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01/09/2016 Jornal de Poesia ­ Hélio Pólvora

Hélio Pólvora

  De Água Preta para todos nós


 

 
14.06.2003
 
 
Data de 1945 a estréia de Jorge Medauar em livro e
como poeta com Chuva sobre tua Semente. O ano e a
revalorização do soneto parnasiano­simbolista, que ele
busca, não se eximindo por vezes às rimas e ao ritmo, e
atento a uma musicalidade interna que faz os versos
vibrarem como cordas, o filiam, mais tarde, à polêmica
geração de 45. Surpreendentemente, depois de cantar
temas caros ao socialismo, com uma caligrafia e sintaxe
encontrada em outros poetas brasileiros e estrangeiros,
mas sem subtrair um lirismo primal, é no conto que ele se
vem a destacar.
O contista estava no poeta, o poeta predispunha ao
contista. O conto de Medauar tem um lastro de poeticidade
que, sufocado pelo prosador, sobe à tona. Aliás, a sua
atitude, como contista, é a do poeta que sente quase antes
de ver, porque pressente, e fará da emoção, portanto, a sua
voz narrativa. Os assuntos dos contos ajudam a temperar
essa veia poética, porque Medauar, escrevendo sobre sua
terra, Água Preta, se debruça sobre vidas humildes.
O contista está identificado com a vida e
circunstâncias desses personagens de cidade pequena. Ele
próprio se fez menino ali, de pais sírio­libaneses que
tentavam melhores condições de vida com o cultivo do
cacau. Água Preta, reduto de fazendeiros prósperos,
pequenos comerciantes, mascates, vendedoras de angu,
trabalhadores rurais, pescadores, ferroviários e ciganos,
desperta, desde cedo, a comunhão do menino, que com
eles divide e preenche o cotidiano. Mais que os fazendeiros
fortes, ele se deixará atrair pelos que dependem de azares,
muitos, e sortes ocasionais para tocar as suas vidas. Cria­
se entre o futuro escritor e aquelas criaturas um canal de
solidariedade que, ao engrossar depois, e varrer as
margens, terá um caudal poético do companheirismo, da
solidariedade, da resistência na pobreza.
Ao descrever personagens de Água Preta, comuns e
exóticos, Jorge Medauar, recenseador metódico, mais
visual que auditivo, terminaria por incluir a cidade, outrora
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povoado de Ilhéus, no mapa literário do país. Ele recriaria


um condado, nisso se aproximando do contista argentino
Roberto J. Payró, com Pago Chico, de Sherwood Anderson,
com Winesburg, Ohio, de Faulkner e Thomas Hardy, com
os seus condados imaginários de, respectivamente,
Yoknapatawpha e Wessex.
RETRATOS VIVOS – A exemplo desses criadores,
Medauar funda um universo limitado, é verdade, em
relação aos demais, e por mais nítida que pareça a sua
tinta regionalista, ele transborda, nos contos, as fronteiras
do povoado ou da região, e se amplia e se estende até
longe, porque o seu pequeno e médio plantador de cacau, o
seu comerciante, o seu menino que vai vender caju na
feira, o pescador que volta de Ilhéus com um peixe
vermelho que não conseguirá vender, a mulher dos bilros,
aquele Maçu que, descascando cana, filosofa à porta da
venda, são retratos vivos demais para ficar no papel. Eles
saltam e entram no movimento das ruas e, melhor dizendo,
no fluxo indistinto da consciência coletiva.
Quando Medauar fez a sua estréia no conto, em 1958,
com Água Preta – primeiro título de uma louvada trilogia
que iria completar­se com A Procissão e os Porcos e O
Incêndio – o conto brasileiro, liberto da impregnação
vanguardeira do movimento modernista em São Paulo,
voltara­se, já, para a temática regional, sobretudo para a
temática mais imediata, mais próxima, aquela que o
ficcionista conhecia, sentia, sofria e pela qual sangrava. A
contística de 1930 e anos posteriores retomou contato com
a terra, mas o conto de Jorge Medauar tem extração
posterior ­ ele vem a ser o fruto da memória argamassada
ao tema regional latente.
O rio narrativo de Marcel Proust, derivado da
memória afetivamente bombardeada e liberada, viria a
desestruturar o conto, livrando­o do peso do começo, meio
e fim, ou seja, da trama, mas adensando­o com um
substrato de poeticidade que qualificava a prosa. Sensível à
perspectiva que se abria, Medauar, sem fugir à
contingência do ciclo regionalista, que era, nele,
representado por Água Preta e pelo cacau, conseguiu raro
equilíbrio de expressão e relato.
RAIZ RURAL – Thomas Hardy, com quem Medauar
tem algumas afinidades porque ambos tiveram os seus
condados e ambos praticaram um ficcionismo de raiz rural
(que, em Hardy, por ter sido romancista, absorve uma
densidade psicológica mais permanente e larga e
expressiva), explicou em autobiografia o que, para ele,
constituía o empecilho supremo do ficcionista, ou seja,
encontrar o equilíbrio entre os acontecimentos que tecem o
relato e a forma da escrita. O verdadeiro, ainda que não
reconhecido objetivo da ficção, é causar prazer acentuado e
amor pelo que há de incomum na natureza humana.
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O problema do escritor está em atingir o equilíbrio


entre o incomum e o ordinário, ou seja, de um lado,
provocar interesse, do outro forjar realidade. Trabalhada
sob este prisma, a natureza humana jamais seria anormal,
sob pena de nela introduzir­se a incredibilidade. O invulgar
deve estar nos acontecimentos, não nas personagens, e a
arte do escritor consiste em dar forma a essa estranheza,
enquanto lhe disfarça a inverossimilhança, se ela for
improvável ou inverossímil.
Essa arte de magnificar vidas miúdas envolvidas às
vezes em acontecimentos anormais, ou que, de tão banais,
acabam por adquirir expressão, praticou­a no conto Jorge
Medauar. Seus contos de Água Preta entrelaçam vidas e
criam um microcosmo que se agiganta eventualmente em
significados humanos. Se Jorge Amado foi o ficcionista
épico, de largos cenários, aquele que cantou o sul baiano
sob o estofo da epopéia e como crônica de costumes, e
Adonias Filho foi o analista que, debruçado sobre
individualidades, engendrou tragédias ditadas por fatores
exógenos, Medauar teria sido, no ficcionismo grapiúna, o
contista dos pormenores, das impressões, dos incidentes –
em suma, daquilo que os franceses chamaram de une
tranche de vie.
Trabalhando em pequenos espaços, com uma débil
trama, e na maioria das vezes com uma simples impressão
ou estado de espírito, Medauar realiza contos de situação,
de cunho impressionista – mas que marcam a
sensibilidade a ponto de se transformar em paradigmas.
Seu modelo é único: a falsa terceira pessoa produzindo um
monólogo que parece desatado pela consciência da
personagem, mas a ingerência do ficcionista é flagrante.
Em todos os seus contos, ele aborda a personagem como
observador, de fora para dentro, mas dela faz a voz
narradora, na medida em que lhe atribui qualidades de
contador de histórias e também de analista de almas. O
modelo dificilmente varia. Ele se especializou nesse tipo de
conto, mede suas proporções exatas, sabe como acumular
e encadear incidentes. A composição do relato como que se
faz por instinto.
SEM SOMBRAS – Outro aspecto de sua contística é a
distância que guarda do maniqueísmo (estou a pensar no
realismo socialista) e de um romantismo que poderia ser
piegas. Seus personagens de Água Preta e arredores, seus
pescadores, canoeiros e carregadores de fardos em Ilhéus,
são perfeitos, exatos, cópias faladas dos que ainda se vê
hoje. E todos, a par de uma solidariedade que os une para
amenizar dificuldades de vida, são otimistas, são alegres.
Não há na galeria de retratos de Medauar uma personagem
que queira ser má, que manifeste pendor sombrio. Todas
se esforçam para conduzir, mesmo com percalços, a sua
vida aparentemente saudável. O Brasil já foi assim, já foi

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mais alegre e muito mais ordeiro. Lembro­me apenas de


um final infeliz em Medauar: aquele de O Toco e a Flor, de
um disciplinado romantismo, que dedicou a Jorge Amado.
O Incêndio é uma grande coletânea de contos, quase
todos de realização exemplar, embora não se deva
desdenhar Estórias de Menino, quer dizer, a formação
vadia, lírica e sem preconceitos fúteis de Medauar antes de
tomar os caminhos do mundo, que o levaram a fazer­se
escritor no Rio de Janeiro e em São Paulo. Antes de
Raduan Nassar, ele compôs a crônica dos núcleos de
imigrantes árabes, sem calcar a mão nas falas, porque
outra de suas virtudes está na captação da linguagem oral.
Além de brasileirismos e localismos, de que foi apaixonado,
ele mistura, inventa e cria expressões, sendo essa
capacidade de exprimir­se originalmente, numa mescla do
popular e do erudito, que o distancia do regional
meramente regionalizante.
Ainda que simples ou toscas, as personagens de
Medauar se questionam, não se furtando a um balanço de
sua contingência, situação ou conflito atual. Vale a
intuição ­ aquela sabedoria instintiva, sem dúvida mais
legítima do que a sabedoria adquirida nos livros. O
universo de Água Preta poderá ser pequeno, mas nele
habita o homem licencioso e o homem temente a Deus, o
valente e o inseguro, o sensual, o arrogante, o generoso e
cruel, o humilde e o fatalista, o solidário e o prepotente ­
em suma, uma diversidade de comédia humana, que, com
todos os seus matizes e ambivalências, vem a ser
acentuada pela mistura de sangue e de raças e adquire
traços peculiares: um certo toque chapliniano de
tragicomédia.
Jorge Medauar foi, na contística brasileira, um
contador de histórias que, sabendo questionar e
introverter­se, conversou com calma, em voz baixa,
fixando­se em incidentes que não chegam a formar um
caso ou um quadro, e deles transmitindo uma versão
literária agradável que perdura na emoção. Tem o seu jeito,
o seu estilo, é inconfundível. É um vencedor e assim
permanecerá enquanto houver quem se interesse por
outras vidas narradas por quem as conhece e sabe
despertar atenções.

Hélio Pólvora é contista, cronista e crítico literário. Ocupa na Academia


de Letras da Bahia a Cadeira 29.
 

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Leia a obra de Jorge Medauar


 

 
 

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