIVEIRA, 2017).

Esse espetáculo “Mundaú: lagoa assassinada” era muito legal porque ele
tinha uma temática politica muito boa, porque ele tratava da periferia, do
meio ambiente, da subsistência das pessoas que viviam daquela lagoa
para tirar seu pão de cada dia . Tinha o líder pescador, Antônio e tinha o
jornalista, um cara de esquerda, chamado de Chico Porrada. Ele escrevia
para a rádio e falava tão matando a lagoa, mas tão matando também o
povo lá com esgoto. Montamos esse espetáculo e ele foi muito bom; com
esse espetáculo a gente viajou, a gente fez um teatro itinerante aqui em
Caxias, fomos em várias escolas.

Como é verificável nos dois trechos das entrevistas, ambos os artistas estão
rememorando o tema e a encenação da peça “Mundáu: lagoa assassinada”, uma das
produções dramáticas do Grupo Teatro Sombras. No primeiro depoimento, tem-se a
declaração de alguém que havia participado do Sombras, mas que, naquele de
apresentação do espetáculo, encontrava-se como plateia; por isso, talvez a não lembrança
do título correto da peça: Lagoa Mundaú em lugar de “Mundaú: lagoa assassinada”,
nomeação revelada corretamente pelo segundo entrevistado que fazia parte do elenco, ou
seja suas recordações estavam imersas em teor de envolvimento e afetividade maior que
o primeiro entrevistado. Nos dois trechos destacados, os entrevistados mencionam
corretamente o nome e a naturalidade do dramaturgo e, também , de maneira uniforme,
informam o tema ambiental e de denúncia política do texto dramatizado. Outro ponto
convergente refere-se à presença de um personagem que, com ares de revolucionário,
denunciava as agressões ao meio ambiente, os malversados interesses políticos e seus
prejuízos causados à população.
Bergson (1999), em seus estudos sobre a memória, apresenta a existência de
duas memórias com características diferenciadas entre si, sendo que ambas se
correlacionam; são elas: a memória hábito e memória regressiva ou espontânea. A
memória-hábito é ligada a um princípio de automatismo, é deflagrada pela repetição ou
reiteração contínua de alguma informação ou comportamento; um exemplo é quando se
diz que se aprendeu algo de cor, ou seja pela força do ato repetitivo. O processo de

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constante repetição se imprime na mente bastando uma palavra, um som, uma imagem,
um gesto para que essa memória venha à tona de maneira automática, sem sofrer muito
o crivo da racionalização.
Em relação à memória espontânea, também denominada de memória pura,
pode-se dizer que nela as lembranças não estão na dependência de uma ação repetitiva e
reiterante para serem evocadas, mas preservam a sua existência pela sua singularidade,
pelo seu valor único e não replicável. "Por ser inconsciente e individualizada, é
considerada por Bergson como a verdadeira memória, pois o passado estaria aí, vivo para
souvenir, vir à tona, constituindo se em autênticas ressurreições do passado” (BOSI, 1987,
p. 48).
As lembranças, na memória espontânea, emergem a partir da significação e
representatividade que possuem para nós dentro de um contexto afetivo, emocional e
valorativo; aquilo que não nos foi marcante é, comumente, esquecido. O esquecimento
como algo necessário é mencionado por Lowenthal (1998, p. 95): “As lembranças
precisam ser continuamente descartadas e combinadas; somente o esquecimento nos
possibilita classificar e estabelecer ordem ao caos”.
A memória espontânea estará sendo suscitada pelos artistas do Grupo de
Teatro Sombras que irão lembrar das circunstâncias que lhe foram mais caras, mais
inesquecíveis, sendo únicas e indeléveis, como se constata no depoimento de uma das
artistas:

Chegamos a representar o Maranhão por duas vezes em festivais


nordestinos de teatro. Com a “A feira” fomos para Maceió e com a “Lagoa
Mundaú” fomos para Aripiraca- Alagoas. Em São Luís, nos apresentamos
no Teatro Arthur Azevedo. Em nossas apresentações em festivais, não
chegamos a ganhar, mas ficamos bem colocados (SILVA, 2016).

A entrevistada, sem perguntas condutoras por parte do entrevistador, que a


deixa livre para narrar a sua vivência artística, menciona, em um vínculo com a
espontaneidade de memória, algo que lhe marcou de forma veemente: a participação por
duas vezes do Grupo Teatro Sombras em festivais nos quais representava o Maranhão.
Aqui se tem duas ocorrências de grande relevância na história da companhia, que nesse
particular transpunha as barreiras do local/municipal e ganhava certa visibilidade

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regional, não limitando a sua atuação ao âmbito de Caxias e conseguindo divulgar a arte
caxiense e maranhense na esfera regional.
Na visão de Halbwachs (2004), a memória deve ser vista como um fenômeno
social. Na visão desse filósofo, todas as nossas lembranças, tudo que a integra não pode
ser concebido como algo de teor estritamente subjetivo ou matéria de plena
individualidade, haja vista que essas recordações são determinadas socialmente, estando
associadas a um contexto de coletividade, não podendo serem analisadas desgarradas do
seu habitat social ou apenas sob a perspectiva de manifestação individual/ espiritual. “Só
temos capacidade de nos lembrar quando nos colocamos no ponto de vista de um ou mais
grupos e de nos situar novamente em uma ou mais corrente do pensamento coletivo”
(HALBWACHS, 2004, p. 36).
Acerca dessa discussão se memória é, na sua origem, individual ou coletiva
Lowenthal (1998, p. 78) afirma: “O passado relembrado é tanto individual quanto
coletivo. Mas como forma de consciência, a memória é total e intensamente pessoal; é
sempre sentida como algum acontecimento [que] ocorreu comigo”. O filósofo Halbwachs
não descarta a existência da memória individual, afirmando que ela existe, mas que se
encontra com suas raízes fincadas no interior dos denominados quadros sociais,
associados às representações que um grupo proporciona em nossa individualidade. Por
mais paradoxal que possa parecer, é a experiência individual de conviver socialmente em
uma família, em uma escola, grupo de amigos, de trabalho, de atividade artística entre
outros, que constrói a nossa memória, ou seja, ela é erguida como consequência da inter-
relação, do diálogo entre a nossa experiência individual e a nossa vivência do coletivo,
produzindo uma formação identitária sociocultural.
Dentro dessa dimensão, é que se acredita que as memórias dos integrantes do
Grupo de Teatro Sombras estarão, em seus depoimentos orais, sendo exteriorizadas
individualmente dentro das situações vivenciadas em um quadro coletivo representado
por um grupo de arte dramática, definindo-lhe uma identidade cultural. A seguir, para
ilustrar esse viés de memória, registra-se a fala de um artista do GTS:

Enquanto a gente tava fazendo movimento teatral a gente estava fazendo


movimento político; não era um movimento apartado diferenciado da
realidade política, era inserido no movimento político local. Tinha essa
conotação até pelos textos que a gente apresentava, as discussões que a
gente fomentava após as apresentações com os espectadores. O grupo

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tinha essa conotação bem marcante mesmo. Até porque grande parte
dos integrantes tinha uma visão política apurada, com exceção de muito
poucos (AQUINO, 2016).

O artista do Grupo Teatro Sombras tem um discurso marcado pelo teor de


coletividade em sua narrativa memorialística até nos termos empregados ( a gente, o
grupo), o que demonstra a sua absorção de uma memória que não é mais só mais só sua,
mas pertence ao coletivo do qual ele é integrante. O seu lembrar carrega toda uma ação
do grupo a que ele pertencia. Em sua declaração acima, ele abandona a individualidade e
incorpora a representação de uma coletividade. Todos os atos por ele reportados, como
discutir, fazer, ter, são erguidos memorialisticamente pela relação e interação com o
grupo.
Segundo Le Goff (2003), antecedendo a transposição de uma ideia para o
registro de fala ou escrita, ocorre a retenção desse pensamento na memória. Nesse
âmbito de abordagem, estaria sendo focalizada a relação entre memória e linguagem; as
lembranças de um grupo social precisam ser vertidas, no intento de corporeidade, para
uma expressão de linguagem falada ou escrita, com vistas à preservação, conservação
física das narrativas lembradas. Ao realizar a coleta e registro dos depoimentos das
pessoas que integravam o Grupo Teatro Sombras se estará verificando as duas formas de
registro externo da memória já relacionados acima, uma vez que os artistas em audição
exteriorizarão, em suas falas, as suas lembranças, enquanto o ouvinte anotará com o uso
da escrita essas informações oralizadas. Tem-se a seguir um dos registros escritos do que
fora ouvido durante entrevista com um componente da companhia cênica em foco:

A gente tinha uma biblioteca, a gente tinha um acervo de mais de 200


livros, a gente tinha muitas revistas da SBAT- Sociedade Brasileira do
Teatro; eu fiz a assinatura e todo mês eu recebia em casa, vinha pelo
Correio e toda vez que ia a Teresina ou a São Luís, eu entrava numa
livraria e comprava alguma coisa que eu achava interessante para o
grupo. A gente tinha uma biblioteca chamada Lourdes Ramalho; era uma
biblioteca só de peças de teatro, só textos teatrais (ARAÚJO, 2016).

O depoimento de teor memorial supra registrado foi primeiramente gravado


em áudio , havendo numa etapa seguinte à audição por parte do entrevistador
acompanhada da transposição dessas falas gravadas para o registro escrito. Durante esse

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processo de verter a linguagem oral para a linguagem escrita há de se ter muito cuidado
para se manter a fidedignidade com as falas verbalizadas pelo entrevistado. É perceptível
no discurso escrito uma marca de oralidade: as várias repetições do termo “a gente” em
lugar de nós, além de algumas estruturas de linguagem mais coloquiais (Ex.: a gente
tinha,...comprava alguma coisa). No teor da fala do entrevistado, ressalta-se o valor que o
Grupo Teatro Sombras atribuía aos livros e à leitura, o que revela o desejo de
conhecimento e de aperfeiçoamento intelectual e artístico.

Conclusão
Na extensão desse artigo, estabeleceu-se uma correlação entre as considerações
conceituais sobre a memória e os trechos de depoimentos de artistas que integravam o
Grupo Teatro Sombras. Esses integrantes acreditavam e defendiam, em seus discursos e
ações, que a cultura e a política deveriam estar irmanadas, jamais poderiam ser
dissociadas uma da outra, faziam parte de uma mesma moeda que era a formação social
para o pleno exercício da cidadania. Incorporando esse pensamento, quase todos os textos
estudados e dramatizados pelo grupo eram de autoria de escritores engajados com as
causas sociais de seus tempos e cultuadores da ideia de que o teatro deve, não só divertir
ou deleitar, mas também formar consciências e, assim, auxiliar na promoção de
mudanças positivas na postura sociopolítica dos espectadores
Erguer a trajetória da aludida companhia dramática da cidade de Caxias-MA
por intermédio das memórias dos artistas que dela fizeram parte é algo que urge ser feito,
considerando a quase inexistência de materiais bibliográficos, periódicos e informativos
que façam menção ao grupo aqui em focalização. Ante essa circunstância, torna-se
premente que haja um registro do percurso histórico do Sombras com sua atuação na
dimensão sociocultural, uma vez que a ausência de preservação da memória pode
conduzir a um esquecimento das realizações artísticas e sociais instituídas por um grupo
de pessoas que ajudaram a construir a história contemporânea do teatro e da cultura de
Caxias e do Maranhão.

Referências bibliográfica:
AQUINO, Dilson. Entrevista concedida a Elizeu Arruda de Sousa. Caxias-MA. 07/05/2016.

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ARAÚJO, Marcos. Entrevista concedida a Elizeu Arruda de Sousa. Caxias-MA, 15/11/2016.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São
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EL EPITAFIO.
TEXTO QUE NARRA LA HISTORIA CULTURAL DE LAS SOCIEDADES

Jenny González Muñoz

La muerte está en los catres:


en los colchones lentos, en las frazadas negras
vive tendida, y de repente sopla…

Fragmento del poema Solo la muerte.


Pablo Neruda

Son múltiples las visiones sobre la muerte que han venido desarrollando las
sociedades a lo largo del tiempo, por lo cual es bien conocido el hecho de que ésta sea
ritualizada en un juego donde el carácter de preservación de la memoria es fundamental.
En este sentido, dicha intencionalidad se establece desde aspectos que envuelven tanto el
recuerdo hacia el ser fallecido, como respeto a lo que el deceso significó de una u otra
manera para su entorno, siendo destacado esto en los memoriales con gran énfasis en la
figura del epitafio, como texto literario (aunque no sea éste su objetivo) del que se puede
hacer uso para realizar una lectura de la transformación social que ha experimento la
localidad dentro de la que está inserto. De manera que, el epitafio termina siendo algo más
que solo aquel escrito dedicado por familiares a quien en la tumba yace, llegando a ser
soporte de memoria (NORA, 1984) para evitar que sea olvidado el ente fallecido, pero
también destacado de manera directa en el texto funerario y perpetuado en el cementerio
como lugar de múltiples memorias, pues puede llegar a mostrar ciertos comportamientos
de su sociedad frente al hecho muerte, como las ideas católicas de salvación eterna al
llegar al Paraíso, o más allá relatar puntos específicos como nacionalidad, creencias,
méritos ante su comunidad (RODRIGUES, 2015), por lo que el texto llega a tener
connotaciones mayores en su estructura conceptual, tal como se verá en el desarrollo del
presente trabajo.
Etimológicamente epitafio, viene de la palabra griega epitaphos, epi = sobre,
taphos= tumba, “sobre la tumba”, un texto que se coloca sobre el lugar donde yacen los


PNPD/Capes-Universidade de Passo Fundo (Brasil). Doctora en Cultura y Arte para América Latina y El
Caribe, por la Universidad Pedagógica Experimental Libertador (Venezuela). Magister en Memoria Social y
Patrimonio Cultural, por la Universidade Federal de Pelotas (Brasil) Email: jenny.planificacion@gmail.com

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restos mortales de alguien a quien se desea recordar, lo cual no solo se limita a una breve
expresión de nostalgia o amor, sino que es algo concatenado con el entorno y el aspecto
cultural, siendo parte esencial de su configuración tanto material como inmaterial. Tal
como explicáramos, cada epitafio puede mostrar el comportamiento de un pueblo frente
al proceso de la muerte, pero a nuestro parecer, asimismo, es aquel que permite hacer una
lectura general o detallada de la historia local desde, por un lado personajes significativos,
y por otro aquellos pertenecientes a clases sociales deprimidas económicamente
hablando. En este caso, no hay que olvidar que dicho texto funerario está localizado
obligatoriamente dentro de un lugar antropológico (AUGÉ, 1988) como es el cementerio,
el cual hace del hecho de la muerte un acto colectivo (ARIÈS,1984), pues es compartido
por otros miembros del grupo social, o por aquellos incluso que no lo son, pero que se
insertan en él aunque sea por un momento durante su visita al camposanto; así se observa
el acto ceremonial de invitación pública (por medios de comunicación, carteleras y de
manera oral) a las exequias, constituyendo el cortejo funerario desde el lugar de
fallecimiento o funeraria en la cual fuera velado, hasta el entierro (porque la cremación es
menos social), y la última bendición de acuerdo a la creencia pertinente, todo en colectivo.
El epitafio, tal como acota Gawryszewski (2013) “faz parte da construção de uma
memória, em especial, do falecido, mas dentro dos padrões morais e sociais vigentes” (p.
78), para el investigador éste tiene su base en el eufemismo, porque procura esconder
ideas desagradables del muerto. Por ello se debe entender como un texto que sirve para
valorizarlo, reafirmando sus lazos con familiares y amigos, de allí que refuerce también lo
colectivo, pues se desea recordar y para ello es sumamente necesario exaltar lo positivo y
olvidar, o por lo menos, no eternizar, lo negativo.
En el trabajo que se presenta en este breve ensayo, se toma la clasificación de
cuatro tipos de epitafio desde el emisor, desarrollada por Villa Mejía (1991) y referida por
Molina Castaño (2007, p. 157). Siendo el primero el “epitafio en serie”, aquel que no posee
emisor específico, dentro de lo cual incluimos aquellos dispensados por tiendas
especializadas, caracterizados por un texto repetido y diseño estereotipado de acuerdo al
difunto según edad y género, especialmente; en este ejemplo colocamos dos encontrados
en el Cementerio Vera Cruz (Passo Fundo, Brasil), donde destaca el mismo texto epigráfico
“Aqueles que amamos não morrem, apenas partem antes de nós”, solo cambiando los

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datos y foto de ambos difuntos, asimismo el remitente. También en esta clasificación se


incluyen aquellos con textos bíblicos u otros con escritos religiosos.

Figura 1 - Ejemplo de epitafio en serie

Foto: Acervo de la autora.

La segunda es el epitafio con “emisor reconocido”, siendo referido directamente al


difunto, desde algún elemento vinculante con una relación de familiar o de amistad. En
este tenemos el presente en Vera Cruz, dedicado a Ilvo Bertão (fallecido en 1998), en el
cual se lee: “Pai: Nós não te perdemos, apenas te devolvemos a deus. Saudades da esposa,
filhos, noras, genros e netos”. El otro tipo es el “autotexto”, escrito como si el difunto
mismo lo hizo para ser colocado en su tumba, así tenemos aquel destacado sin más datos,
en Cementerio Vera Cruz: “Quando aqui já não estiver. E a volta, não for mais esperada.
Estarei sempre presente. Em cada rosa perfumada. Vó Bisa”.
Luego destaca el epitafio con “emisor colectivo”, cuyo emisor no es individual o se
encuentra inserto en una colectividad. En este caso es conveniente resaltar que, desde
nuestra perspectiva, lo vemos también (ya no desde el emisor) como aquel destinado a
realzar los aspectos morales o aptitudes del difunto, en su oficio o en su relación con la
sociedad a la que pertenece. En el epitafio de Francisco José de Lima Morsch y Maria
Joaquina Vasconcellos Morsch, ambos fallecidos el 27 de agosto de 1981 y enterrados en
Vera Cruz, reza: “Aquí jazem os corpos de um homem e uma mulher que deixaram aos
seus filhos uma herança de trabalho, coragem e amor, que se eternizará”.
A parte de la clasificación de Villa Mejía, destacamos el epitafio en relación a su
funcionalidad, en el que notamos identificación del difunto desde su “identidad colectiva”,
tal el caso del dedicado a Maria Zanfir (Vera Cruz, 1978), “Nasceu na Polonia”, donde la

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nacionalidad prevalece por encima de otros detalles, pues deja entrever un cúmulo
cultural que envuelve incluso a la propia familia. De igual manera, está el epitafio de
“sentimientos familiares e identidad de grupo”, cuando se emite el mensaje en otras
nomenclaturas o idiomas.
El mensaje funerario, como otros tipos de literatura, puede no encuadrarse solo en
un reglón dentro de cada clasificación, sino ser “mixto”, entonces tenemos el dedicado a
Liliana Crociati de Szaszak, ubicado en el cementerio de La Recoleta (Buenos Aires,
Argentina), fallecida en 1970, en cuya tumba está un monumento que representa su figura
junto a su perro, “Sabú. Fiel amigo de Liliana”, el texto funerario está escrito en italiano
(elemento de identidad nacional-cultural), tiene emisor reconocido “A mi hija” y luego
sigue el emotivo epitafio escrito por su padre, el cual hemos traducido:

Sólo me pregunto por qué te fuiste y dejaste destruido mi corazón que


tanto te quería ¿Por qué? ¿Por qué? Solo el destino sabe el porqué, pero
yo me pregunto ¿por qué? Porque no se puede estar sin ti ¿Por qué? Tan
bella que la naturaleza envidiosa te destruyó. ¿Por qué? ¿Por qué? Solo
me pregunto si Dios existe, la distancia es lo que trae. Porque nos
destruiste y dejaste este dolor sin fin! ¿Por qué? Creo en el destino y no
en ti. ¿Por qué? Porque solo sé que siempre sueño contigo. ¿Dime por
qué? Por todo el amor que siente mi corazón por ti. ¿Por qué? ¿Por qué?

En esta misma clasificación se ubica el epitafio que hallamos en Santa Vitória do


Palmar, escrito totalmente en árabe, excepto la fecha “7/12/1985”, lo cual es un rasgo
netamente identitario, como el caso del dedicado a Liliana.

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Figura 2 - Epitafio de clasificación identidad nacional-cultural

Foto: Acervo de la autora.

Otro tipo interesante es el que funge como “denuncia”. Ya no solo el escrito tiene el
objetivo de expresar los sentimientos de dolor y nostalgia por la persona querida que ha
partido, o ser extensión de ruego al descanso eterno de su alma. Soporte de memoria que
se extiende a lo largo de siglos inclusive, es utilizado como vehículo de expresión para
hacer del conocimiento público lo que ha acontecido, logrando, posteriormente, ser un
documento histórico llevado a cabo durante los propios acontecimientos; así leemos en el
epitafio escrito en alemán, localizado en São Leopoldo (RS-Brasil): “Aquí yace. La familia
de Kassel Anna Maria de Becker. Nacida el 12 de agosto de 1835. Asesinada y quemada
por la Banda Mucker el 15 de junio de 1874. Paz a sus cenizas”. De lo cual se infiere una
ruda riña existente entre grupos alemanes y el asesinato de una de sus integrantes, siendo
quemada, de modo que este escrito revela un fragmento histórico importante de la
segunda mitad del siglo XIX en dicha localidad.

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Figura 3 - Ejemplo epitafio como denuncia.

Foto suministrada por Rodrigo Luis dos Santos (ISEI-Ivoti)

Otro texto de la clasificación es el epitafio que podemos considerar como “acervo


histórico directo”, caso del dedicado a Felicidade Cardoso de Brum, fallecida en 1876, a
los 66 años, ubicado en el cementerio de Santa Vitória do Palmar, como parte de una
tumba familiar, siendo lo interesante la mención de que la finada Felicidade es
“Propriedade de José Maria Alvaris”, desde lo cual debemos tomar en cuenta la fecha de
defunción frente al contexto histórico en el que se desarrolla el hecho.

Figura 4 - Epitafio como acervo histórico

Foto: Acervo de la autora.

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Destacamos igualmente el epitafio que se hace para resaltar identidad colectiva,


pero en este caso no desde la nacionalidad o cultura, sino desde el oficio con labor social
o características individuales, siempre vinculado con lo colectivo, por ejemplo, el de Haary
Fries (fallecido en 1963, a los 19 años de edad) “Aquí descança o estudante” (Vera Cruz),
siendo recordado así eternamente; o el de la “Profa Clayr. Semeadora idealista da
apaixonante arte de educar” (2013, Santa Vitória do Palmar), de quien, tal como se ve, lo
destacable significativo es su labor como docente desde sembradora idealista. No se
coloca fotografía ni más datos que la fecha de fallecida y está firmado por “Os sempre
ativos”.
El escrito también traslada los méritos que tuvo la persona, ya no solo para con sus
familiares, herederos de su altos dotes éticos y morales, sino ante la propia comunidad,
Domingos Petruzzi Filho (1980, Santa Vitória do Palmar), “Repousa na paz do Senhor
porque foi justo, generoso e humilde”, siendo su humildad y justicia aptitudes suficientes
para que su alma se encuentre (se asegura en el texto) “en la paz del Señor”. Todo lo cual
tiene una incidencia directa en el respeto de la conformación de una sociedad local con
altos valores y una educación que se refuerza en los conocimientos obtenidos desde sus
educadores.
En todo este proceso, netamente vinculado con la narración de la transformación
social de las sociedades que han, ellas mismas, construido sus propios epitafios y
cementerios, memorias y lugares para recordar más allá de los acontecimientos y
tiempos, existen otros epitafios como los ubicados en los memoriales en “tumbas
significativas”483, es decir, aquellas que albergan personajes importantes a nivel local o
regional, tales héroes, comerciantes, sacerdotes, políticos; tumbas contentivas
generalmente de monumentos y ubicadas geográficamente en lugar privilegiado de la
necrópolis (ya no en gavetas y nichos, foco de nuestra investigación), por su pertenencia
a altas esferas sociales y económicas.
El epitafio “memorial homenaje” suele ser extenso y tiene por finalidad destacar
labores, aptitudes, actitudes, sobre todo sociales, de la persona fallecida, en ocasiones se
narra brevemente un fragmento de su vida y hasta se le dedica algún poema, como el caso
de Francisco Xavier de Castro e Anna Joaquina Ferreira, de quienes se cuenta el momento

Término tomado de Jesús Martín Barbero, referido por el especialista sobre el Cementerio Central de
483

Bogotá.

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cuando el finado en 1822 recorrió con su padre esta región (Passo Fundo) “ainda
despovoada”, regresando en 1843 para establecerse en un Passo Fundo constituido, en
ese entonces, por “nove casas e sessenta almas”. Luego se narra detalles de lugar y fecha
de su establecimiento de la familia, a lo que se agrega que esta pareja tuvo once hijos
siendo el primogénito “Francisco Marques Xavier, o Coronel Chicuta, que teve atuação
destacada na Guerra do Paraguai”; el epitafio cierra con versos hechos por el nieto del
difunto, siendo firmado como un homenaje de sus “numerosos descendentes”.
Encontramos, igualmente, otros epitafios que muestran arrepentimiento, tal vez
como expresión de catarsis desde una doble finalidad de memoria: una que tiene que ver
con lo que se desea decir para que cualquiera lo sepa cuando lo lee, aunque no esté al
alcance de un conocimiento amplio de lo sucedido; y otra, que funge como una suerte de
extensión de voz para que la persona difunta (quien no pudo escucharla en vida) tenga
conocimiento. Todo, en fin, es una súplica, un vacío. Como ejemplo escogimos el siguiente,
dedicado a la madre, ubicado en Vera Cruz, de quien preferimos no colocar mayores datos:
“Quando viva não lhes soubemos dar o devido valor, morta daríamos todo o que somos e
o que temos, para tê-la novamente conozco”. Y en fin, el epitafio con mayor presencia en
los cementerios hasta ahora investigados para nuestro trabajo, aquellos que muestran
sensibilidad desde la nostalgia (saudade), y la tristeza por la ausencia eterna.

Figura 5 - Epitafio Cementerio Vera Cruz, Passo Fundo.

Foto: Acervo de la autora.

A pesar de la fuerza propia del texto funerario, no debemos observarlo ajeno al


resto del lugar donde se encuentra inserto, pues su razón estriba en la vinculación con su
entorno, de allí parte una lectura cónsona con el devenir socio-histórico-cultural que,

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tanto lo transforma a él propio, como permite entrever acontecimientos locales y/o


regionales desde el cementerio como lugar consagrado a recordar y ser recordado.

Las eternas saudades


El cementerio, como necrópolis, es un lugar que está construido por la sociedad y
en los vestigios allí presentes existe una configuración de ciudad con estratificaciones
marcadas desde la propia geografía estructural del mismo. Allí la convivencia de tumbas
de distintos niveles: capillas memoriales de gran monumentaria, tumbas familiares,
profusión de alegorías, gavetas y nichos, además de la variedad de creencias, en aquellos
laicos, e incluso conservación como bien patrimonial de carácter arqueológico, junto con
otros aspectos como lenguaje, escrituras, fotografías, y demás, abren un sitio
antropológico que permite hacer una lectura social desde el tiempo del primer entierro o
exhumación hasta los cambios contemporáneos. El epitafio, en fin, ha existido,
acompañando la memoria de cada difunto, contando parte de sus atributos, destacando
sus labores, haciendo ver sus detalles étnicos, su causa de fallecimiento, su tiempo en la
vida.
Cada vez que vamos a un cementerio, leemos el epitafio, traemos a la memoria
aquel ente que, tal vez no conocimos, pero que vive un momento de nuevo, desde las letras
que le fueran dedicadas.

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A FÉ RENOVADA: OS CAPITÉIS PARA O CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO


ITALIANA
Juliana Maria Manfio*

No final do século XIX, mais precisamente em 1877, o quarto núcleo de colonização


no Rio Grande do Sul seus primeiros imigrantes italianos. Segundo Biasoli (2010, p.72), a
colônia Silveira Martins tinha “em 1880, sua população era de 1769, dos quais 1.465
italianos”. Os imigrantes que chegaram para serem pequenos proprietários de terra eram
direcionados primeiramente a um barracão, para que aguardassem a demarcação dos
lotes. A intensa chegada de imigrantes provocou a criação de outros núcleos de
colonização nesta colônia, que deram origem a sete municípios: Silveira Martins, Ivorá,
Faxinal do Soturno, São João do Polêsine, Nova Palma, Dona Francisca e Pinhal Grande.
Quanto ao aspecto da religiosidade criou-se uma “interpretação clássica do papel
da religião nos grupos italianos que vieram para as colônias rio-grandenses. Este fluxo
migratório trouxe nos corações e nas mentes a herança cultural-religiosa forjada em suas
aldeias de origem” (BIASOLI, 2010, p.68). Dessa maneira, atribuiu-se ao imigrante que
maioria que emigrou para o sul do Brasil era católico fervoroso 484 e que, a Igreja católica
foi fator essencial na organização social das comunidades italianas485.
Com a aproximação dos cem anos da imigração e colonização italiana,
organizaram-se festividades na antiga Colônia Silveira Martins, para recordar o imigrante
italiano. No entanto, o Estado já havia instalado o Biênio da Imigração e Colonização, pelo
Decreto de 22.410 que instituía o

[...] dever cívico exaltar a obra daqueles que, após lutas longas e ásperas,
ocuparam e povoaram a área que constitui o território deste Estado,
incorporando o à Pátria comum. Não menos digno de reconhecimento é o
trabalho das levas imigratórias que para cá vieram e aqui se fixaram,
provindas de terras distantes em busca de uma pátria nova, e se juntaram
aos primeiros povoadores no esforço das realizações solidárias, que nos
conduzem a todos a um mesmo destino, sob as inspirações da unidade
nacional.

*Doutoranda em História pela Universidade do Vale dos Sinos e bolsista CAPES/ Prosuc..
484 É importante frisar que já existem trabalhos, como de Vendrame (2007; 2013) que mostram os conflitos
existentes entre os imigrantes e os padres, bem como entre a Igreja e a maçonaria
485 A historiografia clássica da imigração italiana, que eclodiu através de concursos para o anos do Biênio da

Colonização e Imigração, atribui que, “os imigrantes italianos do RS, eram, em sua maioria absoluta,
católicos praticantes” (MANFROI, 1975, p.157).

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Com o intuito de “glorificação do passado” (CANDAU, 2012, p.147), procurou-se


organizar festividades que exaltassem a história e a memória dos imigrantes e seus
descendentes, construindo “uma imagem prestigiosa com o qual se supõe que todos
possam se identificar” (CANDAU, 2012, p.148). Dessa forma, inúmeras cidades e
comunidades organizaram-se para celebrar os cem anos do processo imigratório italiano.
Na região central do Rio Grande do Sul, precisamente no município de Nova
Palma486, uma das formas de comemorar o Centenário da Imigração italiana foi através
da reformas de capitéis religiosos – são pequenas edificações particulares, dedicados aos
santos da preferência do idealizador (que era imigrante ou descendente de italianos) do
capitel, construídos ao longo das estradas do interior do município. Sendo assim, é
importante salientar que o capitel não pertence a nenhuma jurisdição eclesiástica ou
paróquia. A necessidade de construção destes capitéis surgiu em virtude da falta de
assistência religiosa na colônia – apesar de existirem padres, a colônia era extensa e as
visitas dos sacerdotes não eram tão constantes. Por isso, imigrantes e descendentes
resolveram edificaram os primeiros oratórios com o intuito de mesmo sem assistência
religiosa constante, manteriam a prática religiosa.
No entanto, para as comemorações do Centenário da Imigração Italiana, buscou-se
reavivar estes capitéis através de um movimento de reformas que ocorreu em todo o
município, com o intuito de recordar a história da imigração, mas também a religiosidade
e a fé dos imigrantes.

Os capitéis: marcos da religiosidade


Os capitéis foram erguidos no município de Nova Palma, como também em outras
áreas de colonização italiana, devido à “escassez de padres e os leigos eram obrigados a
manter os cultos para que não se perdessem a tradição trazida da Itália” 487. Dessa forma,
compreendendo os capitéis como uma necessidade dos primeiros tempos da colonização
italiana, Huyssen (2000, p.63) afirma que, “os monumentos são encarados como

486 Conforme Lima (2017), que desmembrou a documentação do Biênio, não há nenhum registro de
festividade do Centenário da Imigração Italiana na região central do Rio Grande do Sul. Apesar as festas
ocorridas e da repercussão em jornais locais, os relatórios do Biênio não registraram nenhuma das
festividades.
487 Igreja restaura capelas da época da imigração italiana. In: jornal Zero Hora. Porto Alegre, 29 de agosto

de 1993, p.36. Centro de Pesquisas Genealógicas.

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expressões das mais elevadas necessidades culturais de um povo [...]”. Assim, tornaram-
se um marco da religiosidade da imigração italiana no município.
Para as comemorações do Centenário da Imigração do município de Nova Palma,
entre muitas iniciativas desenvolvidas para celebrar e glorificar o passado dos imigrantes,
uma delas, em específico foi a restauração dos capitéis. Este projeto foi liderado por Padre
Luiz Sponchiado488, pároco da cidade, que se debruçou na organização destas
manifestações festivas, buscando na reforma dos capitéis, “salvaguardar esta herança e
garantir sua continuidade” 489 entre os descendentes de imigrantes italianos.
O jornal Correio Riograndense apresentou o capitel como o “último marco que
ainda é do leigo” 490 e criado como uma necessidade dos grupos. No entanto, o jornal
explicou que os sacerdotes não celebravam missas nesses oratórios, pois acreditavam que
os imigrantes e descendentes deveriam construir suas capelas, criando assim uma
jurisdição eclesiástica.
Porém, quando os imigrantes conseguiram se organizar socialmente e
espiritualmente, “foram sendo fundadas as capelas sempre como o objetivo de, um dia,
puderam receber a visita de algum sacerdote e virem a ter a celebração na missa. Por isso,
bom número de capitéis desapareceu ou foi deixado de lado” 491. O jornal relatou um caso
ocorrido no município de Veranópolis que, com a construção da capela, o capitel que
ficava próximo “foi perdendo seu culto e foi sendo deteriorado pelo tempo”. O conselho
do padre ao zelador do capitel era para derrubar o oratório, mas a recomendação não foi
acatada.
É bem provável que a perda do culto e a deterioração do tempo tenham sido fatores
que levaram alguns capitéis ao abandono. E sendo um importante marco da religiosidade
do imigrante, no município de Nova Palma, criavam-se iniciativas de reforma dos capitéis,
como forma de homenagear o imigrante, recordar o período da colonização italiana e

488 Sobre a trajetória de Padre Luiz Sponchiado e suas pesquisas na área da imigração italiana, ver mais em:
MANFIO, Juliana Maria. Entre o sacerdócio e a pesquisa histórica: a trajetória de Padre Luiz Sponchiado
na região da Quarta Colônia de imigração Italiana –RS. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de
Santa Maria, 2015.
489 Informativo paroquial. In Nova Palma notícias. Nova Palma, 09 de julho de 1988, s/n. Centro de Pesquisas

Genealógicas.
490 Capitéis: último marco que ainda é do leigo. In: Correio Riograndense, Caxias do Sul, 17 de junho de 1981,

p.17. (AHCM).
491 Capitéis: último marco que ainda é do leigo. In: Correio Riograndense, Caxias do Sul, 17 de junho de 1981,

p.17. (AHCM).

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principalmente, lembrando de sua fé e da manutenção de sua religiosidade mesmo na


ausência de padres e de instituições religiosas.
Reformar os capitéis não significa mostrar a comunidade, a prática religiosa da
imigrante, mas expor a sua preocupação em manter sozinho a religiosidade e sua fé, na
ausência de instituições e assistência religiosas. A religião católica é um aspecto que
caracterizou o imigrante nas comemorações do centenário da Imigração Italiana, sendo
um elo do presente com o passado, na manutenção da memória e da identidade étnica
Segundo Huyssen (2000, p. 67) “como indivíduos e sociedades, precisamos do passado
para construir e ancorar nossas identidades e alimentar uma visão para o futuro”.
Então, como uma forma de comemorar o centenário da imigração italiana, Padre
Luiz Sponchiado impulsionou a comunidade de Nova Palma nas restaurações dos Capitéis.
Dessa forma, as famílias vizinhas ao capitel “escolhem um líder que escale o grupo para
um multirão inicial de três dias para trabalhos fundamentais [...]” 492. O trabalho de
reforma consiste em “resguardar as características do capitel, contudo para sua perpetua
duração, se retira dele, todas as peças em madeira, substituindo-as por cimento armado,
como sejam forros, telhados, altar suporte e portal de vergalhão de ferro”. Percebe-se, a
consciência de preservação do sujeito, buscando eliminar aos materiais de fácil
degradação como madeira, para que os capitéis tenham maior resistência ao tempo.
Além disso, o informativo da paróquia apresentava a importância do trabalho de
reformas para as comunidades.

No território da Paróquia, existem cerca de 40 capitéis. Alguns terão que


ser deslocados, por que o desvio nas estradas novas os isolou. Mas o
essencial é que nenhum desapareça por que ‘Uma comunidade adquire
densidade humana e espiritual, quando é capaz de resgatar de maneira
permanente o seu passado. Por que sem passado não há história perde-se
a identidade e o futuro criando a tragédia das multidões anônimas que
vagam pelo espaço’ [...]493.

Este movimento de reforma frisou a necessidade de não desaparecer nenhum dos


capitéis. Padre Luiz Sponchiado, como coordenador deste projeto, trabalhou o aspecto da

492 Informativo paroquial. In Nova Palma notícias. Nova Palma, 09 de julho de 1988, s/n. Centro de Pesquisas

Genealógicas.
493 Informativo paroquial. In Nova Palma notícias. Nova Palma, 09 de julho de 1988, s/n. Centro de Pesquisas

Genealógicas.

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religiosidade, para que o passado da imigração italiana estivesse ligado com a prátíca da
fé e da religião Católica e fosse o elo com o presente. Segundo Huyssen (2000, p.68), “a
memória de uma sociedade é negociada no campo social das crenças e valores, rituais e
instituições”. Dessa forma, o sacerdote impulsionou a comunidade, incentivo na reforma
como uma forma de rememorar os antepassados, criando “uma imagem prestigiosa com
o qual se supõe que todos passam a se identificar (CANDAU, 2011, p.148). Nesse sentido,
esses oratórios são fontes de história e a memória, que busca na elaboração do passado,
a reafirmação e na manutenção de uma identidade.

A restauração da fé dos antepassados:


Sempre é importante frisar que, do período de 1890 a 1930, foi caracterizado pela
“presença de capitéis que eram construídos em terras particulares, principalmente em
encruzilhadas, formando o ponto de encontro das famílias. Era geralmente na base de três
a quatro famílias para cada capitel” (TURA, 2012, p. 20). Os capitéis possuíam imagens
dos santos de devoção de imigrantes e descendentes, trazidos das comunas de origem na
Itália.
O movimento de reformas dos capitéis no município de Nova Palma seguiu,
de forma geral, a seguinte ordem de atividades: criação do grupo de reforma, arrecadação
de fundos para custeios das obras (normalmente doações das famílias próximas aos
capitéis), atividades de reforma, missa de reinauguração e festa. Cada capitel recebeu uma
placa, que faz alusão aos cem anos da imigração italiana, homenageando um aspecto
diferente do processo migratório. Abaixo, iremos expor alguns capitéis reformados para
o Centenário da Imigração Italiana no município de Nova Palma.

Capitel de Nossa Senhora da Saúde


O capitel está localizado na estrada da localidade de Linha duas, no interior do
município de Nova Palma. Foi construído em 1946, em virtude de uma promessa do casal
Vitorino e Helena Bellé e, dedicado a Nossa Senhora da Saúde. Conforme foi registrado na
documentação, Vitorino “carregava consigo, problemas crônicos de saúde; em parte e por
hereditariedade da família sofrida e provada; aguçados psicologicamente por ter perdido
muito cedo a primogênita e o aconchego do lar”. Dessa forma, problemas relacionados à

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saúde fizeram com que ele construísse um capitel em homenagem a Nossa Senhora da
Saúde.

Figura 1 - Capitel de Nossa Senhora da Saúde

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Para as comemorações do Centenário da Imigração Italiana, o capitel recebeu uma


placa (encontra-se na parte superior do capitel), com o seguinte dizer: “o grupo do nosso
centenário da colonização celebra com reconhecimento, a pia união das filhas de Maria,
fundado na paróquia em 24 de julho no ano do senhor de 1912”. A Pia União das filhas de
Maria é um tipo de associação apenas de mulheres leigas e católicas que se reuniam em
devoção a virgem Maria que existe até os dias de hoje. Pelo que foi percebido diante a
documentação, o capitel prestou esta homenagem devido a uma das fundadoras desta
associação ser da comunidade de Linha Duas.

Capitel a Santa Apolônia

O capitel a Santa Polônia foi o primeiro construído no município de Nova Palma,


em 1890, sendo promessa do casal Giuseppe e Sabina Tomasi que, segundo Tura (2010,

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p.23) trouxeram consigo a devoção a Santa, invocada nas dores de dentes. A imagem da
santa traz nas mãos uma ferramenta, em forma de um boticão (instrumento cirúrgico
usado para extrair dentes), simbolizando a proteção para as dores de dentes.

Figura 2 - Capitel Santa Polônia

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

O jornal Zero Hora noticiou que, o imigrante Giuseppe Tomasi “exercia o ofício de
dentista, por isso dedicou a capela a Santa Apolônia, padroeira destes profissionais” 494.

Mas não era apenas este ofício que ele desempenhava: o imigrante possuía um moinho e
produzia imagem de santos em madeira (TURA, 2010). Dessa forma, percebemos que a
reforma do capitel não apenas carrega a história da religiosidade e de fé dos imigrantes,
mas também elaborou-se uma memória positiva em torno do imigrante construtor do
capitel. A religiosidade e o trabalho sempre são aspectos ressaltados nas comemorações
do centenário da imigração italiana.

494Igreja restaura capelas da época da imigração italiana. In: jornal Zero Hora. Porto Alegre, 29 de agosto
de 1993, p.36. Centro de Pesquisas Genealógicas

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Para as comemorações do Centenário da Imigração Italiana, este capitel foi


reformado e prestou a seguinte homenagem: “homenageamos no centenário da
colonização os que formados ou sem diploma se dedicaram a cura de doenças, a solicitude
dos enfermos e cuidados com a saúde caseira e popular”. Nesse sentido, este capitel
recordava o trabalho de seu primeiro construtor, como também a todos os que se
dedicavam a área da saúde, na cura de doenças e de enfermos no período da colonização
italiana.
Mas vale ressaltar que, este capitel foi construído em 1890, reconstruído em
material em 1923, foi refeito pela terceira vez e ainda restaurado pelo grupo do
centenário. Atrás do atual capitel, encontram-se as ruínas do capitel antigo (na fotografia,
as arvores atrás do capitel escondem as ruínas). Questionamos, porque tantas
reconstruções, não havia uma manutenção? Ou o abandono levava a deterioração do
capitel. São questões que não sabemos se serão possíveis de responder, mas indicamos já
que, a construção de Igrejas e capelas teria levado a diminuição dos encontros religiosos
nos capitéis.

Capitel a São Tiago


O último capitel estudado neste artigo é o dedicado ao São Tiago, localizado na Linha
Cinco, no interior de Nova Palma. O oratório foi construído em promessa do casal Giácomo
e Elisabetha Cargnin no ano de 1948, sendo inaugurado em 1951 e restaurado em 1998.
São Tiago é considerado o santo protetor dos caminhos, das peregrinações e de
seus peregrinos. Acredita-se que por isso, foi o capitel que homenageou a travessia
oceânica e terrestre dos imigrantes italianos. De acordo com a placa comemorativa do
Centenário da Imigração Italiana: “recordamos homens e mulheres, grandes e pequenos,
que padeceram no mar ou em terra na longa viagem da imigração. Homenagem dos
descendentes, no centenário da colonização. ‘Cem anos de fé e trabalho’.”
Este capitel, que não temos muitas informações sobre seu processo de construção,
nos chama atenção pela sua homenagem. Além da descrição da placa e da proteção do
santo, percebemos que foi construída junto ao capitel, uma réplica de um navio. O navio
que se encontra na parte inferior da fotografia (imagem abaixo), quase passou
despercebido, por estar entre folhagens e muito próximo a estrada que passava por
reparos. O santo, a homenagem do centenário e a construção do navio ao lado

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representam a lembrança do processo de imigração dos italianos, de saída da Itália até


chegarem aos lotes de terras no centro do Rio Grande do Sul e dos que faleceram nesta
travessia.
Figura 3 - Capitel a São Tiago

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Este capitel quer tocar a memória dos descendentes de imigrantes sobre os que
faleceram na travessia para chegar até o centro do Rio Grande do Sul, não conseguindo
alcançar o sonho de fazer a América. Dessa forma, criou-se a imagem do herói italiano
através “[...] de uma epopeia que é de restituir e, sobretudo, de não deixar essa memória
cair no esquecimento (CANDAU, 2011, p.139).

Considerações finais:
Os capitéis construídos ao longo das estradas interioranas do município de Nova
Palma não representam apenas a religiosidade do imigrante italiano, mas exaltaram seu
trabalho em dar continuidade em sua pratica religiosa, mesmo sem assistência de padres

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e igrejas. Eles também representam a história dos imigrantes italianos, que construíram
esses capitéis.
O movimento de reformas dos capitéis tem como interesse tocar a memória dos
descendentes de imigrantes, homenageando diferentes passagens do processo
imigratório, envolvendo a comunidade na reconstrução desses espaços religiosos. O
intuito é não deixar cair no esquecimento esses capitéis, evitando que o abandono e o
tempo os deteriorem.

Referências Bibliográficas:

BIASOLI, Vitor. O catolicismo ultramontano e a conquista de Santa Maria (1870/1920).


Santa Maria: UFSM, 2010.

CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de


Janeiro: Aeroplano, 2000.

MANFIO, Juliana Maria. Entre o sacerdócio e a pesquisa histórica: a trajetória de Padre Luiz
Sponchiado na região da Quarta Colônia de imigração Italiana –RS. Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal de Santa Maria, 2015.

MANFROI, Olívio. A colonização italiana no Rio Grande do Sul: implicações econômicas,


políticas e culturais. Porto Alegre: Grafosul, 1975.

LIMA, Tatiane. Os “usos políticos do passado” nas comemorações oficiais do biênio da


colonização e imigração do Rio Grande do Sul (1974–1975). Dissertação (Mestrado em
História). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em
História, 2017.

TURA, Jocelaine Garlet. Capitéis - Fé e Religiosidade na Quarta Colônia de Imigração


Italiana no Rio Grande do Sul (Nova Palma 1890 – 1925). (Monografia de Conclusão de
Curso). Santa Maria: Centro Universitário Franciscano, 2012.

VENDRAME, Maíra Inês. Ares de vingança: redes sociais, honra familiar e práticas de
justiça entre imigrantes italianos no sul do Brasil (1878-1910). Tese de doutorado. Porto
Alegre, 2013.
______________________. “Lá éramos servos, aqui somos senhores”: a organização dos
imigrantes italianos na ex-colônia Silveira Martins (1877-1914). Santa Maria: Edufsm,
2007.

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O MONUMENTO “TRIGO”: REIFICAÇÃO DOS MITOS DO TRABALHO E


PROGRESSO

Adriana Carmen Brambilla

O presente artigo objetiva apresentar a análise historiográfica e semiótica do


monumento “Trigo”, localizado na cidade de Passo Fundo, na empresa PT Sementes, de
propriedade da família Tagliari. A obra teve como escultor o artista plástico gaúcho Paulo
Batista de Siqueira (1949 – 1996) cujos monumentos fazem parte da paisagem urbana,
enquanto arte pública, de várias cidades do sul do Brasil.
Para a compreensão do sistema de significação dos monumentos é importante ter
clara a noção do que são monumentos. A análise será feita tendo como base as noções de
Le Goff (1990) de que os monumentos têm como características a ligação com o poder de
perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à
memória coletiva) e de Choay (2011) que explicita que ao criar monumentos há uma
intencionalidade ao erguê-los, sendo definidos como algo deliberadamente arquitetado e
pensado, a priori.
Ressalta-se que para que ocorra a compreensão da significação existente no
monumento analisado neste artigo, deve-se ter em mente que o mesmo se constitui como
um semióforo, ou seja, seu significado transcende ao simplesmente aparente. Assim,
compreender o que o monumento simboliza como um todo, analisando basicamente cada
detalhe da obra, sua localização, sua história, quem e porque o erigiram torna-se essencial.
Através do resgate historiográfico e da análise semiótica do monumento percebe-
se que o mesmo tem uma carga expressiva de significação. Há uma enunciação grandiosa
da importância dada à cultura do trigo tanto pela família Tagliari, quando da criação do
monumento, quanto pelo poder público municipal de Passo Fundo através da criação da
Festa Nacional do Trigo, da inclusão do trigo no brasão municipal, pelo plantio de trigo
realizado nos canteiros centrais da Avenida Brasil etc.
Inicialmente, faz-se uma abordagem historiográfica sobre a cultura do trigo, a sua
implementação em Passo Fundo e região, analisando-a sob aspectos econômicos,


Graduada em Letras (UPF). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Passo Fundo ̶ PPGH/UPF. Bolsista CAPES. Contato: <adrianacbzanin@gmail.com>.

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políticos, sociais e culturais. Em termos históricos, na economia passo-fundense a cultura


do trigo se encaixa num segundo ciclo econômico, que ocorre em Passo Fundo por volta
das décadas de 30 e 40, caracterizado pela inovação tecnológica e pelo dinamismo dos
chamados “granjeiros do trigo” (TEDESCO, 2015). Muito se depositava de esforços e se
objetivava ampliar os investimentos no plantio, inovação e dinamismo em relação à
cultura do trigo em Passo Fundo e região, cultura a qual exerceu um papel extremamente
importante para o desenvolvimento local. Neste mesmo ínterim knack (2016), ao estudar
as festividades do Centenário de 1957, ressalta o trigo como uma cultura de relevante
importância para o progresso e desenvolvimento da cidade e região.

Percebe-se toda uma construção simbólica, que contribui para a


formação de um imaginário em torno do progresso que o trigo e a
industrialização estão proporcionando, e vão proporcionar à
cidade, em futuro que existe nas previsões do poder público e das
elites econômicas locais a frente desse processo. De fato, ocorre em
1957 a construção de uma justificativa histórica para a cultura do
trigo, articulando passado, associado aos primórdios do povoado e
a uma personalidade fundamental para o partido político
dominante nos anos 1950, Getúlio Vargas, patrono do PTB. A
memória desse período se faz ainda presente através dos moinhos,
cuja instalação ou modernização ocorreram a partir da década de
1950 (KNACK, p. 13, 2016).

Conforme Knack (2016), por volta da década de 1930, a produção agrícola passo-
fundense foi incrementada, tendo a produção do milho, trigo e a extração de madeira
dinamizadas pelo uso da ferrovia e posteriormente pelas rodovias. Formou-se uma rede
de comerciantes, os quais, tendo estreitos vínculos com a agricultura, possibilitam a
ampliação da agricultura e do comércio de Passo Fundo e região.
Nas comemorações do Centenário de Passo Fundo foi realizada a VII Festa
Nacional do Trigo. Na ocasião foi plantado trigo nos canteiros centrais da Avenida Brasil,
principal avenida da cidade e montado o “Pavilhão do Trigo” na Exposição Agro-
Industrial, tal evento contou com a presença do presidente João Goularte.

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Fonte: 150 Momentos mais importantes da história de Passo Fundo. Osvandré Lech, Passo Fundo:
Méritos, 2007.

O monumento Trigo está localizado na empresa PT Sementes, de propriedade da


família Tagliari, família de imigrantes italianos, que vieram residir em Passo Fundo. A
empresa Paulo Tagliari (PT Sementes) está vinculada a iniciativas de investimento e
pesquisa agrícola, tanto no plantio quanto produção de sementes em Passo Fundo e
região.
A escultura, de autoria de Paulo Batista de Siqueira (1949 – 1996), foi erigida na
década de 80. O monumento que apresenta o cereal “Trigo”, demonstra intrinsecamente
tanto aspectos históricos, econômicos, quanto sociais e culturais da cidade de Passo
Fundo e região.

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Fonte: <www.projetopassofundo.com.br>

Para que se compreenda a representação do Monumento Trigo no imaginário


urbano passo-fundense há que se ter em mente que subentendido ao objeto concreto do
monumento, há muito de invisível, ou seja, há rastros que estão presentes no monumento,
e neste sentido, parafraseando Pesavento (2007), como podemos chegar às cidades
invisíveis e/ou visíveis do passado na cidade de Passo Fundo, senão, através dos rastros,
que funcionam como pegadas. Rastros esses, perceptíveis nos lugares de memória como
o referido monumento. Sendo este uma das formas de compreensão da história da cidade
e região, suas transformações econômicas, políticas, culturais e sociais.
Como bem esclarece Uhle (2004, p.1) “a íntima relação entre a memória coletiva
e o espaço urbano, leva à compreensão do potencial simbólico dos monumentos e o
espaço de conflito que se consolida na cidade.” Sendo assim, as escolhas, ao produzir os
monumentos não ocorrem de forma homogênea, as elites políticas e sociais visam
perpetuar suas memórias e a dos seus. Logo, o imaginário urbano serve à construção de
discursos sobre o passado, presente e futuro, assim como visa à formação de
representações identitárias, o que fica perceptível na urbe passo-fundense, são fatos
comprováveis através da análise, da significação e da historicização do Monumento Trigo.
Conforme Nora (1993, p. 3) “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto.” O monumento enquanto um lugar de memória nasce do
sentimento, do desejo, da necessidade de se manter viva uma memória do que o cereal
trigo simbolizou e/ou simboliza para a família Tagliari. O referido monumento condensa
em si a reificação do mito do trabalho e do progresso. Nos planos de expressão e conteúdo,
a mão que segura o trigo simboliza o progresso, a riqueza, as memórias de imigrantes e

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seus descendentes que com seu esforço, com seu trabalho, geraram ou geram o progresso
e o desenvolvimento de Passo Fundo e região.
O monumento tem como categoria semântica fundamental natureza vs. cultura.
De acordo com o plano de conteúdo, os percursos do quadrado semiótico mostram os
seguintes caminhos: natureza → não natureza → cultura. O semissimbolismo se faz
presente quando natureza corresponde a categoria de conteúdo anterioridade e cultura
posterioridade. Há a definição de mais uma relação semissimbólica quando, no sentido do
plano de conteúdo, a categoria natureza vs. cultura está relacionada com atraso vs.
progresso. Em que natureza corresponde a atraso e cultura a progresso. Neste caso, vemos
que a destruição da natureza, a apropriação da terra, as intervenções sociais, como
consequência do tornar as terras agricultáveis, não teria um valor considerado negativo,
mas correspondente ao progresso, ao mérito daqueles pioneiros, imigrantes e seus
descendentes, desbravadores que com grande esforço teriam tornado as terras da região
agricultáveis e com isso gerado riqueza, progresso econômico e social.
A mão não é simplesmente uma figura isolada, sem sentido. Ela mostra uma parte
do corpo humano agindo no mundo, responsável pelo ato de plantar, produzir, colher e
receber as consequências tanto positivas ou negativas desse ato. Verifica-se ainda que a
mão é um elemento de um fazer no mundo, de transformação. A semiótica nos faz ver que
a simples colocação de uma parte do corpo humano, a mão, nos dá um sentido, mais
complexo do que se pode supor inicialmente.
Há, em Passo Fundo, uma memória, uma identidade oficializada, que é
identificada, por exemplo, nas festividades do centenário, em 1957. Memórias
evidenciadas nas festividades do Centenário, em que para mostrar o quanto a cultura do
trigo era importante para Passo Fundo, para a economia e para a própria história passo-
fundense, este chegou a ser plantado na Avenida Brasil, foi incluído no brasão municipal.
Como destaca Le Goff (2003, p. 422) “Tornar-se senhores da memória e do esquecimento
é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos [...]. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de
manipulação da memória coletiva”.
Junto com o trigo se antevê quem o produz, quem o comercializa, quem
enriqueceu com os tempos áureos da produção de trigo na região. Através da criação do
Monumento Trigo na empresa Tagliari, fica clara a intenção de cristalizar memórias

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referentes a vitória pelo esforço do trabalho dos imigrantes e seus descendentes, o


progresso, a industrialização do município, a solidez da agricultura e do comércio
agrícola. Sendo assim o referido monumento se constitui como semióforo, Chauí (2000, p.8-
9) “semióforo é um signo trazido à frente ou empunhado para indicar algo que significa alguma
outra coisa e cujo valor não é medido por sua materialidade, e sim, por sua força simbólica”.
Conforme Candau (2012) a memória e a identidade se concentram em lugares, e
em “lugares privilegiados” se constituindo em referências perenes, um desafio ao tempo.
Este mesmo autor nos remete a reflexão sobre o “desejo de memória” que levaria a
salvaguardar, inventariar o patrimônio. Pode-se pensar em uma necessidade ou desejo de
afirmação da identidade regional, de re (construir) identidades passo-fundenses, que se
concretizam com a construção do referido monumento e das várias frentes para
promoção e celebração do grão rei.
Embora, atualmente, o trigo não seja, na região, a cultura mais amplamente
plantada, a memória do que o “grão rei” simbolizou ainda permanece cristalizada na
paisagem urbana e rural da cidade, memória essa, refletida pelo monumento de Paulo de
Siqueira. Também, pela arquitetura dos moinhos ainda existentes, e pelas empresas
públicas ou privadas que produzem tecnologia, prestadores de serviços, atualmente como
a Embrapa Trigo, e tantas outras. Memórias vivas nas mentes de pessoas que vivenciaram
esse tempo áureo da economia passo-fundense.
Dentre as frentes para celebrar e promover o trigo em Passo Fundo no ano de
1957, no Centenário de Passo Fundo, ocorreu o lançamento de um guia do Centenário.
Knack (2016) afirma que a capa do guia, que foi lançado nas comemorações do
Centenário, continha o Brasão Municipal (criado em função do centenário), que exprimia
o imaginário “capital do planalto e o sentido atribuído a esse título pelos organizadores
das festividades, especialmente pelo poder político institucional.”

A própria caracterização do Brasão Municipal remete a uma elaboração


temporal, histórica, já mirando um futuro. Trigo e a indústria, alimentada
pelo potencial hidrelétrico, constituem o principal projeto político das
elites políticas e econômicas do município nos anos 1950, a essência da
palavra progresso no principal símbolo do centenário. (KNACK, 2016, p.
10)

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Verifica-se no Brasão Municipal que os potenciais do município de Passo Fundo


é que são destaques.

Fonte:<www.pmpf.rs.gov.br>

No ano de 1956 é criada a lei número 720/56, que cria o brasão municipal,
posteriormente, em 1964 a lei número 1111/64 altera e define a caracterização do brasão
municipal. No primeiro quadrante, um pinheiro (representando o desenvolvimento
econômico do passado). No segundo, uma espiga de trigo, (representando o
desenvolvimento do presente no terreno da agricultura). No terceiro, os símbolos do
comércio e indústria. No quarto, uma torre de eletricidade estilizada, representando estes
dois últimos quadrantes, o desenvolvimento do potencial econômico do Município e seu
progresso e atividade rumo ao futuro.
Como é exposto por Pesavento (2007) no que concerne ao processo imaginário
de construção, na invenção de um passado e de um futuro, a cidade está sempre a explicar
o seu presente, o que acaba por definir uma certa identidade, um modo de ser passo-
fundense, uma cara e um espírito, um corpo e uma alma, o que possibilita o
reconhecimento das pessoas, do fazer parte da memória, o que leva à sensação de
pertencimento e de identificação com a sua cidade.”
Percebe-se a partir da promoção da cultura do trigo, das várias frentes como
forma de enaltecer o referido cereal, certa necessidade de demonstrar uma
homogeneização social, econômica e cultural dos passo-fundenses, parecendo que o
objetivo seria tornar Passo Fundo uma cidade moderna, através do planejamento, cidade

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modelo e exemplo a ser seguido pelas outras cidades, enaltecendo a ideia de que haveria
na época, da criação do monumento, abundância de recursos tanto humanos quanto
materiais, e que o futuro seria de progresso advindo do esforço do trabalho de agentes
públicos, granjeiros, comerciantes, dos prestadores de serviços.

Considerações finais
Analisar a construção do Monumento Trigo, da memória e a representação da
identidade passo-fundense, através da obra criada por Paulo Batista de Siqueira,
possibilita compreender como tal monumento que constitui o corpus da pesquisa pode
revelar a força de um discurso narrativo (re) criador de identidades, discurso este que
enfatiza tanto as memórias da família Tagliari, quanto do poder público municipal de
afirmar seu poder e sua autonomia para criar imagens urbanas, é a máquina pública ou
particular trabalhando para que se concretize a identificação da cidade de Passo Fundo
como a Capital do Planalto Médio. Como Anderson (2008) enfatiza, as identidades são
desejadas, projetadas, imaginadas e englobam contradições e ambivalências. Nesse
entremeio há lutas, sonhos, disputas etc. Seguindo nesta mesma conceituação reforça-se
a ideia de que os traços e rastros memoriais através das configurações concretas, no caso
o Monumento Trigo, tendem a legitimar a cidade como um espaço identitário, espaço em
transformação. A identidade da urbe também se transforma, ou ao menos acompanha a
transformação “palimpsêstica” da cidade, havendo um jogo dialético entre o passado e a
memória presente na paisagem atual da cidade de Passo Fundo.

Referências bibliográficas:

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nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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MEMÓRIAS FAMILIARES: FAMÍLIAS PIPPI E PIGATTO NA QUARTA


COLÔNIA IMPERIAL DE IMIGRAÇÃO ITALIANA NO RIO GRANDE DO
SUL/BRASIL*

Liriana Zanon Stefanello495**

Povo que não preserva suas raízes perde sua


identidade e, perdida esta, nada mais tem a
perder. - Padre Luiz Sponchiado.

Introdução
As memórias familiares dos imigrantes e descendentes de italianos, “guardadas”
no Centro de Pesquisas Genealógicas de Nova Palma496 (CPG), por Padre Luiz Sponchiado,
nos instigaram a desenvolver esta pesquisa. Observou-se que suas relações com as
famílias de Nova Palma se davam de diferentes maneiras, com maior ou menor afinidade,
tanto politicamente quanto socialmente. Isto nos intrigou, pois conhecendo sua história,
não percebíamos com clareza até onde ia o papel que o Pe. Luiz Sponchiado
desempenhava nesse contexto. Assim sendo, ficamos cada vez mais estimulados a
entender como se dava a construção desta memória tanto a elaborada e “guardada” no
Centro de Pesquisas Genealógicas de Nova Palma, quanto a memória de si e sobre si
elaborada pelos imigrantes, por e para seus descendentes, ao longo do tempo. Na busca
desta e de outras respostas correlatas, construímos a tese de doutorado que ora
sintetizamos e que se propôs a analisar a construção das memórias familiares de
imigrantes na região da Quarta Colônia Imperial de Imigração Italiana do Rio Grande do

* Este artigo é uma síntese da tese de doutorado em História e em “Lingue, Culture e Società Moderne”, na
modalidade Cotutela, da autora, intitulada: Memórias Familiares: Um Estudo Da Imigração Italiana Na
Quarta Colônia Imperial (Rio Grande Do Sul, Brasil), defendida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS/RS) e na Università Ca`Foscari di Venezia/Itália em 2015, sob a orientação da Profª Drª Eloisa
Helena Capovilla da Luz Ramos e do Profº Drº Luis Fernando Beneduzi. No período da cotutela, a pesquisa
foi desenvolvida na Itália, na Universidade acima mencionada, com o financiamento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), através do Programa de Doutorado Sanduíche no
Exterior. Pesquisa esta realizada em diversos acervos da Região da Toscana e do Vêneto.
** Doutora, professora do Colégio Franciscano Sant`Anna- Santa Maria/RS e pesquisadora no grupo de

pesquisa História Platina: poder, sociedade e instituições do CNPQ/UFSM.


496 O Centro de Pesquisas Genealógicas de Nova Palma (CPG) foi criado por Padre Luiz Sponchiado, e

inaugurado para visita ao público no Centenário da Colonização Italiana do Núcleo Soturno, hoje município
da Nova Palma, em 1984. Este padre preocupou-se em pesquisar a genealogia e a documentação dos
imigrantes italianos e de seus descendentes, estabelecidos na Quarta Colônia Imperial de Imigração Italiana
do Rio Grande do Sul.

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Sul - Brasil, a partir da análise da documentação organizada no CPG e da documentação


particular e inédita da família Pippi.
Para fazer a escrita da história usamos os dois arquivos, o do CPG, com cerca de
600 documentos arquivados nas referidas caixas destas duas famílias, e os 2000
documentos arquivados no acervo privado da família Pippi. A documentação arquivada
nos dois lugares e analisada é muito ampla. Compõem-se de: fotografias, lembranças
(óbito, aniversário, primeira eucaristia e missas), convites (formatura, casamento),
recortes de jornais, entrevistas, depoimentos orais, coletâneas de imposto territoriais e
sobre empréstimos; certidões civis e religiosas (nascimento, casamento e óbito), notas
(promissórias, fiscais e recibos), correspondências, escrituras de terras, contrato de
Compra e Venda (C/V) de terras, transmissão de propriedade, convocações, procurações,
nomeações, propagandas eleitorais, transações comerciais, etc. Nesta análise, portanto,
utilizamo-nos desta vasta documentação sobre as famílias e bibliografias concernentes
aos temas, especialmente as que se vinculam aos estudos micro-históricos sobre o
processo imigratório.

Algumas reflexões
Ao optarmos por analisar as duas famílias, verificamos que suas trajetórias nos
permitiriam analisar a influência das mesmas do passado até o presente em todos os
aspectos da vida colonial, sejam econômicos, políticos ou socioculturais. A observação nos
mostrou serem ambas influentes na comunidade, terem poder econômico e, também,
possuírem capital simbólico. Por isso, as consideramos representantes de muitas outras
famílias estabelecidas na região. Estudá-las significou, portanto, partir de uma história
particular (privada) para perceber o todo. Dito de outra forma, a redução da escala de
análise497 neste caso, a trajetória destas duas famílias nos permitiu, em última instância,
perceber, observar, identificar aspectos que de outro modo passariam despercebidos na
construção das redes econômicas, políticas e sociais da Quarta Colônia, ou seja, queríamos
identificar a influência destas redes nas reelaborações memoriais feitas pelo Padre Luiz.

497Ao se referir a este aspecto, Levi diz que “para a micro-história, a redução da escala de análise é um
procedimento analítico, que pode ser aplicado em qualquer lugar, independente das dimensões do objeto
analisado”- Giovanni LEVI. Sobre a micro-história. IN: Burke, Peter. A escrita da história: novas perspectivas,
São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p.137 - e mais que esta “observação microscópica revelará fatores
previamente não observados” (p.139).

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As trajetórias que nos propusemos cruzar na análise foram a trajetória do Padre e


a trajetória das famílias Pippi e Pigatto, que colaboraram no processo de escolha da
preservação da memória e, neste sentido, trajetória serve para compreender pontos de
contato entre as famílias e o Padre.
Para alcançar este objetivo, partimos da noção de trajetória definida por Bourdieu
(2008, p.74-82) como “uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo
agente (ou mesmo grupo), em um espaço, ele próprio em devir e submetido a
transformações incessantes”, mas consideramos muito relevante a reflexão feita por
Kofes (2001, p.19-28), a qual parte do mesmo princípio de Bourdieu, mas leva em conta a
temporalidade. A autora, ao estudar a trajetória de sua personagem, procurando verificar
a imagem que os testemunhos escritos oferecem da mulher analisada, considera a
importância das narrativas tecidas por ela própria, numa “tentativa de congelar uma
temporalidade precisa” (KOFES, 2001, p.27) e assim, uma imagem de si. Sendo assim, para
a autora, trajetória seria “o processo de configuração de uma experiência social singular”
(KOFES, 2001, p.27). Compreensão esta fundamental para averiguar que
memória/história de si os distintos atores sociais procuram construir através de suas
narrativas, levando em consideração que o processo de narrar e registrar implica em uma
seleção, princípio de todo e qualquer processo memorável.
A trajetória do Pe. Luiz Sponchiado iniciou em 1956, quando recebeu a Paróquia
de Nova Palma e deu-se concomitantemente à ampliação de seu prestígio e confirmação
de sua política498. Sua trajetória se cruzou mais particularmente com uma das duas
famílias enfocadas (assim como com centenas de outras) através do uso de alguns
instrumentos importantes, entre os quais o púlpito, pelo exercício de sua atividade
religiosa, a organização do Centro de Pesquisas Genealógicas (CPG), instituição cuja
finalidade é a preservação da memória da imigração italiana na localidade, e a atuação
frente ao movimento emancipacionista dos municípios da Quarta Colônia.

498Sobre este aspecto da vida do Pe. Luiz Sponchiado e sua atuação no processo de emancipação da Quarta
Colônia, consultar Moacir BOLZAN. Quarta Colônia: da Fragmentação à Integração. São Leopoldo: UNISINOS,
2011. (Tese de Doutorado); Jucemara ROSSATO. Padre Luiz Sponchiado: um empreendedor em Nova Palma,
(município da Quarta Colônia de Imigração Italiana). Santa Maria, 1996. (Trabalho de Conclusão de Curso
de Graduação de História); Juliana Maria MANFIO. Entre o Sacerdócio e a Pesquisa Histórica: a trajetória de
Padre Luiz Sponchiado na Quarta Colônia de Imigração Italiana –RS. Santa Maria: UFSM, 2015. (Dissertação
de Mestrado).

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É no CPG que o Pe. Luiz organizou as “caixas de família” com a documentação


relativa aos grupos familiares imigrantes e é onde ele construiu, com documentos de
diversos tipos, uma memória oficial da imigração na região. Exemplificando a parceria
com o prelado, analisamos a família PIGATTO. Família de expressão na comunidade, os
Pigatto sistematicamente estiveram ligados ao Pe. Luiz Sponchiado, acompanharam-no
em campanhas e o apoiaram em ações por ele desenvolvidas. Verificamos, porém, que por
diferentes motivos nem todas as famílias tiveram o mesmo tipo de relação com o Padre, é
o caso da família Pippi.
Numa região de origem imigrante, nem todos os grupos familiares tiveram na sua
“caixa de família” no CPG refletida a história e a trajetória completa do grupo. No
desdobramento do processo de formação do acervo feito pelo Pe. Luiz, percebemos que
outras mediações poderiam ter interferido na composição destas caixas de família, entre
as quais a filiação política do grupo familiar e/ou do padre e/ou a concordância com a
liderança do pároco.
Na outra ponta dessa rede local estão, portanto, os opositores ao Pe. Luiz, do ponto
de vista político, os que disputaram com o sacerdote o protagonismo político local. Neste
lugar de oposição ao Padre, estudou-se a família PIPPI. Tal como a família Pigatto, os Pippi
são uma família de posses, de tradição e de prestígio na comunidade. Esse grupo familiar,
do ponto de vista de sua história, agiu de forma distinta também com relação aos seus
papéis, pois não os depositou no CPG, como fazia a maioria, mas guardou parte de sua
história documental em casa, dando a eles um outro arranjo, o que os levou a contar de
uma outra forma o seu passado, a decidir eles mesmos a política de memória da família.
Para compreender estes distintos contextos da colônia, valemo-nos das seguintes
constatações desenvolvidas ao longo da tese: Há uma memória oficial e pública,
organizada e reconhecida como tal, no CPG, feita pelo Pe. Luiz Sponchiado. Em paralelo a
esta memória que chamamos de oficial, existe uma outra memória histórica particular,
mantida em casa e organizada pelos descendentes da família Pippi. Percebemos, neste
embate memorial, uma das características da formação da Quarta Colônia de Imigração
Italiana no Rio Grande do Sul.
Valemo-nos dos estudos da história cultural a partir de autores como Chartier
(2002) e Guinsburg (2001, p.85-103), com os quais dialogamos sobre as questões da
representação. Sobre as questões da memória, central neste trabalho, valemo-nos

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especialmente dos trabalhos de Candau (2011) e Pollak (1992; 1989). Nesta análise, a
memória foi o fio condutor das ações individuais e coletivas. Ou seja, procuramos sempre
analisar estas ações nas dinâmicas da preservação da memória.
Para isso, partimos da compreensão de que “os homens elaboram ideias sobre o
real, as quais se traduzem em imagens, discursos e práticas sociais que não somente
qualificam o mundo como também orientam o olhar e a percepção sobre essa realidade”
(PESAVENTO, 2008, p.11-18). Dessas práticas sociais suscitadas do olhar e da percepção
da realidade é que abordamos a representação. Esse termo foi trabalhado por autores
como Chartier (2002, p.165) e Ginzburg (2001, p.85) e ambos identificam que, por vezes,
ele é tratado como a presentificação de uma ausência e por vezes torna visível a realidade
representada (exibe a própria presença). É nesta segunda perspectiva que orientaremos
nossas reflexões.
Compreendemos que pertencer a um grupo, a uma comunidade, é definir seu lugar
social, estabelecendo fronteiras, permitindo a continuidade no tempo. Assim, “a definição
de uma identidade própria forma, por assim dizer, uma base de coesão social, uma
corrente de identificações e significados de compreensão mútua” (PESAVENTO, 1993,
p.384). Quando a sociedade define e elabora uma imagem de si e do mundo se atribui uma
identidade e se constitui como tal, por isso, é importante compreender e reconhecer que
a identificação e a diferenciação são faces da mesma moeda, pois a identificação com um
determinado grupo só é possível quando há grupos considerados diferentes, ou seja,
criam-se limites entre eles e nós, que se expressam na diferença cultural, em que os usos
de certos traços marcam uma identidade específica.
Neste sentido, a memória é um elemento constituinte da identidade. A elaboração
da memória é uma construção social, ou seja, é permitida através deste entrecruzamento
entre o individual e o coletivo. Assim, selecionar o que deve ser lembrado e o que se relega
ao esquecimento é parte de todo e qualquer processo de construção de memória e
identidade. Então, “a memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das
interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em
tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades” (POLLAK, 1989, p.9).
Utilizar-nos-emos também dos enfoques da microanálise, que nos estudos sobre
as migrações (especialmente aos estudos desenvolvidos nas últimas décadas do século

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XX) partem da compreensão do indivíduo como um sujeito ativo, que toma decisões e
onde a família adquire um papel importante, pois é onde as decisões são tomadas e as
estratégias para a sobrevivência são traçadas (RAMELLA, 1995, p.14). É no âmbito das
relações pessoais, portanto, que as informações são passadas.
A história da família teve múltiplas leituras de acordo com o tempo e o lugar. Neste
trabalho, as famílias estudadas procuram afirmar o parentesco e o pertencimento na
memória sobre a ancestralidade italiana e é procurando compreender as construções
sobre essa memória familiar e coletiva que refletiremos sobre o que é ou pode ser a
família.
Retomamos a história numa perspectiva social na qual o fio condutor desta
investigação recai sobre o grupo familiar, suas estratégias e relações, o que nos
possibilitará perceber, nos pormenores e nas peculiaridades, o que o particular tem de
coletivo. Procurar-se-á apreender as redes mais complexas de sustentação cultural,
afetiva e de poder construídas pelos imigrantes. No emprego deste método, o que estamos
fazendo é a construção das categorias de análise a partir da observação das fontes que
não estão dadas a priori.
Neste sentido, verificamos que uma versão da preservação da memória familiar
com a preocupação de ressaltar suas distintas temporalidades, seu lugar na sociedade,
seus personagens e sentimentalidades foi levado a cabo pelo Padre Luiz Sponchiado,
quando iniciou seus trabalhos de pesquisa sobre os imigrantes italianos e descendentes
na Quarta Colônia. Com tal ação, ele se propunha não só a descobrir a sua história pessoal,
mas também ser o “guardião” da memória da Quarta Colônia. Ou seja, os “guardiões da
memória”499 são pessoas que por algum motivo são indicados a falar/escrever sobre as
histórias locais. Por isso, empenham-se em não esquecer o passado, dedicando-se
“permanentemente a (re)construção da memória, seja colecionando fotografias e
pequenos objetos em suas caixinhas de lembranças, ou narrando a seus membros mais
novos casos e histórias” (PEREIRA, 2008, p. 186). Então

A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós


modelada. Isso resume perfeitamente a dialética da memória e da

499 Pollak (1989, p.8) trabalha com a ideia de “guardião de memória”, ao referir-se às lembranças,
zelosamente guardadas e que são transmitidas, seja na família, em associações, em redes de sociabilidade
afetiva e/ou política.

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identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente e se apoiam uma na


outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma
narrativa (CANDAU, 2011, p.16).

Através de suas pesquisas nos arquivos paroquiais de várias dioceses do Estado do


Rio Grande do Sul, no Arquivo Histórico Nacional, no Arquivo Público em Porto Alegre,
das entrevistas e visitas às famílias coletando documentos antigos, fotografias, objetos,
além da colaboração das próprias famílias que iam até a casa paroquial, quando o Padre
Luiz ainda era pároco em Nova Palma, e posteriormente, em seu escritório no Centro de
Pesquisas Genealógicas (CPG), ele foi construindo, a partir de 1973, um acervo que
atualmente conta com 1850 sobrenomes italianos. No entanto, relembrando as ideias de
Farge (2009, p.11), o arquivista coleciona, classifica, e o arquivo é o resultado desse
trabalho. Por isso, para arranjar tais documentos, é necessário ter presente que toda e
qualquer coleção familiar passa, antes de ser entregue para o organizador dos acervos,
por um processo de seleção interna, no caso especifico de CPG de Nova Palma, este acervo
passou, no mínimo, por uma dupla seleção realizada, em primeiro lugar pela família, que
disponibiliza ao padre o que considera importante sobre si, de acordo com a afinidade e
confiança que nutre pelo mesmo. E a segunda, feita pelo padre, que diante da
documentação disponibilizada, seleciona o que julga representativo da memória e
história familiar. Neste caso, não se deve negligenciar a autoridade do Pe. Luiz como
pároco, porque essa facilita o acesso à documentação familiar uma vez que o prestígio do
padre nas áreas de imigração italiana vai muito além da liderança espiritual500, uma vez
que “ele era um elemento indispensável ao mundo social e cultural dos italianos na
colônia” (BOLZAN, 2011, p.124).
Apesar destas mediações, é importante considerar que os acervos familiares são
organizados segundo as expectativas de quem os pensou, com um objetivo determinado
e uma visão do passado que é filtrada pelo presente. Ao fazer este movimento, os titulares
destes arquivos são, ao mesmo tempo, sujeitos que fazem uma escrita de si e uma escrita
da história. É o caso do Pe. Luiz Sponchiado, mas é do oficio do historiador, nestes casos,

500Sobre este aspecto, pode-se verificar os seguintes trabalhos: Maria Catarina ZANINI. Italianidades no
Brasil Meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria. Santa Maria: UFSM, 2006;
Maíra Ines VENDRAME. “Lá éramos servos, aqui somos senhores”: a organização dos imigrantes italianos
na ex-colônia Silveira Martins (1877-1914). Santa Maria: UFSM, 2007; ______________. Ares de vingança: redes
sociais, honra familiar e práticas de justiça entre imigrantes italianos no sul do Brasil (1878- 1910). Porto
Alegre: PUC, 2013 (Tese de Doutorado).

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descortinar o discurso construído sobre estas famílias de imigrantes italianos


estabelecidos na região colonial em estudo, assim como de suas memórias. Ou seja, cabe
ao historiador perguntar como o padre construiu o discurso e no que se baseou para
construí-lo.

Como se construíram as memórias


Para buscar as respostas aos questionamentos, dividimos o trabalho em cinco
capítulos que se apresentam da seguinte forma: o primeiro que dá o panorama do
trabalho, que diz o que ele é; o segundo que coloca o Pe. Luiz em cena; o terceiro trata das
duas famílias de imigrantes, suas origens, a sociedade onde viviam na Itália no período
em que emigraram; o quarto capítulo discorre sobre a organização social dos imigrantes
citados e suas relações a partir das casas comerciais e de outras atividades; o quinto
capítulo, finalmente, analisa a organização, as reelaborações memoriais feitas a partir do
CPG, e nela, a organização das caixas de família e seu conteúdo e as diferenças aí
estabelecidas.
No segundo capítulo, partimos do pressuposto que o Centro de Pesquisas
Genealógicas (CPG) de Nova Palma é um lugar de memória – a memória e a história oficial
e pública da Imigração Italiana na Quarta Colônia - e, como tal, consagra uma
representação do passado e elabora um discurso sobre a história. Analisamos, nesta
primeira parte do trabalho, como se dá essa construção e, nesse sentido, colocar o PE.
LUIZ SPONCHIADO como figura central. Para tanto, percorreremos a sua trajetória, ele
também descendente de imigrantes italianos oriundos da Comuna de Carbonera, na
Província de Treviso, vindos para a região colonial em 1885. Consideramos importante
refletir sobre este protagonista para compreender quem é o agente social autorizado a
construir a memória oficial da imigração italiana desta região e em que contexto se
desenvolverá esta construção.
Nesse contexto, procuramos percorrer a trajetória deste padre a fim de
compreender o momento de sua inserção na sociedade novapalmense, onde além da
atividade de pároco, ele construíra uma imagem em torno de si, que lhe permitirá ser o
mediador501 para a resolução das questões em distintas áreas sociais. Nesse ponto,

501 Este termo foi originalmente utilizado na Antropologia, por Fredrik Barth (1993). Na história foi
trabalhado por Edoardo Grendi e Giovanni Levi que, analisando a relação entre família, comunidade e o

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identificamos que sua autoridade é respeitada para além da comunidade. E, por conta
disso, ele terá a autorização, na década de 1970, para coordenar as comemorações do
Centenário da Imigração Italiana nesta região colonial, concedida pelo Bispo Diocesano
de Santa Maria Dom Ivo Lorscheiter. Como o CPG é o resultado deste trabalho, poderíamos
dizer que existe uma memória oficializada pela mão da Igreja e reconhecida pela
comunidade.
No entanto, a apropriação desta memória não se daria de forma igualitária.
Procurando entender quem são estes agentes sociais das famílias Pippi e Pigatto e como
se dariam estas reelaborações memoriais, julgamos importante percorrer a trajetória
desses dois grupos familiares. Esse foi o trabalho desenvolvido na terceira parte da
análise (capítulo 3).
Neste sentido

Perseguir uma trajetória significa acompanhar o desenrolar histórico de


grupos sociais concretos em um espaço social definido por esses mesmos
grupos em suas batalhas pela definição dos limites e da legitimidade
dentro do campo em que se inserem. Seguramente a origem social é um
holofote poderoso na elucidação dessas trajetórias, pois o habitus
primário, devido ao ambiente familiar, é uma primeira e profunda
impressão social sobre o indivíduo, que sofrerá outras sedimentações ao
longo da vida (MONTAGNER, 2007, p.18).

Estas duas famílias de imigrantes italianos são originárias de distintas regiões da


Itália, que imigraram para o Brasil. Assim, investigamos a história local e os processos
imigratórios desenvolvidos na região da Toscana e do Vêneto, objetivando entender a
sociedade em que viviam nossos protagonistas, para compreender as motivações e
aspirações que os levaram a emigrar. Como já dissemos, partimos do pressuposto de que
esses sujeitos foram responsáveis por traçar suas estratégias de superação social e
valeram-se de todos os meios para isso. Nessa perspectiva, identificamos as redes
relacionais estabelecidas nesse processo, responsáveis por fundamentarem os fluxos
dessas emigrações.

mundo exterior, identificaram que alguns indivíduos poderiam ser “pontes” entre tais unidades, agindo
como “mediadores” políticos, sociais ou econômicos - LIMA, 2006 apud Maíra Ines VENDRAME. Ares de
vingança: redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre imigrantes italianos no sul do Brasil (1878-
1910). Porto Alegre: PUC, 2013. (Tese de Doutorado). p.25.

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A família Pippi é oriunda da comuna de Fabbriche di Vallico, uma região localizada


entre as montanhas, na Província de Lucca, região da Toscana. Localizamos ali, na década
de 1850, a família de Giuseppe Luigi Pippi e Elena Gianni, e seus sete filhos: Giuliano Pippi,
Próspero Pippi, Luisa Aldegonda Pippi, Maria Dionizia Isabella Pippi, Flávio Bruno Pippi,
Gotardo Dionizio Adolfo Pippi, e Vittorio Oreste Pippi.
Após o falecimento do chefe familiar em 1870, a imigração passa a ser o horizonte
para a família Pippi. É nesse contexto (não se sabe como e nem o porquê) que o
segundogênito do casal, Próspero Pippi, resolvera emigrar, sozinho, aos 12 anos de idade,
no ano de 1865. Assim, num período anterior à grande imigração, mas seguindo um
caminho já feito por muitos toscanos, Próspero Pippi partiu para a América.
Ao se inserir na sociedade colonial e ampliar seus negócios, alimentou o fluxo
migratório familiar, proporcionando a vinda de seus irmãos (homens). A atividade
comercial seria a opção utilizada pela família para a inserção na sociedade sul-rio-
grandense. Ao longo desse processo, identificamos o estabelecimento de outras redes que
seriam igualmente importantes na expansão e no êxito desta atividade comercial.
Quanto à família Pigatto, imigrantes originários de Pozzoleone, Comuna de
Vicenza, na região do Vêneto, tendo familiares já estabelecidos na América, sua inserção
foi facilitada. Assim, Luigi Pigatto e sua esposa Lucia Catterina Mazzardo, ao receberem
notícias de Maria Madalena Mazzardo, irmã de Lucia, casada com Giácomo Turra,
imigrantes estabelecidos na Colônia Silveira Martins, no estado do Rio Grande do Sul -
Brasil desde 1884, pensam na possibilidade de mudar a situação vivida e também
emigrarem. Assim o fizeram juntamente com Vicenzo Pigatto, irmão de Luigi, em 1888.
Na sociedade colonial, os dois irmãos dedicaram-se a atividades diversificadas,
como as muitas ocasiões em que eram contratados para os serviços de abertura de
estradas, o que possibilitou uma renda extra, além do cultivo do(s) lote(s) colonial(ais), o
que vai sendo reinvestido em outras áreas, como a casa de negócios e a aquisição de
terras.
Ao identificar as redes relacionais estabelecidas por ambos núcleos familiares,
percebemos que o espaço da casa comercial foi, por excelência, o lugar onde estas alianças
foram construídas. Esse foi o objeto de estudo do capítulo 4. Neste momento, estudamos
a expansão dessa atividade comercial nestes dois núcleos familiares e a consolidação do
poder familiar. Há a criação de uma rede de casas comerciais, que seriam diretamente

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administradas pelos familiares. A “venda”, espaço por excelência de sociabilidade, seria,


também, o espaço onde alianças e compadrios seriam firmados. “O espaço de
intermediação mercantil, financeira e de sociabilidade na colônia era a venda, a casa
comercial; referência territorial de negócios, conchavos políticos, discussões e
informações; de presença masculina por excelência, de barganhas e de poder do
comerciante” (TEDESCO, 2010, p.283). É nessa perspectiva que vão entrar as casas
comerciais dos sujeitos aqui estudados, assim como as atividades envolvidas em torno
delas, longe de serem compreendidos como sujeitos passivos, são processos.
O capital econômico oriundo dessa atividade possibilitaria a diversificação das
atividades. Percebemos que ambas famílias reinvestiram seu lucro na aquisição de áreas
territoriais e no desenvolvimento de outras atividades.
A influência destas famílias seria alargada pelos reinvestimentos destes recursos e
igualmente pela manutenção desta atividade comercial, por gerações na família. A partir
deste prestigio econômico e social, aliado às redes estabelecidas, estas famílias
alcançariam o poder político. Procuramos identificar, também, a partir da segunda
metade da década de 1950, as relações estabelecidas pelos integrantes destes dois
núcleos familiares com o Padre Luiz Sponchiado, quando este se tornou o pároco de Nova
Palma, pois as relações estabelecidas tanto no exercício da atividade de pároco, como em
função do processo emancipatório desencadeado neste momento, teriam influência na
construção da memória familiar por ele elaborada.
As memórias familiares construídas foram o objeto de estudo da última parte da
tese, o capítulo 5. Neste momento, dedicamo-nos a analisar as representações memoriais
elaboradas a partir do acervo do CPG e do acervo privado da família Pippi. Procuramos
discutir o enquadramento memorial elaborado no CPG, lugar de memória e história oficial
e pública da imigração italiana da Quarta Colônia imperial, pelo Padre Luiz. Memória que
seria reconhecida como oficial pela comunidade e apropriada, neste estudo de caso, pela
família Pigatto.
Mas, como todo o processo de reelaboração memorial é uma representação, nem
todas as famílias se apropriariam da sua memória “guardada” no CPG. Este foi o caso,
neste estudo, da família Pippi, através de Maria Neli Donato Pippi, que organizou uma
outra memória do seu grupo familiar. Os Pippi, assim, constroem a sua história e o seu
prestígio. Desta forma, observamos que havia uma memória reclamada e que não estaria

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sendo representada no acervo do CPG. Identificamos que neste embate memorial, a


sociabilidade teria tido um peso decisivo na construção de memória. Neste contexto, o
patrimônio documental familiar materializaria a identidade destes indivíduos, destas
famílias. Identidade essa, constituída primeiramente no imaterial, ou seja, na memória de
cada indivíduo.

Conclusão
Nossa reflexão nos apontou, ao longo do trabalho, que os responsáveis pela criação
de acervos são sujeitos históricos que olharam o passado a partir de suas relações e
aspirações do presente. Esse olhar determina a seleção dos documentos e a sua
disponibilização, por parte das famílias, ao padre Sponchiado, o representante autorizado
a guardar e construir uma memória das famílias e da imigração que será “guardada’ no
CPG. A Srª Maria Neli Pippi, por seu turno, fará o mesmo com a documentação de sua
família, dividindo com o Padre Luiz Sponchiado a guarda deste acervo documental. Trata-
se de documentos particulares, o que nos permitiu concluir que ela não reconhecia no
sacerdote alguém autorizado a fazer a história de sua família. Possivelmente, seja ela a
representante autorizada a falar pelos seus. Ou a quem ela delegar essa função.
Independente destas tensões e desencontros, percebemos, por fim, que a
documentação familiar arquivada nestes dois acervos tornou-se patrimônio documental
familiar dos descendentes de imigrantes italianos da Quarta Colônia.

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GIUSEPPE GARIBALDI O “HERÓI DOS DOIS MUNDOS”: IMAGEM E


NARRATIVA NA REPRESENTAÇÃO DO PERSONAGEM NOS 150 ANOS DA
REVOLUÇÃO FARROUPILHA

Luciano Braga Ramos*

Introdução
O ano de 1985 foi um momento de reafirmação da memória farroupilha por
parte do governo do Estado e das elites rio-grandenses, que a seu favor tiveram a
oportunidade de estarem no poder justamente no momento em que a Revolução
Farroupilha estava prestes a fazer cento e cinquenta anos de sua eclosão. Por esses
pressupostos, é possível compreender como aquele momento contribuiu com a imagem
que as elites forjaram de si e para si a partir do trabalho de memória reelaborado pelas
mesmas. Construíram por meio de suas práticas as representações em um discurso que
buscava nas imagens de seus “heróis” uma suposta hereditariedade que pudesse legitimar
os atos de tais grupos no presente e na conjuntura política e social a qual atravessavam
no ano de 1985 no Rio Grande do Sul.
Na presente análise, o objeto principal, é compreender o uso da memória. Assim,
busquei compreender a memória a partir do entendimento da mesma, por Jaques Le Goff
(2003), onde o autor afirma que a memória como:

(...) propriedade de conservar certas informações, remete-nos em


primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas. (LE GOFF, 2003, p.419).

Analisando a memória da Revolução Farroupilha, pode-se perceber que o ato de


rememorá-la, procura um passado afastado satisfatoriamente para criar seus “heróis”, de
maneira que estes possam sofrer os revezes das representações com pouca contestação.
Pois a memória elaborada no presente responde as inquietudes do presente como bem
colocou Ulpiano Bezerra de Menezes (2000).

*Graduado em História pela Universidade Luterana do Brasil; Especialização em História do Rio Grande do
Sul pela Universidade do Vele do Rio dos Sinos. Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. Professor da rede pública do Estado do Rio Grande do Sul.

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A memória como objeto de apropriação pela elite sul-rio-grandense, enaltecendo


seus vultos acabou por trazer ao presente seus personagens, que somente conseguem vir
ao presente por tais evocações. Essas evocações é o que proporciona a criação do que
Michel Pollak (1992) chamou de: “acontecimentos vividos por tabela”, que, por
conseguinte trazem ao presente de seus criadores as “personagens frequentadas por
tabela”. É no dizer do autor, acontecimentos, que pelo ato de comemorar pode ocasionar
aos seus criadores e receptores a impressão de mesmos distanciados no tempo, terem
feito parte daquele passado, como se o tempo pudesse ser estreitado. De modo parecido,
as “personagens frequentadas por tabela”, emergem quando um sentimento coletivo
consegue estabelecer um sentimento onde os sujeitos no presente parecem estar falando
de pessoas do seu convívio, quase que ignorando o distanciamento criado pelo tempo e
espaço.
Assim também, se mantém a memória da Revolução Farroupilha, eternizando,
comemorando e celebrando seus vultos, de maneira a estabelecer uma ligação muito
convincente com os sujeitos do presente. Dessa forma, se reinventando a cada conjuntura
e a cada vinte de setembro, tendo o aval dos poderes públicos e instituições privadas, a
memória farroupilha procura em seus mortos as reafirmações e justificativas às
aspirações do presente.
Portanto, estudar os documentos aqui selecionados, é também vasculhar uma
documentação escrita e imagética, é analisar a produção de um material que prescreveu
modelos a serem seguidos de uma história que se pretendia definitiva pelo
estabelecimento de certezas de uma elite. Tais certezas são pela presente análise
contrapostas à história cultural, que olhando para os fragmentos de um passado, primam
por novas possibilidades de análises documentais antes não levadas em conta. Assim
sendo, imagens e textos podem nos abrir outros caminhos de estudo.

A imagem como elemento do trabalho de memória

Quando se trabalha com a memória, obviamente, estamos tratando com algo que
vem ao presente pela sua representação, que se da no presente. Assim o sesquicentenário
da Revolução Farroupilha, também servil de lugar às prática da representações dos seus
“homens”, que acabam por “retornar” ao presente, sempre tão reverenciados. Giuseppe
Garibaldi foi um desses ícones da revolução, com elementos tão importantes para aqueles

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que reverenciavam, ou reverenciam ainda, um suposto passado “heroico”. Garibaldi, o


“herói” dos dois mundos, foi reverenciado em ambos por parte de suas governanças e
elites interessadas naquela memória.
No ano das comemorações aqui analisadas, foi possível encontrar as imagens
trabalhadas para aquele período, mas também os registros escritos de documentos que
atestam a busca das autoridades sobre indícios do passado que supostamente pudessem
dar mais estofo para confirmar a ideia tão trabalhada, da imagem representada desse
“herói transcontinental”. Assim, trabalhando com as fontes do Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul, foi possível encontrar documentos que me possibilitaram as amarrações
intelectuais para a análise das imagens produzidas sobre Giuseppe Garibaldi, tanto na
Itália como no Rio Grande do Sul. Por outro lado, esses documentos podem confirmar
como uma “representação turvada” 502 pode ser útil aos propósitos do presente caso haja
base para a implantação de uma suposta memória. No caso do Rio Grande do Sul, isso
poderia se situar, supostamente, no forte vínculo da colonização italiana e na inserção
dessa como uma espécie de herdeira de uma “tia avó”, a quem é concedida algumas
migalhas de uma herança quase sem conexão.
Acontecimento conveniente para aquele contexto de festividades foi a procura por
pessoas que pudessem descender dos “heróis” farroupilhas. Houve uma corrida pelo Rio
Grande do Sul das autoridades estaduais e municipais na tentativa de encontrar
descendentes dos farroupilhas. No que consta da documentação, a tarefa de buscar, então
os referidos descendentes farrapos ficou a cargo da Subcomissão de Eventos Culturais e
Artísticos, comandada por João Romeu Dutra, que em carta enviada ao Palácio Piratiní
para o Secretário da Comissão Executiva do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha,
o senhor Prof. João Pradel de Azevedo, dizia o seguinte:

Porto Alegre 30 de outubro de 1984.


Em reunião realizada nesta data como Dr. Paulo Xavier, convocado
especialmente com o objetivo de tratar do projeto “Encontro dos
Descendentes Farroupilhas”, ficou acertado que devemos constituir um
grupo de trabalho para sua devida execução.
Necessitamos, assim, de contar com a presença de dois representantes da
Subcomissão de Geografia e História que, com representantes desta

502Expressão utilizada por Roger Chartier (2002). Em “À beira da falésia: a história entre incertezas e
inquietudes”.

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Subcomissão de Eventos Culturais e Turísticos deverão desenvolver, com


a colaboração de Dr. Paulo Xavier, os trabalhos executivos previstos.
Encarecemos as necessárias providências de Vossa Senhoria para que, na
próxima reunião do dia 05/11, já estejam presentes os escolhidos pela
subcomissão de Geografia e História. (Documentos da Subcomissão,
Caixa 01, 1984).

Podemos intuir a importância dada à busca por tais sujeitos, na antecedência de,
praticamente um ano antes das comemorações, os responsáveis pelas subcomissões
acima citadas já estarem planejando como iriam organizar as buscas pelos supostos
descendentes farrapos. Nota-se a preocupação de buscarem o auxílio dos historiadores
na elaboração do planejamento do trabalho. Nesse viés, podemos observar a prática da
busca de “rastros” do passado para uma releitura do trabalho de memória.
Em Porto Alegre, durante o mês de agosto de 1985, em correspondência do
Secretário da Comissão Executiva do Sesquicentenário da revolução, Tarcísio Deretti,
direto do gabinete do governador para o presidente da Comissão do Sesquicentenário
veio a seguinte ordem:

Senhor Presidente
Tendo em vista a solenidade do 20 de setembro próximo, em que serão
homenageados os descendentes dos heróis farroupilhas, informo que
esta Comissão receberá, até 31 de agosto, as inscrições das pessoas que
comprovem sua descendência daqueles que participaram da Guerra dos
Farrapos.
Solicito sejam também remetidos os endereços dos interessados para a
Comissão Executiva do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha – Rua
Duque de Caxias, nº 1029 – 1º andar. Porto Alegre. (Documentos da
Subcomissão, Caixa 01, 1984).

Por tanto, no mês que antecedia as comemorações do sesquicentenário, ainda se


tinha a preocupação com a ideia de encontrar os descendentes farrapos. Num primeiro
momento, pode parecer que o documento acima não tem grande representação, porém
cabe ao historiador indagar o que está subjacente no mesmo. Por exemplo, o documento
atesta o anseio que as autoridades tinham de legitimarem a memória que revolviam. Para
isso, a ordem acima citada partiu, como partia as demais, direto do gabinete do
governador. Podemos sugerir, que se o assunto não fosse relevante, não precisaria passar
pelo gabinete do governador Jair Soares. Por tanto, ao que tudo indica, o mesmo tratava
os assuntos sobre o evento muito de perto.

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Na “epopeia” para encontrar pelos municípios do Rio Grande do Sul algum


descendente farrapo, muitas prefeituras resolveram colaborar com o governo do Estado
destinando pessoas a essa tarefa. Entre algumas dessas correspondências, selecionei a
correspondência enviada da prefeitura de Garibaldi para o Secretário de Estado
Extraordinário para Assuntos da Casa Civil e Presidente da Comissão Executiva, o
Deputado Adylson Motta. Na carta o prefeito de Garibaldi, o então senhor Ambrósio
Chesini dava a notícia:

OF. Nº 120/85 – SMEC Garibaldi, 16 de julho de 1985.


Senhor secretário:
Vimos por meio deste informar a V. S. que após levantamentos feitos em
nosso município não foram encontrados descendentes dos heróis de 35.
Sendo o que tínhamos para informar no momento, apresentamos, ao
ensejo.
Cordiais saudações. (Documentos da Subcomissão, Caixa 01, 1984).

Em 17 de julho de 1985, ao receber a carta, possivelmente o secretário pode ter


tido uma decepção, como um município que levava o nome de um “herói” farroupilha, não
encontrou rastro de um suposto descendente? O documento pode demonstrar que
embora não tivesse se encontrado naquele momento nem um descendente de Garibaldi,
a ideia de procurar naquele local não era absurda visto que por se tratar de uma região de
colonização italiana, o fluxo de idas e vindas de pessoas ligadas a Itália poderia sim em
outro dado momento trazer à terras rio-grandenses, quem sabe algum “garibaldino”
desavisado. Se levarmos em conta, mesmo, os propósitos do nome do município
novamente terão aos nossos olhos uma prática, a prática de nomear um lugar revolvendo
uma memória que para aquela zona de colonização italiana poderia ter significados
relacionados à expressão “herói dos dois mundos”, tão trabalhada para lembrar Garibaldi.
Nesse aspecto, reside a importância que o historiador tem que dar às relações entre as
práticas, representações, e suas consequências para o trabalho de memória.
Na insistência de reunir pessoas que pudessem comprovar sua descendência com
os farroupilhas, em ofício à comissão organizadora do evento, na pessoa do senhor
Secretário Executivo, Tarcísio Deretti, esse procurava organizar uma associação dos
descendentes dos farroupilhas. Segundo o Ofício nº 471/85 de 01 de novembro de 1985
dizia:

Prezada Senhora

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O Rio Grande do Sul, sob a coordenação do Governo do Estado, está


celebrando, em 1985, os cento e cinquenta anos da Epopeia Farroupilha.
(...).
Dentro desse espírito, dirijo-me a Vossa Senhoria para informá-la da
intenção de organizar a Associação dos Descendentes dos Heróis
Farroupilhas, que, além de abrilhantar as comemorações (...), contribuíra
certamente para estreitar laços de solidariedades junto ao povo gaúcho.
Tarcísio Deretti. Secretário Executivo. (Documentos da Subcomissão,
Caixa 01, 1984).

O Estado poderia ter a intenção de institucionalizar em uma associação organizada


pelo mesmo, os elementos que poderiam dar sentido para justificar um passado por meio
da materialização do mesmo vinculado à presença dos descendentes vivos dos
farroupilhas. Por outro lado, a narrativa do secretário deixa a entender que esse trabalho
contribuiria para estreitamento dos laços do povo gaúcho. Pois bem, poderia contribuir
para tal fato dentro do viés pretendido na reformulação do trabalho de memória
idealizado por aquelas elites.
Entre todas as tentativas de se encontrar pessoas ligadas por laços consanguíneos
aos farroupilhas retomo o enfoque desse artigo, que é justamente analisar a construção
da imagem de Giuseppe Garibaldi, que se reelaborou para o ano de 1985. Importante
descoberta pela documentação pesquisada foi justamente a presença, na Itália de um
sujeito que foi reconhecido como bisneto de Giuseppe Garibaldi, e o empenho do Governo
do Estado do Rio Grande do Sul para trazer o mesmo, para ilustrar as comemorações dos
cento e cinquenta anos da Revolução Farroupilha. A partir da documentação pesquisada,
foi possível analisar as práticas desenvolvidas pelos responsáveis pela execução das
comemorações utilizando a presença desse descendente do “herói” farrapo.
Sobre o primeiro documento que atesta a vinda do descendente de Garibaldi ao Rio
Grande do Sul, encontrei o Jornal do Comércio, que noticiava como seria a visita do
mesmo. Segue abaixo a notícia na íntegra:

Bisneto de Garibaldi chega dia 18


O bisneto de Giuseppe e Anita Garibaldi, que leva o mesmo nome de seu
ilustre bisavô, chegará a Porto Alegre no próximo dia 18, devendo
permanecer no Estado até o dia 24. Acompanhado da esposa e da mãe, ele
assistirá às comemorações do Sesquicentenário da Revolução
Farroupilha programadas para os dias 19 e 20, que terão como ponto alto
a reconstituição da tomada de Porto Alegre e o desfile de três mil
cavalarianos na Avenida Perimetral. Visitará também alguns locais
históricos principalmente aqueles onde seu bisavô combateu, no Rio

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Grande do Sul e Santa Catarina. O descendente de Garibaldi é relações


públicas da Ente Nazionale Idrocarburi, a Petrobrás italiana, com sede em
Roma. Ele e seus familiares vêm ao Estado a convite do Governo gaúcho,
com passagens oferecidas pela Varig. (Jornal do Comércio, 13 de
setembro de 1985, p. 17).

Nesse documento, observam-se algumas pistas sobre os sujeitos e suas relações, e


com quem o bisneto de Garibaldi teve contato no Rio Grande do Sul. O mesmo, segundo a
narrativa, veio a convite do Estado e teve suas passagens e de seus familiares,
disponibilizadas pela Varig. Mas também, o documento pode mostrar que o mesmo, na
Itália ocupava uma posição importante junto a uma instituição, que segundo a narrativa
seria o equivalente a uma estatal (Até que ponto sua descendência influenciou em sua
ascensão?). Já no Rio Grande do Sul, pode-se observar a valorização da imagem, visto o
quanto supostamente é sintomático a “presença dos mortos”, na forma como o mesmo
contribui para a prática da rememoração dentro da ótica empregada por Pollak, (1992),
de “personagens frequentadas por tabela”. A presença de Giuseppe poderia servir como
instrumento de estreitamento entre o tempo, sendo mesmo uma “testemunha a
posteriori” da “presença de Garibaldi entre os dois mundos”, no que seria uma espécie de
“retorno” do morto, ou como dizia Certeau (2010), são os vivos, que se valendo da
representificação do morto vão, assim, “arrumando a casa”.
Os descendentes de Garibaldi visitaram o Rio Grande do Sul e Santa Catarina,
acompanhados de representantes do Estado.503 Foi em uma dessas correspondências
trocadas entre a família Garibaldi e a comissão do sesquicentenário da Revolução
Farroupilha que encontrei a procedência do calendário comemorativo do centenário da
morte de Giuseppe Garibaldi comemorado na Itália. O mesmo foi enviado pela esposa do
bisneto de Garibaldi, quando do seu retorno à Itália, conforme se constatou na conversa
em carta ente Giuseppe e o secretário da Comissão Executiva do Sesquicentenário.

Porto Alegre, 3 de dezembro de 1985.


Meu caro amigo Giuseppe Garibaldi.
Ainda que com atraso, encaminho-lhe um conjunto de fotos e reportagens
relativas à visita de sua ilustre família a esta comunidade. Através do
Consulado Geral da Itália, recebi o belíssimo volume “Qui sostó Garibaldi”,
com um gentil cartão da senhora Dna. Erika, a quem muito agradeço.

503Segundo a documentação: a família Garibaldi, além de visitarem a capital gaúcha, também visitaram
Florianópolis e Laguna. (Documentos da Subcomissão, Caixa 01, 1984).

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Recebi também os calendários que, conforme recomendação remeti ao


professor Rau e ao professor Gardelin. (Documentos da Subcomissão,
Caixa 01, 1984).

O calendário que se encontra no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, ao que


tudo indica, é um dos calendários citados na narrativa, já que o título é o mesmo em ambos
documentos. No entanto, ainda falta averiguar melhor conforme o andamento da
pesquisa. Por outro lado o calendário analisado pode servir de referencial comparativo,
já que o mesmo foi produzido dentro da conjuntura mundial, e mesmo o contexto da
década de 1980, e para a finalidade de comemorar o centenário da morte de Giuseppe
Garibaldi na Itália. Ao que tudo indica, a máxima criada entorno da representação de
Garibaldi, “herói dos dois mundos”, não era somente um produto das práticas das elites
rio-grandenses. As elites italianas pelos seus esforços de memória atestam de semelhante
maneira, a necessidade dos poderes vigentes – como em qualquer sociedade – de
produzirem seus “heróis”, e de como a memória turvada, torna-se o fermento, onde as
práticas fazem acender as representações do passado para o presente. Abaixo segue uma
das imagens do calendário que resistiram ao tempo e a conservação dos homens.
A imagem mostra o herói com destaque entre um militar e um civil, sendo
celebrado pelo homem caído. O soldado recuando parece ser encorajado por Garibaldi a
retornar a formação dando a ideia que o personagem foi preponderante na unificação da
Itália. No fundo aparecem dois soldados que podem ser interpretados de muitas maneiras.
Como um monta uma cavalo branco e o outro um supostamente escuro, parecem aguardar
um desfecho da situação, mas com semblantes de prontidão, porém, não de ataque, o que
pode sugerir que a intenção da representação fosse simbolizar a eminente união da Itália,
ou mesmo, poderia estar simbolizando a imobilidade e indiferença dos poderosos, quase
como que não acreditando, nos mesmos ideais que a representação de Garibaldi sugere,
assim, de maneira suposta, configurando a relevância do mesmo na unificação da Itália.

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Figura 1 - Calendário Comemorativo do Centenário de morte de


Giuseppe Garibaldi. Vultos. P – 21C.

Fonte: AHRGS.

A imagem lembra o estilo clássico, mostrando a riqueza de detalhes e parece visar


à busca pela representação dentro da perfeição humanista.504 Se tratando de um
calendário italiano e comemorativo do centenário de morte do “herói”, possivelmente,
pelo que se demonstra, a ideia de perfeição e harmonia poderia estar dentro dos planos
do governo. O que o calendário tenciona demonstrar, e que em outros trabalhos com os
mesmos fins se observa, é que, quando se “constrói” ou “reconstrói” a imagem de um
“herói”, essa tem que representar e fazer sentir em seus receptores uma atmosfera de
saga, de epopeia e de heroicidade. Todos esses pressupostos tornam-se mais
significativos quando se tem as condições de associar esse material, com a descendência
desse suposto “herói” – como foi o caso da presença dos descendentes de Garibaldi no Rio
Grande do Sul para as comemorações dos cento e cinquenta anos da Revolução
Farroupilha. Duas relações que tiveram sentido tanto para italianos, como também para
sul-rio-grandenses.
Analisando os aspectos dos trabalhos com as imagens produzidas na década de
1980 para as referidas comemorações farroupilhas, e fazendo uma relação com a imagem

504 A análise para um futuro trabalho, mais aprofundado, requer mais estudos sobre a arte clássica e se
tratando de um artigo menor, aqui não vamos nos aprofundar em tais conceitos deixando para isso para um
segundo plano.

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representada de Giuseppe Garibaldi na Itália, analisei as obras de Guido Mondin. Guido


Mondin deu sua contribuição para o trabalho de memória organizado pelo governo do
Estado do Rio Grande do Sul pintando inúmeras obras que retratavam passagens de fatos
considerados importantes na Revolução Farroupilha. Algumas de suas obras foram
utilizadas pelo governo do Estado na elaboração de um calendário comemorativo para a
Revolução Farroupilha durante o ano de 1985. Além das imagens, no calendário, Guido
Mondin deixou registradas narrativas das passagens que reproduziu.
Entre as obras que interessam aqui, selecionei as três que representaram Giuseppe
Garibaldi, onde em uma ele é representado ao lado de Anita – que também como se sabe
foi reverenciada nos dois mundos. Pode se considerar que a imagem e a memória de
Garibaldi foram valorizadas substancialmente, em detrimento mesmo, de outros
personagens considerados pelas elites como relevantes na Farroupilha. Por exemplo: em
um calendário com doze meses, a onde cada mês trouxe a representação de um fato, nos
meses de junho, julho e agosto, trouxeram a representação de Garibaldi, e justamente os
meses que antecediam o mês da culminância das comemorações farroupilhas. Até que
ponto isso poderia ser relevante? Se tratando de um calendário, em muitos aspectos que
envolvem o trabalho e transmissão da memória, mesmo que silenciosamente pendurado
na parede de uma residência, dos comércios, escolas e repartições públicas. Ali, no
cotidiano, exposto a disposição de inúmeros receptores, que poderiam supostamente,
entre aqueles três meses que antecediam as comemorações farroupilhas, estarem
“vulneráveis” ou não à representação criada por intermédio do Estado, do que se
pretendeu selecionar como memória para os sul-rio-grandenses.
Partindo para a análise dos documentos em questão, vou optar pela análise na
sequência em que foram organizadas no calendário as imagens e narrativas. A primeira
imagem, corresponde a imagem exposta para o mês de junho. A imagem em um primeiro
momento representa um encontro entre Giuseppe Garibaldi e o general Bento Gonçalves
da Silva, contando com a presença do general Davi Canabarro.

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Figura 2 - Calendário comemorativo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, junho


de1985

Fonte: AHRGS.

Por esse viés compreende-se que a imagem do quadro por ela mesma traz a sua
mensagem, porém na reprodução do calendário, a mesma foi agregada à narrativa textual
e a símbolos estaduais, racionalizando em um mesmo lugar um conteúdo mais elaborado,
produto do trabalho de memória.
Analisando a imagem, podemos fazer algumas leituras, por exemplo, o artista
tentou representar o momento em que Garibaldi cumpria importante papel na formação
da marinha farroupilha com a construção de suas embarcações. Para que isso ficasse
evidente, ao fundo o artista retratou uma janela por onde pode se observar a construção
de uma embarcação. Essa representação pode levantar sugestões mais aprofundadas
sobre a leitura da imagem de forma mais incisiva. Pode-se intuir que é o período que
antecede a tomada de Laguna. A presença de Bento Gonçalves e Davi Canabarro sugere
que os mesmos vieram até Garibaldi para conversar sobre os planos e ver os andamentos
dos trabalhos. Bento Gonçalves escuta atento, dando ao receptor o entendimento que, o
mesmo escuta Garibaldi com a atenção de quem depende dos trabalhos do “italiano”. Davi
Canabarro, como expectador, escuta os planos de Garibaldi, supostamente, com certo
olhar de quem cobra e desconfia das ideias do marinheiro. Guido Mondin nos legou no
trabalho do calendário a sua narrativa textual que acompanhava sua representação
imagética. Dizia o seguinte:

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Garibaldi participava de tudo, mas seus conhecimentos náuticos levaram-


no a dedicar-se aos problemas navais, em que os farrapos eram
paupérrimos em recursos, mormente em face da força da Marinha
Imperial. O italiano improvisava estaleiros, construía precárias
embarcações e essas eram as unidades do que se chamava a esquadra
republicana. (...). No arsenal Camaquã, armam-se o “Seival” e o
“Farroupilha”, sob a direção de Garibaldi, confinados na Lagoa dos Patos,
não havia como sair, se as forças imperiais, concentradas em Rio Grande,
bloqueavam qualquer passagem para o mar.
A capacidade estratégica do guerreiro peninsular, porém ia longe. Bento
Gonçalves e Canabarro, que iria comandar as forças de terra em Santa
Catarina, foram inteirar-se dos planos de Garibaldi. Preparava-se a
façanha que até hoje empolga e pasma! (MONDIN, Calendário
comemorativo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, AHRGS,
1985).

Portanto, o artista confirma o que pretendia demonstrar na sua pintura, mas


também contribui para o entendimento de seus receptores que talvez, por se tratar de um
calendário que remeteria uma mensagem para um grande e indistinto público
necessitaria mesmo de uma narrativa textual para dar sentido mais claro aos seus
receptores. Mas sobre tudo, para essa análise, Garibaldi foi representado como o
“italiano”, que trouxe contribuição crucial para os planos dos farroupilhas. Assim a
construção do “herói” sob o viés dos dois mundos criou vulto também entre os sul-rio-
grandenses, numa memória que poderia envolver um grupo maior, incluindo naquele
trabalho as zonas de imigração italiana. Também é possível verificar, a sequencialidade
que o artista quis dar a sua narrativa epopeica, que se complementaria com sua pintura
exposta no calendário no mês de julho que justamente representa a travessia do
Farroupilha e do Seival por terra de Camaquã à Tramandaí.

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Figura 3 - Calendário comemorativo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, AHRGS,


Julho de 1985.

Fonte: AHRGS.

Talvez nem outra imagem seja mais sintomática que essa para a construção da
memória de Garibaldi quando as elites, italianas e rio-grandenses, se referem ao mesmo
como o “herói” dos dois mundos. A imagem quase que sintetiza essa ideia se levarmos em
conta os aspectos culturais representados pelo artista que, ao que parece, soube reunir,
se levando em conta uma análise subjacente, elementos que aqui podemos
hipoteticamente lançar um olhar. São os bois, por exemplo, que não só remetem ao
aspecto rural do Rio Grande do Sul, como também, os mesmos podem ser vistos como um
elemento da herança cultural trazida pelo europeu. A presença da cavalaria ao fundo,
pode, sobre o mesmo viés retratar aspectos também que são condizentes, quando o
assunto é representar o “herói dos dois mundos”. A embarcação consuma a representação
da obra e contribuição de Garibaldi para a Revolução Farroupilha de forma incisiva, já que
se pode levar em conta a importância da mesma para levar a Revolução Farroupilha para
fora das fronteiras da província. O próprio Guido Mondin, ao que tudo indica, procurou
dar vida para sua pintura quando narra a travessia dos lanchões.
Guido Mondin recorreu a uma prática já empregada por intelectuais a serviço do
Estado em outros momentos passados em que se comemorou a Revolução Farroupilha.
Ele procurou dar um aspecto romântico aos feitos dos farroupilhas. Porém, na segunda
passagem de sua narrativa textual, é notável a maneira como o artista narra a

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representação da sua obra. Vejamos os elementos que o artista aproveitou para dar vida
a sua pintura.

O “Seival” e o “Farroupilha”, por entre nuvens de pó, ringiam o madeirame


a cada acidente do terreno, misturando ruídos com longevo bramido do
mar e os gritos de incentivo à boiada, ecoando eternamente pelo Rio
Grande e pela América como um dos feitos mais audazes dos homens
empenhados em construir sua liberdade. (MONDIN, Calendário
comemorativo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, AHRGS,
1985).

Mondin pode trazer ao receptor – dependendo de sua sensibilidade – o cheiro do


pó, o rangido da carreta, para que tem esse som na memória, ou para quem o vai recriar.
Recriou também os gritos com os bois, que possivelmente, para a década de 1980, foi som
conhecido de muitos que naquele momento, poderiam pressenti-lo diante das narrativas
textuais e imagéticas do artista. Tais elementos para o autor tiveram força de eco eterno
pelo Rio-Grande e pela a América, o que parece buscar a ideia de continuidade num
passado de liberdade onde os homens do passado deixavam lances “heroicos” para seus
herdeiros no presente, tendo a Revolução Farroupilha como vanguarda. Por fim o artista
busca a ligação de Garibaldi com Anita, vínculo histórico para os sujeitos que buscam
heroicizar aquele passado.

Quando finalmente, alcançaram o mar, adentrando-o, o “Farroupilha”


naufragou, enquanto o “Seival” aportava em Laguna, ali atuando na
instituição da efêmera República Juliana.
Maravilhoso é lembrar que o coração do comandante dessa operação de
saga, rijo no combate e decidido nas iniciativas, ignorava que não tardaria
a enternecer-se no encontro da lagunense que seria sua companheira na
audácia e no amor, compondo harmonias de sublime romantismo na
Guerra dos Farrapos. (MONDIN, Calendário comemorativo do
Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, AHRGS, 1985).

A narrativa pode sugerir a importância de Garibaldi na criação da República


Juliana, mas o artista, guia sua narrativa para o romance entre Anita e Garibaldi, como
momento de romantismo na Guerra dos Farrapos. Mas também, o artista acaba, mesmo
que subentendido, por deixar lastros para a inserção da memória, já que sua narrativa
relembra esse vínculo que acabou por atravessar o mar em direção ao velho mundo.
Assim, Mondin, foi reforçando a memória dos “outros”, em direção a um passado que
tencionavam seus elaboradores fosse comum aos sul-rio-grandenses, mas também aos

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lagunenses, aos italianos e bem provável atingisse as colônias italianas radicadas no Rio-
Grande do Sul.
No último quadro que representa Garibaldi, para o calendário, é possível concluir-
se a sequencialidade que o artista pretendeu dar na representação do calendário. A
imagem abaixo mostra Anita e Garibaldi com seu filho Menotti, que seria segundo o pintor
o “primeiro filho do casal”.

Figura 4 - Calendário comemorativo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, Agosto


de1985.

Fonte: AHRGS.

Esse fato mostra mais enfaticamente a representação criada sobre Anita e


Garibaldi, como heroína e o herói dos dois mundos durante o sesquicentenário da
Revolução Farroupilha. Mas também reafirma essa tendência quando pela representação
do artista esse complementa sua pintura com o texto parecendo querer dizer mais do que
os olhos podem ver, ou seja, ele, no texto fez questão de explicar a continuidade da
descendência de Anita e Garibaldi representada no seu filho Menotti, com uma espécie de
consumação daquela memória dos “heróis dos dois mundos”.
A representação criada pelo artista teria sido, possivelmente, para aqueles que
organizaram o trabalho de memória consumado nas comemorações de 1985, importante
elemento imagético e narrativo, pois no sentido que é dado à memória pelos agentes
responsáveis pelo evento, nota-se que estes buscaram dentro da ideia proposta abarcar
uma significativa soma de indivíduos dentro de uma coletividade que parecia aglutinar
Sul-rio-grandenses, catarinenses, e mesmo italianos.

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Considerações finais
Assim, a Revolução Farroupilha, por meio da análise do calendário produzido na
Itália, e o produzido para o centenário da revolução, ambos serviram de base para as
práticas dos sujeitos envolvidos naqueles eventos forjarem suas memórias a partir das
representações turvadas pelas vicissitudes daquela conjuntura dos anos 1980. De certa
forma, tais representações construíram um lastro que possibilitou mais uma vez a
emergência de uma memória tão emblemática para o povo Sul-rio-grandense.
Também foi possível discutir a importância do uso da arte como forma de elaborar
uma memória visual daquilo que os agentes, para aquele momento, tinham como ideias
de uma elite. No caso a gestão do governo do Estado do Rio Grande do Sul, que planejara
de forma a retomar uma memória que quando ativada tem a pretensão de unir uma
coletividade.
Portanto, na análise de imagens, pode-se abrir um importante espaço para o
trabalho do historiador. Este pode se apropriar da memória por meio das imagens, ao
mesmo tempo em que se utilizando da documentação escrita pode por meio do
cruzamento de fontes propor, outras possibilidades investigativas.

Referências Bibliográficas:

Bisneto de Garibaldi chega dia 18. Jornal do Comércio, 13 de setembro de 1985, p. 17.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

Calendário Comemorativo do Centenário de morte de Giuseppe Garibaldi. Vultos. P – 21C.


Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3. ed. – Rio de Janeiro; Forense, 2011.

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre:
Ed. Da Universidade/ UFRGS, 2002.

Documentos da Subcomissão: Fundo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha,


Caixa 01. 1984. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed., Campinas, São Paulo: 2003.

MENEZES, Ulpiano T. B. Educação e museus: sedução, riscos e ilusões. Porto Alegre:


Faculdade Porto-alegrense de Educação, Ciências & Letras, jan/jun 2000. p.91-101;
nº27.Memória.

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MONDIN, Calendário comemorativo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha.


Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – AHRGS, junho de1985.

MONDIN, Calendário comemorativo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha.


Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – AHRGS, Julho de 1985.

MONDIN, Calendário comemorativo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha.


Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – AHRGS, Agosto de1985.

POLLAK, Michel. Identidade e Memória. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. Vol. 5, nº


10,1992. Disponível em: <reviravoltadesing.com/.../wp/.../memória_e_identidade_social.
Pdf> Acesso: 07/03/2012.

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UMBANDA: ESPAÇO FENOMENOLÓGICO DE INVESTIGAÇÃO NA


GEOGRAFIA DA RELIGIÃO

Mateus Machado Santos*

Este artigo é um aporte teórico como processo em desenvolvimento, resultado


direto do meu envolvimento com o estudo fenomenológico da religião no campo da
geografia, mais precisamente da Umbanda, de minha experiência enquanto religioso,
assim como arte-educador e pesquisador em teatro. Dessa forma, não me limito a me
apresentar no assunto de modo estritamente acadêmico, mas desafio-me a aplicá-lo na
tarefa de construir conhecimento no que tange o entendimento do espaço terreiro de
Umbanda bem como os fenômenos que imergem no mesmo.
Partindo pela perspectiva de que não se constrói um artigo sem a apresentação do
tema a ser abordado, enfatizarei nesta introdução de algumas explanações que remetem
ao universo de minha pesquisa. O diálogo, bem como a apresentação de algumas ideias
norteadoras que serão discutidas nesta escrita, são fundamentais para a compreensão e
contextualização do assunto em questão.
Com o tema sobre o espaço sagrado terreiro de Umbanda e a performance dos
corpos. Busca-se de forma filosófica e analítica o entendimento de alguns conceitos
imprescindíveis na epistemologia da ciência geográfica. Antes de adentrarmos nos
conceitos cujos autores nos respaldam com suas teorias sobre método e fenomenologia,
convém destacarmos o que vem a ser a Umbanda, a categoria de espaço sagrado, o corpo,
e as perspectivas de uma geografia cultural.
Segundo Freitas (1989), o nascimento da Religião Umbanda ocorreu há por muito
tempo na perspectiva da tradição oral, guarnecida pelos orientadores espirituais de cada
terreiro. Para o autor, esse conhecimento era transmitido por meio de rituais de iniciação,
cursos paralelos e pela própria intuição da pessoa que buscava o alicerce espiritual na
religião.
Existem algumas divergências de conceitos no que se refere a etimologia da
palavra Umbanda. Por ser uma religião genuinamente brasileira, trago aqui uma breve

* Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Santa Maria; mestrando em Geografia pela mesma

instituição.

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explanação de sua origem assim como o seu procedimento sagrado que a constitui
enquanto religião.
A palavra Umbanda, segundo Batstone (1997) define-se como originalmente da
língua Kimbundo (uma das línguas falada em Angola) sendo usada para descrever objetos
religiosos e o líder religioso, também chamado de Kimbanda. No Brasil a palavra Umbanda
foi utilizada, a partir da década de 1930, para designar um novo sistema religioso de
grande apelo para a classe média, que sintetizou elementos nativos brasileiros, bem como
elementos africanos e europeus. Da cultura indígena se apropriou do herbalismo e da
imagem heroica do Caboclo; dos africanos se apropriou de elementos rituais do
Candomblé; da Europa absorveu o catolicismo popular e o espiritismo de Allan Kardec.
Bandeira (1973) nos aporta para o entendimento do termo Umbanda e Kimbanda
ao qual mostrava-nos a sua derivação gramatical e significado, como é encontrado em
qualquer dicionário Quimbundo, assim, nada há de mais claro e positivo. Isso vai de
encontro aos inúmeros livros umbandistas que afirmam que o termo foi utilizado pela
primeira vez no Brasil, quando do evento conhecido como a segunda manifestação do
Caboclo das Sete Encruzilhadas. Sabe-se que quando do início da Umbanda havia uma luta
para dar um nome adequando àquele movimento.
Primeiramente se pensava em usar o termo embanda (uma outra forma clara de
Imbanda, plural de Kimbanda), porém não soava bem. Houve também, a proposta de se
utilizar Alabanda, pois segundo alguns autores um dos espíritos incorporados por Zélio
de Moraes era um malaio muçulmano (conhecido como Orixá Malet), portanto Alabanda
seria traduzido como da “banda de Alá”. Entretanto, a melhor opção encontrada foi o uso
do termo já grafado (desde o séc. XVII) e conhecido entre os descendentes angolanos, ou
seja, o termo Umbanda.
Etimologicamente o substantivo Kimbanda (que significa, em Angola, curandeiro,
médico ocultista), sendo que ao se substituir o prefixo KI por U, forma-se um nome
abstrato, o qual designa arte ou ofício. A Umbanda, então, é a arte de curar, o ofício de
ocultista.
Instituída no dia 15 de novembro de 1908, a Umbanda nasce pela manifestação
espiritual dentro de uma casa espírita na cidade de Niterói – RJ. A quem se deve tal fato, é
Zélio Fernandino de Morais (1891-1975) que a partir da manifestação do Caboclo das Sete

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Encruzilhadas, estabelece o nascimento de uma nova religião, onde não haveria distinções
de raças, credos e status social para a sua construção.
O etnólogo, historiador e folclorista Oscar Ribas (1909 – 2004), define a Umbanda
como ciência de Quimbanda, referindo-se sobre a origem quanto ao termo Kubanda.
Bandeira (1973) supõe que se trata do verbo “subir”, pois o espírito “segundo a concepção
bantu, vem de baixo (da terra) para cima, e não de cima para baixo, como os espíritas
acreditam”. Concomitante, a citação de Rendinha (2009) auxilia no entendimento da
concepção de Umbanda

[...] A umbanda, na sua concepção transcendente e composição complexa,


participa do fenômeno da possessão, dos tratamentos e psicoterapias
religiosas da 'mahamba' de Angola e do 'pepo' de Moçambique,
observando-se, nas sessões curativas da umbanda, fenômenos de
convulsões e transes de feição histérica e epiléptiforme idênticas às que
acompanham a possessão das mágico-terapêuticas animistas, dos
costumes tradicionais dos bantos angolanos. (RENDINHA, 2009, p. 363).

De certa forma, podemos considero que é aceitável a expressão afro-brasileira a


religião Umbanda, visto à sua origem e influências descritas anteriormente. Religião aqui,
me reporto ao entendimento citado por Willaime (2012), cuja análise se dá sob ponto de
vista sociológico. Nesta obra, o fenômeno religioso é discutido por Durkheim e Weber, ao
qual, nos teoriza pela investigação de uma sociedade moderna cujas mudanças profundas
afetam o religioso. Cito o seguinte fragmento que enaltece o pensamento do autor

Poder analisar os fenômenos religiosos como fatos sociais pressupunha


uma secularização do saber sobre a sociedade: a emergência de uma
análise científica das religiões é inseparável de uma evolução social
global, marcada pela perda da função totalizante da religião. O advento
das “ciências religiosas” foi, então, associado a um processo de
secularização que permitiu, não sem conflito, a institucionalização dos
espaços de elaboração de saberes independentes sobre a religião.
(WILLAINE, 2012, p. 15).

Partindo do pressuposto de que o fenômeno religioso seja um caminho


investigativo e ainda pouco explorado pelo campo das ciências humanas, mais
precisamente pelas ciências geográficas, talvez seja aqui uma oportunidade de
discutirmos o tema com cientificismo. No entanto, não podemos perder a essência
sacralizada por algo de ordem subjetiva. Penso que a essência de se refletir sobre a

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Umbanda, corpo e fenômeno não deva se dispersar da percepção e sensibilidade do


pesquisador. Neste caso, o olhar do geógrafo, está para além de uma análise quantitativa
e física, pois estamos em meio a um espaço imbuído de simbolismos, ritos, mitos, crenças
e fenômeno cultural.
Em Bezzi (2005), a geografia da religião se dá a partir da década de 1960, na Escola
de Berkeley cuja preocupação principal era pela experiência religiosa de indivíduos e
grupos sociais. Segundo a autora, aqui no Brasil teve destaque a influência do catolicismo,
protestantismo e os cultos afro-brasileiros. Zeny Rosendahl (2002) é a autora pioneira
nas discussões sobre esse tema com a obra Religião – Uma abordagem geográfica.
O terreiro de Umbanda é compreendido neste artigo na perspectiva geográfica de
espaço-sagrado. Podemos definir o conceito desta categoria a partir da citação da mesma
autora mencionada anteriormente

É um campo de forças e de valores que eleva o homem religioso acima de


si mesmo, que o transporta para um meio distinto daquele no qual
transcorre sua existência. Relaciona-se com a divindade. O ato da
manifestação do sagrado é indicado pelo termo hierofania, que
etimologicamente significa algo de sagrado que se revela. Assim, o ser
humano ao aceitar a hierofania experimenta um sentimento religioso em
relação ao objeto sagrado, isto é, adoração de algo sagrado que ele contém
e que o distingue dos demais. Como exemplo tem-se a adoração da cruz.
(BEZZI, 2005, apud ROSENDAHL, 1996, p. 95)

Nesse viés, partimos do pressuposto de que espaço não é apenas compreendido


como elemento socioeconômico, como nos aponta Santos (2004), mas sim, podemos
compreendê-lo e discuti-lo na esfera simbólica, uma vez que estamos interligando
Geografia e Religião.

O método da fenomenologia na religião


Por se tratar de um assunto ainda pouco explorado nas ciências geográficas, a
fenomenologia é um campo instigador e que necessita de uma ampla compreensão teórica
e analítica. Trata-se de uma ciência de rigor, uma ciência eidética pura, uma ciência das
essências. Segundo Moreira (2002), o foco da fenomenologia está no que é dado pela
intuição apenas, sem o apoio de qualquer outro tipo de conhecimento.

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Vale lembrar que a palavra fenomenologia, segundo Cegalla (2008), origina-se do


grego phainesthai, entendendo-se aquilo que se mostra, que aparece a nós pelos sentidos,
e o sufixo logia, também advindo do grego logos, significa a capacidade de refletir, um
discurso esclarecedor. Portanto, pensando por esse viés, considero que esse método seja
um instrumento filosófico de caráter humanista, categorizada nas pesquisas qualitativas.
O termo fenomenologia surge pela primeira vez durante o século XVIII sob
orientação da escola de Christian Wolff (1679–1754) que foi um filósofo alemão. O mesmo
surgiu ligado aos desenvolvimentos análogos populares (SILVA; LOPES; DINIZ, 2006). O
filósofo Edmund Husserl (1859-1938), que também trabalhava como matemático,
cientista, pesquisador e professor das faculdades de Göttingen e Freiburg im Breisgau, na
Alemanha, foi quem criou o conceito de fenomenologia.
Husserl descreveu o objetivo da Fenomenologia como pertencente a toda ciência e
toda forma de conhecimento. No final da sua vida, Husserl começou a acrescentar a esta a
tarefa fundamental da filosofia Fenomenológica com respeito a todas as formas de vida
humana. (KOCKELMANS, 1994, p.11).
Segundo Moreira (2002, p. 83), Husserl segue o princípio dos princípios cujo
entendimento se deve originalmente pela intuição e esta deve ser aceito como se
apresenta. Para ele, todo e qualquer fenômeno se manifesta à consciência, dando validade
ao fenômeno sob investigação. A este processo, colocamos de forma evidente as essências,
que nada mais são, do que os objetos ideais que nos permitem distinguir e classificar os
fatos, de acordo com as nossas subjetividades e particularidades.
Partindo dessa premissa sobre a investigação das essências, busco neste artigo,
focar a matriz teórica-metodológica com autores que dialogam com o método. Essas
reflexões são fundamentais para traçar estudos no espaço sagrado, no caso, na
perspectiva do espaço terreiro de umbanda. Ressalto que por hora o método não está
sendo operado, visto que neste artigo, o objetivo é esclarecê-lo e utilizá-lo como plano de
ação para a construí–lo conforme o processo dado à pesquisa.
Segundo Silva (2014), fazer a análise e compreendermos um fenômeno religioso
em nossa cultura ou em outra é realizar um exercício para o qual nem sempre estamos
preparados. Nesse aspecto, ressalto a importância da sensibilidade e percepção do
pesquisador. É nesse momento que não está apenas o olhar do geógrafo, mas sim, todos

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seus sentidos aflorados para uma construção ou (des) construção subjetiva de sua
consciência.
Aqui me reporto aos estudos de Claval (2011), ao qual ele nos situa por uma
fenomenologia instigada aos geógrafos, pois a mesma revela que os lugares não são
anônimos num espaço neutro, e que a Terra não é uma superfície geométrica, pois para
ele, a vida está por toda parte presente e os homens moldaram à sua imagem.
Complementa ainda já nos anos 50 destacando que

A geografia não é no seu princípio um conhecimento; a realidade


geográfica não é “objeto”; o espaço geográfico não é um espaço branco a
ser preenchido, posteriormente, com cores. A ciência geográfica
pressupõe que o mundo seja compreendido geograficamente, que o
homem sinta-se ligado à Terra como ser chamado a realizar-se na sua
concepção terrestre. (CLAVAL apud DARDEL, 1990, p.46).

Parafraseando este viés do autor, busco aqui minhas reflexões dessa mesma
coerência instigada pela fenomenologia, mas focada ao espaço sagrado, mais
especificamente o terreiro de Umbanda. Em Barros (2008), os terreiros afro-brasileiros
são considerados como espaços sociais, míticos, simbólicos, em que a natureza e seus fiéis
se unem para viver uma realidade diferente daquela que o cotidiano ou a sociedade lhes
apresenta como o real, na qual as pessoas que o constituem acreditam.
São vistos como lócus da força vital que pode ser conservada, manuseada e
transmitida. Suas instalações estão impregnadas do simbolismo religioso e são tidas como
extensões da essência vital de suas “entidades” patronas vinculada ao modo de vida
urbano, na construção de suas organizações e discursos subalternos e no confronto
histórico de suas crenças.
Nestes espaços, considerados sagrados por natureza, permeia uma subjetividade e
transcendência de comportamentos. Aqui me reporto ao entendimento de Merleau-Ponty
(2011) cujo termo nos aponta para uma filosofia transcendental

É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para


compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma
filosofia para a qual o mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão, como
uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar
este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estudo
filosófico. É a ambição de uma filosofia que seja uma “ciência exata”, mas

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é também um relato do espaço, do tempo, do mundo “vividos”.


(MERLEAU-PONTY, 2011, p.1).

Compreender a fenomenologia num espaço sagrado requer um cuidado para além


da visão científica. É possibilitarmos “viver” a essência do espaço e compreender de forma
empírica o que remete todos os elementos que o compõe. Neste viés, é que aponto a
importância por uma geografia cultural cujo olhar humanista está mais presente. Foi
Claval (1968) um dos primeiros que sugeriu, de maneira sistemática, a introdução dessa
categoria no estudo geográfico e cultural.
Dialogar com a fenomenologia e o espaço sagrado é, de certa forma, adentrarmos
na geografia cultural, pois estamos construindo saberes de ordem perceptiva e de gênese
comportamental. Trata-se do campo de estudos próprio que se refere à existência
humana na Terra, a partir de um objeto fenomenologicamente determinado: o "espaço
geográfico", que tem como elemento essencial a "geograficidade", definida como uma
"geografia vivida em ato" a partir da exploração do mundo e das ligações de cada homem
com sua terra natal. (DARDEL, 1990). Logo, fica evidente, que é preocupação da geografia
humana a utilização da fenomenologia. Mas afinal, o que é o método fenomenológico?

O que é o método fenomenológico?


Convém fragmentarmos em conceitos o significado de algumas palavras para
melhor compreensão. A palavra método, segundo Abbagnanno (1998) é definida como
“doutrina” e “procedimento de investigação organizado”. Na fenomenologia, segundo
Merleau-Ponty (1999), o método é definido como a tentativa de uma descrição direta de
nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese. O método
fenomenológico consiste então, num método filosófico que se propõe a uma descrição da
experiência vivida da consciência, cujas manifestações são expurgadas de suas
características reais ou empíricas e consideradas no plano da generalidade essencial.
(HUSSERL, 1859-1938). Já para Tuan (1983), mesmo direcionando sua análise geográfica
para a categoria de lugar, sua concepção de método fenomenológico é também centrada
no poder dos símbolos e das emoções humanas.
O instrumento de trabalho que norteia a operação de tal método é a percepção e a
sensibilidade do pesquisador, enaltecendo o que está sendo mostrado diante de seus
sentidos vitais e tendo como produto, a descrição dos fenômenos ocorridos durante o

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período de observação. Alerto que esse período é fundamental tanto para o objeto
pesquisado, como para o sujeito pesquisador, pois a cumplicidade e a seriedade de tais
papéis é o que determina o êxito da pesquisa.
Segundo Spiegelberg (1971, apud Moreira, 2002, p. 97), os passos do método
fenomenológico são: a investigação de fenômenos particulares; a investigação de
essências gerais; a apreensão de relações fundamentais entre as essências; a observação
dos modos de dar-se; a observação da constituição dos fenômenos na consciência; a
suspensão da crença na existência dos fenômenos; e a interpretação do sentido dos
fenômenos. Partindo dessa classificação colocada pelo autor, transponho à realidade de
um espaço sagrado que é o terreiro de Umbanda.
Um espaço rodeado de elementos sagrados, já mencionado anteriormente, que por
sua vez, carrega na sua pluralidade cultural, uma forma sinestésica de cumprir sua
ritualística. Trago o conceito de sinestesia como fenômeno neurológico que consiste na
produção de duas sensações de natureza diferente por um único estímulo. Considero que
seja um termo que caracteriza a experiência sensorial de certos indivíduos nos quais as
sensações correspondentes a um certo sentido são associadas a outro sentido. Segundo
Lopes (2015), sinestesia é uma palavra que vem do grego synaísthesis, onde syn significa
"união" e esthesia significa "sensação", assim, uma possível tradução literal seria
"sensação simultânea".
Em um terreiro de Umbanda, a sinestesia pode ser caracterizada como uma
condição neurológica implicada no cérebro, no caso, com os sujeitos envolvidos.
Exemplificando por esta análise, o som de atabaque, que dentro deste espaço, serve como
instrumento musical, cuja função é invocar rezas. Conforme sua caracterização e nível
energético, o som produzido pode provocar sensações corporais de força, acelerando os
batimentos cardíacos e liberando adrenalina, consequentemente, entrando no que vamos
denominar de incorporação espiritual. Existe uma espécie de cruzamento de sensações
em um só estímulo, podendo esse mesmo som, produzir imagens e formas diversificadas
no corpo.

Plano de ação: um método de essência

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Nesse momento, pondero neste subcapítulo, o plano de ação para a operar o


método escolhido. Trata-se de um importante exercício de planejamento a partir das
pistas metodológicas que a fenomenologia traz à pesquisa em questão. Tais pistas serão
norteadas pelo campo e consequentemente trarão os resultados apontados a partir da
escolha do problema.
Entende-se como problema o estímulo inevitável para o pesquisador. Segundo
Quivy e Campenhoudt (1998) o problema oferece hipóteses teóricas que devem ser
confrontadas com dados de observação ou de experimentação. Seguindo a linha de
raciocínio do mesmo autor, tanto os fenômenos sociais como os naturais vão subsidiar a
construção de conhecimento a partir do processo metodológico.
Num primeiro instante, será definido o problema da pesquisa para posteriormente
buscar estratégias e aplicar o método. Elencarei algumas perguntas e as aplicarei aos
sujeitos selecionados afim de que fundamente o método. Esses sujeitos fazem parte de um
mesmo espaço de terreiro, ao qual frequento, e durante um período de três meses, farei o
exercício de observação, entrevista e análise do método fenomenológico.
Vale lembrar que a visibilidade do método escolhido, dependerá da percepção e
sensibilidade do pesquisador. Discutir as potencialidades do método fenomenológico e
compreendê-lo sob ponto de vista geográfico e da religião é fundamental para emergir a
filosofia da pesquisa. Nesse momento, ressalto que a busca pela essência dependerá
também da intuição e envolvimento com todos os elementos que compõe o espaço
sagrado, dentre eles: os ritos praticados durante o culto; a crença e a busca pela fé; os
cânticos; a incorporação mediúnica por médiuns do terreiro escolhido; e o corpo
envolvido em meio ás práticas umbandistas.
Segundo Merleau-Ponty (2011), busco o entendimento desse corpo no espaço
sagrado como uma forma de estudá-lo a partir das implicações fenomênicas.

O espaço corporal pode distinguir-se do espaço exterior e envolver suas


partes em lugar de desdobrá-la, porque ele é a obscuridade da sala
necessária à clareza do espetáculo, o fundo de sono ou a reserva de
potência vaga sobre os quais se destacam o gesto e sua meta, a zona de
não-ser diante da qual podem aparecer seres precisos, figuras e pontos.
Em última análise, se meu corpo pode ser uma “forma” e se pode haver
diante dele figuras privilegiadas sobre fundos indiferentes, é enquanto
ele está polarizado por suas tarefas, enquanto existe em direção a elas,
enquanto se encolhe sobre si para atingir sua meta, e o “esquema

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corporal” é finalmente uma maneira de exprimir que meu corpo está no


mundo. (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 146-147).

A partir do envolvimento dos corpos, no caso, os sujeitos envolvidos e selecionados


para observar o fenômeno, em consonância com a minha prática de observação enquanto
participante daquela prática religiosa e com visão exploratória para a pesquisa, o
fenômeno poderá se concretizar e uma vez que a essência é trazida, a transcendência de
todos os elementos desse espaço sagrado poderá vir a tona e a alma da pesquisa nascerá.

Considerações finais
Encerro minhas reflexões sobre o método fenomenológico, porém não esgoto aqui
meu senso crítico pela escolha do mesmo, tampouco sobre o assunto trazido nesta escrita.
Penso que o plano de ação buscado para chegar ao fenômeno, no caso, no espaço terreiro
de umbanda, trará diálogos com autores que fundamentem tal método e o tema da
pesquisa. Confesso que possa ser uma possibilidade de romper paradigmas no tocante ao
entendimento da geografia da religião.
Segundo Paulo Freire (1987) nos seus escritos e pensamentos sempre nos alerta
de que o aprendizado e o ensino estão intrinsicamente interligados. “Ninguém ignora
tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma
coisa. Por isso aprendemos sempre. ” Aliar geografia com a religião é uma possibilidade
de discutir outras visões de analisar geograficamente os elementos que compõe a
natureza e o homem.
O pluralismo desses lugares, espaços de terreiros, é o que mais me chama a atenção
nesta fase exploratória da pesquisa. Espaços sinestésicos que são construídos e
desconstruídos conforme a identidade em que neles habitam. Pluralismo aqui me reporto
pelo entendimento do autor Berger (2005) que aponta a dificuldade de se manter uma
estabilidade cultural em detrimento de uma sociedade cujos processos de modernização,
economia e política são alguns dos elementos que interferem na conservação do mesmo.
Parafraseando o pensamento de Claval (2011), o que é mais relevante nisso tudo,
aqui reportando aos olhos de geógrafo, não é necessariamente a distribuição espacial ou
mesmo os fatos sociais existentes dentro de um terreiro de Umbanda, mas a maneira de
experienciar espaços e de certa forma extrair uma criticidade sob ponto de vista

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humanista. Mesmo com a citada singularidade no campo em questão, existe, ao meu ponto
de vista, uma linha tênue que homogeneíza a todos e a tudo: somos todos seres humanos.

Referências bibliográficas:

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A MEMÓRIA CELEBRADA E AS FRONTEIRAS IDENTITÁRIAS ERGUIDAS:


OS PIONEIROS DA MARCHA PARA O OESTE EM NOVA XAVANTINA/MT

Natália Araújo de Oliveira*

Introdução
Este trabalho tem como objetivo discutir a produção simbólica de um evento e
uma associação criados para perpetuar a memória cultural de um grupo migrante como
memória oficial da cidade. O referido grupo é conhecido como Pioneiro, e está localizado
em Nova Xavantina505, uma pequena cidade no interior do Mato Grosso e integrante da
Amazônia Legal Brasileira.
Este município surgiu a partir de diferentes políticas de colonização criadas pelo
governo a fim de expandir a fronteira agrícola nacional e, anterior a este contexto, já havia
na região indígenas da etnia Xavante, que chegaram em 1820 fugindo do contato com os
brancos. A partir da década de 1940, com a criação do projeto nacionalista Marcha para o
Oeste pelo presidente Vargas, chegaram à região diferentes migrantes (que são alvos
desse estudo) e, a partir do governo militar, em especial na década de 1970, muitos
gaúchos partiram do sul do país também para esta região em colonizações agrícolas
promovidas pelas políticas do governo. Essas três memórias convivem em Nova
Xavantina e enquanto os Xavante se entendem como os verdadeiros pioneiros do
município, os Pioneiros entendem que cumpriram uma missão patriótica de desbravar o
país e por isso merecem esse título e, para os Gaúchos, foram seus valores de progresso e
de trabalho que fizeram Nova Xavantina crescer e desenvolver.

Memória e identidade
A memória é vista neste trabalho como um fenômeno coletivo, tal como
Halbwachs (2006) - um dos primeiros autores a pensá-la como uma construção social e
não apenas uma resposta física do corpo - propôs na década de 1920. Para Halbwachs

*Bacharela em Turismo pela Universidade do Estado de Mato Grosso, Mestra em Ciências Sociais pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, com período sanduíche na University of California San Diego.
505 Nova Xavantina possui, segundo estimativas do IBGE de 2010, 20.639 habitantes (IBGE, 2017) e fica a
635 quilômetros da capital do estado, Cuiabá.

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(2006), discutir memória é pensar sobre um fenômeno eminentemente coletivo, formado


a partir da interação social. É por meio da interação que a memória é formada e nestas as
identidades são formadas.
Pollak (1989) também contribui à discussão quando lembra que a memória
coletiva mantém a coesão interna e defende as fronteiras daquilo que um grupo tem em
comum, seja essa memória oficial ou subterrânea. A oficial é a memória das classes
dominantes e as subterrâneas são as memórias dos excluídos, marginalizados e minorias.
Outra contribuição importante de Pollak (1992) diz respeito aos elementos
constitutivos da memória. Para o autor, a memória é formada pelos acontecimentos
vividos pessoalmente e pelos "vividos por tabela", ou seja, situações vividas pelo grupo ou
pela coletividade à qual a pessoa pertence. Estes são importantes quando se analisa
grupos que participaram de processos históricos de longa data, como é o caso do projeto
nacionalista Marcha para o Oeste.
Como uma atualização da discussão sobre memória coletiva, a presente pesquisa
faz uso do conceito de memória cultural, de Assmann (1995). Esta, de acordo com o autor,
é composta por heranças simbólicas que podem ser materializadas de diferentes formas,
isto é, por meio de ritos, monumentos, celebrações, objetos, textos, escrituras sagradas e
ainda outros suportes mnemônicos que funcionam como gatilhos para acionar
significados associados ao que passou. A memória cultural é “cultivada” pelas gerações e
serve para estabilizar e transmitir a imagem que cada grupo tem de si.
A memória cultural "(...) nos permite construir uma imagem narrativa do passado
e, através desse processo, desenvolver uma imagem e uma identidade de nós mesmos"
(ASSMANN apud DOURADO, 2013). A memória cultural envolve a herança simbólica
institucionalizada, a partir da qual as pessoas recorrem para construir suas identidades e
se afirmarem como integrantes de um grupo.
Pollak (1989; 1992) alia a discussão de memória ao debate sobre identidade ao
afirmar que a identidade e a memória são valores disputados em conflitos sociais e
intergrupais, e também em conflitos que opõem grupos políticos diversos. Para ele, a
construção da identidade constitui-se como um fenômeno que é produzido em referência
aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de credibilidade e que se faz por
meio da negociação direta com o outro. A identidade é vista sob a ótica do contraste, isto

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é, “nós somos diferentes deles”. É uma identidade que surge pela oposição, levando em
conta processos de interação e também a identidade individual.
Ao se discutir sobre identidade e memória coletiva de um grupo de migrantes,
como é caso dos Pioneiros da Marcha para o Oeste, é necessário compreender de qual
concepção se parte para se falar de memória e identidade. Assim, a memória é algo
coletivo, que envolve a transmissão de lembranças entre grupos e a interação desse grupo
com outros. Nesse momento de interação a identidade se revela como algo contrastivo,
no qual um grupo se afirma se mostrando diferente de outro. Porém, a identidade além
da ótica contrastiva deve ser vista como algo maleável, aberto influências que esse contato
com os outros proporciona.

A história dos Pioneiros e a manutenção de sua memória


A história dos Pioneiros de Nova Xavantina está ligada à Marcha para o Oeste,
uma intensa campanha de migração para o interior do país criada em 1938 no governo
Vargas, no qual estava contemplada a criação de colônias agrícolas nos estados do
Amazonas, Pará, Mato Grosso, Paraná e Goiás. O objetivo do governo Vargas na Marcha
para o Oeste era povoar, de forma organizada, os “vazios demográficos” com o excedente
de pobres nacionais, principalmente do Nordeste.
O discurso de Vargas afirmava ser necessário povoar as áreas do Centro-Oeste
brasileiro para que não houvesse invasão de outros países e, ele, presidente, como
qualquer outro brasileiro, não cederia nenhum palmo desta terra. Vale lembrar que
naquele período, próximo a Segunda Guerra Mundial, o barão Shudo, representante
japonês na Liga das Nações Unidas havia proposto - em 1937 - que áreas consideradas
desocupadas pelo mundo deveriam ser exploradas para o bem comum do mundo inteiro.
Sobre o assunto, como bem coloca Cancelli (1984, p. 30), “o sentido da colonização –
ligado à brasilidade – é entendido como o dever de colonizar as áreas a fim de preveni-las
contra o invasor – ou suposto invasor”.
A Marcha para o Oeste teve caráter altamente ideológico, colocando os
integrantes dessa marcha como homens que estariam construindo o país, sendo
comparados aos bandeirantes, vistos como heróis modelos a serem seguidos. Sendo assim
“a coragem dos desbravadores do sertão precisava ser revivida pelos futuros Pioneiros

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do Centro-Oeste, mesmo que esses, em sua maioria, fossem o flagelo da cidade grande e
das agruras do Nordeste” (CANCELLI, 1984, p.1).
Cinco anos após sua criação, a Marcha para o Oeste concretizou-se com a
Expedição Roncador-Xingu, organizada em 1943. A Expedição Roncador-Xingu era a parte
prática da Marcha para o Oeste, sendo ela a responsável por abrir picadas e, assim,
construir as primeiras estradas da região. Segundo os irmãos Villas Bôas (1994), que
participaram desta empreitada, a Expedição Roncador-Xingu tinha a atribuição de entrar
em contato com os índios existentes na região e a Fundação Brasil Central (FBC), criada
em 1943, tinha a função de implantar núcleos populacionais nos pontos ideais marcados
pela Expedição. Deste modo, o primeiro órgão era a vanguarda do segundo.
O lançamento da Expedição foi realizado em São Paulo, com missa solene na
Basílica de São Bento, reatualizando o mito heroico do bandeirante (FRANÇA, 2000). Os
primeiros expedicionários saíram de São Paulo no dia 07 de agosto de 1943 e chegaram
de trem a Uberlândia. Depois foram para Barra do Rio das Garças (hoje Aragarças/GO) e
saíram de lá dia 4 de dezembro de 1943, chegando ao Rio das Mortes, onde se localiza
Nova Xavantina, no dia 28 de fevereiro de 1944.
Dia 24 de maio de 1945 visitaram Nova Xavantina o presidente Getúlio Vargas e
outras autoridades, além de representantes da imprensa da nacional. Os integrantes
fizeram, inicialmente, uma visita por todo o acampamento e nesta visita Vargas, em seu
discurso, fez alusão aos heróis do sertão, afirmando: “Deixo aqui o testemunho do meu
apreço a estes destemidos patriotas desbravadores do sertão, continuadores dos
sertanistas que conquistaram esta região no passado para que os atuais com seus
sucessores continuem aqui uma nova civilização” (OLIVEIRA, 1976, p. 123).
Dentro desse contexto esses homens, entre os quais muitos nordestinos e
goianos, extremamente pobres, migraram. A notícia de trabalho no sertão se espalhou e
diversos homens começaram a se alistar nas bases expedicionárias procurando mudar de
vida no sertão e foram migrando, mesmo que muitas vezes ainda adolescentes. Muitos
mudaram com a família quando ainda crianças e, assim que tinham condições de exercer
alguma atividade profissional, eram agregados às atividades da Fundação Brasil Central.
Sobre os órgãos criados a partir da ideia desenvolvimentista da Marcha para o
Oeste, é importante citar suas cronologias para compreender a importância que os
Pioneiros que trabalharam nesses órgãos dão a essas instituições. A Fundação Brasil

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Central (FBC), que foi criada posteriormente a Expedição Roncador Xingu, existiu de 1943
até 1967 e foi substituída pela Superintendência para o Desenvolvimento do Centro-Oeste
(Sudeco), que durou de 1967 a 1990. A Sudeco, diferentemente da FBC, era um órgão
planejador, normativo e coordenador de ações. Todavia, também atuava como
financiador de atividades cuja execução era função de instituições de outras esferas
administrativas – principalmente (MACIEL, 2002). Quando a FBC foi extinta, em 1967,
uma parte de seu patrimônio assim como de seu quadro permanente de pessoal foi
transferida para o órgão que a substituiu, a Sudeco. O restante de seus funcionários foi
redistribuído, lotando-se em diferentes órgãos da administração federal ou ainda
aposentado compulsoriamente (MACIEL, 2002; LIMA FILHO, 2001).
A cronologia desses órgãos é necessária para se compreender a crise identitária
que surgiu nos Pioneiros a partir destas transformações. Primeiramente é importante
perceber a mudança na direção destes órgãos, isto é, enquanto um órgão era de execução
(FBC), o outro (Sudeco) era de planejamento, ou seja, administrativo e burocrático. Logo,
como afirmou o Pioneiro João506

(...) a FBC, uma vez extinta, seus funcionários dispensados, uns inclusive
aposentados com uma lei especial, por tempo funcional, outros foram
entregues a outras instituições, pouquíssimos foram ainda admitidos na
Sudeco, pouquíssimos. Porque tinha funcionário que não tinha como ser,
como se diz, ir pra outro órgão, ele não tinha preparo (...).

Acerca deste período de extinção da FBC, os expedicionários costumam dizer que


foram recolhidos e foram “construir Xavantina”, ou seja, eles se dedicaram integralmente
à cidade, realizando construções muito mais que físicas, diria, até, que se trataram de
construções simbólicas, pois revelam o sentimento de posse e pertencimento que eles têm
para com o município.
Fazendo uma análise antropológica acerca dos períodos históricos acima citados,
Lima Filho (1998) afirma que, esses homens, denominados inicialmente bandeirantes,
tornaram-se, depois, funcionários da FBC, que lhes deu poder, prestígio e status social.
Posteriormente, foram absorvidos pela Sudeco. Com a extinção da FBC, em 1967, eles
foram aposentados e instaurou-se uma crise de identidade, colocando em relevo a noção

506 Entrevista concedida em 2009.

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de Pioneiro. Com a crise, ocorreu a formação de uma comunidade de Memória, que evoca
o passado da Marcha para o Oeste, em cujo contexto categorias como Sertão, Fronteira,
Índios e Bandeirantes, assim como a noção de Patrimônio, foram articuladas com o intuito
de sustentar as narrativas relacionadas ao processo de reconstrução da identidade dos
Pioneiros. A partir da explicação de Lima Filho (1998) se entende que a noção de
Pioneiro surgiu a partir de uma vinculação com a posição funcional – profissional, visto
que a crise identitária surge após a aposentadoria compulsória dos trabalhadores da
Expedição Roncador Xingu. Todavia, essa crise também é acirrada com a chegada dos
gaúchos a região, que logo que chegaram à região construíram um Centro de Tradições
Gaúchas (CTG) gerando uma disputa pela memória coletiva, que tem seu início a partir da
criação da primeira Festa do Pioneiro da Marcha para o Oeste, ocorrida pela primeira vez
em 1987 e que acontece ainda todos os anos na cidade. Vale lembrar que, além da Festa,
criou-se também uma associação no ano de 1993, a Associação dos Pioneiros da Marcha
Para o Oeste (APMPO).

A Festa do Pioneiro da Marcha para o Oeste


A Festa do Pioneiro foi realizada pela primeira vez em 1987. A ideia de criação de
tal evento foi de um Pioneiro e de um filho de Pioneiro e eles se espelharam no Centro de
Tradições Gaúchas que havia sido criado algum tempo antes em Nova Xavantina pelos
gaúchos que haviam migrado a partir das políticas de colonização empreendidas durante
a ditadura militar e que, chegando ao novo espaço, se preocuparam em fincar suas raízes
culturais. Assim, de acordo com os idealizadores da Festa do Pioneiro, os verdadeiros
Pioneiros da região estavam jogados ao léu, e teriam que fazer algo, tomar conta da cidade.
A Festa foi ainda um ato de resposta, de um grupo de funcionários, à situação de abandono
em que se encontrava o patrimônio da FBC. Havia um “sentimento de saudade” no ar
(LIMA FILHO, 1998).
Um dos idealizadores da Festa contou que:

Nós criamos a primeira festa. Por quê? Porque os gaúchos, quando


chegaram aqui, organizados como sempre foram e tal, criaram o CTG -
Centro de Tradição Gaúcha, fizeram aí aquela coisa tudo bonito. Aí o
pessoal: gente, a turma não sei o quê os gaúchos, vamos fazer uma festa

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também dos Pioneiros, vamos fazer a festa dos Pioneiros (Pioneiro


Hélio507).

A primeira festa foi organizada pela prefeitura e pela Sudeco, o que ocorreu até o
ano de 1989. Contudo, a partir de 1990, as dificuldades financeiras para a realização do
evento começam a surgir e outras entidades passaram a ajudar, como associações de
bairro, comércio etc. No ano de 1993, com a criação da Associação dos Pioneiros, esta
chama pra si a responsabilidade de organizar o evento, todavia ela não tinha condições
financeiras para custeá-lo e, deste modo, a festa continuou a ser financiada pela prefeitura,
Câmara e doações diversas, sendo o evento até os dias de hoje organizado desse modo.
A Festa é gratuita e são enviados convites aos Pioneiros para que participem do
evento com seus familiares. Em 2017, a Festa foi realizada no principal salão de festas da
igreja católica da cidade, que está localizada no centro, área identificada como parte nova
da cidade por ter sido explorada apenas a partir da década de 1970. Festas realizadas no
espaço reconhecido como novo no município costumam ter boicote de alguns Pioneiros,
que afirmam que o evento deve sempre ser realizado do lado antigo da cidade, ou seja, há
uma identificação simbólica dos Pioneiros com o lado antigo do município de maneira que
alguns se recusam a ir ao evento quando ele é realizado do outro lado da cidade.
Um panorama dos 30 anos comemorados em 2017 mostram que a Festa já foi
realizada com ares de evento de gala, como anos 90, acompanhados por Lima Filho
(1998), em que eram realizados bailes, almoços e jogos, e também situações em que a
Festa quase não aconteceu, como em 2009, em que havia sido decidido que esta não seria
realizada, mas às pressas um Pioneiro em especial tomou a frente para que a festividade
ocorresse (OLIVEIRA, 2010).
A dificuldade para organizar o evento naquele ano é a mesma enfrentada até os
dias de hoje, a falta de recursos. A prefeitura é parceira do evento e tinha como praxe, nos
últimos anos, doar dois mil reais. Contudo, em virtude da crise financeira que se abateu
sobre o munícipio, em 2015 foram doado 600 reais, de acordo com a presidente da
Associação naquela época. Acrescido ao montante entregue pela prefeitura, sempre é
solicitada a doação dos insumos necessários para o evento, que é gratuito, no comércio
local.

507 Entrevista concedida em 2015.

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Além dos empresários locais, agricultores da região também auxiliam, doando a


carne consumida. Muitos destes são políticos, que são chamados para integrar a mesa de
autoridades formada na solenidade, o que já descontentou vários Pioneiros. Eles muitas
vezes discursam no evento, usando-a como palanque político, normalmente associando a
sua história ao dos Pioneiros. Eles homenageiam os presentes, falam que é importante
preservar a memória da cidade, bradam sobre a importância de se preservar os lugares
de memória - as primeiras casas e os demais espaços associados aos Pioneiros da Marcha
para Oeste, contudo, o assunto normalmente é esquecido até o próximo ano.
O evento representa a demarcação da memória coletiva de Nova Xavantina e tem
grande significado simbólico aos que são homenageados naquele dia. Como conta um ex-
presidente da Associação “não é uma Festa corriqueira, está se promovendo um evento
histórico. Festa dos Pioneiros da Marcha Para o Oeste é diferente das outras. Ela tem a
finalidade de manter viva a Marcha para o Oeste e o carinho para com esses heróis”. Logo,
na visão dos Pioneiros essa Festa necessita de uma organização especial, pois não é uma
festa qualquer. Ela possui um contexto simbólico de significado que externaliza a
memória cultural de um grupo e delimita fronteiras identitárias simbólicas no município.

Associação dos Pioneiros da Marcha para o Oeste (APMPO)

A APMPO foi criada em 1993 com o nome de Associação dos Pioneiros de Nova
Xavantina, contudo em 1996 trocou de nome para que pudesse compreender não só os
expedicionários da Marcha para o Oeste residentes em Nova Xavantina, mas todos os que
participaram da Expedição, independente de onde estivessem morando no momento.
Ao falar sobre a APMPO, os associados ressaltam a todo o momento sua
importância e seu destaque perante as outras associações existentes, visto que, para eles,
a APMPO não busca benefícios para seus associados, tal como as outras associações, mas
sim resgatar a memória da Marcha para o Oeste.
Quando questionados sobre o motivo de fundarem a Associação, a necessidade
de se perpetuar a história sempre aparece em primeiro plano: “a gente tem aquilo na
cabeça, na mente, que a história não deve se acabar. Então a gente quer que a Associação
dos Pioneiros continue viva e contando a história para que fique guardado na memória do
descendente de Pioneiro para saber contar a história da criação dessa cidade”.

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O pensamento de continuidade da história está presente no Estatuto da


Associação, que afirma ter essa instituição como finalidade primordial “promover o
resgate histórico de Nova Xavantina e de toda a região percorrida pelos Pioneiros da
gloriosa ‘Marcha para o Oeste’”. A partir do discurso do Pioneiro se percebe que, para os
Pioneiros, a história da cidade deve, obrigatoriamente, perpassar o histórico de seu grupo
e sua memória cultural como memória oficial da cidade.
A Associação não possui sede e os documentos ficam nas mãos do presidente. Em
2016 ela celebrou com a prefeitura um Termo de Permissão de Uso de dois lotes por 30
anos, o que gerou controvérsias, pois alguns Pioneiros achavam que a prefeitura deveria
doar a área e não cedê-lá e os argumentos para tanto eram de que a Associação era a
história da cidade.
É importante ressaltar que nem todos Pioneiros da cidade participam da
Associação, há aqueles que vão somente à Festa do Pioneiro e outros que nem isso fazem.
Lima Filho (1998) discorre, em sua tese, acerca dos motivos que levaram a esse
distanciamento de Pioneiros da Associação, isso já no ano de 1998. Conta ele que, naquele
período, a Associação não estava convidando para a Festa os associados inadimplentes
com a contribuição mensal da Associação, o que revoltou muitos Pioneiros, que achavam
que a Associação os estava trocando por associados que nem Pioneiros eram, mas que
podiam arcar com o valor mensal da contribuição, isto é, políticos que participavam do
evento que muitas vezes se tornam membros da Associação. Vale lembrar, como consta
no seu artigo 1º de seu Estatuto, que a Associação deveria ser uma “sociedade civil, de
direito privado, sem fins lucrativos, apolítica, sem preconceitos de raça, cor ou religião”
(ESTATUTO DOS PIONEIROS DA MARCHA PARA O OESTE, 1996). O caráter político tanto
da Festa quanto da Associação é criticado por muitos, todavia, são estes mesmos que
contribuem para que seja assim. Conforme relata um entrevistado:

Mas boa parte dos Pioneiros acha que sem os políticos a Associação não
sobrevive (...) eles querem viver com o pires na mão. A associação não
precisava de nada disso. Se todos pagassem as suas mensalidades em dia,
a diretoria promovesse um evento qualquer pra arrecadar, enfim, ela
tinha condições de fazer isso né (...) não havia necessidade disso, mas eles
querem assim, paciência508.

508 Pioneiro João em entrevista concedida em 2009.

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Esse caráter político é encontrado ainda nos discursos dos Pioneiros que refletem
acerca do poder da Associação, visto em seu Estatuto como apolítica, todavia, encarada
por alguns como possível manobra para eleições. Logo,

Na verdade os Pioneiros eles deveriam dar muito mais atenção a


Associação porque através dela poderia ser conquistada muita coisa,
poderíamos influenciar até uma eleição, porque se nós tivemos cinco, seis
mil associados nós poderíamos influenciar em uma eleição né, mas!509

Essa necessidade de políticos na Festa é justificada pela falta de dinheiro da


Associação para realizar o evento, que, por sua vez, ocorre em virtude do não pagamento
das mensalidades. Há ainda controvérsias acerca do pagamento dessa mensalidade – que
é de cinco reais, visto por alguns como irrisória e por outros como desnecessária pelo fato
da Associação não possuir sede fixa.
A partir deste histórico e das pesquisas realizadas anteriormente, compreende-
se que a categoria Pioneiro tem autonomia da Associação, embora seja a Associação que
formalize o pioneirismo na sociedade. Logo, mesmo não participando da Associação, os
Pioneiros continuam a ser considerados como tal pela comunidade. Sendo assim, o
processo identitário é diferente do espaço social, não estando necessariamente um
vinculado ao outro, pois neste caso a Associação não é necessária para afirmar a
identidade de Pioneiro (OLIVEIRA, 2010).

Considerações finais
Os Pioneiros da Marcha para o Oeste residentes em Nova Xavantina reforçam que
o pioneirismo do município é circunscrito ao seu grupo e faz parte da sua identidade
coletiva, o que mostra a memória como elemento que mantém a coesão interna dos
grupos e defende as fronteiras do que este tem em comum. Assim, ter participado de
eventos referentes à Marcha para o Oeste é o delimitador de fronteiras de ser pioneiro.
Logo, por mais que outros tenham realizado feitos importantes para o município, somente
eles são Pioneiros da cidade, independente se exista uma Associação que os agregue ou
não. Desse modo, o pertencimento ao grupo dos Pioneiros não está ligado
necessariamente a uma instituição física, uma associação, todavia, liga-se a fronteiras

509 Pioneiro João em entrevista concedida em 2009.

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simbólicas que envolvem a participação em uma determinada época vivida coletivamente


por um grupo.
A memória cultural deste grupo é externada em um dia específico do ano,
momento em que toda a sociedade nova-xavantinense faz referência aos Pioneiros da
Marcha para o Oeste, celebrando, junto a eles, a memória cultural dos migrantes que
partiram para o interior do Brasil para virar bandeirantes de Getúlio Vargas. A herança
simbólica dos Pioneiros é materializada na Festa, que transmite a imagem que o grupo
tem de si.
Acerca da Festa do Pioneiro, entende-se que tal evento é o momento de se
mostrar a sociedade nova-xavantinense a memória cultural dos Pioneiros, isto é, nesse
momento se ritualizam as ações dos atores sociais envoltos no enredo que fala sobre
Getúlio Vargas, Marcha para o Oeste, Expedição Roncador Xingu, Fundação Brasil Central.
Como afirma Lima Filho (2001), a Festa pode ser vista como um momento em que os
Pioneiros lançam suas âncoras existenciais para sobreviver a um grande descompasso de
ritmos. É o ritmo paralisante dos funcionários e pioneiros, que de heróis passaram a
“parasitas”, e o ritmo acelerado da história, representada na região por inúmeros projetos
de colonização e exploração econômica do governo.
A Festa do Pioneiro, tal como a festa de um grupo de ex-mineiros em Arroio dos
Ratos/RS, analisada por Eckert (1997), traz um sentimento de saudade, que se apresenta
como um sentimento-motivação de um projeto de reestruturação das lembranças de um
grupo. É uma expressão atualizada da memória de uma coletividade que se quer
representativa da memória social. É uma maneira de narrar e dramatizar uma
transformação que não foi pedida pelos Pioneiros, mas que culminou na atualidade em
que os Pioneiros acreditam ser necessário se reafirmar por meio de uma Festa. Nesse tipo
de evento, como explica Eckert (1997), o valor saudade é representado como
reestruturador de uma experiência coletiva dilacerada. Nessas festas que rememoram
memórias coletivas, reatualiza-se um passado dramatizado no presente com o objetivo de
mostrar a identidade social de um grupo.

Referências bibliográficas:

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PATRIMÔNIO, ESPETACULARIZAÇÃO E HIBRIDISMO CULTURAL: A


GEOGRAFIA DOS MUSEUS DA CIDADE E AS APROPRIAÇÕES DA
CULTURA MATERIAL NO DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM
GRAMADO (RS)

Daniel Luciano Gevehr 


Fraciele Berti**

Introdução
Nas últimas décadas valoriza-se a capacidade do museu de contribuir para o
desenvolvimento do espaço urbano, podendo representar um meio de administrar – de
modo dinâmico – o patrimônio de uma comunidade. Além disso, no que se referem ao
enfoque do desenvolvimento econômico, os museus podem funcionar como mecanismo
de atração de turistas para os municípios (VARINE, 2013).
No entanto, autores como Varine (2013) e Pérez (2009) atentam para os riscos
da utilização turística do patrimônio cultural, como, por exemplo, medir o patrimônio pela
sua rentabilidade. Neste contexto, inserem-se os museus inspirados em parques
temáticos. Tais empreendimentos são concebidos para fins turísticos e comerciais, em
que o vínculo da instituição com a cultura local é inexistente.
Tendo esta conjuntura como ponto de partida para nossa análise, o objetivo do
estudo é discutir a relação entre a utilização do patrimônio cultural por meio da
musealização de espaços no espaço urbano de Gramado (RS) e como este processo está
servindo de vetor do desenvolvimento local.
No desenvolvimento deste estudo adotou-se como técnica de coleta de dados a
análise documental, explorando-se o Guia dos Museus Brasileiros (2011); a Relação de
Econômicos em Atividade, na categoria Atividades de museus e de exploração de lugares
e prédios históricos e atrações similares, disponibilizada pela Prefeitura Municipal de
Gramado (2016); material promocional impresso e virtual das instituições elencadas pela


Doutor em História; Faculdades Integradas de Taquara - FACCAT; Taquara, Rio Grande do Sul e Brasil;
danielgevehr@hotmail.com.
** Mestranda em Desenvolvimento Regional; Faculdades Integradas de Taquara - FACCAT; Taquara, Rio

Grande do Sul e Brasil; francieleberti@hotmail.com. Bolsista CAPES.

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Prefeitura de Gramado; o Guia Oficial de Localização Gramado e a própria observação


direta.

Museus, turismo e espetacularização


Os museus – antes percebidos como espaços reservados à nobreza e distantes dos
menos abastados – têm transcendido as classes sociais. Conforme Hollanda (2011, p. 09)
os museus cada vez mais “[...] se fortalecem como espaços mais próximos da população,
que não precisam apenas existir para serem públicos, precisam também interagir; não só
abrir portas, mas também abrir caminhos [...]”.
Para melhor compreendermos o objeto da pesquisa, cabe lembrar que a primeira
definição de museu foi desenvolvida pelo International Council of Museums (ICOM), em
1946, sendo reformulada nos anos de 1956, 1974, 1989, 1995 e 2001 (PÉREZ, 2009). A
definição usual de museu obedece essencialmente à proposição do ICOM, elaborada em
1974 (POULOT, 2013) e que define o museu como uma instituição: [...] sem fins lucrativos,
a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público [...] tendo em vista a
aquisição, conservação, transmissão e, principalmente, exposição desse acervo com a
finalidade de estudo, educação e deleite.
Discutindo sobre as alterações ocorridas no conceito, Pérez (2009) atenta para a
convergência nas definições estabelecida pelo órgão. Para o autor, a concepção
fundamental é de que o museu é mais do que uma coleção de objetos, é uma instituição
permanente a serviço da comunidade. O museu, antes entendido como instrumento de
pesquisa, de conservação, de educação, de prazer estético e intelectual, a serviço da
cultura, da ciência e das artes, a partir da década de 1970 passa a ser um instrumento a
serviço do desenvolvimento, podendo representar um meio de administrar de modo
dinâmico o patrimônio de uma comunidade. Além disso, no que se refere ao enfoque de
desenvolvimento econômico, os museus podem funcionar como mecanismo de atração de
turistas (VARINE, 2013).
Perez (2009) corrobora com tal afirmação ao mencionar que, ainda que o
fundamento das instituições museais consista no patrimônio cultural e natural,
atualmente estas têm despontado enquanto um instrumento fundamental para o
desenvolvimento local, por meio de sua exploração turística. Elas transcendem a função
de meio de veiculação de ideias, valores, identidade, apresentando-se como um “espaço a

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serviços das comunidades”. É indubitável a relevância dos museus para a atividade


turística e, assim, os especialistas em turismo devem valer-se dos diferentes tipos de
museus, objetivando o desenvolvimento sustentável (PÉREZ, 2009).
Entretanto, Varine (2013) sublinha a visão economicista que comumente tem
cercado o turismo cultural. Para o autor, direcionando o turismo apenas como fonte de
receitas, os responsáveis locais – tanto pelo turismo, quanto pelo desenvolvimento – não
se percebem a relevância do turismo cultural para a imagem do território e, por
conseguinte, para as estratégias de desenvolvimento. O mesmo autor questiona a faceta
verdadeiramente cultural do fenômeno. Assim, é preciso questionar sobre o real impacto
desse tipo de turismo na população e na cidade.
A cultura do consumo tem-se difundido pelo mundo. A busca constante pelo lucro
tem levado museus a sucumbirem a novas condições, condições estas que atacam a ética
dos museus, como a redução do patrimônio à mercadoria e à competição com indústrias
de espetáculo. Desde a segunda metade do século XX, o modelo de gestão tradicional de
museus enfrenta crise. De um lado, a gestão economicista, que entende o museu como
negócio, de outro lado, um modelo de gestão até então intocado, que vê o museu enquanto
uma ferramenta para a formação, conservação, memória e história (MOLFINO, 2015).
Neste contexto, Varine (2013) atenta para um possível discurso que procura
dissimular as reais intenções dos museus. Algumas dessas instituições são uma “fórmula
turística” com fins essencialmente lucrativos, dada a exploração fundamentalmente
econômica e comercial do patrimônio, sem qualquer vínculo com aspectos culturais da
comunidade de pertencimento.

A cidade de Gramado (RS) e a espetacularização dos museus


O município de Gramado localiza-se no Rio Grande do Sul, a 885 metros de
altitude, na encosta inferior do nordeste. Com uma população de 32.273 habitantes (IBGE,
2010), em uma área de 237,827 km² (IBGE, 2015), Gramado é referência no setor turístico
em âmbito nacional e conhecida especialmente como a cidade do Festival de Cinema de
Gramado. O potencial turístico da localidade é cada vez mais explorado e configura-se
como imagem de destino consolidado (MINISTÉRIO DO TURISMO, 2015). O município
está localizado na denominada “Região das Hortênsias” [tal regionalização abrange
também Canela, Nova Petrópolis e São Francisco de Paula].

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Dentre os atrativos turísticos de Gramado, destacam-se os museus. Essa tipologia


de instituição tem se proliferado nos últimos anos, não somente no município, mas
também no país e no mundo. Devido à ampliação da acessibilidade da cultura, essa
tipologia de instituição se difunde no país, inovando e desenvolvendo constantemente seu
repertório (HOLLANDA, 2011).
Visando identificar os museus estabelecidos em Gramado, consultamos
inicialmente o Cadastro Nacional Museu (CNM), criado pelo Instituto Brasileiro de
Museus (IBRAM/Minc) em 2006, cujo objetivo é mapear e cadastrar os museus do Brasil.
Desde a sua concepção, o CNM já mapeou mais de 3.200 instituições museológicas em
todo o país, compartilhando seus resultados por meio de duas publicações, dentre elas o
Guia dos Museus Brasileiros, lançado em 2011. O Guia compreende 3.118 museus,
incluindo 23 museus virtuais, já mapeados pelo IBRAM em território nacional.
Desde 2009, para mapear os museus, o CNM adotou o conceito de museu
estabelecido pelo Estatuto de Museus, promulgado pela Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de
2009, que institui:

Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins


lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e
expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico,
científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao
público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento. [...]
(GUIA DOS MUSEUS BRASILEIROS, 2011, p. 15).

No que se refere ao município de Gramado, o Guia apresenta oito museus e a


respectiva tipologia de acervo, natureza administrativa e ano de criação, conforme mostra
o Quadro 1.

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Quadro 1 – Museus cadastrados no Guia dos Museus Brasileiros em 2011

Natureza Ano de
Nome do museu Tipologia de acervo
administrativa criação
Museu do Perfume Ciências Naturais e História
Privado 1993
Fragram Natural;
Antropologia e Etnografia;
Museu Medieval Castelo
Arqueologia; Artes Visuais; Particular 1999
Saint George
História
Museu do Festival de Artes Visuais; História; Imagem Público-
2000
Cinema e Som municipal
Museu de Artes Dr. Informação não
Artes Visuais 1992
Carlos Nelz disponível
Museu Histórico 1982
Artes Visuais; Ciência e Público-
Municipal;
Tecnologia; História municipal
Prof. Hugo Daros
Informação não
Museu do Sapato Informação não disponível 1993
disponível
Museu do Chocolate Informação não disponível Privado-empresa 2001
Museu do Piano Informação não disponível Privado-empresa 1999
Fonte: Adaptado de Guia dos Museus Brasileiros (2011)

Já no Quadro 2, apresentado abaixo, a Prefeitura Municipal de Gramado (2016)


também registra oito empreendimentos vinculados ao segmento denominado “Atividade
de museu e exploração de lugares e prédios históricos e atrações similares”, pela
Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), sendo eles:

Quadro 2 – Museus Cadastrados na Prefeitura Municipal de Gramado no ano de 2016

Nome do museu Tema Natureza Ano de criação


administrativa

Hollywood Dream Cars Carros antigos Privado 1997


Museu de Cera de
Personagens em cera Privado 2009
Gramado Dream Land
Museu Medieval Castelo 2002
Cutelaria medieval Privado
Saint George
Museu Gramado Minerais e
Pedras preciosas Privado 2010
Pedras Preciosas
Super Carros Gramado Carros esportivos Privado 2011
Museu do Festival de
Cinema Público-privado 2016
Cinema
A mina Pedras preciosas Privado 2012
Motocicletas Harley
Harley Motor Show Privado 2010
Davdson
Fonte: elaborado pelos autores (2017).

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Comparando os dados expressos nos Quadros 1 e 2, percebemos que o Guia dos


Museus Brasileiros e a Prefeitura Municipal de Gramado registram oito museus, no
entanto, divergem quanto às instituições cadastradas. Tal desconformidade pode estar
relacionada, em parte, devido à diferença do período entre o mapeamento (2011-2016).
Não obstante, a principal causa remete aos diversos critérios estabelecidos para a
triagem. O Museu do Perfume Fragram, por exemplo, não consta na listagem do Quadro
2, tendo em vista que, segundo a Prefeitura Municipal de Gramado, o estabelecimento está
registrado com CNAE de Indústria e Comércio de Perfumes e não como museu.
Neste sentido, no que se refere às indefinições e discrepâncias quanto ao número
de museus, que varia de acordo com a fonte pesquisada, Poulot (2013) menciona que o
número atual de museus é indeterminado, uma vez que a seleção depende da escolha dos
critérios. Para o autor, a situação se agrava à medida que se expandem constantemente as
definições, suscitando mais incertezas estatísticas.
Entendemos que os museus mapeados pelo IBRAM estão conectados às histórias
e as memórias da comunidade gramadense ou, ao menos, manifestam, expõem,
investigam ou interpretam bens culturais associados à cultura local. Já as instituições
cadastradas na Prefeitura Municipal de Gramado parecem ter, sobretudo, vocação
comercial, uma vez que não há vínculo qualquer com a cultura da comunidade.
A seguir, descrevemos os museus mapeados pela Prefeitura de Gramado e que se
encontram situados em áreas de destaque do espaço urbano [e de forte especulação
imobiliária], constituindo-se praticamente todos em uma única “rota de museus”. Essa
rota está localizada na Avenida das Hortênsias, que liga Gramado à Canela e onde estão
situados diversos restaurantes e casas comerciais, voltadas para os turistas que visitam a
cidade. O fato de localizaram-se – quase que em sua totalidade – numa área valorizada da
cidade coloca os museus em evidência, na medida em que esses lugares acabam tendo sua
visibilidade garantida em razão da sua posição estratégica no contexto urbano de
Gramado.
O primeiro caso estudado é o Museu do Festival de Cinema, que busca difundir a
história e a evolução do Festival de Cinema de Gramado, cuja primeira edição ocorreu em
janeiro de 1973, inserida na programação da extinta Festa das Hortênsias. O
empreendimento foi desenvolvido no ano 2000 e reconfigurado em 2016 e localiza-se na

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área central da cidade, podendo ser considerado o “coração da cidade” e ponto de


referência para quem circula pelo espaço urbano de Gramado.
Dentre as alterações, pode-se destacar a mudança da sede [atualmente o Museu
está instalado junto ao Palácio dos Festivais, ponto turístico localizado na Avenida Borges
de Medeiros e que é sede de exibição dos filmes participantes do Festival de Cinema de
Gramado], a natureza administrativa [fruto da nova parceria público-privada], a
instalação de um espaço de café e a incorporação de recursos digitais, que permitem a
interatividade.
O empreendimento é inspirado no Museu da Língua Portuguesa, localizado na
Praça da Luz, em São Paulo. A inspiração se dá, essencialmente, pelos recursos de
interatividade e tecnologia utilizados para apresentar a história do evento. Neste sentido,
há uma combinação de acervos históricos e tecnologia, de maneira que o visitante possa
interagir buscando o material histórico em totens eletrônicos. Além de acervo virtual e
ferramenta de pesquisa, os totens disponibilizam jogos da memória e um ‘quiz’, ambos
fundamentados no Festival de Cinema de Gramado. Tal interação entre museu e visitante
se dá com o intuito de estreitar a relação entre ambos e estimular a criatividade do
participante.
Nos últimos anos os museus têm assumido uma nova roupagem, modificando sua
maneira de apresentação. Antes os museus eram percebidos como locais de armazenamento
de objetos em desuso; as visitas eram tradicionalmente austeras e requeriam uma postura
“compenetrada e sisuda”, atualmente, visando a atratividade dos visitantes e da
comunidade, estão sendo inseridas novas atividades, como aulas de pinturas, decoração,
exposição de obras de artes de artistas da própria localidade (PIRES, 2001).
As novas tecnologias, concebidas e difundidas com rapidez, obrigaram os museus
a repensar as técnicas de comunicação audiovisual e apresentação. Estes, cada vez mais
valem-se da tecnologia – entendo-as como aliadas e não como concorrentes – lançando
mão de equipamentos lúdicos para permitir a interação entre o museu e o visitante
(BARRETO, 2000). Os museus – compreendidos como parte da urbe contemporânea –
têm promovido uma mutação na apresentação de acervos, incorporando técnicas
dinâmicas e interativas que geram movimento, som e cheiro (MINISTÉRIO DO TURISMO,
2006).

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Nesta mesma linha, insere-se o Museu Super Carros, que concentra um acervo de carros
superesportivos. Dentre as atrações do empreendimento, destacam-se os simuladores de
Fórmula 1, com movimento e estáticos; cinema 9D; fotos personalizadas dentro dos carros e
duas lojas de produtos.
Outro museu instalado em Gramado é o Museu Medieval Castelo Saint George. O
museu possui um acervo de cutelaria medieval, exposto em vitrines. Há réplicas de armas
dos filmes, espadas de Samurais, facas, lanças, entre outros. A arquitetura é inspirada nas
fortalezas medievais, construído com pedras de arenitos, portas e janelas de madeira
itaúba maciços, confeccionados pelo proprietário. Esse museu nos faz pensar naquilo que
Arantes (1991) chama de estetização em primeiro lugar, na medida em que a autora
defende que os novos museus priorizam a arquitetura estética em detrimento do acervo,
fazendo com que a arquitetura se apresente como “um valor em si mesmo” e que procura
chamar a atenção no contexto urbano contemporâneo.
Já o Museu Gramado Minerais e Pedras Preciosas tem um acervo com
aproximadamente 500 pedras semipreciosas, como ametistas, ágatas e opalas,
provenientes de diversas partes do mundo. Nesse mesmo gênero, A Mina apresenta mais
de mil exemplares de pedras preciosas do Brasil e de outros países como a África do Sul,
Argentina, Austrália, China, Congo, Índia, entre outros. Os museus temáticos Holywood
Dream Cars, Dream Land, Harley Motor Show – e o já descrito Super Carros – têm apelo lúdico
como principal característica, estando essas características já expostas na parte externa dos
museus e chamam a atenção no contexto urbano no qual estão inseridos. Os quatro
empreendimentos são integrantes dos oito comandados pelo grupo Dreams. O Holywood
Dream Cars, o mais antigo do quarteto, é uma exposição de carros antigos. A exibição remete
ao “glamour” de Hollywood nas décadas de 1950 e 1960. Também o Museu de Cera Dream Land
apresenta mais de 50 astros do cinema e personalidades distribuídos em dezoito cenários
temáticos.
Localizado no subsolo do Museu de Cera Dream Land, o Harley Motor Show se apresenta
como o único empreendimento temático da América do Sul a homenagear a marca de
motocicletas. Em uma área de aproximadamente 1000 metros quadrados, o local expõe mais
de vinte motos. No local, é possível perceber que no ambiente interno há o predomínio e a
vivacidade de cores no design. Assim como o Museu do Festival de Cinema, o Harley Motor Show

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também dispõe de equipamentos de oferta alimentar e um bar de funcionamento noturno, o


que atraia um número maior de pessoas e coloca o espaço no roteiro de diversão da cidade.
Com exceção do Museu do Festival de Cinema, que se dedica à memória do Festival de
Cinema, evento vinculado diretamente à comunidade de Gramado, os museus de Gramado
estão limitados à exploração econômica e comercial, sem vínculo com a cultura e
representação da comunidade. Afinal, eles não apresentam aspectos da cultura local, ao
mesmo tempo em que importam elementos vindos de fora e que não estabelecem nenhuma
relação com a paisagem e a sociedade local [influenciada pela presença dos imigrantes
alemães, italianos e portugueses, que colonizaram o município no século XIX].
Se por um lado existe uma preocupação, por parte dos moradores e da própria
municipalidade em se preservar a cultura trazida pelos imigrantes que colonizaram a região
[perceptível através da arquitetura, da culinária e das festas típicas] os museus se situam na
contramão desse processo. Explorando elementos da cultura internacional – e marcadamente
globalizada – os museus contribuem para a valorização da cultura que não é produzida no
próprio local, ou seja, importa elementos de fora para dentro da cidade.
Os museus [de forte apelo turístico] de Gramado podem ser descritos como
“museus parque temáticos”, apresentando características análogas ao já citado
anteriormente economuseu, no entanto, inspirados nos parques temáticos de tipo
Disneylândia, configurando-se como “armadilhas para turistas” (VARINE, 2013) dispostas
pelo espaço urbano de Gramado. Diante dessa banalização, o patrimônio cultural se
resume a um bem comercial como qualquer outro, a cultura e patrimônio perdem suas
funções sociais educadoras e educativas (PEREZ, 2009).
Nesta tipologia de museu, a relação comunitária, territorial ou cultural é pouco
expressiva ou inexistente e o encadeamento com o desenvolvimento global é “fraca ou
duvidosa”. O empreendimento poderia ser implantado em qualquer lugar, uma vez que a
distância entre a cultura e o local é evidente (VARINE, 2013).
Tomando como referência as informações [por meio de uma conversa informal]
de um profissional do Centro de Atendimento ao Turista, durante os procedimentos para
coleta de dados, pode-se perceber mais claramente que o entendimento [dos gestores
municipais e profissionais atuantes na área do turismo] acerca da concepção de museu é
ambíguo e confunde-se com parque temático. De acordo com o funcionário, a
concentração de museus está entre os itens 27 e 34 do Guia Oficial de Localização de

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Gramado, na qual estão inclusos os parques temáticos Mini Mundo, Mundo de Chocolate e
o Reino do Chocolate que são, na prática, parques temáticos e não museus, como menciona
o representante do setor de turismo da cidade. Nessa mesma linha de raciocínio, também
é possível destacar um outdoor instalado em uma das principais vias de acesso a Gramado.
O anúncio faz menção à compra de ingressos para os parques temáticos do município, no
entanto, a ilustração inclui imagens do Museu de Cera Dream Land, Harley Motor Show,
Holywood Dreams Cars e Super Carros.
A análise ao Guia permitiu perceber, também, que não há alusão aos museus que
estão vinculados à história local – que Poulot (2013) considera “museus de verdade” –
como o Museu de Artes Dr. Carlos Nelz e o Museu Histórico Professor Hugo Daros. Neste
sentido, vale atentar para o projeto do Museu Major José Nicoletti Filho que tem como
objetivo apresentar a história do primeiro superintendente de Gramado, bem como peças
e cenários dos diferentes momentos história do município e de seus habitantes (NANDI,
VIDAL e GEVEHR, 2015). O museu poderá promover a valorização da história e da cultura
local. No entanto, o projeto tem evoluído vagarosamente desde o ano de 2009.
Os museus de Gramado têm se convertido, cada vez mais, em atrativos turísticos
rentáveis. Autores como Huyssen (1997), Pérez (2009), Poulot (2013) assinalam a
proliferação dessas instituições. Huyssen (1997), por sua vez, chama este fenômeno de
“museumania”. No entanto, se por um lado há uma multiplicação de museus voltados ao
consumo turístico, por outro, vão desaparecendo instituições museais que não se
submetem aos processos de espetacularização (PÉREZ, 2009).
Os museus analisados incorporam estratégias de marketing, buscando a
identificação e, por conseguinte, a satisfação das necessidades humanas e sociais
(KOTLER; KELLER, 2006). Dois dos empreendimentos dispõem de equipamentos de
oferta alimentar, além disso, o roteiro das visitas aos museus encerram nas lojas de
souvenirs, pertencentes aos estabelecimentos, tal intervenção de roteiro é empregada nos
oito empreendimentos pesquisados. Chama atenção, também, a localização geográfica das
referidas instituições, que se colocam como “vitrines” no espaço urbano de Gramado –
dada a sua configuração arquitetônica e a utilização de recursos de marketing para atrair
os turistas que percorrem as ruas e avenidas da cidade.
Dentre os oito museus, seis estão localizados na Avenida das Hortênsias. A
referida avenida cruza o município de Gramado no sentido leste-oeste e conecta-se ao

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município de Canela [localizado a 7 km de Gramado, também pertencente a “Região das


Hortênsias” e com economia firmada na atividade turística] e assim, constitui-se de uma
área de intensa circulação turística. Essa geografia dos museus de Gramado nos permite
avaliar como a criação dos museus acabou interferindo na dinâmica de produção do
espaço urbano, na medida em que colocou em relevou áreas de forte apelo turístico da
cidade, contribuindo assim para a valorização dessas áreas e a própria especulação
imobiliária nas áreas próximas aos estabelecimentos.
Já o Museu do Festival de Cinema [mencionado anteriormente] localiza-se na
Avenida Borges de Medeiros, considerada cartão postal do município, voltada para o
segmento comercial, concentrando estabelecimentos direcionados fundamentalmente ao
turista. O Museu A Mina, embora não instalado em áreas de circulação turística, está
inserido em um parque com atrações turísticas já consolidadas. Pensando nessa questão,
tomamos as ideias de Molfino (2015), que afirma que a partir da década de 1990 os
museus aderiram às técnicas utilizadas nas organizações empresariais e comerciais, tais
como a autonomia de gestão, intensificação dos pontos fortes, indicadores de resultados,
comunicação e marketing.

Considerações finais
Percebe-se que os museus têm passado por profundas transformações e
apresentado novas perspectivas de diálogo com o espaço urbano nos quais está inserido.
Visando atrair visitantes [ou seriam consumidores?] as instituições abandonam cada vez
mais a visita percebida tradicionalmente como introvertida e conservadora, de
contemplação e concentração, configurando-se atualmente como instituições que
apresentam seus acervos de maneira dinâmica e interativa. Os museus encontraram na
atividade turística uma fonte de sustento, transformando não apenas a ideia de
patrimônio cultural, mas também a própria paisagem urbana, que passa a contar com uma
nova arquitetura, voltada para o espetáculo e para a valorização de novos elementos, até
então estranhos à própria comunidade.
A reformulação dos museus na sociedade capitalista parece exceder-se na
exibição e encenação, valendo-se progressivamente de cenários cinematográficos e
reproduzindo imagens percebidas em parques temáticos, tal panorama parece ilustrar
um “alinhamento progressivo da instituição à vulgaridade comercial” (POULOT, 2013, p.

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106). Esta conjuntura foi observada nos museus estabelecidos em Gramado, dado que o
turismo no município tem atribuído novas funções aos museus e estes têm concorrido
cada vez mais com indústrias de lazer, tais como os parques temáticos existentes do local.
A análise revelou que os museus tem-se apresentado como atrações turísticas rentáveis
economicamente. Assim, Gramado tem experimentado uma proliferação de museus na
última década. Atualmente o município registra oito empreendimentos no ramo, e não
obstante apenas um apresenta algum vínculo com a cultura local.
Os museus [e sua dinâmica de relação com a produção do espaço urbano] devem
ser pensados como instituições que contribuem para o desenvolvimento local, tendo em
vista que na concepção de desenvolvimento seja fundamental a melhoria da qualidade de
vida da população, seja em aspectos econômicos, sociais, culturais ou ambientais.
Excetuando o Museu do Festival de Cinema que mesmo após ser reconfigurado [aderindo
a recursos audiovisuais] mantém intenções didáticas, contribuindo para a preservação da
memória do Festival de Cinema de Gramado, evento vinculado à comunidade de Gramado.
Percebe-se que no caso dos demais museus, os mesmos estão limitados à exploração
econômica e comercial, voltados para o consumo de massa, desprovidos de vínculo com a
cultura e representação da comunidade.
A análise permitiu inferir, também, que não há uma concepção sólida acerca do
conceito de museu. A indefinição foi percebida no mapeamento das instituições, que
variam de acordo com a fonte pesquisada. Neste sentido, outro fato observado é que a
concepção de museu é ambígua. Perante as produções e encenações praticadas pelas
instituições, museus são entendidos e vendidos, também, como parques temáticos.
Por fim, cabe lembrar que, ainda que os museus representem atrativos turísticos
e, por conseguinte, geram emprego e renda no município [tendo em vista o efeito
multiplicador e difusor da atividade turística], a reprodução desse modelo cultural acaba
contribuindo para a transformação profunda da paisagem cultural da cidade, na medida
em que esses novos espaços [museus e parques] produzem cenas inusitadas em Gramado.

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CONSTRUINDO A MEMÓRIA E A IDENTIDADE DOS HAMBURGUENSES


ATRAVÉS DA OBRA DE ARTE HAMBURGO VELHO510

Quésia Katúscia Gasparetto de Souza*

A memória é um processo individual e coletivo. “Recordar é, por isso e sempre,


uma operação de resgate”, Paul Ricoeur. Requer seleção, organização e enquadramento
da memória. “Os lugares tem suas histórias, e as pessoas que neles vivem guardam em
suas memórias singularidades que marcaram suas vidas”, Dalva Reinheimer e Elaine
Smaniotto, (2014, p.242).
Para Pierre Nora, “a memória, vivida por grupos sociais, é representação afectiva,
em evolução”. Podemos pensar que “a possibilidade do resgate da memória resulta de um
somatório de objetos”, conforme destaca Janice Theodoro. A memória pode surgir efeito
na representação de um objeto, em uma fotografia e até mesmo em uma obra de arte.
A obra de arte pode resgatar a memória individual e coletiva. O resgate da
memória esta acompanhada na qualidade da narrativa. “Se eu puder falar sobre o passado,
se as lembranças puderem ser, sucessivas e criativamente instrumentalizadas no
presente... A memória se salva, se puder ser repetida como história, se puder ser
imaginada através de figurações individuais e coletivas” (THEODORO, 1998, p.66).
A memória, segundo Michael Pollak “é um elemento constituinte do sentimento
de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa
ou de um grupo em sua reconstrução de si” (POLLACK, 1999, p.05).
Pensando na obra de arte como uma construção e reconstrução, o artigo em
questão, analisa a obra de arte Hamburgo Velho, pintada pelo artista gaúcho Ernesto
Frederico Scheffel em 1956. Utiliza como metodologia de pesquisa fonte oral e periódicos

510Texto apresentado como requisito para aprovação na disciplina “Memória e Esquecimento”, ministrada
pela professora Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos, 2017/01, no Programa de Pós-Graduação em
História da Unisinos.
* Mestranda da Universidade do Vale dos Sinos-UNISINOS. Historiadora responsável pelo acervo da

Fundação Ernesto Frederico Scheffel e Museu Comunitário Casa Schmitt Presser, ambas localizadas no
bairro Hamburgo Velho na Cidade de Novo Hamburgo/RS.

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da região do Vale do Sinos além de revisão bibliográfica sobre memória e identidade. O


mesmo está estruturado em duas partes.
A Primeira parte do artigo intitulado Ernesto Frederico Scheffel: Retrospectiva de
sua vida e obras no Brasil salienta aspectos da história do artista, desde o momento que se
muda para o bairro Hamburgo Velho na Cidade de Novo Hamburgo/RS, na década de
1930, perpassando pelas décadas subseqüentes dando ênfase em particular a década de
1950, período no qual a obra aqui analisada foi elaborada. Dessa forma poderemos
compreender a relação entre tempo e espaço em que a mesma foi pintada.
A segunda parte do artigo, analisa a obra Hamburgo Velho e a sua
representatividade a memória e a identidade da colonização alemã para os
hamburguenses respondendo a pergunta: Como uma obra de arte pode representar a
memória e a identidade de um indivíduo e de um grupo?

Ernesto Frederico Scheffel: retrospectiva de sua vida e obras no Brasil


Ernesto Frederico Scheffel511, natural de Campo Bom, no estado do Rio Grande
do Sul, transfere-se com sua família para a cidade de Novo Hamburgo com 08 anos de
idade. Residindo no bairro Hamburgo Velho, Scheffel começa a pintar temas da região,
fonte constante de inspiração para suas obras, conforme o mesmo escreve anos mais
tarde em sua biografia Scheffel por Ele Mesmo (SCHEFFEL, 2013).
Aos doze anos de idade se torna aluno interno no Instituto Técnico Parobé e se
matricula no Instituto de Belas Artes de Porto Alegre por intermédio do prefeito de Novo
Hamburgo, Odon Cavalcanti que apresenta o jovem artista ao Interventor Oswaldo
Cordeiro de Farias e ao Secretário de Educação e Cultura, Dr. José Pereira Coelho de Souza,
sob responsabilidade do Governo do Estado.
Na década de 1940 participa de exposições, expondo cerca de 40 trabalhos na
Galeria de Arte da Casa das Molduras em Porto Alegre. Em 1948 Scheffel presta serviço
militar e começa a participar de salões de Arte, com o II Salão Militar de Artes Plásticas,
no Clube Militar, no Rio de Janeiro, expondo 15 trabalhos, entre eles "Combate de Poncho
Verde", tema regional que aborda a Revolução Farroupilha, obtendo medalha de Prata. No

511É descendente de imigrantes oriundos de Berghausen - Westfalen, chegados em 26 de novembro de


1825, conforme informações do arquivo da Fundação Ernesto Frederico Scheffel.

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ano seguinte, expõem pela primeira vez em Hamburgo Velho nos Salões da Sociedade de
Cantores - Frohsinn - junto com Laura Bohn, Oscar Kunz Filho e Norberto Michel.
A década de 1950 será um período de provações e crescimento artístico, década
na qual o artista elabora a obra analisada nesse artigo. Scheffel, se muda para o Rio de
Janeiro e conhece Oswaldo Teixeira que, “impressionado com o jovem artista, escreve a
seguinte mensagem ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul” 512:

É um jovem que, bem guiado, poderá muito produzir, porque tem


bastante talento e vocação para a arte. Penso que o seu Estado devia
auxiliá-lo e protegê-lo, para que melhor possa produzir e com facilidade
progredir. A técnica no desenho já é bastante sólida e, com estudo
acurado, deverá ampliar-se para que o vôo seja mais alto. O futuro dirá o
que afirmo: Será um grande artista.

Scheffel passa a participar de concursos na década de 1950 dividindo opiniões.


De 1951 a 1958 o artista em questão, conquista as Medalhas de Bronze, de Prata e o
Prêmio de Viagem ao Estrangeiro pelo Salão Nacional de Belas Artes.
Em 1952 sua obra "Rixa Gaúcha" que retrata o gaúcho, foi recusada no LVII Salão
Nacional de Belas Artes. Este fato provocou uma rebelião entre os artistas rejeitados,
levando-os à criação do I Salão Livre de Belas Artes, cognominado "Salão dos Recusados",
no Automóvel Clube do Brasil. Em 1956, expõe no LXI Salão Nacional de Belas Artes as
obras "Hamburgo Velho", "O Signo de Balança" e "Retrato de Júlia", concorrendo pela
primeira vez ao prêmio Viagem ao Exterior. Neste Salão, como nos dois anos seguintes, o
júri se divide e criam-se problemas quanto à premiação de Scheffel, questão amplamente
divulgada pelos jornais da época.
Com a obra Gerônimo, Scheffel ganha o prêmio máximo, uma viagem para Europa
onde passa a residir na Itália, o que lhe garante prestígio artístico e renome a nível
internacional.
Na década de 1960, Scheffel estuda escultura, na Academia de Belas Artes,
Gravura e Técnica do Afresco em Florença. Continua a praticar Música de Câmara e
Orquestração (por três anos) com a Maestro Profº A. Fannelli, do Conservatório Cherubini
e a prática da restauração pictórica no Laboratório da Galleria degli Uffizzi. 513

512 Conforme material didático da Fundação Ernesto Frederico Scheffel elaborado pela historiadora Ângela
Sperb na década de 2000.
513 Conforme informações oficiais do site da pinacoteca da Fundação Ernesto Frederico Scheffel.

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Na década de 1970 e 1980 Scheffel se preocupa em preservar os bens materiais


e imateriais da cidade de Novo Hamburgo. Foi presidente do Conselho Municipal de
preservação do Acervo Histórico e Cultural de Novo Hamburgo e vice-presidente Cultural
do Movimento Gaúcho de Preservação do Acervo Histórico e Cultural. Segundo o site da
Fundação Ernesto Frederico Scheffel 514 que nomeia o nome do artista destaca o movimento:
Criado o Movimento de Preservação do Patrimônio Histórico e Artístico,
em Hamburgo Velho, 1980 e 1983, encabeçado por Scheffel na forma de
voluntariado - aos domingos pela manhã com almoço de
confraternização. Este movimento já havia sido iniciado pelo artista na
Páscoa de 1975, quando ele conseguiu impedir a demolição da Casa
Schmitt-Presser, hoje, Museu Comunitário de Novo Hamburgo, com
tombamento a nível nacional, como monumento de arquitetura”.

Armindo Trevisan comenta a respeito das obras de Ernesto Frederico Scheffel515


com a preservação do patrimônio e a identidade dos hamburguenses ao dizer:

Novo Hamburgo tem o mérito de ser uma das primeiras cidades


brasileiras a se interessarem por salvar uma certa identidade, não só
através da restauração de locais e prédios, como também pela
preservação de registros estéticos, os registros da sensibilidade de seus
artista... Noutras palavras: preservar, para os vindouros alguma coisa
valiosa do nosso patrimônio. Mais do que criticar, acolher, visando com
isso a atrair a atenção das pessoas para o que é nativo e regional”
(TREVISAN, 1996-1997) 516

A representatividade da obra Hamburgo Velho para a memória e a identidade da


colonização alemã na cidade de Novo Hamburgo

514 A pinacoteca da Fundação Ernesto Frederico Scheffel, inaugurada em 05 de novembro de 1978, com um
acervo de mais de 385 obras de autoria do próprio Scheffel, fazendo com que ela se constitua numa das
maiores pinacotecas do mundo com obras de um único artista, possuindo algumas das suas melhores e mais
significativas obras. Os quadros expostos nos três pisos do casarão, erguido por Adão Adolfo Schmitt no fim
do século XIX, com características neoclássicas, são apresentados obedecendo à ordem cronológica de
criação e estão agrupados conforme a temática e técnicas utilizadas para sua execução. No primeiro piso,
estão os quadros que marcaram sua fase inicial, de sua adolescência até seus 22 anos. Algumas são de
caráter regionalista, justamente por retratarem os lugares, a região que deu origem à sua carreira. No
segundo piso, encontram-se as obras que participaram dos vários Salões de Belas Artes no Rio de Janeiro,
na busca do “Prêmio de Viagem ao Estrangeiro”. São obras do gênero épico, simbolista, e do realismo
poético. Finalmente, no terceiro piso, encontram-se obras de sua fase na Europa.
515 O artista na década de 1960 passa a residir na Itália. Nas décadas seguintes, intercala-se entre Europa e

Brasil, vindo a falecer em Porto Alegre no dia 16 de julho de 2015.


516 Informações retiradas do folhetim Uma Visita à obra de Ernesto Frederico Scheffel por Armindo Trevisan.

Material elaborado pela diretoria da Fundação Scheffel em exercício em 1996-1997 composta por Ana
Jussara Hauschild (diretora executiva), Maria Inês Weissheimer (vice-diretora) e Harro Schmitt
(conselheiro e curador).

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Segundo LE GOFF, atualmente a questão mais relevante sobre a memória são seus
mecanismos de preservação. “a memória passou a ligar-se menos aos acontecimentos
históricos e mais a comportamentos, mentalidades, imagens, ritos e festas”. (LE GOFF,
2003, p.466).
Relembrar a história da cidade de Novo Hamburgo e dos imigrantes alemães, “é
crucial para nosso sentido de identidade: saber o que fomos confirma o que somos”
(LOWENTHAL, 1998, p. 83).
Ernesto Frederico Scheffel, descendente de alemães, além de pintar e compor
músicas, também amava a história, a sua história e da humanidade, seja ela local, regional,
nacional ou mundial. Elaborou em 1955 um estudo e em 1956 a obra Hamburgo Velho,
também conhecida como Forno de Pão (obra abaixo). Segundo o artista, foi
“possivelmente uma das minhas obras mais divulgadas sobre a colônia alemã no Vale dos
Sinos” (SCHEFFEL, 2013, p.75).

Figura 1 - Hamburgo Velho, 1956 (Óleo sobre Tela, 290x138,5 cm)

Fonte: Acervo Fundação Ernesto Frederico Scheffel

Nessa obra, o quintal representa a terceira moradia da família de Scheffel. Os


modelos utilizados na composição são familiares do mesmo. A moça sentada, é a irmão
caçula do artista, Lia Scheffel com 21 anos de idade. O rapaz em pé se chama Doralvo
Silivio Mauhs (filho de Alice, irmã mais velha do artista). Doralvo, com 13 anos de idade,

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possa para seu tio com um bloco de desenhos. Ambos os personagens com expressões
pensativas. Seus olhares não se encontram.
Ao lado do menino, um forno de pão. Segundo o jornalista Eduardo Andrejew, “A
pequena e rústica construção não divide apenas o espaço com a moça e o garoto. Ao fundo,
uma paisagem se insinua: Hamburgo Velho há 60 anos517”. O jornalista ressalva também
“O lugar também dá nome a esta que é uma das mais importantes pinturas do artista (...)
Mais do que uma pintura de grande qualidade, Hamburgo Velho tem todo um valor
simbólico para o artista e para a região onde ele cresceu” (ANDREJEW, 2016).
A relevância da obra Hamburgo Velho está associada à história da cidade.
Conhecer nossa história individual e coletiva faz parte de quem somos. Liene Martins
Schütz518, em seu livro Os Bairros de Novo Hamburgo, (2001, p.72), informa que os
aspectos históricos da cidade de Novo Hamburgo iniciou-se em Hamburgo Velho, antigo
Hamburger Berg519, nome dado pelos primeiros imigrantes alemães que vieram para essa
localidade para lembrar uma antiga rua da cidade de Hamburgo, conforme informações
do Professor Lanzer, imigrante alemão aqui chegado na década de 1850. Os imigrantes
chegaram ao Vale dos Sinos- São Leopoldo em 1824 e em Hamburgo Velho em novembro
do mesmo ano. Porém Hamburgo Velho520 começa a se estruturar por volta de 1830.
Hamburgo Velho, segundo SCHÜTZ (2001, p.73), começou com Johann Peter
Schmitt, que instalou a primeira casa comercial onde hoje temos a Casa Schmitt Presser,
situada à Av. Gal. Daltro Filho, 929. “Considerada, por justiça e valor, o marco histórico de
Hamburgo Velho. Grande foi à luta pela preservação da Casa”.

517 Reportagem escrita para o Jornal NH, com edição do dia 07 de dezembro de 2016, intitulada: Modelos
junto à tela pintada por Frederico Scheffel há 60 anos. Reportagem destaca a comemoração dos 60 anos dessa
pintura com concerto especial na Fundação Ernesto Frederico Scheffel.
518 Liene Martins Schütz natural de Novo Hamburgo, licenciou-se em História na Unisinos e cursou mestrado

em Assuntos Ibéricos Américanos na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras nesta mesma Instituição.
Presidente do Grupo de Trabalho de Pesquisa Histórica dos festejos do Sesquicentenário da Imiração e
Colonização Alemã no RS em NH (1974). Sócia Fundadora do Movimento de Preservação do Patrimônio.
Membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Novo Hamburgo.
Sócia fundadora e Efetiva do Instituto Histórico Visconde de São Leopoldo, ocupando a cadeira número 17
de 1974/2001. Responsável pela elaboração do Primeiro Levantamento e Fichário Histórico e Cultural de
Novo Hamburgo.
519Hamburgerberg em tradução livre do alemão para o português: o morro do hamburguês. Fato que ocorre

nos primeiros anos de imigração e colonização por volta de 1830.


520 A ocupação dos integrantes desta área deveu-se a um plano do primeiro império brasileiro, que teve um

duplo sentido: garantia a posse dos territórios através do povoamento e a colonização; introduzia uma nova
mentalidade no que se refere a posse da terra, produção e mão-de-obra, contrapondo-se aos latifúndios,
monocultores e escravocratas que existiam no restante do país.

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Segundo Angela SPERB (1987): “ O povoado de Hamburgerberg, núcleo inicial de


Novo Hamburgo, teve sua origem:
(...) nas casas comerciais e de artefatos que se estabeleceram num
entroncamento de importantes estradas do século passado: o caminho
das tropas, que vinham dos campos de cima da serra e a estrada do Norte.
Desde as picadas de Dois Irmãos, Bom Jardim e Travessão essas vias
encontravam-se para, logo em seguida dividirem-se rumo ao Sul- via São
Leopoldo em direção ao oeste- via Porto dos Guimarães (São Sebastião do
Caí). Confluência de caminhos, o povoado cresceu espontaneamente com
ruas estreitas , largos, becos, praças, casario e quintais. Esta situação
privilegiada no entroncamento de uma rota comercial que ligava o
interior da província (inicialmente a estrada das tropas, depois também
a estrada de escoamento dos produtos do hinterland521 da colônia),
trouxe condições favoráveis para o desenvolvimento do povoado de
Hamburgerberg, permitindo que o mesmo se tornasse um ponto de
intercâmbio de produtos agrícolas, pastoris e manufaturados.

A cidade de Novo Hamburgo, de colonização alemã, tinha como característica a


utilização de fornos aquecido à lenha para preparar pães, biscoitos, cucas e roscas. “Esses
fornos eram indispensáveis as donas de casa” destaca o artista em biografia intitulada
Scheffel por Ele Mesmo. (SCHEFFEL, 2013, p. 75).
Porque uma obra de arte pode representar a memória de um indivíduo e de um
grupo? Segundo Joel Candau, “O homem nu não existe porque não há indivíduo que não
carregue o peso da sua própria memória sem que ela seja misturada a da sociedade à qual
ele pertence”. (CANDAU, 2013, p.96).
Michel Pollack analisa a iconografia conservada por determinados grupos e sua
interpretação das imagens e a montagem desse imaginário da memória visual dizendo:

Tenho a impressão de que há como que uma memória visual que é


reconstruída. Mas em termos de pesquisa, não temos nada a esse
respeito. Só posso me referir aos trabalhos de Nora sobre a integração
dos lugares da memória e sobre os símbolos e as imagens que se formam
a partir dos monumentos... Mas no sentido da questão que me foi
colocada, talvez encontremos algumas pistas na direção da história social
da arte. O que seria interessante, seria o estudo das mudanças e da
significação dessas imagens. É um assunto muito importante”.
(POLLACK ,1999, p.05)

Portanto, quando analisamos uma obra de arte devemos considerar diversos


elementos quanto à sua produção e ao grupo receptor dessa imagem. O artista tem uma

521 Do alemão Hinterland, em tradução livre para o português: interior ou zona rural, neste caso.

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relação com seu consumidor. Na obra aqui analisada, o grupo receptor são os
hamburguenses que se identificam com o forno de pão, este no quintal de suas casas, fato
ainda hoje presente em cidades do interior. Passado e presente se mesclam. A mãe, dona
do lar que prepara pães, cucas e outras guloseimas em seu forno. As filhas em determinada
idade passam a aprender as receitas de família, com suas mães para então serem levadas
ao forno. A obra relaciona tempo e espaço, seja do artista e ou do observador.
O passado sempre se relaciona ao presente assim como o tempo a memória.
Gomes (2009) destaca:

Ainda no que diz respeito à questão do tempo e ao diálogo com a


memória, avulta em importância o que tem sido chamado de usos do
passado, prática recorrente no tempo e tornada mais visível pelas
comemorações e pelos monumentos memoriais, sejam eles
arquitetônicos, bibliográficos, fílmicos, etc. Os usos do passado remetem
à ação consciente de construção de memórias e, em decorrência, de
identidades de grupos sociais. Eles evidenciam a necessidade sistemática
de produção de passados, que dêem legitimidade a projetos de presente
e de futuro, e que dêem sentido e coerência a associações de indivíduos,
tenham elas os mais variados tamanhos, pois sua base são sempre
imaginadas, no sentido de construídas socialmente. (GOMES, p.60)

Segundo Pollak, a memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. “A memória é, em


parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre
flutuações em função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo
expressa”. (POLLACK ,1999, p.04)
Scheffel retrata em sua obra Hamburgo Velho, o cotidiano dos hamburguense e
da sua infância. O forno utilizado para a elaboração dessa tela foi inspirado no forno da
mãe do artista, Hilda. Outro detalhe que merece ser destacado sobre a obra se refere à
gamela. O artista salienta a sua satisfação em ter colhido a gamela utilizada por sua família
na cidade de Campo Bom e em Novo Hamburgo, bem como os detalhes do forno de pão.
“A pequena construção servia à nossa mãe Hilda para produzir o pão nosso de cada dia,
algumas roscas de polvilho e um bolo para o fim de semana”, destaca SCHEFFEL (2013,
p.75).
Alguns objetos presentes na obra Hamburgo Velho podem ser vistos atualmente
na Fundação Ernesto Frederico Scheffel: o chinelo, a cadeira e a gamela. Esses três objetos

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encontram-se expostos no terceiro andar da Fundação Scheffel juntamente com outros


objetos que pertenciam à família do artista.
O artista tem poder e espaço para se expressar. A arte depende do auto-
questionamento do artista para então despertar um eco em outra pessoa. Ela é um
produto do artista onde engloba experiência e sociabilidade. Relaciona artista e
sociedade. O artista, é formador de opiniões. “A tela Hamburgo Velho é, no todo, um
autorretrato psicológico, vivido por cerca de seis meses de execução, num clima sofrido
como era o meu mundo, de alguém incapaz de envolvimento cotidiano com as pessoas em
geral”, destaca Scheffel em seu livro e salientado no Jornal NH. Eduardo Cruz (2016)
Scheffel ao ser questionado sobre sua motivação em criar uma obra de arte
destaca: “Ocorreu-me a tela Hamburgo Velho como exemplo de preparação e imersão no
trabalho”. O curador da Fundação Scheffel e amigo do artista, Ângelo Reinheimer ressalva
ao Jornal NH522 sobre a criação da obra Hamburgo Velho. “Scheffel sempre comentava que
foi um quadro trabalhado fora do tempo, sem pressa, sem nenhuma pressão, só de busca
da qualidade, de mostrar tudo o que ele realmente já tinha desenvolvido tecnicamente”.
REINHEIMER (2016)
A construção da identidade individual ou coletiva relaciona-se as memórias
produzidas em uma sociedade. Joel Candau salienta que: “a sociedade produz as
percepções fundamentais que por meio de analogias, ligações entre lugares, pessoas,
ideias, etc., suscitam recordações que podem ser partilhadas por vários indivíduos e até
mesmo por uma sociedade inteira”, (CANDAU, 2013, p.90)
Essa construção social da identidade se faz no âmbito da representação. Segundo
Denys Cuche:

A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que


determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas
representações e suas escolhas. Além disso, a construção da identidade
não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos
sociais reais. (CUCHE, 2002, p.181)

São inúmeros elementos inseridos na obra Hamburgo Velho que remetem os


hamburguenses as suas histórias de vida. O Forno de Pão como elemento central dessa
obra, trás as diversas gerações o cotidiano de seus lares. Hamburguerberg, início da

522Reportagem escrita para o Jornal NH, com edição do dia 07 de dezembro de 2016, intitulada: Modelos
junto à tela pintada por Frederico Scheffel há 60 anos.

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cidade de Novo Hamburgo, atual bairro Hamburgo Velho, trás consigo diversas histórias,
lembranças e memórias. Destaco um poema escrito na década de 1980 que ressalva as
memórias do hamburgense Dênis Dapper da Cunha sobre o bairro Hamburgo Velho:
HAMBURGER BERG

Um lugar incomum, bom


Com casas carinhosas
aconchegantes
cheias de rosas ao redor
Tudo ali, fora dos prédios
No meio um lugar cheio
De remédios para os tédios
Da cidade
Lugar indescritível, sensível
Faz estacionar no patamar
realizável
Amar a criança, o novo e o
velho
Este local é Hamburgo Velho

Dênis Dapper da Cunha

Considerações Finais:

A preservação da memória e da história produzidas em uma sociedade


relacionam-se a construção da identidade individual e coletiva. Através da seleção e do
resgate da memória, o indivíduo suscita recordações que podem ser partilhadas a outros
indivíduos e a uma sociedade.
A memória, estará presente na representação de objetos, lugares, pessoas,
fotografias e em uma obra de arte. A significação de uma imagem, como uma obra de arte,
pode resgatar a memória individual e coletiva, acompanhada da narrativa. A obra de arte
de Ernesto Frederico Scheffel, relaciona artista à sociedade de Novo Hamburgo. Com seu
auto-questionamento o artista desperta sentimentos e emoções no receptor. Este por sua
vez, se apropria e dá significância de acordo com suas lembranças e memórias.
A obra analisada nesse artigo intitulada, Hamburgo Velho, elaborada por Scheffel
está associada à história da colonização alemã na cidade de Novo Hamburgo. O cotidiano
dos hamburguenses foi representado em diversos elementos, tais quais o chinelo, gamela
e o forno de pão. O título da obra é outro fator relevante pois Hamburgo Velho é o bairro
histórico da cidade, fonte de inspiração à Scheffel.

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O forno de pão, elemento central dessa obra, remete as tradições, aos costumes e
hábitos ainda hoje presentes no cotidiano de família de colonização alemãs na região.
Passado e presente se mesclam assim como o tempo a memória.

Referências bibliográficas:
CANDAU, Joel. Antropologia da Memória. Lisboa: Ed. Piaget, 2013.
CATROGA, Fernando. História e Memória, in Pesavento, Sandra Jatahy. Fronteiras do
Milênio. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001.
CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. 2ª edição, Bauru, EDUSC, 2002.
GOMES, Ângela Maria de Castro. História e historiadores: identidade e diálogos
disciplinares. In: A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argvmentvm , 2009.

LE GOFF, J. História e Memória. 5ª ed. Campinas: UNICAMP, 2003.


LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto História: Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 1998.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São
Paulo: PUC, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.
REINHEIMER, Dalva; SMANIOTTO Elaine.Narrativas orais sobre o passado presente na
casa da família Linden. in: REINHEIMER, Dalva. NEUMANN, Rosane Marcia. (Org.).
Patrimônio histórico nas Comunidades Teuto-Brasileiras: História, Memória e preservação.
São Leopoldo: Oikos, 2014 (243-254)
SCHEFFEL, Ernesto Frederico. Scheffel por ele mesmo. Novo Hamburgo, RS: Um Cultural,
2013, p. 263-280.
SCHÜTZ, Liene M. Martins. Os bairros de Novo Hamburgo. Novo Hamburgo, 2001.

SPERB, Ângela T. O inventário de João Pedro Schmitt. In: IV Simpósio de história da


imigração e colonização alemã no Rio Grande do Sul/1980. Museu Histórico Visconde de
São Leopoldo. Instituto Histórico de São Leopoldo. Anais – 1987.

THEODORO, Janice. Memória e Esquecimento: Nos limites da narrativa. Revista Tempo


Brasileiro, out-dez-nº 135-1998-Rio de Janeiro, ed. Trimestral.

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PARTE 8

A PESQUISA ARQUEOLÓGICA NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR


DO RIO GRANDE DO SUL

Pedro Ignácio Schmitz


Jairo Henrique Rogge

A pesquisa arqueológica no Rio Grande do Sul possui uma história que envolve um
longo processo de desenvolvimento, com diferentes momentos, nos quais transitou entre
um caráter inicialmente amador, passando a uma atividade científica ligada a Instituições
de Ensino Superior e, atualmente, também voltada a uma perspectiva empresarial, com a
arqueologia de contrato, sendo que essa última também tem sido feita dentro do âmbito
acadêmico. No entanto, a maior produção de conhecimento e formação de arqueólogos
tem sido feita a partir das inúmeras IESs do Estado que possuem núcleos, laboratórios,
institutos ou cursos voltados à arqueologia (UNISINOS, PUCRS, UFRGS, UFSM, UFPEL,
FURG, UPF, URI, UNIPAMPA entre muitas outras). Assim, esse simpósio tem como objetivo
reunir profissionais e estudantes que atuam e/ou tiveram sua formação nesse âmbito
para apresentar e discutir a situação atual da formação profissional e da pesquisa
arqueológica vinculada a Instituições de Ensino Superior no Estado.

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A TRAJETÓRIA DA ARQUEOLOGIA NO RIO GRANDE DO SUL


NARRADA POR TESTEMUNHA OCULAR

Pedro Ignácio Schmitz

Arqueologia
Arqueologia é o estudo do passado humano através da materialidade de seus
remanescentes, enquanto populações biológicas, sociedades ou culturas. Pode tratar de
um passado longínquo, ou de um passado recente, de populações caçadoras-coletoras,
agricultoras ou industrializadas; ágrafas ou letradas; dispersas ou reunidas em aldeias e
cidades. A arqueologia dita pré-histórica tem seu nascedouro na História Natural, a
arqueologia chamada histórica em Estudos Clássicos. O enfoque básico pode ser a
evolução e desdobramento da espécie Homo, a Cultura e seus desdobramentos sociais,
linguísticos e tecnológicos. Na universidade norte-americana ela é ensinada junto com
Antropologia Biológica, Antropologia Cultural, Antropologia Social e Linguística. Na
tradição europeia ela está mais ligada à evolução da tecnologia.
A busca do passado sempre esteve presente nas sociedades humanas, formulada
em memórias, em mitos religiosos, em elaborações filosóficas, nos últimos séculos em
pesquisas científicas.
Enquanto pesquisa científica, no Brasil, como colônia da Europa, a Arqueologia
repetiu e continua repetindo o que se faz na mãe-pátria, mesmo quando esta influência
vem através dos Estados Unidos.
O Rio Grande do Sul, um espaço afastado dos grandes núcleos urbanos do Centro
do País, repetiu, em grandes linhas o que neles se fazia, talvez em escala menor e com
nuances regionais.
Em grandes linhas podemos esboçar as etapas da arqueologia no Estado em quatro
momentos: arqueologia da curiosidade, das coleções e dos museus, de enfoque cultural,
secundariamente biológico, no século XIX e XX, até aproximadamente 1965; arqueologia
científica ou acadêmica, até 1986; arqueologia preventiva, empresarial, ou de patrimônio


Livre-docente doutor. UNISINOS. Pesquisador sênior do CNPq.

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nacional, da década de 1980 até hoje; no século XXI, se esboçou ainda uma arqueologia
social, de colaboração com minorias étnicas e sociedades camponesas residuais.

Arqueologia da curiosidade, das coleções e dos museus


Durante o século XIX e a primeira metade do século XX. É individual; recolhe
objetos avulsos de superfície; às vezes faz pequenas escavações; forma coleções, muitas
terminando em museus de particulares, de colégios, ou de instituições públicas, como o
Museu Júlio de Castilhos, o Museu Paulista e o Museu Nacional.
Os agentes são pessoas formadas: professores, religiosos, profissionais liberais
como médicos ou juristas, viajantes comerciais, veranistas do litoral, predominantemente
imigrantes e seus descendentes, que acompanham o desbravamento inicial do território
e o desenvolvimento de instituições culturais e sociais.
No Rio Grande do Sul, entre muitos outros, podemos lembrar: o Ginásio Conceição
e o Seminário Central em São Leopoldo; o Colégio Anchieta e o Museu Júlio de Castilhos
em Porto Alegre; o Colégio Mauá em Santa Cruz do Sul; o Colégio Martin Luther em
Estrela; o Museu da Fidene em Ijui; o Colégio São Francisco em Rio Grande; duas coleções
particulares em Santa Vitória do Palmar, a coleção do Dr. Kern em Canoas, a de Eurico
Miller em Taquara e a de Hilo Frediani em Torres. Muitos outros materiais foram
encaminhados diretamente ao Museu Nacional ou ao Museu Paulista, que eram
referências.
As coleções respondiam à curiosidade dos imigrantes sobre a cultura de seus
antecessores no território, num enfoque hierárquico com viés evolucionista, que afirmava
e consolidava a identidade superior do colonizador europeu.
Os materiais e explicações permaneciam, geralmente, em nível de informação
básica, comunitária, raramente alcançando nível nacional, ou revistas estrangeiras. As
universidades só a partir da reforma de 1968 assumiram, explicitamente, caráter
científico.
Pode dar uma ideia do que representava esta etapa o Congresso de Arqueologia
para Amadores, organizado pelo autor, no Instituto Anchietano de Pesquisas, em 1966.
Ele reuniu, durante três dias, 43 intelectuais comunitários, vindos de todo o Estado para
apresentar seus trabalhos. Alguns logo foram absorvidos por universidades e aparecem

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na próxima etapa; a maior parte foi se apagando por não alcançar o caráter de ciência que
a arqueologia começou a experimentar e a exigir.
Nesse tempo ainda não havia legislação para defesa dos sítios e materiais
arqueológicos. A primeira legislação é de 1961 e se refere só a cavernas e sambaquis, que
eram, então, furiosamente explorados para produção de cal.
Não havia, nem se ensinava arqueologia nas universidades existentes.
José Proenza Brochado (1969), iniciando o magistério na UFRGS, fez excelente
apresentação do período, baseado no excelente acervo da Biblioteca Municipal de Rio
Grande. Marina Amanda Barth (2013) apresentou muito bem este período em Santa Cruz
do Sul. Para uma visão geral do que acontecia no Brasil pode-se ver Alfredo Mendonça de
Souza (1991) ou André Prous (1992).

Arqueologia científica ou acadêmica


Surge a partir de 1965 nas universidades nascentes, seguindo um modelo
histórico-cultural norte-americano.
Duas equipes se formaram:
A do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), sob a
coordenação de Betty J. Meggers e Clifford Evans, da Smithsonian Institution, Washington,
DC, financiado pelo governo do Brasil e a Smithsonian Institution. O Programa nasceu da
insistência do Prof. José Loureiro Fernandes, catedrático de Antropologia da UFPR, para
treinar jovens brasileiros no estudo dos grupos indígenas cultivadores ceramistas,
especialmente os do grupo linguístico Tupi. Ele já havia trazido anteriormente um
arqueólogo americano para o estudar o homem das cavernas de Minas Gerais e um casal
de franceses para os sambaquis do Paraná e para treinar brasileiros nesta tarefa. O novo
Programa reunia 11 jovens e cobria da Amazônia ao Chui. Na equipe do Rio Grande do Sul
estavam Eurico Th. Miller, de Taquara e José Proenza Brochado, da UFRGS, Porto Alegre.
Seguindo os rigorosos protocolos do Programa, estes dois jovens, promovidos a
arqueólogos, de 1965 a 1971, cobriram nove áreas, estrategicamente distribuídas pelo
Estado.
Os resultados do Programa foram divulgados em 5 volumes de Publicações Avulsas
do Museu Paraense Emílio Goeldi, entre 1967 e 1974.

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O acervo resultante da pesquisa de Eurico Th. Miller deu origem ao Museu


Arqueológico do Rio Grande do Sul (MARSUL), o de José Proenza Brochado ficou na
UFRGS.
A equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas, sob a coordenação de Pedro Ignácio
Schmitz, então professor catedrático de Antropologia na UFRGS, contava com verbas do
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), logo também da FAPERGS
e do CNPq. Sua atividade nasceu da iniciativa do fundador do IPHAN, Dr. Rodrigo Melo de
Andrade buscando cumprir o mandato da Constituição brasileira, que previa o cadastro
geral de todos os sítios arqueológicos do Brasil. Era um programa nacional paralelo ao
anterior e envolvia outros onze jovens promovidos a arqueólogos.
Esta equipe se consolidou a partir do 1º Simpósio de Arqueologia da Área do Rio
da Prata, em 1967, no IAP e reunia professores de universidades que se iam constituindo
no Estado: em São Leopoldo, em Porto Alegre, em Caxias do Sul, em Santa Cruz do Sul, em
Ijuí e em Passo Fundo.
Os agentes, nesta etapa, eram jovens professores universitários, ou formados, que
se dispunham a produzir amostras sistemáticas das culturas indígenas em diversas
regiões do Estado não cobertas pelo PRONAPA, mas seguindo basicamente seus
protocolos de pesquisa e contando com o apoio dos coordenadores do primeiro Programa
para as necessárias datações por C14, que eram processadas no Laboratório de
Radiocarbono da Smithsonian Institution. Como estes jovens arqueólogos eram
professores universitários, os levantamentos e escavações eram feitos basicamente nas
férias escolares, durante dois meses por ano. Este programa durou dez anos.
Os resultados eram publicados em revistas, que foram surgindo ou se adaptando
nas instituições dos participantes: Pesquisas, Antropologia no Instituto Anchietano de
Pesquisas; a Revista do CEPA (Centro de Ensino e Pesquisa Arqueológica) em Santa Cruz
do Sul; o Boletim do MARSUL; a revista Véritas na PUCRS.
Os grandes acervos de material e documentação que produziram, permaneceram
nas instituições dos pesquisadores e deram origem a museus universitários.
Em menos de dez anos os dois programas fizeram a cobertura básica da história
indígena do Estado abrangendo os assentamentos antigos e buscando sua continuidade
nas populações sobreviventes no período colonial. As comunidades locais acompanhavam

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com imenso interesse os trabalhos de campo e os meios de comunicação social abriam


seus espaços para noticiar os resultados.
Concluído o levantamento arqueológico básico do Estado, alguns arqueólogos
gaúchos expandiram suas atividades: a equipe do IAP da UNISINOS para os cerrados do
Brasil Central; a equipe do CEPA da UNISC para Roraima; Eurico Th. Miller, do MARSUL
para o Mato Grosso e Rondônia.
Como os jovens arqueólogos eram professores em universidades novas, criaram
disciplinas de Arqueologia e Antropologia nos cursos de graduação em que atuavam e
logo as transformaram em cursos de Aperfeiçoamento, Especialização e Pós-Graduação
stricto sensu, aumentando seu campo de trabalho e consolidando o setor. Contavam para
isso com abundantes bolsas da FAPERGS e do CNPq. É preciso lembrar que a arqueologia
do Estado nasceu sob influência norte-americana, onde Arqueologia é um campo da
Antropologia.
Depois do Congresso de Amadores de 1966, antes mencionado, realizou-se, no
Instituto Anchietano de Pesquisas, um 1º, um 2º e um 3º Simpósios de Arqueologia da
Área do Rio da Prata (1967, 1968 e 1969) em que os jovens arqueólogos acadêmicos
começaram a apresentar seus resultados. A partir de então, durante seis anos, eles se
reuniram em alguma das universidades participantes (Caxias do Sul, Ijuí, Passo Fundo,
UFRGS, duas vezes na UNISINOS), para apresentar e discutir suas pesquisas e seus
programas de ensino de Antropologia e Arqueologia, que se tornaram disciplinas
obrigatórias em vários cursos. As reuniões terminaram quando, em 1975, se iniciou na
UFRGS o Curso de Especialização em Antropologia, como preâmbulo para um programa
de pós-graduação em sentido estrito. Sua presença cresceu para dentro das Reuniões
Anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), onde criaram um
espaço próprio junto com arqueólogos de outros estados brasileiros.
Mas faltavam doutores no campo. Para suprir a falta geral de doutores para
instalar a pós-graduação, no início da década 1970, o governo militar abriu uma exceção
na constituição permitindo que formados há dez anos, ou com 5 anos de magistério
superior, entre os anos de 1972 e 1976, podessem receber o título de doutor através do
concurso de Livre-docência. Com milhares de novos Livre-docentes doutores, nos mais
diversos campos do conhecimento, a pós-graduação se estabeleceu definitivamente no
Brasil.

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A passagem da década de 1970 para 1980 ficou marcada ainda por outros
acontecimentos. Com as equipes de arqueologia se multiplicando pelo Brasil, em 1980 se
fundou, na Universidade Católica de Goiás, a Sociedade de Arqueologia Brasileira, que teve
como primeiro presidente um gaúcho.
Na década de 1980 foram incorporados à pesquisa também os assentamentos
históricos e urbanos do Brasil colonial e imperial, com intensa atividade ligada às
Reduções Jesuítas de Guaranis e, em menor escala, à colonização portuguesa a partir do
litoral atlântico.
Também surgiram os primeiros projetos de contrato ou de Arqueologia Preventiva
(Itaipu, com Igor Chmyz da UFPR), no começo ainda executados por professores
universitários. Em 1986, uma portaria do CONAMA acoplou esses estudos aos de Meio
Ambiente, união que aumentou o comprometimento e rigidez das avaliações de impacto,
produzido por grandes empreendimentos de geração de energia, mineração,
agroindústria, urbanização, rodovias e ferrovias, que começavam a se multiplicar pelo
território nacional (Caldarelli, 2015).
Na etapa científica ou acadêmica, a Arqueologia criou seu espaço na universidade,
tanto em nível de graduação, como de pós-graduação, mantendo um viés antropológico,
mais cultural ou mais social, ao estilo norte-americano. Nela se colocaram as bases para
uma história indígena, no Estado e no País. A arqueologia mais ligada à Geografia ou
Geologia (Geoarqueologia), trazida por profissionais franceses e desenvolvida em outros
estados conseguiu um espaço melhor apenas na seguinte etapa.
Os amadores foram desaparecendo, suas coleções sendo recolhidas pelas
universidades e o interesse das comunidades, enorme no começo do período, quando
todo o conhecimento era novo, foi diminuindo com a repetição dos mesmos achados e
também a elitização do conhecimento, agora produzido pela Academia.
Finalmente um brevíssimo resumo dos resultados produzidos nesta etapa.
Um primeiro povoamento por populações vivendo da caça e da coleta de produtos
naturais nas áreas mais florestadas da encosta do Planalto Meridional e da beira de
grandes rios, de aproximadamente 10.000 a.C. até alguns séculos de Era. Seus
acampamentos se realizavam em grutas, ou a céu aberto. Além de artefatos, como pontas-
de-projetil, talhadores e raspadores, deixaram muitos restos de seus alimentos, que
permitem caracterizar seu modo de vida. Significativas marcas de sua passagem são as

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gravuras que deixaram em grutas em que tinham morado, ou em blocos rochosos de áreas
pelas quais passaram. Os arqueólogos chamam sua cultura de tradição Umbu. Não há
sobreviventes conhecidos.
Um segundo povoamento, paralelo, por populações vivendo da pesca e da coleta
de moluscos ao longo do litoral atlântico; no Estado a partir de 1.500 anos a.C., em estados
vizinhos a partir de 6.000 anos a.C. Além de grandes acúmulos de restos (sambaquis),
deixaram artefatos típicos como lâminas de machado, anzóis, pequenas esculturas em
pedra (zoolitos) e numerosos sepultamentos, cujos esqueletos caracterizam uma
população biológica própria, independente daquela anterior. Os arqueólogos falam de
sambaquis e cultura sambaquieira. Não se conhecem sobreviventes.
Junto às grandes lagoas do Sudeste do Estado, populações indígenas, que viviam
da pesca, da caça e da coleta de produtos vegetais desde alguns séculos a.C., levantaram
‘cerritos’ (acúmulos de terra) em áreas alagadiças. Se os construtores dos sambaquis têm
origem mais ao norte, os cerritos são platinos. Já no começo de nossa era aprenderam a
fazer simples vasilhas de barro para assar o peixe e os numerosos caranguejos das lagoas;
os arqueólogos denominam esta cerâmica de Tradição Vieira. Como possíveis
sobreviventes são mencionados os charruas e minuanos coloniais. Com o novo conceito
de etnia reapareceram Charruas até em nossos centros urbanos.
Para os campos do Planalto Meridional, a partir de aproximadamente mil anos a.C.,
houve uma expansão, em ondeadas sucessivas, de populações dos cerrados do Brasil
Central (Minas Gerais e Goiás). De caçadores e coletores no campo, com o crescimento dos
bosques de Araucária aprenderam a manejar o novo mato e transformar seu pinhão em
alimento básico, complementando-o com a plantação de alguns cultivos tropicais.
Inicialmente viviam em choupanas a céu aberto, ao redor do século sexto de nossa Era
passaram a construir casas dentro do chão (casas subterrâneas) como adaptação ao frio
nos pinheirais. Junto com suas engenhosas habitações enterradas, ao redor do nono
século de nossa Era, começaram a produzir um paneleiro típico, que os arqueólogos
denominam tradição Taquara/Itararé. Sobreviventes atuais são os índios Kaingang e
Xokleng, do grupo linguístico Macro-Jê, atualmente um dos maiores grupos indígenas do
Brasil.
Sobravam para colonização indígena as matas da encosta do planalto e da beira
dos grandes rios, milenarmente ocupadas por caçadores e coletores da tradição Umbu,

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nesse tempo já de poucos indivíduos em pequenos grupos dispersos. Nesse espaço uma
população agricultora da família linguística Tupi-guarani, deslocando-se do sudoeste da
Amazônia ao longo dos grandes rios da bacia do Rio da Prata, veio levantar suas aldeias
de pequenas casas de troncos e palha. Ela se tornou uma população numerosa que, ao
tempo da Conquista europeia, se calculava um milhão de pessoas. No tempo da Colônia,
ela foi muito disputada por espanhóis e portugueses para manutenção das respectivas
economias agrárias. A apropriação de seu trabalho era feita pela escravização, o serviço
pessoal, a encomienda e a missão religiosa. Os sobreviventes já voltaram a ser numerosos
no Brasil, no Paraguai e na Argentina, poucos no Uruguai.
A arqueologia histórica do período investiu mais intensamente no estudo das
reduções produzidas pelos jesuítas com populações Guarani, no período inicial, no apogeu
e na desestruturação (Carle, 2017). Do primeiro período foram estudadas as reduções de
Jesus-Maria em Candelária (UNISC), de São José da Pedra Escrita em São Pedro do Sul
(PUCRS) e de Candelária do Caazapamini junto ao rio Ijui no Noroeste (UNISINOS). Para
as reduções do período de esplendor (São Miguel, São Luiz, São João, Santo Ângelo) se
realizou um projeto mais amplo congregando pesquisadores de diversas universidades
sob a coordenação do IPHAN. Do período da desestruturação após o Tratado de Limites
de 1750 é preciso lembrar o trabalho da UNISC na Aldeia de São Nicolau em Rio Pardo.
Na arqueologia ligada ao povoamento português vale a pena destacar o trabalho
feito pelo MARSUL e a PUCRS em Santo Antônio da Patrulha e pela FURG em Rio Grande.
A arqueologia do período era voltada ao conhecimento, não primariamente à
preservação de objetos ou restauro de construções como patrimônio nacional. Os
resultados foram publicados em inúmeras teses, dissertações, artigos e comunicações,
cuja citação é impossível no espaço desta comunicação. Na obra coordenada por Arno
Alvarez Kern (1991) pode-se ter um resumo do conhecimento então veiculado.

Arqueologia preventiva das empresas, ou de patrimônio nacional


Especialmente a partir dos Programas de Aceleração do Crescimento – PAC, das
administrações petistas (presidentes Lula e Dilma) aumentaram as atividades da
Arqueologia Preventiva, destinada a identificar e resgatar bens culturais ameaçados ou
atingidos por obras de infraestrutura, urbanismo ou expansão agropastoril, ou
necessitadas de restauro por seu valor histórico ou patrimonial.

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Essas atividades já não se realizam, predominantemente, em nome de


universidades, como atividade acadêmica, mas para sua realização se criaram numerosas
pequenas e algumas grandes empresas de Consultoria, que contratam arqueólogos,
obrigados a seguir protocolos padronizados de trabalho. O financiamento, muito mais
volumoso, não é mais da Academia, da FAPERGS e do CNPq, mas dos empreendimentos,
que contratam as obras.
Os resultados são apresentados ao IPHAN sob a forma de relatórios que se
destinam a formar um arquivo digital de todos os sítios e materiais do Brasil, indígenas,
africanos, coloniais, imperiais e até republicanos atingidos pelas obras desses
empreendimentos.
Os acervos materiais resultantes são entregues à guarda de museus e instituições
universitárias locais, também sujeitas a estritas normas de conservação e acesso. Um
gigantesco plano de patrimônio do Conselho Nacional de Arqueologia (CNA) à semelhança
do que hoje se faz nos demais países do mundo.
O objetivo imediato das atividades não é mais a Ciência, nem a Cultura, mas, por
um lado, a preservação de materiais e da correspondente informação como patrimônio
da Nação e, por outro, o apoio para manutenção e restauro de bens considerados de valor
histórico ou artístico, sejam estes edifícios ou inteiras estruturas urbanas. Em termos de
material, de território e de populações atingidas a abrangência é maior que a do período
científico, porque há necessidades mais variadas e urgentes e também mais recursos
humanos, tecnológicos e financeiros.
Para a formação desses novos profissionais surgiram, nas duas últimas décadas,
13 cursos de bacharelado em Arqueologia, de preferência em universidades públicas
espalhadas pelo território nacional. Estes cursos evoluíram rapidamente instalando
também seus programas de pós-graduação em nível de Mestrado e Doutorado. No Rio
Grande do Sul existem hoje semelhantes cursos na FURG, em Rio Grande e na UFPEL, em
Pelotas.
A arqueologia se tornou profissão exercida em tempo integral, mas o
reconhecimento legal como profissão, apesar de várias tentativas no Congresso Nacional,
ainda não foi alcançado.

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O enfoque cultural e social, herança norte-americana, que marcou fortemente a


Arqueologia do período anterior, foi perdendo seu predomínio para uma arqueologia
voltada à tecnologia, que pode ser de origem francesa ou portuguesa.
As universidades continuam a produção acadêmica independente e dissertações
de Mestrado e teses de Doutorado frequentemente validam trabalhos feitos para
empresas de consultoria. Os enfoques teóricos agora permitem maior variação na
convivência das maneiras de fazer das diferentes etapas.
As revistas se formatizaram e perderam seu caráter informativo para um mercado
interno, mas têm dificuldade em alcançar os interesses, o patamar teórico e a densidade
de produção, necessários para impactar o mercado internacional.
O grande projeto de patrimônio nacional do CNA permitirá que, no futuro, a
arqueologia possa ser feita via internet, sem necessidade de campo. Mas, pelo volume de
informações que vai acumulando, enfrentará logo o problema de seu gerenciamento e as
instituições que recebem a guarda dos materiais, o de sua adequada conservação, manejo
e disponibilização. Além disso, a economia brasileira e a política cultural da Nação
provavelmente ditarão o ritmo futuro.

Arqueologia social, de colaboração com as minorias


A expansão da economia capitalista sobre o território nacional, com imensas
lavouras e campos de criação, empreendimentos de geração de energia hidráulica e eólica,
exploração mineral, extensão da rede rodoviária e ferroviária e a expansão das cidades
impactou fortemente comunidades indígenas, africanas e caboclas. Mas,
simultaneamente, essas comunidades se tornaram conscientes dos direitos que lhes são
assegurados pela Constituição Federal de 1988, e na demarcação de seus territórios
originais precisam de laudos arqueológicos. No reforço de sua cultura e identidade elas
também se podem valer de conhecimento produzido por arqueólogos na interpretação de
elementos materiais de seu passado.
Uma eventual colaboração entre etnias costuma basear-se em valores éticos e no
movimento mundial de ‘descolonização’, que afirma ser a história e seus elementos
materiais remanescentes de exclusiva propriedade da população que a criou, declarando
serem ações colonialistas seu uso e apropriação intelectual por pessoas de outra etnia ou
população. Em países como os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e na Colômbia

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existem experiências avançadas dessa colaboração. No Rio Grande do Sul ela está sendo
tentada com as populações indígenas Guarani e Kaingang e também com populações
quilombolas. As experiências feitas mostram que, se ela é válida e importante, não é de
fácil execução bilateral, sem laivos de dominação.

Considerações
As etapas esboçadas mostram uma trajetória de iniciativas individuais e
institucionais no estudo da história do Homem no Estado usando seus remanescentes
materiais. O Rio Grande do Sul, um espaço afastado dos grandes núcleos urbanos do
Centro, repetiu, em grandes linhas o que neles se fazia, talvez em escala menor e com
nuances regionais. Os centros, por sua vez, se abasteciam de especialistas treinados no
Primeiro Mundo para movimentar o mercado local. Assim se criaram alternâncias nos
interesses e nas explicações dos materiais.
As etapas da trajetória da arqueologia no Estado se realizaram em contextos
específicos:
A primeira responde a um tempo em que a cultura ainda se concentrava
grandemente em colégios mantidos por imigrantes europeus e seus descendentes, nas
localidades em que se haviam fixado; as poucas universidades, criadas por cidadãos
respeitáveis, geralmente profissionais liberais que a ela dedicavam parte de seu tempo,
formavam novos profissionais a sua maneira para as necessidades mais urgentes da
sociedade. Mas um museu, mostrando o mundo, sua evolução e diversidade fazia parte de
qualquer educandário de comunidade.
A segunda etapa está ligada ao surgimento de universidades, formadas por
profissionais do ensino e da pesquisa, que vivem desse emprego, na capital e também em
cidades do interior. É o início do governo militar, nacionalista, com seu lema ‘integrar para
não entregar’, a construção de Brasília e toda a interiorização no território. É também a
reforma universitária (1968) substituindo um modelo europeu por um americano, com
especialistas e pós-graduação em todos os campos.
A terceira etapa responde a um momento de grande expansão capitalista,
acompanhada de grandes empreendimentos em todo o território nacional. Também de
valorização como patrimônio de todo tipo de materiais e modos de fazer tradicionais, do

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espantoso desenvolvimento da informática e ainda de maior controle do Estado sobre as


atividades dos cidadãos.
A quarta etapa tem a ver com a reação de comunidades e minorias étnicas diante
da uniformização da cultura decorrente da globalização, buscando manter sua identidade
e autonomia. Apoiadas em declarações da UNESCO e nos direitos que lhes são
assegurados pela Constituição de 1988 podem aceitar uma colaboração bilateral com
arqueólogos para delimitação de sua terra indígena e leitura de objetos de seu passado
étnico. Embora não seja fácil, essa colaboração pode ser encarada pelos arqueólogos como
um ação humanitária de descolonização.
Em cada uma das etapas predomina um interesse e um enfoque interpretativo, que
podem continuar sobrevivendo com as novas tendências que chegam sucessivamente,
coexistindo na mesma instituição e até no mesmo profissional. No Estado e no Brasil
provavelmente haverá novas etapas, mas são, ainda, imprevisíveis.

Agradecimento
Ao Prof. Dr. Jairo Henrique Rogge pela leitura e sugestões para melhoria do texto.
Referências bibliográficos:

BARTH, M.A. Arqueologia: ação comunitária ou ciência acadêmica? Dissertação


(Mestrado), Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, São Leopoldo, RS, 2013.

BROCHADO, J.P. Histórico das pesquisas arqueológicas no Estado do Rio Grande do Sul.
Iheringia, Antropologia n. 1, 1969.

CALDARELLI, S.B. Arqueologia preventiva: uma disciplina na confluência da arqueologia


pública e da avaliação ambiental. Habitus, v. 13, n.1, p. 5-30, 2015.

CARLE, C.B. Arqueologia histórica brasileira e o estudo missioneiro de 50 anos (1966-


2016). Rev. Arqueologia Pública, v.11, n.1, p. 106-129, 2017.

KERN. A.A. (Org.). Arqueologia pré-histórica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1991.

MENDONÇA DE SOUZA, A. História da Arqueologia Brasileira. Pesquisas, Antropologia n.


46, 1991.

PROUS, A. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. da UNB, 1992.

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PARTE 9

INICIAÇÃO À PESQUISA

O presente Simpósio Temático é destinado aos alunos de graduação que estão


iniciando ou aprimorando pesquisas acadêmicas na área de História e que desejam
debater e trocar experiências e problemas de pesquisa, assim como discutir questões
teóricas e metodológicas. Serão aceitos trabalhos de diferentes temáticas, que serão
agrupados pela proximidade dos temas. Nesse sentido, o objetivo deste ST é proporcionar
um amplo debate de pesquisas tanto de graduados que desejam apresentar seus
Trabalhos de Conclusão de Curso, quanto de graduandos que objetivam apresentar
resultados parciais ou finais de projetos de Iniciação Científica na área de História. Trata-
se, assim, de proporcionar aos jovens pesquisadores um espaço privilegiado de
divulgação de seus trabalhos ou propostas de pesquisas futuras.

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A ESTANCIA DE SAN JAVIER*

Tiara Cristiana Pimentel dos Santos**

A conquista do espaço523 no atual estado do Rio Grande do Sul pelos Espanhois e


Portugueses na América aconteceu com apoio intensivo da igreja católica através de suas
ordens religiosas. O espaço que nos propomos a estudar foi ocupado pelos espanhois
respaldados pelos tratados firmados entre as coroas ibéricas e a igreja, chamado de
Provincia Jesuitica Paraguai.Nosso objeto de pesquisa é a Estância de San Javier, espaço que
fazia parte até 1750 das estâncias das reduções dos 30 povos da Província Jesuítica do
Paraguai524, criada em 1604 pelos espanhóis, também chamado das vacarias dos pinhais
e hoje o noroeste do estado ocupado pelos processos de imigração no final do século XIX.
Assim muitas conquistas e permanência dos territórios de posse dos espanhóis
pode ser atribuído ao povo Guarani, que lutaram para defender o interesse de seu povo,
dos Jesuítas e da coroa espanhola. Para isto os jesuítas utilizaram-se muito do
cristianismo, da persistência e da apropriação da cultura dos povos originários em
especial dos guaranis. Os caciques aprenderam a falar a língua espanhola e os jesuítas a
língua guarani, este foi um dos grandes passos para que os caciques passassem a ser os
interlocutores dos jesuítas e dos funcionários da coroa espanhola junto ao seu povo. As
cartas anuas são fontes importantes para que possamos nos apropriar desta comunicação
constante entre os jesuítas da companhia de jesus com seus superiores na Espanha, onde
relataram frequentemente estas interlocuções, e também os documentos que estão no
Archivo General de La Nación de Buenos Aires.

* Estamos utilizando o nome da Estância de San Javier mantendo, portanto a grafia original em espanhol.
** Graduanda de Ciências Humanas, Bolsista FAPERGS, membro do grupo de Pesquisa Relações de Fronteira:

História, Política e Cultura na tríplice fronteira Brasil, Argentina, Uruguai.


523 O que vale para a história da conquista e ocupação do espaço na América espanhola, pode-se dizer que

vale também para a América portuguesa. E é nesse quadro comum que se costumam incluir as “memoráveis
arrancadas dos bandeirantes para oeste que, com evidentes objetivos econômicos [...] asseguraram, a
extraordinária expansão geográfica do Brasil. (MOREIRA, 2002, p. 24)
524 “La Provincia jesuítica del Paraguay, conocida también por el nombre de “Paracuaria”, fue creada en el

año 1604 y comprendía lo que actualmente es Chile, Argentina, Uruguay, Paraguay y partes de Bolivia y
Brasil.” PALACIOS; ZOFFOLI, 1991, p. 57-58.

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As reduções criadas pelos jesuítas foram “submetido a direitos e deveres,


possuindo seus regulamentos próprios, e seus superiores das Missões, sendo tratados
pelos governadores e mesmo pelos órgãos da administração metropolitana como uma
entidade particular” (KERN, 1979, p. 389). Podemos pensar que estas questões
proporcionavam autonomia a província, porém sabemos muito bem que os funcionários
da coroa espanhola desempenhavam papel de fiscais, portanto a autonomia era limitada,
porque tudo dependia da diplomacia que as ordens religiosas tinham com a coroa
espanhola.
A redução jesuítica de San Javier foi fundada em 1627, na margem esquerda do rio
Uruguai. O “povo de S. Francisco Xavier está situado n’uma elevação que desta um quarto
de légua do Uruguay, e seu porto do mesmo rio está mais de meia légua”. (GAY, 1863,
p.344). “Dalí continuou a subir o rio Uruguai até o trato de terra existentes entre a
desembocadura do Piratiní e a cidade de S. Borja, onde foi fundar a segunda redução rio-
grandense, denominada “S. Fransico-xavier”, em homenagem a seu fautor Francisco de Céspedes”.
(PORTO, 1937, p.36)
A redução de São Francisco Javier pertencia a região do tape, que mais tarde devido
as incursões dos portugueses e aos conflitos com outros povos não reduzidos obrigou
passar para o território do lado direito do rio Uruguai hoje Argentina.
Assim a redução passa para a margem direita do rio já com um grande quantitativo
de famílias, e rebanho de gado, e a estancia ficou situada a margem esquerda, tendo um
quantitativo superior de gado do que outras reduções dos trinta povos. Abaixo
apresentamos dois documentos do Archivo General de La Nacion, um de 1728 e outro de
1733, que trata do quantitativo de povos originários das doutrinas do rio Uruguai.

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Figura 1 - Catálogo de numeração anual das doutrinas do rio Uruguai no ano de 1728

Fonte: División Colonia Seccion Gobierno Compañia de Jesus 1723-1734. Leg. Nº 4; 411; S. IX 6-9-6. Doc.
451. Buenos Aires: Archivo General de la Nación.

O documento que retrata as doutrinas do rio Uruguai do ano de 1728, 99 anos


após sua fundação pelos jesuítas e guaranis nos mostra que a Redução de San Javier tinha
830 famílias, 10 viúvos, 156 viúvas, 994 meninos, 956 meninas, 203 batizados, 45
casados, 49 diferidos adultos, 91 diferidos parvulos, 4592 comungantes e 3776 almas. Os
dados nos permitem interpretar que era uma redução que ocupa o 10º lugar das 15
reduções trazidas pelo documento podendo ser considerada como uma redução de
tamanho pequeno.
O grande quantitativo de viúvas o que nos leva a pensar a existência constante de
conflitos entre os reduzidos e outros povos originários ou conflitos com Espanhóis e
Portugueses. Embora os números apontam para uma redução de tamanho pequeno em
relação a outras reduções apresentadas neste documento o quantitativo de 8368 entre o
comungantes e almas é muito representativo até para os dias atuais, pois o Rio Grande do
Sul em 2016 possui 314 municípios com um número menor de população que a Redução
de São Javier em 1728.

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Figura 2 - Catálogo de numeração anual das doutrinas do rio Uruguai no ano de 1733

Fonte: División Colonia Seccion Gobierno Compañia de Jesus 1723-1734. Leg. Nº 4; 411; S. IX 6-9-6. Doc.
177. Buenos Aires: Archivo General de la Nación.

Já este outro documento de 1733, 104 anos depois de sua fundação a redução de
San Francisco Javier possuía 831 famílias, 28 viúvos, 174 viúvas, 884 meninos, 915
meninas, 132 batizados, 16 casados, 172 diferidos adultos, 289 diferidos parvulos, 4834
comungantes e 3663 almas, ocupando 12º lugar das 15 reduções, em um total 8497
pessoas, comparando com a anterior houve um aumento da população.
Através desta tabela consegue-se interpretar, o quantitativo de pessoas que
viviam na redução de San Francisco Javier, no ano de 1728 a 1733, dessa forma pode-se
destacar que o quantitativo populacional é razoavelmente pequeno, comparado com
outras reduções. O gráfico abaixo permite ver com clareza estes dados.
Assim como as reduções eram basicamente formada por famílias guaranis, povo
esse que era semi nômade, e que por consequência já tinham habilidades de agricultura.
“O povo de S. Xavier tinha naquele lado uma pequena estancia o campo do serro pellado
nas margens do Juhi Grande” ( GAY, 1863, p. 58) era necessário manter este espaço da
estância para criação do gado e também para que fosse extraída a erva mate das matas.

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Os ataques sempre foram constantes tanto nas reduções como nas Estâncias de
outros povos originários que ocupavam, ou faziam fronteira. Até a colheita da erva mate,
se tornava algo perigoso para os guaranis tanto de S, Javier quanto os de Santo Ângelo,
outros povos e até mesmos guaranis não reduzidos Tupys ficavam escondidos na mata e
quando podiam atacavam, os que não conseguiam escapar os mesmos matavam e comiam
a sua carne. “Os índios selvagens aparecem frequentemente nesses arredores, e
continuam matando guaranis e brancos quando vão colher mate nas florestas vizinhas.” (
Saint-Hilaire, 1987, p. 314), Devemos levar em consideração que Saint-Hilaire passou por
esta região vários anos após o Tratado de Madri, o que nos leva a crer que isto acontecia
no passado com maior intensidade ainda.

Figura 3 - Povos que faziam parte da província jesuítica do Paraguai e Estância de San Javier

Fonte: MAEDER, Ernesto; GUTIERREZ, Ramón. Atlas territorial y urbano de las misiones jesuíticas de
guaraníes. Argentina, Paraguay y Brasil.Sevilla: Instituto Andaluz del Património Histórico, 2009, p.26

O mapa acima nos mostra a distribuição do espaço ocupado pelos jesuitas e


espanhois quando da criação das suas reduções e também das suas estâncias, porém

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mesmo tendo esta estruturação das reduções e de seus espaços enquanto estâncias não
impediram que “as frentes de expansão espanhola e portuguesa. Paulistas de um lado e
paraguaios de outro caçavam o indígena para transforma-lo em mão de obra, mesmo
sabendo que com isto se desarticulava todas a sua cultura e se decretava o genocídio das
tribos” (KERN, 1982, p. 63).
É importante lembrar aqui que a estância de San Javier ficava na margem esquerda
do rio Uruguai e sua redução na margem direita, com isto podemos afirmar que o rio
Uruguai neste momento não é uma fronteira, mas sim uma ligação entre a redução e a
estância, bem como importante meio para realizar o transporte da produção da estância
e a comunicação entre outros povoados como Yapeyu até mesmo de acesso ao rio da prata
e posteriormente ao oceano atlântico.
A criação da estancia contribui para que a redução se consolidasse. É importante
destacar que dentro das estâncias ou até mesmo nas imediações das reduções os guaranis
praticavam a agricultura e pesca focando sempre uma produção para a subsistência.
A estância de S. Javier assim como as outras, estâncias, foram formadas
principalmente por guaranis semi-nômades, desse modo os mesmos já cultivavam
algumas variedades de cereais e leguminosos, e continuaram a ser incentivados a plantar
lavouras nas chácaras perto das reduções e também em espaços destinados a plantações
nas estâncias. “Os indígenas Guaranis estavam acostumados a uma produção agrícola
apenas suficiente para o seu consumo imediato. Assim não podiam compreender o tipo
de economia acumulativa e de intensa atividade da mão-de-obra dos
encomendeiros.”(KERN, 1982 p, 75), os povos reduzidos continuaram e ampliaram suas
plantações agora com um olhar do jesuíta e dos funcionários da coroa espanhola, e o que
era produzido a mais do que o necessário era comercializado entre as reduções e também
enviado este excedente para a Espanha.

Todos os guaranis, desde os sete anos de idade, eram agricultores.


Sabendo plantar, todos se sustentavam em qualquer eventualidade, já
que na terra missioneira sobrava fertilidade e bom clima. Em 150 anos de
Redução não foi possível introduzir, segundo insistentes recomendações
dos superiores provinciais, o sistema europeu de cada família viver de
sua roça particular (“abambaé”), onde se ocupavam, toda a semana, os
adolescentes e crianças, auxiliados, aos sábados e segundas-feiras, pelos
pais, mas separados deles. Quatro dias por semana, na devida época do
ano, trabalhavam os casados, obrigatoriamente, em sua roça particular.
Mas eles, pelo inveterado costume de tudo ter e fazer em comum,

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recorriam ao sistema de muxirão (ou mutirão), unindo-se várias famílias,


para fazer sucessivamente todas as roças particulares do grupo. No fim
do ano principiavam as colheitas de milho, abóbora, batata doce, aipim,
etc. com a diminuição do trabalho agrícola, reabriram todas as oficinas. .
(BRUXEL, 1978, p.92-93)

Nestas plantações existiam, duas divisões, a familiar e a comunitária, estas


divisões já existiam antes da chegada dos jesuítas, que continuaram a implementar desta
maneira, porém, pensavam sempre na maior produção possível, com dois interesses
claros, um de subsistência da redução e outro de acumulação, para poder ter estes
produtos excedentes como moeda de troca ou até mesmo de venda. Quando o autor
afirma todos os guaranis eram agricultores devemos ponderar que “os filhos dos caciques,
iam à escola de primeiras letras, outros às aulas de canto, música e dança, ou às oficinas,
enquanto a grande maioria trabalhava nas roças comuns” com isto podemos afirmar o
tratamento dado pelos jesuítas aos filhos dos caciques era diferenciado, portanto mostra
claro a formação de uma elite guarani, isto pode ser atestado através de documentos que
estão no Archivo General de La Nación de Buenos Aires escritos em espanhol onde os
caciques fazem suas ponderações sobre vários acontecimentos dentro das reduções.

Os índios, embora pudessem, de direito, estender sua propriedade


particular a outros bens, como bois e cavalos, não tinham interesse em
mantê-los. Por isso a administração de tais bens estavam em mãos do
cabildo, que distribuía os serviços comunitários, de acordo com as
aptidões de cada um. (BRUXEL, 1978, p. 125)

Os povos reduzidos seguiram com suas plantações caça e pesca deixando de ser
nômades, mas seguindo com sua agricultura, de subsistência que geralmente, ficava nos
fundos das casas dentro das estancias. Ou seja, sendo lavouras comunitárias, onde
trabalhava-se e, grupos, dificultando a implementação da propriedade particular, de
modelo Europeu. Assim o modo econômico que foi implementado nas missões, não é de
total mercantilista, mas sim, tendo uma base europeia, pois do mesmo modo como os
povos que ali viviam tinham sua propriedade de certo modo particular que visava os
lucros, os mesmos tinham também a propriedade que por assim dizer era de todos, onde
todas as famílias tinha acesso a essas terras e a produção que se fazia dentro delas, assim
também facilitava o controle dos nativos que trabalhavam nas missões. O indígena

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plantava, e todos ajudavam e cada um poderia levar para si o produto que estava sendo
colhido, sendo lavouras de economia solidaria e familiares.

As reduções não podiam sustentar-se apenas com caça e pesca, mel e


frutas silvestres. Para alimentar tanta gente em área tão limitada, era
necessário empenhar todas as energias no trabalho agrícola bem
organizado. O trabalho sério e disciplinado era absolutamente
indispensável, já como meio de subsistência, já como método de
educação. (BRUXEL, 1978, p.92)

A necessidade de ampliação do trabalho dos reduzidos de forma mais intensa era


uma proposta dos jesuítas, pois sua forma de educar estava presente em todas as
atividades dentro das reduções e das estâncias, e uma delas fica muito clara é a
implementação da disciplina e competição como método de educação em todos os todos
os espaços do cotidiano das reduções, com um único sentido de atrai-los ainda mais para
o trabalho com isto aumentar a produção. “Cada redução possui uma ou várias estâncias,
espécie de fazendas ou pastagens em que o gado vive mais ou menos em liberdade”. (
HAUBERT, 1990, p. 209)
Mesmo tendo boas colheitas em suas lavouras, a principal forma de economia e
alimentação era o gado bovino, a criação de equinos e mulas muito usados no transporte
individual e de carga, as mulas foram muito utilizadas em locais de difícil acesso.

Em 1555 chegavam a Assunção, por via terrestre, as primeiras vacas,


procedentes de São Vicente (São Paulo, Brasil). O cavalo já entra em 1537,
quando os moradores da primeira Buenos Aires fundaram Assunção. O
gado vacum, prodigiosamente multiplicado, foi levado para o sul pelos
fundadores de Corrientes, Santa Fé e da segunda Buenos Aires (1580).As
reduções fundadas em 1610 em diante, iniciaram logo a criação de gado
vacum, já para abastecimento de carne, já para o cultivo da roça, onde o
trabalho de boi era indispensável. Para as Reduções do norte o gado terá
vindo de assunção, enquanto Corrientes o fornecia as reduções do sul. Em
1634, por ordem do padre provincial Pedro Homero, o P. Cristóvão de
Mendoza trouxe para a margem oriental do rio Uruguai 1500 vacas ( 100
para cada redução). Assim, o gado vacum, já numeroso em ambas as
margens do rio Paraná, também se expandia rapidamente em terras do
atual Rio Grande do Sul. (BRUXEL, 1978, p.115)

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As “vacarias foram os núcleos por excelência da concentração e do


desenvolvimento inicial do gado, que se procriou espontaneamente, favorecido pelas
condições de pastagens, mananciais e proteção dos rios”. (PANIÁGUA, 2013, p. 38), É
importante aqui entender que as estâncias foram criadas devido à dificuldade que os
povos reducionais tinham em reunir o gado e conduzir até as reduções para o abate.

Foi dentro desse contexto inicial de dificuldade para o recolhimento e o


transporte do gado das vacarias para essa redução, que emergiram as
primeiras estâncias yapeuanas na campanha era preciso encurtar as
distâncias com locais permanentes que facilitassem essa atividade com o
gado e garantissem o abastecimento desse povo. (PANIÁGUA, 2013, p. 40)

Podemos afirmar que embora a citação acima indique que o modo de criação da
estância de Yapeyu se deu desta maneira, a criação das outras estâncias dos povos
missioneiros se deram devido aos mesmos problemas enfrentados por Yapeyu com
referência a necessidade de ter o gado em um lugar mais concentrado.

Entretanto, as atividades econômicas relacionadas ao gado a á erva-mate


podiam estender-se ainda mais longe, desde os vales dos rios Negro,
Jaguarão e Jacuí, e os campos de vacaria, ao sul e a o leste, chegando
mesmo até o salto das sete quedas, ao norte, após a retirada em direção a
Assunção das missões do Itatim.(KERN, 1982, p. 13)

A localização da estancia de San Francisco Javier estava dentro da vacaria dos


Pinhais,
Após alguns anos, atingida a cifra de um milhão de reses, ela poderia
fornecer, anualmente, 300 000 cabeças para o abate. Por suas patrulhas
sabiam os índios que no planalto, entre a Encosta da Serra e os matos do
alto Uruguai, havia um imenso campo, coberto de pinheiros,
impenetrável ao norte, sil e leste. Bastaria, pois abrir uma picada nos
matos do oeste e introduzir o gado. Assim pouco antes de extinguir-se a
Vacaria do Mar, no início do século 18, inaugurava-se a Vacaria dos
Pinhais (...) (BRUXEL, 1978, 116).

Essa vacaria tinha a função de dar subsistência, as estancias, quando as outras


vacarias se dessem por terminada, pois devido ser um lugar de difícil acesso, por ser de
mata fechada, e região montanhosa dificultaria a entrada dos portugueses. Mas como a
vacaria ficou próxima ao planalto central que era próximo a rota portuguesa de captura
de povos nativos para o trabalho escravo, e o gado vacum não era uma criação presa foi
logo, achada pelos portugueses.

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As estruturas desses locais eram aparentemente simples e funcionais, possuindo


capelas, galpões e currais; o trabalho envolvia uma mão-de-obra especializada e constante
nesses estabelecimentos, onde um capataz coordenava o conjunto das atividades
realizadas com o gado, que eram permanentes e variadas durante todo ano; na ocupação,
estavam presentes as famílias dos vaqueiros que pelo tamanho desses locais, não deveria
ser um grupo numeroso; a produtividade expressava-se pela variedade de animais,
viabilizando um comércio expressivo entre as reduções, os ofícios do Paraguai, Santa Fé
e Buenos Aires e os demais povos missioneiros; nestes locais, existiu o cultivo de
pequenas hortas, semelhantes às existentes na redução. A estância colonial missioneira,
portanto, foi um estágio intermediário para a estância capitalista que se consolidou no
séc. XIX. (PANIAGUA, 2013, p. 42, 43)
Os passos eram muito utilizados para travessia tanto por pessoas como também
para passar o gado de um lado para outro do rio, pois com a estância de um lado e a
redução de outro era necessário a utilização destes passos para fazer a ligação mais segura
possível pelo rio Uruguai. O deslocamento do gado a pé seguia alguns princípios de
segurança, pois o mesmo era abatido nas imediações da redução, facilitando assim para
o consumo e para a extração de couro, produção da graxa, sendo o couro e a graxa
produtos que chamaram muito a atenção da coroa espanhola.
São Francisco Xavier por ser um lugar de fácil escoamento de produtos devido as
proximidades do rio Uruguai as reduções mais próximas como a de Santo Ângelo, trazia a
erava mate de carroça até a redução de São F. Javier, e escoava a produção até a capital
Yapeyú. Entre são Francisco Javier e Santo Ângelo, estava concentrado os maiores ervais
naturais, Havia muita diferença entre a erva produzida fora das reduções, , pois o que se
produzia na redução era feito com maior cuidado tirando os talos da erva e triturando
com maior intensidade deixando assim mais fina a ”caa-mini”, desta maneira conseguiam
vender a um preço mais elevado do que a que era produzida pelos espanhóis.

Conclusão
A redução de San Francisco Javier e sua estância não se desenvolveram de maneira
isolada das outras, mas integraram um amplo sistema econômico, executando as ações
determinadas pela coroa espanhola. Os povos reduzidos destinados a estância eram

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encarregado das lidas de campo para manter as ovelhas, o gado vacum, os equinos, as
mulas, além, claro de toda a preocupação com as plantações que ali existiam.
Existia também uma preocupação com a evangelização dos guaranis que estavam
nas estâncias, tanto é que existiam também um espaço de religiosidade, e outros espaços
necessários para manter a estância como fonte de sustentação da redução.

A estancia de San Francisco Javier pode-se dizer que como muitas outras não
serviu apenas para a doutrinação da igreja católica, da mercantilização, e produção de
bens e produtos, mas sim como um espaço de fronteira que teve um papel importante
para a proteção do território espanhol, mesmo não havendo um exército em si formado
dentro das reduções, além desta proteção de fronteira as estancias contribuíam para
movimentar a economia, dos tinta povos, não só com o gado mas com outros animais e
também com algumas plantações.
San Francisco Javier tinha uma grande facilidade para escoamento de suas
produções, pois o rio Uruguai se transformava em um grande facilitador para o
escoamento de seus produtos.
Desde sua criação a estância foi estruturada pelos jesuítas que se utilizavam de
vários métodos para poderem manter sua produção de alimentos e suas criações no
máximo possível de segurança e também a proteção de suas fronteiras com os
portugueses. Duas questões podem ser levadas em contas: a) a estância contribui
fortemente como elemento importante no desenvolvimento econômico da redução, da
província guarani e também com a coroa espanhola, b) a redução e estância como
elemento politico no povoamento do espaço espanhol e do resguardo de suas fronteiras.

Referências bibliográficas:

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Antropologia, vol 15 universidade Católica Asunción, 1992

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Ana Luiza Setti; FELIX Loiva Otero. RS; 200 anos definindo espaços na história nacional.
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PANIAGUA, Edson Romário Monteiro. Fronteiras, violência e criminalidade na região


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comemorativo ao segundo centenario da fundação do Rio Grande do Sul. ( 1737 – 1937)
livraria selback Porto Alegre.1937

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NARRATOLOGIA ENQUANTO HISTORIOGRAFIA – INCURSÕES SOBRE A


NARRATIVA DE SANTIDADE EM CARTAS DE FRANCISCO XAVIER

João Vitor Santos*

A historiadora Sandra Pesavento, nas suas análises sobre o cotejamento da história


com a literatura, destaca que “a literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas
privilegiada, porque lhe dá acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços
e pistas que outras fontes não lhe dariam” (Pesavento, 2006, p.22). Ou seja, é através das
produções e invenções textuais de uma época que se pode acessar o que ficou
convencionando como história cultural, a história do pensamento de um povo ou grupo.
A literatura é algo gestado a partir da constituição narrativa e a forma narrativa é uma
maneira de tecer e conferir sentido ao mundo que nos cerca. Somente contando algo,
narrativizando, que vamos conseguir materializar o pensamento. Motta (2005) detalha:

(...) a forma narrativa de contar as coisas está impregnada pela


narratividade, a qualidade de descrever algo enunciando uma sucessão
de estados de transformação. É a enunciação dos estados de
transformação que organiza o discurso narrativo, que produz
significações e dá sentido às coisas e aos nossos atos. (MOTTA, 2005, p.2)

Assim, a partir de outros estudos (Santos, 2013), compreendo que a constituição


narrativa confere sentido ao que, no jornalismo, se chama de acontecimento. Rodrigues
(1999) chega a elaborar que algo só de fato acontece a partir do instante que é engendrado
por uma constituição narrativa. Deixando de lado o debate acerca da dualidade entre
realidade e ficção, prefiro compreender a narrativa como a constituição de um mundo
possível (LEAL e JÁCOME, 2011), pois é uma das tantas formas possíveis de dar sentido
às coisas e aos nossos atos.
Analisar a narrativa é interessante porquê, na medida em que vai se desfiando o
texto tecido, vai se revelando os sentidos que sustentam a constituição daquele mundo
revelado no discurso narrativo. Essa análise é feita através dos estudos de narratologia.

*Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da


Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos e graduando do curso de História, licenciatura-plena, na
mesma universidade.

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A narratologia é a teoria da narrativa. Abarca também os métodos e os


procedimentos empregados na análise das narrativas humanas. É,
portanto, um campo e um método de análise das práticas culturais. Como
a concebemos aqui, a narratologia é um ramo das ciências humanas que
estuda os sistemas narrativos no seio das sociedades. Dedica-se ao estudo
das relações humanas que produzem sentidos através de expressões
narrativas, sejam elas factuais (jornalismo, história, biografias) ou
ficcionais (contos, filmes, telenovelas, videoclipes, histórias em
quadrinho). Procura entender como os sujeitos sociais constroem os seus
significados através da apreensão, compreensão e expressão narrativa da
realidade. (MOTTA, 2005, p.2).

Logo, infiro que a narratologia pode ser operada com vistas a uma historiografia.
Mas o que uma historiografia baseada nessa metodologia é capaz de revelar? Minha
hipótese é de que analisando textos, narrativas, histórias contadas, seja possível
apreender a constituição de um conceito agenciado por um narrador a partir de sua cadeia
de sentidos. Ou, por outra forma, compreender que mundo o narrador constitui a partir
de sua experiência e como sua narrativa pode funcionar como repertório para a
constituição e compreensão de outros mundos – ou, de outras narrativas. No presente
artigo, minha intenção é testar, experimentar a partir de uma inquietação ainda muito
incipiente, que avanços a narratologia pode proporcionar no seu emprego enquanto
método historiográfico.
Para isso, parto de um conceito constituído e tento observar como ele é forjado por
outro narrador, a partir da materialidade empírica à luz de um questionamento objetivo
e, ainda, ensaio uma reflexão sobre os sentidos produzidos a partir dessa narrativa. Assim,
acolho o conceito de santidade trabalhado por Woodward (1992). Como objeto empírico,
uso as primeiras cartas escritas pelo padre jesuíta Francisco Xavier no início de sua
primeira incursão ao oriente (Xavier, São Francisco. Obras completas. São Paulo: Loyola,
2006).
Manuseando seus escritos, percebo traços da intenção de Xavier em solidificar e
ampliar as obras da Companhia de Jesus, o que é, em última medida, levar o Evangelho, a
mensagem do Cristo, ao mundo. É na leitura dos textos xaverianos que passo a questionar:
não estaria Francisco Xavier forjando seu conceito de santidade a fim de solidificar e
ampliar a fé cristã pelo mundo? Sendo assim: que santidade ele constitui a partir da
narrativa de sua experiência de evangelização no oriente?

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É em busca de indícios que possam me orientar na constituição de uma reflexão


para meus questionamentos que tento operacionalizar a narratologia enquanto método
historiográfico. Ao fim do texto, não espero ter respostas definitivas, mas pistas que me
iluminem sobre a viabilidade ou não do emprego dessa metodologia. Para tanto, o
presente artigo é organizado em cinco movimentos: a reflexão sobre o conceito de
santidade; a figura de Francisco Xavier e a Companhia de Jesus; a significação das cartas
para a Companhia; como o conceito de santidade aparece nas cartas de Xavier e que
efeitos pode provocar; considerações finais.

Santidade
De acordo com Woodward (1992), a santidade é o nível máximo da perfeição
cristã. E, assim, santo pode ser qualquer pessoa cristã que consiga atingir esse nível
máximo (p.16). Mas qual a função do santo? Segundo o autor, por representar o cristão
ideal, a vida do santo passa a ser uma vida modelar para todos aqueles que querem seguir
de forma mais fiel a mensagem de Jesus Cristo. Além disso, é o santo que intercede junto
a Deus, que, segundo a tradição católica, é o único capaz de operar milagres. E, também,
seguindo com a tradição, somente Deus é capaz de revelar quantos santos existiram,
existem e haverá de existir.

O que a Igreja se arroga é a capacidade, divinamente orientada, de


discernir, de tempos em tempos, que essa ou aquela pessoa está entre os
eleitos. O propósito da identificação desses santos, homens e mulheres, é
apresentá-los aos fies para emulação. É nesse sentido que a ‘Igreja faz
santos’. (WOODWARD, 1992. p.17)

Logo, a santificação é uma atividade eclesial e essa santificação é conferira ao


indivíduo através de um processo, orientado pelos ritos do Direito Canônico da Igreja
Católica Apostólica Romana, denominado canonização. O processo se encerra com a lavra
do chefe da Igreja, o papa.

Canonizar significa declarar que uma pessoa é digna de culto público


universal. A canonização se dá através de uma declaração do papa de que
uma pessoa está certamente com Deus. Por causa dessa certeza as
pessoas podem pedir ao santo que interceda em seu favor. O nome do
santo é inserido na lista de santos da Igreja. (WOODWARD,1992. p.17)

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Tal processo é baseado na história de vida do candidato a santo, e, assim, para


tornar alguém santo e crer nele, é preciso conhecer sua história. Observe como o processo
de canonização já constitui uma emulduração narrativa sobre o indivíduo. “Na verdade,
não seria exagero dizer que as pessoas são as suas histórias. Desse ponto de vista, fazer
santos é um processo pelo qual uma vida é transformada em texto” (WOODWARD,
1992p.17-18). Mas para serem santos, os cristãos precisam terem em suas vidas “a
história e a fé, a biografia e as ideiais, o temporal e o transcendental” misturado e fundido.
(WOODWARD, 1992, p.18). Isso é provado através da narrativa da vida do candidato a
santificação.
O Concílio Vaticano II (Documentos del Vaticano II, 1968), determina que a
santidade é para qualquer um e não para uns poucos escolhidos. Entretanto, para ter uma
vida considerada modelar cristã, o indivíduo precisa corresponder a requisitos que
legitimam e tipificam essa vida . Pois, do contrário, santos e não santos estariam todos
num mesmo nível e o conceito de vida modelar estaria disperso na massa de fies. Ao longo
de toda a história do cristianismo, a veneração e ou culto a santos foi motivo de disputas
e conflitos internos. Aqui, não cabe analisar e tão pouco refletir a partir dos conceitos
teológicos acerca dos santos. Basta compreender o conceito de santo como o cristão
modelar, aquele que está junto de Deus e é capaz de interceder junto a Ele pelos demais.
A narrativa de santificação vai se constituindo ao longo do processo de
canonização. Assim, é importante que observamos como a narrativa de vida do candidato
a santo vai respondendo alguns protocolos para que essa seja conferida como de fato uma
história de vida do cristão modelar. Woodward explica que, depois de morto, é preciso
deixar que a reputação do candidato a santo amadureça (p.23). É deixar com que a vida
passe a ser reconhecida e referenciada entre os demais cristãos. “Um santo, na tradição
cristã, é alguém cuja santidade é reconhecida como excepcional por outros cristãos”
(p.50). Se essas narrativas persistirem, por cinco anos, o bispo local pode pleitear a
abertura de um processo canônico (p.23). Já há uma narrativização sobre a santidade e
esse processo se inicia com o objetivo, arrogado pela Igreja, de outorgar tal vida como
modelar ou não.
Entretanto, a Igreja nem sempre chancela esse reconhecimento da comunidade
cristã. Há casos em que as autoridades eclesiais reconhecem parte da narrativa de

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santificação. Cria-se assim níveis de vida modelar cristã. São etapas, previstas pelo
próprio Direito Canônico, que o indivíduo vai alcançando até que possa ter sua narrativa
de vida considerada plenamente modelar (segundo regulamentação apostólica, quando o
processo se inicia, o indivíduo é servo de Deus, depois, cumpridas novas etapas, passa a
venerável, depois beato, para só então chegar a santo).
Caberá a um postulador da causa a tarefa de reorganizar essa narrativa de vida
para ser contada com vistas a canonização. Depois, é requerida a análise dessa história de
vida afim de aferir martírio e as virtudes do candidato. Ao cumprir essa tapa, o servo de
Deus passa a ser considerado mártir, e muitos não passam dessa fase. “Mártires são
pessoas que morrem em defesa da verdade da fé e da moral cristã” (p.46). Não pretendo
aqui esmiuçar os protocolos do processo de canonização, que é complexo e compreende
questões teológicas e análises cientificas para a comprovação de milagres. Por hora,
interessa evidenciar que existem padrões para uma narrativa ser considerada de
santidade. Há outras formas de vida cristão que são modelares, mas o grau máximo é
mesmo a santidade.
Do ponto de vista da narratologia, cabe ressaltar que são histórias contadas, e
também estruturadas, com comprovações teológicas e científicas, a fim de conferir a essa
narrativa um grau de narrativa de santidade. Observe como há a vida cristã e a forma que
essa história vai sendo narrativizada, primeiramente entre os próprios cristãos de seu
núcleo. Conforme essa narrativa vai sendo estruturada, a história de vida passa a atingir
graus de modelo de vida cristã. Seguindo na lógica da narratologia: há o acontecimento, a
vida do cristão; a narrativa dessa vida, reconhecimento das virtudes e martírio; a outorga
institucional da narrativa de vida modelar cristã, o processo de canonização.

Francisco Xavier e a Companhia de Jesus

Francisco Xavier nasceu em 1506 no Reino de Navarra, no norte da Península


Ibérica. Era o mais jovem de uma família aristocrática. Em 1512, tropas castelhanas e
aragonesas invadem Navarra e a família de Francisco se coloca como resistente, mas o
castelo dos Xavier acaba dominado. O pai morre quando o menino tem ainda nove anos e
a mãe decide que o filho precisa estudar e não servir a forças militares. Ela evita colocar
Francisco nas universidades dos invasores e por isso, aos 14 anos, ele vai para Paris,

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estudar no Colégio Santa Bárbara, onde fica até se preparar para a admissão na
universidade. É ainda na capital francesa que completa os estudos em literatura, filosofia
e humanidades e se torna professor de filosofia no Colégio de Beauvais. Paiva (1984)
ainda destaca que o Francisco universitário era falante, inteligente, tinha um belo porte e
era dado a práticas esportivas (p.10-12).
O período de vida universitária em Paris coincidi com o surgimento do
luteranismo. Além disso, política e culturalmente a Europa fervilhava em decorrência do
período de navegações e expansões territoriais.

Eram dias de gigantesca fermentação religiosa, social, política. O ciclo das


grandes navegações levara os portugueses e espanhóis a todos os
oceanos da terra, que, em algumas décadas apenas, parecera aumentar
sem medida os seus limites. A Reforma Protestante produzia igrejas
novas, e a reforma católica caminhava, ainda sem muita força central
coordenadora, para lançar a Igreja numa outra fase. (PAIVA, 1984. p. 13)

A Páscoa de 1528 se aproximava enquanto Francisco se preparava para prestar


exame para o título de mestre. É nesse período que conhece Inácio de Loyola, um
estudante de meia-idade de origem basca. Este provocara grande agitação no Colégio
Santa Bárbara por influenciar um grupo a deixar seus bens e se mudar para albergues. Ao
grupo, teria ministrado um tipo de oração denominado Exercícios Espirituais. “O aspecto
pobre de Inácio, o fato de mancar, consequência da bala de canhão em Pamplona, e os
acontecimentos ruidosos, afastaram dele o brilhante, simpático e esportivo Francisco”
(Paiva, 1984. p. 15). Mas os dois acabaram se aproximando através de outros amigos e
pela efervescente disputa que o luteranismo provocava. “Mestre Francisco era leal
bastante para reconhecer sua dívida com Loyola, que lhe arranjava bons alunos” (p.16).
Assim, “mestre Francisco começou a ter olhos mais compreensivos sobre o estudante
quarentão” (p.16).
Em 15 de agosto de 1534, Inácio, juntamente com outros estudantes,
o francês Pedro Fabro, os espanhóis Francisco Xavier, Alfonso Salmerón, Diego Laynez,
e Nicolau de Bobadilla e o português Simão Rodrigues, funda a Companhia de Jesus (Leite,
1938). É numa capela chamada “dos mártires”, fora dos muros de Paris, que fazem seus
votos a Deus de pobreza e castidade e de peregrinarem até a Terra Santa. “Todos
decidiram viverem apoiando-se fraternalmente, servindo aos pobres nos hospitais, e

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concluindo seus estudos” (Paiva, 1984. p 18). Todos praticam os Exercícios Espirituais
orientados por Inácio e, em 1535 conseguem mais três adesões – Cláudio Jaio, Pascal
Broet e João Codure. No ano seguinte, saem da França, à pé, para atingir a Terra Santa.
Porém, ainda é um período muito conturbado de guerras e revolução e, como no
período Medieval das Cruzadas, chegar à Terra Santa poderia lhes custar a própria vida.

Na Itália, enquanto serviam aos doentes nos precários depósitos de


doentes que eram os hospitais da época, realizavam pregações ao povo,
ou davam os Exercícios [Espirituais] a algumas pessoas, tentaram
atravessar o Mediterrâneo rumo à Terra Santa. E foi então que, diante da
impossibilidade de passarem à Jerusalém, amadureceu a decisão de se
colocar à disposição do papa. (PAIVA, 1984. p.19).

Foi em 1537 que todos os demais do grupo, entre eles Inácio e Xavier, foram
ordenados. Já à serviço do sumo pontífice, em 1538, se lançaram ao desafio de
recristianizar Roma.

Aos poucos tomou forma a ideia de constituírem uma Ordem à serviço da


Igreja de Cristo, que recebesse do papa as missões entre os povos cristãos
e não-cristãos. O papa [Paulo III] aceitou a oferta. Em 3 de setembro de
1539 confirmou oralmente a Companhia. A nova ordem continuava
conquistando novas adesões. E todos os lados pediam seus serviços. A
renovação católica começava, e a onda protestante refluía. As descobertas
dos portugueses e espanhóis eram também novos campos de possível
apostolado. O embaixador do Reino de Portugal queria pelo menos “dois
companheiros” para a cristianização na distante e fabulosa Índia. (...) Só
havia um jesuíta livre de missões: o secretário da Companhia, Francisco
Xavier (PAIVA, 1984. p. 20-21).

Assim, em março de 1540, Xavier vai de Roma para Lisboa e se coloca à serviço da
corte portuguesa. De lá, parte em sua missão para as Índias, começando sua grande
incursão pelo Oriente. Embarca em 1541, aos 35 anos. Antes do destino final, ainda param
em Moçambique, em janeiro de 1542, de onde escreve uma das primeiras cartas aos
companheiros em Roma. Chegam na Índia em maio de 1542, em Goa, na costa do Mar da
Arábia (Baptista, Francisco de Sales. Apresentação. In: Xavier, São Francisco. Obras
Completas. São Paulo: Loyola, 2006). Ele ainda vai percorrer a Índia, chegar ao Japão e
morre na iminência de entrar na China. Porém, no presente artigo, resigno-me a análise

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das primeiras cartas que escreve na viagem e a sua chegada em Goa. Vale ressaltar que
Xavier não foi o primeiro sacerdote a chegar na Índia.

Quando ele chegou à Índia, já o sol do catolicismo brilhava alto, no céu da


Ásia. Frades de S. Francisco, dominicanos, padres seculares, capitães e
comerciantes de alma aberta ao ideal cristão, tinham-se espalhado ao
longo da costa, desde Ormuz ao canal de Singapura, e mais além. Foram
eles que fundaram igrejas, instituíram misericórdias e ergueram
hospitais. (MARTINS, Mario. Introdução Geral. In: XAVIER, São Francisco.
Obras Completas. São Paulo: Loyola, 2006.p.18-19)

As cartas
Desde a função da Companhia e as primeiras missões dos jesuítas, as cartas
tiveram papel fundamental na comunicação, como de praxe ocorria à época (Leite, 1938).
Entretanto, para a Companhia, as cartas tinham um uso que vai além de um meio de
comunicação. “Sob a influência do padre Ignácio a Companhia, desde os primeiros anos,
utilizou a escrita como forma predominante de comunicação, ação e registro.” (Londoño
2002). Londoño analisa que as cartas também não se prestavam apenas como uma forma
de controle sob quem estava em missão.

Elas seriam recolhidas e enviadas à Europa constituindo textos


diferenciados, produzidos como parte de um projeto missionário que
estava sendo construído e para o qual o poder sempre foi uma referência
fundamental. E nessa construção da missão, a escrita cumpriu um papel
estratégico. (LONDOÑO, 2002).

Ou seja, os escritos tinham duas funções básicas: 1) comunicar aos superiores o


andamento da missão, bem como pedir apoio e aporte dos demais e 2) constituir um
projeto missionário que seria capaz, além de documentar a incursão, animar e mobilizar
novos membros da ordem para que assumissem seu papel junto à Companhia, colocando-
se também em missão. Londoño destaca que

Sendo a diversidade linguística um obstáculo, se utilizava o latim,


mantendo as línguas ditas "vulgares" na articulação jesuítica do universal
e do particular. Tudo isto para garantir a função das cartas: consolar e
edificar, dando a conhecer as obras feitas em nome de Deus, "Para que lo
de uma província se sepa em outra" (675). Escrever para que outros
lessem, copiassem, difundissem e guardassem. (LONDOÑO, 2002).

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Observe como se dá a constituição narrativa numa carta: algo acontece e afeta


alguém, que organiza e dota de sentido esse acontecimento através da lógica narrativa
que, aqui, no caso, tem a materialidade num texto de carta. A forma como os jesuítas
observavam a missão e os acontecimentos que se desenrolavam ao longo dela eram
narrativizadas com perspectivas documentais. Entretanto, é importante que se tenha em
mente que, ao narrar, conferir sentido a um fato ou acontecimento qualquer que se dê em
missão, o narrador terá em perspectiva sempre as funções básicas das cartas para a
Companhia. Além disso, jesuítas integram uma ordem religiosa de caráter hierárquico.
Isso quer dizer que não há espaços para escritos públicos que contradigam os princípios
e ideais da missão e da própria Companhia. Logo, “qualquer notícia deveria primeiro
edificar, e para conseguir a consolação nada melhor que mostrar os avanços da glória
divina nas obras e ações apostólicas dos padres e irmãos”.
É possível acreditar que tais acontecimentos que pusessem em cheque a função
das cartas e os princípios da Ordem sequer fossem escritos, contados ou registrados. Não
creio que não houvesse insurgências – embora não tenha provas documentais de que
houvesse. No entanto, dentro da lógica da narrativa, é possível que os narradores sequer
apreendessem quaisquer acontecimentos que fossem no sentido contrário. Como tinham
essas orientações bem assimiladas, é possível que sequer conferissem maiores sentidos
aos acontecimentos que não fossem contribuir para edificação da missão. E, se um
acontecimento não é narrativizado, não lhe é conferido sentido e sua existência passa a
ser questionada – não é que de fato não tenha acontecido, mas não houve uma narrativa
que o fixasse num lugar e tempo. “Escrevendo para serem lidos por muitos outros, os
padres deveriam ter a consciência de que estavam produzindo um texto para ser
interpretado e lembrado”.
O que também fica claro na análise de Londoño é que o sistema de informação que
se desenvolvia através das correspondências dentro da Companhia de Jesus servia como
suporte para decisões seguindo os princípios inacianos de hierarquia e verticalidade. Na
prática, o que faziam era “informar a partir da base nas cartas periódicas. Reunir registros
e intercambiar opiniões à procura de uma decisão. Comunicar por escrito a decisão a
partir do governo geral. Acatar e executar a decisão nas instâncias”.
Superiores, provinciais e o governo geral, precisavam de informações e
notícias para tomar decisões relativas ao envio de padres, à abertura de

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residências, nomeação de superiores, procura de auxílio de nobres e


poderosos, e em muitos casos, correção de desvios e abusos. (LONDOÑO,
2002).

Assim, com vistas a narratividade, compreendo as cartas da Companhia de Jesus


como produções narrativas. Há a figura do narrador, aquele que dota o acontecimento de
sentido e o inscreve numa lógica espacial e temporal, tomando seu lugar numa cadeia de
sentidos. E tal narrativa é fruto de sentidos agenciados – e até orientados – pelos discursos
(Foucault, 1996) determinados pelas perspectivas – e missão – da Companhia de Jesus.

Os escritos xaverianos
Como parte da Companhia de Jesus, Francisco Xavier não estava alheio a essas
afetações e, logo, tais discursos também agenciavam as narrativas que produzia em seus
escritos. “Francisco Xavier fez também das letras o seu principal meio de comunicação em
relação aos companheiros que ficaram na Europa e com os outros missionários que
estavam se espalhando pela Ásia” (Londoño, 2002). Sob condições adversas no oriente,
enquanto incursionava pelo novo continente, pedia até mesmo que diversas cópias de
suas cartas fossem feitas.

Partindo para tão longe, Francisco Xavier queria se manter a par do que
acontecia em Goa tanto no plano do temporal como no avanço da glória
de Deus. Queria saber "as novas" e em que condições andava a missão.
Queria saber, que não era só curiosidade ou fervor missionário, mas
também interesse em estar informado para poder participar e intervir
com recomendações e comentários. Francisco Xavier se fazia assim
presente desde a Ásia com suas cartas e não demorou para que muitos
desejassem lê-las e conhecê-las na Europa. (LONDOÑO, 2002).

Na medida em que os jesuítas vão avançando pelo Oriente, e também em outros


continente mais a ocidente, como nas Américas, as ações da Companhia vão se
solidificando. É através das narrativas contidas nas cartas que se vai “produzindo um
imaginário missionário e criando um método de atuação entre infiéis, ambos se
configurando na correspondência entre os padres e irmãos”. É possível fazer uma
atravessamento com o conceito de santidade. Uma vez que o santo é aquele cristão de vida
exemplar, a missão também pode se constituir como modelar a partir de sua narrativa. E,
como já destaquei, os jesuítas fazem isso muito bem através de suas cartas. Se o santo se
constitui da narrativa que se produz da vida dele, a missão modelar se faz a partir das

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cartas que se escreve sobre ela. Assim, compreendo que, tal como os processos e normas
de contar a vida de um cristão modelar vão constituindo uma narrativa de santidade, a
narrativa produzida pelos jesuítas sobre a missão vai criando esse ideal modelar de
projeto de missionário.

O envio de jesuítas à Índia em 1541, presididos por Francisco Xavier,


constitui o primeiro grande referente na produção desses dois
instrumentos. A partir de sua atuação na Índia, em diversas partes da Ásia
até chegar ao Japão em 1549 e morrer em 1552, Francisco Xavier passou
a encarnar o missionário, o apóstolo jesuíta por excelência. Essa imagem
de Francisco que serviria de modelo a todos os outros missionários da
ordem, começou a ser construída ainda em Lisboa com a distinção que ele
logo alcançou na corte, recolhida na correspondência dos primeiros
jesuítas portugueses e nas suas próprias cartas. (Londoño, 2002).

Xavier, que hoje é considerado pela Igreja como santo, vai com suas cartas
produzindo também uma vida modelar enquanto cristão na forma individual, produzindo
assim elementos para a concepção de sua narrativa de vida à narrativa de santidade. E, no
aspecto coletivo, vai gerando o ideal de missão, a forma modelar de como o cristão deve
incursionar pelo mundo levando a palavra do Cristo através do anúncio do Evangelho feita
de maneira tão particular pelos jesuítas.

A figura do dedicado e incansável missionário e dos frutos que produzia


no anúncio da Fé católica foi se cristalizando no modelo de edificação que
se podia extrair das missões entre infiéis, para ser espalhado nas cortes
de Europa e entre os jesuítas. Ao mesmo tempo Xavier se constituiu no
primeiro referencial para a definição de um método de atuação da
companhia entre infiéis. (LONDOÑO, 2002).

Como suporte para essa minha hipótese, tomo como objeto empírico seis cartas
escritas por Xavier entre a saída de Portugal e a chegada à Índia (Xavier, 2006). A primeira
delas é aos companheiros em Roma (p.95-97), escrita de Moçambique em janeiro de 1542.
Nela, revela detalhes e dificuldades a bordo do navio. A narrativa é cheia de elementos
que demonstram que, apesar das dificuldades, Deus se faz presente e o faz perseverar na
missão. Também detalha suas rotinas de assistência a doentes, pobres de Moçambique e
deixa claro como sempre exerce seu ofício sacerdotal.
A segunda carta que envia aos companheiros residentes em Roma é mais longa
(p.104-113) e a narrativa mais rica em detalhes. É setembro de 1542 e Xavier já escreve

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de Goa. Recupera o que já narrara na outra carta, mas aprofunda sua narração com
detalhes que antes sequer mencionara. Na perspectiva da narrativização, é possível se
compreender tempos narrativos. É como se houvesse um tempo mais presente, quando a
narrativa confere sentidos aos acontecimentos mais perto do instante em que eles
ocorrem, e outros mais distante, já num passado a ser revisitado. Tal distanciamento do
instante da eclosão do acontecimento permite uma elaboração com mais aprofundamento
e, logo uma narração com mais detalhes. Xavier traz relatos dos trabalhos pastorais no
navio, em Moçambique e na Índia. Ainda reproduz suas impressões ao chegar a Goa,
recupera percalços e dificuldades e reconstitui as primeiras incursões pelo continente.
Conclui, se considerando um “instrumento útil” na missão.
Outro escrito que me ative foi um produzido, muito provavelmente, logo da
chegada em Goa, maio de 1542. Não é uma carta, mas uma espécie de breviário do
catecismo, em que ensina a doutrina cristã (p.98-103). Esse material é escrito a partir de
outro catecismo publicado em Lisboa por João de Barros entre 1530 e 1540, com
adaptações textuais feitas ao contexto da Índia daquele tempo.
A primeira carta que destina a Inácio de Loyola é a que data de setembro de 1542
(p.114-120). Nela, além de revelar suas impressões sobre a Índia que o recebera, faz uma
espécie de prestação de contas ao seu superior e lhe pede apoio entre outras providências.
Trata, por exemplo, de como a evangelização vinha sendo feito antes e depois de sua
chegada, como eram as formas de vida cristão naquele lugar e discute a fundação do
colégio jesuíta e trata da necessidade de envio de novos missionário à Índia – chega a
destacar as características de como devem ser esses missionários.
Outras duas cartas são escritas a companheiros da missão em momentos em que
não estão junto de Xavier. A primeira é destinada a Francisco Mansilhas, que está em
Manapar, enquanto que Xavier está em Punicale (p.150-153), em fevereiro de 1544. Bem
operacional, a narrativa pede informações e novidades acerca da missão e trata de
providências operacionais. A outra, também à Mansilhas (p.154-155), é escrita em março
de 1544 e Xavier está em Manapar e seu destinatário em Punicale. Brevíssima, a carta,
bem operacional, pede informações e providências. Diferente da anterior, faz referências,
com mais vagar, a necessidade de agradecer a Deus pelos desafios e oportunidades da
missão.

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Considerações finais
A partir da perspectiva da narratologia, percebo que as cartas de Francisco Xavier
se dão a revelar muitos cenários. No presente artigo, fiz uma rápida incursão analítica nos
escritos do jesuíta. Assim, compreendo que a análise tem de a se adensar na medida em
que promover incursões com mais vagar.
No entanto, pude já perceber indícios que podem me levar a um caminho – ainda a
ser trilhado – que pode me ajudar a compreender a narrativa de santidade não só a partir
da vida modelar do grau máximo de cristão, mas também tendo em perspectiva o modelo
santo de missão cristã. Olhando para os escritos de Xavier, percebo que ele cruza a todo
instante narrativas que vão, no espectro individual, fornecendo elementos para a tessitura
de sua narrativa de santidade – sua vida de santo – e, no espectro coletivo, elementos para
a constituição de narrativa de missão santa – a missão cristã exemplar.
Seria apressado concluir que a narratologia pode se dar também enquanto método
historiográfico, mas até agora tenho bons indícios disso. Creio que teria maior
propriedade para afirmar a partir de mergulhos mais densos nos objetos empíricos. Por
hora, tendo apenas a afirmar que a narrativa que Francisco Xavier constitui da missão da
Companhia de Jesus no Oriente constrói uma perspectiva de mundo, um método de
evangelização e cria, para os padrões dos jesuítas, procedimentos modelares para o
anúncio da Boa Nova. Esse anúncio, ao que me parece, vai além da catequização e de
proferir o Evangelho. Por fim, fica o desafio de promover novas incursões sobre o método
da narratologia com vistas a sua aplicação historiográfica a partir do objetos empíricos e
cadeia de sentidos que sua narrativa agencia.

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REUNIR E CATEQUIZAR: A POLÍTICA INDIGENISTA DO SEGUNDO


REINADO NA REGIÃO NORTE DA PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO
(1845-1889)

Alex Antônio Vanin*

No presente trabalho tem-se por objetivo analisar alguns aspectos acerca dos
reflexos da aplicação da política indigenista do Segundo Reinado (1840-1889), no norte
da Província de São Pedro. Dessa forma, analisar-se-á a política indigenista vigente a
partir de 1845, que visava abranger não apenas as populações indígenas, como também
regularizar a ocupação da terra, expandir domínios e subsidiar projetos de colonização. O
Governo Imperial, nesse contexto, engendrara uma política nacional de tratamento e
contenção de populações indígenas, instituindo o Decreto nº 426 de 24 de julho de 1845,
conhecido como o “Regulamento das Missões”, com premissas voltadas à assimilação, por
parte dos indígenas, dos dogmas da fé católica e inserção desses aos meios de produção
capitalista.

Pelo trabalho e pela cruz: as primeiras tentativas de consolidação da política dos


aldeamentos provinciais no norte da Província (1845-1854)

A presença indígena, desde os primórdios do período colonial, estabeleceu-se


como questão central de debates e impasses entre diversas instituições envolvidas na
exploração e ocupação do território brasileiro, tais como as ordens religiosas e o governo
instituído. Em meio a propostas, bem como às pressões populares e das frentes de
expansão, a Coroa Portuguesa deliberou em torno da questão indígena primando
satisfazer seus interesses econômicos, intuindo controlar certos agrupamentos
considerados “mansos”, isto é, suscetíveis ao domínio português; em simultâneo,
combatendo e escravizando os grupos considerados “bravos”, que não se submetiam à
conquista.

*Acadêmico do Curso de História da Universidade de Passo Fundo (UPF); bolsista PIBIC/CAPES em projeto
de pesquisa acerca das bases históricas dos conflitos agrários contemporâneos no norte do Rio Grande do
Sul e Oeste de Santa Catarina: indígenas, quilombolas e pequenos agricultores.

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No contexto do Brasil Imperial, o tratamento ao indígena permanecera, destarte,


análogo ao do período colonial. A Carta Régia de 1808 é expressiva dessa continuidade de
resoluções, pois primou pelo enfrentamento, extermínio e escravização dessas
populações nativas. A guerra oficializada tornara-se marca das ações do governo colonial
e dos primeiros anos da monarquia brasileira, sobretudo no empreendimento de guerras
de sujeição (FRANCISCO, 2013). Todavia, as ações em relação à questão indígena
começaram a se alterar a partir de 1831, com o início do Período Regencial, no qual é
decretado o fim da “guerra aos bugres”, abolição e libertação dos escravos indígenas.
Com o avanço das frentes de povoamento e, posteriormente, as de colonização
sobre os territórios indígenas e os consequentes conflitos resultantes desses encontros,
fez-se necessário a criação de planos de ação para que os objetivos da ocupação e
colonização do império não sofressem interferências das populações nativas. Nesse
sentido, em 1845, logo após a retomada da imigração europeia para o Brasil, é encampada
a política de aldeamento de indígenas, que primava pela conservação da integridade das
zonas coloniais e abertura de outras mais, nos territórios que, a partir de então, seriam
“liberados” da presença indígena.
A política dos aldeamentos foi instaurada por meio do Decreto nº 426 de 24 de
julho de 1845, nominado Regulamento das Missões525, pelo qual ficavam acordados os
termos da regulamentação das missões de catequese e de civilização dos indígenas em
todo o território nacional. Concebido como resolução acertada para pôr fim aos
enfrentamentos entre parcialidades indígenas e colonos nos interiores do Brasil, o
Regulamento previa que fossem os indígenas estabelecidos em aldeias ou em seus já
existentes toldos526, para assim receberem assistência e instrução acerca da fé católica e
dos meios de se produzir riquezas (FRANCISCO, 2013).
Primando pela integração dos nativos à Sociedade Nacional por meio da
civilização, o Regulamento das Missões determinava que fossem estabelecidas “Aldeias
oficiais” nas províncias do Império. Desse modo, a administração dessas áreas passava a
ser independente e descentralizada do governo imperial, ficando a responsabilidade a

525 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1845, vol. II, p. 86.


526 Local de ocupação tradicional de determinada etnia indígena.

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cargo dos governos das províncias através do já existente Diretório Geral dos índios527.
Apesar dessa determinação, é possível perceber que o decreto se constituiu como marco
na política indigenista brasileira, já que fizera florescer certa homogeneidade quanto ao
tratamento legado aos indígenas no Brasil, no sentido de determinar parâmetros e
condições a nível nacional para a formação dos aldeamentos, bem como os costumes e
deveres que os nativos deveriam ser “instruídos” a adotarem.
Os aldeamentos provinciais estavam atrelados não apenas ao projeto colonizador,
como também à premissa do desenvolvimento de uma produção agrícola nacional.
Através da inserção da agricultura nos aldeamentos como prática central, imaginava-se
ser possível manter coesas essas localidades, tendo-se o trabalho agrícola como elemento
aglutinador dos grupos indígenas nos assentamentos. De toda a forma, seriam nesses
espaços que os indígenas receberiam instrução acerca das técnicas de plantio e colheita
produtivas, bem como seriam acostumados ao trabalho regular e inseridos às bases dos
costumes ocidentais (FRANCISCO, 2013).
A execução dos projetos de aldeamento configurava-se como intrínseca à
manutenção da colonização. Para que essa última auferisse resultados exitosos, os
aldeamentos deveriam suprir a premissa básica de sua criação: liberação das terras
devolutas, ocupadas, até então, pelas populações indígenas. Nesse período pós-Guerra
Civil Farroupilha, fazia-se imprescindível, na província, o retorno ao desenvolvimento e
ao crescimento econômico, os quais foram abalados pelo conflito. Desse modo, a abertura
de estradas e a expansão das frentes pioneiras pelas regiões “desabitadas” estiveram
também interligadas à necessidade de se criar mobilidade produtiva entre os núcleos
coloniais e a província como um todo, resgatando e reacendendo a economia,
incentivando o escoamento da produção.
A partir de meados do século XIX, na Província de São Pedro, novas áreas passaram
a ser requisitadas para a instalação das colônias, necessárias para a dissipação da
assoberbada lotação da Colônia de São Leopoldo e adjacências. Tem-se início, portanto,
um movimento gradual de deslocamento populacional em direção à região centro-norte
da província, possibilitado pela abertura de estradas que passaram a conduzir e distribuir
os contingentes de colonos à referida região.

527O Diretório Geral dos Índios foi um órgão criado em 1758 para o tratamento das questões envolvendo
as populações indígenas brasileiras, regulando-as no espaço colonial.

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No contexto, como enfatiza Laroque (2007), a partir da década de 1840 é


perceptível uma determinada alteração nos modos e práticas dos Kaingang de se
relacionarem com a figura cada vez mais permanente do intruso de seus territórios. É
nesse período que começam a operar importantes alianças entre os povos nativos e as
frentes de ocupação do território, bem como com o governo provincial; essa atitude,
perpetrada por parcialidades Kaingang, à primeira vista, pode ser entendida como a
derradeira submissão, o êxito de políticas de sujeição impostas pelas vias do combate;
todavia, segundo Laroque (2007), talvez a adoção dessas políticas de aliança tenha se
configurado como uma estratégia Kaingang de assegurar vantagens frente à constatação
de que os combates que visaram a expulsão dos intrusos de seus território já não se
mostravam eficazes como outrora. Nesse sentido, a prática Kaingang passou a incorporar
as negociações em seu corolário de ações, almejando, através do apoio provincial,
fortalecerem-se contra agrupamentos rivais e obterem utensílios, roupas, etc.
A política de alianças que começara então a se delinear, primeiramente sob um
manto do colaboracionismo e reciprocidade entre nativos e autoridades da província,
acabou por criar terreno fértil para a constituição dos aldeamentos. Em movimento
gradativo, os incipientes aldeamentos, que começavam a congregar indígenas, passaram
a figurar como localidades para fins de negociação, tanto na visão dos aldeados, quanto
na dos não-aldeados (FRANCISCO, 2013; LAROQUE, 2007).
A adesão de grupos nativos, todavia, aos projetos de aldeamento, não deve ser
entendida de maneira simplificada, como se o elemento indígena fosse apenas agente
passivo da situação. Em que pese, inseridos em nova realidade na qual a aliança com as
autoridades provinciais se fazia central, deve-se ter presente que a relação não se
distanciava do âmbito dos conflitos. A coerção exercida pelos administradores dos
aldeamentos e, principalmente, a catequese levada a cabo pelos padres jesuítas, iam de
encontro às tradições e costumes Kaingang, em geral, de maneira a negar elementos de
sua cultura, como as concepções de mundo, sociabilidade, ligação com o território, ainda
fortemente relacionada aos moldes das sociedades tribais. Assim, pelo menos nos
primórdios da organização dos aldeamentos, esse conflito interno se fazia como entrave
à consolidação do projeto de aldeamento.
Acerca desse movimento indígena de estabelecer-se nos aldeamentos, cabe
salientar que, apesar de aparentemente se constituir como movimento dissonante da

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tradição Kaingang de livre-trânsito por seus territórios e a passagem para uma suposta
sedentarização nas aldeias, o que acontece é que apesar dessa “fixação” nos aldeamentos,
a mobilidade Kaingang permanece contrastando com a aldeia devido à não-permanência
dessas populações de maneira efetiva, De fato, inicialmente, as ocupações constituíam-se
como sazonais, tendo, os indígenas, a possibilidade de retornarem aos matos e colherem
o que lá haviam plantado, compondo assim uma ambiência de transitoriedade entre esses
indivíduos e o espaço (FRANCISCO, 2013).
As lideranças cacicais, frente à adversidade que representava o aldeamento, que,
em tese, primaria pela total sujeição dos indígenas aos moldes da cultura ocidental e
civilizada, desempenhavam, à guisa das contradições, forte papel na manutenção dos
aldeamentos. Os caciques, apesar de abrirem mão da liberdade do grupo ao aceitarem as
prerrogativas do aldeamento, eram o elemento necessário para a manutenção de seus
subordinados na aldeia. Agindo como representantes de um grupo, cabia aos caciques
demandar por mudanças, utensílios e alimentos junto aos diretores dos aldeamentos, bem
como determinar o trabalho que seria realizado pelos demais indígenas (BRINGMANN,
2010). Nesse sentido, os diretores dos aldeamentos, para além das questões
administrativas, tinham de tratar e conservar essa sensível relação com os cacicados
indígenas sob pena de ocasionarem a retirada desses indígenas aldeados.
Ao longo do século XIX, a presença indígena no território brasileiro condensou-se
como problemática. Central em discussões e debates, a questão indígena encontrava-se
permeada por conflitos que se acirravam sobretudo em decorrência do avanço do
povoamento sobre as regiões oeste, norte e sul do Brasil e a tentativa contínua de se
estabelecer o Estado aos moldes do capitalismo europeu, com a instauração da
propriedade privada, de mercados interno e externo, que seriam alcançados pela alta
produtividade de todas as regiões do país, através da expansão da Sociedade Nacional por
todo o território. Nessa perspectiva, os grupos indígenas, à margem desse processo,
deveriam ceder lugar ao avanço da civilização, instalando-se em reduzidas áreas, nas
quais seriam integrados à sociedade.
Na primeira década de funcionamento da política de aldeamentos na região norte
da província, as localidades de Nonoai, Guarita e Campo do Meio se destacaram como
pontos centrais ideais para a atração dos indígenas Kaingang. Através da iniciativa de
fazendeiros dessas localidades, forças policiais de povoações das proximidades ou da

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iniciativa jesuítica de catequização, pode-se intentar realizar o aldeamento definitivo de


diversas parcialidades indígenas, sobretudo no Aldeamento de Nonoai.

Detalhe do “Mapa da Província de Santa Catarina do Império do Brasil”, por Woldemar Schultz, 1863. É
possível, nas áreas em destaque, visualizar as localidades que possuíam aldeamentos na região, inclusive a
localização de uma das aldeias do aldeamento de Nonoai. Fonte: Biblioteca Digital Luso-Brasileira:
https://goo.gl/rCVfuY. Acessado em 24/09/2017.

Entretanto, segundo Bringmann (2010), a situação dos aldeamentos logo por volta
de 1853, encontrava-se precária. Em decorrência de alguns problemas que se
desenvolveram sem solução desde o início dos projetos de aldeamento, o progresso real
da iniciativa se mostrara aquém das expectativas. Nos aldeamentos que haviam se
formado, a inconstância ou a ausência da presença de autoridades provinciais na direção
das aldeias talvez tenha sido entrave ao estabelecimento de uma relação entre os
indígenas e a administração, assinalada pela falta de repasse dos ordenados dos diretores,
bem como os das Companhias de Pedestres.
Outro fator que pode ser elencado para a precariedade dos aldeamentos reside no
fato da existência de conflitos internos entre caciques. A diversidade de parcialidades que,
em razão da iniciativa governamental de reunir o máximo de indígenas a todo o custo na
menor quantidade de espaço possível, instigava o desenvolvimento de disputas e
desavenças entre as lideranças cacicais, causando, senão conflitos, pelo menos a dispersão
de agrupamentos pela região.

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No mesmo período, em 1852, o projeto de aldeamentos também foi abalado pelo


cancelamento das missões jesuíticas nos aldeamentos. Atrelados não apenas à
disseminação da doutrina cristã entre os Kaingang, como também à administração e
manutenção da ordem nos aldeamentos, os jesuítas, principalmente Bernardo Parès,
estiveram engajados nos projetos, que sinalizavam oferecer, num primeiro momento,
oportunidade ideal para a catequização dos indígenas.
Contudo, de acordo com Azevedo (1984, p. 85), com o tempo, a missão jesuítica de
cristianização dos Kaingang se tornou uma das mais árduas e pouco exitosas no Sul do
Brasil. A não-adoção indígena dos preceitos cristãos e, por conseguinte, dos valores do
trabalho, fez com que a atividade missionária esmorecesse e fosse considerada ineficaz;
ao cabo de 1852, os contratos da Província para com os missionários não foram
renovados, sendo os aldeamentos ausentados da presença dos padres (BRINGMANN,
2010).
Os conflitos com os grandes proprietários de terras, principalmente após a
promulgação da Lei de Terras, também contribuíram para a derrocada dos aldeamentos.
Posto que as terras indígenas possuíam extensas dimensões e localizações privilegiadas,
geravam cobiça entre os fazendeiros que não tardaram em anexar as terras dos indígenas
aos seus domínios a fim de legitimá-las como suas.
Desse modo, os projetos de aldeamento caíram em descrédito, em decorrência dos
inúmeros revezes que se processaram e obstaculizaram suas intenções originais. Apesar
dos avanços visíveis na contingência de indígenas em Guarita, Campo do Meio e,
sobretudo em Nonoai, muitas parcialidades Kaingang permaneceram em campos e matos,
empreendendo ataques ora a fazendeiros, ora aos lotes coloniais (FRANCISCO, 2013).
Nesse sentido, em que pese as variadas tentativas, em momento algum os aldeamentos
conseguiram promover a reunião total dos Kaingang nas aldeias e, tampouco, a cessação
de conflitos entre esses indivíduos e as frentes de povoamento e colonização que se
instalavam na região norte do Rio Grande do Sul.

Uma política indigenista versus uma política de terras: a regulação dos espaços a
partir da Lei de Terras de 1850
Esse primeiro período, relativamente curto, mas que congregara uma série de
processos e ações ao mesmo tempo, seja por parte do governo, da ação missionária e das

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próprias movimentações indígenas, constituiu-se como ápice da política de aldeamentos


na Província de São Pedro. Durante esse curto interregno, externaram-se as principais
iniciativas em torno da concentração de indígenas, havendo atenção voltada ao projeto
realizado centralmente e em simultâneo a centralidade do projeto de colonização
imigrante. As inúmeras tentativas ilustram essa centralidade, bem como o grande número
de fontes disponíveis acerca dessas ações em contraponto aos parcos relatos nos anos que
seguem a regulação fundiária até a proclamação da República.
A Lei de Terras, de âmbito nacional, promulgada em 1850, tivera por objetivo
regular o processo de aquisição de terras no Brasil. A Lei de Terras, na Província do Rio
Grande do Sul, agiu na tentativa de regularizar as irregularidades fundiárias que ocorriam
em todo o Brasil. Sem uma legislação própria que trouxesse a normatização da obtenção
de propriedade das terras desde 1822, quando a legislação oficial de concessão de
sesmarias fora extinta, as terras que pertenciam ao governo – que se mantinham em
grande volume e desocupadas –, na impossibilidade de serem adquiridas, fosse por
compra ou doação, passaram a ser apropriadas pela crescente população que avançava
sobre o oeste e sul do país. Desse modo, o avanço das frentes de expansão, em decorrência
dessa irregularidade institucionalizada, produziu uma intensa apropriação das terras
devolutas do Império.
Nesse contexto de ampla apropriação privada do patrimônio público, a regulação
fundiária fez-se premente. A partir da instauração da Lei de Terras, em 1850, e sua
consequente regulamentação em 1854, a legislação acerca das terras, sobretudo na
Província, passou a enfrentar uma série de revezes na tentativa de instituí-las em meio a
um amplo processo de apropriação, apossamento e fraudes ligadas à propriedade da
terra.
A questão da regulação fundiária no período pode ser compreendida como uma
ampla problemática de apropriação indevida. Para a Província, a cessação dessa prática
através da legislação ia ao encontro da necessidade de se estabelecer um mercado interno
que movimentasse a economia provincial. Nesse sentido, a obrigatoriedade da aquisição
das terras por meio da compra desencadeava a possibilidade da criação de um mercado
de terras, isto é, as grandes extensões ausentes de povoação na Província adentraram a
lógica da mercadoria, tornando-se produtos a serem comercializados e que aufeririam
elevados lucros aos cofres públicos (SILVA, 2011).

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Após o início da regulação fundiária de 1854, os aldeamentos surgidos a partir do


ano referido se mostraram muito mais voláteis e efêmeros em sua constituição e
manutenção em relação aos anteriormente fundados. Possivelmente, em razão da
instauração de um “mercado de terras”, à questão indígena tenha se legado menor atenção
do que anteriormente, bem como a enorme quantidade de recursos que houveram sido
dispendidos em prol dos projetos e que não externavam grandes resultados.
Sobre os aldeamentos em si, nesse período, as informações são esparsas e pouco
elucidadoras da situação indígena no norte da Província. O que se pode depreender, no
que tange à questão indígena, é a não-constância de ações em relação às populações
indígenas, o que levou muitos dos seus integrantes a migrarem pelos matos e campos que
permaneciam ainda considerados devolutos, dispersando-se e se agrupando em diversos
locais da região. Muitos desses agrupamentos do período estão servindo na atualidade
para justificar a demanda indígena pela terra, pois configuram área de ocupação
tradicional.
Posteriormente, em 1880, segundo relatório de Thompson Flores, é apontada a
existência de novos aldeamentos no norte da província (Quadro 1). Para além dos
aldeamentos de Nonoai, Guarita e Campo do Meio, novas localidades teriam passado a ser
de habitação indígena, estando todos sob a inspeção governamental.

Quadro 1 - Censo das populações indígenas nos aldeamentos do norte da província – 1880

Aldeamento População (hab.)


Em Inhacorá 250
Na Guarita 100
Em Pinheiro Ralo 140
Em Nonoai 285
No Campo do Meio 90
No Pontão 200
Em Caseros 140
Em Campos de José Bueno 50
Total: 1. 255

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Baseado nas informações presentes no Relatório Provincial de 15/04/1880. Fonte: Relatório do Presidente
da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Carlos Thompson Flores. Porto Alegre, Typ. A Reforma,
15/04/1880. p. 39.

Em 1889, último ano em que a política dos aldeamentos provinciais estaria em


vigor, informações acerca dos aldeamentos existentes ou outros censos não são
apontados nos relatórios provinciais pesquisados. Entretanto, sabe-se que boa parte dos
aldeamentos supracitados se mantiveram coesos, a julgar por sua recorrência em
registros posteriores; do mesmo modo, outros deixaram de existir e suas populações
passaram a integrar os aldeamentos que se mantinham ou passaram a estabelecer-se em
novas áreas.
A alteração das estruturas da máquina pública a partir da queda da monarquia e a
conseguinte federalização dos estados fez com que as políticas e a forma como essas
vinham sendo gestadas passassem a ser reconsideradas e adaptadas à nova organização
administrativa do território nacional. Os estados passaram a possuir maior autonomia e
serem encarregados da outorga de suas legislações e políticas públicas próprias no
tocante de seus assuntos internos. A questão indígena, no Rio Grande do Sul, não receberia
atenção por parte dos legisladores, ficando desassistida de auxílios de um órgão específico
para seu tratamento até a criação do Serviço de Proteção aos Índios, em 1910.

Considerações finais
O norte do Rio Grande do Sul foi palco central da política indigenista imperial dos
aldeamentos direcionados às populações Kaingang que habitavam campos e matas ainda
“desabitados” pela sociedade nacional em expansão e que necessitava da não-
interferência do elemento indígena para conclusão de tal empreitada. A política
indigenista referida acabou por agir de maneira profunda sobre o modo de vida, cultura,
costumes e concepções de mundo dos grupos Kaingang que, durante a vigência de tal
política, estiveram sob o controle das autoridades governamentais em grandes
localidades de contingência de nativos, como nos aldeamentos de Nonoai, Guarita e
Campo do Meio, ambos criados no intuito de se evitar o conflito entre as populações
nativas e a sociedade nacional.
Na região norte da Província de São Pedro, várias foram as tentativas de formação
de aldeamentos a partir de 1845 até a extinção dessa política, em 1889, nas quais conflitos

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entre variados sujeitos como latifundiários, colonos, caboclos e indígenas se


desenvolveram em simultâneo, contrapondo concepções diversas acerca do território,
propriedade da terra e trabalho. A centralização de disputas por territorialidade e direitos
sobre a terra se constituiu como fundante de uma realidade de enfrentamento que
perdura e se desdobra na atualidade, mantendo tais sujeitos em constante atrito.
Referências bibliográficas

BRINGMANN, S. F. Índios, colonos e fazendeiros: conflitos interculturais e Resistência


Kaingang nas Terras Altas do Rio Grande do Sul (1829-1860). Dissertação (Mestrado),
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC, 2010.
FRANCISCO, A. R. Kaingang: Uma história das interações entre nativos e ocidentais
durante a conquista e a colonização no sul do Planalto Meridional. Tese (Doutorado),
Pontifícia Universidade Católica (PUC), Porto Alegre/RS, 2013.
LAROQUE, L. F. S. Fronteiras geográficas, étnicas e culturais envolvendo os Kaingang e
suas lideranças no Sul do Brasil (1889-1930). Antropologia, n. 64, Pesquisas/Instituto
Anchietano, 2007.
_______. Lideranças Kaingang no Brasil Meridional (1808-1889). Antropologia, n. 56,
Pesquisas/Instituto Anchietano, 2000.
SILVA, M. A. B. Babel do Novo Mundo: povoamento e vida rural na região de matas do Rio
Grande do Sul (1889-1925). Guarapuava/Niterói: Unicentro/UFF, 2011.

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O SISTEMA DE ASSENTAMENTO GUARANI NO ALTO VALE DO RIO DOS


SINOS E A VISÃO DOS MISSIONÁRIOS JESUÍTAS

Jefferson Aldemir Nunes*


Pedro Ignácio Schmitz*

Introdução
Os estudos do Guarani no Vale do Rio dos Sinos foram iniciados na década de 1960,
por Eurico Th. Miller, sob o modelo de pesquisas do Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas - PRONAPA (MILLER, 1967); e pelo Instituto Anchietano de Pesquisas, em
sucessivos projetos. As pesquisas abrangeram toda a bacia do Sinos, localizando, em
diferentes momentos, de 60 a 70 antigas aldeias indígenas de diversas etnias, com seus
materiais correspondentes. Posteriormente, a área foi novamente prospectada por
Adriana Schmidt Dias, para sua tese de doutoramento, de 2003, e por Jefferson Zuch Dias,
para sua tese de doutoramento de 2015.
A partir do final de 2014, o Instituto Anchietano de Pesquisas retomou o estudo do
material desses sítios, que está acondicionado no MARSUL e no IAP, mas focando a
pesquisa no grupo ceramista Tupiguarani de toda a bacia do Sinos. Busca-se, com esse
projeto, uma melhor compreensão do estabelecimento desse povo na região, desde o
período inicial de ocupação até o início da dominação europeia.
A primeira abordagem do material tem sido descritiva, e foram analisados os
artefatos líticos e cerâmicos dos sítios RS-S-284, 285, 286, 287, 288, 289, 290, e
divulgados os resultados de dois (NUNES & SCHMITZ, 2017). Esses assentamentos estão
presentes no Alto Vale do Sinos, compreendendo a região do atual município de Caraá (à
época do estudo de Eurico Miller, a região ainda pertencia ao município de Santo Antônio
da Patrulha), e o estudo tem sido feito sob a perspectiva histórico-culturalista de Betty
Meggers e Clifford Evans (1970). Figura 1.

* Graduando do curso de Licenciatura Plena em História, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS); bolsista de iniciação científica PIBIC – CNPq no Instituto Anchietano de Pesquisas. E-mail:
jeffersonnunes.92@gmail.com
* PPGH-UNISINOS. Pesquisador sênior do CNPq. E-mail: anchietano@unisinos.br

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Agora partimos para a análise dos resultados, na qual é fundamental a analogia


com populações históricas e etnográficas. Para fazer essa relação, tem-se utilizado os
relatos jesuíticos setecentistas que tratam das missões estabelecidas entre os índios
Carijós, que são antepassados dos Guarani atuais. Esses textos estão presentes em Serafim
Leite (1938, 1940, 1945) e são complementados pelos estudos de seu conteúdo feito pela
tese de doutoramento de Beatriz Franzen (1997), e pela dissertação de mestrado de
Jaisson Lino (2007). Nesse texto, porém, privilegiamos os dados de duas cartas jesuíticas
encontradas em Serafim Leite, deixando discussões mais aprofundadas para textos
futuros.
O objetivo do presente artigo, portanto, é compreender o assentamento Guarani
no Alto Vale dos Sinos, utilizando dados dos missionários jesuítas para a região. A
metodologia envolveu a leitura da expansão Jesuítica no Sul do Brasil, usando as
descrições dos índios locais para fazer analogia direta com as populações estudadas pela
Arqueologia. As conclusões apontam para semelhanças das estruturas e formas de
ocupação do espaço pelos Guarani em ambos os períodos históricos, nos permitindo
construir um quadro mais completo, que vá além da simples descrição da cultura material.

Figura 1 - Bacia hidrográfica do Vale do Rio dos Sinos, coma localização dos sítios estudados

Fonte: Adaptado de: DIAS, 2015.

SERAFIM LEITE: DOIS RELATOS DISTINTOS

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Dentre os relatos que narram a expansão jesuítica em direção ao sul, dois dos mais
significativos para a compreensão dos assentamentos Guarani são os dos padres Jerônimo
Rodrigues e Inácio de Sequeira528. O relato de Rodrigues pode ser encontrado nas Novas
Cartas Jesuíticas (De Nóbrega a Vieira), de Serafim Leite, de 1940, e o de Sequeira na
História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo VI, de 1945, também de Leite.
Ambos os escritos são ricos em informações, já que narram o estabelecimento de
missões entre os Carijós em dois momentos distintos. No de Jerônimo Rodrigues, o relato
se passa entre 1605 e 1607, no período inicial de contatos mais intensos dos brancos com
os índios, em que se tentou implementar uma Missão jesuítica entre os Carijós da região
da atual Imbituba, SC. Jesuíta típico, Rodrigues sabia muito bem a língua indígena, o que,
aliado ao seu zelo pela missão, facilitou seu trabalho (LEITE, 1949, p. 86-87).
Em seu relato já fica demonstrado o impacto causado pelo colonizador branco na
sociedade indígena, especialmente pela ação dos escravagistas lusos. Por haver uma
sociedade mais bem estruturada, porém, Rodrigues conseguiu perceber de forma mais
clara elementos do cotidiano dos índios, como o modo de construção das casas,
organização social nas aldeias, ritos e forma de consumo de alimentos.
A relação de Inácio de Sequeira, por outro lado, apresenta a ação missionária
realizada em 1635, quase 30 anos após o relato anterior, e percebe-se muito claramente,
no texto, a desestruturação social dos Carijós, e a queda demográfica substancial, fruto
dos ataques cada vez mais intensos dos escravagistas, e do avanço das doenças, que
dizimaram aldeias inteiras. A análise de Sequeira também segue rumos distintos da de
Rodrigues, e há um foco muito maior nas descrições sobre xamanismo e antropofagia.
Aqui não são encontradas exposições sobre construção das casas nem sobre número de
habitantes de cada aldeia, o que o diferencia do outro texto.
O relato de Sequeira, porém, apresenta alguns problemas, já que há mistura de
elementos de outras populações indígenas do Brasil. Sequeira foi um missionário
importante, conhecido como Pacificador dos Goitacazes, e grande sertanista, tendo
andado por diversos pontos do território brasileiro (LEITE, 1949: p. 121-122), e essas
experiências influenciaram seus escritos. Como Leite destaca (1945, p. 495), em diversos

O sobrenome de Sequeira também é encontrado como Cerqueira em publicações mais recentes, como
528

em LINO, 2007. Aqui, porém, preferiu-se seguir a grafia utilizada por Serafim Leite.

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momentos é difícil separar o que é efetivamente descrição dos Carijós, e o que pertence a
outros povos, e, por este motivo, esse relato deve ser lido com cuidado.
Com isto em mente, utilizamos o relato de Sequeira como complemento das
informações apresentadas por Jerônimo Rodrigues, evitando o uso de trechos que possam
gerar controvérsias. Assim empregada, a relação de Sequeira é rica em detalhes úteis para
se compreender o modo de vida Carijó em um período de mudança e desestruturação
social.

Modo de vida dos Carijós históricos


- da construção das casas:
Um dos elementos mais difíceis de ser encontrado em registros arqueológicos é
aquele referente à forma de construção das casas dos índios, já que, em sítios a céu aberto,
raramente é encontrado algo além de manchas de terra escura no chão, delimitando o
espaço que as residências ocupavam. Um detalhe importante, no relato de Jerônimo
Rodrigues, pode nos solucionar o porquê dessa falta de conservação:

As casas dos índios, como não haja terra [para revestir a armação de
madeira para transformá-la em taipa], são todas de jeçara [juçara = uma
palmeira] a pique. [...] E assim dizíamos muitas vezes missa com a porta
fechada, e comíamos sem abrir a porta, vendo da mesa quantos passavam
e o mesmo nos viam de fora. E como os ventos cá são grandíssimos de dia
nem noite estávamos sem ele (LEITE, 1940, p. 237).

Nesse trecho, fica indicada a frágil construção das habitações, que não se
conservam por muito tempo. Esse pode ter sido o mesmo material utilizado pelos Guarani
do Alto Vale do Sinos para a edificação de suas residências, já que, nos sítios dessa região,
só foram registradas manchas de terra escura.
Num povo que circulava constantemente dentro de territórios amplos em busca de
recursos, como o Guarani, não haveria a necessidade de construir estruturas com
materiais resistentes, já que o tempo de permanência numa mesma área era
relativamente curto. E num contexto de contato cada vez mais intenso com os brancos, se
tornou impossível fazer casas para longos períodos.
- da constituição das aldeias:

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As aldeias em que essas casas estavam inseridas são mais bem descritas no relato
de Jerônimo Rodrigues, e, no excerto abaixo, conseguimos apreender a organização social
desses índios:

E nos fomos para a aldeia. E assim nos metemos na primeira casa da


primeira aldeia, que segunda nem terceira e outra alguma tinha. E assim
são cá todas as aldeias, de maneira que, a uma casa, chamam uma aldeia.
E esta não tinha dentro em si mais de três moradores, ou para melhor
dizer três casais com três ou quatro filhos (LEITE, 1940, p. 216-217).

Sobre o número de habitantes dessas poucas casas, logo a seguir Rodrigues


destaca:

E nos fomos à quarta aldeia, que tinha duas casinhas, com alguns 9 ou 10
moradores [umas 40 a 50 pessoas]. E nesta fizemos nossa morada e
igreja, por ser maior, e haver nela alguns cristãos antigos, que uns Frades,
a quem Deus perdoe, haverá 50 anos pouco mais ou menos fizeram
Cristãos, deixando-os sem doutrina, em seus vícios e desventuras (LEITE,
1940, p. 217).

Com esses dois trechos, fica aparente que a densidade populacional dos Carijós era
baixa, e que os índios estavam espalhados em pequenas aldeias. Isso se encaixa com o
estudo dos assentamentos Guarani do Alto Vale do Rio dos Sinos, já que, nas sete aldeias
até agora analisadas, o número de manchas escuras nos sítios (que indicam a presença de
casas) é de uma a três, corroborando a descrição de Rodrigues.
Há, ainda, a referência à passagem de frades franciscanos entre os carijós, décadas
antes da missão de Rodrigues. Essa informação pode ser confirmada ao se estudar as
atividades do padre Leonardo Nunes, primeiro desbravador jesuíta do sul do Brasil. Nas
suas viagens pelo sertão, Nunes teve contato com Carijós cristianizados pelos freis
Bernardo de Armenta e Alonso Lebrón, que acompanhavam Alvar Núñez Cabeza de Vaca,
governador do Paraguai (LEITE, 1938, p. 323). Esse contato foi possível porque padres
espanhóis andaram pelo sertão sul brasileiro antes dos portugueses, estabelecendo
contatos com índios locais e tentando estabelecer missões.
No período em que Jerônimo Rodrigues andou entre os Carijós, jesuítas espanhóis
se estabeleceram às margens do Piquiri, visando fundar evangelização conjunta com os
padres brasileiros (LEITE, 1945, p. 441). Com isso, se percebe que o relacionamento com

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os índios sul brasileiros data de períodos anteriores aos primeiros desbravadores lusos,
e, portanto, a sua sociedade já havia iniciado o processo de transformação e
desestruturação social antes do relato de Rodrigues, como aponta Lino (2007, p. 128).

- dos cultivos:
Sobre a alimentação dos Carijós, ambos os cronistas apontaram os cultivos que
eram feitos pelos índios, que também serviram como base de alimentação dos padres nos
períodos de permanência entre eles. Rodrigues, especialmente, aponta todo o ciclo de
cultivo anual:

Tem o ano repartido em quatro partes, scilicet três meses comem milho
[fim da primavera e começo do verão], outros três favas e aboboras [alto
verão], outros três alguma mandioca [outono], outros três [inverno]
comem farinha de uma certa palmeirinha, que é assaz de fome e miséria
(LEITE, 1940, p. 230).

Sequeira corrobora essas informações, ao dizer que “o que dá aos naturais é


mandioca, feijões em grande cópia, milho, batatas, abóboras sem número e de estranha
grandeza” (LEITE, 1945, p. 496). Após, sobre o consumo de palmito, aponta que eles são
protegidos por uma dura proteção, mas

Ainda que depois desta dureza, se desfazem todos em iguarias, por que,
cozidos com a carne, ficam nabos e couves, com o peixe ficam salsa,
moídos e torrados são biscoito; e desfeitos em farinha ficam pão; comidos
só no talo são regalo de toda fruta; e, temperados com a fome, sabem a
tudo (LEITE, 1945, p. 497).

Com isso, se percebe o amadurecimento gradual dos cultivos ao longo de todo ano,
e como o extrativismo do palmito era importante para o complemento da alimentação. No
Alto Vale do Rio dos Sinos, a presença de sítios próximos às várzeas ricas em recursos
indica que os Guarani buscavam áreas férteis para se estabelecer, tanto para o plantio
quanto para o extrativismo. Este era indispensável para a alimentação, e auxiliava nos
momentos de escassez de cultivares. Com o estreitamento gradual dos banhados
conforme os Guarani se aproximavam das nascentes do Sinos, o abastecimento alimentar
deve ter ficado comprometido, o que explicaria a diminuição do tamanho dos sítios.

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- da forma de cultivar:
A forma como esse cultivo era feito é pouco elucidado nos relatos, mas um pequeno
trecho no texto de Rodrigues chama a atenção:

[...] E como as árvores são pequenas e pau mole, facilmente fazem sua
roça, a qual, acabante de a queimarem, logo prantam, sem fazerem
coibara nem fazem covas para a mandiiba; mas com o cabo de cunha
[grifo nosso] com que derribaram a roça, fazem um buraquinho no chão
e ali metem o pau de mandiiba; e muitas vezes sem lhe fazerem buraco
(LEITE, 1940, p. 235).

Aqui está explicitada a limpeza do mato para o plantio direto, semelhante às


coivaras utilizadas pelos índios Guarani. O pequeno detalhe referente ao uso de uma
“cunha” para a derrubada do mato, deixa claro o uso de talhadores e machados em pedra.
Muito provavelmente esse é o mesmo tipo de material utilizado pelos Guarani do Vale do
Sinos, já que o uso de machados de metal ainda não estava disseminado nesses primeiros
contatos com o colonizador branco.

Tecnologia alimentar: da mandioca puba e das cabaças


Para uma compreensão mais ampla das maneiras como os índios condimentavam
e consumiam os alimentos, dois trechos nos relatos são fundamentais. No primeiro,
extraído de Rodrigues, fica indicado o modo como os Carijó consumiam a mandioca:

Não comem farinha relada, nem tem espremedores, nem tatapecoabas


[abano de fogo], nem o sabem fazer. A mandioca, depois de estar podre,
trazem-na da roça. E fazendo uma nova cova na areia, do tamanho de
meio barril, fora de casa, põe-lhe umas folhas debaixo e ali a botam; e toda
a que cai na areia com a mesma areia a botam com a outra; e quando
cansam põem o pilão na areia; tornando a socar leva uma boa cantidade
de areia, com outras sujidades que não são pera escrever; e, coberta com
umas folhas e com areia a deixam daquela maneira, e pouco a pouco a vão
tirando (LEITE, 1940, p. 233).

Aqui fica aparente, pela descrição da retirada gradual da mandioca, que os índios
a depositavam em um silo coberto com folhas, para ser usada aos poucos como alimento,
o que não demandaria outro tipo de recipiente para sua conservação. Além disso, esse

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processo descrito é o da mandioca puba, uma massa de mandioca gerada pela


fermentação das raízes cruas em água, e na qual não seriam necessários os torradores
usados pelos Tupi na preparação da farinha de mandioca.
No contexto do Guarani do Rio dos Sinos, esse processo deveria ser muito
semelhante, já que, nas amostras cerâmicas dos sítios estudados, não se encontram pratos
ou formas completamente abertas, indicando que o consumo da mandioca deveria ser o
mesmo. Figura 2.

Figura 2 - Desenho do perfil das bordas cerâmicas do Sítio RS-S-289, ilustrando a falta de pratos
e outras formas planas

O uso de outros elementos além da cerâmica para o acondicionamento de


alimentos também é indicado no relato de Sequeira, logo após ele citar as grandes
abóboras:

[...] estas são as maiores delícias dos Carijós, por que não somente as
estimam por tais para seu mantimento, mas o que mais prezam são os
cascos de certa casta delas, de que fazem suas vasilhas, em que recolhem,
bem como em pipas e tonéis, seu mantimento, e, como em caixas bem
lavradas, todas suas alfaias. E estes vasos têm em tanta estima, que ao
tempo que se embarcam, para se despedirem de sua pátria, estes são os
grilhões, que mais os prendem e detêm, e antes deixarão um filho em
terra que uma peça destas (LEITE, 1945, p. 496).

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Aqui, mais uma vez, se demonstra o uso de outros materiais além da cerâmica para
o trabalho cotidiano, explicando a falta, muitas vezes, de elementos materiais em sítios
arqueológicos, ou a pouca presença de vasilhames. Além disso, há a referência à ligação
peculiar que os Carijós estabeleciam com seus pertences, que diz muito de sua relação
com o meio em que estavam inseridos.

- das pragas:
O cotidiano vivido pelos índios (e pelos próprios padres durante as missões) é
descrito em diversos momentos, como as constantes referências ao grande frio e ao vento,
mas chama atenção a descrição que Rodrigues faz das pragas que dificultavam o dia-a-
dia:

Há nesta terra grandíssimo número de imundícies, scilicet, bichos dos pés


e muito mais pequenos que os de lá, de que todos andam cheios. E alguns
meninos trazem os dedinhos das mãos, que é uma piedade, sem haver
quem lhos tire. [...] Pulgas não se pode crer, se se não experimentar, como
nós experimentamos estes dous anos, assim no verão, como no inverno,
porque grande parte do dia, se nos ia em matar pulgas. [...]. Além desta,
há outra praga de grilos que nos destruíram os vestidos e livros, e são
tantos, que matando cada dia grandíssima multidão. [...] Mas sobre tudo
isto as baratas, que havia, não se pode crer, porque o altar, a mesa, a
comida, e tudo, era cheio delas (LEITE, 1940, p. 237-238).

Com tal relato, se pode perceber a dificuldade da vida nas casas dos índios após
algum período de permanência. Essa presença tão grande de pragas nos permite refletir
melhor sobre a utilização das casas, já que elas deveriam ser sistematicamente
abandonadas em busca de maior salubridade e fuga de tais animais. Isso se confirma no
registro arqueológico, onde há muitos sítios que aparentam pequeno tempo de ocupação.
- das chefias:
Sobre as chefias, diversas informações são fornecidas em ambos os relatos. No de
Rodrigues há certa ambiguidade, pois, em alguns momentos, ele aponta para a presença

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de chefias para recebê-los nas aldeias, e em outro afirma que “principais, nenhum há entre
estes Carijós dos Patos529” (LEITE, 1940, p. 218-9).
Em outro trecho, narra o encontro com o índio Tubarão:

Este índio é o afamado Tubarão, o qual não é o principal, nem tem gente,
mas tem grande fama entre estes por ser feiticeiro e ter três ou quatro
irmãos, todos, feiticeiros, e todos eles são grandíssimos tiranos e
vendedores, e de quem os brancos fazem muito caso, porque estes lhes
enchem os navios de peças (LEITE, 1940, p. 222).

O relato segue, expondo a má recepção que Tubarão (amigo dos escravagistas, e


que os ajudava, fornecendo índios) dispensou aos padres. No relato de Sequeira, por outro
lado, há mais detalhes sobre as chefias, e ele aponta que

[...] toda esta província dos Carijós estava dividida em dois senhores
idólatras, que a seu querer, a governavam. O primeiro é o Anjo, de que já
falamos, que por outro nome se diz também Ara Abaeté, que quer dizer
“Dia do Juízo”. O outro era um índio parente, mui chegado do mesmo Anjo,
chamado Moranaguaçu, que quer dizer o “Grande Papagaio” (LEITE,
1945, p. 508-509).

Sequeira analisa esses líderes indígenas concentrando grande foco no seu caráter
xamânico, e fazendo pormenorizada descrição dos diferentes tipos de feiticeiros que
havia entre os Carijó. Esses agiam como líderes religiosos e políticos dos índios, e Sequeira
repetidamente os associa a amigos do Demônio e idólatras.
Analisando essas informações de forma mais ampla, poderíamos pensar na divisão
dos Guarani por chefias e não por territórios fixos, como sugeriu Francisco Noeli em sua
dissertação de 1993. Essa hipótese, porém, necessita de maiores estudos para ser
verificada.

- da queda demográfica:

529Patos, aqui, não se refere à atual Laguna dos Patos, no Rio Grande do Sul, mas ao nome original pelo qual
a atual Laguna, Santa Catarina, era conhecido (LEITE, 1945).

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Por fim, entre o relato de Rodrigues, que data de 1607, e o de Sequeira, de 1635, é
possível perceber uma queda demográfica substancial, e uma desestruturação profunda
na sociedade Carijó, que fica cristalizada no trecho abaixo:

[...] Chegamos à Aldeia onde cuidávamos tínhamos a gente para carregar


o navio, e na verdade estava mas era a peste do sarampão. Achamos só
as sepulturas de muitos gentios e poucos deles vivos, e os mortos todos
sem receberem água de Baptismo. [...] De feição que não achamos vivas
mais que até 100 pessoas, as quais logo catequisamos e baptizamos, e
considerando que se viéramos dois meses antes, pudéramos levar três
navios carregados de almas, não havia sofrimento nem alívio, que nos
mitigassem a grande dor que nos partia os corações (LEITE, 1945, p. 506).

Aqui, podem-se retirar dados importantes. O primeiro é a referência ao


“sarampão”, que deixa claro o avanço incontrolável das doenças dos brancos entre os
índios sem anticorpos para combatê-las, dizimando aldeias inteiras. Aliado, a isso, a ação
cada vez mais intensa dos escravagistas lusos, visando o abastecimento das fazendas
monocultoras de São Paulo, afetou drasticamente os assentamentos.
Esses ataques eram constantes no período de Rodrigues, mas se intensificaram até
a missão de Sequeira, já que as constantes incursões holandeses a portos lusos na África
dificultaram a importação de escravos africanos, gerando a necessidade de se prender
índios para as funções. Assim, o relato de 1635 demonstra uma sociedade profundamente
afetada pela ação lusa, e em avançado grau de desestruturação.

Considerações finais
Os relatos de Jesuítas setecentistas, como os dos padres Jerônimo Rodrigues e
Inácio de Sequeira, nos permitem conhecer melhor a forma de vida dos Guarani ao tempo
do contato com o colonizador, e fornecem compreensão do cotidiano desses índios
também no Vale do Sinos, visto a vitalidade da cultura Guarani em todos os locais em que
habitam. A referência a formas de alimentação, de consumo da mandioca e palmito, forma
de plantio, construção das casas, presença de pragas, chefias e queda demográfica,
fornecem elementos para ir além da simples descrição da cultura material e do registro
arqueológico, inserindo esses índios em uma moldura histórico-cultural mais completa,
que demonstre o impacto que a chegada dos brancos causou em sua sociedade.

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A partir daqui, haverá inserção de novos elementos, como a analogia direta com
populações Guarani-Mbyá, que têm aldeias no nordeste do Rio Grande do Sul, incluindo o
Vale do Rio dos Sinos (GARLET, 1997; VIETTA, 1992), aprofundamento dos dados dos
Guarani históricos (FRANZEN, 1999; LINO, 2007; MILHEIRA, 2010), analogia ampliada
com os Guarani das reduções (NOELLI, 1993), e uma leitura mais ampla do sistema de
assentamento Guarani(ROGGE, 1996) e seu sistema social (SOARES, 1997).
Esses novos dados permitirão conhecer melhor a cultura e o modo de vida dos
povos Guarani do Vale do Sinos, e suas interações com outras populações com as quais
tiveram contato, tanto índios, quanto brancos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A CIDADE NO MUSEU: REPRESENTAÇÕES DA CIDADE DE CANOAS/RS


NO MUSEU HUGO SIMÕES LAGRANHA

Julia Maciel Jaeger*

Introdução
O presente artigo se origina de pesquisa em desenvolvimento para um Trabalho
de Conclusão de Curso (TCC) do curso de Museologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, que tem por objetivo analisar as representações da cidade de Canoas a
partir da exposição histórica do museu do município, o Museu Hugo Simões Lagranha.
O Museu existe desde 1990, tendo dividido sua sede com o Arquivo Público e com
a Biblioteca Pública do Município até o ano de 2016, quando foi transferido para a Casa
dos Rosa, edificação restaurada para ser uma instituição cultural da cidade. Atualmente o
Museu conta com três salas expositivas, estando duas com uma exposição temporária
realizada para a Primavera dos Museus e uma sala dedicada aos acervos pertencentes ao
prefeito que dá nome ao Museu, Hugo Simões Lagranha.
Ao visitar o Museu, surgem inquietações acerca da exposição e sobre como a
história da cidade está sendo contada a partir dos objetos expostos, textos expográficos,
legendas e temáticas abordadas. Visa-se, ao longo do desenvolvimento dessa pesquisa,
responder as seguintes questões: Qual é a representação da cidade de Canoas na
exposição do museu? Como se deu a construção da narrativa expográfica acerca da
história da cidade? Que materialidades foram selecionadas para construir essa memória?
Há a produção de uma identidade local?
Foram utilizados quatro conceitos norteadores, que desde a concepção desta
pesquisa se mostraram bem presentes e recorrentes: o conceito de cidade (CARVALHO,
ECKERT, 2005; MENESES, 1984, 1985), para entender esse organismo complexo em que
o museu se faz presente e se propõe a representar; o conceito de representação
(PESAVENTO, 2003), a fim de pensar a questão da representação das cidades em museus
históricos; o conceito de imaginário (PESAVENTO, 2006), visando aprofundar o debate
sobre os imaginários que existem acerca da cidade e as formas como eles são

* Graduanda do curso de Museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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reproduzidos ou não pelo Museu; e o conceito de identidade (BAUMAN, 2005; HALL,


2000), com o objetivo de identificar se existe uma identidade local firmada pelo discurso
do Museu.
Neste presente artigo, faço um recorte de minha pesquisa, apresentando e
analisando uma das salas da exposição do Museu, a sala que expõe o acervo referente ao
prefeito Hugo Simões Lagranha.

O museu da cidade, um prefeito: a sala do Hugo Simões Lagranha no Museu


Municipal de Canoas
Os museus de cidade surgem a partir da necessidade de guardar o passado e as
raízes locais, pois o presente e futuro apresentam rápidas mutações decorrentes da
globalização. Com a complexidade das cidades na atualidade, englobando as mais diversas
relações, culturas e identidades, a categoria museu de cidade se torna proeminente.
Segundo Ulpiano Bezerra de Meneses, um museu de cidade deve apresentar
características que o permitam “[...] ser uma referência inestimável para conhecer a
cidade, entendê-la (no seu passado e presente), fruí-la, discuti-la, prever seu futuro, enfim,
amá-la e preocupar-se com ela e agir em consequência” (MENESES, 2003, p.257). Seu
dever, portanto, é de transferir a cidade para dentro da instituição, acompanhando as
mudanças que ela sofreu ao longo do tempo e problematizando o seu futuro.
Entretanto, diferentemente do esperado dessas instituições, grande parte dos
museus de cidades alimenta-se ainda de um “[...] discurso político-cívico e de uma a visão
nostálgica de um passado” (UZEDA, 2016, p.64). Mesmo localizados nos mais diversos
lugares, os acervos e narrativas expositivas dos museus de cidade costumam ser muito
similares entre si, pois, conforme Helena Cunha Uzeda (2016, p.63), visam uma “[...]
valorização de aspectos memoráveis da cidade, suas datas e heróis, com ênfase no orgulho
cívico”, mostrando “[...] apenas parcialmente a riqueza cultural que deu forma à cidade”.
Tal aspecto se aplica ao Museu Municipal Hugo Simões Lagranha, no que tange a
sala expositiva destinada ao ex-prefeito da cidade, que também dá nome à instituição.
Para entender essa figura e o espaço destinado à ele no Museu, se faz necessário retomar
a sua história na cidade de Canoas.
Hugo Simões Lagranha nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 1918. Sua vida
estudantil se deu na sua cidade de origem até o momento em que se mudou para Porto

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Alegre a fim de estudar no Colégio Militar. Entre 1939 e 1941 cursou Ciências Contábeis
no Colégio Nossa Senhora do Rosário e também cursou Administração de Empresas
Públicas na Fundação Getúlio Vargas. Em 1941, Lagranha prestou concurso para fiscal de
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da Secretaria de Fazenda do
Estado do Rio Grande do Sul, passando a exercer essa função em várias cidades. Em 1944,
veio para Canoas, começando sua trajetória no município (ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE
CANOAS, 2009).
Lagranha iniciou sua carreira política em 1954, elegendo-se vice-prefeito de
Sezefredo Azambuja, na legenda do Partido Social Democrático (PSD) de Canoas. Eleito
no ano seguinte ocupou o cargo até 1959, quando concluiu o seu mandato. Entre 1960 e
1963, é requisitado pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul, primeiro assessorando
a Comissão de Desenvolvimento Econômico em 1960 e em 1963 como assessor de Ildo
Meneghetti. Disputa novamente as eleições de Canoas em 1963, desta vez para ocupar o
cargo de prefeito pelo PSD, sendo eleito e ocupando o cargo entre 1963 e 1968
(ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE CANOAS, 2009).
Com a extinção dos partidos políticos em virtude do Ato Institucional nº 2, de 27
de outubro de 1965, ingressou na Aliança Renovadora Nacional, partido de apoio ao
regime militar instaurado no país em abril de 1964. Em 1968 foi nomeado prefeito
municipal por ato do governador Walter Peracchi Barcellos, exercendo o mandato até
1971. Nas eleições de 1972 foi vereador de Canoas na legenda da Arena. Com a extinção
do bipartidarismo, em novembro de 1979, e a consequente reformulação partidária,
filiou-se ao Partido Democrático Social (PDS), sucessor da Arena. (CENTRO DE PESQUISA
E DOCUMENTAÇÃO HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (FGV), 2017)
Entre 1983 e 1984 retomou o cargo de prefeito de Canoas, por ato do governador
Jair Soares. Transferindo-se para o Partido Democrático Trabalhista (PDT), reelegeu-se
em novembro de 1988, exercendo o novo mandato até o ano de 1992. Em 1994, é eleito
pelo PTB à Câmara Federal e exerce o mandato até 1996, quando renuncia para concorrer
à Prefeitura de Canoas, à qual chega pela quinta vez eleito em outubro de 1996, com mais
de 85 mil votos (ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE CANOAS, 2009).
Além da atuação política, o ex-prefeito teve expressiva atuação junto a entidades
assistenciais e clubes, como na Associação Beneficente de Canoas, na presidência do
Hospital Nossa Senhora das Graças e do Canoas Tênis Clube, entre tantas outras entidades

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da sociedade canoense. Ganhou inúmeras vezes distinções, láureas e méritos por seus
trabalhos prestados.
O Museu Municipal teve sua origem a partir de ações do prefeito Hugo Lagranha,
como a criação do Arquivo Histórico Municipal pela Lei nº 2334 de 13 de Junho de 1985.
Em 1990 é instaurada a Seção de Arquivo Histórico e Museu do Município junto à
Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Em 2003 o Museu se desvincula do Arquivo,
apesar de continuar sediado no mesmo prédio da Secretaria da Cultura, juntamente à
Biblioteca Pública. Apenas em 2007, com a Lei nº 5182 o Museu Municipal de Canoas
passou a receber o nome de Hugo Simões Lagranha, tendo o mesmo como patrono da
instituição.
Em 2016, o Museu Hugo Simões Lagranha passou a ser sediado na recém-
restaurada Casa dos Rosa, considerada a mais antiga edificação da cidade e tombada pela
Prefeitura em 2009. Nessa nova sede, o Museu possui três salas expositivas no segundo
andar da edificação, dedicado à exposição histórica sobre a cidade. Uma dessas salas é a
que representa o prefeito e patrono do Museu.
O acervo do Museu referente ao ex-prefeito é significativo em quantidade,
constituído desde mobiliários até canetas de seu escritório. Todos os objetos que faziam
parte de seu escritório pessoal foram deixados em testamento para a instituição pelo
próprio Lagranha e doados pela sua esposa Derma Maria Paim. Deste vasto acervo, estão
em exposição os móveis do gabinete, objetos decorativos, livros diversos, quadros, fotos
pessoais e troféus recebidos por suas gestões, criando uma ambientação do seu local de
trabalho dentro do Museu.

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Figura 3 - Sala do ex-prefeito

Fonte: da autora, 2017.

Figura 4 - Sala do ex-prefeito

Fonte: da autora, 2017.

Os objetos inseridos num contexto museológico deixam de ser apenas


materialidades funcionais e passam a possuir um sentido simbólico. Segundo Cardoso,

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por trás de cada museu, de cada coleção e cada exposição há uma “[...] proposta de
consagrar uma ideia ou identidade através da reunião e disposição de objetos percebidos
como significativos (CARDOSO, 2003, p. 190). Bittencourt (2009, p.95), sobre essa
questão, coloca que “[...] os artefatos, de certa forma, nos fazem. Podemos facilmente
reconhecer uma pessoa através de seus objetos”.
Sendo assim, o que os objetos musealizados de Hugo Lagranha, reunidos na sala
do museu municipal, têm a dizer aos seus visitantes sobre o ex-prefeito? Agenda e
máquina de escrever em cima da mesa, livro aberto na estante onde se encontram
diversos livros, prêmios recebidos e objetos decorativos reconstroem o espaço de
trabalho do ex-prefeito como se ele tivesse acabado de sair do local. A representação
simbólica desses objetos remete a um político intelectual, que realizou grandes feitos em
suas gestões. O fato dele mesmo ter inventariado os seus bens a serem preservados o
coloca como um dos “construtores” dessa imagem e dessa memória acerca de sua figura
política.
Não é objetivo aqui analisar detalhadamente as ações de Lagranha enquanto
prefeito, mas refletir sobre a representação dele que é construída pela exposição. O
discurso expositivo nos insere numa reprodução do local de trabalho do ex-prefeito, como
uma cenografia feita com objetos musealizados. Não há legendas nos objetos, como se eles
por si só comunicassem suas memórias e significados, como se o que está sendo exposto
se justificasse apenas por ter pertencido ao ex-prefeito. O único texto expográfico dessa
sala reforça a figura de Hugo Lagranha como um político de grande destaque, “memorável
pelo esmero e dedicação” ao estar à frente da prefeitura de Canoas e proporcionar
melhorias nos diversos âmbitos das necessidades públicas.

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Figura 3 - Texto expográfico

Fonte: da autora, 2017.

Segundo Marcos José Pinheiro (2004), ao eleger o que será lembrado, a partir de
critérios e normas pré-definidas, o homem também está elegendo o que será esquecido.
Por isso, ao utilizar dos conceitos de Walter Benjamin, Mariza Veloso (2003, p.116) afirma
que “[...] os museus trazem uma história “narrada” e outra “silenciada””. Essa dualidade
entre lembrar e esquecer está presente na exposição do Museu Hugo Simões Lagranha.
Enquanto os objetos e texto expõem ao público um político intelectual e portador de
prestígios pelos atos realizados enquanto prefeito de Canoas, enaltecendo suas gestões,
deixam de lado outras histórias possíveis de serem contadas e problematizadas, como por
exemplo: o período em que Lagranha presidiu Canoas durante a ditatura pela legenda da
Arena, ou a atuação dele para além de seu gabinete, podendo trazer a tona faces do
prefeito que não são tão reconhecidas e provocando a reflexão dos visitantes sobre sua
figura e atuação na cidade de Canoas.

Considerações finais

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Os museus são instituições destinadas à pesquisa, conservação e comunicação.


Essas funções se entrelaçam no objetivo de transmitir conhecimento e provocar reflexões
por parte do visitante, gerando novas interpretações sobre a temática apresentada.
Pensando em museus de cidade, esse possui um papel importante na transmissão de
discursos sobre a história do município, na construção de identidades e memórias
coletivas e a no pensamento crítico acerca do passado, presente e futuro do local onde se
vive.
Em contrário ao que a bibliografia aborda sobre a potencialidade dos museus de
cidade, muitas dessas instituições continuam perpetuando apenas uma face da história,
sem dar margem à interpretações. Ao transferir a sede do Museu Hugo Simões Lagranha,
teve-se a possibilidade de mudar a expografia e os discursos comunicados pela instituição.
Entretanto, não foi o que ocorreu. A concepção da sala de Lagranha no novo espaço não
propôs novas perspectivas e olhares sobre a história de Canoas, expondo objetos para
ilustrar um discurso concebido, ao invés de problematizar esse discurso.
A figura heroicizada do ex-prefeito e o discurso cívico focado em avanços presentes
na sala comprometem a construção de identidade e de memórias coletivas, não propondo
aos visitantes, principalmente os habitantes de Canoas, a realização de análise crítica
sobre o passado da cidade e das figuras que fizeram parte de sua história.

Referências bibliográficas:

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Ricardo Ferreira (orgs.). Cidadania, memória e patrimônio: as dimensões do museu no
cenário atual. Belo Horizonte: Crisálida, 2009.

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encruzilhada. In: BITTENCOURT, José Neves, BENCHETRIT, Sarah Fassa, TOSTES, Vera
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Museu Histórico Nacional, v.1)

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UM MOSAICO DE SENTIDOS: CARACTERÍSTICAS CONTRACULTURAIS


DO MOVIMENTO TROPICALISTA BRASILEIRO

Edemilson Antônio Brambilla*

Introdução
Com a hegemonia americana no período pós-Segunda Guerra Mundial, o país
exportou para além-fronteiras seus costumes, sua ideologia e cultura. Os novos padrões
estéticos e comportamentais que entraram em voga em países como o Brasil, na época em
meio a um processo acelerado de urbanização e modernização social, foram capazes de
subverter, em grande medida, os ideais vigentes até então, propagados pelas elites
dominantes e conservadoras que comandavam o país. Esses ideais contrastaram,
principalmente, com os difundidos em meio aos jovens brasileiros do período, que os
consideravam arcaicos e ultrapassados, projetados pelo “sistema” como forma de
manipulá-los. Segundo Andrade (2011, p. 67-8):

A década de 1960 começara de forma alvissareira no Brasil e em boa


parte do mundo; não somente havia por parte de diversos grupos sociais
a disposição para as transformações socioculturais e econômico e/ou
políticas que eram demandadas, como para a emergência de novas
relações nos mais diferentes níveis entre os países. Em perspectiva
mundial uma geração tornava-se adulta após a Segunda Grande Guerra
Mundial e procurava em face de um contexto político hostil marcado pela
Guerra Fria, determinar suas escolhas e não ser um mero apêndice de
homens, regimes e ideias que muitas vezes, e em nome da emancipação
humana somente havia demonstrado à impiedosa e fria face de uma
racionalidade obliterada.

Identificados com os ideais do movimento contracultural, esses traços


contestatórios e libertários parecem mais evidentes em meio aos jovens que, de alguma
forma, estiveram ligados a algum tipo de manifestação artística. Os músicos, por exemplo,
foram alguns dos principais difusores dessa ideologia, fazendo de sua atitude
comportamental e de suas criações musicais um importante meio catalizador desses

* Acadêmico do Curso de Música (L) da Universidade de Passo Fundo. Contato:


<edemilson.brambilla@gmail.com>.

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ideais contraculturais que emergiam no período, contrapondo-se, principalmente, à


ditadura militar brasileira, instaurada no país desde os primeiros meses de 1964.
Liderados principalmente por Caetano Veloso e Gilberto Gil, o tropicalismo surge
nesse conturbado cenário político-social brasileiro. Bastante influenciados pelos ideais da
contracultura, e relacionando-se com outros movimentos artísticos do período, como a
pintura, o teatro e o cinema, a Tropicália buscou fazer frente aos padrões impostos até
então, caracterizando-se como um espaço intenso de indagações culturais, sociais,
econômicas e políticas. Segundo Caetano (1997, p. 121), vivia-se um período
excepcionalmente estimulante para os compositores, cantores e músicos, já que, o
reconhecimento da força presente na música popular era genuíno entre ambos,
exacerbado pela instintiva repulsa à ditadura militar, o que unia uma aparente totalidade
da classe artística, incluindo cineastas, diretores de teatro, poetas e artistas plásticos, em
torno do objetivo comum de lhe fazer oposição.
Nesse sentido, é importante que busquemos elucidar um pouco mais a vivência dos
jovens durante esse período, especialmente os que estiveram ligados ao movimento
tropicalista, percebendo o posicionamento destes com relação à ditadura militar
brasileira e os ideais do movimento contracultural emergentes no país. Inicialmente
discorreremos sobre a contracultura e sua clara oposição ideológica com a ditadura
militar brasileira, e, em seguida, buscaremos apontar os reflexos dessas influências nas
atitudes comportamentais e criações musicais do movimento tropicalista brasileiro.

O Brasil dos anos 1960: contracultura e ditadura militar


Os sucessivos governos militares, instaurados em vários países latino-americanos
durante a segunda metade do século XX − a exemplo de Argentina, Chile e Brasil −,
influenciaram diretamente a estrutura sócio-política dos mesmos. No caso brasileiro,
após o Golpe militar de 31 de março de 1964, cuja principal consequência foi a derrubada
do poder do então presidente João Goulart, consecutivos governos militares alternaram-
se no comando do país, fazendo uso de dispositivos legais e ilegais como forma de
legitimar suas ações, aumentando consideravelmente sua autonomia, e pondo fim a mais
um período de experiência democrática brasileira. Para Skidmore (2010, p. 355), os Atos
Institucionais – decretos usados para dar plenos poderes aos militares −, foram uma nova

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e decisiva resposta à visível incapacidade do Executivo brasileiro de exercer a autoridade


necessária.
O principal deles, o Ato Institucional n° 5 (AI-5), promulgado em 13 de dezembro
de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, atribuía quase que poderes absolutos
aos militares, estipulando, entre outras medidas, a censura prévia aos meios de
comunicação e às artes em geral. Desse modo, conforme Fico (2004, p. 95), “as novelas, os
programas de auditório, os shows musicais etc. eram ciosamente acompanhados pela
censura de diversões públicas”, o que acabou gerando intensa inquietação na imprensa e
na classe artística, tendo em vista que alguns desses meios eram utilizados como forma
contestação à ditadura militar e ao “sistema” como um todo.
Com a perseguição aos opositores do regime militar tornando-se cada vez mais
intensa, artistas com maior visibilidade midiática, meios de comunicação e as próprias
manifestações artísticas, eram acompanhadas de perto pela vigilância militar. Segundo
Veloso (1997), o AI-5 instaurou um regime policial truculento que fez, em retrospecto, os
primeiros quatro anos que passáramos sob os militares parecerem razoáveis e amenos.
Em contrapartida, oriundo, em sua gênese, dos Estados Unidos e de alguns países
da Europa, os ideais do movimento contracultural chegam ao Brasil com maior
intensidade principalmente durante a segunda metade da década de 1960, marcando
consideravelmente toda a geração jovem do período, e, travando um intenso embate
ideológico com os ideais mais conservadores propagados pelos militares e demais elites
que se encontravam no comando do país. Sobre o surgimento e ideologia contraculturais,
Maciel (apud PEREIRA, 1986, p. 13) aponta:

O termo “contracultura” foi inventado pela imprensa norte-americana,


nos anos 60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas
que floresceram, não só nos Estados Unidos, como em vários outros
países, especialmente na Europa e, embora com menor intensidade e
repercussão, na América Latina. Na verdade, é um termo adequado
porque uma das características básicas do fenômeno é o fato de se opor,
de diferentes maneiras, à cultura vigente e oficializada pelas principais
instituições das sociedades do Ocidente.

Ainda conforme Pereira (1986, p. 08), o fenômeno, em sua gênese, é caracterizado


por seus sinais mais evidentes: cabelos compridos, roupas coloridas, misticismo, um tipo
de música, drogas e assim por diante. Um conjunto de hábitos que, aos olhos das famílias

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de classe média, tão ciosas de seu projeto de ascensão social, parecia, no mínimo, um
desproposito, ou um absurdo. No entanto, aos poucos, começava a ficar mais claro que
aquele conjunto de manifestações culturais novas não se limitava a estas marcas
superficiais, significando também novas maneiras de pensar, modos diferentes de encarar
e de se relacionar com o mundo e com as pessoas, ou seja, outro universo de significados
e valores, com regras próprias. Segundo Hall (1970, p. 56-57):

[...] Podemos tratar a crescente politização do Underground, desde a luta


integrada pelos direitos civis, através de revoltas nos campus, a militância
separatista do poder negro e da nova esquerda branca. Aqui,
primeiramente se forjou uma crítica ao sistema - pobreza no meio da
opulência, o poder do complexo industrial-militar, a obscenidade da
guerra e o neoimperialismo americano em escala global, a grande mentira
da manipulação dos meios de massa, o crescente absurdo de amplos
setores da juventude americana, a educação errônea e compulsiva dos
estudantes nas enormes e impessoais estruturas das multiuniversidades
dependentes das corporações. Porém, em segundo lugar, à medida que os
problemas se ampliaram e começaram a se complicar, forjou-se também
um novo estilo de ativismo político: as marchas pela liberdade, a
organização das comunidades, ocupação dos campi, o “teach-in”, as
manifestações de massa, os levantes urbanos caracterizados pelo saque e
incêndio, os vários tipos de confrontação. Nesta matriz, uma geração
inteira, um continente, uma era de convencionalismo político, evasões,
ideologias e agrupações foram descongeladas.

Para Couto (1999, p. 89-90), este é um período de grande mobilização,


especialmente da juventude. Há uma rejeição ao estabelecido, visto como velho, obsoleto,
superado. Quer-se o novo, vale o novo. Quer-se a “imaginação no poder”. A voz de
comando é por ideias libertárias. A proposta é a de construir uma utopia de liberdade.
Tudo isso, claro, repercute e influencia notavelmente os acontecimentos em países como
o Brasil, porque colide frontalmente com valores básicos do próprio regime militar. Nesse
sentido, Ridenti (2003, p. 143) aponta que:

Após o golpe de 1964, os artistas não tardaram a organizar protestos


contra a ditadura em seus espetáculos. Ainda mais porque os setores
populares foram duramente reprimidos e suas organizações
praticamente inviabilizadas, restando condições melhores de
organização política especialmente nas camadas médias
intelectualizadas, por exemplo, entre estudantes, profissionais liberais e
artistas. Esse período testemunharia uma superpolitização da cultura,
indissociável do fechamento dos canais de representação política, de

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modo que muitos buscavam participar da política inserindo-se em


manifestações artísticas.

A clara oposição ideológica aos ideais impostos pelo regime militar, somados ao
descontentamento para com o rumo da canção brasileira, e a adesão a referências como a
linguagem geométrica, urbana e visual da Poesia Concreta; do Cinema Novo, com o filme
Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha; do Modernismo da década de 20,
especialmente os aspectos carnavalescos e antropófagos de Oswald de Andrade, com a
obra O Rei da Vela (1937); e do experimentalismo presente no rock, principalmente no
disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band dos Beatles fizeram com que Caetano e Gil
buscassem por novas experiências musicais, motivados pelo anseio de uma “sonoridade
universal”, dando origem, assim, à Tropicália.

O movimento tropicalista e o Brasil dos anos 1960


Durante o ano de 1967, em meio ao conturbado cenário político brasileiro,
emergem no país, ideais de um movimento que, entre outras coisas, buscou subverter os
padrões estéticos e comportamentais impostos pelas classes dominantes. Bastante
influenciados pelo movimento contracultural, os tropicalistas expressavam sua revolta
frente à ordem vigente em suas vestimentas, seus discursos, suas criações musicais e
através da postura de seus integrantes. É preciso considerar que, conforme Dunn (2009,
p. 19), as manifestações musicais da Tropicália não propunham um novo estilo ou gênero,
em vez disso, envolviam uma colagem de diversos estilos: novos e antigos, nacionais e
internacionais. Em um nível, a música tropicalista pode ser entendida como uma releitura
da tradição da música popular brasileira à luz da música pop internacional e da
experimentação de vanguarda.
Um dos marcos iniciais do movimento, o III Festival de Música Popular Brasileira,
promovido pela TV Record, teve, entre outras atrações, Caetano acompanhado pelo grupo
Beat Boys, interpretando a música Alegria, alegria, e Gil acompanhado pelo grupo Os
Mutantes, interpretando a música Domingo no Parque. O feito provocou certa aversão por
parte do público, “afinal, era a primeira vez que guitarras elétricas entrariam no palco de
um festival de MPB – inovações que, na estreita visão dos mais esquerdistas e xenófobos,

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tinha efeito de uma heresia, de um insulto contra a cultura nacional.” (CALADO, 1997, p.
131). Nesse mesmo sentido, Basualdo (2007, p.12) aponta que:

O motivo pelo qual o uso de guitarras elétricas em um festival de música


popular havia se tornado um ponto tão delicado e contencioso se devia à
posição que esta ocupava no Brasil do fim dos anos 60. No período que
começa com o início da ditadura militar em 1964 – e que em certa medida
se encerraria em 1968, ao ser decretado o AI-5 –, a música popular havia
se tornado o veículo privilegiado de dissensão política. No imaginário
cultural da época, correspondia à música popular, em grande parte, o
papel de articular um ideal de nação – concebido em função de
revalorizar suas “raízes” culturais – e de exercer a liberdade de expressão
em clara oposição ao projeto ideológico e político dos militares.

Para Andrade (2011, p. 91), o impacto das duas canções foi deveras profundo no
solo conflituoso da música brasileira, e da própria cultura nacional, pois, até então, o
espaço da cultura que se afirmava como nacional era não somente assegurado, como
resguardado de forma intransigente, onde nada estrangeiro, alienígena, ou informe
poderia transpor as fronteiras estabelecidas. Ao ponto em que, a partir de então, novos
preceitos estéticos e comportamentais entraram em cena na música brasileira, fazendo
dos festivais um dos principais meios difusores dessa ideologia rebelde e contestatória
propagada, principalmente, pela Tropicália.
Veloso (1997, p. 121), afirma que a música popular funcionava como arena de
decisões importantes para a cultura brasileira e para a própria soberania nacional. Os
festivais eram o ponto de interseção entre o mundo estudantil e a ampla massa de
telespectadores, visto que, em todos os níveis tinha-se a ilusão, mais ou menos consciente,
de que ali se decidiam os problemas de afirmação nacional, de justiça social e de avanço
na modernização.
Lançado em meados de 1968, pela gravadora Philips Records, o disco-manifesto
tropicalista, denominado Tropicália, ou panis et circencis, parece elucidar melhor os ideais
defendidos pelo movimento. Lançado de forma coletiva, com os principais nomes da
Tropicália: Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Rogério Duprat, e os
poetas Torquato Neto e José Carlos Capinam, o álbum incorpora uma ampla variedade de
antigos e novos estilos, sejam nacionais ou internacionais, como rock, bossa-nova,
mambo, bolero, e hinos litúrgicos. Tropicália, ou panis et circencis, alusão à famosa
afirmação do poeta clássico Juvenal, que expressava seu desdém pelos cidadãos da Roma
antiga, aplacados pela manipulação calculada de “pão e circo”, também foi o primeiro

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álbum conceitual brasileiro a integrar letras de músicas, arranjos musicais, material visual
e um texto em forma de roteiro de cinema (DUNN, 2009).
Ainda segundo o autor, a capa de Tropicália, ou panis et circencis faz referência a
faixa “Panis et circencis”, de Caetano e Gil, que satiriza as convenções de uma família
burguesa tradicional. Na imagem, Gal e Torquato aparecem como um casal convencional,
bem-comportado; Gil está sentado no chão vestido com um roupão estampado com temas
tropicais segurando uma foto de formatura de Capinam; Duprat segura delicadamente um
penico como se fosse uma xícara de chá; Tom Zé se apresenta como um migrante
nordestino, levando uma bolsa de couro; Os Mutantes exibem ostensivamente suas
guitarras; e Caetano está sentado no meio, segurando um grande retrato de Nara Leão,
que usa um grande chapéu de praia. Vejamos:

Figura 5 - Capa do LP Tropicália, ou panis et circencis (1968)

Contendo doze faixas: “Miserere nóbis”, “Coração materno”, “Panis et circencis”,


“Lindoneia”, “Parque industrial”, “Geleia geral”, “Baby”, “Três caravelas (Las tres
carabelas)”, “Enquanto seu lobo não vem”, “Mamãe, coragem”, “Bat macumba” e “Hino ao
Senhor do Bonfim”, o disco faz uma síntese das inovações estéticas propostas pela
Tropicália no meio musical. Ao explicar o conceito por trás do álbum, Caetano (1997, p.
168), afirma que os músicos, ao invés de trabalharem em conjunto no sentido de
encontrar um som homogêneo que definisse o novo estilo, preferiram utilizar uma ou

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outra sonoridade reconhecível da música comercial, fazendo do arranjo um elemento


independente que clarificasse a canção, mas também se chocasse com ela. De certa forma,
o que eles buscavam fazer equivalia a “samplear” retalhos musicais, tomando os arranjos
como ready-mades.
A contestação, somada de uma crítica irônica aos padrões difundidos pelas classes
mais conservadoras, parece ficar evidente em muitas das letras de canções que compõem
o disco. Segundo Dunn (2009, p. 118), Geleia geral, faixa composta por Gilberto Gil e
Torquato Neto, é uma música alegre que propõe uma síntese. No refrão, por exemplo, a
dança folclórica tradicional bumba-meu-boi se funde com o iê-iê-iê brasileiro em uma
única dança: “É bumba-iê-iê-iê, é a mesma dança meu boi”. Ao sugerir as possibilidades de
novos híbridos culturais baseados em danças tradicionais e no rock, a música contestava
as noções vigentes de autenticidade cultural no Brasil. Ainda segundo Dunn, Geleia geral
é a composição “literária” mais autocrítica do álbum tropicalista por parodiar a linguagem
ornamental e o verso convencional, ao mesmo tempo em que utiliza técnicas de
montagem similares às adotadas por Oswald de Andrade. A primeira estrofe evoca a
figura do poeta oficial que enaltece a beleza natural do Brasil. Utilizando um bombardeio
de clichês rimados que trazem à lembrança a poesia do fim do século, a música satiriza o
discurso patriótico e a pompa das belas-letras: Vejamos mais um trecho da canção:

[...] o poeta desfolha a bandeira / e a manha tropical se inicia /


resplandecente, cadente, fagueira / num calor girassol com alegria / na
geleia geral brasileira / que o Jornal do Brasil anuncia [...].

Inspirada diretamente pela gravura de Rubens Gerchman, denominada Lindoneia,


a Gioconda dos subúrbios − uma interpretação de La Gioconda, de Leonardo da Vinci −, a
letra de Lindoneia, composta por Caetano Veloso, descreve a vida cotidiana de Lindoneia,
uma solteira do subúrbio, com referências à eterna presença da mídia de massa, da
violência urbana e da vigilância policial (DUNN, 2009, p. 138). A letra parece ainda fazer
uma possível referência à violência e repressão que ronda e cerceia os cidadãos em um
período ditatorial. Vejamos:

[...] despedaçados, atropelados / cachorros mortos nas ruas / os policiais


vigiando / o sol batendo nas frutas, sangrando / ai, meu amor / a solidão
vai me matar de dor [...]

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Durante a última metade do ano de 1968, os ideais tropicalistas deixaram de ser


fundamentados em uma sátira irônica ao cenário brasileiro do período, para se tornar, de
certo modo, mais engajado e agressivo, confrontando de maneira mais direta o momento
vivenciado no país, em especial, com relação à ditadura militar. Um dos momentos mais
polêmicos do movimento tropicalista ocorreu na temporada de festivais que se estendeu
entre setembro e novembro de 1968. A participação de Caetano e Gil no Festival
Internacional da Canção de 1968 causou novamente intensa revolta nos ouvintes.
Segundo Dunn (2009, p. 154), Gil apresentou “Questão de ordem”, que introduzia
elementos estilísticos do rock e da música soul afro-americana. Nas eliminatórias do FIC,
Gil foi vaiado pelo público universitário e sua música não foi classificada. Até os críticos
que tinham elogiado o trabalho anterior de Gil começaram a questionar a nova tendência.
Isso se deve, em grande medida, ao fato de que, durante a fase tropicalista, Gil
começou a se identificar com toda a atitude libertária que existia na América, na nova
esquerda, na vida universitária norte-americana, nas experiências da nova literatura, do
novo teatro, nas experiências do Black Power nos Estados Unidos, nas experiências com
drogas, com LSD, com expansores da consciência, com a atitude iconoclasta dos jovens
internacionalistas (DUNN, 2009, p. 156).
Caetano Veloso, por sua vez, apresentou a música “É proibido proibir”, título
inspirado no slogan de uma popular rebelião estudantil de maio de 1968 na França.
Segundo Dunn (2009, p. 159) através da mistura de rock, política radical francesa e do
poema “D. Sebastião” (1934), de Fernando Pessoa, parecem evidentes o escopo trans-
histórico e internacional da música. Ainda segundo o autor, assim como “Questão de
ordem”, a música de Caetano também expressava uma atitude anárquica em relação à
cultura e à política. A canção é dividida em duas partes. Na primeira, Caetano faz
referência a vários mecanismos de controle social, como valores familiares tradicionais,
mídia de massa e instituições educacionais formais. Na segunda, instiga a subversão
dessas regras e restrições. Vejamos:

A mãe da virgem diz que não / e o anúncio da televisão / estava escrito


no portão / e o maestro ergueu o dedo / e além da porta / há o porteiro,
sim / e eu digo não / e eu digo não ao não / eu digo: é proibido proibir /
me dê um beijo, meu amor / eles estão nos esperando / os automóveis
ardem em chamas / derrubar as prateleiras / as estantes, as estátuas / as
vidraças, louças, livros, sim / caí no areal na hora adversa que Deus
concede aos seus / para o intervalo em que esteja a alma imersa em

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sonhos que são Deus / que importa o areal, a morte, a desventura, se com
Deus me guardei / é o que me sonhei, que eterno dura / é esse que
regressarei

Apesar do clima adverso aos tropicalistas, em entrevista concedida a Nelson Motta,


do jornal Última Hora, Caetano afirmava: “O importante é não abrir concessões à
repressão e assim vou continuar agindo, sem pensar onde possa parar, ou eu ou minha
carreira. E é exatamente por isso que somos tão perseguidos, porque somos incômodos
de verdade, não nos limitamos ao blá-blá-blá. Somos a própria revolução encarnada”
(CALADO, 1997, p. 233).
Como resultado dessa turbulenta relação entre Caetano – e, de certo modo,
também os demais artistas tropicalistas − e os militares, Caetano e Gil acabaram presos
em 27 de dezembro de 1968, logo após a edição do AI-5. Segundo Calado (1997, p. 255),
após dois meses de prisão arbitrária, em quartéis militares do Rio de Janeiro, Gil e Caetano
passaram outros cinco meses de ostracismo forçado, em regime de prisão domiciliar, na
capital baiana. Só depois de uma arrastada negociação com os militares, mediada pelo
comandante da Polícia Federal de Salvador, conseguiram a permissão para fazer um
show, um jeito de obterem dinheiro para a viagem, pois logo em seguida deveriam deixar
definitivamente o país.

Considerações finais
O exílio de seus principais líderes, em meados de 1969, pôs fim ao movimento
tropicalista. No entanto, as importantes inovações estéticas e comportamentais propostas
pelo movimento parecem evidentes. Segundo Favaretto (1996, p. 21), o tropicalismo
surgiu como uma moda, dando forma a certa sensibilidade moderna, debochada, crítica e
aparentemente não empenhada. De um lado, associava-se a moda ao psicodelismo,
mistura de comportamentos hippie e música pop, indiciada pela síntese de som e cor; de
outro, a uma revivescência de arcaísmos brasileiros, que se chamou de “cafonismo”. Para
Dunn (2009, p. 19):

Os tropicalistas contribuíram decisivamente para o desgaste das


barreiras entre a música erudita, para um público restrito de patronos da
elite, e a música popular, para o público geral. A Tropicália foi um caso
exemplar de hibridismo cultural que desmantelou a dicotomia
responsável pelas distinções formais entre a produção da alta e baixa
cultura e da cultura tradicional e moderna, nacional e internacional.

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Ainda nesse sentido, Basualdo (2007, p. 59) aponta que:

Suas principais canções-manifestos eram alegóricas, apresentando


relatos pesarosos da história nacional, muitas vezes sob o disfarce da
ironia e da sátira. Suas performances mais importantes, no entanto,
apontavam em uma nova direção, informada pela contracultura
internacional e carregada de exuberância catártica em face da repressão
crescente. A tensão entre esses dois impulsos produziu a mistura curiosa
e potente de melancolia e alegria que definiu a música tropicalista.

Assim, tendo também como tônica uma espécie de contestação marcadamente


agressiva, e amplamente difundida através de discos, espetáculos e festivais de música
popular, a Tropicália assume um importante papel na música brasileira do período, capaz
de subverter, ao menos em partes, a ordem imposta pelas classes mais dominantes e
conservadoras, impondo consideráveis transformações sociais, especialmente no que diz
respeito à ditadura militar e aos padrões estéticos da sociedade de consumo.

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Enzio Gercione Soares de. “Essas pessoas na sala de jantar”: espaços históricos
em canções tropicalistas (1963-1973). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
Graduação em História/PPGH – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2011.
191p.

BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. E-Book,


2007.

CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Ed. 34, 1997.
333 p.

COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da ditadura e da abertura: Brasil: 1964-1985.


3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. 517p.

DUNN, Christopher. Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura


brasileira. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 276p.

FAVARETTO, Celso. Tropicália alegoria alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. 158p.

FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Ed.
Record, 2004. 392p.

MELLO, Zuza Homem de. A Era dos festivais: uma parábola. 5ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2010.
523 p.
PEREIRA, Carlos A. M. O que é contracultura. Ed. Brasiliense, 1986. 4 ed. 100p.

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RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: O Brasil
Republicano: o tempo da ditadura, regime militar e movimentos sociais em fins do séc. XX.
FERREIRA, J.; DELGADO, L. A. N. (Orgs.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 4, 2003,
432p.

SKIDMORE, Thomas Elliot. Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-64). São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.

Tropicália, ou panis et circencis. (Álbum coletivo). Philips Records, 1968.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia de Bolso, 1997.

HALL, Stuart. Los hippies: una contra-cultura. Barcelona, Editorial Anagrama, 1970.

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PROVIDÊNCIA, PROGRESSO E O AGENTE HISTÓRICO: AS FILOSOFIAS


DA HISTÓRIA DE HEGEL E TOCQUEVILLE

Nicolle Eloisa Lemos*

A Revolução Francesa foi um grande evento do século XVIII que abalou todos os
alicerces da Europa moderna. Como demonstraram os historiadores e teóricos Reinhart
Koselleck e José Carlos Reis, este evento também transformou profundamente o sentido
histórico e a maneira de escrever a História. Se antes os homens acreditavam que nada de
novo poderia surgir no horizonte do futuro, que do conhecimento histórico poderiam se
instruir, constituindo a História como Magistra Vitae, Koselleck constata que, com a ideia
de progresso desenvolvido pelos iluministas, a concepção humana de expectativa amplia-
se, confundindo a fé na razão com a crença emancipadora da mudança histórica.
José Carlos Reis, por sua vez, aponta duas novas significações chaves da concepção
de História na Europa moderna: a História como produção do futuro, vinculada com a ideia
de progresso, influenciada pelos iluministas, e a História como reconstrução do passado, pelos
historiadores e filósofos românticos. Fazendo uma análise da História entre a Filosofia e a
Ciência, o historiador demonstra como no decorrer do século XIX a História esteve
intimamente vinculada à Filosofia, se emancipando apenas no século XX com a Escola dos
Anais que, apoiada nas teorias das novas ciências sociais, se aproximou de um
conhecimento “cientificamente orientado”.
Neste sentido, o presente texto pretende apresentar a Filosofia da História de
Hegel, partindo da elaboração hegeliana de História como o desenvolvimento
progressista do Espírito no tempo. Em contraposição, buscarei desenvolver a concepção
tocquevilleana da obrigação do historiador de julgar as ações e os agentes históricos,
desvinculado assim, da ideia de história narrativa. Nesta medida, se para Hegel a História
é o progresso do Espírito, tudo que acontece na História da humanidade torna-se
justificável. Tocqueville, por sua vez, compreende que o historiador deve julgar os fatos e
as épocas para, assim, discernir a relevância destes na compreensão do processo
histórico. Nesta perspectiva, explicitarei as filosofias da História de Hegel e Tocqueville,

* Graduanda em História – UFPel.

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partindo das discordâncias e aproximações entre ambas, enquanto analiso os


entendimentos dos filósofos sobre a atuação do homem na História.

O Herói histórico de Hegel


O sistema filosófico de Hegel tem a razão como a lei do mundo, assim, todos os fatos
que compõe a História da humanidade aconteceram racionalmente. A Razão é a
substancia infinita que através dela e nela toda a realidade tem o seu ser e sua
subsistência, sendo sua própria base de existência e meta final absoluta que “realiza essa
meta a partir da potencialidade para a realidade, da fonte interior para a aparência
exterior, não apenas no universal natural, mas também no espiritual, na história do
mundo” (HEGEL, 2012, p. 55).
A constatação hegeliana de que há Razão na História, pressupõe que o mundo não
está abandonado ao simples acaso, mas é guiado à luz da Ideia racional. Para fundamentar
tal afirmação, Hegel apela para a religiosidade: Se Deus manifesta-se na vida dos animais
e dos homens, por que não se manifestaria na História do Mundo?
O Espírito então aparece como aquele que detém o domínio da história do mundo,
ou melhor, o Espírito e seu desenvolvimento são a matéria da história:

Depois da criação da natureza surge o Homem. Ele constitui a antítese ao


mundo natural, é o ser que se eleva até o segundo mundo. Temos dois
reinos em nossa consciência universal, o reino da Natureza e o reino do
Espírito. O reino do Espírito consiste naquilo que é apresentado pelo
homem. Pode se ter todo tipo de Ideias a respeito do Reino de Deus, mas
sempre haverá um reino do Espírito para ser claramente compreendido
e realizado no homem.
(HEGEL, 2012, p. 65).

O homem, portanto, é ativo no Espírito, na medida em que ele é a criatura na qual


o Espírito opera. A essência do Espírito é a Liberdade, a consciência de si, e a história do
mundo é a exposição do Espírito em luta para alcançar o conhecimento de sua própria
natureza. Ou seja, o objetivo final da história é a realização da consciência da liberdade do
Espírito.
A questão dos meios pelos quais a Liberdade se desenvolve, leva Hegel
diretamente ao fenômeno da história. O filósofo assume a tristeza e melancolia ao
observar a história e perceber as catástrofes e as violências que demoliram os governos

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mais admiráveis. Porém, ao delimitar que a Ideia é a “urdidura” e as paixões humanas são
“a trama da imensa tapeçaria da história do mundo”, as atividades humanas movidas por
interesses individuais, proporcionam a força que age e dá impulso a feitos de alcance
universal:

Aqui o necessário em si e para si surge na forma de paixão. Esses grandes


homens parecem apenas seguir sua paixão e sua vontade arbitrária. Mas
eles buscam a proposição universal, só este é seu páthos. Precisamente a
paixão foi a energia de seu egos, sem ela não teriam sido capazes de
realizar nada. Assim, o objetivo da paixão e da Ideia são o mesmo. A
paixão é a unidade absoluta do caráter individual e da proposição
universal. Ela é uma coisa quase animalesca – como o espírito em sua
particularidade subjetiva aqui se torna identificado com a idéia...(HEGEL,
2012, p. 87).

A história do mundo é o avanço em direção ao melhor, ao mais perfeito. Através do


Espírito, que diferente da Natureza é capaz de gerar algo novo, o homem possui um desejo
voltado ao aperfeiçoamento. Neste sentido, apenas o homem possui a liberdade, pois é o
único que pensa, que possui a consciência de si. A Ideia e o indivíduo particular estão na
grande oposição entre a Necessidade da Ideia divina e da Liberdade humana. Assim, como
então o racional pode ser determinante na história? Através das paixões humanas que
desenvolvem seus objetivos segundo suas tendências naturais, sendo que os bons
objetivos individuais podem ser universais. Para Hegel, até mesmo os objetivos
particulares não estão necessariamente opostos ao bem universal, já que o universal deve
se realizar através do particular
Dois fatores importantes no curso da história são a preservação de um Estado e a
destruição de um Estado. A destruição de modo procedente da realidade é aceitável e até
mesmo necessária na medida em que o Espírito do mundo continua o seu rumo e a
ascende um conceito mais elevado de si. Isto é resultado do desenvolvimento interior da
Ideia e da atividade dos indivíduos, que são os agentes que provocam sua realização:

É neste ponto que aparecem aquelas colisões graves entre os deveres, as


leis e direitos existentes e reconhecidos e as possibilidades adversas a
esse sistema, que o violam e chegam a destruir as suas bases e existências.
Seu teor pode, entretanto, parecer bom, vantajoso no conjunto – sim e
mesmo, indispensável e necessário. Estas contingências tornaram-se
agora fatos históricos, envolvem uma proposição universal de ordem

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diferente daquela de que depende a permanência de um povo ou de um


Estado. (HEGEL, 2012, p. 84).

Neste sentido, a proposição universal é essencial no desenvolvimento da Ideia


criadora. Aqueles que apreendem uma proposição universal elevada e fazem dela seu
objetivo, realizando em conformidade com a lei mais elevada do Espírito, são os homens
históricos. Seus objetivos pessoais contêm a vontade essencial do Espírito do mundo. Para
Hegel, estes homens devem ser chamados de Heróis, pois são eles que são movidos pelo
Espírito interior ainda oculto, mas que se prepara para aparecer na superfície e deixá-la
em pedaços, já que seu núcleo é diferente daquele existente. Esses indivíduos:

[...] não tem consciência da Ideia como tal, são homens práticos e
políticos. Ao mesmo tempo são pensadores com a compreensão do que é
necessário e em que momento. Enxergam a própria verdade de sua época
e de seu tempo – eles vêem a próxima espécie que, por assim dizer, já está
formada no ventre do tempo. Eles conhecem esta nova proposição
universal, o próximo estágio necessário de seu mundo, para dela fazer seu
objetivo, colocando nela toda a sua energia. (HEGEL, 2012, p. 85).

Assim, o Herói histórico representa a moral do Espírito do Mundo, aquele em quem


exclusivamente, o individual se funde com o universalmente social. Diferentemente do
cidadão, o Herói hegeliano não está fundido na lei objetiva do Estado, mas carrega em si
as demandas do próprio Espírito do Mundo, ou seja, ele é uma forma fluida do Estado
futuro e suas instituições, sendo assim, portanto, possuidor da moral da criação do Estado
futuro. Neste sentido, o Herói tem acesso direto à realidade da Ideia, que o inspira e faz
dele um sujeito histórico que empurra a história para diante. Portanto, o Espírito do
Mundo utiliza o herói para seus próprios fins, não havendo nele uma espontaneidade
ontológica.
Isto posto, não é importante, e é até mesmo inconveniente, levantar pretensões
morais contra os atos e agentes históricos, pois a história do mundo está em um nível mais
elevado do que o da moral. Sendo a moral a consciência pessoal, ela possui valores
próprios. O objetivo absoluto do Espírito, suas exigências e realizações, por sua vez, estão
acima das obrigações e responsabilidades morais que recaem sobre os indivíduos. Desta
maneira, para Hegel, “um indivíduo pode repelir por razões de ordem moral e por razões
imorais fazer avançar o curso da história” (HEGEL, 2012, p. 129).

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Tocqueville e o historiador juiz

Alexis de Tocqueville foi um importante pensador da primeira metade do século


XIX, que se preocupou com a Revolução Francesa e a democracia na América, tornando-
se um dos grandes e influentes teóricos da democracia. Como outros notáveis filósofos e
pensadores do século XIX, ele também recorreu à História para fundamentar seu
pensamento, acreditando que a partir dos fatos históricos, ele poderia refletir seu tempo
atual e fazer uma previsão de um futuro provável. Mas para isso, o pensador precisou
adotar uma nova maneira de escrever a história, como nos mostra Jasmin:

“Tocqueville sabia que sua verdadeira vocação era ‘julgar os fatos’ mais
que ‘contá-los’. Por isso, quisera afastar-se da tarefa tradicional da
‘história propriamente dita’, dedicada a ‘reconstituir bem a trama dos
fatos’, para encontrar outro modo discursivo que viabilizasse a reflexão e
o julgamento sobre estes eventos. O projeto da nova obra literária
concluía pela necessidade de fundir fatos e idéias, narração e juízo, a
‘história propriamente dita’ e a ‘filosofia da história’, pois ‘a primeira é a
tela e a segunda a cor e é preciso ter as duas para compor o quadro’.”
(JASMIN, 2013, p. 10).

O projeto historiográfico de Tocqueville era pensado a partir da sua utilidade para


a reflexão política contemporânea, demonstrando um forte caráter presentista e
pragmático ao escrever história. Assim, ele buscava as causas dos fenômenos sem se
preocupar com detalhes e superficialidade dos fatos particulares, tentando, desta
maneira, alcançar a universalidade. Neste sentido, superando o discurso narrativo dos
eventos, Tocqueville esquematizava diversas teorias, apontando que nenhum dos
fenômenos históricos e/ou sociais foram desejados ou previstos pelos seus agentes, mas
que são conseqüências de causas e princípios imanentes. Portanto, “os homens de
Tocqueville não fazem a história que querem, mas aquela que, de algum modo, lhes é
imposta pelas condições em que vivem ou que resultam do confronto das ações com estas
condições”. (JASMIN, 2013, p. 15).
Há aqui, uma aproximação, e ao mesmo tempo, uma relevante diferença entre a
filosofia da história de Hegel e a teoria de Tocqueville, pois para ambos pensadores, os
homens não são completamente responsáveis pela história que constroem. Isto porque,
os homens históricos de Hegel são completamente orientados pelo Espírito do Mundo,

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que os utiliza, astutamente, para os seus próprios fins, ou seja, para seu desenvolvimento
progressista. Já para Tocqueville, alguns fenômenos históricos, como a Revolução
Francesa, são inevitáveis, na medida em que esses processos históricos são orientados
por um princípio secular de igualização.
Se para Hegel era desnecessário o julgamento dos fatos e agentes históricos,
Tocqueville, justamente pelo teor presentista e pragmático de seu pensamento, exigia que
o historiador narrasse e desse sua opinião sobre os fatos e agentes do passado. Isto, não
só para exercer uma liberdade moral, mas como também, para discernir a relevância que
os fatos possuem no processo histórico, fugindo assim, do tipo historiador cronista. Por
isso, Tocqueville foi crítico à Filosofia da História de Hegel, pois entendia que por
simplesmente os fatos terem se reproduzidos, eles eram legítimos e mereciam a
obediência do filósofo alemão.
Visto que, para Tocqueville os agentes não são necessariamente os construtores da
História, e mesmo assim, eles devem ser julgados, precisamos compreender como o
teórico fundamenta a atuação da Providência na História:

(...) questiona-se se é possível, e, em sendo, como o é, conciliar a


proposição providencialista com as exigências éticas e políticas de
Tocqueville acerca da responsabilidade individual e coletiva dos homens
perante os destinos das nações e da civilização. Quer-se aí saber se há ou
não determinismo ou fatalismo na filosofia histórica tocquevilleana, de
que modo ele pode prever ou afirmar a continuidade do processo secular
de igualização no futuro e, principalmente, se sua concepção histórica não
estaria contribuindo para aquela que considerava a mais nefasta das
conseqüências políticas das idéias democráticas: a paralisia dos agentes
públicos que reforça o despotismo. (JASMIN, 1997).

Como aponta Jasmin, esse debate entre os comentadores de Tocqueville,


concentra-se em duas perspectivas discordantes. O argumento da inevitabilidade
histórica da democracia associada a Providência poderia ser realmente a crença de que
os acontecimentos históricos são guiados por um plano transcendente, ou então, seria
apenas um apelo argumentativo de Tocqueville para convencer seus leitores sobre a
grandeza e a irresistibilidade da revolução democrática.
Neste sentido, a evolução da história ocidental é orientada pelo processo de
igualização, que substituiria cada vez mais as aristocracias pelas democracias:

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Se longas observações e meditações sinceras levassem os homens de


nosso tempo a reconhecer que o desenvolvimento gradual e progressivo
da igualdade é simultaneamente o passado e o futuro de sua história, esta
única descoberta daria a este desenvolvimento o caráter sagrado da
vontade do soberano senhor. Querer parar a democracia pareceria então
lutar contra o próprio Deus, e não restaria às nações senão acomodar-se
ao estado social que lhes impõe a Providência (TOCQUEVILLE, 1990, vol.
1:4-5 apud JASMIN, 1997).

Recorrer à argumentação divina, para Jasmin, seriam as duas perspectivas.


Tocqueville fala da Providência como um recurso para reforçar sua teoria política e
persuadir seus leitores de que a restauração do Antigo Regime é um caminho sem volta,
mas também, acredita que o autor possa ser sincero em seu argumento providencial, que
não contradiz e nem exclui seus usos retóricos. A compreensão da Providência para
Tocqueville aparece associada, assim, à filosofia da história de Hegel:

Se partimos da suposição de que pode haver de fato um apelo ao plano


divino e nos perguntamos sobre o estatuto da noção tocquevilleana de
Providência, podemos concluir que se trata da noção de uma providência
geral que opera "secundariamente", isto é, pela mediação de leis naturais
ou de paixões e interesses humanos como instrumentos da realização de
seus fins superiores. Ela é compreendida numa acepção "indireta" que, de
modo mais ou menos secularizado, esteve na base de filosofias históricas
como as de Vico, Kant e Hegel, para falarmos apenas das mais notórias.
(JASMIN, 1997).

Embora a aproximação feita à filosofia da História de Hegel, o entendimento de


Tocqueville sobre a ação da Providência na História precisa ser entendida em suas
especificidades, pois ela só é aplicável a uma história vista "do alto" buscando, no curso
dos séculos, as premissas e inclinações dos grandes acontecimentos.

Tocqueville busca na história secular de longo termo as causas


fundamentais da modernidade. Olhando a história universal "do alto", é
possível estabelecer sua direção e seu significado pela apreensão dos
resultados sempre reiterados por causas longínquas ou princípios
operantes. Na medida em que essas causas e esses princípios persistem
na produção dos mesmos resultados ou de um mesmo resultado básico
numa base territorial abrangente e a despeito do que os homens
planejam fazer a cada ponto do percurso, reconhece-se a vontade
providencial. É aqui que se formula uma noção de prudência, associada à
de humildade, que obriga a acomodação das vontades humanas à força

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do processo universal que lhes impõe a Providência e que pode ser


empiricamente apreendida. (JASMIN, 1997).

Ao identificar uma vontade Providencial que orienta a História, Tocqueville


pretendeu não só convencer seus leitores da inevitabilidade da revolução democrática,
mas como também, não definir o destino dos povos e nações ao simples acaso. Com isso,
porém, ele não pretendia delimitar sua filosofia da História às visões fatalistas e
deterministas a qual ele era tão crítico, mantendo sempre a responsabilidade política dos
homens. Assim, os homens de Tocqueville, são livres e responsáveis por realizarem aquilo
que desejam e pensam, porém a vontade Providencial sempre será superior as intenções
humanas. O autor então compreende que a Providência não fez dos homens nem
inteiramente independentes e nem completamente escravos, mas que traça ao redor dos
homens e dos povos, um circulo fatal da qual não podemos sair, mas dentro de seus
limites, somos livres e poderosos:

O recurso à Providência viabilizava assim, pelo menos do ponto de vista


teórico, a compatibilidade entre a ação política livre e responsável no
presente e os resultados de longo curso apreendidos a posteriori pela
análise historiográfica. Com a determinação simultânea do inevitável e do
lugar da liberdade, é possível discriminar os espaços sensíveis à criação
humana, à vontade e à ação construtoras e também as condições de
possibilidade de os homens verem realizados os seus fins políticos. Nesse
sentido, o recurso à Providência, ao conceder à intervenção humana o
sentido da co-responsabilidade na construção histórica do futuro, opera
para garantir significado ético à ação no espaço público, indicando não
apenas que ela é condição necessária para a liberdade como também que
pode ser eficaz em seus propósitos políticos. (JASMIN, 1997).

A partir do entendimento da História como o desenvolvimento progressista do


Espírito no tempo, Hegel pressupõe os homens históricos como heróis que, a partir de
suas paixões, e sendo orientados e utilizados pelo Espírito do Mundo, são os responsáveis
por empurrar o curso histórico, ascendendo o Espírito a um nível acima de si. Assim, estes
agentes históricos, seus atos morais e/ou imorais, sendo responsáveis pelo progresso do
mundo, estão à cima de qualquer moral, por isso não devem ser julgados. Há aqui, um
problema na filosofia da História de Hegel a qual muitos foram críticos, inclusive
Tocqueville. Como sabemos, principalmente após os horrores da Segunda Guerra
Mundial, este argumento de Hegel, torna-se insustentável, e é até mesmo condenado:

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O herói contribuiria com mais do que a simples existência para o Espírito.


Sua moral não se origina apenas no Espírito, mas também das fontes
pessoais do que chamamos a nossa segunda espécie de homem. Se Hegel
houvesse desenvolvido mais está espécie de homem, ele poderia ter
inserido a individualidade espontânea no curso da História, mas não o fez.
O curso da História é impessoal. Por isso, o próprio herói histórico se
torna impessoal e tiraniza indivíduos “menos históricos”. Hegel é
atormentado por isso, mas há a necessidade primordial do
desenvolvimento lógico da Ideia. Aparece então aqui uma deficiência nas
fundamentações morais de Hegel. Seu terceiro homem atrai para si o
segundo, e o resultado é o quarto homem, a vítima. A moral é mais uma
questão coletiva do que individual para Hegel, e o grande homem se
torna, se “necessário”, uma força imoral. Daqui os totalitários modernos
podem partir e partem; os libertários, como Mills, ficam nauseados, e
Hegel, até onde se torna ele mesmo um herói histórico, para os profetas
do totalitarismo de Esquerda e Direita torna-se o pai dos feitos imorais.
(HARTMAN, 2012, p. 38).

Tocqueville, por sua vez, embora reconheça o papel atuante da Providência na


História como responsável do principio de igualdade, ao tornar os homens livres e
atuantes nesse circulo providencial, torna-os também co-responsáveis na construção
histórica. Assim, ele mantém coerente seu projeto historiográfico, que como já foi
mostrado, possui um forte caráter pragmático e presentista. Na mesma maneira, o autor
também salva a sua filosofia de ser determinista e fatalista, atribuindo aos homens seus
deveres políticos. Exatamente por definir os homens como seres livres e atuantes na
História, diferentemente de Hegel, Tocqueville vê a necessidade de julgar os fatos e os
agentes históricos.

Considerações finais
A partir do que foi levantado até o momento, podemos fazer algumas
considerações sobre as filosofias da História de Hegel e Tocqueville e as implicações de
seus pensamentos. Lembrando que estas problemáticas serão mais desenvolvidas em
meu Trabalho de Conclusão de Curso, a qual busca fazer uma análise da relação da
filosofia com a história do século XIX, e como essa relação se transforma no século XX.
Como tentei demonstrar, tanto Hegel quanto Tocqueville, buscaram e encontraram
na História um meio para fundamentar seus pensamentos, e na Providência uma
orientação que levará os homens a um Estado mais perfeito. Porém, ao delimitar a ação

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da Providência no circulo, onde dentro os homens possuem liberdade e poder,


Tocqueville permite aos homens uma espontaneidade ontológica, a qual Hegel não
pressupõe: “As nações de hoje em dia não poderiam impedir que em seu seio as condições
fossem iguais; mas depende delas que a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade,
às luzes ou à barbárie, à prosperidade ou às misérias" (Tocqueville, 1951, vol. 2:339 apud
JASMIN, 1997).
Assim, Tocqueville manteve coerente em sua filosofia, o caráter presentista e
pragmática do seu projeto historiográfico. Além de possibilitar e cobrar do historiador, o
julgamento dos agentes e dos processos histórico. Hegel, por sua vez, não viu a
necessidade de julgar os homens e os fatos históricos, por acreditar que até mesmo seus
atos imorais, são responsáveis pelo progresso do curso histórico, que levará o Espírito a
alcançar o seu objetivo final.

Referências Bibliográficas

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da
história. Introdução de Robert S. Hartman. 4º Edição: São Paulo: Centauro, 2012.

JASMIN, Marcelo Gantus. Alexis de Tocqueville (1805-1859): A historiografia de L’Ancien


Régime et La Rélolution. In: PARADA, Maurício (Org.). Os historiadore: clássicos da
história, vol. 2: de Tocqueville a Thompson. Petrópolis, RJ: Vozes: PUC-Rio, 2013, p. 9-35

JASMIN, Marcelo Gantus. Tocqueville, a Providência e a História. Dados, v. 40, n. 2, 1997


(Não possui os números das páginas). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52581997000200002#11 Acessado em: 30/09/2017

KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.


Trad. Carlos Almeida Pereira e Wilma Patrícia Maas. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed PUC-
Rio, 2006.

REIS, José Carlos. A história entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Editora Ática, 1999.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Trad. Neil Ribeiro da Silva. 3ª ed., São
Paulo: Edusp, 1987.

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A HOTELARIA EM PELOTAS NAS DÉCADAS DE 1930 E 1940 NA VISÃO


DO JORNAL DIÁRIO POPULAR

Larissa Teixeira*

Introdução
A cidade de Pelotas se localiza à sudoeste do Estado do Rio Grande do Sul, cerca de
250 KM da capital Porto Alegre. Desde a fundação da cidade, a mesma se destacou pela
produção do charque, e toda sua economia se manteve através da prática saladeiril, que
esteve em seu auge durante todo o século XIX. No início do século XX, devido a uma crise
econômica, esta indústria entra em processo de falência, se extinguindo por completo em
meados de 1930.
A partir da década de 1920, o município começa a se modernizar, e devido a isso,
uma nova economia se instala em Pelotas. Novas atividades econômicas chegam a cidade,
e ganham espaço para se desenvolver, ente elas temos a pecuária, agricultura, fábricas
têxteis, fábricas de velas, frigoríficos e o comércio, com esta última sendo a principal até
os dias de hoje.
Devido ao crescimento exacerbado da cidade de Pelotas neste período, muitas
pessoas começaram a se deslocar para o município. Viajantes que vinham para trabalhar,
vender os seus produtos e/ou serviços, pessoas da região que se instalaram na cidade, e
moradores da zona rural, que se abasteciam e usavam a cidade como um centro comercial
para sua atividade. Além disso, Pelotas está localizada entre os principais centros
comerciais e capitais do Brasil e de outros países, o que fazia com que muitos viajantes
passassem por aqui, para pernoitar e depois seguir viagem.
Desde a fundação de Pelotas, muitos charqueadores se instalaram na região, e com
isso se deu uma cultura própria deste povo. A cidade sempre foi conhecida por seu grande
potencial cultural e social. Sediava vários espetáculos teatrais, de música, concertos,
apresentações ao ar livre e também espetáculos de cinema. Contava com belos casarões,

* Graduanda do curso de Turismo – Universidade Federal de Pelotas.

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clubes, sociedades, teatros centenários e praças. Esta “alta sociedade” prezava pelo seu
tempo de lazer e pelas melhores atividades, atraindo assim, pessoas de todo lugar do país,
querendo conhecer a sociedade pelotense e à tão destacada “Princesa do Sul”.
Sabe-se que a partir dos anos de 1930 a cidade voltou ao seu auge econômico,
social e cultural, e se manteve em desenvolvimento pelas próximas décadas. A vinda de
muitas pessoas ao município contribuiu significantemente para a prática hoteleira,
gerando muitos empreendimentos, que inauguraram no início do século XX, e outros mais
antigos se desenvolvendo neste período. Os hotéis começaram à se destacar, e apareciam
constantemente notícias obre os mesmos nos principais jornais diários da cidade.
Assim, tem-se por objetivo principal deste trabalho, analisar como a hotelaria nas
décadas de 1930 e 1940 era evidenciada pelo Jornal Diário Popular, um dos principais da
cidade. Trazer os elementos que eram destacados, as notícias mais importantes que eram
mostradas e a importância do jornal como fonte de pesquisa, evidenciando como era a
estrutura do mesmo neste período.
A metodologia utilizada para a realização deste trabalho, foi uma pesquisa
bibliográfica, com fontes documentais, sendo a principal delas o jornal Diário Popular. A
coleta de informações se deu na Biblioteca Pública de Pelotas, que conta com um acervo
com todas as edições do jornal. Foram pesquisados os anos de 1931 à 1949
sistematicamente, para termos assim uma cronologia nas informações.
Este artigo é um recorte do projeto de pesquisa “A História da Hotelaria em Pelotas
na primeira metade do século XX”, financiado pelo edital MCTI/CNPq Nº 14/2014. O
projeto tem por objetivo buscar informações sobre a hotelaria na primeira metade do
século XX, resgatar os principais acontecimentos que ocorreram nos hotéis neste período,
para assim formar um histórico de todos estes estabelecimentos e da hotelaria em Pelotas,
pois ela é uma parte importante da história da cidade e traz elementos da sociabilidade
urbana.

O jornal Diário Popular


Pode-se afirmar que a imprensa é a principal fonte desta pesquisa. Os jornais são
uma fonte que nos trazem diversas informações, fatos históricos que se passaram,
informações perdidas com o tempo e que descreviam as sociedades dos tempos passados.
Oliveira (2012), cita que “a utilização dos periódicos como fonte de pesquisa permite a

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análise de discursos e ideologias, de características da vida cotidiana, entre tantas outras


informações passíveis de serem extraídas da imprensa”.
A coleta de dados nos periódicos possui grande relevância para a pesquisa da
hotelaria, pois através dos mesmos, encontramos informações pertinentes retratadas e
acontecimentos importantes que se sucederam nestes estabelecimentos. Vê-se também
reportagens acerca de alguns hotéis, que podem ser usadas para definir uma classificação
do local, algo difícil de se estabelecer antigamente. Segundo Le Goff (2003):

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um


produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí
detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento
permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo
cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. (LE GOFF,
2003, citado por OLIVEIRA 2012, p. 58).

Percebe-se que os jornais vem sendo usados cada vez mais como fonte de pesquisa
histórica, porém sente-se a necessidade de estabelecer as posições político-ideológicas
dos órgãos de imprensa utilizados. Visto que cada um deles trazia os fatos ao seu ver,
seguindo os seus preceitos e o que era mais relevante para cada imprensa. A imprensa
era, segundo Zicman, substancialmente política, a chamada imprensa de opinião. “Esta
imprensa tinha características claramente políticas e apaixonadas, ultrapassando a
simples função de ‘espelho da realidade’ para tornar-se um instrumento ativo de opinião
pública” (MÜLLER, 2008, p. 3).
O Diário Popular foi fundado no final do século XIX, em 27 de agosto de 1890, por
Theodozio de Menezes. Müller (2008) cita que era o principal jornal do Partido
Republicano Rio-Grandense em Pelotas, subordinando-se às diretrizes partidárias e aos
seus chefes locais. No final da década de 1930, passou a ser um grupo consorciado sob a
denominação de Gráfica do Diário Popular, devido a legislação do Estado Novo, que
proibia jornais partidários. O jornal costumava retratar os principais acontecimentos da
alta sociedade, as principais notícias que ocorriam na cidade, priorizando os interesses da
população pelotense. O Diário Popular se mantem em funcionalmente até os dias de hoje.
O formato do jornal no início do século XX era diário, as edições se davam de
domingo à domingo, impressas em papel encadernado. Os exemplares se destacam pois
se diferenciam das edições distribuídas atualmente. Nas décadas de 1930 e 1940 o jornal

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possuía de 8 à 10 (edições especiais) páginas, e as seções podiam ser bem identificadas,


pois ele era estruturado para uma melhor visão do leitor.
Algumas das principais seções se denominavam vida social, pequenos anúncios,
notícias da região, notícias pelo mundo, esportes, notas policiais, decretos, editais e
comunicados, como também apareciam muitos anúncios de determinados produtos e/ou
eventos. A principal página do jornal era onde vinham as principais notícias, nas décadas
de 1920 até meados de 1930 as principais retrações eram políticas. De 1938 à 1947 o
tema abordado que mais aprecia era Segunda Guerra Mundial, na qual apareciam notícias
das disputas territoriais e acordos que tentaram ser feitos.
A segunda e terceira página servia como noticiário do jornal, destacando as
principais notícias da cidade e região. Roubos, furtos, notícias da prefeitura,
acontecimentos que ocorreram nos últimos dias, eram todos trazidos, dividindo-se em
colunas. A quarta e quinta página do jornal se dedicava toda a vida social da população
pelotense. Eram retratados nomes de “celebridades” que aqui estavam, aniversários,
espetáculos, reuniões, a programação dos cinemas e do teatro, enfim, tudo que se
relacionava à cultura e sociedade.
A sexta página era focada nos esportes, trazendo os principais acontecimentos do
Turfe Pelotense, jogos de futebol, resultados e outras competições que estavam
acontecendo tanto em Pelotas, quanto no Estado. A sétima página era usada para destacar
os “pequenos anúncios”, que seriam os “classificados” da época. Apareciam anúncios de
emprego, compra e venda de produtos e propriedades. Era usada também para informar
sobre horários da linha férrea, balsa e ônibus, como sobre os bancos e cotações. A última
página do jornal era usada como um meio de complemento, apareciam continuação de
reportagens e notícias variadas.
Além disso, em alguns dias os jornais tinham edições especiais, com seções
chamadas “Página Rural”, estes exemplares continham entre 10 e 12 páginas. A seção
continha informações sobre cidades do interior, falando sobre a história do local, as
atividades econômicas que ali se destacavam, como também anúncios de compra e venda
de gado e produtos para agricultura e pecuária. Neste período os anúncios apareciam
constantemente no Diário Popular, em praticamente todas as páginas, exceto a primeira,
apareciam anúncios comerciais publicados.
Os hotéis de Pelotas no Diário Popular

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A hotelaria na cidade de Pelotas começou a aparecer em meados do século XIX,


quando se tem registros do primeiro hotel à se instalar na cidade, o Hotel Aliança, em
1845. No início do século XX, com a cidade mudando seu âmbito econômico, os hotéis
entraram em constante desenvolvimento, sendo que, alguns deles passaram pelo seu auge
neste período. Segundo Müller (2004):

Considera-se que o desenvolvimento econômico, social e cultural de


Pelotas, a preocupação com o bem estar da população, como limpeza
urbana e saneamento básico e com a educação, bem como pelo interesse
dos moradores nas artes, literatura, música, poesia, foram fatores
condicionantes positivos para a vinda de pessoas para a cidade, e,
consequentemente o desenvolvimento da hotelaria. (MÜLLER, 2004, p.
16).

Assim, percebe-se que o desenvolvimento do município contribui


significantemente para o progresso dos hotéis e aumento do número de estabelecimentos
em Pelotas, principalmente nas décadas de 1930 e 1940, período de nossa pesquisa. Nas
duas décadas estudadas estavam em funcionamento 22 hotéis na cidade, sendo que
destes, 20 se localizavam em área central, próximos a Praça Coronel Pedro Osório, as
linhas do bondinho, ao Mercado Central e nas ruas mais movimentadas.
O jornal Diário Popular foi um grande percursor de informações sobre estes
estabelecimentos. Praticamente em todas as edições apareciam notícias sobre os hotéis,
sejam elas reportagens grandes, mais complexas, ou apenas anúncios de
estabelecimentos pedindo contratação de determinado funcionário. Vê-se que os jornais
são de grande importância, pois trazem informações de localização, proprietários e
serviços, podendo assim, identificarmos onde se localizava e quem era o proprietário de
determinado estabelecimento. Vejamos a seguir exemplos de como se davam estes
anúncios:

No Cidade Hotel: A que vêr, experimentar para crêr! Este hotel tem a
disposição dos srs. Hospedes e passageiros, confortaveis quartos para
casal e solteiro, todos com luz directa. Cosinha de 1ª ordem
(especialmente a la minuta). Diaria: desde 9$000, 12$000 e 14$000.
Attende-se com máxima rapidez e seriedade. Quarto mensal, preço
especial. Proprietaria: M. Gavello. Rua General Victorino 703. Tel M.R.
2174 – Pelotas. (DIÁRIO POPULAR, 13.08.1931, p. 2).
Hotel Familiar de Vva. Eraclito Costa Est. Eng. Ivo Ribeiro (Vila Olimpo).
Situado defronte a Praça e Estação, no ponto mais central desta
localidade, participa aos srs. Viajantes, e a todos que pela sua distinçaõ,

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lhe der a preferência, que está completamente reformado, com todas as


exigências do Departamento de Saúde. Quarto com luz direta, aguá e
sanitárias, de primeira ordem. Aceita pensionistas e vernistas a preços
convencionados. Atendido rigorosamente pela proprietária. (DIÁRIO
POPULAR, 02.12.1941, p. 6).

Percebe-se que os anúncios destacavam sempre quem era o dono do


estabelecimento, e seus principais serviços oferecidos a população e que se diferenciavam
de outros hotéis. O Cidade Hotel sempre trazia o valor de suas diárias em seus anúncios,
algo incomum, pois a maioria dos locais não divulgavam tal informação. Os anúncios
apareciam nas mais diversas formas e tamanhos, alguns eram bem elaborados e
destacados, como os dois exemplos citados acima. Outros seguiam uma linha mais simples
e direta, como este anúncio do Grande Hotel, que fala: “Grande Hotel: O estabelecimento
mais moderno de Pelotas- localizado no seu ponto máximo- excelente passadio- ótimas
acomodações. Praça Cel. Pedro Osório, 51”. (DIÁRIO POPULAR, 25.01.1942, p. 5).
No início do século XX era muito comum os hotéis realizarem reuniões em seus
espaço, dentre as principais temos chás e jantares dançantes, banquetes, almoços,
reuniões intimas, bailes e reuniões sociais. Os hotéis se agrumam em um nível semiformal
de sociabilidade, ou seja, são espaços abertos a todos, mas que pertencem a um
proprietário e possuem normas implícitas de funcionamento, que restringem a entrada
de alguns. (MÜLLER, 2010).
As reuniões sociais que eram realizadas nos hotéis costumavam ser muito
destacadas no jornal, que retratava qual evento está acontecendo e a sua finalidade, as
atrações a se apresentar, e alguns nomes renomados que iriam comparecer. Geralmente
estas informações eram retratadas na coluna “Vida Social”, sendo que nas décadas
estudadas o estabelecimento mais bem falado era o Grande Hotel.
O Grande Hotel se localizava na principal e central praça da cidade, a Coronel Pedro
Osório, e desde sua inauguração, foi considerado um marco na hotelaria de Pelotas. Era o
maior da cidade, e passou a ser um local de sociabilidade urbana. De acordo com Echart
(2015), “o hotel passou a ser conhecido como o grande salão de festas da cidade”, devido
à:

Os eventos promovidos nos salões do imponente hotel eram sempre


envolvidos de grande entusiasmo, fosse pela sociedade local ou pelos

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“forasteiros”. A sociedade pelotense orgulhava-se em ter um


estabelecimento que mostrava a todos o que havia de mais nobre e
elegante na cidade. (ECHART, 2015, p. 47).

O Diário Popular foi um dos jornais que mais retratou a inauguração do Grande
Hotel, e após isso, não foi diferente, muitas reportagens sobre o local eram trazidas, entre
as principais, os eventos, sempre muito bem divulgados e destacando as principais
personalidades da sociedade pelotense, como também dando ênfase ao potencial do hotel.
Vejamos um exemplo a seguir:

Marcou um legitimo triunfo social o “Chá das Violetas” realizado sábado


no “Grande Hotel”. Realizou-se sábado à noite, no “hall” do “Grande
Hotel”, a “Chá das Violetas”, festa que um grupo de distintas damas e
gentis senhorinhas da nossa elite social, levou a efeito para, com o
produto da mesma, adquirir agasalhos para os pequenos vendedores de
jornal. [...] O “hall” do “Grande Hotel’, com a sua ornamentação magnifica
dirigida gentilmente pelo Sr. Paulo Viola, e efeitos deslumbrantes de luz,
proporcionou um cenário em plena harmonia com a elegância da
memorável velada. [...]. (DIÁRIO POPULAR, 18.06.1940, p. 4).

Fora as reportagens sobre as reuniões sociais dos hotéis, a coluna “Vida Social”,
trazia, quase que diariamente, as listas de hóspedes que se hospedavam em determinados
hotéis, algo muito comum para a época. Na década de 1930 os hotéis que mais apareciam
as listas eram o Grande Hotel, Hotel Grindler e o Hotel América. Todos eles situados em
ponto central e estabelecimentos de “primeira ordem”, muito conhecidos pela população
e viajantes.
Já na década de 1940 as listas de hóspedes divulgadas pelo jornal eram do Hotel
Aliança, o primeiro estabelecimento e mais conceituado da cidade de Pelotas. Localizado
à rua 15 de Novembro, o hotel funcionou por mais de 100 anos em plena atividade, sempre
se destacando entre os demais. As listas apareciam da seguinte maneira:

Hospedes no Grande Hotel: Guilhermino Dutra; Roberto Hulurt Nickim;


Leopoldo Von Munich; Jobo Saraiva; Alexandre da Silva; Lafaiete Brasil de
Almeida; Marçal Pessoa e João Freitas. (DIÁRIO POPULAR, 05.05.1934, p.
4).
Hospedam-se no Hotel Aliança: Oldemiro Cardoso Brum, Olivio H. Costa
e esposa, José Egídio Farinha, José-Maria de Avellar, José-Manoel Vieira
Filho e esposa, Valdemar von- Schárten e esposa, Acrisio Martins de
Oliveira e esposa. (DIÁRIO POPULAR, 17.01.1945, p. 4).

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As listas de hóspedes descreviam os principais viajantes que estavam na cidade,


geralmente eram políticos, empreendedores, médicos, advogados, artistas e militares. Os
anos de maior incidência da listagem de hóspedes foram de 1932 à 1945, após isso, as
mesmas começaram a desaparecer dos jornais.
Nos anos abordados neste artigo, a principal seção do jornal em que mais
apareciam notícias sobre os jornais, eram os “Pequenos Anúncios”. A seção era utilizada
pelos estabelecimentos para a contratação de funcionários. Através de anúncios como:

Cozinheiro: Precisa-se de um no Grande Hotel. Exige-se que seja


competente. Paga-se bom ordenado. (DIÁRIO POPULAR, 16.03.1945, p.
2).
Camareira: No Hotel dos Estrangeiros precisa-se de uma. É inútil
apresentar-se se não possuir competência”. (DIÁRIO POPULAR,
16.02.1943, p. 7).
Precisa-se de uma boa ajudante de cozinha. Tratar no Hotel dos
Estrangeiros. (DIÁRIO POPULAR, 11.06.1942, p. 7).
Rapaz – precisa de um para serviços leves. Hotel dos Estrangeiros.
(DIÁRIO POPULAR, 11.06.1942, p. 7).

Os anúncios classificados apareciam constantemente nos exemplares, se repetindo


muitas vezes, por dias e até meses. Nota-se através dos mesmos que os hotéis eram muito
exigentes ao contratar um novo funcionário, prezavam por pessoas com experiência, para
assim oferecer o melhor serviço aos seus hóspedes. Com estes anúncios podemos
identificar a rotatividade de funcionários nos estabelecimentos. Entre estes hotéis,
destaca-se o Hotel dos Estrangeiros, único neste período comandado por uma mulher,
sendo que, anúncios de contratação do mesmo eram constantes.
Vê-se, além dos anúncios de contratação, muitas notas, nesta mesma seção, de
pessoas vendendo seus produtos e/ou serviços. Hóspedes dos hotéis que vinham para a
cidade passar temporadas, para assim oferecer suas atividades comerciais. Através de
anúncios como: “Quiromancia Astrológica (…) Consultas a todas as horas no Grande
Hotel- apartamento 54. Atende chamadas a domicilio”. (DIÁRIO POPULAR, 28.10.1942, p.
4) e “Vende-se: uma máquina de cortar e furar arcos e uma de estirar, e uma prensa para
imprenssar alfafa ou palha de arroz. Tratar no Hotel Glória”. (DIÁRIO POPULAR,
28.10.1942, p. 7), podemos identificar o perfil dos hóspedes neste período.

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Nos séculos XIX e XX, era muito comum os estabelecimentos hoteleiros trocarem
constantemente de dono. Muitas vezes os hotéis eram vendidos e/ou arrendados por
determinados proprietários que ficavam apenas alguns anos, ou até meses, à frente destes
hotéis. Com isso, os locais passavam por muitas reformas, sendo que cada dono queria
proporcionar o melhor serviço. As vendas e/ou leilões, reformas e remodelações
apareciam nos jornais, como anúncios, ou reportagens maiores, dependendo do
estabelecimento. Abaixo temos dois exemplos de como eram descritos estes
acontecimentos.

Importante leilão: Todas as existencias do bem conhecido Hotel America


á rua 15 de novembro numero 514. Constando do seguinte: quartos
mobiliados, contendo guarda-roupas espelhados, camas de ferro, para
casaes e solteiros, bidets, espelhos, criados mudos etc. No salão de
refeições, mesas, toalhas e guarda-roupas, completamente novos,
cadeiras, quantidade de louças, como sejam sopeiras, azeitoneiras,
prados fundos e vasos, galheteiros, garrafas para agua ou vinho, talheres:
frigorifico, fina e especial pendula e muitos outros objetos de um hotel de
primeira ordem. Completa bateria de cosinha, instalações de campainha,
em todos os quartos, banheiros esmaltados e aquecedores. E muitos
outros objetos, como sejam finos abajours elétricos etc. Na segunda-feira,
e terça-feira 5 de dezembro ás 2 horas da tarde, á rua 15 de novembro n.
514. O leiloeiro official Lydio A. Pereira competentemente autorizado,
venderá ao correr do martelo tudo que se acha no dito predio. Nota: A
casa acha-se em exposição no sábado 2 de dezembro das 9 horas da
manhã em diante. (DIÁRIO POPULAR, 05.12.1933, p. 5).
Remodelação do Hotel Aliança – O “Hotel Aliança” um dos
estabelecimentos tradicionais de Pelotas, é, no gênero, dos mais antigos
do Estado, acaba de ser adquirido pela firma M. Zabaleta e Cia, que iniciou
já, sua remodelação geral. Desde os salões de refeições até as
dependências de almoxarifado, estão sendo pintadas e reformada,
recaindo o principal cuidado dos proprietários nos quartos para
hóspedes e na cozinha do estabelecimento que, não só será revestida em
azulejos e mosaicos, em cores claras, como, também, recebera a
instalação de um novo e moderno fogão, com capacidade para atender a
grande clientela do antigo hotel. A firma Matin Zabaleta e Cia, está dando
expansão a sua capacidade administrativa e espirito de organização,
fazendo, assim, voltar com o “Hotel Aliança” nos tempos em que
monopolizava a preferência dos que visitavam Pelotas. (DIÁRIO
POPULAR, 15.01.1943, p. 2).

Estas reportagens tornam-se muito importantes, pois com elas, pode-se saber
quem estava comandando determinado hotel, e quais os serviços que eram oferecidos
pelo mesmo. Também identifica-se o auge de cada estabelecimento e quem foi a pessoa

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por traz de todo sucesso. Vemos quando certo hotel fechou as suas portas, e algumas vezes
o motivo pelo qual isso ocorreu.
Nas décadas pesquisadas apareciam também algumas informações sobre notas
policiais, com furtos e crimes que eram cometidos nestes estabelecimentos. Reportagens
de inauguração de novo hotel, anúncios de pensões, reportagens de “aniversário” de
determinados estabelecimentos, algumas informações sobre donos e também algumas
notas sobre hóspedes ilustres que passavam pela cidade, identificando sempre, em qual
local se hospedavam.

Considerações finais

A partir das pesquisas, concluímos que os jornais são uma importante fonte de
informações, nos trazendo fatos históricos e que muitas vezes foram perdidos com o
tempo. O jornal local Diário Popular foi de grande importância para a cidade de Pelotas,
pois os exemplares retratavam a vida da sociedade pelotense e também as principais
notícias do Brasil e do mundo.
Evidenciamos que a mudança econômica pela qual Pelotas passou, contribui muito
para o desenvolvimento dos estabelecimento hoteleiros. O início do século XX foi um
marco para a cidade e muitos hotéis estiveram em seu auge. Com a chegada de muitos
viajantes e trabalhadores, o município se manteve em plena movimentação, trazendo
diversas personalidades que se hospedaram aqui.
O Diário Popular representa papel importante para os estudos referentes a história
da hotelaria em Pelotas neste período. Com os anúncios e seções principais do jornal,
podemos identificar características destes estabelecimentos perdidas com o tempo.
Percebe-se quem eram os hóspedes destes locais, seus proprietários, reformas e
remodelações, os serviços e infraestrutura pertinentes à hotelaria nos tempos passados.
Assim, afirmamos que os jornais são uma das principais fontes de pesquisa para se formar
a história da hotelaria no início do século XX.

Referências bibliográficas:

CAETANO, Rosendo da Rosa. O nazi-fascismo nas páginas do Diário Popular: Pelotas, 1923
– 1939. Dissertação (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de
Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, 2014.

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ECHART, L. F. Um perfil para o hóspede do Grande Hotel de Pelotas (1980-1990).


Monografia (Bacharelado em História) – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015.
MÜLLER, Dalila. A Hotelaria em Pelotas e sua relação com o desenvolvimento da região:
1843 a 1928. 2004. 158f. Dissertação (Mestrado em Turismo). Universidade de Caxias do
Sul, Caxias do Sul. 2004.
MÜLLER, Dalila. A municipalização do Grande Hotel em Pelotas/RS vista por dois órgãos
da imprensa: Diário Popular e O Libertador. In: IX Encontro Estadual de História, 2008,
Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: ANPUH/RS, 2008, p. 1-13. Disponível em:
http://eeh2008.anpuh-rs.org.br/site/anaiseletronicos.
OLIVEIRA, Maria Augusta Martiarena De. Instituições e práticas escolares como
representações de modernidade em Pelotas (1910 - 1930): imagens e imprensa – Tese
(Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade
Federal de Pelotas, 2012.
Jornais
DIÁRIO POPULAR, 13.08.1931, p. 2
DIÁRIO POPULAR, 02.12.1941, p. 6
DIÁRIO POPULAR, 25.01.1942, p. 5
DIÁRIO POPULAR, 18.06.1940, p. 4
DIÁRIO POPULAR, 05.05.1934, p. 4
DIÁRIO POPULAR, 17.01.1945, p. 4
DIÁRIO POPULAR, 16.03.1945, p. 2.
DIÁRIO POPULAR, 16.02.1943, p. 7
DIÁRIO POPULAR, 11.06.1942, p. 7
DIÁRIO POPULAR, 11.06.1942, p. 7
DIÁRIO POPULAR, 28.10.1942, p. 4
DIÁRIO POPULAR, 28.10.1942, p. 7
DIÁRIO POPULAR, 05.12.1933, p. 5
DIÁRIO POPULAR, 15.01.1943, p. 2

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IRMÃOS EM FÉ: DEVOÇÃO, AUTONOMIA E SOCIABILIDADE.


PERFIL DOS MEMBROS DA IRMANDADE DE N. SRA. DO ROSÁRIO DOS
PRETOS DE CACHOEIRA NA SEGUNDA DÉCADA DO OITOCENTOS.
(1812-1820)

Henrique Melati Pacheco*

Introdução
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos530 de Cachoeira foi
mencionada pelo Conego Soledade, quando de sua passagem pela Vila Nova de São João
da Cachoeira,531 em 7 de outubro de 1824:

A Matriz tem sacrário no altar mor, batistério, parâmetro de 4 cores,


quatro altares laterais: S. Miguel, Na. Sa. do Rosário, Espírito Santo e
Santa Bárbara, e mais dois em construção na nave transversal: Capela
do Ssmo. e de Na. Sa. das Dores. Tem duas Irmandades aprovadas pelo
governo, mas sem autorização eclesiástica, que ele passou: Ssma. e
Padroeira e Na. Sa. do Rosário. (RUBERT, 1994, p.166)

A percepção transmitida pelo relato possibilita-nos imaginar o interior da Igreja


Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Cachoeira (1824), suas cores, os altares que
transbordam a devoção cachoeirense oitocentista a seus diferentes santos, além de suas
Irmandades devocionais, símbolos de prestígio para comunidade eclesiástica (BOSCHI,
1986).
A beleza e organização da igreja matriz, descritas pelo Conego Soledade (diversas
cores do parâmetro e os diversos altares já postos/em construção, além de duas
Irmandades instituídas), pode fazer com que nos soe estranho o relato escrito pelas

* Graduando em História - Unisinos, bolsista IC UNIBIC. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira.
530 Este trabalho se insere no projeto de pesquisa “Sob as Bênçãos do Rosário e São Benedito: Ações políticas,

identidades, sociabilidades e as artes da resistência (as irmandades de pretos de São Leopoldo e Cachoeira
- RS)” e foca especificamente a Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos de Cachoeira na segunda década
do XIX. Ao utilizarmos a expressão “Pretos”, referimo-nos a Irmandade sendo fiéis a forma com que aparece
nas fontes primárias que norteiam essa mostra (livros redigidos pelos irmãos), ou seja, pela forma com
que a associação afro-católica negra cachoeirense era intitulada e também intitulava-se.
531 Localizada as margens do rio Jacuí, no centro-oeste Rio-grandense, Cachoeira foi elevada a vila por alvará

de 26.04.1819, “com os mesmos limites da anterior freguesia, pertencendo-lhe administrativamente as


freguesias de Santa Maria da Boca do Monte, Alegrete Livramento, São Gabriel e Caçapava.” (MOREIRA,
2017, p.119)

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mãos do Pe. Agostinho José Mendes dos Reis, em 1790, algumas décadas antes que o
Conego Soledade (30 anos). Em visita a Igreja de N. Sra. da Conceição na então Freguesia
de Cachoeira532: “Observou a indecência da Igreja, imagens deterioradas, e falta de asseio
e cuidado no culto divino ordenando ao pároco de adquirir o Catecismo Romano ou dos
Párocos para instrução do povo.” (RUBERT, 1994, p. 108).
Como ocorreu, em um curto intervalo de décadas, as mudanças de “percepções”
sobre a Igreja de N. Sra. da Conceição e, por conseguinte das comunidades étnicas que as
faziam representar? Em qual momento se instituiu a associação afro-católica negra de
Cachoeira? Como ela funcionou e quem eram os seus membros, durante este período de
mudanças no território cachoeirense? (início do século XIX).

Uma negra devoção em Cachoeira


Estas associações leigas erigidas por plurais comunidades e sujeitos sociais,
refletiam as hierarquias “próto-raciais” vigentes na sociedade escravista do século XIX
(VIANA, 2007), ao mesmo tempo em que demarcavam espaços de territorialidades
étnicas, agenciamento e resistência, tudo isso no cenário privilegiado de atuações
religiosas-eleitorais-civis, que foi a Igreja Matriz533 de Cachoeira durante o século XIX.
(MOREIRA, 2017, p.116).
Em meados de 2014, o Professor Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira, em visita ao
Museu municipal de Cachoeira do Sul: “Pus-me a visitar o museu, encontrando como
referências da escravidão alguns instrumentos de tortura e controle. Repentinamente
me senti atraído por uma cristaleira, onde em seu interior visualizei um velho códice”
(MOREIRA, 2017, p.118) o documento acesso pelo Professor (que mais tarde descobriu
que não existia apenas um, mas cinco livros da irmandade) foi o “‘Livro 1º das Atas da
Irmandade do Rosário”. O que podemos apreender destes códices? Como eles nos

532Nas margens do Rio Jacuí existiu uma pequena cachoeira, próximo dela instalou-se uma povoação de
índios guarani elevada à condição de Freguesia em 1799 (RUBERT, 1994, p.108), “detinha em 1780, uma
população de 662 indivíduos, sendo 237 pretos (35,8%), 383 indígenas (57,8%) e apenas 42 brancos
(6,4%)” (MOREIRA, 2017, p.119)
533 Em 28 de Setembro de 1799, foi inaugurado um novo templo “Na atual praça Balthazar de Bem. A

realização dos primeiros ofícios religiosos ocorreu após uma procissão em que foram trasladas da antiga
capela na aldeia imagem dos santos .” (SCHUH, 1991, p.20). Elevada “a classe das Igreja Matrizes em 1815”
(SILVA, 1808- 1822, vol.5, 1820 p.150), a igreja de Nossa Senhora da Conceição de Cachoeira foi o espaço
de atuação preferencial da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Cachoeira, que já se
reunia ali no ano de 1812 e mais tarde inaugurou um consistório próprio nesta Igreja.

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possibilitam refletir sobre a devoção das comunidades negras cachoeirenses de


antanho?
As irmandades, aliás, produziram muita escrita. Por ironia, através da
escrita, homens e mulheres egressos de culturas orais construíram suas
identidades, codificaram discursos sobre a diferença, defenderam-se da
arrogância dos brancos, deixaram, em síntese, testemunho de uma
notável resistência cultural. (REIS,1996, p.05)

Os livros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Cachoeira,


custodiados pelo Museu Municipal “São vestígios eloquentes do investimento apaixonado
em uma devoção que, ao manifestar-se, expõe o outro presente e invisível, dando cor à
crença.” (MOREIRA, 2017, p. 134).534 Pensamos a Irmandade de N. Sra. do Rosário dos
Pretos de Cachoeira, sob a tríade devoção – identidade – associativismo (MOREIRA, 2017
p.125).
A devoção afro-católica535 exercida pelas comunidades negras no transcorrer da
diáspora, tornaram-se muito presentes nas irmandades do Rosário da América
Portuguesa. (SOUZA, 2002; REGINALDO, 2005) O próprio Rosário, que para a cultura
cristã significa coroa de rosas, (GRIGIO, 2016, p.39) segundo dicionário, escrito por Luiz
Maria da Silva Pinto entre 1775 e 1869 e publicado em 1832, seria: “Contas, que marcão
cento e cincoenta vezes a oração d. Ave Maria e quinze a do Padre Noso, quando se rezão
estas orações.”.
A “versão” comtemplada pelo dicionário do século XIX, provém do discurso mítico-
religioso português, que enaltece a visão da Virgem Maria por Domingos de Gusmão, que
o incentivou a prática da conversão pelas orações das 165 contas do colar do saltério.
(GRIGIO, 2016, p. 35)
José Ramos Tinhorão percebe que a devoção a N. Sra. do Rosário, exercida pelas
comunidades negras, provinha de uma “justaposição de exterioridades” (GRIGIO, 2016,
p.47), já que o colar do Rosário lembraria outro objeto sagrado utilizado pelo Orixá

534 Esses documentos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos pretos de Cachoeira
documentam experiências devocionais negras que hoje configuram um patrimônio imaterial. Nesse sentido,
esses antigos livros documentam o intangível, o impalpável, algo ausente, mas que ali esteve concreta e
sonoramente presente. (MOREIRA, 2017, p. 137)
535 “Segundo John Thornton, um conjunto de ideias religiosas semelhantes entre cristianismo e religiões

africanas tendeu a aprofundar o processo de formação daquilo que o autor conceituou como ‘catolicismo
africano‘. Entre estas ideias semelhantes estaria a crença num ‘outro mundo‘, e na perspectiva de que este
pudesse ser revelado.” (THORNTON, 1998 apud OLIVEIRA, 2006, p.66).

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Oracular Ifá (TINHORÃO, 2012, p.46). Porém, como Mariza Soares atestou: “A
espiritualidade da comunidade negra vai do social à interioridade”, não sendo de ignorar
as vantagens sociais e práticas de aderência ao culto. (SOARES, apud SANTOS FILHO,
2012. p. 44)
O contato e assimilação das religiosidades católicas pelas comunidades negras que
vivenciaram diretamente ou/e indiretamente a experiência da diáspora e da escravidão,
acarretou em mudanças nas representações iniciais das insígnias católicas, não sendo
ingênuo afirmarmos que o Rosário, representado pela visão mitíco-religiosa e pelo
dicionário formal do período estudado, tenha sido “ressignificado” de diversas formas,
pelas religiosidades populares, e, por conseguinte, pelos irmãos do Rosário de Cachoeira.
A irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos de Cachoeira, pertenceu a um
“movimento associativista negro” (VIANA, 2007, p.151), que constituiu espaços de
autonomia e territorialidades negras de devoções fluídas536. “Esses territórios são
compostos da própria Igreja da Conceição e do consistório dos irmãos do Rosário ali
existente e pelas ruas por onde circulavam as procissões”. (MOREIRA, 2017, p. 135),
porém, quais ferramentas (fontes, metodologia, etc.) permitem-nos chegar mais próximo
dessa associação e, por conseguinte, desses sujeitos?

Metodologia e fontes:
Partimos do códice: “Livro para entrada de irmãos na Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos da Freguesia da Cachoeira (1812/1846)”, no qual constam
qualificações, nomes dos irmãos ingressos, cargos ocupados na irmandade, registros dos
pagamentos de anuidade e em alguns casos, observações referentes à assistência social
e amparo espiritual.
Tendo em vista as dificuldades de acesso aos livros e a riqueza das informações
neles contidas537, optamos, para essa mostra, por um curto recorte de tempo (oito anos),

536 Entendemos que: “A territorialidade negra decorre dos percursos construídos e vivenciados pelos
africanos e seus descendentes [...] multiplicando, assim, uma diversidade de raízes culturais, de signos, de
memórias, de objetos artísticos, os valores éticos e estéticos, dos símbolos que denominamos em sua gênese
e dinâmica social e cultural de cultura negra ou afro-brasileira” (BITTENCOURT JÚNIOR, 2010, p. 12/13).
537 “Os livros de assento ou de entrada de irmãos se constituem em documentos raros e preciosos. Mantidos

sempre sob a guarda da própria irmandade, não se tem notícias de cópias enviadas as autoridades, como
ocorria com os compromissos – o que explica, em parte, a raridade deste tipo de fonte”. (REGINALDO, 2005,
p. 196)

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para fins de investigar com maior minúcia e otimizar a análise, rastreando as


preferências organizacionais dessa associação.538 A mesa dirigente da Irmandade de N.
Sra. do Rosário dos Pretos de Cachoeira, em ata de 21.12.1853, faz menção ao livro:

No dia da festa da mesma Senhora, e nas noites de novenas (quando as


houver), deverá estar em um dos lados da porta da entrada uma mesa
com os competentes livros dos nomes dos Irmãos, com o Escrivão (ou
quem suas vezes fizer), não só para receber as esmolas que quiserem
outorgar os fiéis, como para cobrar os anuais, pois é sabido que muitas
pessoas que são Irmãos deixam de pagar por não poderem comparecer
na véspera, como até agora tem sido uso, e ao depois não terem ocasião
oportuna por ignorarem a morada do Tesoureiro.

Esta interessante menção possibilita-nos imaginar momentos nos quais o códice


era redigido, mesmo em meio a festas e encontros litúrgicos. Aproveitando esses
momentos de mais intensa sociabilidade devocional, os irmãos intensificavam a
cobrança e registravam os recursos que entravam dos irmãos. Aproveitar tais momentos
cerimoniais era uma estratégia usada para cobrar os devotos que enfrentavam
problemas em quitar os anuais devido às dificuldades de mobilidade. Isso faz-nos pensar
que parte dos irmãos não moravam no espaço urbano, vindo nestes momentos especiais
das áreas rurais do município.
Dito isso, como resgatar os fragmentos das realidades sociais vivenciadas por
esses devotos? Optamos por seguir o método “onomástico” que se fundamenta no nome.
“O nome torna-se “o fio de Ariadna que guia o investigador no labirinto documental”
(GINZBURG, apud GRIGIO, 2016, p. 25)
O “labirinto documental” que propusemo-nos desbravar, com auxílio dos livros
de registro da Irmandade539, foram os acervos custodiados pelo Arquivo Público do RS,
pelo Arquivo Histórico de Cachoeira do Sul e pela Cúria de Cachoeira do Sul. Segundo
Marcelo Matheus, analisando a escravidão em Bagé durante o século XIX:

Esta escolha metodológica possibilitou o levantamento e,


posteriormente, o cruzamento de fontes de diferentes naturezas

538 Paraisso, levamos em consideração na análises aplicadas, os signos sociais destes sujeitos, bem como, as
divisões de gênero e outras características dos devotos.
539 Parte desta pesquisa se deu pela transcrição integral do códice “Livro para entrada de irmãos na

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Freguesia da Cachoeira (1812/1846)”. Os documentos
da Irmandade estão custodiados pelo Museu Municipal de Cachoeira do Sul: (Rua 15 de novembro, 364 -
Telefone (51) 3724.6017).

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(paroquiais, administrativas, do judiciário, etc.), das quais surgiram


estruturas imperceptíveis a um olhar mais distante como, por exemplo, o
fato de termos encontrado a mesma pessoa desempenhando diferentes
papéis sociais e estabelecendo laços sociais diversos. E o fio condutor
desta investigação foi o nome. (MATHEUS, 2016, p. 42)

Sem ignorar que os próprios “laços de associação entre os homens são


incessantemente feitos e desfeitos, para que então sejam refeitos”, (SIMEL, apud
MATHEUS, 2016, p.43) Percebemos na irmandade negra do Rosário de Cachoeira, um
“grupo de indivíduos, marcado por humanas motivações (vaidades, ambições) e
experiências de vida e lugares sociais similares (porém não iguais).”(MOREIRA, 2017,
p.126) Propusemo-nos encontrar, através da busca onomástica nos documentos
consultados, nossos “sujeitos sociais” (irmãs e irmãos do Rosário dos Pretos de
Cachoeira) desempenhando diferentes papéis no “jogo social”540 (SIMEL, 2006 IN
MATHEUS, 2016, p.44) vigente em Cachoeira.(1812/1820).
Feitas estas considerações, cabe-nos uma questão: Quem eram os membros da
Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos de Cachoeira? É com esta pergunta que
mudamos de escala (REVEL, apud MATHEUS, 2016, p.27) e passamos para o lócus e
período estudados, sem esquecer que: “O estudo no ‘micro’ de problemas gerais permite
a formulação de perguntas e respostas. Municiados destas, o historiador pode analisar
outros contextos que viveram, em tese, o mesmo processo gerador”. (FRAGOSO, apud
MATHEUS, 2016, p 25). As devoções negras a N. Sra. do Rosário, segundo Marina de
Mello e Souza (2002, p. 162): “Foi um dos padrões sociais comuns à vasta região que
constituiu o universo de relações escravistas e coloniais em torno do Oceano Atlântico”,
tornando a questão referida como uma possível formulação-geral.

Resultados até agora:

A irmandade representava um espaço de relativa autonomia negra, no


qual seus membros__ em torno das festas, assembléias, eleições,
funerais, missas e da assistência mútua __construíam identidades sociais
significativas, no interior de um mundo às vezes sufocante e sempre

540
Para o autor, a “sociação é sobretudo interação”, num constante conflito (ou jogo) entre as aspirações
individuais (de um indivíduo que deseja “ser pleno em si mesmo” e “desenvolver a totalidade de suas
capacidades”) e exigências sociais (“medida que a personalidade não deve ultrapassar”) (SIMEL, apud MATHEUS,
2016, p.44)

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incerto. (REIS,1996, p.05).

A Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Cachoeira, sob a tríade


associativismo-devoção-identidade, fora uma associação afro-católica leiga que
congregou, majoritariamente, a comunidade negra local, urbana e rural. Mulheres e
homens, africanos e brasileiros, tanto livres, forros e escravizados, crianças,541 adultos e
idosos.
Essa irmandade era administrada pelos devotos através de um compromisso
redigido em 1813, confirmado por Carta Régia em 04.08.1820 e aprovado por provisão
episcopal em 13.10.1824. (Poucos dias após a passagem do Conego Soledade, 1º citação).
Neste documento, ainda não localizado, estabeleciam-se os objetivos, direitos e deveres
dos seus membros e a forma como a associação seria administrada. A associação elegia
anualmente uma mesa com cargos diretivos, administrativos e devocionais, estes
prestavam serviços nas reuniões, celebrações e decisões da irmandade.542 Constituíam-
se, assim, redes de sociabilidade e autonomia, a criação e reconhecimento de lideranças
étnico religiosas, o estabelecimento de laços verticais e horizontais de parentesco
espiritual e estratégias de agenciamento e resistência.543
Os devotos de Nossa Senhora do Rosário reuniam-se na Igreja Matriz de N. Sra.
da Conceição da Freguesia da Cachoeira, que, segundo censo: “Em 1814 tinha uma

541 Felicidade Joaquina dos Santos Xavier nasceu em 1808 na Freguesia de N. Sra. da Conceição da Cachoeira
(RITZEL, sem ano), ingressou na irmandade em 1818 com 10 anos, o seu pai Joaquim dos Santos Xavier
Marmello (Escritor do códice “Livro para registro de irmãos” durante o período dessa mostra) pertenceu a
comunidade branca ou “socialmente branca”: “O Marmelo, bat. a 17.12.1770, filho do Capitão Antônio dos
Santos Xavier e de D. Rosa Maria da Silva.” Casou-se com Luzia Joaquina da conceição em 1795, na ilha de
Desterro, tiveram quatro filhos até 1810 (PIAZZA, 1982, p. 74), provavelmente o ano em que vieram para
Cachoeira e também em que Felicidade nasceu. Marmello foi escrivão da irmandade por longa dada, Miriam
Ritzel, historiadora cachoeirense, reconstituindo a História do Munícipio através das biografias de suas
ruas, no site do Museu de Cachoeira investiga Joaquim dos Santos Xavier Marmello, que também já apareceu
através do Arquivo Histórico de Cachoeira do Sul no projeto “Povoadores de Cachoeira e seus descendentes”
(AHCS, 2011) e em outras investigações promovidas por estas instituições. Encontram-se no “Livro de
registro de irmãos”(1812-1820) o pagamento de anuidades de Marmello por 22 anos(iniciou-se em 1812
pagou até 1834 faleceu em 1837), teve patente militar (alferes), ocupação política e foi um senhor de
escravizados (Roza ‘pagou 30 anuidades’ e Matheus ‘1 anuidade’, ingressaram na associação em 1812 e
1819, ambos sem registro de falecimento.)
542 “É importante salientar que, embora a ocupação dos cargos nas irmandades fosse por eleição, esta, por

sua vez, não assumia a feição de participação por sufrágio universal. Componentes da Mesa Administrativa
eram indicados por grupos de pressão que se constituíam no interior das associações.” (OLIVEIRA, 2006:
p.87)
543 Exemplo do agenciamento desempenhado pela associação foi registrado no “Livro para entrada de

Irmãos” (1812/1820): Francisco, irmão do Rosário ingresso em 1812, foi amparado em sua “moléstia”
(doença) por uma mesada da irmandade, em 1823, falecendo em 1856.

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população de 8.225 habitantes, uma das maiores da província no período, distribuída em


4.576 brancos (56%), 2.622 escravizados (32%), 425 indígenas (5%), 398 livres (5%) e
recém-nascidos 204 (2%).” Evidencia-se, assim, forte presença negra (37% ao
somarmos escravizados e libertos) em Cachoeira que, “Configurava-se naquela etapa da
ocupação um cenário dividido entre campo e floresta, onde o rio Jacuí representou um
poderoso impulso econômico para a região.” (MOREIRA & HAACK, 2016, p.400, 401)544
Porém, não podemos homogeneizar a presença negra e as sociabilidades
firmadas por esta545, afinal “Não há sociabilidades puramente recreativas ou
exclusivamente profissionais, porque a vida social é o ponto de intersecção de lógicas
múltiplas dos comportamentos dos atores sociais”. (BOSCHI, 1998, p. 354)
A partir dos registros do códice analisado (1812-1820), 81 irmãos ingressaram
na associação, destes, 57% estavam em condição de escravizados, 32% livres e 11%
libertos. Somando 68% de irmãos que vivenciaram a experiência da escravidão e/ou da
diáspora e, evidentemente pertenceram à comunidade negra. Os irmãos registrados
como livres (32%), poderiam fazer parte de uma parcela da comunidade tida como
“socialmente branca” ou ter feito parte da comunidade branca, já que: “Esses territórios
da devoção afro-católica não eram exclusivamente negros (apesar da Irmandade ser
reconhecida como de pretos)”. (MOREIRA, 2017, p. 137). Cargos da associação, como os
de escrivão e tesoureiro: comumente ficavam nas mãos de indivíduos brancos546, isto
devido ao capital cultural necessário para ocupá-los (SCARANO, apud GRIGIO, 2016,
p.177), evidenciando as múltiplas e por vezes díspares sociabilidades firmadas ali. Cabe,
entretanto, apontar que justamente estes cargos eram cercados por séria vigilância pela
irmandade, tendo que frequentemente prestar contas de suas atividades.
Dentre os anos de 1812 a 1820, a Freguesia de N. Sra. da Conceição da Cachoeira

544 “Cachoeira do Sul deve ser compreendida como uma região de fronteira que tinha como aliada a sua
posição geográfica às margens do rio Jacuí, com ligação direta à Lagoa dos Patos e, consequentemente, com
o Porto de Rio Grande”. (FAGUNDES, 2009, p.23)
545 Ao usarmos a expressão “presença negra” não estamos querendo afirmar uma fictícia homogeneidade

dada pela posição social e etnicidade. Sabemos, conforme salienta a historiadora Hebe Mattos, que as
comunidades humanas, justamente em função de sua humanidade, são heterogêneas internamente em
decorrência de uma série de questões e projetos pessoais e familiares. (MATTOS, 1995)
546 “Os brancos procuraram participar das irmandades de cor como estratégia de controle, não obstante

muitos talvez também o tenham feito por sincera devoção. Ou, mais concretamente, para salvar a alma. Os
pretos os aceitaram por várias razões: para cuidar dos livros, por não terem instrução para escrever e
contar, para receberem doações generosas, vez que não tinham como sustentar sozinhos a irmandade, ou
ainda por imposição pura e simples.” (REIS, 1996, p.12)

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passava por renovações urbanísticas e administrativas547, compactuando com Ênio


Grigio que percebeu as irmandades como “um fenômeno essencialmente urbano, era
necessária a criação de condições propícias para a fundação dessas associações,
principalmente entre a população negra”. (GRIGIO, 2016, p.57)
A inauguração da Igreja Matriz em 1799 (RUBERT, 1994, p.103), aliada a um
intenso fluxo migratório (FAGUNDES 2009; SÔNEGO 2011; OLIVEIRA 2013), pareceu ter
sido satisfatório para estimular a criação da associação e, em 1812, um ano antes de ter
sido feito o compromisso,548 já se reuniam 48 devotos do Rosário em Cachoeira.
Participar desta irmandade, porém, exigia diversas prerrogativas, e mais que
isso, a dedicação constante para com o orago, seja na forma devocional, ou monetária.549
Este fato pode ter dificultado a permanência de muitos irmãos na Irmandade de
Cachoeira, registraram-se 12 membros, de um total de 81(14.8%), que pagaram a
anuidade apenas uma vez (7 escravizados, 3 livres e, 2 forros). Não sabemos quantos
desses, mesmos inadimplentes, continuaram a frequentar a irmandade, mas podemos
imaginar as dificuldades que a população negra tinha em auto-financiar sua associação
devocional.
Entre os anos de 1812 e 1820, foi registrado o ingresso de 54% (44) homens e
46% (37) mulheres, num total de 81 irmãos, a equiparidade em termos de gênero,
transborda-se também para os cargos ocupados por essas irmãs. Estão registrados no
livro cargos de Juíza e Rainha, demonstrando que a associação afro-católica de
Cachoeira, não excluía as irmãs dos cargos administrativos e rituais. (SOARES, 2002;
REGINALDO, 2005)
Dentre os irmãos, destacamos que 9.8% (8 devotos) mantinham vínculos de
sociabilidades político-militares ou/e portavam patentes militares, (87,5% desses
irmãos iniciaram-se como escravizados por 1 tenente, 4 capitães, 2 alferes e, 1 tinha

547 Foi durante esse período que a Capela é elevada a Matriz (1815) e a Freguesia é elevada a Vila (1819),
além de que: “A importância da Vila de Cachoeira nos meados dos oitocentos está ligada a sua localização
geográfica estratégica, com a presença da bacia hidrográfica do Jacuí que possibilitava o deslocamento de
mercadorias e de pessoas com facilidade”. (FAGUNDES, 2009, p.15)
548 Segundo Julita Scarano: “Existem dificuldades de estabelecer datas precisas da fundação das Irmandades

do Rosário no Brasil, pois as datas dos compromissos não correspondem às da criação dessas associações,
mas sim do momento em que se tornaram oficiais diante da Coroa e da Igreja.” (SCARANO, 1975, p. 48)
549 Foram registrados no códice os pagamentos “de entrada” (640 réis) pelos irmãos de forma individual,

fora uma exceção: Miguel Arcanjo e sua mulher Catharina de Jesus, iniciados em 1812 pagaram apenas um
valor de entrada) Os irmãos também registravam os pagamentos das anuidades feitos por eles, além das
“joias” pagas ao empossarem cargos na mesa diretiva.

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patente militar de alferes), compactuando com Renata Oliveira que evidenciou, “uma
espécie de relação político-militar entre a propriedade e o proprietário” (ANJOS, 2004,
apud OLIVEIRA, 2013, p. 61), nas terras de Cachoeira no início do século XIX. Ainda foram
localizadas entre as irmãs 7 donas, representando 18,9% do total de mulheres ingressas.
Estas donas, muitas vezes mulheres da elite, “pessoas com status e prestígio social”
(MATHEUS, 2016, p.224), poderiam ter representado também mulheres negras que se
projetaram no tecido social desta sociedade escravagista.
Passemos agora, concluindo nosso trabalho, a um exercício de recomposição da
trajetória de uma dessas irmãs do Rosário dos Pretos de Cachoeira.

Uma rainha negra em Cachoeira


Joana nasceu provavelmente dentre os anos de 1760-1770, no Reino do Congo ou
em territórios sob a jurisdição desde, na África Central Atlântica. O primeiro registro que
localizamos com seu nome foi o do batismo de sua filha Maria. A cerimônia foi feita pelo
padre Francisco Xavier dos Santos,550 sendo a primeira registrada no “Livro Batismos de
Escravos de Cachoeira - 1799/1842”, em 26 de Março de 1799.551 (MOREIRA, 2017,
p.121). Nessa, mãe e filha eram escravizadas pelo casal Francisco Antônio de Amorim e
Isabel Correia de Prado.
O segundo registro localizado foi sua carta de alforria, catalogada pelo Arquivo
Público do Rio-Grande do Sul. Em 26 de Janeiro de 1813, Joana, descrita como de nação
Rebolo552 e em estado complicado de saúde (padecendo de moléstia) conquista sua

550 “Era natural de Desterro na ilha de Santa Catarina, estudou e foi ordenado no Rio de janeiro a 2-6-1792
por D. Jose Feliciano Mascarenhas Castelo Branco. Foi coadjutor da Conceição da Lagoa (1792-1793), pároco
de Enseada do Brito (1794-1797), passando logo a Pároco colado. O pároco colado foi o grande
impulsionador da construção e adiantamento da bela igreja matriz de Cachoeira.” (RUBERT, 1998, p.104)
que “Em 28 de Setembro de 1799, foi inaugurada com novo templo” (SCHUH, 1991, p.20) Segundo Silva: (o
padre Xavier dos Santos) “Ocupou a primeira propriedade (1798)” da então freguesia de Cachoeira, sendo
que “em seus limites, se contam, além de 250 fogos e mais de 2000 almas, sujeitas a sacramento.” (SILVA,
1808- 1822, vol.5, 1820, p.148) Essa autoridade católica foi um dos membros brancos da Irmandade,
ingresso em 1819 e assumindo o cargo de protetor da Irmandade em 1828. (MOREIRA, 2017, p.127)
551 No Arquivo Histórico da Cúria de Cachoeira do Sul, existem três livros de registros de batismos de

escravos (1799 a 1859). Na transcrição que fizemos, totalizamos 2.480 indivíduos escravizados recebendo
os santos óleos e sendo admitidos no seio da Igreja Católica. (MOREIRA, 2017, p.121)
552 “Mariza Soares preferiu compreender os nomes classificatórios do tráfico enquanto grupos de

procedência, admitindo que estes poderiam recriar, no ambiente da escravidão, relações múltiplas de
solidariedade, tendo nas irmandades um dos espaços privilegiados de manifestação.” (SOARES, apud
OLIVEIRA, 2006, p. 79)

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liberdade,553 mediante o pagamento de 45$ mil réis (uma pequena fortuna para época),
entregues ao senhor Francisco de Amorim, que havia abonado a metade da quantia
pertencente a sua finada esposa Isabel Correia de Prado:

Joana; Rebolo; 40 (anos); Sr. Francisco Antônio de Amorim; dt. conc. 26-
01-13; dt. reg. 29-03-13; da Freguesia de Cachoeira (Livro 2,p. 54v).
Desc.: A carta foi concedida “pelos bons serviços que dela tenho
recebido, e por ela padecer moléstia e recebi ao fazer desta 45$ em
moeda corrente da mão da dita escrava que é metade do que foi avaliada
por falecimento de minha mulher Isabel Correia do Prado e a outra
metade a dita falecida lhe perdoou. (RIO GRANDE DO SUL, 2006, p.792)

Joana assumiu o sobrenome “de Amorim”, talvez pelo agenciamento, já que em


uma sociedade calcada em desigualdades e preconceitos, o nome senhorial poderia
trazer-lhe certo prestígio, ou talvez por simples “gratidão” aos seus senhores.
Interessante pensarmos a conquista paga da liberdade de Joana, como um esforço
coletivo que pode revelar outras redes de sociabilidades firmadas por nossa rainha,
antes mesmo do ingresso na irmandade.
Joana de Amorim iniciou-se como irmã de N. Sra. do Rosário dos Pretos de
Cachoeira em 1815, com aproximadamente 45 anos (considerando que aparentava ter
40 anos na manumissão). Estão registrados no livro da Irmandade os pagamentos das
suas anuidades de 1816, 1817 e 1822, e ainda a pendência nas anuidades de 1818, 1819,
1820 e 1821. A trajetória financeira de Joana na Irmandade, (pagou 3, deveu 4
anuidades) transborda-nos uma condição de vida “talvez precária” em sua recém
conquistada liberdade. (VIANA, 2007, p.181)
Joana foi Rainha em 1822. Nessa ocasião, com aproximadamente 50 anos, com a
saúde provavelmente bastante debilitada, reinou na recém-instituída Vila Nova de São
João da Cachoeira. Na festa de coroação podemos imaginar Joana de Amorim, mulher
negra, que vivenciou os universos da escravidão e da liberdade, nas procissões, nas
comilanças, nos batuques, nas danças554, na homenagem. Joana, faleceu dois anos depois

553 Segundo Mary Karasch (2000, apud MOREIRA, 2017, p.122), “A carta de alforria era a prova da liberdade
de um escravo, introduzindo-o na vida precária de uma pessoa liberta numa sociedade escravista [...] a carta
transferia o título de propriedade (o cativo) de senhor para escravo. Em certo sentido, os escravos
literalmente compravam-se ou eram doados para si mesmos. Uma vez que havia uma transferência de
propriedade, o ato tinha de ser documentado publicamente por um tabelião”.
554 “Principalmente nas irmandades negras, o bem festejar estava ligado à dança.” (OLIVEIRA, 2006, p.72)

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em 4 de Abril de 1824.

Considerações

Estas demonstrações de apropriações estéticas do espaço, coletivas e


organizadas, nos dão uma imagem outra a sociedade escravista. Muito
longe de suavizar ou atenuar a violência da escravidão, esses
documentos nos transmitem cenas de esforço e dignidade. (MOREIRA,
2017, p.136)

As irmandades negras de devoção a N. Sra. do Rosário e São Benedito situam-se


como patronas de vastos legados culturais que hoje nos tocam pela forma de patrimônios
materiais e imateriais e, contribuem para visibilizar e dar voz a estas comunidades.
Buscamos através da análise quantitativa e qualitativa do “Livro para Entrada de
Irmãos” (1812/1820), reafirmar a excelência da capacidade de agenciamento social dos
irmãos do Rosário dos Pretos de Cachoeira, entendendo-os como sujeitos sociais
complexos, que aderiram a uma “devoção consciente” e estabeleceram redes de
sociabilidade, autonomia e resistência.

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FIEBRE ES CALOR NO NATURAL: OS REMEDIOS PARA FEBRES EM UM


MANUSCRITO INÉDITO DO SÉCULO XVIII

Leonardo Cirra Freitas*

Introdução
O presente artigo apresenta os primeiros resultados de minha atuação como
bolsista de Iniciação Científica junto ao projeto intitulado As artes de curar em dois
manuscritos inéditos do século XVIII, coordenado pela Profª Drª Eliane C. D. Fleck, junto ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. O
subprojeto que venho desenvolvendo desde junho de 2017 detém-se no Tratado de
Medicina, Cirurgia e Botica, de 1725, que foi recentemente localizado no Convento da
Ordem Franciscana de Catamarca, na Argentina.
A transcrição e análise do Tratado tem como finalidade auxiliar no entendimento
da ciência praticada na América Espanhola colonial, tendo como ênfase as práticas
medicinais utilizadas pelos padres ou irmãos que atuavam como profissionais das artes
de curar nas reduções jesuíticas. Apesar de não haver consenso em relação à autoria do
manuscrito, compartilhamos da hipótese proposta pelo historiador argentino Guilhermo
Furlong no século XX, que o atribui ao irmão jesuíta Pedro de Montenegro (1663-1728).
Neste artigo, nos ateremos à análise do sexto capítulo da obra, intitulado De las
Fiebres, y De Su Diferencia, com o objetivo de identificar e analisar as dietéticas indicadas
no tratamento de enfermos nas reduções em que o irmão jesuíta Montenegro atuava.
Assim como os demais capítulos do Libro555, este consiste de descrições, receituários e
recomendações para o tratamento e identificação de diferentes espécies de enfermidades
e seus sintomas. Considerando o número expressivo de alimentos na composição das
receitas, recorremos a obras e artigos que enfocam a História da Alimentação para
subsidiar a análise. Consagrada nos demais campos das humanidades – tais como
Antropologia e Sociologia –, a temática da alimentação ainda vem se consolidando nos

*Graduando em História pela Universidade de Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).


555Por motivos de abreviatura, nos referimos à fonte não como Tratado de Cirurgia, Medicina e Botica, mas
por Libro.

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trabalhos mais recentes de História, o que fica evidenciado nos ainda escassos estudos
sobre dietética medicinal na América portuguesa e espanhola.

Pedro de Montenegro e seu Libro de Cirugía


Neste tópico, trazemos algumas informações sobre a trajetória do suposto autor
do manuscrito, tentando elucidar seu percurso desde a Europa, passando por sua vinda
ao Novo Mundo até sua morte. Destacaremos, ainda, as reduções em que atuou no período
em que foi concebido o manuscrito, para, posteriormente, analisarmos o conteúdo do
capítulo.
Pedro de Montenegro nasceu na Espanha, em 1663. Sabe-se que iniciou sua
formação como boticário, enfermeiro e cirurgião junto ao Hospital Geral de Madri.
Segundo Poletto (2014), Montenegro foi, desde a infância, um admirador da natureza e
um interessado pela ciência, principalmente no que se refere a conhecimentos de
botânica. Montenegro chega na América em 1689 e ingressa na Companhia de Jesus no
ano de 1691, atuando no Colégio de Córdoba, na Argentina, até realizar seus votos em
1693. É neste mesmo ano que deixa de ser um noviço e gradua-se irmão coadjutor. É
importante destacar que Montenegro era irmão, e não padre, o que possibilitava que
atuasse também como boticário, enfermeiro e cirurgião nas reduções.
Após os votos, é enviado em missões para as reduções de Tucumán, e, dali, para a
redução de Apóstoles (1702). Sabe-se que em 1704, ele atuou como cirurgião em um
conflito entre portugueses e espanhóis na colônia de Sacramento, acompanhando uma
milícia de índios guaranis. A partir deste evento, temos uma lacuna na trajetória do
personagem, visto que até 1728, ano de sua morte em Mártires, existem apenas registros
superficiais e escassos. Entre eles estão os catálogos da Província Jesuítica do Paraguai,
datados de 1715, 1720 e 1724; que informam que o jesuíta se encontrava atuando como
enfermeiro nas reduções do Paraná.
Ao tratarmos da vida de um missionário, não podemos ignorar que falamos de
homens cuja vida estava dedicada a servir à Companhia de Jesus, levando aos indígenas
concentrados nas reduções conhecimento e a palavra de Deus. A vida destes homens era
especialmente marcada pelos deslocamentos entre diferentes reduções, segundo as
necessidades da Ordem. Se consideramos a formação de Montenegro e sua dedicação às
práticas de cura em uma América platina carente de enfermeiros e boticários, podemos

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inferir que estes deslocamentos eram ainda mais intensos. Isso, aliás, fica explícito no
prólogo do próprio Libro, no qual o autor expõe os motivos de sua elaboração: “reunir en
un cuerpo, lo que no he podido hallar en libro alguno, cuanto es preciso caminar
continuamente y por diversas partes; no podiendo llevar muchos libros que me hallaba falto”
(MONTENEGRO apud ACERBI CREMADES, 1999, p. 19).
O Libro é composto por mais de seiscentas páginas e é dividido em dez capítulos,
sendo eles: Dispensatório Médicinal; Anathomia del cuerpo humano; Tratado brebe del
modo de sangrar; Enfemedades de la cabeza; Enfemedades del pecho; Enfermedades de la
cavidad abdominal; Enfermedad de las mugeres; De las fiebres, y de su diferencia; Tratado
sobre el pulso, orina y crisis e Tratamentos chirúrgicos.
O manuscrito apresenta, também, tabelas que apresentam os planetas e os signos
celestes e que indicam os melhores dias para fazer purgas e sangrias, bem como os
procedimentos mais “harmoniosos” com cada clima, época do ano e fase da lua. Apesar
de, como já mencionado, concordarmos com o proposto por Furlong quanto à autoria, não
podemos deixar de mencionar que o manuscrito traz fortes indícios de mais de um autor,
visto que apresenta diferentes letras, diferentes estilos narrativos e uma descontinuidade
na sua paginação.
Estas características do manuscrito constituem considerável obstáculo para a
análise do Libro, pois existem passagens nas quais estas diferenças se impõem de forma
tão acentuada que a informação se torna confusa ou contraditória em relação a outros
trechos. No momento, estamos levantando a hipótese de que as partes intituladas
Tratados sejam transcrições de tratados já publicados, e que as partes intituladas
Enfermidades sejam, de fato, autorais, mas redigidas por diferentes sujeitos, dentre os
quais poderiam se encontrar índios copistas.

De Las Fiebres, y De Su Diferencia


O capítulo De las Fiebres, y de su Diferencia trata sobre os diferentes tipos de febres
que podiam acometer a saúde humana. Começando pela definição de fiebre, o autor afirma
que ela corresponde a:
[...] calor no natural mudado en huego, el calor sepone en lugar de genero,
por que todas las fiebres combienen en calor preternatural a diferencia
del natural, que es el conservador de la vida, y el preternatural el

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destruidor de ella; mudado enfuego se dice a distincion de otro calor no


natural, que no es bastante actibo para producir fiebre, como es la ira, el
exercisio &, que produciendo calor preternatural no llega a ser febril.
(MONTENEGRO, 1725, p. 317).

Neste capítulo, o autor trabalha, especificamente, com três espécies de febres: as


Eticas, as Putridas e as Efimeras. As Febres Eticas atingem os membros sólidos e dividem-
se em três tipos, não mencionados especificamente pelo autor556. As Putridas, que
atingem os humores, e as Efimeras, que atingem os espíritos, são tratadas mais a fundo e
mereceram maior atenção quanto às suas variações e subespécies. As Putridas dividem-
se em colericas, biliosas, cotidianas, flematicas, melancolicas e sanguineas; e as Efimeras
em causon, tercianas, quartanas e malignas.557
Ao longo de todo o capítulo, diferentes estratégias dietéticas e medicinais são
descritas pelo autor, variando – em maior ou menor grau – de acordo com o tipo de febre
abordada. Entre os alimentos indicados no tratamento de cada tipo de febre, temos
naqueles utilizados nos casos de febres Eticas como um ponto ilustrativo das tendências
medicinais da época. As Eticas, febres cujo principal efeito era o “ressecamento” de
artérias e do coração, sendo, portanto, uma doença seca, deveriam ser combatidas por
tratamentos e alimentos úmidos, como carnes de cangrejos, caracoles, tortugas e leche de
baca. Temos aí um tratamento dietético e medicinal fortemente baseado no método
hipocrático-galênico, pelo qual cada doença deveria ser curada pelo seu contrário.
Observamos, ainda, que o leite era tido como principal alimento para combater este tipo
de febre.
As Pútridas, por sua vez, tinham sua base alimentar constituída por seuada,
asucar, caldos de pollo, carne de carnero ou gallinas, e lechugas. Também são utilizadas
plantas como salvia, romaza, sen, orosus, esparrago e ybiamirri, que são empregadas tanto
na alimentação como na composição de sudoríficos e vomitórios. Por fim, os tratamentos

556 A única subespécie de febre Etica ressaltada pelo autor corresponde ao chamado Rosio, que diz respeito
à febre Ética que consome a umidade do coração e das artérias.
557 Cabe ressaltar que entre estas subespécies, tanto das Putridas quanto das Efimeras, existem outras

variações de febres que mereceriam analises mais atenciosas futuramente. Estas variações, segundo o autor,
podem ser ocasionadas pela existência de subespécies (caso mais frequente nas Putridas) ou por diferentes
terminações.

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indicados para as febres Efimeras têm a mesma base alimentar das febres Putridas,
adicionando-se, apenas, a recomendação da ingestão de limon e naranjas.
Como pode-se observar, alguns alimentos constituem uma base comum à
alimentação dos enfermos febris. No entanto, foi interessante verificar que alguns destes
alimentos são recomendados tanto para a alimentação, quanto para práticas terapêuticas.
Destes últimos, é interessante citar o já mencionado leite. Sua ingestão é fortemente
recomendada para os enfermos que sofrem com as Eticas, e é tido, inclusive, como seu
“alimento, y remedio universal” (MONTENEGRO, 1725, p. 349). Os alimentos aparecem
também como um terapêutico eficiente contra alguns efeitos das febres Efimeras, sendo
utilizados para fazer compressas na cabeça dos enfermos. Este também é o caso das
seuollas558, que podiam ser tanto ingeridas como aplicadas na pele dos Efimeros que
apresentassem erupções na pele gerados pela subespécie mais cruel de Efimera, as
Malignas.
Até o século XIX, as práticas médicas baseavam-se sobretudo nos pressupostos
da teoria hipocrático-galênica, conforme observado por Carneiro:

A concepção vigente por mais de dois mil anos na cultura ocidental foi (e
de certa forma, no âmbito da cultura popular ainda é) a da teoria dos
humores e da correspondência universal do micro e do macrocosmos. Em
tal concepção, o corpo humano, os vegetais, as estrelas, assim como tudo
no universo, possui uma correspondência íntima e cifrada, que caberia
aos homens descobrir. Os estados de humor, as estações do ano, as
temperaturas, as condições de secura ou umidade, os órgãos do corpo, as
secreções, os temperamentos humanos são interligados numa estrutura
quaternária. Assim, segundo tais idéias hipocráticas e galênicas, cada
alimento corresponderia a certo grau de calor e umidade que o tornaria
adequado a certas pessoas, idades, doenças etc. (CARNEIRO, 2005, p. 73).

A medicina hipocrático-galênica, ou Teoria dos Humores, está bem presente no


manuscrito e podemos percebê-la em várias passagens, principalmente no capítulo em
questão. O autor destaca que as febres que resultam dos humores frios são mais
demoradas que aquelas que procedem do calor, e, ainda, que as febres cóleras são mais
breves e menos agudas, e que aquelas causadas pelo sangue são menos agudas e breves

558 Cebolas.

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em seus sintomas, mas demoram mais para passar. O autor analisa ainda as febres de
flema e as causadas pelo umor melancolico.
Para além dos casos citados de uso dos alimentos em dietas e terapêuticas, alguns
tratamentos chamam a atenção não tanto por seu viés científico, mas por seu caráter
peculiar. Alguns tratamentos extremos para as febres incluiam a ingestão de esterco,
urina e animais vivos, como sapos. O próprio caso do leite, embora não constituísse um
alimento fora do comum, tem usos que chamam atenção pelo caráter inusitado de seu
emprego. Vemos isso em sua utilização para a cura das febres Eticas:

Y el mejor tienpo de usarla será por las mañanas en auinas, hagan traer una
baca mansa, gorda, negra, y nó vieja, ni mui joven junto ála auitacion del
Enfermo, y ordeñen la leche en un baso que este metido dentro deotro baso
lleno de agua bien caliente, para que assi con el calor que sale la veua el
Enfermo. (MONTENEGRO, 1725, p. 349)

A forte influência da medicina hipocrático-galênica é também percebida na forma


como as enfermidades e os diferentes órgãos do corpo humano são apresentados, isto é,
a partir dos quatro humores básicos, a saber, sangue, fleuma, bile amarela (ou cólera) e a
bile negra (ou melancolia). Estes humores, associados aos quatro principais elementos da
natureza, o fogo, água, terra e ar, eram tidos como componentes naturais do corpo
humano e deveriam estar sempre em harmonia para que as doenças não se
manifestassem.

Considerações Finais

O século XVIII caracteriza-se pela transição da medicina humoral para uma


medicina científica propriamente dita. Ao transcrevermos e analisarmos o capítulo De Las
Fiebres, y De Su Diferencia, fica evidente que o mesmo foi concebido, como dito, em um
momento transitório nas concepções de ciência. Assim, apresenta pontos de mescla de
conhecimentos de anatomia e de farmácia próprios do Setecentos e de princípios da teoria
dos humores.
No que concerne às dietéticas, é importante destacar que não verificamos
nenhuma associação específica entre a indicação de alimentos e algum procedimento
terapêutico mágico-religioso. As recomendações feitas pelo autor permanecem

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integralmente no plano científico, sendo que alimentos e plantas são indicados em função
de suas virtudes medicinais.
Diante das situações relatadas e das indicações de tratamento observadas no Libro,
é possível aventar a hipótese de que a medicina jesuítica empregada na América
Espanhola do século XVIII não se limitava ao emprego de procedimentos adotados na
Europa, visto que muitas das plantas que integravam as receitas eram americanas. Nos
parece correto supor que estas mesmas plantas já eram utilizadas pelos nativos tanto
como alimento, quanto como recurso medicinal no tratamento de certas enfermidades.
Assim, entendemos que o conhecimento científico divulgado no Libro se constitui
de sistematização de observações e experiências oportunizadas pelo contato intercultural
e científico entre o Novo e o Velho Mundo. Como pudemos observar ao transcrever e
analisar o capítulo 6, a dietética medicinal contempla tanto procedimentos terapêuticos
europeus, quanto saberes e práticas tradicionais indígenas. Isso é um indício não só da
apropriação e difusão da ciência médica do século XVIII na América, mas também da
apropriação e difusão de saberes dos nativos americanos decorrentes do convívio
intercultural.

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A SAÚDE E A DOENÇA NO BRASIL MERIDIONAL DO SÉCULO XVIII A


PARTIR DA ANÁLISE DA CORRESPONDÊNCIA E DE UMA OBRA DA
BIBLIOTECA DO BRIGADEIRO SILVA PAES

Rogério Carvalho*

Neste artigo, apresento os primeiros resultados de minha participação como


bolsista de Iniciação Científica junto ao projeto “Circulação e apropriação de saberes em
obras manuscritas e impressas de Cirurgia na América meridional do Setecentos”,
coordenado pela Profª Drª Eliane Cristina Deckmann Fleck. O subprojeto, sob minha
responsabilidade, prevê a transcrição e a análise de três livros de medicina e de cirurgia
que integravam a biblioteca do Brigadeiro José da Silva Paes, fundador da cidade de Rio
Grande, em 1737. A proposta é de, através desses livros, conhecer os procedimentos
terapêuticos e cirúrgicos adotados no tratamento de soldados enfermos, ou feridos em
combate e dos primeiros habitantes colonizadores que viviam nessa fronteira meridional
marcada pelos constantes conflitos entre Portugal e Espanha.
Tanto os colonos, que foram atraídos para esta região com a promessa de terem
lotes de terra para explorar, como os soldados que lutavam em defesa de El-rei,
depararam-se com uma realidade completamente diferente daquela em que viviam na
Europa, quer pelo clima, quer pela ameaçadora presença de grupos indígenas na região,
ou, ainda, pela constante insegurança causada pelas investidas espanholas, resultado da
disputa entre as duas coroas. A oeste de Tordesilhas o mundo era outro e vários eram os
perigos e os inimigos. Ambientar-se era fundamental, constituindo-se em um desafio
constante e um objetivo a ser alcançado.
Na continuidade, apresentamos uma breve trajetória do brigadeiro e também sua
biblioteca e discutimos mais detidamente um dos livros que a compunham, o Tratado
Cirurgia Anatômica (1715), escrito por Monsieur Le Clere e traduzido por João Vigier,
cotejando-o com a bibliografia atual sobre o Rio Grande do Sul e com as cartas escritas

* Graduando Unisinos (Bolsa Pratic).

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por José da Silva Paes, a fim de destacar as condições de vida dos militares e dos primeiros
habitantes da, então, capitania do Rio Grande do Sul, na primeira metade do Setecentos.

O Brigadeiro José da Silva Paes e sua Biblioteca

Tanto os soldados, quanto os colonizadores faziam parte de um plano da Coroa


portuguesa que previa a expansão de sua fronteira de forma a proteger a Colônia de
Sacramento, seu ponto mais extremo ao sul do continente. Devido à importância que
Sacramento tinha, principalmente para o comércio português, a região requeria uma
permanente proteção militar, já que os espanhóis ameaçavam constantemente a região.
Foi em meio a esse contexto de intensos e frequentes sobressaltos bélicos, que o
Brigadeiro José da Silva Paes chegou ao Brasil meridional.
Batizado a 25 de Outubro de 1679, em Lisboa, o Brigadeiro José da Silva Paes,
engenheiro de formação, teve influente papel na construção das defesas lusitanas no
Brasil. Após uma excelente folha de serviços prestados a sua Majestade, principalmente
nos conselhos das obras de engenharia, recebe o Hábito da Ordem de Cristo (PIAZZA,
1988, p.43). Ao ser promovido a brigadeiro, é designado para atuar no Brasil, em um
contexto no qual Portugal tentava firmar suas fronteiras na América meridional. Sua
formação como engenheiro logo foi acionada na construção de fortificações no extremo
sul, ficando, também, evidente nos inúmeros exemplares de obras de engenheiros, tais
como João Massé e Manuel de Azevedo Fortes, sendo este último com volumes que
integram sua biblioteca. Além de Vice-Governador do Rio de Janeiro, foi o fundador de Rio
Grande de São Pedro, hoje cidade de Rio Grande, e um dos responsáveis pela distribuição
de terras da primeira leva de açorianos, quando governador de Santa Catarina559.
Em Livros de uma vida (1999), Ana Cristina Araújo nos oferece informações,
extraídas do inventário do brigadeiro, sobre os livros que compunham sua biblioteca:

Pela ordem com que são inventariados, cinco grandes temas estruturam
o quadro assimétrico das matérias representadas nesta livraria: Religião

559Silva Paes possuía diversas divergências com o então governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire. O
Conselho Ultramarino, com o objetivo de não perder tão inteligentes perfis, nomeia Silva Paes governador
de Santa Catarina (1739), pois ele já demonstrara sua capacidade ao apontar para a importância estratégica
da ilha e a necessidade de se criarem fortes para defesa, dando por encerrado o assunto. No posto, Silva
Paes estrutura a recente capitania tanto em termos de defesa, quanto em termos políticos. (PIAZZA, 1988).

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(68 volumes), Filosofia (14 volumes), Geometria e Trigonometria (89


volumes), História e vida de príncipes (252 volumes), Medicina e Cirurgia
(14 volumes). (ARAÚJO, 1999, p. 159).

Sem entrarmos muito no mérito da biblioteca, trabalho muito bem desenvolvido


por Ana Cristina Araújo, gostaria de destacar duas colocações que a historiadora faz sobre
o acervo. A primeira diz respeito à importância que o brigadeiro atribuiu à sua biblioteca.
À época, possuir uma biblioteca era um indicativo de ascensão social e, como o brigadeiro
não possuía sangue nobre, a aquisição de livros pode revelar sua preocupação com seu
status social. A segunda diz respeito aos livros de Medicina que foram relacionados no
inventário, e que são objeto do projeto coordenado pela Profª Eliane Fleck, ao qual me
encontro vinculado. Dos 14 livros de Medicina relacionados no inventário, três deles se
encontram na Biblioteca Riograndense, de Rio Grande (RS), a saber, Ancora Medicinal
(1731), Cirurgia Anatômica (1715) e O Praticante do Hospital (1756).

Fundação de Rio Grande

Três fatores motivaram a fundação do povoamento de Rio Grande. A primeira foi


a invasão da Colônia de Sacramento em 1735, por D. Miguel de Sarcedo, que leva Silva
Paes, sob as ordens do General Gomes Freire, a prestar socorro e apoio à Colônia. Pela
carta régia de 17 de abril de 1736, recebeu, também, ordens de executar os planos de
colonização do Rio Grande, razão pela qual, após socorrer os sitiados em Sacramento,
funda o presídio Jesus Maria José em 1737, que deu origem a cidade de Rio Grande.
(FORTES, 1980)
O segundo fator era a importância dada à manutenção da ordem e autoridade na
Colônia de Sacramento. A passagem da prata de Potosí pelo Rio da Prata colocava
Sacramento como um importante entreposto comercial, que muito contribuía para a
economia lusitana. Como o último ponto de apoio era Laguna, extremo sul do Tratado de
Tordesilhas, uma povoação nessa região constituía uma linha de abastecimento e de apoio
militar necessária para o controle da região. (Fig. 1)

Soldava-se um novo elo na corrente Laguna-Sacramento. A cadeia com


tais extremos se consolidaria com mais um reforço intermediário e se
constituiria gradativamente de Laguna, Viamão, S. Pedro, S. Miguel,

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Maldonado e Montevidéu para atingir o outro extremo – a Colônia de


Sacramento. (FORTES, 1980, p.42)

O terceiro fator se refere à importância econômica da região. A incessante busca


por metais preciosos alimentava a possibilidade de encontrá-los nesta região. O
brigadeiro defendia, de forma eloquente, a importância militar, não só pela posição
geográfica, mas, também, pelas condições da região de fornecer charque, estabelecer
curtumes, courama e peixe seco. Havia, segundo ele, forte suspeita de minas nas
cabeceiras do Rio Grande” (Carta de Silva Paes a Gomes Freire, em 21/07/1737. In:
FORTES, 1980, p. 60-61).

Fig. 1 – Rota de apoio a Colônia de Sacramento a partir de Laguna. Adaptado de KHUN, Fábio; COMISSOLI, Adriano. Centro-sul da
América portuguesa - século XVIII . – Disponível em: http://www.scielo.br

O Contexto Fronteiriço
Nesse início de formação de uma base de apoio militar, houve, sem dúvida, a
necessidade de uma adaptação dos soldados às condições da região, tanto em termos de
relevo, quanto em relação ao clima, que acabavam por demandar também novas formas

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de combate introduzidas pela “guerra brasílica” (CASTRO, IZECKSOHN E KRAAY, 2004) e


uma adequação à alimentação. Segundo Tau Golin (2015), os europeus recém-chegados,
soldados ou colonos, tiveram que assimilar os hábitos alimentares dos habitantes dessa
terra, razão pela qual a carne e a farinha se disseminaram na população como alimentação
principal (GOLIN, 2015, p. 387).
Essa adaptação dos soldados à nova dieta pode ter sido rápida, mas o descaso do
Estado e o clima eram inclementes e causavam inúmeros prejuízos. O Estado, ao não
manter uma estrutura apoio adequada e de acordo com as exigências da região, deixava
os soldados desassistidos. Golin (2015) comenta que nem mesmo o fato de os soldados
estarem constantemente molhados e sem outra muda de roupa fazia com que o apoio
chegasse. Nem mesmo as acomodações dos oficiais escapavam do frio e da umidade
(p.35). Esse descaso tanto por parte do Estado como por parte das pessoas responsáveis
pelo comando trouxe como consequência a primeira revolta de soldados ocorrida no
território do atual Rio Grande do Sul. A Revolta dos Dragões (1742) foi motivada pela falta
de condições dos soldados em se manterem longe do frio e da fome e pelas denúncias de
que as provisões destinadas para o hospital eram desviadas para outros fins (PIAZZA,
1988, p.145).
Sabe-se que o brigadeiro tinha grande interesse em introduzir uma cavalaria nos
destacamentos sediados no Brasil meridional. Mas, logo constatou que o Rio Grande não
era detentor de pastagens suficientes para manter uma cavalaria que pudesse fazer frente
aos castelhanos (FORTES, 1980, p. 93). Além das pastagens, os soldados, vindos do centro
do Brasil e de Portugal, não estavam acostumados ao lombo do cavalo (FORTES, 1980, p.
92), sendo inábeis na arte de montar, o que demandava muito treinamento. A esse
despreparo dos soldados somavam-se os problemas de abastecimento, pois havia
carência de selas e arreios (GOLIN, 2015, p.36), situação que é relatada por Silva Paes a
Gomes Freire: “as selas e arreios se fazem em pedaços...” (Apud FORTES, 1980, p. 92).

Em torno da obra Cirurgia Anatômica – especulações e possíveis respostas


O contexto fronteiriço e conflituoso do Brasil meridional do Século XVIII parece
justificar os volumes de Medicina e, principalmente de Cirurgia, que integravam a
biblioteca do Brigadeiro Silva Paes. O conhecimento que eles traziam se fazia necessário

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tanto para o tratamento de soldados, quanto dos habitantes de regiões tão inóspitas e com
uma diversidade ambiental até então não vista.
Nesta comunicação, me detenho, especificamente, no livro Cirurgia Anatômica e
Completa por Perguntas e Respostas, que traz 16 capítulos “introdutórios”, que podem,
na minha compreensão, ser definidos como conceituais porque trazem de forma didática
os conceitos básicos e avançados da anatomia humana. A musculatura e a estrutura óssea
do corpo humano, revelando o pensamento da medicina científica do Setecentos, são
descritas de forma detalhada e explicadas uma a uma. Além disso, inclui mais 7 tratados:
Das doenças Chirurgicas; Das feridas, & chagas, & costuras; Das doenças dos ossos; Das
operaçoens da Cirurgia; Das operaçoens das fracturas; Das operaçoens que se fazem as
dislocaçoens e Dos remédios necessários a hum cirurgião.
Construído sob a forma de perguntas e respostas, o livro permite ainda que se
tenha um entendimento dos procedimentos cirúrgicos adotados no Século XVIII.

Figura 2 - “Quantas são as partes do corpo humano? Podem-se contar quinze, que são o ossoo, a
cartilagem, o ligamento, o tendão, a membrana, a fibra, o nervo, a vea, a arteria, a carne, a gordura, a
pelle, a sobrepelle, os cabellos, & as unhas.”

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Figura 2 - “Cartilagem que é? He huma parte que obedece, macia, que he quasi da natureza do
osso, & que se acha sempre atada a seus extremos para os adoçar, & facilitar os seus
movimentos.”

Analisando as figuras 2 e 3, podemos observar quão minuciosa é a descrição feita,


permitindo que os cirurgiões da época, sob qualquer situação, tomassem contato com os
conceitos básicos para o exercício de seu ofício.

Figura 3 - “Da divisão geral do corpo humano. Como se divide o corpo humano antes que delle se
faça a dissecação, & a demonstração anatomica?”

Cabe lembrar que no século XVIII, o corpo passou a ganhar maior destaque através
do estudo da anatomia humana, em especial, a partir da dissecação de cadáveres, que
possibilitou uma noção mais exata da constituição do corpo humano. Em relação a isto, o

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livro apresenta grande preocupação em orientar o cirurgião na condução dessa


dissecação de uma forma bastante didática (Fig. 4).

Figura 4 – A imagem mostra os capítulos que possuem diagnósticos e tratamentos para


acidentes referentes a rotina ou ao combate.

No índice do livro pode-se constatar sua importância para o atendimento de


enfermos inseridos no contexto fronteiriço da época, tanto para militares em combate,
quanto para civis, em tempos de guerra ou paz. Os tratados referidos acima, além de
apresentarem as doenças de maneira que se possa reconhecê-las facilmente pelo nome, a
partir dos sintomas do paciente, apresentam, ainda, os remédios que poderiam ser
indicados nas mais variadas situações. Vale lembrar que se eram comuns as doenças
decorrentes do clima e da falta de alimentação adequada e dos ferimentos em campos de
batalha. Também em tempos de paz, havia uma grande incidência de acidentes, muitos
deles provocados pela inabilidade dos soldados na montaria (FORTES, 1980, p. 92) ou,
então, decorrentes das selas e dos arreios mal conservados, que contribuíam para o
grande número de quedas, principalmente durante a doma (GOLIN, 2015, p.36) que

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causavam luxações e fraturas. O livro traz tratados específicos para cada caso, como
podemos visualizar na figura 5.

Figura 5 - “TRATADO – Dos remedios necessarios a hum Cirurgião”

Sabe-se que um regimento português possuía cirurgiões-mores, que deveriam


possuir uma botica, e também ajudantes, os quais, com certeza, atuaram nos hospitais de
campanha instalados no Brasil meridional no Setecentos (GOLIN, 2015, p. 141). Na fig. 6,
visualizamos página em que aparecem relacionados vários unguentos e emplastos
destinados a vários tipos de enfermidades e tratamento de ferimentos decorrentes de
acidentes.

Considerações finais

Como procurei demonstrar ao longo do artigo, acredito que as doenças que


acometiam os soldados e os habitantes do Brasil meridional estavam relacionadas tanto
com a necessária adaptação ao ambiente no qual se encontravam inseridos, quanto com
seu envolvimento nos conflitos militares. Às condições adversas do ambiente se somavam

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o descaso da Metrópole, a falta de medicamentos e de profissionais das artes de curar na


região fronteiriça disputada pelas duas coroas ibéricas.
A existência de livros de Medicina e de Cirurgia, como o livro Cirurgia Anatomica
(1715), na biblioteca pessoal do Brigadeiro José da Silva Paes pode ser explicada por sua
consciência quanto à importância dos conhecimentos, especialmente, de anatomia para o
atendimento dos soldados feridos em combate ou acidentados durante os treinamentos,
tanto por cirurgiões e ajudantes, quanto por religiosos que acompanhavam os
destacamentos militares. Esta preocupação pode ser observada por ocasião da Revolta
dos Dragões, quando Silva Paes era governador de Santa Catarina. Isto, contudo, não o
impediu de dirigir-se a Rio Grande, a fim de dar solução rápida ao conflito, restabelecer a
ordem e assegurar os cuidados necessários aos seus comandados.

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UM ESTUDO SOBRE A APROPRIAÇÃO E A CIRCULAÇÃO DE SABERES E


PRÁTICAS DE CURA NA AMÉRICA PLATINA A PARTIR DO LIBRO DE
CIRUGÍA (1725)

Bernardo Ternus de Abreu*

Introdução
O Libro de Cirugía Medica Trasladado de Autores Graves y Doctos (1725) é uma obra
de medicina produzida na América Platina da primeira metade do século XVIII. Contendo
mais de seiscentas páginas, reúne capítulos sobre enfermidades do corpo humano,
acompanhados de tabelas, receituários, relatos de experiência, descrições
anatomopatológicas e de transcrição parciais ou integrais de obras médicas de autores de
referência.
Segundo o historiador Guillermo Furlong, o irmão jesuíta, boticário, enfermeiro e
cirurgião Pedro Montenegro560 é o autor e, portanto, o responsável por reunir, compilar e
divulgar diferentes conhecimentos nesta obra manuscrita que serviria à realidade diária
das reduções. Nestas, seria preciso intervir rapidamente nas mais diferentes
enfermidades e, em vista disto, fazia-se necessária uma obra que reunisse os mais
diferentes conhecimentos.
A obra, cujo paradeiro era tido como desconhecido, foi recentemente localizada no
Convento da Ordem Franciscana da cidade de Catamarca, na Argentina, tornando possível
a transcrição e análise do manuscrito que tem grande relevância para a discussão sobre a
produção científica platina do século XVIII, a partir da atuação do irmão Montenegro,
como se pode constatar nesta passagem que transcrevemos:

*Graduando em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos.


560 Pedro Montenegro foi um irmão jesuíta que atuou como enfermeiro, boticário e cirurgião nas reduções
jesuíticas do Prata. Nasceu na Galícia, Espanha (1663), obteve formação técnica em Madrid e migrou para a
América em busca de oportunidades. Após ingressar na Companhia de Jesus, dedicou-se, dentre outros
ofícios, a escrever obras de botica. A Materia Medica Misionera foi publicada em 1710 e, em 1725, foi
publicado o Libro de Cirugía. Após atuar no Colégio de Córdoba e na Missão de Apósteles, Montenegro veio
a falecer em Mártires, no ano de 1728. (POLETTO, 2014, p.11).

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[...] Estando yo en s.n mig. Me avisaran de la enfermedad de un Indio. q.e


hera colica flatuosa, àla q.l llaman ellos Yabirù. tenia el vientre inchado
como un tambor, y ya conados los stos Sacramentos: dispuselè la
medicina siguiente. De medula de Patas de Vaca liquida quatro onz, junto
con quatro onz. de vino, y una cucharada de sal, de hise levantar un
heruor al fuego, y caliente de lo hise veuer de una vez; el efecto q.e hiso
fuè, que por dos oras estubo el enfermo quieto, despues se dispertò, y
purgò cantidad de humores crasos, flematicos por mas de seis oras
continuas hasta que del todo selè vajo la inchason y quedò sano al q.e yà
estava a punto de morir. En falta de aseite puse el tuetano, y añadi la sal
p.a haser el remedio mas larativo. [...] (MONTENEGRO, 1725, p. 248)

O excerto refere a necessidade de sua imediata intervenção, pois um indígena


estava acometido de grande enfermidade e a ponto de morrer na redução de San Miguel.
O relato prossegue, mencionando que na falta de azeite para o procedimento terapêutico
foi necessário improvisar com a utilização do tuetano, a fim de reestabelecer a saúde do
enfermo. Como se pode observar nesta passagem do Libro, os experimentalismos com a
flora nativa americana ou com outros medicamentos químicos eram uma constante na
atuação de boticários, enfermeiros e cirurgiões encarregados de garantir a saúde dos
corpos e das almas dos indígenas.
Os experimentalismos que acompanham a obra foram resultado do “interesse em
conhecer mais” próprio do modo de proceder da Ordem e da formação inaciana. Ao
ingressarem na Ordem da Companhia de Jesus, os jovens passavam por um período de
formação nos colégios, que lhes incutia o respeito pelo trabalho intelectual e os compelia
ao dever de inteligência em suas atuações (FLECK, 2015, p. 3). Muitos demonstravam
interesse nas mais variadas áreas do conhecimento, dedicando-se à Astronomia, à
Cartografia e à Botânica, por exemplo. Já os que foram enviados às terras de missão na
América, ao depararem-se com a biodiversidade da natureza americana, se sentiram
atraídos à realização de experimentalismos e ao registro destes em cartas, crônicas e
obras de História Natural e Botânica Médica.

Influências dos saberes indígenas

Em estreito contato com a natureza e as populações nativas, os missionários


jesuítas logo entenderam a importância de conhecer mais sobre as plantas medicinais e

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sobre as práticas de cura nativas, sendo que alguns excertos do manuscrito são indicativos
da apropriação que foi feita dos saberes indígenas.
Na página 318 do manuscrito, encontramos que: [...] El unto del conejo es principal
remedio delos Panarrisos llaman los indios al conejo Tapiti [...] (MONTENEGRO,1725, p.318).
Como se pode constatar, o excerto faz menção à extração de um azeite de coelho pelos
indígenas e o animal é referido na língua indígena. Nas páginas 243, 257, 258, 260 e 262,
encontramos a referência ao uso da planta aguaraybay (Schinus areira, aguaribay), que
também é apresentada na língua indígena. Nas páginas 255 e 261, há menção ao uso da
planta ipecacuanha561, cuja raiz possui propriedades medicinais e era largamente
empregada pelos indígenas. Nas páginas 238 e 287, cita-se o piterebi ou apiterebi, madeira
americana e, nesta última, o autor também nos apresenta “ruybotillu”, forma como os
indígenas se referem à virga áurea:

[...] Criase por todas estas doctrinas la virga aurea, y los Indios la llaman
Ruybotillu, de altura de una vara, hecha aueses un solo tayo, y otras
quatro, y seis, al redor de los quales estan las ojas algo gruesas, estrechas,
y largas, y tieras de color verde claro; el tallo remata por lo alto con una
flor dorada, grande, y copiosa à forma de piña, con la punta arriba, toda
la planta es amarga, y es de virtud caliente, y seca [...] (MONTENEGRO,
1725, p.287).

As plantas medicinais nativas foram, efetivamente, apropriadas pelos padres e


irmãos que atuaram nas artes de curar, como se pode observar nas obras de botânica
médica, nas quais encontramos relacionadas suas propriedades curativas, locais de maior
incidência, épocas e estações para extração de seus subprodutos. Para estas obras
contribuíram, sem dúvida, os saberes dos grupos indígenas com os quais os padres e
irmãos da Companhia de Jesus entraram em contato, que não apenas auxiliaram os
missionários na identificação das plantas medicinais, mas também demonstraram como
poderiam ser utilizadas em determinadas terapêuticas, e auxiliaram, após serem
alfabetizados, também como copistas de tratados médicos e de receitas.

Influências das teorias hipocrático-galênicas

561Psychotria ipecacuanha é uma uma planta da família Rubiaceae, muito comum nos solos das florestas
dos estados da Bahia e do Mato Grosso, no Brasil.

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A influência dos pressupostos da medicina hipocrático-galênica é bastante


perceptível no Libro de Cirugía. Cabe lembrar que esta teoria surgiu na Grécia Antiga com
Hipócrates e alcançou o seu ápice com Claudio Galeno, que elaborou um conjunto de
teorias e procedimentos cirúrgicos que deram projeção e o colocaram como uma figura
de autoridade por muitos séculos.
Para os hipocrático-galênicos, a natureza humana seria constituída por quatro
humores, a saber, o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra. A saúde estaria, por
sua vez, relacionada ao equilíbrio de elementos que correspondem a estes humores: o
sangue, seria quente e úmido como o ar; a fleuma, úmida e fria como a água; a bílis
amarela, quente e seca como o fogo; e a bílis negra, fria e seca, como a terra. Entendia-se
que uma doença era um mal sistêmico no paciente, e que deveria ser tratada por completo.
Este preceito deu origem à “medicina à beira do leito”, através da qual o médico procurava
corrigir o desequilíbrio de humores existente no corpo dos pacientes, fazendo uso de
sangrias e purgas para garantir o reestabelecimento da saúde.
As descrições das enfermidades e os procedimentos curativos recomendados na
Libro de Cirugía (1725) remetem às mesmas bases: Galeno, Mathiolo e Hipócrates. Uma
doença como o câncer de mama, já descrito à época sob o termo árabe zaratán, que foi
apropriado pelos espanhóis, seria tratado mediante a eliminação do desequilíbrio de bílis
negra no paciente, removendo-se todo o sangue melancólico:

[...] Quando el cancro fuere en los Pechos, y nò se pudicien curar con


remedio alguno, se estirparà cortandolo con navaja, sacando todo el
tumor con sus raises, ò abriendo en cruz se descamarà, y con las manos se
esprimirà para que salga toda la sangre melancolica q.e estibieri
cangregada en la circunferencia, luego se cauterisarà con sucebidad no
produsca escara gruesa, y se aplicaran los polbos siguientes. [...]
(MONTENEGRO, 1725, p. 394).

Na página 398, encontramos exemplo da intervenção pelos contrários,


característica da medicina hipocrática: [...] la curacion serà templar los umores con sangrias,
purgas y veuidas refrigerantes, contrarias al umor q.e predomina, yà la postema ò tumor en el
principio aplicarmos depercusibos para que depongan el impetu del umor.[...] (MONTENEGRO,
1725, p.398). O autor refere o uso de sangrias, isto é, de cortes feitos em extremidades do

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corpo para a retirada de sangue do paciente; bem como de purgas, que são preparações
para livrar os indivíduos de impurezas interiores. Na página 318 do Libro, há o registro
sobre um outro tipo de limpeza corporal, mas que, também, se relaciona com as purgas:
os diuréticos. No caso, aponta-se para as propriedades de uma planta conhecida pelos
indígenas, o peterebi, sem que o autor descuide de mencionar também os cuidados que
seu uso envolvia: [...] El Apiterebi su cosimiento veuido hase orinar pero si atiende a nò darno
mui fuerte C. q.e hará orinar sangre. [...] (MONTENEGRO, 1725, p. 318).

Sobre os procedimentos mágico-religiosos de cura e a medicina científica no


Setecentos

É inegável que as artes de curar praticadas pelos jesuítas na América levaram em


conta as teorias médicas do século XVIII, as quais, necessariamente, tiveram que ser
adaptadas a partir das realidades que encontraram junto às populações nativas. Mas como
se pode observar no caso de extração de câncer que referimos anteriormente, o corte en
cruz recomendado pelo autor remete à formação religiosa dos jesuítas, que empregam o
sinal da cruz como uma forma de assegurar a proteção e o auxílio divino. Por outro lado,
a experiência relatada no Libro pode ser considerada singular e, especialmente,
inovadora, posto que não há registro de um procedimento de extração de tumores exitoso
no século XVIII562.
Assim, teorias médicas estritamente científicas se aliam a procedimentos mágico-
religiosos tanto em procedimentos cirúrgicos, quanto no tratamento de enfermidades. No
Tratado sobre Pulso: orina y crisis, as crises são apresentadas como ápices de uma doença.
Há, no manuscrito, um entendimento mágico-religioso da condição de um paciente muito
debilitado, ao considerar-se que havia um embate entre a “natureza” e a “doença” e que
paciente deveria tomar alguns cuidados para que, assim, tivesse uma “boa crise” e não
uma “má crise”.
Considera-se que, na América platina do século XVIII, ainda se manifestavam, e de
forma muito presente, modelos de compreensão de saúde e de doença atrelados à

562 Os procedimentos de extração de cânceres de mama só irão se difundir no século XIX, com a mastectomia

radical de Halsted, que se tornou pouco praticada no século XX, em função da sua alta periculosidade e das
taxas de morbidade relacionadas a ela. O procedimento consistia na retirada da glândula mamária, dos
músculos peitorais e da linfadenectomia axilar completa.

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percepção de que ambas estariam relacionadas com a superstição e a magia. Segundo


Palma e Santos, no caso da América Portuguesa, a medicina praticada no XVIII não se
dividia somente entre prognósticos de físicos e intervenções de cirurgiões barbeiros.
Também circulavam os benzedeiros e curandeiros pelos carreadores, arraiais e vilas da
colônia portuguesa na América, guiados por um intrincado sistema de análise e
intervenção no processo de tratamento das doenças que afligiam o homem setecentista.
(PALMA, SANTOS, 2013, p.2). Da mesma forma, as cosmovisões indígenas consideravam
a dimensão sobrenatural na compreensão dos fenômenos do mundo natural, tais como as
doenças.
À medida em que foram difundindo-se as ideias do método cartesiano, a medicina
foi especializando-se e ocorreu uma reconfiguração do pensamento médico e filosófico na
Europa do Setecentos (EDLER, 2013, p. 5). Os investimentos dos Estados na valorização
do conhecimento científico levaram a um lento processo de institucionalização das
ciências modernas, acarretando na expansão da Ilustração para o mundo e, no que tange
ao campo médico, à definição do que seria científico ou não. Neste processo, marcado por
continuidades e descontinuidades de práticas, o elemento mágico acabaria por ser
excluído da medicina acadêmica moderna. Segundo o historiador Flavio Coelho Edler, a
partir do Setecentos, principalmente, a medicina passou a [...] emancipar-se da tutela da
religião, ao circunscrever seu escopo profissional ao tratamento apenas do corpo [...] (EDLER,
2013, p. 5). Desvinculada da preocupação com os cuidados da alma, a medicina
mecanicista foi destituindo gradativamente os elementos mágico-religiosos do campo das
curas do corpo563.
Mas, segundo o historiador argentino Miguel de Asúa, os jesuítas foram capazes de
relacionar ciência e religião (ASÚA, 2010, p. 472), conformando, assim, o que se pode
denominar de “sensibilidade barroca”, fundamental para a implantação de uma cultura
científica na América Platina. Para Ivone Del Valle (2009), a produção científica jesuítica
aponta para a criação de uma “epistemologia particular” resultante das experiências de
missão na América e no Oriente e da apropriação dos saberes nativos.
Da atuação da Companhia de Jesus na América platina durante os séculos XVII e
XVIII resultou a constituição de uma rede ativa e complexa de circulação de

563A mudança da percepção sobre os procedimentos de cura de certas enfermidades também iria afetar,
paulatinamente, a relação dos homens com seus corpos. (VIGARELLO, 2012, p. 13).

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conhecimentos e produtos, dentre os quais, se encontravam as plantas nativas que foram


domesticadas para serem enviadas à Europa. Na América, por sua vez, segundo a
historiadora alemã Sabine Anagnostou, as boticas dos colégios de Córdoba e de Buenos
Aires [...] mantenian sus proprias farmacias tanto para abastecer la Orden con medicina
como para el servicio de la poblacion local [...] (ANAGNOSTOU, 2011, p.23). Mas não só,
uma vez que entre a Europa e América também circularam tantos os livros que viriam
compor as bibliotecas dos colégios da Ordem, quanto as obras que foram produzidas pelos
irmãos e padres durante o período de atuação como missionários na América.
Na página 393 do Libro de Cirugía encontramos menção ao uso da triaca (teriaca)
“[...] en la Peste de Mantua año de 1529, q.e matava Alcarbunco mas conbenientente son
los medicamentos suabes q.e los acres [...] (MONTENEGRO, 1725, p.393). As triagas, ou
remédios de segredo, seriam não apenas largamente utilizadas no combate às
enfermidades na América (com composição diferenciada), como também seriam uma
importante fonte de renda para os colégios jesuíticos que as enviavam para a Europa,
atestando as evidentes apropriações feitas pelos jesuítas encarregados das artes de curar.

Considerações finais
Neste artigo, compartilhamos algumas reflexões, a partir do Libro de Cirugía
(1725), cuja autoria é atribuída ao irmão jesuíta Pedro Montenegro, sobre as artes de
curar na América platina setecentista. Para tanto, levamos em consideração três eixos de
análise: (1) os saberes indígenas; (2) as teorias médicas hipocrático-galênicas e (3) a
transição dos saberes mágico-religiosos para a medicina científica. Nos capítulos desta
obra ficam evidentes tanto a apropriação de procedimentos médicos, farmacológicos e
cirúrgicos europeus, quanto de saberes e procedimentos terapêuticos nativos, bem como
a busca por uma objetividade científica e metódica, sem abrir mão do elemento
sobrenatural, da fé e da religiosidade.
É possível, à luz das informações que recolhemos da leitura do Libro de Cirugía,
relativizar a concepção difusionista de ciência, que compreende que a ciência produzida
na América partiu da Europa para a América, isto é, do centro para a periferia (FLECK,
2014). Obras como o Libro de Cirugía nos mostram que houve produção de conhecimento
científico na América, a partir de apropriações, releituras e experimentações realizadas
tanto por religiosos, quanto por leigos que se dedicaram às diversas áreas das ciências.

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Especificamente no Tratado, encontramos menções a plantas que foram domesticadas e


levadas para a Europa, à incorporação do peterebi como diurético pelos jesuítas
encarregados de cuidar dos enfermos e a intervenções cirúrgicas em zaratáns que ainda
eram timidamente realizadas na Europa. Esperamos que este estudo que estamos
realizando sobre a apropriação e a circulação de saberes e de práticas de cura na América
platina, a partir deste manuscrito ainda inédito, possa contribuir para a revisão desta
concepção difusionista e restabeleça o lugar e o papel desempenhado pela Companhia de
Jesus na implantação de uma cultura científica na América.

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POSSIBILIDADES DE ANÁLISES SOBRE AS MULHERES IMIGRANTES


ALEMÃS NO CONTEXTO RIO GRANDENSE (XIX-XX)

Ananda Vitória Stumm*


Samanta Ritter*

Introdução
Ao definirmos a temática do presente trabalho, uma de nossas primeiras
indagações foi: como trabalhar mulheres imigrantes de etnia alemã? Ou ainda, a partir de
que fontes?
Raquel Soihet (1997), em História das Mulheres salienta que uma das grandes
dificuldades encontradas pelos historiadores em trabalhar a história das mulheres é
justamente por conta das fontes, sobretudo porque a maioria delas foi produzida sob a
ótica masculina e reproduzida sob discursos fortemente marcados por esses agentes:

(...) a escassez de vestígios acerca do passado das mulheres, produzidos


por elas próprias, constitui-se num dos grandes problemas enfrentados
pelos historiadores. Em contrapartida, encontram-se mais facilmente
representações sobre a mulher que tenham por base discursos
masculinos determinando quem são as mulheres e o que devem fazer. Daí
maior ênfase na realização de análise visando a captar o imaginário sobre
as mulheres, [...] a apreensão de seu cotidiano, embora à luz da visão
masculina. (SOIHET, 1997, p. 295).

Apesar disso, com o intuito de mapearmos os estudos já realizados acerca da


temática aqui proposta, verificamos através da historiografia, que os trabalhos sobre as
mulheres estão crescendo expressivamente. Entretanto, no campo da Imigração, são
poucos trabalhos que se inclinaram à uma análise profunda sobre as mulheres de etnia
alemã, principalmente que as problematizassem enquanto sujeitos históricos, ativos e
devidamente questionadas no tempo e no espaço que estavam inseridas. Dentre esses
estudos, destacamos a dissertação de Marlise Regina Meyer – Evangeliches Stift: uma
escola para “moças das melhores famílias”, com a qual demonstrou um outro viés das
imigrantes de etnia alemã, que não aquele engessado pela historiografia, que tratam das

* Graduanda em História – UNISINOS. Bolsista IC PRATIC.


* Graduanda em História – UNISINOS. Bolsista IC PRIBIC CNPq.

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mulheres da imigração alemã unicamente como colonas. A problemática da autora se


empenhou em analisar como uma instituição – neste caso, a Fundação Evangélica
(Evangeliches Stift), produziu determinados valores e comportamentos burgueses à uma
parcela da população teuto sul-rio-grandense, sobretudo voltado para um público
específico – “as moças das melhores famílias”.
Outra importante contribuição foi a tese de doutorado de Daniel Luciano Gevehr –
“Pelos caminhos de Jacobina: memórias e sentimentos (res)significados” (2007) – no qual
o autor apresentou as diferentes representações construídas sobre a figura de Jacobina
Mentz Maurer, líder do conflito dos Mucker – ocorrido no ano de 1874 no Morro
Ferrabraz564.
Ana Maria Colling (2014), a partir das ideias de Michel Foucault sobre as fraturas
do presente, discute que para se construir novas concepções sobre as mulheres é preciso,
primeiro, descontruir o que foi escrito e imposto a elas. Neste trabalho, desenvolvido
através de fontes produzidas pela ótica masculina, temos como foco principal apresentar
possíveis propostas de análise sobre mulheres de etnia alemã no espaço rio-grandense.
Sob esse viés queremos repensar as imigrantes, problematizando as diferentes
representações e preceitos impostos.
Para nortear a análise, utilizamos as propostas concernentes à Nova História
Cultural, sobretudo pelo campo de estudos da História das mulheres e de estudos de
Gênero.

História das mulheres e estudos de gênero


A História, como relembra Ana Maria Colling (2014), durante muito tempo foi uma
profissão masculina; o “nós” foi escrito por homens, que “ao descreverem as mulheres,
sendo seus porta-vozes, (...) ocultaram-nas como sujeito, tornaram-nas invisíveis”.
(COLLING, 2014, p.21). De modo a romper as visões androcêntricas, construídas não só
pela História, como também por diversas áreas do conhecimento, o campo da História das
Mulheres oferece visibilidade e reconhecimento para entendê-las enquanto sujeitos
históricos atuantes.
Segundo o dicionário de conceitos históricos

564 Atual região de Sapiranga.

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(...) conceituar gênero é caminhar por uma trilha que ainda se está
construindo e tem muito a ver com política e teoria [...] A definição mais
corrente de gênero é a que o considera uma categoria relacional, ou seja,
gênero é entendido como o estudo das relações sociais entre homens e
mulheres, e como essas relações são organizadas em diferentes
sociedades, épocas e culturas. (SILVA; SILVA, 2009, p.166).

Em “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” (1990) a historiadora Joan


Scott, tece importantes considerações sobre a definição deste conceito. Para a autora, o
termo gênero rejeita as explicações biológicas e as esferas binárias, indicando as
construções culturais para cada sexo. Acrescenta ainda que gênero possui duas partes e
diversos subconjuntos, que estão inter-relacionados, mas que devem ser analisados de
formas diferentes: “(1) O gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas
nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar
significado às relações de poder” (SCOTT, 1990. p.86). Os subconjuntos questionam e
desconstroem as representações simbólicas, os conceitos normativos, a natureza da
repressão e a identidade subjetiva que o ser cria de si mesmo.
Nesse sentido, podemos perceber que a categoria gênero complexifica a história
das mulheres: ao negar as esferas binárias e rejeitar explicações biológicas para
compreender as relações entre os sexos, elucida-se as relações de poder, a organização
concreta e simbólica da vida social dentro das variadas formas de interação humana no
espaço e no tempo.

Fontes escritas
Jacobina Mentz Maurer é a imigrante alemã que tem nome e rosto no meio de
tantas outras colonas que viveram no Rio Grande do Sul. Sua figura, marcada por
discursos negativos durante um longo período da historiografia, foi objeto de estudos da
nova historiografia, que relativizou os antigos discursos.
Como nossa proposta trata das possibilidades de fontes para estudos de mulheres
na imigração, selecionamos duas obras que formularam discursos e preceitos sobre o que
significava ser mulher no século XIX, tendo como base de recorte temporal e espacial, o
episódio dos Mucker. São elas: Os Mucker do Padre Ambrósio Schupp (1875) e Videiras de
Cristal do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil (1997). Ambos os livros – com discursos,

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representações e finalidades diferentes – abordam como tema principal o episódio


ocorrido no morro Ferrabraz, no atual município de Sapiranga.

Os Mucker

A obra intitulada Os Mucker (4ª edição) foi escrita por Ambrósio Schupp565 (1840-
1914), um Padre Jesuíta Alemão que chegou ao Brasil no ano de 1875, quando a revolta
dos Mucker já havia terminado. Esta obra foi escrita em língua alemã e traduzida por
Arthur Rabuske – também padre jesuíta. É considerado um dos primeiros registros
historiográficos que se inclinaram a narrar o conflito com protagonismo da líder Jacobina
Mentz Maurer.
Sobre a escrita desta obra vale destacarmos de que forma ou de quem, Ambrósio
Schupp absorveu as narrativas do conflito e as representações já feitas sobre Jacobina,
pois escreveu a obra quando o conflito já havia findado. Além disso, é importante
considerar em que medida a escrita jesuítica de Schupp e de seus pares, influenciou na
construção desta obra e por consequência, no discurso e imagem apresentada sobre
Jacobina.
Em termos gerais, o livro tem como foco narrar o episódio ocorrido no Ferrabraz,
com ênfase para o protagonismo da personagem principal, uma imigrante alemã –
Jacobina Mentz Maurer, esposa de João Jorge Maurer e líder do conflito.
Sua narrativa se constrói – desde o início, de forma contrária ao conflito,
apontando com desprezo o terror causado pela seita. Quando trata de Jacobina, tece sua
conduta fanática e doentia, justificando que desde criança sofria distúrbios que a
deixavam em estados anormais.

Em seu oitavo ano de vida, nela se apresentavam de tempo em tempo


estados anormais, para os quais não se tinha explicações certas. A
duração de estados psíquicos aumentava de ano em ano [...] A bíblia vinha
a ser o seu livro predileto. Com certa sofreguidão apanhava ela artes
isoladas, gravava-as em sua memória e explicava-as de modo fantástico
de acordo com a sua exigência religioso-doentia (grifos nossos).

565 No Brasil ocupou o cargo de prefeito de estudos no Colégio Nossa Senhora da Conceição, em São
Leopoldo, foi Padre em São Leopoldo, Novo Hamburgo, Lomba Grande, entre outros lugares. Foi também
diretor do Seminário Episcopal e atuou como professor no Ginásio São Luis (Pelotas/RS). Faleceu no ano de
1914.

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Afora, utiliza termos como: “Mulher besuntona do Ferrabraz” (SCHUPP, 1993, p.62)
e “Estatura meã e fisionomia singularmente exaltada” (SCHUPP, 1993, p.40). Além de
destacar o teor tirânico da personagem, que tinha o dom da chantagem e sedução:
A conduta exaltada daquela mulher, que se chamava a Cristo a si mesma,
bem como todo o proceder afetando devoção religiosa, mesclada com
elementos de sensualidade na casa de Maurer, tinha-os seduzido e
enganado e fizera entrar de maneira mágica em sua alma disposição
sombrio-polvorosa, que costuma acompanhar superstição. (SCHUPP,
1993, p.62).

Somado a isso, o autor mescla adjetivos atribuídos a personagem, apresentando-


os de forma binária: ao mesmo tempo que é bruxa, é histérica; quando feiticeira é doida.
Schupp também faz uso do caráter religioso apropriado por Jacobina – segundo ele, de
forma fanática e supersticiosa.

Videiras de Cristal
Este livro é um romance publicado em 5ª edição no ano de 1997 por Luiz Antonio
de Assis Brasil566. O livro tem como contexto histórico o episódio do Ferrabraz; muitos
personagens que circulam entre os municípios atuais de Campo Bom, Sapiranga, São
Leopoldo e Porto Alegre; e narrativa onisciente, o que contribui para as diferentes
perspectivas elaboradas sobre a protagonista Jacobina Mentz Maurer, não havendo sobre
ela apenas o tom negativo como na obra anterior.
Pela quantidade de personagens, o livro se torna ainda mais interessante, pois
além de trabalhar com detalhes a personagem Jacobina, Assis Brasil ainda trabalha com
outras mulheres, contribuindo para a percepção de diferentes protagonismos femininos
entre as imigrantes alemãs e suas descendentes. É relevante apontar que os
protagonismos femininos estão envolvidos com o ambiente privado, como o cuidado da
casa, de filhos e parentes, com amores e traição, momentos nos quais sofrem violência –
Jacobina é a única que diverge nesse ponto, “chamando mais atenção” que seu marido e
tendo um espaço de atuação maior que as demais. Já os personagens masculinos,

566 Nasceu em Porto Alegre no ano de 1945. Assis Brasil, atualmente, é professor e escritor. Possui
graduação em Letras e doutorado com ênfase em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica
- RS, Universidade na qual atua como professor titular da graduação e pós-graduação. Seu pós-doutorado
foi realizado na Universidade dos Açores, em Portugal, na área de Linguística, Letras e Artes.

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entretanto, possuem protagonismo na participação social e política, na vida pública: são


comerciantes, padres e pastores, políticos, médicos, jornalistas.
Jacobina Mentz Maurer é conhecida por todos os personagens do romance e cada
um deles tem sua opinião a respeito dela. Devido à narrativa onisciente e ao número de
personagens, o tom sobre Jacobina era de descaso e exasperação ou amor e admiração.
Por exemplo, os personagens que frequentavam a casa dos Maurer admiravam-se com o
cuidado, amor e respeito que tinha com os outros; emocionavam-se com a leitura da
Bíblia, com suas pregações e revelações e espantavam-se ao ver que Jacobina sempre
sabia dos acontecimentos e de como agia sempre de forma correta. Há os personagens
que não a viam como uma ameaça, dizendo apenas que era uma mulher doente, fraca,
louca, que precisava de cuidados. Outros personagens acreditavam que Jacobina era uma
mulher pecaminosa e perigosa, que seduzia as pessoas de sua seita, principalmente os
homens, mantendo inclusive um relacionamento extraconjugal com Rodolfo Sehn.
Para aqueles que acreditavam que Jacobina sofria de uma doença, o sonambulismo
e a histeria eram o laudo. Sonambulismo, mas principalmente histeria, eram “doenças”
tipicamente femininas, curadas muitas vezes no casamento, como o próprio trecho do
livro sugere:

Estava bem lembrado da cunhada aos onze anos de idade: irritadiça e


propensa à insônia, agia como uma perfeita idiota na escola. Depois de
uma crise de perda de consciência, (...) o experiente médico, após
examiná-la, disse que não deveriam se preocupar tanto, esses males
teriam um fim quando Jacobina casasse (ASSIS BRASIL, 1997, p. 128).

O remédio, que deveria ser o casamento não ajudou nem no tratamento e nem na
cura de Jacobina. Pelo contrário, ela ficou ainda mais “doente”. Ficou louca: virou uma
profetiza! “De qualquer forma, um assombro, mulher que sabia ler e que lia a Bíblia, antes
só escutada de vozes masculinas” (ASSIS BRASIL, 1997, p. 82).
Destacamos entre as demais personagens femininas, Elisabeth Carolina Mentz e
Ana Maria Hoffstäter, que recebem muitas particularidades na escrita de Assis Brasil. A
primeira delas é trabalhada no tocante a sexualidade, traição/amor, desespero,
arrependimento e moralidade. A segunda é o padrão, o modelo esperado em relação ao
comportamento de uma mulher. É atenciosa, dedicada, silenciosa, sonhadora; a

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personagem é violentada sexualmente em certa altura do livro, o que a torna mais realista
sobre a vida.
Elisabeth Carolina Mentz é a personagem que no início da história destoa do
comportamento esperado da mulher. Ela trai seu marido com um amigo da família, que
também é inspetor do quarteirão, por quem sente grande atração e desejo. O trecho a
seguir relata um momento de visita do inspetor ao seu marido e revela os sentimentos de
Elisabeth, antes da descoberta de seu caso: “Esse momento já havia ocorrido várias vezes,
antes provocando em Elisabeth Carolina uma sensação de cumplicidade que nem sempre
vinha acompanhada de remorso – ela até achava graça, e ria sozinha em seu quarto”
(ASSIS BRASIL, 1997, p. 33).
Quando seu cunhado (marido de Jacobina) descobre, a personagem passa por um
momento de grande crise moral, no qual sentia que “o desespero, o rancor, a paixão e o
medo eram demasiados para sua pequena existência” (ASSIS BRASIL, 1997, p. 35).
Elisabeth chega a pensar que não seria mais feliz e que seu destino não pertenceria mais
a si mesma e sim ao cunhado, que sabia de sua traição. É um momento de forte crise pelo
seu mau comportamento. Crise essa que não é sentida pelo inspetor. A fidelidade ao
casamento é algo imposto como moral apenas para as mulheres.
Ana Maria Hoffstäter é “muito serviçal e quietinha” (ASSIS BRASIL, 1997, p. 20).
Comportamento ideal para trabalhar nas casas de família. É na casa de Jacobina que ela
trabalha no romance. Destacamos que a moça de padrão almejado se mantém em silêncio
em assuntos que não lhe dizem respeito, principalmente em ambientes públicos; segundo
Michelle Perrot (2007) a fala é indecente nessas ocasiões. Como convenção social a fala é
inconveniente e desonrosa: “a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da
ordem das coisas” (PERROT, 2007, p. 17).
A personagem de Ana Maria sofre violência sexual por trabalhar na casa de
Jacobina e simpatizar com a seita; sendo uma Mucker “necessitava” de correção.

Quis lutar, mordeu a mão que a impedia de gritar (...) arrancaram-lhe toda
a roupa e ela foi possuída (...) Com a inútil virgindade, ia-se também a
infância e a juventude, entrava à força no mundo áspero e sem sonhos das
pessoas vividas. (ASSIS BRASIL, 1997, p. 136).

O trecho acima oferece diversos aspectos a discutir: valorização da virgindade –“a


virgindade das moças é cantada, cobiçada, vigiada até a obsessão” (PERROT, 2007, p.45)

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–, resistência a violência, e aos próprios atos de agressão a que estavam sujeitas as


imigrantes, assim como as outras mulheres.

Fontes imagéticas

Fazendo uso dos aparatos propostos pela Nova História Cultural, lançamos uma
segunda proposição para o estudo das mulheres de etnia alemã: as fontes visuais.
Segundo Pesavento, uma imagem é:

Testemunho de época, mas testemunho também de si própria, tal como o


texto literário, ou seja, cabe atingir o momento de sua feitura, e não a
temporalidade do seu conteúdo ou tema. Em suma, ver como uma época
se retrata ou retrata o passado, se for o caso, ou ver, na imagem, quais os
valores e os sentimentos que se busca transmitir, quais os sonhos e
fantasias de um tempo dado, ou quais os valores e as expectativas do
social com relação aos atores. (PESAVENTO, 2007, p.53).

Sabendo que possuem a intenção de comunicar e dar a ver uma determinada


realidade ou – tentativa – de construção do real, as utilizaremos enquanto importantes
instrumentos de representação social. Acerca disso e, em constante ligação à essas duas
obras, verificamos o conceito norteador e indissociável de representação.
Entre presenças e ausências pela qual uma representação é construída, Chartier
(1991) escreve sobre como a dominação simbólica pode influenciar no que é explícito ou
implícito. Anne Higonnet (1991) afirma que no século XIX a cultura visual produziu
incontáveis imagens sobre as mulheres, sobre o imaginário que se tinha sobre elas. Tais
imagens podem ser identificadas em três padrões: mãe, sedutora ou musa – valorosas,
perigosas e inalcançáveis.
Tendo isso em vista, analisaremos a tela Fios Emaranhados, datada do século XIX e
A chegada dos primeiros imigrantes alemães, do início do século XX. Nelas buscamos
compreender de que maneira é feita a representação das mulheres, sobretudo,
questionando o espaço a elas destinadas.

Fios Emaranhados, Pedro Weingärtner


Fios Emaranhados é uma tela de Pedro Weingärtner, pintada no ano de 1892. A
cena retratada na tela apresenta uma venda. Duas mulheres, uma mais velha atrás do

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balcão e uma mais jovem sentada, realizando uma atividade de artesanato, recebem um
caixeiro viajante. Uma criança está deitada no chão, observando catálogos.
A imagem sugere numerosos questionamentos e problematizações: mulher alemã
e trabalho; mulher alemã, maternidade e cuidado; mulher alemã e trabalhos manuais;
mulher alemã e classe social.
A criança presente na cena, alude o “dom natural” das mulheres ao cuidado, a
identificação – construída socialmente – da figura feminina com a maternidade. Além
disso, abre para outras questões de reflexão como o corpo feminino, a sexualidade, a
esterilidade.
Quais as imigrantes precisavam/podiam trabalhar? Que tipos de trabalho
realizavam? Essa obra em específico representa as mulheres atuando na área comercial.
Podem estar apenas “ajudando” os homens da família, ou estão responsáveis pelo
estabelecimento na ausência de uma viagem longa ou em caso de morte do marido/pai. A
representação do trabalho está relacionada com a questão da classe social de tais
imigrantes. A historiografia clássica da Imigração Alemã, as descreve como mulheres
trabalhadoras, que ajudam na roça, na alimentação de animais e tarefas domésticas. Essa,
porém, não é a realidade de todas as imigrantes; as mulheres com distinção social
executavam outros tipos de trabalho.

Fonte: CATÁLOGO. Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2009. Pedro Weingärtner (1853-1929): Um artista
entre o Velho e o Novo Mundo.

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A chegada dos primeiros imigrantes alemães, Carl Ernst Zeuner


A obra intitulada A chegada dos primeiros imigrantes alemães foi produzida pelo
artista Carl Ernst Zeuner, no ano de 1924. Elaborada no contexto comemorativo do
centenário da imigração alemã, foi criada com o intuito de simbolizar os festejos alusivos
à esta data. Tem como temática geral “narrar” o momento da chegada dos primeiros
imigrantes alemães ao Rio Grande do Sul. Há em destaque a paisagem, impregnada pela
vivacidade das cores que apresentam ao espectador a chegada dos colonos ao território
gaúcho.
Em primeiro plano percebemos alguns imigrantes desembarcando dos barcos,
com auxílio de africanos escravizados, que organizam a descida do restante do grupo. No
canto direito e esquerdo da tela, há mulheres e crianças, que parecem aguardar o
descarregamento de seus pertences. Contudo, o que chama atenção são as representações
marcadas no centro da tela: há um homem tipicamente trajado e montado num cavalo
branco, este, assume posição de destaque e denota um certo caráter de autoridade frente
aos outros. À sua frente, o homem gesticula com a mão esquerda, parecendo questionar
alguma ordem. O que marca esta cena, sem dúvida, é a discussão entre os dois
personagens e o grupo que está atrás do homem que gesticula à autoridade maior. Mas,
onde está a maioria das mulheres neste plano? Como podemos perceber, a maioria delas
trata do cuidado dos filhos ou, como no centro da tela, à margem das discussões
masculinas.
Nos diz Colling (2014) que “as representações da mulher atravessaram os tempos
e estabelecera o pensamento simbólico da diferença entre os sexos: a mãe, a esposa
dedicada, a “rainha do lar”, digna e ser louvada e santificada, uma mulher sublimada; seu
contraponto, a Eva, debochada, sensual, constituindo a vergonha da sociedade” (COLLING,
2001, p.24). Nesse sentido, uma das formas de analisar o papel feminino de acordo com
esta fonte imagética, seria questionar qual a representação feita sobre a mulher. Ou ainda,
qual era o papel social da mulher imigrante no contexto do século XIX?

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Fonte: Réplica - Museu Histórico Visconde de São Leopoldo

Considerações finais
No presente trabalho buscamos refletir as diferentes representações construídas
acerca da mulher imigrante de etnia alemã, a partir da proposta de diferentes fontes, aqui
delimitadas pelas fontes escritas, com a obra Os mucker, de Ambrósio Schupp e Videiras
de Cristal, de Luiz Antonio de Assis Brasil – e as fontes visuais, com duas obras de arte,
Fios Emaranhados, de Pedro Weingärtner e A chegada dos primeiros imigrantes alemães,
de Carl Ernst Zeuner.
No estudo conferido à obra de Ambrósio Schupp, privilegiamos trabalhar o
protagonismo da personagem principal, a imigrante alemã Jacobina Mentz Maurer. Nesta
análise verificamos como o autor construiu uma narrativa negativa e depreciativa em
relação a personagem, sobretudo com a utilização de termos e adjetivos de caráter
difamatório.
Já na obra de Luiz Antonio de Assis Brasil, verificamos que uma nova Jacobina
“aparece” na historiografia. Nem só louca, nem só má: a personagem é humanizada, recebe
olhares de admiração e respeito. As outras personagens ampliam a discussão; entre as
que agem como a norma e/ou como a exceção, evidenciam aspectos distintos e
particulares, oferecendo subsídios para pensar as mulheres alemãs de forma plural.
Sobre as fontes visuais, buscamos evidenciar as representações direcionadas a
figura feminina, a partir de duas importantes obras de temática regional.

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Em Fios emaranhados, a cena da venda é comum aos colonos. Indagamos, se vê-los


comandados por mulheres é frequente no século XIX. A pintura de Pedro Weingärtner
representa um momento de protagonismo feminino que está deslocado do ambiente do
lar; entretanto, mesmo que tais mulheres estejam fora do lar, Weingärtner representada
elementos de feminilidade junto a elas, como a confecção do artesanato e a presença da
criança.
Em contrapartida, na obra que retrata a chegada dos primeiros imigrantes alemães
nos coube questionar de que maneira as mulheres foram representadas e qual o cenário
“dedicado” a elas nesta obra. Atrelado à essas questões, nos surgem outras indagações e
que, tranquilamente poderiam ser problematizadas à fonte visual ora analisada, como por
exemplo: quem é o autor desta obra? Em que contexto viveu? De alguma forma, esta
representação seria uma denúncia sobre a sociedade ou apenas uma mera representação,
visando inserir as mulheres no contexto do século XIX?
Com este estudo, almejamos ampliar a discussão sobre as mulheres alemãs e
colocá-las à luz do protagonismo na História da Imigração. Problematizar as fontes é
indispensável para construir a história das imigrantes de uma forma mais coerente e
justa, pois:

(...) considerar como mulheres e homens são produzidos é tarefa


primeira dos historiadores. Todas as coisas foram feitas, escreve Michel
Foucault, assim, ‘elas podem ser desfeitas, sob a condição de que se saiba
como foram feitas. (COLLING, 2014, p.39-40).

Compreendendo que alemãs igualmente sofreram a influência do olhar masculino


em sua construção histórica e artística, as pesquisas nesse âmbito devem ser estimuladas
para que se dê a elas o reconhecimento devido de suas contribuições, não somente no
processo de imigração, como também nos demais processos históricos da humanidade.

Referências bibliográficas:

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1997.

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ATUAÇÃO FEMININA NO GRÊMIO ESTUDANTIL DO COLÉGIO


FARROUPILHA (PORTO ALEGRE/RS, 1946 -1964)

Juliana dos Santos Prestes*

O Colé gio Farroupilha foi fundado em 1886 pela Deutscher Hilfsverein (Sociedade
Beneficente de imigrantes alemã es), e abriga o Memorial do Colé gio Farroupilha, criado
em 2002, de onde partiu esta pesquisa.
A gestã o “fundadora” do Grê mio Estudantil do Colé gio Farroupilha (GEF), que
abarca os anos de 1946 (ano de sua fundaçã o) a 1947, era constituí́da apenas por
membros homens. Os cargos mencionados na documentaçã o encontrada sã o os seguintes:
presidente (Saul Wolf Liví́), tesoureiro (Dorval Leã o), secretá rio-geral (Carlos Luiz
Friedel), guarda-esportes (Jorge Cabral da Lima), diretor de esportes (Antô nio Minguot)
e secretá rio de esportes masculino (Antô nio Mingnot). E possí́vel que tenha existido uma
secretá ria de esportes femininos, como aparece em gestõ es futuras, poré m nã o podemos
assegurar a veracidade disto. Muitas lacunas nestas gestõ es ainda poderã o ser
preenchidas no decorrer deste trabalho, que ainda está por se concluir. Por hora, a
primeira integrante mulher aparece apenas na dé cada de 1950.
A dé cada de 1950 é um perí́odo de relativa prosperidade econô mica advinda do
final da Segunda Guerra Mundial. Acontecia um redesenho na cultura ocidental, forjada
pela penetraçã o norte-americana atravé s de seus produtos e dos filmes hollywoodianos.
A partir disto, a cena urbana torna-se mais rebuscada e movimentada (SEVCENKO, 2006).
O perí́odo també m é marcado por uma sociedade moderna, urbana e industrial,
principalmente a partir da polí́tica nacional-desenvolvimentista do governo de Juscelino
Kubitschek (JK), eleito em 1955. O modelo de desenvolvimento econô mico, conhecido
pela expressã o “50 anos em 5”, pretendia investir pesado em setores como indú stria de

*Graduanda de licenciatura em Histó ria, Pontifí́cia Universidade Cató lica do Rio Grande do Sul. O presente
trabalho fez parte do projeto DO DEUTSCHER HILFSVEREIN AO COLEGIO FARROUPILHA: Entre memó rias
e histó rias (1858- 2008), coordenado pela professora Dra. Maria Helena Camara Bastos, financiado pela
FAPERGS (2016/2017).

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base, transportes e educaçã o. A construçã o de Brasí́lia tornou-se o sí́mbolo da trajetó ria


polí́tica de JK (MOREIRA, 2003).
Os Anos Dourados, expressã o que marcou esta é poca, é o momento em que está
sendo gestada a efervescê ncia da juventude dos anos 1960. Os jovens começam a formar
o corpo social que “explodirá ” nas contestaçõ es a Ditadura Civil-Militar. As inovaçõ es
tecnoló gicas parecem nã o ter limites. O rá dio, aos poucos, dividirá os espaços privados
com a televisã o. As tendê ncias mundiais quanto a comportamento e moda poderiam, a
partir disto, ser vistas e imitadas (SEVCENKO, 2006). Era o momento propí́cio para que os
adolescentes quebrassem regras do conservadorismo e do moralismo. Era o momento da
invençã o, nos EUA, da pí́lula anticoncepcional (1956), a qual chegou ao Brasil apenas em
1962567, destarte, a imposiçã o da gravidez ao corpo das mulheres tornava-se uma escolha
que partiria delas. Acima de tudo, os anos de 1950 marcavam o fim de uma era autoritá ria
imortalizada na imagem de um presidente da Repú blica.
Em 1951 é quando aparece a primeira jovem nas gestõ es da agremiaçã o. Trata-se
de Isolde Diefenbach, responsá vel pela secretaria de esportes femininos. E importante
informar que nã o encontramos informaçõ es precisas sobre a vida de muitas das mulheres,
cujos nomes aparecem nos documentos. Este é o caso de Isolde568.
Na gestã o de 1952-1953, aparece a segunda jovem: Ruth Borchardt. Ela ocupa o
mesmo cargo da primeira, de secretá ria de esportes femininos, mas o acumula ao de
diretora de esportes femininos. A aluna foi muito atuante na agremiaçã o e seu nome foi
localizado em diversos documentos no Memorial da escola.
A pró xima estudante encontrada na relaçã o das gestõ es que elaboramos concedeu-
nos uma entrevista569. A senhora, hoje com 79 anos, preferiu nã o ser identificada; por isso,
a chamaremos de Laura.
Laura, que iniciou seus estudos ainda no Velho Casarão570 (antigo pré dio do Colé gio
Farroupilha, cujo endereço era na antiga Rua Sã o Rafael, hoje, Av. Alberto Bins, no Centro
de Porto Alegre), fez parte das gestõ es 1953-1954/1954-1955, como secretá ria de
esportes femininos e, nesta ú ltima, acumulou o cargo ao de representante de classe,

567 Sobre a trajetória dos contraceptivos no Brasil, ver PEDRO, 2003.


568 Isolde Diefenbach, atravé s de uma pesquisa na internet, descobrimos já ser falecida.
569 A entrevista com Laura realizou-se em 10/03/2017.
570 Sobre o Velho Casarão, ver GRIMALDI, 2015.

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integrando, assim, o Conselho de Representantes de Classe. Foi muito atuante, sendo um


dos nomes que mais aparecem nos documentos. Diz ter exercido muitos papé is
importantes na escola: representante de classe, secretá ria de esportes do grê mio, cantora
do coral da escola e redatora do jornal O Clarim, na sessã o de esportes e na sessã o de
assuntos femininos. Em suas palavras:

Eu entrei no primeiro ano, primá rio, nã o tinha jardim na é poca, e fui até
a quarta sé rie no Farroupilha. Depois, eu queria fazer Clá ssico, mas nã o
tinha no Farroupilha, entã o eu saí́ e fui pro Sevigné. Aí́, foi da á gua pro
vinho; porque o Farroupilha já era um colé gio, apesar de ser alemã o
tradicional, era bem mais liberal do que o Colégio Sevigné. Entã o eu
estranhei muito.

Em 1929 o Farroupilha mostra-se pioneiro ao criar as primeiras turmas mistas em


uma é poca em que esta nã o era a realidade das outras escolas (MONTEIRO; FIGUEIREDO,
2015). Logo, percebe-se que o sistema do colé gio que, apesar de ser alemão tradicional,
era bem mais liberal, como disse Laura, permitia-lhes uma maior liberdade. Podemos
inferir que, a partir disto, houve maior integraçã o entre meninas e meninos. Poré m, como
bem salienta Michelle Perrot (2007) ao analisar a adoçã o de escolas mistas na França da
Belle Époque, tal iniciativa era necessá ria, mas nã o suficiente para a conquista dos lugares
antes ocupados pelos homens.

(...) e eu acho que de uma maneira diferenciada o colé gio ajudava isso,
porque já era misto. Nenhum colé gio em Porto Alegre era misto. Entã o, eu
acho que isso també m contribuiu um pouco para fazer com que a gente
tivesse uma igualdade dentro do colé gio. Claro que, com as restriçõ es da
é poca.

A mencionada liberdade do Colé gio Farroupilha proporcionava aos alunos que


pudessem expressar sua juventude atravé s de criaçõ es como o grê mio, o perió dico O
Clarim, e eventos pró prios da adolescê ncia.
Laura, ao ser questionada sobre as motivaçõ es que a levaram a ingressar na
representatividade estudantil, fala de sua adoraçã o pelos esportes. Menciona també m sua
facilidade em fazer amizade com os rapazes da escola, destacando a relaçã o com um
primo:

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Eu sempre gostei muito de esportes, entã o, eu acho que isso sempre me


motivou. Eu tinha um primo, que estudava no Farroupilha també m; ele
estava no Cientí́fico, e eu estava na terceira e quarta sé ries. Aí́, ele tinha
uma turma de Cientí́fico que jogava futebol, ganhavam tudo. E eu ia junto,
sempre. A gente era muito ligado, porque a minha mã e só tinha uma irmã
e ele era filho da minha tia, irmã da minha mã e. A gente andava sempre
juntos; eu era muito amiga dos guris da turma dele. Claro, que eu també m
gostava muito disso, né . Eu estava sempre rodeada de muitos guris.

A ex-aluna fez parte de uma gestã o que, como as anteriores, era


preponderantemente de homens. Dividiu o espaço com outra colega, Ruth Borchardt, que
ocupava o cargo de vice-presidente (uma apariçã o ú nica nas gestõ es analisadas), e a qual,
como já foi dito, foi muito atuante na escola. Mas, como ela deixa claro, tinha um algo que
a diferenciava, de certa forma, das outras jovens. Ela queria atuar. Queria fazer parte da
agremiaçã o e ser ouvida naquele espaço de decisõ es que, como nos dias atuais, ainda
pertencia aos homens, majoritariamente. Sobre a relaçã o de amizade que possuí́a com o
primo, ela nos deixa transparecer os julgamentos da é poca acerca disto,

Ele era o ú nico que tinha automó vel; e ele me dava carona e para os times
todos; e a gente saí́a sempre juntos. O diretor, na é poca, me chamou na
sala dele pra dizer que eu nã o deveria andar tanto com meninos, porque
as pessoas poderiam ter uma impressã o errada. “Mas ele é meu primo,
como que eu nã o irei andar com ele? ” “Ah, eu nã o sabia, desculpa...” Tu
vê s, como mudou este tipo de relacionamento e cuidado.
Em seguida, para salientar que realmente se diferenciava das mulheres da é poca, e
se colocando em um lugar de vanguarda para as jovens de sua idade, diz: “Mulher era para
ficar em casa, ser do lar, e nã o ter uma profissã o independente. Eu, toda vida trabalhei. Eu
nunca fui de ir para a cozinha. Sempre fui lí́der, entã o, nã o ia ser diferente no colé gio”.
Podemos observa que o Colé gio Farroupilha possuí́a um diferencial quando
comparado a outras escolas de mesmo perfil: era visto como “liberal”, e esta observaçã o
aparece na fala de quase todas as entrevistadas. A escola nã o separava meninos e meninas,
por mais que, como diz Laura, ser uma menina que tem maior facilidade de se relacionar
com meninos pudesse causar má impressã o na ló gica e nos costumes da dé cada de 1950.
O grê mio era um ambiente de sociabilidade dos estudantes. Lá eles organizavam
eventos para diversã o, como reuniõ es dançantes, excursõ es, gincanas e campeonatos. Ao
que tudo indica, estas eram as atividades a que se dedicavam os alunos das primeiras
gestõ es. Nã o possuí́a um vié s de atuaçã o polí́tica que fosse ligado a acontecimentos

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externos, como o Colé gio Jú lio de Castilhos571, por exemplo. O “Julinho” tem uma trajetó ria
explicitamente polí́tica. E, quando indagada a respeito desta diferença, a entrevistada
ressalta: “totalmente polí́tica, o Jú lio de Castilhos. O Julinho: polí́tica. O Farroupilha era um
ambiente estudantil. A gente fazia tudo para viver a juventude. Isso sempre foi uma coisa
que eu participei muito, de tudo”.
Recorremos aqui a obra de Maria Paula Araú jo, Memórias Estudantis: da fundação
da UNE aos nossos dias (2007), que diz ter havido, nas organizaçõ es estudantis da dé cada
de 1950, trê s tendê ncias especí́ficas: parte dos estudantes alinhava-se com a esquerda
polí́tica, ou seja, os comunistas; parte, aos governistas, a base de apoio do governo; a
ú ltima parte, e que provavelmente tenha sido o caso do GEF, eram aqueles que se
identificavam com uma postura mais independente da polí́tica nacional.
Laura exerceu diversos cargos de representatividade estudantil durante sua
permanê ncia na escola. Ao ser indagada se em algum momento almejou a presidê ncia da
agremiaçã o, ela diz que nã o. Seu objetivo era o de participar, apenas, mesmo que muitas
vezes tenha “mandado como presidente”.
A pró xima entrevistada, a quem daremos o nome de Mariana572, esteve presente
na escola na mesma é poca de Laura. Atuou nas gestõ es de 1954-1955 e 1955-1956 como
secretá ria de adaptaçã o feminina em ambas. Mariana, hoje com 80 anos, diz que ficou
apenas 3 anos na escola, durante o Cientí́fico, tendo ingressado em 1953, aos 15 anos.

Na verdade, eu entrei no Colé gio Farroupilha teimando, desobedecendo o


meu pai. Ele queria que eu fizesse Escola Normal, e eu nã o aceitava de
jeito nenhum. Depois de vá rias brigas e confusõ es e discussõ es, eu acabei
cedendo, entã o, e fui fazer no Farroupilha. Tinha que ser no Farroupilha,
fazer o curso Cientí́fico, porque eu queria ser psiquiatra, coisa que o meu
pai era contra, totalmente. E como eu nã o consegui fazer. Eu terminei o
curso do Segundo Grau, o Cientí́fico, e fui fazer Histó ria Natural, que é um
pouco da Biologia hoje. Mas o meu desejo era ser psiquiatra e para isso eu
precisava fazer o Cientí́fico, nã o o curso Clá ssico. Na UFRGS, eu fiz
bacharelado e licenciatura em Histó ria Natural e, em seguida, mestrado e
doutorado em Geociê ncias.

571 Para saber mais sobre a atuação do grêmio estudantil do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, ver
SILVEIRA, 1979.
572 A entrevista com Mariana realizou-se em 26/05/2017.

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Mariana nã o tem a mesma impressã o que as outras entrevistadas sobre a escola.
Ela salienta que nã o ficou satisfeita quando o pai optou que ela estudasse no Colé gio
Farroupilha. Como ela diz, sua expectativa era ser psiquiatra, poré m o pai desejava que ela
entrasse para o magisté rio, cursando a Escola Normal. A ú nica maneira que ela viu para
que tivesse seu sonho concretizado foi a de entrar em um acordo com o pai e ir cursar o
Cientí́fico na escola que ele escolheu.
Sobre o magisté rio ser uma opçã o para as jovens da é poca, devemos lembrar que
este posicionamento conservador vem de tempos remotos. O progresso advindo apó s a
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), assim como as lutas feministas, foi fator decisivo
para a entrada da mulher no mercado de trabalho. Todavia, existiam restriçõ es quanto as
funçõ es a que se dedicariam. Elas se ocuparam, principalmente, das funçõ es de professora,
secretá ria, telefonista, e de outras que remetiam a um universo feminino (MALUF; MOTT,
1998). Muitas viram aí́ uma perspectiva de exercerem uma profissã o que fosse bem quista
pela sociedade, e aceita pelos pais e marido; conquistando, desta forma, alguma liberdade
e independê ncia financeira.
A ex-aluna era estudante do Instituto de Educaçã o General Flores da Cunha, de
Porto Alegre, na é poca com turmas exclusivas femininas, antes de cursar o Cientí́fico no
Farroupilha. Suas impressõ es sobre esta mudança foram as seguintes:

Opressã o! Eu sou bem franca! Foi a de me sentir oprimida no meu jeito,


porque eu estava acostumada a uma escola pú blica. Era tudo com regras;
tinha que obedecer um pouco; nã o podia ser rebelde. E eu estava
acostumada a ser rebelde. Eu tenho o perfil de uma pessoa rebelde. Eu
adoro dizer nã o para quem diz o que tenho que fazer. Mas depois eu me
adaptei.

A entrevistada cita algumas regras que a nova escola possuí́a, e com as quais ela
nã o estava acostumada. Era solicitado, por exemplo, que os pais assinassem o boletim,
algo que a incomodava muito. Ela mesma assinava e arcava com as consequê ncias do
castigo. “Eu era daquelas que incomoda”, diz.
O Instituto de Educaçã o Flores da Cunha possuí́a a Escola Normal que o pai de
Mariana queria que ela cursasse. Logo, de certa forma, foi uma conquista ela conseguir ir
para outra escola continuar os estudos do Cientí́fico.

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Apesar dos dessabores enfrentados com a mudança de escola, ela fez questã o de
ser uma aluna participativa e de representar suas colegas no grê mio estudantil.

(…) é o meu perfil o de sempre participar das atividades extra aula. De


congregar, de lutar por coisas que nã o estavam certas, de buscar outras
coisas. Buscar outros objetivos dentro da minha estada naquele curso. Eu
nã o me conformo com ficar parada, eu sempre fui assim. Eu tenho que
buscar outras coisas.

Na escola anterior, ela via maiores perspectivas de participar e diz nã o ter tido esta
impressã o do Colé gio Farroupilha. A maneira encontrada para que, de alguma forma,
atuasse no meio estudantil, foi integrando a agremiaçã o. Quanto a esta atuaçã o:

Eu acho que eu vi no grê mio a possibilidade de viver o que eu achava que


era uma vida estudantil. Porque, ali, a gente podia discutir, tentar
reformular alguma coisa, só que eu nã o tinha muita acolhida para isso,
sinceramente. Eu tentava, mas nã o conseguia. Foi uma frustraçã o.
Mariana mostra-se uma jovem a frente de seu tempo. Contestadora, crí́tica, e que
nã o aceita as regras da nova escola sem mostrar seu ponto de vista. Mesmo assim, escrevia
para o jornal da agremiaçã o, O Clarim, no qual, a contragosto, se encaixava na ló gica dos
outros estudantes. Mas nã o por muito tempo:

E foi aí́ que a gente tentou, com o Francisco Henrique de Araú jo, que era
muito meu amigo, rapaz inteligentí́ssimo, ele disse: Mariana, tu nã o achas
que aqui todo mundo aceita sempre as decisõ es, e entra nesse espí́rito de,
é mais fá cil aceitar do que expor a sua opiniã o? Eu disse: eu concordo. E
aí́, tí́nhamos o jornal, o Clarim, onde tudo era maravilhoso o que eles
colocavam. Inclusive, eu tenho artigos e comentá rios em alguns nú meros
do Clarim, mas eu fazia aquilo meio que a contragosto. Eles me
convidavam, e eu fazia. Mas a minha vontade era a de criticar. E aí́, ele me
disse: vamos fazer um jornal se contrapondo totalmente a essa submissã o
que existe por parte dos estudantes? E eu disse: vamos! E ele disse: entã o,
como seria um jornal que falasse a verdade e a opiniã o dos alunos? Eu
disse que nã o sabia. E, entã o, ele disse: Veritas! A verdade! E aí́, nó s
fizemos, acho que foram 2 ou 3 nú meros. Mas foi uma briga! O jornal era
tudo o que o espí́rito do colé gio nã o se abria. Um jornal que dissesse: esse
professor? Horrí́vel! Essa aula? Horrí́vel!

Para ilustrar a trajetó ria de Mariana, consideramos importante a fala de Michelle


Perrot quando, citando as crué is rainhas meroví́ngias, as mulheres renascentistas e as
cortesã s, diz que “é preciso ser piedosa ou escandalosa para existir” (PERROT, 2007, p.18).

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A postura da jovem estudante é a de defender seu ponto de vista mesmo que em


um ambiente hostil a ele. Percebemos, atravé s da atuaçã o estudantil de Mariana, a
manifestaçã o de vontade da mulher em direçã o a emancipaçã o.
Contudo, a entrevistada diz que tinha pais muito rí́gidos. Apesar de suas tentativas
de rebelar-se contra os ditames impostos ao seu gê nero, precisava fazer muita coisa
escondida: “Naquela é poca se fazia muita coisa escondida. Sonha, assim, com um mundo
em que nã o podí́amos expor as nossas coisas”.
As gestõ es da dé cada de 1950 inserem a agremiaçã o em um momento polí́tico do
paí́s conhecido como experiê ncia liberal-democrá tica, que vai de 1945 até 1964. Momento
marcado pela ascensã o de Getú lio Vargas ao poder atravé s de eleiçã o direta, seguido de
seu suicí́dio, em 1954. Perpassa os governos dos presidentes Juscelino Kubitschek (JK) e
Joã o Goulart, encerrando-se no Golpe Civil-Militar de 1964. Nesta conjuntura, há o
surgimento de novos atores que se definiram politicamente como sendo ou de direita, ou
de esquerda (GOMES, 2007).
O Governo de JK é sucedido pelo governo de Jâ nio Quadros, que logo renuncia,
deixando o cargo ao vice, Joã o Goulart, ex-Ministro do Trabalho de Getú lio Vargas
(FERREIRA, 2003).
Joã o Goulart enfrentou grande oposiçã o, sobretudo dos militares. Tachado de
comunista, quase nã o assume o poder quando da renú ncia de Jâ nio. No Rio Grande do Sul,
o entã o governador Leonel Brizola lidera a Campanha da Legalidade em apoio a posse de
Jango (FERREIRA, 2003).
Com vitó ria dos legalistas, Jango chega ao poder em 1961. Poré m, foi necessá rio
ceder a oposiçã o trocando-se o regime de presidencialista para parlamentarista. Muda-se
novamente em 1963, e assume a forma presidencialista atravé s de um plebiscito
(FERREIRA, 2003).
A conjuntura marca uma mudança considerá vel na sociedade. Esta mostra-se mais
participativa, mais politizada. Os jovens estã o mais conscientes do espaço que ocupam e
tendem a se posicionar frente aos acontecimentos (ARAUJO, 2007).
Ilustrando este momento polí́tico do paí́s, temos as gestõ es 1961-1962 e 1963-
1964, e das quais pudemos contar com os relatos das senhoras Stella Hiane e Irene
Bertschinger.

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Stella573, hoje com 70 anos, ingressou na escola em 1954 e integrou o Conselho de


Classes, setor do GEF. O cargo ocupado por ela era o de representante de classe, no qual
representou a 3º Sé rie C, do Ginasial, em 1962, ao lado do colega Paulo Sé rgio Thys; o 1º
cientí́fico A, ao lado do colega Leo Freddi Riffel, em 1963; e o 2º cientí́fico C, em 1964, com
o colega Roberto Santa Catarina Haesbert. Ela diz que a representatividade de classe era
sempre assim, dividida por sexo.
Ao ser questionada acerca de suas lembranças do GEF, diz: “A gente era bem ativo.
Fazí́amos gincana dentro do colé gio para arrecadar fundos; para alguma festa, alguma
coisa de fim de ano. E o grê mio, eu fiz parte do grê mio, eu era presidente social do grê mio”.
Infelizmente, existem muitas lacunas quanto aos cargos e integrantes da
agremiaçã o. O cargo de presidente social exercido pela entrevistada nã o aparece na
documentaçã o analisada.
De acordo com ela, foi convidada pelos colegas porque era muito extrovertida e
gostava de festas. Como secretá ria social, era responsá vel por organizar estes eventos de
sociabilidade. Ela nunca almejou o cargo de presidente, diz que era uma coisa “mais dos
guris”. Comentei que a primeira presidente mulher aparece apenas em 1992, ela disse que
isto foi devido ao empoderamento feminino da dé cada.
Sobre o contexto polí́tico da é poca, indagamos se a agremiaçã o possuí́a algum
posicionamento polí́tico e, novamente, surge o nome do Colé gio Jú lio de Castilhos como
exemplo de grê mio estudantil com atuaçã o polí́tica.

Porque eles eram mais politizados do que nó s. Nã o que a gente fosse
alienado; nã o é isso. Mas a gente nã o era politizado. Nã o viví́amos fora do
mundo, mas també m nã o está vamos tã o dentro. Nã o sei se os pais
preservavam. (…) talvez eles tivessem mais coisas para reivindicar do que
nó s. Pode ser. Eles tinham menos regalia, nã o sei. Eu sinto que o
Farroupilha nã o era um colé gio...nã o sei agora. Mas ele nã o era politizado.
Nunca teve essas brigas, sabe? Nã o lembro disso. Passeatas, nada! Tudo a
gente resolvia aqui dentro do colé gio.

573 A entrevista com Stella Hiane ocorreu em 19/04/2017.

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Stella comenta sobre os anos 1960, a rebeldia que, assim como floresceu em muitos
jovens, ela, como mulher, teve seus momentos de rompimento e contestaçã o das regras
impostas,

Aí́, eu comecei a matar aula. Minha ú nica rebeldia. Porque sá bado tinha,
eu nunca me esqueço, duas aulas de fí́sica e duas aulas de quí́mica. Quem
é que aguenta?! Num sá bado de manhã nã o dá pra aguentar, aí́ eu matava
um pouquinho a aula. E eu lembro que no final do ano fiquei em
recuperaçã o na aula de quí́mica. (…) ficava conversando com mais gente
que matava aula també m. E que o meu comportamento sempre foi muito
certinho, entã o era um desrespeito com o professor matar aula.

Nas palavras de Stella, ela sentia-se privilegiada por ocupar aquele espaço de
tomada de decisõ es. Diz que as colegas a apoiavam, levavam ideias, e ela sempre podia
contar com este respaldo das outras jovens. Encerrou seus estudos na escola em 1965,
casando-se em 1966 e indo morar em Sã o Paulo, onde dedicou-se a carreira de guia
turí́stica.
A ex-aluna Irene Bertschinger574, hoje com 68 anos, integrou a agremiaçã o na
gestã o 1963-1964, quando tinha 14 ou 15 anos de idade, ocupando o cargo de secretá ria
social. Ingressou na escola em 1954, permanecendo até o cientí́fico, e formou-se em
Educaçã o Fí́sica pela Escola de Educaçã o Fí́sica da UFRGS (ESEF).
Irene, assim como Stella, era responsá vel pela parte dos eventos do GEF. Era ela
quem organizava as reuniõ es dançantes e as gincanas.
Na gestã o em que Irene participou, seu nome é o ú nico de mulher que aparece
como integrante do GEF nos cargos de diretoria e secretarias. Sobre isso, ela comenta:

E que as mulheres, ainda naquela é poca (…) elas eram diferentes. Existia
uma coisa, que eram pessoas que vinham de um alto ní́vel, e a gente, nã o
que isso interferisse em amizade, nem nada, mas a maneira de se postar
em certas coisas era diferente. Eu sempre fui mais aberta pra tudo. Eu sei,
porque eu te digo, foram convites de colegas e eu gostei, achei que ia ser
legal, até para uma abertura, as mulheres começarem a entrar nessa
parte. Foi bom (…) porque logo em seguida elas começaram a participar.

574 Irene Bertschinger foi entrevistada em 24/05/2017.

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A ex-aluna teve consciê ncia de que nã o era comum uma mulher ocupar um
ambiente que pertencia ao pú blico masculino. Sabia que este nã o era o comportamento
tí́pico das jovens da é poca. E continua,

Inclusive, a consciê ncia era a seguinte: tu vais enfrentar, digamos, assim,


nã o é um ciú me, mas elas me colocavam, praticamente, de lado. O que
acontecia era que eu acabava tendo mais amizade com os meninos do que
com elas. Porque, tanto o grê mio, ou qualquer evento que a gente fazia,
tinha mais menino do que menina, entã o elas achavam que era, assim,
diferente.

Ela destacou o trabalho bem feito procedido pelo GEF durante sua gestã o. O setor
era respeitado por colegas e professores. Eles tinham voz na instituiçã o escolar.
Sobre a intençã o de ser presidente ou nã o, como as outras entrevistadas, Irene
tinha a consciê ncia de que aquele era um lugar para ser ocupado por um homem. E mesmo
que ela tivesse maiores ambiçõ es, estava dedicando-se a seu objetivo que era ingressar na
faculdade de medicina, da qual desistiu nas vé speras de fazer a prova, “por insegurança”,
diz.
Fica a dú vida se ela considerava que a medicina també m era uma á rea de domí́nio
masculino. O fato é que ela se dedicou a profissã o de professora, deixando de lado o sonho
de tornar-se mé dica.
O ano de 1964 é de forte atuaçã o polí́tica dos jovens em todo paí́s. Talvez um dos
perí́odos mais explorados pela historiografia brasileira até os dias atuais. O Golpe Civil
Militar é um marco separador de á guas, em que se encerra a experiê ncia democrá tica e
inicia-se um tempo de autoritarismo, censura e repressã o, mas també m de crescimento
da atuaçã o estudantil com repercussõ es mundiais.
Trazendo a entrevista este momento da histó ria do paí́s, Irene faz um importante
relato sobre a atuaçã o da agremiaçã o,

Sim, em 64 já estava a revoluçã o. E tudo isso a gente participou muito


ativo. Tanto é que eu tenho em casa todas as carteirinhas da UMESPA,
porque nó s é ramos filiados a UMESPA e lutá vamos contra a UGES, que era
a Uniã o Gaú cha dos Estudantes, que era do lado mais...esquerdista. A
UMESPA era mais conservadora.

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A ex-aluna faz referê ncia a duas importantes instituiçõ es de representaçã o


estudantil no Estado do Rio Grande do Sul: a Uniã o Gaú cha dos Estudantes (UGES) e a
Uniã o Metropolitana dos estudantes de Porto Alegre (UMESPA).
A UGES foi fundada em 23 de outubro de 1943. Alinhava-se, politicamente, a UNE,
apoiando campanhas como “O Petró leo é Nosso” e a conquista da meia-entrada para os
estudantes. Deste alinhamento, posicionava-se a esquerda e lutava contra o Golpe de
1964. De acordo com o sí́tio da UGES na internet, “a entidade representa (...) estudantes
do ensino fundamental, mé dio, té cnico e profissionalizante, educaçã o de jovens e adultos
e cursos preparató rios para vestibulares do Estado do Rio Grande do Sul”.575
A UMESPA, de acordo com o facebook da instituiçã o, foi fundada em 10 de
novembro de 1956 como representante de todos os estudantes secundaristas de Porto
Alegre.576
Existia, desta forma, uma hierarquia no Movimento Estudantil gaú cho que iniciava
com a UGES (entidade má xima) e terminava no estudante.
Analisando as palavras de Irene Bertschinger podemos extrair o posicionamento
polí́tico da agremiaçã o as vé speras do Golpe. Alinhando-se a UMESPA, os estudantes
deixavam transparecer um processo de sociabilizaçã o polí́tica.

A sociabilizaçã o polí́tica designa o processo de formaçã o de atitudes


polí́ticas nos indiví́duos, ou seja, é a interiorizaçã o da cultura polí́tica
existente em um meio social por parte das novas geraçõ es. Sã o, dessa
forma, aqueles processos de desenvolvimento atravé s dos quais as
pessoas adquirem orientaçõ es polí́ticas e padrõ es de comportamento,
exercidos e moldados por instituiçõ es sociais como a famí́lia, a escola, a
igreja e os aspectos socioeconô micos dos indiví́duos (SPERANDIO, p.2).

E importante destacarmos que esta juventude dos anos 1960 nã o está engessada a
um padrã o. Comumente pensamos nos jovens desta é poca como ligados a esquerda,
lutando contra as ameaças de um Golpe Civil-Militar. No entanto, o que experiê ncias como
essa nos mostram, é que os estudantes que atuavam diretamente em grê mios estudantis,

575 Disponí́vel em: <http://www.uges.org.br/UGES/institucional.php?id=6>


576 Disponí́vel em:
<https://www.facebook.com/UMESPA60ANOS/photos/a.617221041799403.1073741831.61573093
5281747/626050090916498/?type=3&hc_ref=PAGES_TIMELINE>

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representando seus colegas, nem sempre possuí́am este alinhamento polí́tico. De


qualquer forma, nã o podem ser vistos como despolitizados, pois definir-se perante um
acontecimento desta monta é ter consciê ncia de seu espaço na sociedade.
Dentro desta conjuntura de atuaçã o polí́tica, as mulheres atuam lado a lado com as
lideranças masculinas, em menor ou maior grau, dependendo do espaço de engajamento.
A atuaçã o feminina em apoio ao Golpe Civil-Militar é mais visí́vel entre as classes
mé dias e altas. Para ilustrarmos esta atuaçã o, trazemos para este estudo a contribuiçã o
da historiadora Janaí́na Martins Cordeiro, que fez importante aná lise sobre a atuaçã o da
mulher neste perí́odo, na obra chamada Direitas em Movimento: a Campanha da Mulher
pela Democracia e a Ditadura no Brasil (2009). Deste estudo, destacamos a atuaçã o de um
grupo intitulado Campanha da Mulher pela Democracia (Camde). De acordo com a autora,
o grupo, liderado por representantes femininas da elite carioca, se definia por
anticomunista e apartidá rio.
A Camde exemplifica diversos movimentos femininos pró -golpe que surgiram em
diversas partes do paí́s, até mesmo em Porto Alegre (Açã o Democrá tica Feminina Gaú cha
- ADFG). Eram mã es, esposas, donas de casa, investidas de forte conservadorismo, que
atuaram como elemento de pressã o sob o governo de Joã o Goulart, visto, por muitos, como
comunista (CORDEIRO, 2009).
Grupos como esse fazem como que possamos refletir sobre a politizaçã o feminina
que, acompanhando a politizaçã o dos jovens, é possí́vel de ser identificada na Histó ria do
Brasil. As mulheres nã o foram meras espectadoras. Posicionaram-se, fizeram-se ser
ouvidas e lutaram pelo que acreditavam.
De acordo com Michelle Perrot (2007), “a histó ria das mulheres mudou”. Elas
saí́ram do lugar de ví́timas para o lugar de sujeitos histó ricos com participaçã o ativa nas
sociedades.
Da mesma forma, a trajetó ria da historiografia que se dedica ao estudo das
mulheres acompanhou as lutas reivindicató rias do movimento feminista. Hoje sabemos
que para iniciar um estudo sobre a atuaçã o feminina devemos estar atentos aos
mecanismos de desenvolvimento das relaçõ es de gê nero.
Falar em mulheres é també m falar em homens e da construçã o da masculinidade.
As relaçõ es de gê nero sã o construí́das, negadas, reinventadas, presumí́veis e eternizadas
de geraçã o a geraçã o. Nossa missã o como historiadores torna-se analisar como estes

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mecanismos funcionaram no passado, por que razã o eles aconteceram de determinadas


formas e, acima de tudo, o que manté m estes mecanismos eternizados na mentalidade
social do nosso tempo.

Considerações Finais

A trajetó ria das jovens no Grê mio Estudantil do Colé gio Farroupilha remete-nos a
uma é poca em que as posiçõ es de poder eram mais ocupadas pelos homens do que nos
dias atuais. Entretanto, estas jovens romperam com os ditames impostos a elas pela escola
e pela famí́lia. Achar uma brecha de liberdade em um tempo em que a vocaçã o feminina
ainda era consagrada no lar fez com que elas abrissem caminho para as geraçõ es futuras
de estudantes mulheres do Colé gio Farroupilha. Aos poucos, outras jovens foram
interessando-se pela agremiaçã o e aumentou consideravelmente sua participaçã o nas
gestõ es seguintes.
Ao cristalizar estes espaços de poder como de exclusividade masculina, a sociedade
brasileira conteve o desenvolvimento da autonomia das mulheres. Elas entendiam que o
cargo mais alto, o de presidente, era naturalmente ocupado pelos meninos. Esta
determinaçã o de papé is e assimilaçã o nã o se dá de forma inconsciente. Assim como o
rompimento de determinadas ló gicas. Optar por uma profissã o de atuaçã o
majoritariamente masculina, mas desistir nas vé speras de prestar o vestibular, diz muito
sobre os anseios das mulheres daquele tempo. Elas queriam avançar nos seus ideais, mas
algo ainda as amarrava a determinaçõ es machistas e patriarcais.
Desta forma, o grande desafio deste trabalho está sendo pensar a atuaçã o feminina,
inserida em um movimento maior que é o Movimento Estudantil, a partir de uma é poca
em que se inicia uma maior politizaçã o dos jovens, e ao mesmo tempo uma busca de
quebra de paradigmas por parte destas mulheres rumo a emancipaçã o.
O tema, por si só , torna-se mais importante a partir de seus desdobramentos. A luta
por direitos, o resgate do feminismo visí́vel na atualidade atravé s dos diversos grupos de
discussã o e atuaçã o que existem hoje, torna-o extremamente atual. O incremento da
histó ria das mulheres atravé s das concepçõ es de gê nero caminhou lado a lado ao
movimento de libertaçã o feminina encabeçado pelas feministas desde os primó rdios do
sé culo XX.

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A atuaçã o dos estudantes, que pô de ser observada nos ú ltimos dois anos, com a
ocupaçã o das escolas em nome de uma educaçã o de qualidade e por condiçõ es dignas de
trabalho para os professores é outro fator que influencia para que este tipo de resgate
histó rico precise ser feito.
Estas jovens devem sim ser pensadas como vanguarda. A partir delas um mundo
de possibilidades se descortina para que outras mulheres assumam a frente de seus
interesses e decidam sobre as suas vidas. Nã o podemos esquecer que nosso paí́s, só
recentemente teve uma presidente mulher no poder. O que leva a crer que estamos longe
de ver uma mudança radical e real em nossa sociedade.

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ENFERMIDADES DE LAS MUGERES: DIETÉTICAS MEDICINAIS PARA OS


MALES DE MADRE EM UM MANUSCRITO INÉDITO DO SÉCULO XVIII

Leticia Mallmann de Souza*

Introdução

O Tratado de Medicina, Cirurgia e Botica (que chamaremos neste artigo, por


motivos de abreviação, somente de Libro de Cirugía) é um manuscrito anônimo do século
XVIII que se mantém inédito até os dias de hoje. Sua transcrição e análise nos permitem
reconstituir a cultura científica vigente na América platina do Setecentos, principalmente,
no que concerne às práticas medicinais empregadas nas reduções jesuíticas. Sua autoria,
ainda em discussão no meio acadêmico, foi atribuída ao irmão jesuíta Pedro de
Montenegro (1663-1728) pelo historiador argentino Guillermo Furlong.

Figura 6 - Capa do Libro de Cirugía (1725)

* Graduanda em História (UNISINOS). Bolsista PROBIC-FAPERGS.

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Embora a trajetória de Montenegro seja de suma importância para entendermos o


processo de escrita da fonte que transcrevemos e analisamos, os assuntos tratados neste
artigo não estão relacionados com as conjecturas quanto à autoria do Libro ou mesmo
com aspectos de sua atuação como missionário. Nele, privilegiamos a análise do sétimo
capítulo da obra, intitulado De Las Enfermedad de Las Mugeres, que se detém nas receitas
e nos procedimentos terapêuticos recomendados no tratamento dos chamados males de
madre. A análise que realizamos se fundamenta nos estudos de História Cultural e, ainda,
em trabalhos recentes de História da Alimentação, pois várias das receitas que constam
no Libro preveem o emprego de certas plantas e de alimentos.

Desenvolvimento

Este artigo divulga resultados de minha participação como bolsista de Iniciação


Científica no projeto intitulado As artes de curar em dois manuscritos inéditos do século
XVIII, desenvolvido pela Profª Drª Eliane C. D. Fleck, junto ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Tal projeto prevê a transcrição e
análise de dois manuscritos jesuíticos que se mantém inéditos até o momento. Um deles
é o Paraguay Natural Ilustrado, escrito pelo Padre José Sánchez Labrador, entre os anos
de 1771 e 1776, em seu exílio na Itália. O outro é o Libro de Cirugía, datado de 1725, e com
autoria atribuída ao irmão jesuíta Pedro Montenegro, que é o objeto deste artigo.
O subprojeto que venho desenvolvendo prevê a transcrição e análise de alguns
capítulos desta obra, tendo o objetivo de identificar as terapêuticas empregadas nas
reduções em que o irmão jesuíta Montenegro atuava, procurando, assim, contribuir para
a reconstituição de sua trajetória (em quais reduções o jesuíta atuou no período em que
foi concebido esse manuscrito) e, também, para a averiguação da relevância do conteúdo
dos capítulos do Libro no atendimento de doentes que requeriam procedimentos
cirúrgicos. Na continuidade, apresento algumas informações sobre o suposto autor do
manuscrito e sobre a obra propriamente.

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Figura 7 - Mapa ilustrativo dos deslocamentos feitos por Montenegro

Sabe-se que Pedro Montenegro nasceu na Espanha, em 1663, e que iniciou sua
formação como boticário, enfermeiro e cirurgião junto ao Hospital Geral de Madri. Chegou
na América em 1689, e ingressou na Companhia de Jesus no ano de 1691. O jesuíta atuou
no Colégio de Córdoba, na Argentina, até realizar seus votos em 1693, ocasião em que
passou de noviço a irmão coadjutor. É importante destacar que Montenegro era irmão, e
não padre, o que permitia que atuasse também como boticário, enfermeiro e cirurgião nas
reduções. De Córdoba, ele foi enviado para as reduções da região de Tucumán, e, dali, para
a redução de Apóstoles (1702). Sabe-se que, em 1704, o irmão atuou como cirurgião em
um conflito na colônia de Sacramento, atendendo como enfermeiro a uma milícia de
índios guaranis. Entre os anos de 1704 e 1728 há um hiato na trajetória de Montenegro,
mas os catálogos da Província Jesuítica do Paraguai de 1715, 1720 e 1724 informam que
o jesuíta se encontrava atuando como enfermeiro nas reduções do Paraná. Em 1728,
Montenegro faleceu na redução de Mártires.
Uma cópia manuscrita do Libro de Cirugía foi recentemente localizada no Convento
da Ordem Franciscana da cidade de Catamarca, na Argentina. Após a transcrição da
maioria de seus capítulos, especulamos que ele se constitua, efetivamente, de uma
compilação de tratados e receituários que pertenceram ao irmão jesuíta Pedro
Montenegro. Tal hipótese se deve ao fato de o manuscrito apresentar diferentes letras e

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uma descontinuidade na sua paginação. Pudemos, também, verificar que as partes


intituladas Tratados são transcrições de tratados já publicados, e que as partes intituladas
Enfermidades são autorais.
Atestando o constante deslocamento feito pelos missionários em suas atividades
pastorais ou mesmo como enfermeiro e boticário, no prólogo do Libro, o autor nos
informa as motivações para sua elaboração, destacando que seu objetivo havia sido o de
“reunir en un cuerpo, lo que no he podido hallar en libro alguno, cuanto es preciso caminar
continuamente y por diversas partes; no podiendo llevar muchos libros que me hallaba falto”
(MONTENEGRO apud ACERBI CREMADES, 1999, p. 19).

Figura 3 - Prólogo do Libro (motivação)

O Libro possui mais de seiscentas páginas e é dividido em dez capítulos, sendo eles:
Dispensatório Médicinal; Anathomia del cuerpo humano; Tratado brebe del modo de
sangrar; Enfemedades de la cabeza; Enfermedades del pecho; Enfermedades de la cavidad
abdominal; Enfermedad de las mugeres; De las fiebres, y de su diferencia; Tratado sobre el
pulso, orina y crisis e Tratamentos chirúrgicos. O manuscrito apresenta, ainda, tabelas que
apresentam os planetas e os signos celestes e que indicam os melhores dias para fazer
purgas e sangrias.
Como dito anteriormente, me deterei na análise do sétimo capítulo da obra, que
trata sobre as doenças que acometiam as mulheres, apresentando as dietas indicadas no
tratamento de enfermidades próprias das mulheres, discutindo ainda as evidências de
apropriação de plantas e terapêuticas nativas.

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Enfermedad de las mugeres

No sétimo capítulo da obra, Enfermedad de las mugeres, percebemos que as


dietéticas medicinais indicadas estão relacionadas com o mal de madre e visavam
combater as enfermidades que acometiam o útero, tais como cólicas, dores pós-parto e
para fazer descer ou parar a menstruação. Para tanto, são indicadas diversas plantas e
infusões, dentre as quais podemos destacar a canela, matricaria (camomila), asafran
(açafrão), ortigas, mirra, ynojo (funcho) e perejil (salsa). É interessante observar que a
maioria das infusões são feitas em vinho, fazendo-se uma diferenciação entre o uso do
vinho branco e do vinho tinto. Além dos simples, aparecem também alguns químicos, como
o asero, que se baseia em uma mistura de ferro e carbono.
Podemos perceber a presença desses ingredientes em várias passagens do Libro,
como neste trecho que indica um preparado para fazer descer a menstruação: “Es tambien
buen remedio tomar cada mañana una dragma de asero preparado mesclado con un poco
de miel, veuiendo inmediatamente media tasa de vino blanco, ó cosimiento de Artemisa”
(MONTENEGRO, 1725, p. 298). Em outra receita, para provocar los mestruos, são indicadas
o asafran e a matricaria, juntamente com a canela. Vale observar que as duas primeiras
plantas são bastante comuns na Espanha, o que parece apontar para a aplicação, pelo
autor do manuscrito, daquilo que havia aprendido como aprendiz no Hospital de Madri,
antes de seu ingresso na Companhia de Jesus. Há também a indicação de plantas usadas
para provocar a menstruação, que compunham as receitas de purgantes e vomitórios,
sendo elas sarsaparrilla, cardo corredor, apio, rais de peregil e de lírio.
Este capítulo também traz algumas receitas inusitadas, como aquela indicada para
expelir criatura aun que sea muerta, que se baseia em uma infusão de vinho branco e
esterco de cavalo, com a recomendação de que deveria ser utilizando esterco recente.
Outra receita que julgo importante ressaltar é a indicada para deter o fluxo de sangue
depois do parto. O autor do Libro recomenda o uso de Balsamo de Aguaraybay. O
aguaraybay é uma planta nativa da América do Sul, que cresce no norte da Argentina, na
região próxima de Córdoba, e possui propriedades purgantes. Sendo assim, temos
também evidências da apropriação e aplicação de plantas nativas próprias da região na
qual Montenegro atuava como missionário.

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É importante destacar que as plantas apresentadas no capítulo em questão são


sempre indicadas por suas virtudes medicinais, vinculadas à uma aplicação científica.
Sendo assim, compartilhamos algumas das propriedades medicinais das plantas que
aparecem com maior frequência ao longo do capítulo. A canela possui propriedades
antibacterianas, expectorantes e anti-inflamatórias, portanto, ajuda a combater doenças
do aparelho respiratório, circulatório e reprodutor (como cólicas menstruais, por
exemplo). Já a matricaria, ou camomila, possui propriedades antibacterianas, alivia dores
intestinais e cólicas menstruais, e seu uso tópico tem efeito anti-inflamatório, calmante e
relaxante. O açafrão possui propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias, sendo
benéfico para cicatrização e desinfecção de feridas. A ortiga, por sua vez, possui
propriedades adstringentes, desintoxicante, diurética, galactagoga e anti-histamínica,
sendo usada para combater alergias, problemas urinários e estimulando a produção de
leite. O Ynojo, ou funcho, é indicado para indigestão, gases e cólicas, garganta inflamada e
tosse, e ainda estimula a produção de leite. O perejil, ou salsa, possui propriedades
antioxidantes e diuréticas, ajudando na digestão; seu uso tópico funciona como
anestésico. A mirra possui propriedades antimicrobianas e adstringentes, sendo usada
para o tratamento de infeções na pele e na boca. O vinho possui propriedades
antioxidantes, e o aguaribay propriedades purgantes e emenagogas. É interessante
ressaltar este último ponto, pois as propriedades emenagogas do aguaribay indicam que
a planta facilita e aumenta o fluxo menstrual, divergindo da indicação do Libro, no qual
aparece sendo usado para deter o fluxo de sangue após o parto. Entretanto, destaco que,
até o momento, esta foi a única divergência quanto à utilização das plantas nos
tratamentos referidos no Libro que localizamos ao comparar as indicações feitas pelo
autor do manuscrito com as indicações da medicina atual.
Como bem pontuado por Mary Del Priore, a saúde da mulher é regida pelo bom
funcionamento da madre. No século XVIII, cabe ressaltar, a medicina que buscava
entender o corpo feminino era carregada de um estigma próprio do olhar masculino, e
focava, sobretudo, na maternidade.

O funcionamento natural da madre marcava para todas as


mulheres da Colônia os ritmos silenciosos e discretos de seu ciclo
vital. As regras apontavam o momento de fecundidade, de

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maternidade, e depois de menopausa e esterilidade” (DEL PRIORE,


1995, p. 218).

Portanto, a madre estava sempre associada à reprodução, com podemos perceber


pelas próprias definições do período. Rafael Bluteau, em seu Vocabulário português e
latino, de 1721, define a madre como sendo a “parte em que se concebe e alimento o fruto”
e ainda como “o útero das femeas, onde se desenvolve o feto antes de nascer”. (BLUTEAU,
1721, p. 240). Já em 1752, os irmãos e cirurgiões Manuel José Affonso e José Francisco e
Mello publicam o Novo método de partejar, recopilado dos mais famigerados sábios e
doutores, no qual a madre aparece descrita forma mais anatômica, sendo ela “uma
entranha de substância membranosa, figurada como uma pêra com algumas cavidades
em seu centro, de forma que o seu fundo fica superior e o orifício inferior corresponde à
vagina” (AFFONSO; MELLO, 1752, p.41).
No Libro de Cirugía o autor não apresenta explicações detalhadas sobre a anatomia
do corpo feminino. Ele se detém, principalmente, nas terapêuticas indicadas no
tratamento de enfermidades próprias das mulheres. Entretanto, em algumas passagens
ficam claros alguns conhecimentos sobre anatomia e sobre o funcionamento do corpo
feminino, como no trecho em que o autor narra o decurso do ciclo menstrual ao longo da
vida da mulher.

“Empiesa a vajar los mestruos à las mugeres de y fin del los 14, y les
dura hasta los 40, ó 50. Seguen las complesiones, Mestruos por que
a unas les empiesa à bajar desde los 13. años, y a unas de 15, y lo
mismo en el sesar, que a unas ya no les baja à los años, y a unas
despues de los 50. los tienen. Corren assi mismo los mestruos
seguen los tiempos de la luna; a las muchachas les corre em el
primer quarto, a las mosas en el 2º, y a las de mas edad en el 3º, y
alas viejas en el ultimo quarto de la luna, de esto podemos colegir
que los nosos sedeuen sangrar en luna nueba, y los viejos al fin de
la luna, por que el arte fique à la naturalesa. Gordiano fl. 267. Y se
hade sauer que àlas mugeres quando les corre vin los mestruos,
segun la costumbre que dura 3 dias mas ó menos, entonses viben
sanas, castas, y son fecundas” (MONTENEGRO, 1725, p. 299).

Nesta passagem, o autor explica que as mulheres começam a ficar menstruadas por
volta dos treze a quinze anos, e param por volta dos quarenta a cinquenta anos. Detalha,
também, o período do mês em que cada faixa etária fica menstruada de acordo com as
fases da lua, sendo que as mais novas menstruam na primeira fase e as mais velhas, na

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última. É ressaltado que o período menstrual mensal costumava durar cerca de três dias
e que, após esse período, as mulheres ficavam mais sãs, castas e férteis.
Também encontramos algo sobre cesáreas, procedimento não recomendado pelo
autor. Não há, no entanto, uma justificativa precisa sobre os motivos para que seu uso não
fosse aconselhado. O autor apenas alega que “raras ves tiene buen efecto” (MONTENEGRO,
1725, p. 302). Entretanto, há uma observação, recomendando que a cesárea deveria ser
empregada quando a mãe já estivesse morta e fosse constatado que a criança ainda vivia,
a fim de que pudesse ser salva. Na continuidade, o autor se prolonga em um extenso
parágrafo na descrição detalhada da execução de tal procedimento.
Em relação ao fluxo menstrual após o parto, o manuscrito apresenta uma relação
de remédios e alimentos que “derriten demasiado la sangre” (MONTENEGRO, 1725, p.
306), e que, por isso, poderiam implicar em uma menstruação excessiva, em um fluxo
menstrual que duraria anos ou, então, em um fluxo tão abundante que poderia debilitar
as forças da mulher.

Considerações Finais

Ao transcrever o capítulo indicado, pude perceber uma forte influência da


medicina hipocrático-galênica, observando que as enfermidades e os diferentes órgãos do
corpo humano são apresentados a partir dos quatro humores básicos: sangue, fleuma, bile
amarela (ou cólera) e a bile negra (ou melancolia). Na Teoria dos Humores, estes são tidos
como componentes naturais do corpo humano e deveriam estar sempre em harmonia. Os
humores também são associados aos quatro principais elementos da natureza: fogo, água,
terra e ar.
No século XVIII, tem-se um período de transição da medicina humoral para uma
medicina tida como mais científica e, ao transcrever e analisar o manuscrito, fica evidente
que o mesmo foi concebido neste momento transitório, mesclando conhecimentos de
anatomia e de farmácia próprias do período com a teoria dos humores.
Quanto às dietéticas, é importante destacar que não pude observar qualquer
associação específica entre a indicação de alimentos e algum procedimento terapêutico
mágico-religioso, uma vez que as plantas medicinais são indicadas por suas virtudes
medicinais e vinculadas à uma aplicação baseada na experimentação e observação.

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Sendo assim, constatamos que a dietética presente no manuscrito contempla tanto


procedimentos terapêuticos europeus, quanto saberes e práticas tradicionais indígenas.
Isso é um indício não só da apropriação e difusão da ciência médica do século XVIII na
América, mas também da apropriação e difusão de saberes dos nativos americanos
decorrentes do convívio intercultural.

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