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A arte da contradição
Belo Horizonte
2005
Anna Christina da Silva
A arte da contradição
Belo Horizonte
2005
Dissertação defendida e aprovada em 11 de março de 2005, pela Banca Examinadora
constituída pelos professores:
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo P. Marques (Orientador)
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
Resumo
tragédias.
Abstract
tragedies.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos aqueles que conviveram comigo,
que é.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 08
Pretendemos, a partir da noção de antilogia, tal como ela foi pensada e praticada
qual estas obras foram geradas. Para esse fim, utilizaremos os textos dos tragediógrafos
que as Tetralogias, na medida em que refletem práticas discursivas, não são alheias à
história da cultura, pois não se trata de um conjunto de idéias abstratas mas de textos
caminho que nos levou até o texto de Antifonte. Num primeiro momento, buscamos
partir da reconstrução hipotética da obra de mesmo título. Neste estudo, mostramos que
ensinamentos do sofista, visto que a formação que ele oferece aos jovens que o
procuram consiste numa tékhne que se destina a tornar o futuro cidadão hábil em falar,
8
identificamos na tragédia, a partir do estudo das cenas de agón, estruturas discursivas
processo" nos mesmos moldes dos processos que ocorriam nos tribunais atenienses
Tetralogias são os escritos de eloqüência judiciária mais antigos que chegaram até nós e
conjunto de doze discursos que discutem três causas de assassinato, que, embora sigam
de causas imaginárias visto que, destinam-se a servir como exercício para os discípulos
Nas Tetralogias encontramos os moldes precisos do agón logôn tal como ocorria
nos debates dos tribunais. Neste ambiente jurídico, ao serem confrontados os discursos
hipotética e conceitual das Antilogias. Enfim, utilizo os textos dos poetas trágicos para
9
antilogia é uma prática discursiva solidária da cena trágica. No segundo capítulo, trato
mostrar que Antifonte constrói seus discursos indicando que com relação a cada
persuasão.
10
CAPÍTULO I
sua primeira obra. Nesta obra, podemos dizer que o que chama a atenção de Protágoras
é o poder que tem o ser humano (ánthropos) de afirmar e negar a mesma coisa. Após
logos em sua face transgressora, isto é, na medida exata em que, para o sofista, o
discurso humano não se submete a esse princípio. Nas Antilogias, Protágoras, partindo
... “sobre cada coisa existem dois discursos possíveis, contraditórios” (Diógenes Laércio. Vidas IX, 51.
DK 80 A 1).
É importante observar que para lermos as Antilogias é necessário que seja feita
coloca em contato com um grande número de testemunhos que nos mostram o grande
1
Barbara Cassin fala de uma “paleontologia da perversão” para se referir à redescoberta de pensadores
que foram excluídos da história oficial da filosofia. 1990, p. 08-09.
2
Convém observar que Platão é o comentador mais antigo do sofista. Entre os pensadores que criticaram
as Antilogias, nos termos acima mencionados, podemos citar Platão e Aristóteles. Platão, em seu diálogo
Sofista (232b), nos diz através do Estrangeiro de Eléia que a melhor maneira de definir o sofista é como
contraditor (antilogikós). Os sofistas enquanto hábeis contraditores, nos mostra o Estrangeiro, são
“capazes de discursar sobre qualquer questão” (233b), levando os jovens a acreditarem que “a propósito
de todos os assuntos são mais sábios do que todo mundo” (233b). No entanto, observa o Estrangeiro, a
onisciência do sofista não passa de uma “falsa aparência de ciência universal” (233c). Por sua vez,
Aristóteles, no livro IV da Metafísica, após ter citado a tese de Heráclito afirma que: (...) "Pois não é
necessário que o que alguém diz, ele o defenda também. Se, portanto, alguém não admite que os
contrários pertencem simultaneamente ao mesmo (consideremos que são acrescentadas a este enunciado
também as determinações habituais) e se a opinião que defende a contradição é, de fato, uma opinião
contrária a uma outra opinião, é claro que é impossível que o mesmo homem sustente simultaneamente
11
Para reabilitar o valor das Antilogias não só como obra escrita mas também
Oréstia, utilizamos os estudos do helenista francês Jean Pierre Vernant, que recorrem à
do mito, tal como ele aparece na poesia trágica. Assim, contando com estas análises
que o mesmo é e não é; senão ele teria simultaneamente opiniões contrárias, estando errado quanto a
isto". Aristóteles, Metafísica 3, 1005B 25-34.
12
1.1 Hesíodo
termo mais antigo sophós que possui uma íntima ligação com a religião, sendo o sábio
sophizesthái, que nomeia aquele que exerce a atividade de um sophós; deste termo
surge a forma ativa sophistés que, segundo Untersteiner, encontra-se pela primeira vez
nas poesias de Teógnis. É a partir da palavra sophizesthái que surge a idéia do sábio que
Finalmente chegamos ao termo sophistai que nomeia aqueles que possuem uma
Podemos dizer que, nos Trabalhos e os Dias, Hesíodo, enquanto poeta que se
observa que, embora a forma utilizada para educar os cidadãos da pólis e os camponeses
13
Hesíodo é ao mesmo tempo poeta e camponês. Enquanto poeta inspirado pelas
musas, ele organiza os mitos da tradição oral; enquanto camponês, ele inclui no seu
mítico”, passa a prescrever conselhos para o agricultor, que se estendem até o final do
poema. A poesia didática de Hesíodo serve como um manual prático para o trabalhador
agrícolas correspondentes a cada estação. Na segunda, o poeta faz referência aos dias
sagrados e de celebrações, indicando também quais são os dias mais adequados para o
trabalho. Na parte referente aos trabalhos (v.381-764), o registro das estações é feito
seguindo os sinais emitidos pelas divindades e pelos astros celestes através dos
em seu cenário natural. O poeta conhece a natureza e do seu olhar não escapa o menor
vestígio de mudança. Nesta relação íntima com a natureza está inserida a “ética do
trabalho” que, segundo Jaeger, deriva da “ordem natural da existência e dela recebe as
A estima pelo trabalho faz com que o poeta não se farte de dar conselhos. Neste
sentido, podemos dizer que Hesíodo, assim como Protágoras, é um “mestre de virtude,”
pois as informações profissionais que dominam esta parte do poema zelam pela
14
conquista da areté que pode ser entendida como habilidade necessária para alcançar o
êxito.
verdadeira “mina de regras prudentes para a vida”. Assim o poeta nos diz:
“Um, quatro e sete são dias sagrados, pois neste dia Letó gerou Apolo” e ainda: “Evita os quintos, [dias]
pois são difíceis e terríveis. Contam que no quinto as Erínias tomam conta de Orco no seu nascimento, a
quem gerou Eris como danoso para os perjuros” (v.800-803).
prática de Hesíodo, podemos também pensar numa outra analogia entre Hesíodo e
grego, veremos que é na poesia arcaica de Hesíodo que o mito estabelece a oposição
narrativa do Mito das Cinco Raças, encontramos uma cisão instaurada pela oposição do
“Bem rápido corre o Juramento por tortas sentenças e o clamor de Justiça, arrastada por onde a levam os
homens comedores de presentes e por tortas sentenças a vêem. Ela segue chorando as cidades e os
costumes dos povos [vestida de ar e aos homens levando o mal] que a expulsaram e não a distribuíram
retamente” (Erga, 219, 224).
15
Do passo acima citado podemos dizer que, a consciência das contradições
sagrado que transparece através da dupla natureza de Díke que passa a agir tanto em
função do bem, como em função do mal3 (1993, p.49). A ambigüidade de Díke revela
próprias ações não consegue alcançar a unilateralidade ideal de Díke e por isso pode
3
Finley em seu livro O mundo de Odisseu, ao abordar os elementos que influenciaram a composição dos
poemas arcaicos , extrai uma observação que aproxima-se da abordagem feita por Untersteiner ao afirmar
que: “A estirpe grega compreendia numerosas variações de mitos, irremediavelmente contraditórios, que
haviam sido criados em relação com seus ritos religiosos; todo gênero de fábulas sobre heróis mortais,
algumas fantásticas e outras mais ou menos lógicas; e as fórmulas que podiam ser convenientes em
qualquer incidente: a proximidade do amanhecer e do anoitecer, cenas de combate, de funerais e de
banquetes, atividades cotidiana dos homens (levantar-se, comer, beber e dormir), descrições de palácios,
de armas e tesouros, metáforas do mar e dos pastos, e assim sucessivamente” . Finley, 1996, p. 18.
16
1.2- Protágoras de Abdera
que perdura até os nossos dias. Sabemos que foi o primeiro sofista profissional e que
escritores gregos quando estes nos apresentam as datas que marcam o nascimento e a
morte de Protágoras. Segundo Diógenes Laércio5, Protágoras morreu aos noventa anos
e foi acusado de impiedade pelo conselho ateniense dos Quatrocentos por volta do ano
411 a.C. De acordo com esta versão, sua data de nascimento estaria fixada no ano 500
a.C. Apolodoro, por sua vez, citado por Diógenes Laércio 6, acredita que Protágoras
faleceu aos setenta anos, sendo que durante quarenta anos exerceu a atividade de
sofista. Apolodoro fixa a acmé de Protágoras no ano da 84a olimpíada, ou seja, 444 a.C.
estaria situada entre os anos 487-486 a.C. Por sua vez, Filostrato7 menciona que Xerxes,
durante sua visita a Abdera, ocorrida no ano de 480 a.C., permitiu que Protágoras fosse
4
Em seu livro O movimento sofístico, Kerferd menciona as escavações feitas em Memphis no Egito onde
foram descobertas as estatuas de Platão, Heráclito, Tales e Protágoras que, certamente, foram esculpidas
durante o período ptolomaíco. A respeito de Protágoras Kerferd observa que “What is remarkable is that
Protágoras should be included in a series of philosophers facing a set of poets on the opposite side, a clear
testemony, it would seem, to the importance with which he was invested in the hellenistic period”.
Kerferd, 1981: 42-44.
5
Diógenes Laércio. Vidas IX, 55-56. DK 80 A 1. Salvo indicação em contrário, para os fragmentos Diels
e Kranz, utilizaremos sempre a tradução francesa dirigida por Jean Paul Dumont.
6
Id., ibid.
7
Filostrato: DK 80 A 2, 1.
17
Neste sentido, a historiografia contemporânea, reconhecendo a veracidade destas
Protágoras o ano de 492 a.C. O estabelecimento desta data foi sugerido por Untersteiner
Kerferd.
irrelevância de se estabelecer uma data precisa, por essa razão ele se atém às datas
relativas utilizando como fonte os diálogos de Platão. Guthrie observa que no diálogo
Hipias, em uma reunião na casa de Cálias onde Protágoras afirma ser velho o suficiente
para ser o pai de qualquer um de seus ouvintes (Protágoras, 317c.). No diálogo Hipias
Maior, (282e) Protágoras é considerado muito mais velho que Hipias, o que leva
Guthrie a sugerir que a data de nascimento de Protágoras não ultrapassa o ano de 490
a.C. No diálogo Mênon é relatado que Protágoras faleceu aos setenta anos; perante este
dado, Guthrie sugere que o sofista tenha falecido por volta do ano 420 a.C. Para
Guthrie, o cronologista Apolodoro foi influenciado por Platão. Por essa razão,
sofista viveu durante setenta anos. Guthrie também comenta o trecho do texto de
Diógenes Laércio, onde o poeta cômico Eupolis afirma que Protágoras nasceu em Teos
e não em Abdera10. Guthrie observa que Eupolis se refere a Protágoras como hó teos ao
invés de abderités por uma questão de rima e métrica, uma vez que é importante
8
Utilizo a tradução francesa: Unterseteiner, 1993.
9
Romeyer-Dherbey em seu livro Os Sofistas, p. 14, concorda com a data estabelecida por Untersteiner,
porém, não acredita na ligação sugerida por Filostrato entre Protágoras e os sacerdotes persas.
10
Diógenes Laércio. Vidas IX, 50. DK 80 A I.
18
encontramos informações divergentes. Segundo Diógenes Laércio11, Protágoras foi
esta questão. Untersteiner observa que a afirmação de Apolodoro é a mais correta por
também analisa meticulosamente dois testemunhos sobre Protágoras que, embora não
... “ se relacionou com os magos persas no momento da expedição de Xerxes contra a Grécia. Seu pai foi
Meandrios: ele constituiu a maior fortuna da Trácia, ele recebeu Xerxes em sua casa e lhe ofereceu
presentes, obteve (do rei) para seu filho a permissão para freqüentar os magos. Uma vez que os magos
persas recusam a ensinar os não persas, a menos que o Grande Rei conceda permissão 13” .
cronologia a ser adotada. Se aceitarmos 492 a.C. como sendo o ano de nascimento de
localiza a visita dos magos persas na mesma data da expedição de Xerxes, ou seja, em
480 a.C.
Feitas essas observações a sugestão de Filostrato não deve ser rejeitada, pois,
podem ser explicadas pela influência do pensamento religioso dos magos que, neste
11
Id., ibid.
12
Id., ibid.
13
Filostrato: DK 80 A 2, 1.
19
gregos conheceram a diversidade dos costumes e as diferentes formas de cultuar os
deuses através dos persas e dos egípcios. Porém, Untersteiner ressalta que, nos debates
Filostrato:
agilizar este trabalho Protágoras “foi o primeiro a inventar a tulé, sobre a qual se
transportam os fardos”.
Protágoras aos ideais democráticos através de sua origem social pouco abastada,
entretanto, este argumento parece não ser suficiente para invalidar o testemunho de
“Até a morte de Péricles, foram nobres os chefes do estado democrático de Atenas...” (Jaeger,
1995,p.283).
“Já desde o começo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas não era a educação
do povo, mas a dos chefes“ (Jaeger, 1995,p.339).
20
Vejamos o segundo testemunho analisado por Untersteiner, onde é discutida a
ligação entre Demócrito e Protágoras, que também diz respeito à formação intelectual
discípulo de Demócrito. Para Untersteiner, afirmar que Protágoras teria sido discípulo
de Demócrito significa ir contra a cronologia estabelecida pela crítica recente, visto que,
a idade de Demócrito estabelecida por Apolodoro o faz no mínimo vinte anos mais
“Deste deslocamento cronológico sensível segue que a relação entre os dois filósofos é inversa.
É Demócrito que responde a Protágoras e não o inverso. Com efeito, nós sabemos através de um
testemunho de Plutarco (DK 68 B 156) que Demócrito polemiza contra Protágoras; visto que a sensação
não é suficiente, Demócrito, postula a exigência de uma realidade efetivamente existente: os átomos e o
vazio; assim a legitimidade da ciência visando ser afirmada, e a verdade (alétheia) ressoa neste momento
uma significação muito diferente daquela que Protágoras lhe atribui” (Untersteiner, 1993,p.19).
Atenas onde estabeleceu amizade com Péricles, líder do estado democrático ateniense.
colônia de Túrios no ano de 444. É certo dizermos que a elaboração das legislações para
atuação em Atenas, Guthrie não hesita em citar Platão que, no Protágoras, através da
“Muitas das informações sobre o pensamento de Protágoras chegam até nós através dos diálogos
de Platão e em conseqüência nossa valorização de suas realizações filosóficas depende, em grande
medida, do valor histórico que estamos dispostos a conceder-lhes. Neste debate tem interferido
numerosos especialistas e, provavelmente, não se conseguirá nunca um acordo total. Existe algo,
entretanto, que não se pode utilizar contra a veracidade de Platão dizer que seu objetivo era denegrir ou
destruir a fama de Protágoras. O respeito com que trata suas opiniões é mais impressionante ainda, se
temos presente seu profundo desacordo com elas. Na cena dramática que é um dos principais encantos
21
do diálogo Protágoras, o grande sofista está retratado em verdade como plenamente consciente de seus
próprios méritos”...(Guthrie, 1988,p. 260).
esclarece que:
“A idéia segundo a qual as disposições para a politiké arete são inatas em qualquer homem por certo
corresponde a uma concepção democrática do Estado. Mas, por outro lado, a competência política não
se encontra na massa enquanto tal, mas somente nas personalidades singulares que encarnam
efetivamente a politiké arete. E a idéia segundo a qual uma epimeléia, uma askésis e uma didakhé são
necessárias para conseguir a politiké arete é uma idéia fundamentalmente não democrática”. 14
Além destes argumentos, Untersteiner observa que Péricles desejava que Túrios
fosse um “centro da política internacional”, portanto, seria necessário para este fim
formular uma constituição de caráter pan-helênico. Por essa razão, Untersteiner supõe
que não podemos afirmar ao certo quais eram as idéias política de Protágoras, mas,
francês E. Dupréel, é importante lembrar que Protágoras foi contemporâneo dos físicos
física matemática que foram pesquisados por eles influenciaram o sofista (Dupréel,
14
Mewaldt, Fund.,p.8, apud Untersteiner, Mario, 1993:20.
22
confrontação entre a doutrina eleata e o pensamento de Heráclito (Guthrie, 1988,p.
183).
Jaeger vai mais longe. Por mais pertinente que seja buscar nos filósofos pré-
socráticos os temas que inspiraram nosso sofista, Jaeger demonstra que Protágoras é
herdeiro legítimo dos poetas que construíram a cultura grega (Jaeger, 1995,p. 339).
reconstrução dos temas que formaram a obra de Protágoras. Os escritores tardios nos
convém ressaltar que nos tempos de Protágoras era de pouca importância conceder
títulos aos livros, por essa razão, é muito provável que os títulos sejam uma criação dos
compiladores.
“A arte da Erística, “Sobre a Luta”, “Sobre as Matemáticas, “Sobre o Estado”, Sobre a Ambição”, “Sobre
as Virtudes”, “Sobre o estado das coisas no princípio”, “Sobre o Hades”, “Sobre as más ações dos
Homens”, “O discurso Imperativo”, “A disputa sobre os honorários”, e os dois primeiros livros das
“Antilogias ou “Contradições”. Ao iniciar esta lista Diógenes Laércio escreve que “as obras conservadas
são”..., indicando, deste modo, que sua lista é lacunar e incompleta, pois, como observa Untersteiner, a
lista fornecida por Diógenes Laércio omite dois títulos importantes, a saber são eles: Sobre os Deuses e a
Verdade.
... “o catálogo de Diógenes Laércio inclui apenas os subtítulos das Antilogias, que, de fato, seria uma
obra em dois livros, isso está claramente determinado no fim da lista em questão. Na minha opinião, as
Antilogias tratavam de quatro questões fundamentais: 1- dos Deuses; 2- do ser; 3- das leis e de todos os
problemas relativos ao governo da polis 4– das artes” (Untersteiner, 1993,p 30).
segundo a qual:
23
“...pela primeira vez atribuiu o título de alétheia, Verdade à obra maior de Protágoras, esta é uma
hipótese altamente provável”...(Untersteiner, 1993, p. 35).
Por sua vez, Guthrie não se distancia muito da posição defendida por
“Houve pelo menos dois tratados principais: Sobre a Verdade (conhecido alternativamente, ao menos na
última época, por um termo de luta como Lançamentos ou Discursos Demolidores), que é várias vezes
citado por Platão; começava com a declaração do homem como medida; 2- Antilogias ou Argumentos
Contrários. Outra obra sua parece que foi também Sobre os Deuses...Há também uma referência a um
Grande Logos, que podia ser o mesmo que Sobre a Verdade, e outros numerosos títulos”(Guthrie, 1988,p.
259).
doutrina de Protágoras, E. Dupréel não se detém nas informações dos fragmentos que
fazem referência às obras de Protágoras. Para ele a lista desconexa de títulos nos
... “quais entre suas idéias surpreenderam suficientemente os seus leitores por não terem caído no
esquecimento. São vestígios das suas idéias os temas que têm a ver com a moral, a política, a gramática e
a teoria do conhecimento” (Dupréel, 1948,p.16).
Seja qual for a proposta mais fiel ao sentido original das obras de Protágoras, o
vinculadas pelos escritores tardios até a negação total dos dados disponíveis. Não é
necessário fazê-lo, mas vale a pena mencionar quais são os temas e desdobramentos
destes que se relacionam com o objeto de estudo deste trabalho, ou seja, quais os temas
24
Antilogias15.
cada coisa existem dois discursos possíveis, contraditórios” (Vidas IX, 50. DK 80 A I).
unidade compreensiva, mas, para nossos estudos só nos resta recorrer a uma
documentação, na sua maior parte, de caráter doxográfico, pois não dispomos dos
à interpretação elaborada e ambiciosa que foi publicada por Mário Untersteiner em seu
livro I Sofisti.
antigo, mas ainda resiste ao exame crítico dos pesquisadores modernos. Por esta razão,
mais importantes das Antilogias. Para esta discussão nos apoiaremos nos textos dos
Diógenes Laércio (Vidas IX, 50. DK 80 A I) transmite-nos uma lista das obras
escritas por Protágoras que não coincide com os títulos mencionados por Platão no
15
O verbo antilego deve ser traduzido por “falar contra” e é o termo a partir do qual será formado o
vocabulário da contradição. Na seqüência encontramos a palavra antilógos significando “contraditório,”
“contrário” seguido pelo substantivo feminino antilogia que pode ser traduzido por “resposta,” “réplica”
ou “contradição. Há ainda o adjetivo antilogikós que define aquele que é hábil na controvérsia, ou seja na
arte da disputa, antilogike tekhné (1996, p. 158). Finalmente, encontramos o termo antiléxis que significa
“moção de uma nova arbitragem” e a palavra antilekhtós que significa o que é “disputado”.
Esta breve pesquisa semântica já indica o contexto marcadamente jurídico do uso do vocabulário da
antilogia.
25
Diógenes Laércio apenas cita os subtítulos das Antilogias, enquanto Platão menciona os
quatro temas que compõem os dois livros das Antilogias. Para Untersteiner é natural
inferir que os temas das Antilogias versam – Sobre os Deuses, o Ser, as leis e todos os
Sobre os deuses.
“Protágoras, tendo se tornado companheiro de Demócrito, adquiriu a reputação de ateu. Em todo caso, o
que se diz é que de seu tratado Sobre os deuses, o início é o seguinte: No que se refere aos deuses, não sei
(nem se eles são, nem se eles não são, mais do que como eles são quanto ao) aspecto”. Preparação
evangélica XIV, III, 7. DK 80 B 04.
invisível e obscuro, não podendo por isso ser objetos de nenhum saber (Romeyer-
Dherbey, 1986, p.18) . É importante observar que a religião grega era politeísta, o que
injusto, o belo e o feio, surgem como objeções, argumentos onde as opiniões se dividem
e o discurso mostra sua face crítica e antilógica. Guthrie estabelece em seu livro Os
Sofistas que as críticas dirigidas pelos antigos gregos à religião tradicional estão
26
Estes termos são amplamente usados pelos poetas e pensadores do século V. Durante
este período, nos debates sobre a religião, o uso dos termos nómos e phýsis se aplica à
pérsicas, é um exemplo típico do interesse dos gregos por este gênero de narrativa que,
muitas vezes, visa descrever com exatidão os rituais religiosos e os costumes dos povos
da Pérsia, do Egito e da Índia. A partir deste tipo de narrativa tudo o que era
(1993, p.570). Inspirado pelo conhecido fragmento de Protágoras que afirma ser o
homem a medida de todas as coisas, (que inicia outra obra de Protágoras intitulada A
Hegel em seu livro Preleções sobre a História da Filosofia nos oferece uma
interessante leitura acerca do agnosticismo dos sofistas que nos permite compreender a
cultura deve-se aos sofistas, “mestres da Grécia”, que fizeram com que o pensamento
16
Guthrie, observa que o termo phýsis geralmente é traduzido por natureza, o que é correto, mas, quando
este termo aparece em oposição a nómos o melhor é traduzí-lo por realidade (op.cit).
27
da reflexão crítica distinguindo-se dos poetas que instruíam através da crença resignada
“A religião não foi mestra nem veículo de cultura, pois não continha ensinamento algum. É certo que os
sacerdotes sacrificavam aos deuses, emitiam profecias e interpretavam os oráculos, mas o ensinar é algo
muito distinto de tudo isto. Os sofistas, por sua vez, iniciavam os homens na sabedoria, nas ciências em
geral, na música, na matemática, etc., e nisto consistia sua principal missão” (Hegel, 1997 - 10-15).
correspondência com o iluminismo dos tempos modernos, pois, a palavra cultura passa
Assim como Hegel, Jaeger também acredita que os sofistas foram os primeiros
pensadores que estabeleceram uma distinção entre religião e cultura. Para este
entra em crise o referencial que orienta o novo modelo de educação idealizado pelos
sofistas vem a ser a “forma humana”, base constitutiva do humanismo (Jaeger, 1995,
p.345-350).
Partindo das observações feitas por Jaeger sugerimos que, desde a antiguidade,
as críticas dirigidas aos sofistas e sua condenação devem ser compreendidas dentro
comentários sobre esta primeira seção das Antilogias arriscamos dizer que, as reações
hostis ao sofista resultam, em última instância, do efeito negativo produzido pela prática
ao mostrar que qualquer afirmação pode ser contestada, mesmo que tenha sido proferida
por um sábio.
28
Sobre o ser
dos eleatas. A crítica feita pelo sofista de Abdera encontra-se no fragmento de Porfírio,
“Não nos restam mais muitos dos livros dos autores anteriores a Platão. Se os tivéssemos, poderíamos
acusar este filósofo de mais de um (plágio). O que eu sei é que, tendo encontrado por acaso o Sobre o Ser
de Protágoras e, tendo lido a passagem dirigida contra os partidários da unidade do ser, me pareceu que
Platão utilizava argumentos do mesmo gênero. Eu me esforcei para me lembrar dos seus dizeres nos seus
próprios termos. (Eusébio acrescenta): tendo dito isso, ele dá demonstrações integrais”. Porfírio. Curso de
Filologia I, citado por Eusébio, Preparação evangélica X, III, 25. DK 80 B 02.
Como nos mostra Porfírio ao pensar a ontologia nos termos propostos pelos
eleatas, Protágoras visava refutar a unidade do ser sustentada por eles. Em seu livro,
Historia de la Filosofia Griega, Guthrie afirma que Protágoras não aceitava o dilema
instaurado pela filosofia eleata que desafiava a constatação dos sentidos ao defender a
(1995, p. 48-49).
Podemos propor outra leitura, partindo da que foi feita por Guthrie e sugerir que
antilógicos. Protágoras não aceita a oposição entre o caminho do ser e o caminho das
aparências, dizendo que sobre o ser ele não tem nada a dizer, só lhe restando, então, as
caminho do ser, enquanto Parmênides, (DK 28 B 6, 1-9) afirma que tudo o que se pode
dizer e pensar é e argumenta contra a via negativa do não ser 17: Por outro lado,
17
“Necessários é o dizer e pensar que (o) ente é; pois é ser, e nada não é; isto eu te mando considerar. Pois
primeiro desta via de inquérito eu te afasto, mas depois daquela outra, em que mortais que nada sabem
erram, duplas cabeças, pois o imediato em seus peitos dirige errante o pensamento; e são levados como
29
Protágoras, assim como Parmênides, explora a conexão entre ser e aparência (tá
dokonta) que, mesmo não sendo objeto de fé verdadeira, atravessam todas as coisas18 :
... “é preciso que de tudo te instruas, do âmago inabalável da verdade bem redonda e de opiniões de
mortais, em que não há fé verdadeira. No entanto também isto aprenderás, como as aparências deviam
validamente ser, tudo por tudo atravessado” (DK 28 B1 28-32).
caminhos inspiraram Protágoras que tentou mostrar que não é apenas sobre o ser que
existem dois discursos possíveis, pois, a oposição de dois discursos se aplica sobre
qualquer coisa indistintamente. Mas há, de fato, uma apropriação do poema, por parte
Heráclito (que defende a coexistência dos contrários: DK 22 B 60, 61, 88, 111), levou o
sofista a elaborar uma teoria sobre linguagem. Convém observar que Kerferd exagera ao
dar tanta importância ao caráter teórico das idéias do sofista (1984, p. 71), visto que,
embora seja certo afirmar que o sofista foi influenciado por Parmênides e Heráclito, a
mesma certeza não há em afirmar que, a partir desta influência, Protágoras tenha se
surdos e cegos, perplexas, indecisas massas, para os quais ser e não ser é reputado o mesmo e não o
mesmo, e de tudo é reversível o caminho”.
18
Seguindo a interpretação heideggeriana, o professor Marcelo Marques observa que Parmênides, em seu
poema, nos mostra que a aparência não é inferior ao ser, visto que: “A aparência faz parte do ser não
como algo suplementar, acrescido de fora, mas como vigência, modo próprio de o ser se manifestar. O ser
tem sua essencialização também no aparecer. Aparecer é sair da dimensão do velado, do coberto, é
Alétheia” (Marques, 1990, p. 85-86).
30
responderam criticamente a Parmênides. No caso dos filósofos Anaxágoras e
movimento proposta por Heráclito, eles não se limitaram a repeti-la, visto que, em suas
teorias o movimento não é tido como uma constatação auto-evidente. Por isto, em suas
da sabedoria prática e educativa do sofista. Pois, ainda que Protágoras tenha herdado da
filosofia o estilo de escrever em prosa, é na poesia que ele encontra material adequado
que o auxilia a tratar dos problemas do homem e a fundamentar suas idéias educativas.
“educação” devendo ser compreendida não como ciência, e sim como arte\tekhné
formação do homem político e para o ensino da arte política ele não precisava ocupar-se
ensinar seus discípulos a terem êxito em todas as discussões. O interesse do sofista pela
linguagem está restrito à arte de falar que, ao ser explorada por ele em toda sua
traçado por Platão para definir a atividade exercida pelo sofista. O principal exemplo
“Protágoras -...se um jovem recorre a mim, não aprenderá outra coisa, senão aquela pela qual
veio. Meu ensinamento é a prudência nos assuntos familiares , a saber, como poderia administrar sua casa
19
Não foi utilizada a tradução feita por Rowe porque este autor recorta excessivamente o texto original.
Conferir a seguinte edição: Platón. Protágoras.Trad. Osmanczik S.Ute, México: UNAM, 1994.
31
da melhor maneira e nos assuntos da cidade, como poderia ser o mais capaz tanto para atuar como para
falar.
Sócrates – Por acaso te acompanho em teu discurso, disse eu, pois me parece que referes à arte
política e que prometes fazer dos homens bons cidadãos.
Protágoras – Sim, Sócrates, essa é exatamente a oferta que faço” (318e - 319 a).
jovens a agir e falar no campo da arte política, que, dentre as artes, foi a que mais se
debates incitados pela filosofia dos eleatas, aceitamos a sugestão de Untersteiner que
acrescenta aos escritos de Protágoras sobre a ontologia uma seção prática, onde a
exemplos práticos acerca deste método estão situados após a exposição das críticas aos
eleatas, visto que, Protágoras, após explorar a ambivalência presente nas várias formas
prática.
ontologia eleata é a mesma que Diógenes Laércio intitula Arte da Erística. Nesta seção,
Protágoras dirige seu interesse à prática da discussão jurídica e também para a discussão
32
acerca do pagamento dos honorários. Para este pesquisador, é possível que estas
discussões tenham sido inspiradas por uma disputa jurídica real (1993, p. 32).
Sobre a Pólis
Passamos agora para à terceira seção das Antilogias que serve como ponto de
justamente uma discussão ligada à vida ativa, pois aborda os assuntos da pólis e os
problemas relativos às leis. Nesta seção, Untersteiner acredita que Protágoras deteve-se
“Como alguém, no pentathlon, havia ferido, involuntariamente, Epitimo de Farsala com um golpe de
lança e o havia matado, Péricles passou um dia inteiro discutindo com Protágoras sobre se era a lança ou
o lanceiro, ou os juízes que eles deveriam, segundo o raciocínio mais justo, considerar como o culpado
desse acidente”. Plutarco. Vida de Péricles 36. DK 80 A 10.
individual, uma vez que a condição jurídica do homem grego carece da noção de
termo que correspondesse à vontade, entendida enquanto livre arbítrio (Vernant, 1987,
p.43-46). Mas, para Untersteiner, o verdadeiro sentido desta questão consiste no caráter
arbitrário da escolha; uma vez que é impossível determinar uma causa específica para
cada ação, a questão da responsabilidade passa a ser vista como fruto do acaso (1993, p.
56).
33
Há uma segunda hipótese que acrescenta ao debate acerca dos problemas da lei e
Prometeu narrado por Protágoras tal como Platão o reproduz, não corresponde a esta
seção das Antilogias. A hipótese sugerida pretende mostrar que a narrativa do mito de
politicamente. Por esta razão, pensa Untersteiner, tal versão do mito deveria ter
construtivo.
limitações impostas pela phýsis. Neste momento, o homem não dispõe do fogo, que
através do exame das ações humanas intitulado Sobre as Virtudes. Untersteiner acredita
que o título no plural indica que há uma dispersão das virtudes, mostrando que não há
34
Sobre as Artes.
Na quarta e última seção das Antilogias é discutido o valor empírico das artes.
Para reconstruir esta seção, dispomos do testemunho de Sexto Empírico que, na opinião
existência de critérios sobre qualquer arte. Pois, como escreve Sexto Empírico:
“Quem cultiva uma arte não tem capacidade para julgar aquele que se dedica a mesma arte. Com efeito,
investigamos precisamente isso: quem quer que seja que julgue com um critério único a estes enquanto
exercem a mesma arte. Portanto, se um julga ao outro, identificam-se o julgador e o julgado, o que é
digno de fé e o que não é. Pois se um faz a mesma arte que aquele que é julgado, por ser ele mesmo
julgado, não será digno de fé, mas enquanto julga o será. Mas não é possível que a mesma pessoa julgue e
seja julgada, digna de fé e indigna dela. Logo, não existe quem possa julgar com um critério artístico e,
conseqüentemente, não existe critério algum” (Contra os Matemáticos, VII, B, 55,59).
De fato, o que Sexto Empírico indica aqui é a natureza particular que caracteriza
as experiências. O indivíduo que experimenta julgar alguém conclui que um juízo único
acerca do conhecimento técnico é impossível, pois, para emitir tal juízo, este mesmo
julgado, transmitindo uma imagem que nos remete a um relativismo radical e não a um
busca saber se a experiência das artes deve ser compreendida no âmbito da verdade
teórica.
35
1.3- A dimensão antilógica do agón trágico.
sob a forma de situações conflituosas que cercam a vida do homem na cidade. Nossa
podem ser analisados fora do contexto em que foram gerados. Por esta razão, o texto
será dividido em dois tópicos. O primeiro tópico irá tratar do contexto histórico cultural
segundo tópico, iremos analisar os textos dos poetas trágicos com o objetivo de
20
Escolhemos as seguintes obras para o nosso estudo: No caso de Ésquilo adotamos a trilogia Orestia, e
das obras de Eurípides escolhemos a peça Orestes.
36
Explicitando a proximidade existente entre a história literária e a história das
idéias, aqui representadas pelo gênero trágico e pela doutrina do sofista Protágoras,
pretendemos mostrar que a filosofia, não está separada da literatura e do teatro. Nesse
início do século V, até a época de Platão. Nosso interesse, de início, é mostrar que a
oradores não é alheia à história da cultura pois, não se trata de um conjunto de idéias
provocadas por ela. Essa experiência inovadora será por nós abordada a partir da
história e de reflexões que nos conectam diretamente com a sofística e com a poesia
trágica. Para nossos propósitos, importa observar que as reflexões antropológicas bem
como as reflexões de ordem política são um aspecto central do teatro trágico grego e
tragédia e suas conexões com a retórica dos sofistas, que era amplamente utilizada nas
assembléias e tribunais.
Para ficar claro, no entanto, que não estamos baseando nossas considerações em
pressupostos que reduzem a tragédia grega a uma parte dos processos históricos, vamos
articular a esta forma de considerar a questão aquela que foi estabelecida pelos estudos
de Louis Gernet e Jean Pierre Vernant, que recorrem à pesquisa filológica solidária da
perspectiva estrutural.
37
Começamos pela observação de alguns fatos históricos. É importante notar que o
período que seguiu ao das guerras contra os Persas, onde a vitória obtida contra o
invasor havia sido comandada por Atenas, foi chamado de "iluminismo grego". Neste
Aristóteles, no seu livro Constituição de Atenas, relata que a vitória obtida na batalha
contra os persas em Salamina (480 a.C) modificou o cenário político grego (XXIII, 1-
5)21. A lei naval de Temístocles (483 a.C), legitimada pelo Areópago, garantiu aos
governo da cidade e o respeito dos gregos. Mais tarde, por volta do ano 462 a.C,
Efíaltes promoveu uma reforma que destituiu o Areópago dos poderes de "tutela da
constituição" e transferiu estes poderes para o povo (XXV, 1-4). Estas mudanças foram
muito importantes durante o processo de instauração desta nova ordem, pois foram
responsáveis pela instauração das assembléias públicas que garantiram aos cidadãos a
liberdade de palavra.
1.3.1- Ésquilo
momento no qual ocorre a democratização da pólis e têm início as reformas que deram
21
Para as datas dos grandes acontecimentos políticos aqui mencionados nós recorremos ao Tableau
Chronologique organizado por Monique Canto-Sperber e Luc Brisson (1997).
38
Para o pesquisador alemão Christian Meier, Ésquilo, nas Eumênides, última peça
da trilogia Oréstia, faz diversas alusões aos conflitos sociais e às reformas políticas do
século V22. Para Meier, nas Eumênides, encontramos uma ilustração mítica dos
acontecimentos políticos que ocorreram no tempo histórico. Nesta peça, Ésquilo faz
política. Para ilustrar esta afirmação Christian Meier oferece como exemplo a aliança de
Atenas com Argos que ocorreu por volta do ano 460 a.C. Para Meier, os versos das
Eumênides, que reproduziremos a seguir, representam uma tomada de posição, por parte
do poeta, em favor desta aliança. Assim, nos versos 668 a 672, Ésquilo escreve:
Coro: "Os homens perguntar-se-ão atônitos (cada um deles prestes a contar as desventuras de seus
semelhantes) quando terminarão suas desditas ou quando poderão ter uma trégua..."
Segundo Meier este é um episódio raro pois, na maioria das vezes, o poeta se ocupa em
vozes do coro (1995, p.113). Outro argumento interessante apresentado por Meier é
aquele onde o pesquisador afirma que o tema central das Coéforas é o destino político
argivos que, num primeiro momento, se recusam a serem governados por "senhores vis"
22
No capítulo intitulado Les Euménides d'Eschyle et l'avénement du Politique, Meier afirma: "C'est un
grand pas dans l'histoire de la civilsation qu'Eschyle met en scène dans l'Orestie: celui qui va de l'antique
et inexorable enchaînement sans fin de la violence à la justice de la pólis; de la justice privée à la
citoyennete; de l'arbitraire des grandes maisons et des indivídus au gouvernement de la cité. Ce dont il
s'agit n'est rien moins que la constitution de la polis par-delá toutes les puissances particulières. C'est lá
en tout cas l'un des aspects les plus importants de la trilogie. Á tel point que dans le dernier quart des
Euménides l'action est intiérement concentrée sur la polis d'Athènes et son ordre nouveau" (1995, p. 116).
39
Nas Coéforas, Orestes é o responsável pela recuperação da honra dos Atridas e
da liberdade dos cidadãos de Argos. Para mostrar o seu desejo de defender a ordem da
cidade, contra a tirania de Clitmnestra e Egisto, Orestes dirige a Zeus a seguinte prece:
Orestes: “Zeus! Zeus! Vela por nós! Parecemos filhotes de uma altaneira águia, privados do pai colhido e
morto nos coleios, nos enlaces de alguma víbora maligna; sós e órfãos, podem ser vítimas da fome
impiedosa, pois nos primeiros dias falta-hes a força para trazerem caça ao ninho onde nasceram. (...)
Protege-nos e brevemente poderás levar às culminâncias nossa antiga casa que nos parece estar em total
decadência!” (v. 325-338).
O que é interessante para nosso estudo é notar que o poeta trágico, ao refletir e
participar da história imediata, nos mostra de que maneira a poesia teve uma função
política. Esta vinculação entre tragédia e política nos indica como a tragédia se insere na
Protágoras.
esta peça representa a liberdade de criação de Ésquilo perante o conteúdo do mito, nela
são temas centrais o julgamento de Orestes e a integração das Erínias, deusas da antiga
Nas Eumênides, é Apolo, o deus de Delfos, que após discutir o crime de Orestes
Atena: “Entretanto, já que a questão chegou a meu conhecimento indicarei juízes de crimes sangrentos,
todos comprometidos por um juramento, e o alto tribunal assim constituído terá perpetuamente essa
atribuição. Apresentai, então vós que estais em litígio, testemunhas e provas – indícios jurados bastante
para reforçar vossas razões. Retornarei depois de escolher os melhores. Entre todos os cidadãos de minha
Atenas, para que julguem esta causa retamente, fiéis ao juramento de não decidirem contrariamente aos
mandamentos da justiça” (v. 638-650).
40
Neste trecho, entendemos que a deusa Atena, ao dirigir o julgamento de Orestes
órgão de poder. Pois, como havíamos dito anteriormente, após a reforma de Efíaltes
(462 aC) o Areópago, que era o órgão máximo do poder e que era controlado pelos
crimes de sangue. Esta reforma de ordem política foi responsável pelo ingresso do povo
(démos) na atividade política. Para nós, este episódio indica que a tragédia exerceu um
Para o helenista francês Jean Pierre Vernant, a tragédia ática está inserida num
quadro social preciso, onde uma nova forma de pensar a política está sendo produzida23.
Segundo Vernant, os mitos de deuses e heróis são apresentados na tragédia para discutir
extrai seus temas mais recorrentes. Estes temas preferidos de Ésquilo estão presentes a
todo momento na trilogia Oréstia. Nas duas últimas peças, Coéforas e Eumênides, o
poeta privilegia como tema o direito do homem em oposição à justiça estabelecida pelos
após a morte de seu pai que foi surpreendido e assassinado por sua esposa Clitmnestra e
23
Vernant logo no início do capítulo intitulado: Tensões e ambigüidades na tragédia grega afirma: “A
tragédia não é apenas uma forma de arte, é uma instituição social que, pela fundação dos concursos
trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos e judiciários” (Vernant, 1987, p. 23).
41
seu amante Egisto. Este crime está inscrito na maldição hereditária que teve início com
o rei Pélops, avô de Agamemnom, que para conquistar um grande reino, matou
traiçoeiramente Mírtilo, que foi seu fiel ajudante. No momento de sua morte Mírtilo
proferiu contra o assassino uma maldição funesta que deveria atingir os descendentes de
Pélops e tal maldição encontraria seu termo com a vingança de Orestes contra os
mesmo instante em que Clitmnestra ordena que as servas do palácio e sua filha Electra
para observar o “ritual funéreo,” que as servas entoam enquanto dirigem-se ao túmulo
neste instante da cena trágica, manifesta-se através da dupla natureza de Díke que é
canta:
“Para os mortais o sucesso é um deus e mais que um deus, entretanto a balança da justiça serena está
atenta e colhe alguns em plena luz, a outros leva mais tarde o sofrimento intenso a noite interminável
ceifa muitos” (Coéforas, v. 75-81).
O que está em jogo nesta cena das Coéforas nos aproxima da discussão jurídica.
Segundo Untersteiner, Ésquilo focaliza no seu teatro o homem que participa desta
discussão no interior de uma concepção do direito que flutua entre procedimentos que
referem-se à justiça de Zeus e à ação humana, que é permeada pela força, ou seja, pela
coerção. Esta flutuação faz com que Díke, a deusa que representa a justiça, apareça na
esfera das ações humanas como um elemento capaz de deslocar-se para o plano da força
42
Nas Coéforas, na cena em que Orestes e sua irmã Electra evocam o espírito do
rainha Clitmnestra e seu amante Egisto, ouvimos a seguinte prece feita por Orestes:
“A Força enfrentará agora a Força e se oporá o Direito ao Direito” (v. 595 - 596).
Ao proferir esta prece, Orestes antecipa o conflito que resultará de sua ação e
que coloca em oposição a decisão dos deuses, pois se, por um lado, o deus Apolo
reclama que Orestes vingue a morte de seu pai, por outro lado as Erínias, deusas
vingadoras de sua mãe, decidem castigá-lo pelo matricídio. Este conflito estende-se
Nesta peça assistimos ao confronto entre a díke das Erínias, deusas da antiga
tradição, e a díke dos deuses novos, Apolo e Atena que representam os ideais da pólis
integração das Erínias, deusas da antiga tradição, a nova configuração social da pólis.
É Apolo, o deus de Delfos, que após discutir o crime de Orestes com as Erínias
“Entretanto, já que a questão chegou a meu conhecimento indicarei juízes de crimes sangrentos, todos
comprometidos por um juramento, e o alto tribunal assim constituído terá perpetuamente essa atribuição.
Apresentai, então vós que estais em litígio, testemunhas e provas - indícios jurados bastante para reforçar
vossas razões. Retornarei depois de escolher os melhores entre todos os cidadãos de minha Atenas, para
que julguem esta causa retamente, fiéis ao juramento de não decidirem contrariamente aos mandamentos
da justiça” (v. 638-650).
43
“Enquanto o tribunal estiver reunido, faça-se silêncio, pois a cidade terá de escutar as leis que aqui e
agora crio para persistirem até o fim dos séculos, graças a elas estes juízes poderão fazer justiça” (v. 744-
748).
Na cena que antecede o veredicto, dado pelo voto dos juízes, Palas Atena
“Proclamo instituído aqui um tribunal incorruptível, venerável, inflexível, para guardar, eternamente
vigilante, esta cidade, dando-lhe um sono tranqüilo. eis a mensagem que vos quero transmitir atenienses,
pensando em vosso futuro” (v. 934-940).
deste modo, instaurar o equilíbrio entre a decisão de Apolo e a vingança das Erínias,
termina gerando uma nova tensão por ter violado uma lei da antiga tradição. As Erínias
“Ah! Deuses novos! Como espezinhais as leis antigas, pois arrebatais de nossas mãos o que sempre foi
nosso! E nós, infortunadas e menosprezadas, faremos com que este solo sinta o peso todo de nosso
rancor!” (v. 1030 – 1035).
Assim, vemos nas Eumênides que, para viabilizar a experiência da vida pública,
valores jurídicos em oposição à antiga tradição religiosa, onde a díke dos deuses antigos
opõe-se à díke dos deuses da cidade24. Reproduziremos aqui alguns versos que mostram
como a deusa Palas Atena, personagem que é responsável pelo julgamento de Orestes,
“Ouvi-me: basta de soluços aflitivos! Não vos considereis vencidas, pois da urna saiu uma sentença
ambígua, cujo efeito é pura e simplesmente dar força à verdade mas sem vos humilhar” (v. 1049-1053).
24
A esse respeito, Vernant observa que: “É sobretudo no plano da experiência humana do divino que se
delineiam as oposições. Não se encontra na tragédia uma categoria única do religioso, mas diversas
formas da vida religiosa que parecem ser antinômicas e excluir-se mutuamente” (Vernant, 1987,p.32).
44
Estas palavras de Atena mostram que a decisão do tribunal não faz desaparecer
as contradições, pois o veredicto repousa sobre tensões que a deusa tenta dissipar
“Jamais me cansarei de tentar convencer-vos de que vos convém aceitar minhas promessas, não quero
que penseis que eu, deusa mais nova, e os muitos habitantes de minha cidade, tivemos a intenção de
expulsar desta terra deusas antigas em vez de homenageá-las. Se venerais a sagrada Persuasão, que faz
minhas palavras parecerem mágicas e cheias de doçura, concordai comigo e sede para todo o sempre
minhas hóspedes” (v. 1167-1175).
Para finalizar nossa rápida incursão pelas Eumênides, julgo importante observar
que, mesmo Atena tendo conseguido persuadir as Eríniias a participarem da nova ordem
encontra sua melhor expressão no vocabulário jurídico utilizado por Ésquilo para
pela ambigüidade e pelo conflito. Um bom exemplo para o que acabamos de afirmar
pode ser buscado na forma dialógica do drama que coloca em oposição o coro e o herói.
1.3.2- Sófocles
Atenas se elevou como a capital política e cultural da Grécia, após ter vencido as
guerras médicas. Assim como Ésquilo, Sófocles foi um cidadão leal à sua pátria.
Encontramos em sua biografia vários relatos que nos mostram o tragediógrafo sendo
45
escolhido por Péricles para exercer funções políticas de destaque. Atendendo aos
recebimento dos tributos pagos pelos aliados de Atenas (Romilly, 1980, p. 87).
Tebas. Na cena de agón entre os personagens Hémom e Creonte, vemos pai e filho
discutirem sobre a legitimidade da lei do Estado quando esta lei é fruto da imposição da
vontade do governante. Relacionando com esta cena os fatos históricos que nos
exercido por seu pai Creonte, utilizando para isso uma metáfora náutica:
Hémom: “Quem julga que é o único que pensa bem, ou que tem uma língua ou um espírito como mais
ninguém, esse, quando posto a nu, vê-se que é oco. Mas não é vergonha que um homem, ainda que seja
sábio, aprenda muita coisa, e não distenda demasiado a corda. Bem vês que nas torrentes invernais,
quando as árvores cedem, os ramos se salvam: quem oferece resistência, perde-se com as próprias raízes.
Do mesmo modo, quem distender a poderosa cordagem da nau e não ceder em nada, há de ficar voltado
para baixo, e navegar para sempre com os bancos dos remadores virados ao contrário” (v. 706-717).
leis da cidade:
Hémom: “Mandarias muito bem sozinho numa terra que fosse deserta” (v. 737-739).
Com esta referência aos textos de Sófocles esperamos ter conseguido apontar os
motivos que nos levam a entender que a discussão entre Hémom e Creonte retrata o
46
testemunho pessoal do poeta, onde a predileção pelo sistema democrático se opõe ao
governo de um só.
No ano da representação de Antígona, que ocorreu por volta de 442 a.C., teve
início a construção do Partenon. Este monumento foi edificado para servir de templo à
deusa Atena, protetora da cidade de Atenas, cujo epíteto expressa, sobretudo, o poder de
324-328).
ação humana ao primeiro plano da obra, fazendo com que os conflitos humanos sejam
exteriorizarem o seu modo de ser, mostram que estão acima das pessoas comuns que
figuras do teatro de Sófocles são nobres porque se erguem com dignidade depois de
golpeadas pela queda trágica (Jaeger,1995, p. 330). É o que acontece com Antígona,
quando ela é condenada por Creonte, rei de Tebas, a passar o resto da sua vida numa
pelo sepultamento de seu irmão Poliníces. Diante da punição estabelecida por Creonte
àqueles que honrassem Poliníces, que morreu como traidor da cidade de Tebas,
Antígona reafirma de forma heróica a justeza do seu ato, invés de evocar a divindade ou
clamar por piedade. Em Antígona, vemos que no cerne do drama sofocliano está o
47
movimento da alma das personagens, cujo ritmo e harmonia se expressam na ação,
conjunto de habilidades voltadas para a prática dos assuntos políticos. A nosso ver a
nobreza do herói trágico, descrita por Sófocles, é a virtude (areté) necessária ao bom
cidadão, tal como a concebe a teoria da educação elaborada por Protágoras no diálogo
procura mostrar ao seu interlocutor que para propiciar aos jovens uma boa educação é
(euharmostia)". Para Protágoras, este estudo será útil durante toda a vida do homem que
almeja ser belo (kalón) e bom (kagatón) quando dele for exigido falar e agir. A
prudência (sophrosýne), uma das virtudes necessárias para aqueles que desejam
necessária ao homem trágico que, por não conseguir entender a ação divina, deve
sempre agir com moderação evitando os excessos (hýbris) para não se ver entregue ao
48
absurdo dos fatos. Por essa razão, a prudência é uma virtude necessária porque o
homem já não pode mais contar com a colaboração dos deuses. Para Sófocles, o
"homem é a medida de todas as coisas", tal como disse Protágoras, porque ele delibera,
ele toma decisões perante as desventuras do seu próprio destino, sem sofrer a
personagens a agirem de um modo determinado. Por isso, podemos dizer que a ênfase
recai sobre a ação humana e não sobre a possibilidade de atuação dos deuses. Antígona
está decidida a prestar as honras fúnebres ao seu irmão Poliníces, mesmo sabendo que,
assim agindo, estaria violando a lei proclamada por Creonte e correndo o risco de ser
condenada a viver numa prisão tumular. Ela segue a sua decisão sem hesitar e sem
esperar o auxílio dos deuses, ou dos homens, pois acredita na grande nobreza do seu
ato.
escolha em meio à múltiplas possibilidades que a ele são apresentadas (1971, p. 73).
Esta forma de conceber a ação humana coincide com a investigação empreendida por
por M. Untersteiner, vemos que essa investigação pertence à terceira seção das
testemunho doxográfico de Plutarco. Esse autor nos mostra em seu livro, Vida de
num ginásio durante as competições de lançamento de dardo (DK 80 A 10). Para eles
49
restava saber se a culpa era do atleta, que ao lançar o dardo feriu e matou
Este modo de refletir e argumentar, que para nós modernos pode causar um certo
arbítrio.
Feitas essas considerações acerca das condições culturais que marcaram o teatro
ao poeta Eurípides.
1.3.3- Eurípides
palco" e o "discípulo da retórica" (Jaeger, 1995, p. 388). O poeta viveu os longos anos
interna da sua pátria. Nessa época, os conflitos entre as facções partidárias alimentavam
mostra a instabilidade dos valores, partindo de indagações que rejeitam o apriorismo das
soluções dogmáticas. Ele faz do seu teatro um porta voz das novas tendências
deusa Palas Atena, que inaugura o tribunal do Areópago para este fim. Esta cena mostra
tal como nos mostra Eurípides. Não há nesta assembléia qualquer menção aos
Grecques au fil des ans, um interessante capítulo a este respeito (1995, p.143). Para ela
a assembléia do povo é um tema que tem importância central para o conjunto da peça,
além de oferecer um sentido novo e moderno no modo de abordar o mito (1995, p. 146).
Podemos seguir aqui concordando com Romilly, que também considera a assembléia do
povo como um reflexo da experiência política vivida por Eurípides. O fato mais notável
que ocorre neste episódio diz respeito ao personagem histórico Cleofonte. Eurípides
cidadãos de Argos, participante da assembléia que julga Orestes e sua irmã Electra.
Durante a assembléia são proferidos quatro discursos, cada orador propõe em seu
discurso uma sentença para Orestes e Electra. O primeiro e o terceiro discursos pedem a
pena de morte para Orestes, enquanto o segundo e o quarto discursos pedem a sua
absolvição.
51
Vamos reproduzir aqui o terceiro discurso que, segundo Romilly, faz referência
direta ao orador Cleofonte. Este terceiro discurso é narrado pelo mensageiro que conta a
Mensageiro: “Depois, levanta-se um homem palavroso, que triunfa pela temeridade, um argivo que não
era argivo de verdade, mas por compulsão, confiante no ruído e na ignara liberdade de falar, hábil, enfim,
para os envolver numa desgraça! É que quando alguém deleitoso em palavras e de pensar malévolo
persuade a multidão, é um grande mal para a cidade! Mas quantos, com inteligência, deliberam sempre
ações nobres, ainda que não de imediato, no futuro são benéficos à cidade. E sob este ponto de vista
devemos considerar aquele que chefia: pois o caso é o mesmo para o magistrado. Esse disse que
executassem a ti e a Orestes, atirando-vos com pedras!” (V.902-914)
Como nos mostra Romilly, Cleofonte é mencionado nas Rãs de Aristófanes, na Paz de
são fornecidos pelos autores da antigüidade indicam que a sua posição política nas
assembléias de Atenas vai contra as idéias defendidas por Eurípides. O fato mais
marcante que mostra claramente a oposição política entre Cleofonte e Eurípides diz
respeito à guerra do Peloponeso. Aristóteles observa que Cleofonte votou contra o fim
distribuindo dinheiro aos cidadãos. Eurípides, por seu turno, elevou a voz contra a
guerra, segundo mostra Romilly, ao fazer alusão a trechos de outras obras do poeta, e
também foi contra a arrogância dos oradores que foram seu contemporâneos.
Nas biografias de Eurípides é comum encontrarmos autores que indicam que ele
foi discípulo de alguns dos principais sofistas, como Protágoras, Pródico e, até mesmo,
doutrinas específicas é certo dizer que, em seus dramas, Eurípides expressa uma visão
25
A aproximação sugerida entre Eurípides e os sofistas aparece nos seguintes autores: Jacqueline de
Romilly (1988, p. 80), Jacqueline Duchemin (1945, p.46), Albin Leski (1971, p.162), Jaeger (1995,
p.388) e Guthrie (1995, p.121).
52
de mundo que é perfeitamente solidária com a formulação antilógica do pensamento,
que consiste em desenvolver posições antagônicas sobre todo e qualquer assunto. Para o
pesquisador alemão Albin Leski, Eurípides, ao romper com a tradição, assim como o
fez Protágoras, passa a utilizar como norma as reflexões geradas pelo pensar que
O mundo visto desta forma não oferece a quem o contempla uma solução unívoca para
1971, p. 162).
entre a apática covardia e os atos heróicos. As ações destas personagens são sempre
marcadas por uma dupla significação. O caso mais notável envolve o matricídio
cometido por Orestes. Este personagem segue as prescrições do deus Apolo, que ordena
que ele mate Clitmnestra, sua mãe, para vingar a morte desonrosa do seu pai, o rei
mesmo sendo divina, leva Orestes aos limites do que é coerente e justo. O assassinato
de Clitmnestra envolve Orestes num jogo antagônico pois ele aparece, ao mesmo
tempo, como ato criminoso e ato necessário; ou, para utilizar as palavras do coro: “agir
bem, praticando o mal, é impiedade ambígua e loucura de homens insensatos” (v. 823-
824).
53
Nos versos 285-287, Orestes nos diz que está ciente que o crime que ele cometeu
foi sugerido pelo deus, contudo, o ato do crime não dependeu do deus, mas unicamente
da sua ação.
“E a Lóxias26 censuro, visto que, induzindo-me a ação mais ímpia , com palavras me encorajou,
humano que leva Eurípides às “antinomias”. Tais “antinomias” marcam a obra do poeta
Antilogias de Protágoras.
Protágoras de Abdera. A formação que ele propõe aos jovens que o procuram consiste
numa espécie de tekhné que se destina a tornar o futuro cidadão hábil em falar,
Para o helenista francês Jean Pierre Vernant, a célebre frase de Protágoras que
diz: "o homem é a medida de todas as coisas" é o emblema da “época trágica” (Vernant,
1996, p. 436). Neste contexto, o homem ao qual se dirige o sofista ensaia a sua
julgar o humano com critérios humanos gera uma visão problemática do mundo que
que uma das facetas desta consciência trágica consiste em mostrar para os espectadores,
26
Outro nome do deus Apolo.
54
através das vozes do coro, os limites da condição humana. Para ilustrar o que dissemos
vamos dar a palavra aos dois poetas. Começamos pelas Coéforas de Ésquilo:
“São incontáveis os males funestos e as feras produzidas pela terra e os monstros perigosos para os
homens soltos nos mares; entre o céu e a terra fulguram muitos astros flamejantes; tudo que marcha e
tudo que alça vôo fala da fúria dos ventos velozes. Mas, quem será capaz de descrever a imensa audácia
que o homem ostenta e as paixões desastrosas das mulheres de coração sempre despudorado, causa
constante de terríveis penas para os frágeis mortais?” (v. 768-780).
“Começo a entoar o meu gemido, ó terra dos Pelasgos, levando à face as brancas unhas, flagelo
sangrento, batendo na cabeça, tributo que é devido à que habita debaixo da terra. Perséfone, a formosa
donzela, deusa dos mortos... Vai-se, sim, vai-se, cessa dos filhos de Pélops toda a geração que, no feliz
palácio, era outrora objeto de inveja! Ai! Ai! Raça de seres efêmeros, de lágrimas cheia e sofrimentos,
vede como à margem do que se espera caminha o destino. Por diferentes penas passa cada homem, ao
longo do tempo! E instável é a vida toda dos mortais" (v.960-965, 975-981).
existência humana. Nestes versos o homem está entregue ao seu trágico destino e a
única solução seria, segundo Ésquilo, entender que “o sofrimento é a melhor lição” (v.
212).
Gernet sugere uma interessante aproximação entre o mito de Prometeu apresentado por
“Muitos milagres há, mas o mais terrível é o homem” (v.332). “Palavras e pensamentos, fugazes
como o ar, e leis a si mesmo ensinou, e do gelo e da chuva inóspitos, de tudo se defende; e assim armado,
nada do que pode acontecer receia. Somente a morte não sabe como fugir”... (v. 357-363).
27
No livro Droit et institutions en Grèce Antique , Louis Gernet nos oferece mais uma análise sobre este
mito. Ele observa que os dons concedidos por Zeus aos homens: respeito (aidós) e justiça (díke), podem
ser vistos como os princípios que participaram das "origens da obrigação jurídica" no quadro de um
pensamento popular muito antigo (1982, p. 15).
55
Nestes versos de Antígona o poeta, ao mesmo tempo que reconhece a existência
de algo grandioso na condição humana, percebe que o homem está exposto à morte que
deuses, completa a obra iniciada pelo titã, concedendo aos homens a justiça (díke),
condição necessária para o advento do mundo político organizado (Gernet, 1981, p. 14).
Protágoras- “Houve um tempo em que só havia deuses, sem que ainda existissem criaturas
mortais. Quando chegou o momento determinado pelo Destino, para que estas fossem criadas, os deuses
se plasmaram nas entranhas da terra, utilizando-se de uma mistura de ferro e de fogo, acrescida dos
elementos que ao fogo e à terra se associam. Ao chegar o tempo certo de tirá-los para a luz , incumbiram
Prometeu e Epimeteu de provê-los do necessário e de conferir-lhes as qualidades adequadas a cada um.
Epimeteu , porém, pediu a Prometeu que deixa-se a seu cargo a distribuição.
(...) Como, porém, Epimeteu carecia de reflexão, despendeu, sem o perceber, todas as qualidades
de que dispunha, e, tendo ficado sem ser beneficiada a geração dos homens, viu-se, por fim, sem saber o
que fazer com ela. (...) Não sabendo Prometeu que meio excogitasse para assegurar ao homem a
salvação, roubou de Hefesto e de Atena a sabedoria das artes juntamente com o fogo (...) e os deu ao
homem. Assim, foi dotado o homem com o conhecimento necessário para a vida; mas ficou sem possuir
a sabedoria política. (...) quando os homens se juntavam, justamente por carecerem da arte política,
causavam-se danos recíprocos... Preocupado Zeus com o futuro de nossa geração, não viesse ela a
desaparecer de todo, mandou que Hermes levasse aos homens o pudor (aidós) e a justiça (díke), como
princípio ordenador das cidades e laço de aproximação entre os homens” (320d- 322c).
que é uma noção necessária que leva o homem a conhecer os limites da sua condição. A
idéia que prevalece, segundo Gernet, é aquela que afirma existirem "dois mundos e duas
raças impermeáveis uma à outra" (1981, p.15). Há a raça dos deuses imortais, seres
dotados de sabedoria e beleza eterna, e a raça dos homens mortais, seres povoados por
e o mito de Prometeu, o campo de ação que deve ser atribuído ao ser humano nas
56
pontuada por reflexões que sempre recorrem aos temas da religião arcaica e os utiliza de
nova antropologia .
e sua participação nos processos históricos e culturais aqui representados pelo teatro de
57
1.4- As cenas de agón e as Antilogias.
No seu livro Entre Mythe et Politique, Vernant observa que para Protágoras o
opor um discurso contrário. O mesmo podemos dizer dos poetas Ésquilo, Sófocles e
agón (1996, p. 437). Tais cenas destacam-se nas tragédias gregas devido à sua freqüente
recorrência e podem ser consideradas como cenas típicas do gênero trágico. A trama
central das cenas de agón tem como objetivo explicitar o conflito trágico no palco e,
Em seu livro L'agon dans la Tragédie Grecque, Duchemin nos mostra que o
primeiro registro literário da palavra agón está em Homero (1945, p.11). Este poeta
utiliza, no canto VII da Ilíada, versos 297-298, a expressão: theíon dysontai agóna, para
designar a "assembléia dos deuses". O termo agón também comparece com muita
freqüência nos tribunais atenienses. Nos discursos dos oradores, como observa
Duchemin, a palavra agón serve para nomear o processo no qual uma causa é exposta a
consagrada por Protágoras, era uma ferramenta muito útil para os oradores vencerem os
58
Protágoras, que já se faz notar na própria etimologia desta palavra28 , nos leva a tecer
agónes timetoí os processos nos quais a pena não era fixada previamente, e aplicava o
termo agónes atímetoi aos processos que eram caracterizados pela pré-determinação da
pena. Esta distinção é importante porque determina a estrutura dos discursos. Nos
agónes atímetoi, por exemplo, encontramos um total de quatro discursos, onde aquele
que apresentava a queixa tinha o direito de réplica e quem fazia a defesa tinha o direito
quinto e o sexto discursos tratavam de discutir a pena do acusado e podia ser proferido
neles presentes, enquanto não encontram seu termo na proclamação da sentença final,
grande ajuda aos oradores, quando estes buscavam persuadir em favor das suas teses.
mostravam suas novas habilidades guerreiras numa reunião da Eclésia que ocorria nos
28
Ver a nota da página 24.
59
No teatro, como vimos anteriormente, as peças tratavam das questões políticas
da cidade. Neste sentido, podemos dizer que os tragediógrafos não foram indiferentes à
eloqüência dos debates oratórios que ocorriam nos tribunais. Para confirmar esta nossa
“A presença de um vocabulário técnico de direito na obra dos trágicos sublinha as afinidades entre os
temas prediletos da tragédia e certos casos sujeitos à competência dos tribunais, tribunais esses cuja
instituição é bastante recente para que seja ainda profundamente sentida a novidade dos valores que
comandaram sua fundação e regulam seu funcionamento. Os poetas trágicos utilizam esse vocabulário do
direito jogando deliberadamente com suas incertezas, com suas flutuações, com sua falta de acabamento:
imprecisão de termos, mudanças de sentido, incoerências e oposições que revelam discordâncias no seio
do próprio pensamento jurídico, traduzem igualmente seus conflitos com uma tradição religiosa, com uma
reflexão moral de que o direito já se distinguira, mas cujos domínios não estão claramente delimitados em
relação ao dele” (1987, p.16).
passagens dos textos de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Utilizaremos como critérios para
Segundo Duchemin, não podemos classificar como cena de agón toda cena de
debate, visto que a cena de agón é definida tanto pelo confronto de dois pontos de vista
contraditórios, como pela presença da simetria entre as falas das personagens que
participam do duelo oratório29. Tal simetria é estabelecida pelo emprego dos versos
29
A simetria dos versos é estabelecida pelo tempo que cada orador tem para discursar. Esta contagem do
tempo é análoga à que ocorre nos processos jurídicos onde, o tempo é marcado pela clepsidra.
60
com freqüência nas falas comuns e em cenas de discussões e, raramente, é empregada
nos diálogos líricos ou diálogos musicais. Nestes diálogos líricos, prevalecem os versos
curtas, onde ocorre a mudança do pé métrico que passa do tetramêtro trocaico, ritmo dos
diálogos líricos, ao trímetro iâmbico30. Essa última forma de versificação é a que mais
se aproxima da fala comum, ao contrário das partes líricas, por isso é o verso que
Na história da tragédia, esta é a primeira peça onde o agón lógon aparece em sua
forma embrionária. Este tipo de debate aparece em Ésquilo de uma forma muito
diferente com relação ao agón lógon presente nas obras de seus sucessores Sófocles e
Eurípides. Segundo Duchemin, nas peças de Ésquilo sempre encontramos uma última
as regras necessárias para ser classificado como uma cena de agón, onde encontramos
30
As características primordiais de cada metro podem ser representadas pela variação da sílaba larga e da
sílaba breve. Seguimos a legenda estabelecida por Easterling e Knox, onde temos: - =sílaba larga; v =
sílaba breve; x= sílaba larga ou breve (1985, p. 947) .No tetramêtro trocaico temos a seguinte variação
rítmica: -v-x / -v-x / -v-x / -v-. Para o trímetro iâmbico encontramos: x-v- / x-v- / x-v-.
31
Remetemos aos anexos, ao final desta dissertação, onde faremos uma exposição esquemática da
estrutura geral das peças, colocando em evidência as cenas típicas, os diálogos e os cantos.
61
diferentes. Podemos dizer que estamos diante de uma relação ideal para a confirmação
da nossa hipótese. Contudo, além dos pontos levantados, esta cena do Agamêmnom
cena imediatamente anterior, encontramos o corifeu desafiando Egisto para uma luta de
espadas. Egisto aceita o desafio e desembainha a sua espada dizendo que não teme pela
própria morte. Prontos para o duelo, eles são interrompidos por Clitmnestra que pede
aos inimigos que evitem mais derramamento de sangue (v.1934-1947). Ao que parece,
os dois inimigos acatam o pedido da rainha e trocam a batalha armada pela luta de
antitética, como num jogo oratório, aproximam-se do método discursivo das antilogias
tal como era praticado por Protágoras, onde prevalecia as duas formas contraditórias de
falar sobre qualquer tema. O que está em jogo neste cena é o futuro político da cidade
planos de Egisto, aparece o descontentamento dos cidadãos de Argos, que não aceitam
ser súditos de um assassino que pretende governar a cidade por meio de uma sucessão
ilegítima.
62
2ª POSIÇÃO: O corifeu contesta a afirmação de Egisto menosprezando a sua
promessa de vingança que será subestimada pela vingança de Orestes, herdeiro legítimo
do trono de Argos.
3ª POSIÇÃO: O corifeu adverte Egisto dizendo que o seu tom sarcástico não
prevalecerá por muito tempo.
O antagonismo entre as partes é expresso pelas duas réplicas de dois versos que
que tem início com a exposição sumária da tese e depois da antítese, não esgota o
a partir da trama da peça explicitar sua posição, que se contrapõe à posição do corifeu:
Atreu, o pai de Agamêmnom, cometeu uma falta contra Tiestes, pai de Egisto.
Por esta razão, Egisto está vingando seu pai. O direito de Orestes ao trono fica
enfraquecido pelo crime de seu pai Agamemnom que matou a própria filha, Ifigênia. De
certo modo Egisto pretende assumir o poder "em nome" de Clitmnestra, que quer vingar
a morte da filha. Egisto, enquanto amante da rainha, encontra-se numa posição análoga
contra sobre o mesmo tema praticada por Protágoras e seus discípulos, ou seja, este
Nas Coéforas, segunda peça da trilogia Oréstia, não encontramos, nos diálogos
peça não nos oferece elementos significativos para os nossos propósitos. As cenas de
discussão entre Orestes e sua mãe, a rainha Clitmnestra, no momento em que este se
preparava para matá-la e, assim, vingar o assassinato de seu pai, poderia dar lugar à uma
cena de agón. Contudo, a discussão entre as duas partes resulta num duelo dramático e
não num duelo oratório, produzindo uma cena patética. Quando Clitmnestra deixa de
peça termina com os primeiros delírios de Orestes que começa a ser atormentado pela
(v.1351-1380).
atenienses32.
representado por uma das Erínias e o deus Apolo. A atitude agressiva do corifeu está
relacionada com o longo discurso de Atena que antecede à cena de agón. A deusa
pelas antigas deusas. A reação do corifeu contra Orestes incita o deus Apolo a
dois adversários afirmam por duas vezes, sob aspectos diferentes, a divergência entre
32
Remetemos ao anexo 2, onde apresentamos a estrutura geral das Eumênides seguindo o mesmo
esquema utilizado na peça anterior.
64
suas opiniões. A construção do debate contraditório é marcado pela exposição simétrica
dos diferentes pontos de vista. Vejamos de forma antitética, esse duelo oratório.
Nesta cena de agón convém ressaltar que a repetição das contradições presentes
entre as partes. Mais uma vez o duelo oratório não encontra uma resolução final, visto
que, na seqüência desta cena, a deusa Atena interrompe a discussão sem apaziguar os
65
que atravessam toda a trilogia Oréstia. Desde o assassinato cometido por Clitmnestra no
Agamêmnom, passando pela vingança de Orestes nas Coéforas, até o julgamento final
duas teses adversas. Essa progressão interna das contradições na trilogia esquiliana
encontra seu termo através do agón judiciário final que envolve o julgamento de
Abdera. Esta breve incursão pela trilogia esquiliana nos permite dizer que esta peça
mostrar Hegel, a Antígona é uma peça de conflitos e antíteses entre a lei natural
(defendida por Antígona) e a lei positiva (representada por Creonte). Na tentativa de dar
sepultura ao seu irmão Poliníces, Antígona insere este tema central da peça na esfera da
legalidade, pois vemos que o seu comprometimento com a obrigação sagrada de efetuar
o ritual fúnebre se identifica com a justiça divina (lei natural) que entra em conflito com
as leis dos homens. Este conflito entre as duas formas de moralidade que atravessam a
vida comunitária dos homens na pólis fora posto em voga pelos sofistas Protágoras e
33
Em suas reflexões os sofistas apresentam explicações muito distintas sobre a origem da legalidade.
Protágoras defende que as leis educam os homens tornando-os “melhores e mais honestos” aptos para a
vida de cidadão, visto que: “Da mesma forma que procede o professor primário com os alunos que ainda
não sabem escrever, traçando com seu estilete as letras e depois pondo-lhes nas mãos a tabula, e os obriga
a escrever de acordo com o modelo apresentado: assim também prescreve leis a cidade, criadas por
antigos e virtuosos legisladores” (Prot. 326d-328a).
Por sua vez, Antifonte critica as leis da cidade ao afirmar que “as prescrições do justo segundo a lei estão,
na maior parte do tempo, em conflito com a natureza”. Para apoiar sua crítica Antifonte prossegue
dizendo que o direito oriundo da lei: (...) ”deixa a vítima sofrer o ataque e o agressor atacar” (...) E,
quando ele traz o castigo, ele não está mais do lado da vítima do que do lado do culpado; pois a vítima
66
Outro tema importante, já discutido anteriormente, é a demonstração da
autonomia individual da heroína na sua relação com a pólis e o seu rompimento com a
presença atuante dos deuses, visto que, ainda que Antígona leve em conta um dever
sagrado, ela age livremente, sem ser coagida por fatores alheios à sua decisão pessoal.
Antígona e Creonte. Esta cena, como observa Duchemin, nos mostra a tendência
mesmo tempo, em oposição aos demais personagens da peça, cujos traços típicos são
profundamente diferentes dos seus. A este propósito Leski tentou mostrar, que, nas
personagens.
deve persuadir aqueles que infligirão o castigo que ela é realmente a vítima, ela deve se defender para
poder obter a justiça, enquanto permitimos ao culpado recusar estas acusações”.
34
Remetemos ao anexo 3 para a estrutura formal da peça.
67
1ª CONTRAPOSIÇÃO: Antígona discorda de Creonte dizendo que todos os
cidadãos de Tebas pensam como ela, contudo, eles não dizem o que pensam com medo
de serem castigados pelo rei.
6ª POSIÇÃO: Creonte contesta dizendo que foi um traidor da cidade que morreu
priorizando, deste modo, os interesses políticos e não o interesse particular ligado às
causas da família.
68
8ª POSIÇÃO: Creonte apresenta sua objeção dizendo que nem mesmo no mundo
dos mortos um inimigo poderá se transformar em amigo.
9ª POSIÇÃO: Creonte responde, num tom sarcástico, dizendo que Antígona vai
defender o seu ponto de vista no único lugar onde isto é possível, ou seja, no mundo dos
mortos, pois, na cidade, uma mulher como ela não tem o direito de defender suas
opiniões.
cena de agón. Dentro da disputa de argumentos, que envolve a defesa das leis escritas
em contraposição à defesa das leis não escritas, encontramos uma outra controvérsia
relacionada ao modo com o qual Creonte julga a atitude dos dois irmãos combatentes,
individual dos personagens que, para defender suas convicções pessoais, não recuam
Antígona é expresso por uma série de argumentos paralelos que propiciam a defesa dos
dois pontos de vista contraditórios. Neste sentido, podemos dizer que Antígona e
sepultamento de Poliníces.
entre os pontos de vista de Creonte e Hémon. Nesta cena, tal como na primeira, as
segunda cena de agón dois longos discursos, semelhante às epidéixis praticadas pelos
sofistas, que antecedem o jogo de réplicas breves. Estes discursos epidíticos revelam, no
69
seu decorrer, a rivalidade que desponta entre pai e filho. Quando, finalmente, os dois
adversários partem para a contraposição dos argumentos, como num duelo oratório, eles
2ª POSIÇÃO: Creonte volta a afirmar que Hémon, durante seu longo discurso,
mostrou ser um aliado de Antígona.
6ª POSIÇÃO: Creonte, com muita hostilidade, afirma que o seu filho possui "um
caráter vil".
6ª CONTRAPOSIÇÃO: Hémon assegura que, num futuro próximo, seu pai será
forçado a mudar de opinião.
7ª POSIÇÃO: Creonte responde dizendo que Hémon não tem chances de mudar
o rumo dos fatos, pois sua noiva, Antígona, irá morrer.
70
7ª CONTRAPOSIÇÃO: Hémon refere-se à sua própria morte mostrando que
ainda pode interferir no plano de seu pai, mas Creonte não compreende e interpreta a
sua fala como uma ameaça .
8ª POSIÇÃO: O mal entendido desperta a cólera de Creonte que chama seu filho
e adversário de "arrogante".
Esta segunda cena de agón ocorre durante o terceiro episódio da Antígona. Nesta
cena, assistimos ao confronto entre Creonte e seu filho Hémon, que vem, em nome da
razão, defender a causa de Antígona, sua noiva. O jovem príncipe não alcança o que
deseja e em meio à longa cena de debate, que o opõe frontalmente aos excessos
praticados pelo seu pai, ele expressa suas predileções por resoluções moderadas.
Creonte não cede aos apelos de seu filho e responde com muita violência às réplicas
apresentadas por Hémon. Este clima de hostilidade entre os dois debatedores faz com
que a disputa de argumentos não atinja uma conclusão final visível. Esta estrutura do
agón, cujo desfecho não é fixado no final do debate, propicia à peça um certo clima de
71
segundo debate agonístico da peça, podemos aduzir que esta cena é a que mais se
exposição dos dois pontos de vista opostos antes da sua confrontação final numa
disputa. Com estes elementos, que foram herdados dos debates retóricos que ocorriam
de Eurípides. Este último, ainda que tenha inovado na esfera da técnica dramática e no
campo dos temas e idéias, herdou de Sófocles a estrutura do agón lógon em sua forma
mais acabada.
estabelecido por Sófocles. Na peça Orestes temos um confronto entre três personagens:
confronto, alterando a disposição formal desta cena, acrescenta uma grande inovação na
Menelau, marcada pelo jogo de réplicas curtas, introduz e estimula o debate seguinte.
Este debate, que envolve Tíndaro e Orestes, é também uma cena de agón. Nesse
segundo debate, a estrutura dos discursos é modificada pelo poeta que substitui as
réplicas curtas pelos longos discursos, que são simétricos e intercalados por dois grupos
de dois versos cantados pelo coro. Essas modificações introduzidas por Eurípides na
estrutura formal da cena de agón, estrutura esta que havia sido fixada por Ésquilo e
35
Veja-se o andamento da peça através do quadro esquemático, no anexo 4
72
O motivo do litígio, nos dois debates sucessivos e entre as duas partes, diz
respeito ao julgamento de Orestes pelo crime cometido. Ele está sendo julgado pelos
como Orestes defende a própria vida contra a sentença de morte apresentada por
1ª POSIÇÃO: Tíndaro protesta contra Orestes dizendo que ele deve ser lapidado.
sua irmã. Tíndaro toma parte no debate tentando, de início, persuadir Menelau a voltar-
se contra Orestes que, por sua vez, toma parte no debate, defendendo-se das acusações
difícil entrelaçar as réplicas dos três personagens, pois a atitude omissa de Menelau,
ainda que tenha impulsionado a discussão, rompe com o ciclo das réplicas
contraditórias. Contudo, os dois debates sucessivos devem ser considerados como uma
73
combinação de dois agónes sucessivos. O agón, nesta peça de Eurípides, preenche todos
mestre de "virtude política," ensinando aos seus discípulos a técnica discursiva das
inicial e por isso não hesitamos em afirmar que: na tragédia o agón lógon, enquanto
antilogias de Protágoras.
74
CAPÍTULO 2
Quantos Antifontes existiram e, dentre eles, qual ou quais exerceram o ofício de sofista?
Se for verdade que existiram diversos Antifontes, como distribuir entre eles as inúmeras
obras e testemunhos doxográficos que chegaram até nós? Essas perguntas nos permitem
pensar nas dificuldades que devemos resolver quando vemos os antigos e modernos
leitores de Antifonte oscilando entre duas posições extremas: para uns existiram vários
Antifontes, para outros existiu um único Antifonte. Tucídides, Platão e Xenofonte nos
Antifontes aparece pela primeira vez no século II da nossa era, na obra do gramático
Hermógenes, a crítica moderna, que tem início no século XVIII, passa a distinguir com
muita confiança figuras homônimas que escreveram obras com o mesmo título,
reconhecendo uma variedade de estilos. Neste momento, não há quem defenda a tese
unitarista.
Hunt e B. P. Grenfell, que surge a objeção àqueles que defendem a distinção entre os
uma proposta inusitada que pretende marcar como insolúvel a questão da identidade de
75
Antifonte; assim, a indecisão prevalece como sendo o resultado final de muitos
trabalhos.
adotada pelos antigos. Para esse fim, utilizamos as edições canônicas organizadas por
H. Diels, W. Kranz e Louis Gernet, que defendem a distinção entre dois Antifontes. Na
utilizamos a notável edição inglesa organizada por J.S. Morrison que, por defender a
tese unitarista, reúne num único volume todos os fragmentos, testemunhos e discursos
pesquisadores que tiveram acesso ao novo papiro. Convém observar que vamos
desenvolver a nossa análise antes de nos posicionarmos sobre a questão estudada. Ainda
muitas das posições que são adotadas com relação a Antifonte dependem de concepções
a priori estabelecidas a partir do texto de Hermógenes, o que nos leva a discutir questões
passos que traduzem nosso princípio heurístico, acreditamos que no momento final
76
Cuando se acerca el fin, ya no quedan imágenes del recuerdo; solo quedan
palabras. No és extranõ que el tiempo haya confundido las que alguna vez me
representaron con las que fueron símbolos de la suerte de quien me acompanó tantos
siglos. Yo he sido Homero; en breve, seré Nadie, como Ulisses; en breve seré todos:
estaré muerto.
Borges: El Inmortal.
2.1.1- Tucídides
relato do vigésimo primeiro ano da guerra, menciona Antifonte como um dos mentores
persas. Essa aliança é importante como fato histórico, por ter determinado a submissão
dos atenienses aos interesses de Dario, rei dos persas, que, para salvar a cidade de
persuadir o povo a aceitar as exigências do rei. Písandros, que, segundo Tucídides, “era
argumentos” (VIII, 53-54). Písandros obteve o apoio intelectual de Antifonte que “entre
todos os atenienses dedicou mais tempo ao assunto”, elaborando os projetos de lei que
Tucídides demonstra sua grande admiração por Antifonte ao dizer que ele:
... “foi um homem que entre todos os atenienses contemporâneos não perdia para qualquer outro em valor
e demonstrava uma superioridade incontestável na concepção e expressão de suas idéias; embora não
comparecesse à assembléia nem participasse voluntariamente de qualquer debate público, Antifonte era
suspeito às massas por causa de sua reputação em matéria de eloqüência; na verdade, ninguém era mais
capaz do que ele de ajudar nos debates dos tribunais ou na assembléia quem quer que lhe pedisse o
patrocínio. Mesmo em causa própria, quando mais tarde os Quatrocentos foram depostos pelo povo e
estavam sendo tratados rudemente (ele era acusado de haver ajudado a instaurar aquele regime), Antifonte
apresentou indubitavelmente a melhor defesa jamais pronunciada por alguém até o meu tempo, num
processo em que a sua própria vida estava em jogo” (Tucídides. VIII, 68-69).
enquanto mestre de retórica. Plutarco, em seu livro Vida dos dez Oradores, menciona
distinto dos outros homônimos; contudo, tal distinção não aparece no texto de
Tucídides.
Ainda que não nos seja permitido afirmar com segurança que houve entre eles
uma relação do tipo mestre e discípulo, podemos seguir os estudos empreendidos pelos
36
Mais adiante veremos que o testemunho de Tucídides representa para os modernos uma fonte
indiscutível para distinguir o Antifonte orador do Antifonte sofista tendo como argumento o critério
político.
78
influência exercida pela filosofia de Anaxágoras e pela retórica de Antifonte37. De um
lado, Tucídides orienta seu pensamento tendo como princípio as “causas inteligíveis”
como fonte de explicação dos fatos e fenômenos. Por outro lado, Tucídides, ao se
ocupar da “virtude política” e dos assuntos da cidade, principais objetos de pesquisa dos
O destaque que o historiador concede aos discursos em sua obra reflete o grande
valor do uso público da palavra na vida política de seu tempo. Assim, mesmo
os deixa de lado e explica aos seus leitores que a sua eloqüência escrita está subordinada
“Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades quando estavam prestes a desencadear a
guerra ou quando já estavam engajados nela, foi difícil recordar com precisão rigorosa os que eu mesmo
ouvi ou os que me foram transmitidos por várias fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as
palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, considerando os
respectivos assuntos e os sentimentos mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, embora ao
mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto possível ao sentido geral do que havia sido dito”
(Tucídides, I, 22).
que forma o livro I da sua obra, Tucídides segue de perto as lições de Antifonte ao
37
Alfred e Maurice Croiset ao tratarem do estilo dos discursos escritos por Tucídides fazem a seguinte
observação: “Thucydide voit les deux thèses qui ont été em lutte, et il les présente au lecteur
succcessivement dans deux discours-types, qui s’opposent l’un à l’autre comme deux pladoyers contraíres
dans les Tetralogies d’Antiphon” (1900, p. 438).
79
eloqüente” de Tucídides se assemelha à construção dos argumentos oratórios
Tetralogias são fictícios, enquanto Tucídides constrói seus discursos fictícios apoiado
em fatos reais. Para Alfred e Maurice Croiset, a divisão do discurso em partes bem
emprega o modelo mais simples de divisão: exórdio, narração e epílogo, sem deixar de
lado a rigorosa conexão entre essas partes, tal como procede Antifonte nas suas
análise desses procedimentos formais empregados por Tucídides leva Romilly a dizer
que para conceder maior clareza aos seus relatos o historiador sempre recorre a uma
”exposição indireta”, ou seja, a um discurso. Ela enfatiza que o método empregado por
Tucídides na composição dos discursos é crucial para entendermos a atitude deste para
Nesse ponto reside, segundo a helenista, aquilo que distingue Tucídides de seus
“antilogias” inaugurado por Protágoras e elaborado com sutis arremates por Antifonte
capítulo, ela posiciona Tucídides como o herdeiro direto do método discursivo das
“antilogias” presente em Antifonte que, por sua vez, foi o herdeiro direto de
Protágoras38.
Romilly observa que só é de fato possível “sustentar sobre todas a questões teses
opostas39”, através de uma tékhne, de uma “arte” muito precisa; a “arte” de mostrar que
paralelas e inversas”. Essa seria, segundo Romilly, a lição primordial que Protágoras
ensinou para Antifonte e Tucídides que, como bons discípulos, souberam aumentar a
maneira bastante natural dos princípios postulados por ele. Não há dúvidas de que pôs
alguns deles em prática, e sejam quais forem, são aqueles que, em graus diversos,
poderemos evitar a sensação de que uma técnica precisa e sutil rege a sua composição”
38
Na nossa opinião, o estudo de Romilly pode ser chamado de “genealogia histórica das antilogias”. Uma
genealogia muito esclarecedora e conveniente, pois, se seguirmos as cronologias estabelecidas pela critica
recente para situar o momento em que Protágoras, Antifonte e Tucídides escreveram suas obras veremos
que há realmente uma diacronia que nos permite pensar que entre eles houve um processo de filiação
legítima e não bastarda, um diálogo direto sem mediações.
39
Como está explícito no testemunho de Diógenes Laércio que assim define as “antilogias”. Cf.
fragmento: DK 80 A 51).
81
As “antilogias” que foram compostas por Tucídides, por serem “a forma retórica
mais vizinha” das Tetralogias de Antifonte, merecem a nossa atenção. Por essa razão,
passamos a comentar uma das “antilogias” de Tucídides, que também foi analisada por
Romilly40. Escolhemos para a nossa análise a “antilogia de Camarina”, que está situada
comandantes rivais seguem para a cidade de Camarina com o objetivo de obter o apoio
dizem que todas as alianças que eles estabeleceram com as cidades da jônia baseiam-se
na “livre escolha” dos seus aliados eles estão mentindo. O que de fato acontece nessas
condição de súditos”.
40
Romilly observa que encontramos uma variedade de antilogias na obra de Tucídides. Seguindo a lista
das antilogias apresentada por Romilly encontramos, logo no livro I, os discursos de Naupacto; no livro
III temos os discursos de Cleon e Diódoto; no IV temos os grandes debates entre Nícias e Alcibíades,
entre Hermócrates e Atenágoras e, também, o debate entre Hermócrates e Eufemos; no livro VII,
Tucídides finaliza sua série de “parelhas de discursos” com os debates da última batalha.
41
Escolhemos um trecho diferente do que foi selecionado e analisado por Romilly, tendo em vista o
conteúdo acentuadamente “antitético” dos discursos dos oradores.
82
“Não foi pela liberdade que os atenienses enfrentaram os persas, nem a obtiveram para os
helenos, nem os helenos para si mesmos; na realidade, eles lutaram para escravizar todos os outros, e
todos os helenos para mudar de senhor [não para um de inteligência menor, é verdade, mas inteiramente
voltada para o mal”] (VIII, 77).
ateniense Êufemos se defende dizendo que Atenas obteve o seu império de maneira
legítima, lutando contra a submissão imposta pelo Rei dos persas. Ele observa que as
constituem uma prova segura que garante a validade dessa sua afirmação.
“Não diremos em frases bonitas que merecemos exercer a hegemonia porque derrotamos
sozinhos o Bárbaro ou porque enfrentamos mais perigos pela liberdade desses povos (jônios) que pela de
todos os helenos, inclusive a nossa, mas ninguém pode ser censurado por tomar precauções assecuratórias
de sua própria sobrevivência. Agora, estando aqui por causa também de nossa segurança, vemos que os
vossos interesses são os mesmos que os nossos. Provamo-vos isto com as calúnias destes homens e com
as suspeitas que vos deixaram alarmados em relação a nós, pois sabemos que as pessoas suspicazes por
temor excessivo podem deleitar-se no momento com discursos lisonjeiros, mas depois, na hora da ação,
tratam de seus próprios interesses” (VIII, 78).
Tucídides já é suficiente para detectarmos que esse confronto dos argumentos segue
todos os moldes do agón lógon, sendo fiel ao modelo das disputas judiciárias que
Antifonte narra nas Tetralogias. Nas Tetralogias as causas fictícias apresentadas por
Tucídides aproximam-se das tetralogias de Antifonte, visto que elas assumem, desde o
“jogos sofísticos,” representa, segundo Romilly, o interesse que ele tinha em seguir a
“moda dialética”. Na nossa opinião, seria mais apropriado sugerir, como fizeram Alfred
Croiset e Maurice Croiset, que Tucídides segue a “moda dialética” porque ela lhe
oferece uma verdadeira técnica de análise. Uma técnica que lhe permitiu examinar com
83
rigor as razões que interferem na escolha de soluções possíveis, ainda que elas sejam
contraditórias (1900, p.435). Se ele visa ser imparcial, por acreditar que a
enquanto método de análise que ele consegue se afastar de suas preferências e idéias
observação: essa atitude adotada por Tucídides nos revela que para ele é mais
argumento do que julgar. Ou ainda, podemos dizer que Tucídides oferece a nós, que
Somos, de fato, os verdadeiros árbitros das disputas oratórias que Tucídides reproduz
nos discursos que fazem de sua obra um modelo eloqüente da prosa grega nascida no
século do clacissismo.
84
2.1.2- Platão
Fúnebre, gênero moral, Sócrates faz referência à escola de Antifonte, onde ele ensinava
orador que deverá pronunciar a oração fúnebre (234a-b)42. Sócrates critica as orações
tradicionais porque os oradores se ocupam em iludir seu auditório, “elogiando até quem
que morreram” e utilizando “termos tão variados” que são capazes de deixar os ouvintes
“enfeitiçados” (234c-235a–c). Ele enfatiza que em tal situação o orador não terá
dificuldade em obter êxito perante o seu auditório, pois ele deverá elogiar os atenienses
oração fúnebre, Sócrates prova ao jovem Menéxeno que esta tarefa não requer
preparação e muito menos um grandioso conhecimento. Sócrates afirma que tanto para
42
A data de composição do Menéxeno coincide, segundo Guthrie, com um acontecimento histórico
(Guthrie, 1988, p. 303-305). A celebração fúnebre mencionada por Menéxeno, no início do diálogo e por
Sócrates, quando este improvisa sua oração fúnebre, deve ser associada ao elogio público destinado aos
mortos da Guerra de Corinto que foi pronunciado depois da promulgação do tratado de Paz de Antálcidas,
em 387.
85
ele, que estudou retórica com Aspásia, “professora de retórica que preparou excelentes
oradores, como Péricles”, quanto para aqueles que “receberam uma instrução menos
aprimorada por terem estudado retórica com o Ramnúsio Antifonte” é fácil obter êxito
referência aparece no Menéxeno, para nós, é certo que nela não está incluído o terceiro
homônimo, “Antifonte o poeta trágico”. O mais significativo é que esse dado oferecido
por Platão não foi utilizado pelos contemporâneos de Antifonte, para distinguir dois
prestígio. Entre os doxógrafos antigos, apenas Plutarco, no livro Vida dos dez oradores,
figurar ao lado de Aspásia como um personagem muito bem construído por Platão e que
foi escolhido para desempenhar um papel muito instigante. A primeira impressão que
temos, quando nos encontramos com essa passagem, é reforçada pelo comentário
elaborado por Guthrie a respeito da mesma. Para esse pesquisador, nessa passagem, a
retratar com desdém Antifonte, concedendo-lhe, como mestre de retórica, uma posição
86
inferior à de Aspásia, sendo que, perante os atenienses, ele foi considerado o melhor
No entanto, acreditamos que a interpretação desse texto exige mais do que uma
pode ser entendida como um desdobramento das idéias expressas por Platão sobre a
atenção para a reordenação das concepções gerais da arte de falar apresentadas por
Platão, nesses diálogos, tendo em vista a questão relativa à composição dos discursos.
Em seguida, voltaremos nossa atenção para o Menéxeno buscando identificar o que teria
passagem 454b uma das definições da retórica apresentada por Górgias como resposta à
manifesta?”
Em sua resposta, Górgias afirma que a retórica trata dos assuntos humanos que
são discutidos nas assembléias e tribunais. E, numa tentativa de explicitar sua definição,
43
A interpretação dessa passagem do Menéxeno, assim como a interpretação do restante do diálogo,
envolve muitas dificuldades, visto que muitos especialistas duvidam da autenticidade desse diálogo.
Coletar o veredicto dos principais helenistas que estudaram esse diálogo é uma tarefa que foi realizada
exaustivamente por Robert Clavaud em seu livro, Le Ménexène de Platon et la rhétorique de son temps.
A peculiaridade da pesquisa empreendida por Clavaud consiste em analisar, desde Aristóteles até chegar
em seus contemporâneos, todas as alusões ao Menéxeno, apresentando uma extensa bibliografia crítica
desse diálogo. Na segunda parte desse livro, “La Rhétorique du Ménexène”, no capítulo L’Atelier des
Orateurs, encontramos uma importante análise da passagem em que Antifonte é citado. Como
pretendemos buscar uma mensagem positiva e não apenas uma brincadeira irônica nessa passagem em
que figura Antifonte, decidimos seguir os passos de Robert Clavaud (Clavaud, 1980, p.263-301).
87
Górgias acrescenta: “nestas discussões que têm lugar nas assembléias e tribunais a
Mais adiante, Sócrates sugere que existem dois tipos de persuasão: uma que atua
pela crença e outra que tem como fonte o conhecimento. Górgias ao concordar com esta
proposição é levado a responder a seguinte pergunta: “De qual dessas persuasões se vale
conhecimento?”(454e)
sua tese: ”Então, ao que parece a retórica é artesã da persuasão que promove a crença,
Dito isto, Sócrates continua o diálogo com Górgias buscando confirmar, através
de exemplos ilustrativos, que a retórica não abarca conhecimento algum, sendo por isso
uma mera habilidade. Tal habilidade, segundo Sócrates, é utilizada para “adular”,
“agradar” e pode ser adquirida por experiência (empeiria). Para Sócrates, a retórica diz
aos homens o que eles desejam ouvir e o que é agradável de ouvir, ao invés de informar
empreendidos pelo sofista Górgias para definir a virtude de sua eloqüência. No entanto,
88
política praticada por ele, num quadro que nos faz lembrar as críticas às orações
que, falando para um público “tão ignorante quanto eles”, procuram persuadi-lo “com o
elogio do mal apresentado como bem” a “praticar o mal em lugar do bem”, conclui que
é por cultivar a mentira ao invés da verdade que a retórica é vista por muitas pessoas
como “uma simples rotina”. Na passagem seguinte, Fedro diz estar de acordo com as
conclusões alcançadas por Sócrates e solicita ao amigo que analise a retórica enquanto
conduzir as almas por meio da palavra”, tendo em vista “não apenas os discursos
Mais adiante, Sócrates passa a considerar os discursos dos tribunais dizendo que
injusto”, faz parecer “ora justas ora injustas as mesmas coisas às mesmíssimas pessoas”
(261d). Tendo obtido o consentimento de Fedro, Sócrates afirma que é através da “arte
da controvérsia”, cuja aplicação é “genérica para tudo o que se fala”, que os oradores
89
Ao utilizarmos essas passagens, onde Platão condena o procedimento dos
oradores do seu tempo, para ilustrar a proximidade da crítica à retórica feita no Fedro e
diálogo, com a oração fúnebre improvisada por Sócrates, defendendo que o diálogo não
é uma peça satírica, pois foi escrito para mostrar as diferenças entre os valores e as
politikoí (249e), nos autoriza a aproximar os três diálogos e também nos auxilia a
compreender o papel desempenhado por Antifonte e sua relação com Aspásia (Clavaud,
1980, p. 90). Com muita cautela, Clavaud busca desfazer os abusos cometidos pela
maioria dos helenistas que acreditam que o leitor do Menéxeno deve dispor de uma “arte
singular” para discernir por detrás da menção a Antifonte uma menção a Tucídides,
tendo em vista uma relação entre mestre e discípulo justificada pelo testemunho de
personagens históricos que não figuram nele pressupõe, erroneamente, que Platão
44
Seguimos a pesquisa de Clavaud que menciona os veredictos que foram apresentados por
Schleiermacher, Wilamowitz e Wichmann, onde prevalece uma valorização das figuras de retórica
atenuando o tom da ironia socrática (1980, p. 45-46).
45
Em sua Vida dos dez Oradores, Plutarco cita Cecílio, dizendo que esse autor consagrou uma biografia a
Antifonte e nela “deduziu” que Tucídides foi seu discípulo. Este testemunho de Plutarco pertence à
coletânea de fragmentos do “Antifonte orador” que foi editada por Louis Gernet (1954, p.26-30).
90
pretendeu enfatizar nesse diálogo “uma querela entre pessoas e não uma querela de
Platão como exemplo de uma genuína “querela de idéias”, visto que o orador
discursos políticos que foram criados na oficina de oradores como Aspásia e Antifonte.
Na passagem 236b, Sócrates, antes de improvisar sua oração fúnebre, diz ao jovem
Menéxeno que tinha se encontrado com Aspásia. Nesse encontro, Aspásia declamou
para Sócrates uma oração fúnebre, cuja composição incluía “uma parte feita de
utilizou passagens da “oração fúnebre que Péricles pronunciou” para compor o seu
46
Este equívoco aparece em Dionísio de Halicarnasso que, entre os diversos escritores que compõem a
crítica antiga do Menéxeno, apresenta, pela primeira vez, uma filiação entre Platão e Tucídides. Com essa
filiação, Dionísio de Halicarnasso pretende inferir uma segunda alusão a Tucídides. Para Dionísio, através
do personagem de Péricles, apresentado como um dos excelentes oradores que foi aluno de Aspásia,
Platão estaria mencionando Tucídides, que reproduziu, em sua obra, a famosa “Oração fúnebre de
Péricles”. Tendo em vista essa identificação entre o filósofo e o historiador, Dionísio interpreta a oração
fúnebre improvisada por Sócrates no Menéxeno como sendo uma “imitação” da oração fúnebre de
Péricles presente em Tucídides (Clavaud, p.26-27, 1980).
47
Como vimos, para Platão, não há oposição entre as várias modalidades de eloqüência pública porque
todas elas podem ser definidas pela rubrica dos lógoi politikoí. É importante retomarmos essa observação
porque essa classificação única dos discursos públicos apresentada por Platão já não aparece em
Aristóteles que, no livro II de sua Retórica, classifica os discursos públicos em três gêneros: deliberativo,
jurídico e epidítico. Em contrapartida, no gênero epidítico, Aristóteles não faz nenhuma distinção entre
epitáphios e enkomíon (Aristóteles, livro I, 1358 b).
91
utilizaram para a composição dos seus discursos. Como exemplo, podemos pensar,
como nos sugere Clavaud, que Platão, ao escolher Antifonte como personagem, estaria
se endereçando à escola dos lugares comuns, onde estudaram oradores como Lísias,
Iseo e Andócides, em oposição à escola do estilo que foi dirigida por Górgias 48 (1980,
passagens que cada orador dispunha para adaptar seus discursos a diferentes contextos.
tanto pela divisão bem marcada do discurso em partes, como o proêmio, a narrativa, a
dessa utilização mecânica dos lugares comuns aparece no final do último discurso da
que recorrem a um argumento de ordem religiosa para despertar o temor nos juízes,
48
Essa observação de Clavaud nos leva a pensar que, no Menéxeno, Platão dirige sua crítica tanto aos
oradores do passado como aos oradores do presente. Nicole Loraux, em seu livro A invenção de Atenas,
confirma o que acabamos de dizer: ”No Menéxeno, Platão não critica apenas o epitáphios de Péricles –
que louva a democracia hic et nunc – mas, igualmente, e de maneira mais generalizada, a oração fúnebre
de sua época e, com ela, todos os panegíricos de Atenas, onde o Estado nunca extrai sua glória de seus
próprios feitos mas, muito aristocraticamente, da exaltação dos ancestrais (Loraux, 1994, p.206).
49
No proêmio, Antifonte apresenta o tema a ser discutido pelas partes dizendo que dois indivíduos, um
jovem e o outro um homem de mais idade, começam a lutar depois de uma discussão. O indivíduo mais
jovem é muito mais forte e mata a golpes com o próprio punho o seu adversário. Para se defender da
acusação ele busca provar que o seu adversário foi o primeiro a agredir com golpes obrigando-o a lutar
para se defender. Segundo Antifonte, nos discursos de defesa e de acusação “a argumentação consiste em
uma incriminação recíproca” (Antifonte, p. 88, 1954).
92
dizendo que o culpado precisa ser punido para não haver nenhuma mácula que possa
“Com esse temor, pensai que vosso papel é absolver aquele que é puro [quanto àquele que está maculado
pelo assassinato, remetei-vos ao tempo para descobrir e aos pais da vítima para castigá-lo]. É assim que
vós respeitareis mais a justiça e a religião” (Antifonte, Tetralogia G , D).
O trecho acima citado foi retirado da edição bilíngüe editada por Louis Gernet50,
que, no aparato crítico, nos explica que a frase que está colocada entre colchetes é um
lugar comum que está deslocado do seu contexto, pois o culpado é conhecido e tenta se
livrar da culpa com argumentos que o tornam inocente, puro aos olhos dos juízes. Por
essa razão, a frase que está entre colchetes é desprovida de sentido porque os juízes não
sobre esse trecho da última Tetralogia. Para ele, a frase que Gernet colocou entre
inocente, que levou Gernet a julgar este “lugar comum” externo ao texto e, ao mesmo
trechos que muitas vezes não possuíam a “harmonia do detalhe” (1980, p. 270-271).
entendermos porque Platão cita Antifonte. Esses procedimentos, adotados por Antifonte
ao praticar a logografia, são condenados por Platão no Menéxeno. Isso explica porque o
50
GERNET, Louis. Antiphon Discours. Paris: Belles Lettres, 1954.
93
filósofo é tão severo com Antifonte situando-o abaixo de Aspásia como um orador de
segunda ordem.
Para finalizar nossa incursão pelo diálogo Menéxeno, voltamos a dizer que a
mera referência feita por Platão ao demo de Ramnous, ao qual pertencia Antifonte, não
94
2.1.3- Xenofonte
que Sócrates teve com “o sofista” Antifonte. Xenofonte relata que ocorreram três
é a rivalidade entre Sócrates e Antifonte no que diz respeito à educação dos jovens
idéias morais defendidas por eles. Por essa razão, vamos delimitar nossa análise ao
primeiro diálogo.
aos seus discípulos como o modelo de vida mais detestável e miserável, que merece a
reprovação até mesmo de um escravo. Antifonte critica Sócrates por não cobrar pelas
suas lições, pois o dinheiro é essencial para “tornar a vida mais livre e mais prazerosa”
Sócrates inicia sua réplica “examinando mais de perto” aquilo que Antifonte
considera tão penoso na sua maneira de viver. Sobre o pagamento pelas aulas de
filosofia, Sócrates acredita que, não recebendo dinheiro, ninguém o obriga a “dialogar”
com quem ele não queira. A extrema simplicidade da sua dieta e de seus trajes serve
51
Seguimos a edição brasileira da coleção “Os pensadores” (1999, p. 111-114) e, também, consultamos a
edição bilíngüe grego-italiano organizada por Mário Untersteiner (1962, p. 11-23).
95
“prazeres mais doces que proporcionam vantagens contínuas”. Dito isto, Sócrates
“Se for necessário servir aos amigos, ou à pátria, quem para tanto terá mais disposição, aquele que vive
como eu ou aquele que leva o tipo de vida de que te vanglorias? Quem fará a guerra mais à vontade,
aquele que não pode dispensar uma mesa suntuosa ou aquele que se contenta com o que tenha à mão?
Quem capitulará mais depressa, aquele que tem necessidade de iguarias difíceis de obter ou aquele que se
contenta com os alimentos mais triviais? Pareces acreditar, Antifonte, que a felicidade é a nobreza e o
luxo. De mim, penso que de nada necessita a divindade. Que quanto menos necessidade se tenha, mais
nos aproximamos dela. E como a divindade é a própria perfeição, quem mais se aproximar da divindade
mais perto estará da perfeição” (Memoráveis, I, VI).
juntamente com o uso do adjetivo “sofista” empregado por Xenofonte na primeira frase
figuras homônimas. O Antifonte descrito por Xenofonte foi objeto de grande discussão
entre os helenistas modernos. Ainda que não seja este o lugar para estudar em todos os
seus detalhes a posição adotada pela crítica moderna, adiantaremos aqui as análises que
histórico.
helenistas, selecionou, no balanço final do seu estudo, um apanhado que reúne mais de
do adjetivo “sofista”, Untersteiner reafirma a tese defendida por Gigon de que o termo
oposição a “poeta”, servindo de denominação comum tanto para os sofistas como para
96
os filósofos da natureza52. Gigon também concluiu da análise dos Memoráveis, que o
deduzem que o papel representado por Antifonte cabe tanto ao orador quanto ao sofista,
uma vez que o suposto Antifonte “orador” também foi um mestre de retórica54.
dois personagens.
diálogo reproduzido no texto deve coincidir não com a data de composição do mesmo,
mas com o início da atividade literária de Antifonte (Untersteiner, 1993, p. 78; Bignone,
1965, p. 138,139). Esse princípio postulado por eles interfere sensivelmente nos dados
Sendo assim, Bignone e Untersteiner concluem que a carreira literária de Antifonte teve
início antes do ano 438 a.C.. Essa interpretação é ao mesmo tempo clara e obscura,
52
Gigon, 1856, p. 144, apud Untersteiner 1962, p. 16).
53
Eis o comentário de Gigon: “Antifonte non è nulla di piú che um nome, dietro il quale sta il comune
tipo del sofista ostilmente disposto verso Socrate” (Gigon, 1856, p. 165, apud Untersteiner, 1962, p. 11).
54
Von Der Muhll, P., 1948, p. 02; Alterweg, 1955, p. 06-07; apud Untersteiner, 1962, p. 10.
55
Schimidt, 1926, p. 159. Kerferd, G.B., 1955, p. 64. apud, Untersteiner, 1962, p. 11-12.
97
fazendo-nos retornar à indistinção inicial, visto que a cronologia contempla tanto o
A última tentativa para desfazer as aporias dessa questão concentra seus esforços
na interpretação das teses defendidas por Sócrates e Antifonte56. Esse último, nos
tema muito apreciado pela escola socrática, o conceito a ser combatido por Antifonte.
Ele introduz sua moral hedonista para mostrar a inferioridade do modo de vida
representado por Sócrates e sua definição negativa de felicidade, uma felicidade que só
pode ser alcançada através da privação dos bens mundanos. A tendência a interpretar os
“Sócrates cínico”. A sutileza dessa análise consiste em mostrar que Antifonte vem
doutrina que ele expõe no fragmento DK 87B 44, pertencente à obra Da Verdade57.
Sócrates, por sua vez, assume um papel pouco convencional, o que leva os helenistas a
56
É o que M. Untersteiner dedicou-se a fazer no livro, I Sofisti: Testimonianze e Frammenti, onde ele
escreve: “Ora a noi importa soprattutto notare che Socrate contrappone uma sua dottrina al pensiero di
Antifonte. La contrapposizione costituisce il centro di gravita della discussione” 1962, p. 17.
57
Ao discutir os aspectos específicos da aplicação da lei, Antifonte observa:
“Todos aqueles que tendo sofrido uma ofensa se defendem sem ter eles mesmos tomado a iniciativa;
todos aqueles que têm pais perversos e no entanto lhes fazem bem; aqueles que deixam seus adversários
os acusarem sob juramento, mas não fazem a mesma coisas eles mesmos; de todos esses exemplos
poderemos ver que muitos são contrários à natureza: todos implicam que sofremos mais quando podemos
sofrer menos; e temos menos alegrias, quando poderíamos ter mais alegrias; sofremos males quando
poderíamos não suportá-los mais” Antifonte, DK 87 B 44. Tradução nossa feita a partir da edição
francesa editada por Jean Paul Dummont 1998, p. 1007.
58
Os helenistas que, segundo Untersteiner, concedem uma “entonação cínica” à doutrina de Sócrates são:
Altwegg, Dümmler e Joël 1962, p.11.
98
10 de Antifonte59 o mesmo pensamento cínico que Sócrates apresenta, no final do
primeiro diálogo, sobre a perfeição da divindade que deve ser imitada através de um
materiais. É claro, observa Untersteiner, que o fragmento não expressa uma idéia
defendida por Antifonte, mas sim uma polêmica desenvolvida, primeiramente, contra
Górgias60. Ainda sobre o papel desempenhado por Sócrates, nesse capítulo dos
profissional cercado por discípulos. Segundo Taylor, a atividade exercida por Sócrates,
nos últimos vinte anos de sua vida, não corresponde à que é descrita por Xenofonte.
Perante essa constatação, Taylor mostra que no último diálogo Sócrates refere-se aos
estudo”. Para Taylor, este dado indica que Sócrates, antes de se tornar um “diretor de
grupo as obras dos antigos sábios61. É o estudo de Taylor que, segundo Untersteiner,
resolve o “problema árduo“ das fontes de Xenofonte. Resulta desse estudo que o
que já havia passado pela crise juvenil retratada na passagem 97b do Fédon, mas ainda
59
“Não tendo necessidade de nada: aquele a quem não falta nada e dispõe de tudo. Deste fato, não falta
nada, não recebe nada a mais, mas é ilimitado e não necessita de nada.” Antifonte, Da Verdade. DK 87 B
10.
60
A esse respeito observa Untersteiner: “Antiphon offre une interprétation synthétique du concept
gorgien sur la divinité lorsque, se référant à dieu, il declare: “il n’a besoin de rien ni ne reçoit rien de
persone, mais il est infini [et, puisque ce qui est infini est contradictoire et, en conséquence, n’existe
pás”...] Cf: Untersteiner, 1993, p. 54).
61
Taylor, 1901, p. 101; apud: Untersteiner. 1962, p. 13.
62
Segundo Tucídides a guerra arquidâmica foi o primeiro combate entre atenienses e espartanos. Foi
organizada pelo comandante espartano Arquídamos e ocorreu no ano de 431 a.C. (Tucídides, livro II, 87).
99
Seria possível multiplicar os exemplos e as análises. Para o propósito que nos
ocupa, nos contentaremos em acrescentar que nos encontramos frente a dois tipos de
dados: primeiro; Antifonte discute com Sócrates teses que se encontram refletidas em
sua obra Da Verdade. Por essa razão, entra em questão a discussão sobre a autoria da
referida obra. Para os helenistas Mario Untersteiner e Ettore Bignone, que acatam o
testemunho de Hermógenes, que abordaremos mais adiante, essa obra foi escrita pelo
sofista Antifonte e não pelo orador. Esse seria, segundo os helenistas, o dado mais
elementos que estão fora do texto em questão. Logo, é certo dizermos que se está bem
longe da rigorosa clareza postulada por essa teoria que tratou de pôr em relevo a
Xenofonte não permite inferir que esse adjetivo explicita a diferenciação entre o ofício
“logógrafo”. E, no conjunto, os helenistas que citamos acima não diferem quanto a essa
questão.
fatos falem por si mesmos. Ele repele as análises e as explicações e todo o seu papel
100
2.1.4- Hermógenes de Tarso
seguro, pelo menos é o que afirmam os helenistas modernos que usam do seu
não sobre o texto de Hermógenes mas, sim, sobre o texto de Dídimo que é a fonte da
“Quando falamos de Antifonte, aquilo que de início deve-se dizer, como afirmam numerosos
autores como o gramático Dídimo, como isto diz respeito também a nossa documentação, é que existiram
vários Antifontes. Dois dentre eles praticaram a sofística, e sobre isso nós devemos falar. O primeiro é o
orador do qual mencionamos os Discursos Criminais, os Discursos Políticos e todos os seus discursos do
mesmo gênero; o segundo é aquele que dizem que foi adivinho e interprete de sonhos, autor, dizem, das
obras intituladas Da Verdade, Da Concórdia e dos Discursos Políticos”64 (Hermógenes de Tarso. Das
formas oratórias. II, VII. DK 87 A 2).
Assim, tem início no século II da nossa era a explicitação de um dilema que até
então não era relevante para todos aqueles que se depararam com os escritos de
Antifonte. A principal distinção a ser feita começa, na verdade, com uma indistinção.
lista das obras dos dois Antifontes. A observar alguns detalhes dessa lista, vemos que a
interprete dos sonhos. De fato, chegamos ao parentesco comum entre as obras seguindo
101
obras listadas pressupõem, do seu escritor, o conhecimento da “arte da palavra” e o
gosto pela polêmica anti-eleata. Nesse sentido, a indistinção se mostra mais evidente do
próximo trecho do testemunho de Hermógenes, veremos que ele busca outros dados
posição pessoal. Qual o significado dessa posição inusitada que Hermógenes assume
texto que foi escrito na época em que essas questões aparecem pela primeira vez na
cultos do antigo império romano. Talvez nos seja permitido dizer que são essas as
razões que levaram Hermógenes a buscar respostas para tais questões, uma vez que ele
foi um leitor que não recuou perante o mal estar gerado pela leitura de obras tão
diferentes, assinadas por um único autor. É diante de tal embaraço que Hermógenes
prossegue em sua busca por indícios mais seguros sobre a identidade do nosso autor:
“...tendo em conta o que Platão e outros informaram sobre ele, não me encontro, de novo, persuadido por
Dídimo. Pelo testemunho de muitos venho a saber que Tucídides foi discípulo de Antifonte de Ramnous;
ora eu conheço o de Ramnous que é o autor dos Discursos Criminais e quando eu considero o quanto o
estilo de Tucídides é distante dele, e todas as afinidades que ele tem com as expressões da obra Da
Verdade, de novo, não me encontro mais persuadido por Dídimo. De todo modo, quer tenha existido um
só Antifonte, utilizando dois estilos tão distantes um do outro, ou dois, praticando separadamente um, um
estilo, o outro, um outro estilo, é preciso tratá-los separadamente, pois, como dissemos, há uma distância
entre um e outro” (Hermógenes de Tarso, Das formas Oratórias II, VII. DK 87A 2).
102
Hermógenes também não se mostra convencido por esses dados. O que ele
descobre é que as fontes mais antigas, como é o caso de Platão, não fizeram qualquer
diferenciação entre autores homônimos que se interessaram por temas tão próximos.
Menéxeno, onde ele é classificado por Sócrates como um mestre de retórica sem talento,
solução para esse impasse está cada vez mais distante, pois vários autores identificam
Hermógenes que conclui que o estilo do historiador é muito distante do estilo do orador.
Ele percebe claramente a fragilidade dos argumentos disponíveis; por essa razão,
acrescenta a eles o problema do critério estilístico e sobre este concentra sua atenção.
Para isso, Hermógenes está consciente de que é preciso levar em conta todas as
hipóteses, mesmo que elas sejam contraditórias: na primeira hipótese, ele nos mostra
que é preciso considerar que é possível “que tenha existido um só Antifonte, utilizando
do “outro Antifonte” que, no trecho anterior, teve sua produção literária identificada
com o estilo de Tucídides. Com essas observações, Hermógenes passa a defender uma
posição distinta daqueles que afirmaram que o historiador havia sido discípulo do
Antifonte orador.
103
“O outro Antifonte, autor dos livros Da Verdade, não é de forma alguma um
orador político, seu tom é majestoso e inflado, sobretudo porque ele sempre expõe seu
completude. Mas ele não tem realmente uma personalidade, não mais do que um
verdadeiro estilo, e eu diria mesmo que ele tampouco tem talento, a não ser na
aparência, mas, para dizer a verdade, não na realidade” (Hermógenes de Tarso. Das
helenistas modernos como “sofista”, Hermógenes confere a ele o elogio máximo que
um crítico literário dos meios cultos alexandrinos poderia conceder a um escritor. Ele
diz que o estilo de Antifonte é “sublime”, ou seja, possui os elementos necessários para
alcançar o ponto mais alto do discurso, sendo por isso capaz de agir sobre o auditório,
ou ainda, sobre o leitor, através do páthos65. Com esse elogio, Hermógenes reconhece
que Antifonte sabe que é por meio dos discursos sublimes que o orador se encarrega de
mover o páthos, as paixões da alma, alcançando um efeito encantatório que visa tanto
persuadir seu auditório como agradar e entreter. O “estilo sublime” de Antifonte, como
nos mostra Hermógenes, ultrapassa a esfera da persuasão, que é a esfera própria aos
65
Como já observamos, analisar o critério estilístico empregado pelos mais célebres escritores gregos e
avaliar qual dentre eles foi capaz de alcançar o “sublime” é a questão central que percorre as reflexões
dos teóricos da criação literária durante a antiguidade tardia. Como não dispomos do texto integral de
Hermógenes, consultamos o tratado Do Sublime, cuja autoria foi atribuída a Longino, crítico literário que
foi seu contemporâneo. No tratado Do Sublime encontramos a seguinte definição sobre o que vem a ser o
estilo sublime: “... o sublime é de certa forma o ponto mais alto, a eminência do discurso, e os maiores
poetas e prosadores jamais conseguiram o primeiro posto de um outro lugar que daí; e que daí lançaram
eles ao redor do tempo a rede de sua glória” (Longino, Do Sublime I, 3).
104
Hermógenes nos leva a pensar que Antifonte desenvolveu em sua obra uma dimensão
diferente da retórica. Com Antifonte, a retórica passa a ser entendida não só como arte
criadora de persuasão, como a definiu Górgias, ou como meio que pode conduzir tanto
virtude, como afirmou Protágoras: ele acrescenta a essas duas concepções uma
possibilidades que a linguagem oferece para apresentar a realidade. É nesse quadro que
pelo nosso autor. Se recorrermos ao testemunho que encontramos no léxico Suda, onde
Antifonte é descrito como o “cozinheiro dos discursos”, veremos que esta denominação
nos mostra que seu estilo era, de fato, variado e cheio de artifícios (Suda, “Antifonte”.
DK 87 A 1).
negativo, é verdade, mas que nos ensina muito sobre a enorme dificuldade dessa
distinção proposta pelo texto de Dídimo; distinção essa que é retomada e reinterpretada
por Hermógenes que, por sua vez, apropria-se desse texto de maneira crítica,
inaugurando uma nova geração de leitores que irão ler os textos de Antifonte utilizando
como chave para a interpretação dos mesmos a distinção entre dois autores. Mais uma
vez, convém fazer uma ressalva, pois Hermógenes hesita e não conclui com clareza por
105
2.1.5- Flávio Filostrato
nos disso podemos, antes de mais nada, voltar às observações que fizemos na sessão
identidade de Antifonte.
biografia de Antifonte, que, na sua opinião, “chegou a ser o mais capaz dos homens na
arte de falar e nas invenções dos temas”, se ocupa em descrever e comentar os traços
“Conservam-se muitos de seus discursos legais que mostram seu grande poder oratório e todos
os efeitos da arte. Dos discursos sofísticos existem vários, o que está mais completo, dentro das normas
sofísticas, é o intitulado Sobre a concórdia no qual se vê brilhantes máximas filosóficas e um grande
estilo de eloqüência, adornado, além disso, com as flores de um vocabulário poético; seu estilo amplo os
fazem parecer com tranqüilas planícies68” (Filostrato, I, 15).
livro, Sobre a concórdia, que lhe pareceu mais fiel ao gênero dos discursos sofísticos e
66
Filostrato dedica essa obra ao “ilustríssimo cônsul Antonio Gordiano”, nobre ”patrício” romano, que foi
pró-cônsul da África no ano de 230 da nossa era. A partir desse dado, o helenista José M. Riaño,
estabelece, com segurança, que a obra Vidas dos Sofistas foi escrita entre os anos de 230-238 d.C (Riaño,
1981, p. 1389).
67
Convém lembrar que na Vidas dos Sofistas, Filostrato também nos oferece a biografia de Hermógenes.
A partir dessa biografia, podemos estabelecer que Hermógenes escreveu seu tratado, Das formas
oratórias, meio século antes da publicação das Vidas dos Sofistas. Partindo desse dado cronológico,
podemos conjecturar que a biografia de Antifonte apresentada por Hermógenes em seu tratado serviu de
fonte de consulta para Filostrato.
68
Traduzimos esse trecho a partir da edição espanhola. Cf. Filostrato. Vida dos Sofistas. Tradução,
introdução: José M. Riaño Espanha: Gredos, 1981.
106
o impressionou não só pelo valor das idéias, mas, sobretudo, pela qualidade da
essa diferença de estilo que Hermógenes confere sua autoria ao “outro” Antifonte e não
ao Antifonte orador.
Eis o marco divisório entre os dois biógrafos de Antifonte. Ainda que ambos
sente necessidade de dividir a autoria dos “discursos legais” e dos “discursos sofísticos”
entre dois Antifontes, usando como critério a diferença de estilo. Por sua vez, Filostrato
“Antifonte foi morto na Sicília por Dionísio, o tirano, e eu atribuo mais a ele a responsabilidade
de sua morte do que a Dionísio. Costumava criticar pejorativamente as tragédias de Dionísio, apesar de
que Dionísio se sentia mais orgulhoso destas do que de seu poder como tirano” (Filostrato I, 15).
literário” capaz de incitar a ira de um vaidoso tirano a ponto de ser condenado à morte69.
Sobre essa passagem do texto de Filostrato, o tradutor da edição espanhola José Rianõ
observa que esses dados dizem respeito ao poeta trágico Antifonte (Riaño, 1981, p.
1397). Para confirmar sua hipótese Riaño observa que a tirania de Dionísio teve início
por volta do ano 400 a.C., indicando que a cronologia não coincide com aquela
69
Além do testemunho de Filostrato, encontramos na Vida dos dez oradores de Plutarco e na Biblioteca
do lexicógrafo Fotios a mesma confusão entre os dados do sofista e do poeta trágico. Apenas a edição
organizada por J.S. Morrison apresenta o texto de Fotios (2001, p. 119).
107
estabelecida por Tucídides em sua História, onde Antifonte aparece como o mentor do
movimento oligárquico que foi condenado à morte pelos democratas no ano de 411 a.C.
de dados presente nessa passagem, nela escreve a seguinte frase: “Narrativa da morte de
Antifonte, o poeta trágico, na corte de Dionísio” (Morrison, 2001, p. 123). Essa frase é
destinada a justificar a lacuna com mais de vinte linhas feita por Morrisson no texto de
Para nós, tais estudos, ao confirmarem a confusão feita por Filostrato, que funde
aos dados do sofista Antifonte à biografia do poeta de mesmo nome, nos mostram o
caráter impreciso das biografias antigas e nos levam a pensar que não podemos exigir
dessas biografias o mesmo rigor com que são escritas as biografias nos dias de hoje.
Atualmente, entendemos que uma biografia é um escrito sobre uma vida completa, ano
por ano, com datas exatas e documentos. Contudo, quando se trata de um texto de um
biógrafo antigo, temos que ter em mente que esse rigor nunca foi praticado na
autênticos “anedotários”70 .
70
Sobre o tom de anedota das Vidas dos Sofistas de Filostrato, José Riaño escreve:
“Sus Vidas no son biografias en estricto sentido. No hay en ellas continuidad u ordem alguno, sino que
son una coleccíon de anécdotas y características personales. Filostrato estava, como todos los de su clase,
interessado en cuestiones de estilo. Había recogido gran cantidad de información sobre la apariencia
personal, temperamento y fortuna de los sofistas de más êxito, y las grandes ocasiones em que alcanzaron
triunfalmente alguna prueba pública, y nos muestra solamente la grandeza, no las misérias de la
profession” (1981, p. 1386). A este respeito Murray tece um interessante comentário no seu estudo sobre
a biografia de Eurípides:
108
Convém assinalar que estas observações acerca da imprecisão das biografias
“lectures” modernes des sophistes - apresenta evidências que mostram que “a sofística
não tem existência histórica própria”, que este movimento intelectual e literário que
Filostrato71” (Noël, 2002, p. 50-52). Para Noël, um bom exemplo dessa “reconstrução
na época imperial por Filostrato e “reconstruída” pelos modernos muito nos ensina
sobre a importância da reflexão sobre o nosso papel enquanto leitores dos antigos
“Las antiguas Vidas por regla, se limitan a escoger unos cuantos hechos, unos cuantos dichos o discursos
notables; se concentran en los últimos años y, muy a menudo, en la muerte de su protagonista. (...) La
historia, cuando llegó a madurar ya en la atigüedad, era sobre todo una rama de las bellas letras y no se
preocupaba mucho de la exactitud. Piénsese en los Evangelios, en las Actas, aun en la Vida de Agrícola
escrita por Tácito. Estas obras son diferentes entre si, pero todas se distinguen igualmente de cualquier
biografia moderna por su absoluta despreocupación respecto al afán de ser completas” (Murray, Gilbert,
1966, p. 17-18).
71
A este respeito a helenista observa que: “L’ensemble des études modernes sur la sophistique repose sur
la possibilite d’identifier cette dernière avec um certain nombre d’auteurs contemporains de Socrate, à
savoir Protágoras, Xéniade, Górgias, Lycophron, Thrasymaque, Hippias, Antiphon et Critias. Elles
reposent toutes sur la monumentale édition des “Fragmente der Vorsokratiker”, étabili par H. Diels em
1903 – et révisée por la derniére fois par W. Kranz em 1956 -, édition qui comprend une section “Ältere
Sophistik, constituée essentiellement par les témoignages, ouvres et fragments de Protagoras, Xéniade,
Górgias, Lycophron, Prodicos, Thrasymaque, Hippias, Antiphon le sophiste et Critias et quelques traités
anonymes comme les “Dissoi Logoi”. Or, ce corpus ne va pas de soi: le regroupement qu’il propose est le
fruit d’une reconstruction nouvelle de l’histoire de la littérature et de la philosophie grecques élaborée au
cours du XIX siécle. Jusqu’au XX siècle, en effet, les “sophistes” qui seront retenus par Diels se trouvent
dans dês recueils d’orateurs, parfois d’historiens ou de philosophes. Jamais ils ne sont reunis” (2002, p.
45-46).
109
2.1.6- Plutarco
seus concidadãos tendo em vista os debates judiciários. Na obra Vidas dos dez
Oradores, Plutarco nos conta que a inexistência de discursos daqueles que foram os
predecessores de Antifonte indica que ele “foi o primeiro a usar dessa prática”
Plutarco, não redigiam seus discursos porque as circunstâncias, (kairós) indicavam que
era mais vantajoso falar, improvisar. Tendo como fonte a obra que o biógrafo Cecílio da
“Cecílio conjectura que ele foi mestre de Tucídides, o historiador, de acordo com o elogio que
este lhe faz. Sua eloqüência é precisa e persuasiva, hábil na invenção, plena de arte nos casos
perturbadores, sabendo tirar argumentos de uma situação obscura; ela se funda sobre as leis, não visa ao
patético; ela está sobretudo preocupada com a magnitude nobre” (Plutarco, 832B – 834B).
atenção de Plutarco devido a sua precisão ao tratar dos temas que pertencem
incomuns, ou seja, saindo do domínio que é próprio à arte da palavra, mostra qual é o
72
Morrison, na sua edição dos fragmentos e discursos de Antifonte, ao tratar do testemunho de Plutarco,
observa que o crítico literário Cecílio da Galácia, que escreveu no século I a.C. um estudo sobre os
discursos de Antifonte, serviu como fonte de consulta para Filostrato, Plutarco e Fotios (Morrison, 2001,
p. 109). Por seu turno, Laurent Pernot escreve que a lista dos dez oradores áticos apresentada por
Plutarco teve sua primeira aparição na obra, Sobre o estilo dos dez oradores, do crítico Cecílio da Galácia
(Pernot, 2000, p. 57). É importante notar que, uma vez que os escritos de Cecílio não chegaram até nós, a
fonte de que dispomos para reconstruir o cânon dos dez oradores é o léxico Suda, escrito no século X da
nossa era.
110
melhor e mais elegante meio para se chegar à persuasão. Suas análises estilísticas
perturbador e inquietante dos debates judiciários. Para tais ocasiões, seus discursos
reservavam o raro dom da surpresa. Ou, formulando de outra maneira, podemos dizer
que, enquanto escritor, Antifonte concebe que o momento oportuno (kairós) é criado
pelo discurso. Essa formulação ganha ainda maior relevância quando recordamos que na
esfera da arte retórica a relação é inversa, pois o discurso deve ser criado pelo momento
oportuno, que, por sua vez, é determinado pelo acaso. Não deixa de ser surpreendente
desenrolam os debates oratórios. Na nossa opinião, Plutarco nos mostra que, nos
“Ele nasceu no momento das guerras médicas, e foi contemporâneo, um pouco mais jovem, de
Górgias. Ele viveu até a queda da democracia pelos Quatrocentos, da qual ele parece ter participado (...)
ele foi objeto de uma eisangelia em companhia de Arqueptolemos, um dos Quatrocentos; condenado ele
sofreu as penas que puniam por alta traição: seu cadáver foi deixado sem sepultura e ele foi inscrito como
desprovido de direitos cívicos, ele e seus descendentes. Alguns relatam que ele foi executado pelos
Trinta. (...) como aquele que já tinha sido executado anteriormente, na época dos Quatrocentos, teria
vivido de novo na época dos Trinta? Existe ainda uma outra versão sobre a sua morte: já velho, ele fez
uma viajem a Siracusa onde florescia então a tirania de Dionísio o Antigo; um dia, à mesa, tratavam de
saber qual era o melhor bronze, e as opiniões estavam muito divididas: “é aquele, disse Antifonte, de que
foram feitas as estátuas de Hermodios e Aristogiton 73”; Dionísio, suspeitando de um encorajamento ao
tiranocídio, fez executar o autor dessa opinião” (Plutarco, 832B – 834B).
73
Personagens históricos que ficaram célebres por terem lutado contra a tirania (Gernet, 1954, p. 28).
111
É ao reconhecer o absurdo das informações que fazem um único homem morrer
três vezes que Plutarco expõe em seu texto a divergência dos biógrafos que o
antecederam.
Esta observação faz com que o testemunho de Plutarco seja único e a série de
questões que levanta não seja exatamente a mesma colocada por qualquer outro
Plutarco derivam, possivelmente, das várias fontes de consulta que ele utilizou.
Tucídides e Cecílio são as fontes mais utilizadas e que podemos identificar com
facilidade devido à citação direta de suas obras. Plutarco também cita como fonte de
consulta a comédia Pisandro escrita pelo comediógrafo Platão. Nela, segundo Plutarco,
“Dizem que ele também compôs tragédias, sozinho e com o tirano Dionísio. Na época em que ele se
dedicava à poesia, compôs um manual sobre a arte de curar as melancolias, análogo ao tratamento que os
médicos aplicam aos doentes: em Corinto, perto da ágora, preparou um estabelecimento com uma placa
onde ele se dizia capaz de tratar a dor moral por meio de discursos; ele perguntava sobre as causas da
melancolia e consolava seus doentes” (832B-834B).
Este trecho é muito significativo, sobretudo porque os dados que nele figuram
aparecem, pela primeira vez, desvinculados das fontes que até então foram utilizadas.
Plutarco segue seu texto misturando personagens sem, contudo, distingui-los. Ele
Plutarco. Não haveria a cisão ficção/realidade se Plutarco não tivesse, no início do seu
112
morte de Antifonte. Plutarco, ao relatar que Antifonte se ocupou de tratar a “dor moral
por meio de discursos”, depois de o ter descrito como personagem cômico, estaria,
2001, p. 117).
biógrafo que inventou Antifonte como orador, poeta e terapeuta da alma, tal como os
quatro evangelistas inventaram Jesus, ou tal como Platão inventou Sócrates? Isso talvez
seja ir longe demais, mas há nisso uma certa verdade. A exposição de Plutarco revela,
personagem digno de figurar como o primeiro autor no cânon Vida dos Dez Oradores
para as informações contraditórias ele supera as aporias do seu próprio texto. A solução
resultado de tal fusão é como um monumento monolítico que, embora seja esculpido
com distintas ferramentas expressa uma única imagem. Assim, Plutarco, num passe de
74
Morrison ilustra a sua interpretação dessa passagem usando como exemplo o “pensatório” de Sócrates
criado por Aristófanes na comédia As Nuvens.
113
2.2– A crítica moderna
Os Dualistas
sempre prontos a negar as evidências, buscando diluí-las em idéias muitas vezes pré-
concebidas. Podemos distinguir facilmente, entre eles, aqueles que não abrem mão da
prudência em suas análises e aqueles que, mais rapidamente, se apegam aos argumentos
nella storia del pensiero greco, Antifonte Oratore ed Antifonte Sofista e Studi stilistici
apresentado conclusões nítidas e contundentes que nos obrigam a tomar partido. Por
essas razões, nos permitiremos fazer aqui um breve relato das conclusões mais
75
Todos estes estudos foram reunidos e publicados no livro Studi sul Pensiero Antico.
76
A primeira publicação dos fragmentos aparece na seguinte edição: Grenfel B.P. & Hunt, A .S (ed.). The
Oxyrhynchus Papyri, t. XI, London, 1915. Os fragmentos foram publicados por Diels que os organizou
através de colunas abandonando a antiga apresentação até então feita através da discriminação das
duzentos e noventa e nove linhas que compõem o papiro. Ele também nomeou os fragmentos que
correspondem a dois trechos distintos do papiro, usando as letras A e B que acompanham a numeração 87
B44. Esta apresentação tornou-se canônica e foi publicada pela primeira vez em 1935 na já famosa
coleção Die fragmente der Vorsokratiker. Em 1948, Mario Untersteiner edita em seu livro I Sofisti os
114
sofistica nella storia del pensiero greco. A descoberta desse novo papiro representa,
vida política na Atenas de Péricles, além de nos mostrar o ambiente onde “se eleva a
que na lista das discussões empreendidas pelo “sofista” no papiro, ocupa uma posição
de destaque a censura que Antifonte dirige às opiniões mais difundidas na sua época
papel de destaque na vida política e cultural. Bignone considera essa questão como “um
dos problemas mais complexos da literatura grega” (1965, p. 161). Para ele, é o texto de
Hermógenes que, seguindo o gramático Dídimo, explicita que o sofista e o orador não
são uma mesma pessoa. Hermógenes, tendo o problema estilístico como argumento
central para distinguir os dois Antifontes, inaugura a divergência que irá se estender até
fragmentos de Antifonte “sofista”. Untersteiner segue parcialmente a apresentação proposta por Diels,
pois ele acrescenta um terceiro fragmento que, na sua opinião, deve ser atribuído a Antifonte. Em 1998,
Jean-Paul Dumont traduziu para o francês os fragmentos de Antifonte seguindo a edição dos pré-
socráticos tal como a organizaram Diels e Kranz.
77
Com muita engenhosidade Bignone escreve: “Pare quasi si profilino innanzi a noi due persone diverse,
o meglio, come dimostreremo, uno spirito complesso, su cui sarebbe pericoloso dare un giudizio
affrettato” (Bignone, 1965, p. 07).
115
apreciação dos helenistas contemporâneos ele conclui que nenhum dos dados nos
levam Bignone a listar as objeções apresentadas pelos helenistas que sustentam que
“Antifonte orador” e “Antifonte sofista” são uma pessoa só. Na lista de objeções contra
diferentes momentos de sua vida. Croiset conjectura que um único Antifonte dedicou-
se, num primeiro momento da sua vida, ao estudo da filosofia e, só mais tarde, passou a
complexidade da questão exige que seja feito um exame muito atento de todos os textos
e testemunhos de Antifonte que chegaram até nós. Exame que requer o “confronto”
os textos, Bignone segue a lista das obras dos dois Antifontes apresentada por
“De fato o argumento principal, adotado nos dias de hoje, para distinguir os dois Antifontes, é o
argumento estilístico: Hermógenes também se serviu de razões estilísticas para provar a sua declaração”.
[...] “na verdade não se pode excluir absolutamente que um mesmo escritor tivesse dois estilos diversos,
em diversos períodos de sua vida. De qualquer modo, deve-se considerar como um importantíssimo
argumento auxiliar quando se apóia em outros argumentos de índole mais positiva” (Bignone, 1965, p.
167).
116
pelos dois Antifontes na vida política de Atenas. Segundo Bignone, o testemunho
seguro da História de Tucídides indica que o “orador Antifonte” era um aristocrata e foi
o chefe dos oligarcas na conspiração dos Quatrocentos que derrubou o governo popular.
revela que a autoria pertence ao “Antifonte sofista”, encontramos idéias igualitárias que
apresentado por Bignone, mostra que no mesmo papiro “Antifonte sofista” dirige contra
as leis de sua época a “censura mais veemente que já foi feita na história do pensamento
Antifonte, o orador, e Antifonte, o sofista, são, não só duas pessoas diversas, mas de
adverte o leitor que o valor e a importância que devem ser atribuídos ao critério
estilístico não são reconhecidos por muitos helenistas contemporâneos que se declaram
céticos a esse respeito. Ele também observa que, além dos helenistas céticos, existem
determinar a distinção dos dois Antifontes, julgam que esse argumento pode vir a ter um
valor singular se forem apoiados “em outras razões de natureza diversa” (1965, p. 177).
Para Bignone esta é a opinião mais sábia, pois pensar nessas “outras razões de diversa
natureza” conduz à adequação dos alinhamentos estilísticos dos dois escritores com a
117
descrição das suas “personalidades”, cujo reflexo mais nítido encontra-se nas ideologias
judiciários a uma análise filológica minuciosa. Começando pela análise dos “caracteres
principais da língua do orador”, ele diz que o orador foi notavelmente influenciado por
Górgias (1965, p. 181). Seguindo a “prosa de arte” aprimorada por Górgias78, Antifonte
“orador” adota em seus discursos o uso das “antíteses eurítmicas”, acompanhadas das
usado com perspicácia pelo Antifonte, o orador, é muito útil e eficaz quando se trata de
“O orador não se serve das antíteses em vão. Conhece os juízes e sabe que o duvidoso tem profundo
domínio sobre eles. Todas as suas frases devem imprimir-se com força no ânimo de quem as escuta,
trecho a trecho uma única idéia é expressa com duas palavras sinônimas, que, se unindo, tornam o
período abundante e enérgico, forma e artifícios de Górgias, usados mais para jogo, porém infundidos de
novas paixões” (1965, p. 184).
texto do papiro, escrito, supõe Bignone, pelo Antifonte “sofista”. No papiro, o uso das
antíteses é raro, elas aparecem apenas quando são solicitadas pelo tema que explora a
oposição entre nómos e phýsis. A oposição dos conceitos, consoante Bignone, resulta
78
Sobre os elementos mais peculiares da estética gorgiana que influenciaram Antifonte, Bignone observa:
“La nuda prosa, seconda l’estetica di Gorgia, doveva venire in gara con la poesia; doveva crearsene uno
più intimo, con l’opposizione sapiente d’uguali membri del período nei contrapposti: quasi, per dir cosi,
versi logici nella prosa: com le sue rime, le allitterazioni, le consonanze volute, le ricche espressioni
poetiche”.
E sobre a originalidade da prosa gorgiana, Bignone escreve: “Naturalmente Gorgia non fu l’ inventore di
quei suoi artifizi stilistici, usato già, più o meno consciamente, daí prosatori e daí poeti precedenti, ma
egli fece regola di ciò che era eccezione” (Bignone, 1965, p. 181-182).
118
num “paralelismo artificioso”, pois, nesses casos, Antifonte, o sofista, não poderia
concentração afirma decidido sem dar ao pensamento uma personalidade que esteja nas
coisas que diz e na coragem de exprimi-las sem reticências e rudemente” (1965, p. 187).
Com essas considerações, Bignone acredita ter confirmado a tese exposta mais
acima: “com todas as probabilidades Antifonte orador e Antifonte sofista são, não só
Bignone apresenta, com pouca nitidez, uma interpretação que por pretender ser
então apresentadas. 2- Se, por um lado, ele consegue demonstrar com clareza a
diferença estilística entre os textos, o mesmo não ocorre quando a questão incide sobre a
119
2.2.2- Mario Untersteiner
mostra estar inteiramente confiante nos argumentos que foram apresentados por
“Me parece que não é necessário rever com muitos detalhes o problema da identidade, o
essencial já foi resolvido e é absolutamente necessário distinguir dois Antifontes, Antifonte, o sofista e
Antifonte, o orador, sobretudo depois das pesquisas exaustivas e convincentes de Bignone” (Untersteiner,
1993, p. 42).
Até aqui, podemos observar que Untersteiner segue Bignone bem de perto.
“Apenas a personalidade do autor das Tetralogias merece ser considerada” (1993, p. 42).
Untersteiner nos explica melhor essa sua observação dizendo, numa nota, que,
além de indicar que a sua redação pertence à primeira fase da atividade literária de
argumento principal do estudo que serve como prefácio a sua tradução das Tetralogias.
lugar de destaque no mundo cultural em que viveu seu autor, por conseguir ultrapassar
120
as fronteiras entre os gêneros, abarcando, simultaneamente, as esferas da filosofia,
literatura e direito.
peculiar, visto que ele acrescenta ao texto das Tetralogias, cuja autoria ele atribui ao
“Do ponto de vista da história das idéias, a questão de saber se Antifonte, o Sofista, não seria o mesmo
que Antifonte, o orador, revela principalmente uma curiosidade. Nós não vemos fortes probabilidades em
favor da afirmativa” (Gernet, 1954, p. 175).
Antifonte. Para o helenista essas poucas palavras bastam para diferenciar e mutilar a
figura de Antifonte. Para compensar a brevidade da sua declaração, Gernet observa que
tendo em vista a clareza dos testemunhos antigos que “opõem os dois Antifontes” a
“prova” cabe àqueles que sustentam a tese da identidade única (1954, p. 175).
natural encontrar a sofística associada à eloqüência judiciária”, nos mostra também que
121
Os Unitaristas
Todos eles são editores, tradutores e exímios exegetas da obra de Antifonte. Para
sermos leais ao inegável valor de cada argumento apresentado por esses helenistas, que
defendem que “Antifonte, o orador” e “Antifonte o sofista”, foram uma única pessoa,
necessário, segundo Morisson, rejeitar o argumento estilístico que foi apresentado por
Dídimo e citado por Hermógenes, visto que, “devemos esperar diferenças no estilo de
um escritor cujo trabalho inclui discursos e tratados” (2001, p. 110). Morrison, ao listar
as razões que o levaram a desacreditar nos argumentos pouco convincentes, que, desde
Dídimo, foram apresentados para formalizar a distinção entre os dois Antifontes, discute
diretamente com os estudos publicados por Bignone, ainda que a referência a esse autor
Morrison ataca o argumento central que Bignone, com muito apreço, chama de
122
“argumento de índole mais positiva”. Tal argumento consiste em confrontar a crítica às
leis, apresentada no papiro, com a visão convencional das leis presente nos discursos
judiciários. É desse confronto que, segundo Bignone, resulta a distinção primordial a ser
opiniões sobre a vida moral e política ateniense apresentadas no papiro e nos discursos
oposição entre as idéias apresentadas no papiro e nos discursos, não leva em conta que
Antifonte, ao escrever discursos para seus clientes, poderia ou não manter uma atitude
descortinadas a partir da análise dos discursos podem coincidir ou não com a atitude
oposição ao convencionalismo das leis presente nos discursos. Deste modo, ele dilui a
oposição ideológica proposta por Bignone, onde “Antifonte, o orador” é tido como líder
autor singular.
123
2.2.5- Kerferd
“A debilidade do tão evocado argumento estilístico usado para distinguir os dois Antifontes foi, eu penso,
adequadamente exposto por J. S. Morrison, e eu irei me contentar com a menção de sua conclusão: [“a
distinção entre os dois Antifontes não foi marcada antes de Dídimo, é completamente arbitrária e parece
já ter sido rejeitada”]. Mas este não é o fim da questão” (Kerferd, 1981, p. 49).
pode ser analisada de uma maneira que até então havia sido pouco explorada. O eixo da
conteúdo do papiro, mas também opõe a estes as doutrinas dos demais fragmentos. Os
políticas não produz dois Antifontes, visto que, esta oposição reside no interior de um
p. 50).
Antifonte o sofista.
124
2.2.6- Fernanda Decleva Caizzi
sem, contudo, concordar com ele sobre a distinção entre Antifonte, o orador, e
Antifonte, o sofista.
No primeiro volume da coleção Corpus dei Papiri Filosofici Greci e Latini, ela
publica uma minuciosa tradução seguida da análise lexical do texto do recém descoberto
Verdade. Caizzi também propõe uma discussão sobre qual seria a “interpretação mais
helenistas que a precederam nessa tarefa. Neste trabalho, ela também estabelece
inúmeros paralelos entre o conteúdo do papiro e o texto das Tetralogias (Caizzi, 1989,
p. 189).
Antifonte que foram publicados desde o século XIX, observa que os estudos sobre o
tema da identidade deste pensador podem ser opostos e apresentados como antilogias ou
dissói lógoi (Caizzi, 1982, p. 96). Para ela, a obra do pesquisador alemão W. Nestle,
Von Mythos zum Logos, publicada em 1940, é o exemplo extremo das “aporias
fundamentais da quaestio antiphontea”, ilustrando com vigor o que ela chama de “tese
separatista”, ou seja, a tese que estabelece a distinção entre dois Antifontes (Caizzi,
125
1982, p. 97). A posição de Nestle é, de fato, muito inusitada, visto que ele oferece uma
critério adotado por Nestle para estabelecer a separação dos dois Antifontes é dirigido
para a orientação política de cada autor, rejeitando o critério estilístico tão evocado
Antifontes.
Para dar mais dinamismo ao seu estudo, Caizzi considera prudente abandonar o
contribuiu para a aparente vitória da “tese separatista” encontra apoio na oposição das
doutrinas políticas que, para alguns helenistas, deve ser estabelecida após a
“Devemos então perguntar se a crítica a respeito das leis e a concepção de phýis que Antifonte
lhe opõe são realmente inconciliáveis com o espírito e a posição política do inspirador da conjuração
política dos Quatrocentos do qual Tucídides nos fala com tanta admiração (VIII 68). A partir daqui o
problema deverá ser abordado dos dois lados, tentando compreender seja o sentido do papiro, seja a
significação do ponto de vista político e histórico do episódio no qual Antifonte participa; contemplando
o lado filosófico, é fácil dar conta daquilo que justifica a oposição entre o orador e o sofista, a saber, é a
idéia que o fragmento 44 nos coloca na presença de uma teoria do direito natural, ou seja, que se trata de
uma antítese entre um nómos díkaion e uma phýsei díkaion. Neste quadro, Antifonte opõe dois tipos de
justiça, no qual uma é rejeitada por ele, enquanto a outra tem um valor normativo: é, em outros termos,
aquilo que é desejável. Se, todavia, como a maioria dos pesquisadores acredita, a crítica do nomos resulta
numa concepção de justiça natural que lhe faz dizer também que nenhuma diferença de raça existe entre
os homens, identificamos a dificuldade de conciliar esta doutrina com a posição aristocrática ou
antidemocrática (mesmo que seja perigoso identificar a democracia, ao menos a ateniense, com o
igualitarismo), sobretudo se ela é considerada como fazendo parte de um projeto político” (Caizzi, 1982,
p. 100).
sofísticas com o contexto sócio-político no qual elas foram produzidas. Buscando apoiar
seus argumentos na discussão com os mais distintos helenistas, ela nos mostra que
Antifonte apresenta, no papiro, uma definição pessoal de justiça. No entanto, ela adverte
que Antifonte não pretende estabelecer uma oposição entre a sua concepção de justiça
natural com a justiça convencional, pois o objetivo da discussão empreendida por ele é
79
Apresentamos as palavras pelas quais Antifonte expõe a contradição do conceito de justo vinculado às
prescrições das leis positivas, onde o que é justo segundo as leis equivale às ações que oferecem as
maiores vantagens para os homens que as praticam: “ A justiça consiste em não transgredir a lei da cidade
onde exercemos nossos direitos de cidadão. Conseqüentemente, um homem atrairá para si as maiores
vantagens ao praticar a justiça; se é perante testemunhas, que ele se dobre à potência das leis; mas se ele
está só e sem testemunha será segundo a natureza. Pois as prescrições da lei são instituídas, enquanto as
da natureza são necessárias. As prescrições das leis resultam de um acordo mútuo não são naturais, mas
as da natureza, que são naturais, não resultam de um acordo. Portanto, aquele que transgride a lei, se é
sem o conhecimento daqueles que estabeleceram o acordo, escapam tanto da vergonha como do castigo.
Mas não se ele não se esconde. Quanto às normas naturais da natureza, ao irmos além do possível, nós as
violamos; mesmo se isto ocorre sem o conhecimento de todos os homens, o mal não é menor, e se todos o
sabem, ele não é maior. Pois o dano não vem da opinião, mas ocorre de fato. O que explica este problema
é, principalmente, que as prescrições do justo segundo a lei estão, na maior parte do tempo, em conflito
com a natureza” (DK 87 B 44 A).
127
Feita a advertência, Caizzi sugere que, ao seguir esse caminho de interpretação,
é necessário situar melhor a segunda parte do fragmento, onde é exposta a tão discutida
que foi estabelecida por Diels e a sua respectiva interpretação apresentada por Bignone.
Ela propõe uma nova ordem para os dois trechos do papiro que foram encontrados em
da interpretação de Bignone (1982, p. 101). Para ela, o texto indica que cada homem é,
natural entre gregos e bárbaros implique num conceito de igualdade absoluta. O que
Antifonte mostra é que a diferença entre gregos e bárbaros é fundada como diferença
que a doutrina igualitária de Antifonte não apresenta, como afirmou Bignone, elementos
80
Eis o fragmento: “Convém considerar as necessidades que a natureza impõe a todos os homens: todos
conseguem satisfaze-las nas mesmas condições e naquilo que diz respeito a todas essas necessidades
nenhum de nós é diferente, quer seja Bárbaro ou Grego: todos nós respiramos o mesmo ar com uma boca
e um nariz, todos nós comemos servindo-nos de nossas mãos” (DK 87 B 44 B).
81
Apresentamos o fragmento seguindo a nova reconstituição e a tradução proposta por Caizzi: “[...]
conhecemos e veneramos, aquelas [leis] daqueles que vivem longe não as conhecemos e não as
veneramos. Por isto, de fato, adotamos comportamento de bárbaros (bebarbarômetha) uns em relação aos
outros, enquanto que pela natureza em tudo, todos igualmente somos feitos para ser tanto bárbaros quanto
gregos” (DK 87 B 44 B).
82
Em sua interpretação Bignone defende com vigor os ideais altruístas de Antifonte, mostrando que ele
percorre um caminho oposto ao de Cálicles, tal como Platão nos apresenta em seu diálogo Górgias. Nas
passagens 482e-483 a, Cálicles, ao defender a lei da natureza defende também o triunfo do direito pela
força. Para ele, a lei da natureza, ao estabelecer o direito do mais forte oferece aos indivíduos mais
audaciosos as maiores vantagens, estabelecendo entre os homens a desigualdade natural. Para Bignone,
Antifonte, ao defender a igualdade natural entre os homens, estabelecendo o princípio do cosmopolitismo,
depois de ter colocado em evidência as controvérsias do direito positivo, nos oferece a pedra de toque que
permite interpretar a lei da natureza, apresentada no papiro, num “sentido humanitário e sentimental”.
128
qualquer outra coisa, o etnocentrismo dos atenienses. Seguindo a posição de Caizzi,
vemos que a questão colocada pelo fragmento não nos obriga a escolher entre um
Antifonte, o orador, e Antifonte, o sofista, são duas pessoas diferentes, visto que, em
suas doutrinas eles apresentariam duas concepções da política que são completamente
opostas.
identificado com o orador de Ramno elogiado por Tucídides, Caizzi propõe no artigo,
epitáfio que Sócrates improvisa no Menéxeno, ela aponta uma série de referências
polêmicas contra Antifonte. Considerando que o orador Antifonte de Ramno, citado por
Platão, é também autor da obra Da Verdade, cujo papiro foi encontrado recentemente,
ela sugere que existe uma oposição radical entre a noção de phýsis apresentada no
diálogo e a noção de phýsis que encontramos na obra de Antifonte. Ela aponta uma
Assim, na doutrina de Antifonte, a natureza é fundada sobre um princípio igualitário enquanto o Cálicles
de Platão, ao contrário, defende que a natureza é um exemplo de luta desigual de poderes onde os mais
fortes sempre prevalecem (Bignone, p. 70, 1965).
129
entre gregos e bárbaros83. Nessa passagem, o objetivo de Antifonte é criticar os
atenienses que exaltam sua superioridade sobre os bárbaros, mas muitas vezes, adotam
comportamentos típicos desses mesmos bárbaros que eles desprezam84 (1986, p. 294).
Sócrates diz que para os atenienses, “irmãos nascidos de uma única mãe”, “a igualdade
natural da origem obriga a procurar a igualdade política segundo a lei”, Caizzi afirma
nomos”. No lugar da phýsis, que impõe aos atenienses um conjunto específico de leis,
Antifonte apresenta a oposição natureza e lei ao dizer que: “as prescrições da lei são
um acordo mútuo não são naturais, mas as da natureza que são naturais, não resultam de
Caizzi mostra que, na oração fúnebre de Sócrates, a natureza, ao ser atraída para a esfera
da lei, vai confirmar a idéia segundo a qual os gregos de raça pura são puros pela lei e
que os bárbaros são bárbaros pela natureza. Esta idéia se opõe não só à polêmica que
83
Apresentamos o texto de Antifonte seguindo a tradução do primeiro trecho que foi proposta por Caizzi:
“[...] conhecemos e veneramos, aquelas [leis] daqueles que vivem longe não as conhecemos e não as
veneramos. Por isto, de fato, adotamos comportamento de bárbaros (bebarbarômetha) uns em relação aos
outros, enquanto que natureza em tudo, todos igualmente somos feitos para ser tanto bárbaros quanto
gregos” (Caizzi, 1989, p.187-189). Convém considerar as necessidades que a natureza impõe a todos os
homens: todos conseguem satisfazê-las nas mesmas condições e naquilo que diz respeito a todas essas
necessidades nenhum de nós é diferente, quer seja Bárbaro ou Grego: todos nós respiramos o mesmo ar
com uma boca e um nariz, todos nós comemos servindo-nos de nossas mãos” (DK 87 B 44B).
84
Na nossa opinião a atitude bárbara dos atenienses mais criticada por Antifonte é o etnocentrismo que
Sócrates defende com muita convicção na seguinte passagem do Menéxeno:
“Se os sentimentos de nossa cidade são tão generosos e independentes, tão firmes, sadios e, por natureza,
hostis ao bárbaro, é que somos Helenos puros, sem a menor mescla de bárbaro. Entre nós não vivem
descendentes de Pélope, de Cadmo, de Egito, de Dânao e de tantos outros bárbaros por natureza e
Helenos pela lei; como helenos puros aqui vivemos, não como mestiços de bárbaros. Daí o ódio
entranhado que nossa cidade vota a tudo o que é estrangeiro” (Menéxeno, 245d).
130
entanto, ignoram as leis dos outros povos, mas também se opõe ao conceito de
igualdade natural da espécie humana, visto que as funções orgânicas são as mesmas
Para concluir seu itinerário pelo Menéxeno, Caizzi faz ressurgir a dúvida
expressa por Hermógenes que, depois de tomar conhecimento da referência que Platão
dirige a Antifonte no prólogo da oração fúnebre, afirma que não está mais
Inicialmente ela observa que, ao escrever o diálogo, Platão tinha em mente a crítica que
Antifonte endereçava às leis, pois tais críticas desencadeiam uma série de reflexões
(Caizzi, 1986, p.298). As aproximações entre o livro IX, onde Platão discute os
Tetralogias são numerosas, pois, como observa Caizzi, o objeto dos dois textos é o
mesmo: a “legislação penal Ática”. O tema mais discutido, tanto no texto de Platão
131
assassino desperta a cólera do espírito do morto, que, por essa razão, passa a atormentar
Para finalizar sua segunda incursão pelos textos de Antifonte, Caizzi ressalta
que, nas Tetralogias, a aproximação constante entre o domínio religioso e a lei humana
resulta numa equivalência entre as normas do direito e as normas religiosas, visto que as
conseqüências religiosas do ato criminoso deverão ser punidas pelo direito positivo
(1986, p. 300). Concordamos com ela num ponto fundamental: partindo desta
religioso com a esfera do nómos, ou seja, com a esfera da convenção, mostrando que as
normas religiosas não possuem caráter universal86. Aos olhos de Platão, esta maneira de
pensar, que inspirou muitos jovens a seguirem o ateísmo, encontra argumentos que a
confirmam nos escritos “que pertencem aos varões que os jovens consideram sábios,
prosistas e poetas” (Leis, 890a). Neste ponto, observa Caizzi, é que encontramos o tema
da origem do ateísmo que Platão buscou nos textos de Antifonte, embora tenha se
85
Reproduzimos aqui os textos de Antifonte e Platão, onde encontramos o paralelo sugerido pela
helenista italiana. No segundo discurso de acusação da terceira Tetralogia, Antifonte, fazendo o papel de
acusador, implora aos juízes que o culpado seja punido como assassino. Para convencer os juízes
Antifonte utiliza um argumento de índole religiosa: “Em nome do respeito devido à vítima, nós vos
pedimos para acalmar a ira dos espíritos vingadores através da morte do assassino, e purificar assim a
cidade inteira da mácula” (Tetralogia, 7).
No livro IX das Leis, Platão nos diz que se alguém estiver diretamente envolvido na morte de uma pessoa
deve, além de receber o castigo previsto pela lei, realizar purificações, pois: “Dizem que aquele que
morreu de forma violenta, se viveu no orgulho da liberdade, se aborrece com o que lhe foi feito, enquanto
é um morto recente e cheio de medo e terror por causa do acontecimento violento, ao ver que o seu
assassino anda pelos lugares habituais que compartilhava com ele, tem medo e atordoado, atordoa tanto o
assassino como as outras pessoas. Por isso, é necessário que aquele que perpetrou o homicídio evite sua
vítima durante todas as estações de um ano e abandone todos os sítios de sua pátria” (865e).
86
O seguinte trecho do papiro confirma a nossa afirmação: “Nós legislamos para os olhos, sobre aquilo
que eles devem ver ou não ver; pelos ouvidos, sobre aquilo que eles deveriam ouvir ou não ouvir; pela
língua, sobre aquilo que ela deve dizer ou não dizer; para as mãos, sobre aquilo que elas devem ou não
fazer; pelos pés, sobre os lugares onde eles devem andar e aqueles onde eles não devem andar; para o
espírito, sobre o que ele deve e o que ele não deve desejar. Estas ações, das quais as leis afastam os
homens, elas não são em nada mais agradáveis ou mais próximas da natureza, do que aquelas que ela os
incitam a fazer”. O trecho em itálico, segundo a análise de Caizzi, corresponde às interdições de acesso
aos lugares sagrados, prescritas aos que cometeram crimes de sangue.
132
servido deste tema para analisá-lo numa perspectiva contrária. Antifonte ao identificar o
fenômeno religioso com a esfera da convenção, teria proposto, como nos mostra Platão,
que “os deuses são produtos da arte, não da natureza; são produtos de certos costumes e
crenças religiosas, e essas são diferentes segundo a forma que os homens estabeleceram
relação com o texto de Platão. Ao observarmos a posição teórica que Antifonte adota,
tanto nas Tetralogias como nos fragmentos da obra Da Verdade, vemos que esta é
analisar determinados aspectos relacionados com a aplicação das leis, nosso autor
observa que para as vítimas: “a justiça oriunda da lei não é capaz de dar assistência”,
pois essa mesma justiça oriunda da lei “deixa a vítima sofrer o ataque e o agressor
atacar; em seguida, nestas circunstâncias, ela não faz nada para impedir a vítima de
sofrer o ataque. E, quando ela traz o castigo, ela não está mais do lado da vítima do que
do lado do culpado, pois a vítima deve persuadir aqueles que infligirão o castigo que ela
é realmente a vítima, ela deve se defender para obter a justiça enquanto permitimos ao
87
Aristóteles, no livro II da Física, também relata que Antifonte defende a subordinação ontológica da
arte com relação à natureza: “Para alguns autores, a natureza e a essência dos seres naturais, é o sujeito
imanente de cada um, nele mesmo informe: é assim que a natureza da cama é a madeira, a de uma estátua,
o bronze. Isto é o que prova, segundo Antifonte, que se nós enterramos uma cama e se a putrefação
pudesse resultar num rebento nós não teríamos uma cama e sim a madeira, tanto que a disposição
convencional obtida pela arte não é mais que um acidente e que a essência é aquilo que permanece
continuamente sob essas modificações” (Física, II, I, 193a 9).
133
Ao apontar as contradições éticas da lei positiva, Antifonte mostra que o
processo judiciário é condenável do ponto de vista ético porque considera que, tanto o
inocente quanto o culpado são iguais perante a lei, devido à persuasão que coloca o bem
argumento do acusador consiste justamente em mostrar aos juízes que: “Seria de fato
dizer: “Ora, quem, portanto, devia mais verossimilmente atacar a vítima que alguém que
já havia suportado graves ofensas e esperava sofrer ofensas ainda maiores? Nessa
condição se encontra o acusado: a vítima era seu inimigo de longa data e o tinha
processado com numerosas acusações” (Tetralogia A a 5). Nesse caso, podemos supor,
como sugere Caizzi, que a “administração da justiça“ impõe como verdadeiro “aquilo
que parece verdadeiro mas que não o é” (1986, p. 309). Esta predominância do falso
sobre o verdadeiro constitui mais uma prova da cisão entre phýsis e nómos. Esta cisão,
escreve o sofista em seu livro Da Verdade: “as ações das quais as leis afastam os
homens, elas não são em nada mais agradáveis ou mais próximas da natureza, do que
134
Superar esta cisão entre phýsis e nómos, tendo como ponto de partida as teorias
do sofista seria, segundo Caizzi, a tarefa empreendida por Clínias na passagem 890d das
Leis. Nesse trecho do diálogo, Clínias, ao descrever a tarefa do legislador, observa que
esse deve “converter-se em servidor da antiga lei e proclamar que existem deuses”.
Além dessa tarefa, o legislador também deve “ajudar a própria lei e a arte, explicando
que ambas pertencem ao âmbito da natureza, logo, não são inferiores a natureza, e são
Deste modo, o paralelo sugerido por Caizzi entre as obras de Antifonte e Platão
além de contribuir para a demonstração da tese unitarista, nos mostra como as teorias de
No artigo Ricerche su Antifonti, Caizzi pretende analisar qual tipo de lei (nómos)
é criticada por Antifonte no texto do papiro. Ela acredita que Antifonte não apresenta
uma distinção nítida entre lei escrita e não escrita, pois a análise do uso do termo
nomos, tal como aparece na literatura grega do século V, mostra que o termo nómos não
indica uma oposição entre lei escrita e não escrita (1985, p. 192). Nesse contexto, o que
é importante notar é que Antifonte pretende, ao criticar as leis codificadas, abarcar uma
pelas normas que orientam a manifestação do culto. Por essa razão, a religião, ao invés
natureza que, na opinião de Antifonte, seria a única fonte de onde emergem leis
135
Tetralogias pelos órgãos que constituem o corpo humano88. A intenção de Antifonte, ao
endereçar uma crítica tão generalizada às leis, é mostrar que certas ações prescritas pela
lei são hostis à natureza, visto que as prescrições do justo segundo a lei estão, na maior
parte do tempo, em conflito com a natureza, pois resultam em maior dor e sofrimento
àqueles que as praticam, quando seria preferível evitá-los. Para Caizzi, estas idéias de
Antifonte num homem imoral, pois o que ele pretende fazer enquanto logógrafo
profissional é proteger o indivíduo do arbítrio da lei (1985, p. 198). Deste modo, Caizzi
conclui que devemos utilizar a abordagem de tipo evolutivo, que abarca os múltiplos
aspectos das atividades exercidas por Antifonte, para uma melhor compreensão dos
escritos do sofista.
melhor forma de reconstituição para este trecho, Caizzi apresenta-o com as lacunas:
88
Na opinião de Caizzi os seguintes trechos do papiro e da terceira Tetralogia confirmam sua hipótese:
“Nós legislamos para os olhos, sobre aquilo que eles devem ver ou não ver; pelos ouvidos, sobre aquilo
que eles deveriam ouvir ou não ouvir; pela língua, sobre aquilo que ela deve dizer ou não dizer; para as
mãos, sobre aquilo que elas devem ou não fazer; pelos pés, sobre os lugares onde eles devem andar e
aqueles onde eles não devem andar; para o espírito, sobre o que ele deve e o que ele não deve desejar.
Estas ações, das quais as leis afastam os homens, elas não são em nada mais agradáveis ou mais próximas
da natureza, do que aquelas que ela os incitam a fazer” (DK 87 B44 A).
“Me parece que a injustiça deva ser atribuída a quem iniciou a agressão. Ora, não têm verossimilhança as
provas (ouk eikósi tekmêrious) sobre as quais o acusador se funda para pretender que o agressor seja o
nosso amigo. Se, como é natural aos olhos ver e aos ouvidos ouvir, fosse natural para os jovens serem
desmedidos e os velhos serem moderados, vosso julgamento não seria necessário: suas idades bastariam
para condenar os jovens. Mas, na realidade, muitos jovens são moderados, muitos velhos bebem demais e
se deixam levar pela embriaguez: assim a prova não é mais favorável ao acusador do que ao acusado”
(Tetralogia 2).
136
“... os conhecemos e veneramos, aqueles daqueles que vivem longe não os conhecemos nem veneramos.
Nisto, na verdade, nos tornamos bárbaros uns com relação aos outros, enquanto que pela natureza em
tudo, todos igualmente somos feitos para ser tanto bárbaros quanto gregos” (DK 87 B 44 B).
(Caizzi, 1986, p. 62). Caizzi observa que é prudente marcarmos o caráter conjetural da
análise, ao invés de nos contentarmos com uma “mal fundada sensação de certeza”. Tal
atitude, além de ser mais prudente, permite focalizar o problema de um ponto de vista
novo e mais fecundo. Seguindo este método de investigação, ela analisa o uso dos
apenas observa que, no século V, ele era pouco usado para denotar “conhecer”, mas,
mesmo fazendo essa ressalva, ela admite que esta continua sendo a melhor tradução. O
grande desafio é entender o uso do verbo sebein, uma vez que este nos remete aos
Antifonte pode ser tanto às leis, no âmbito religioso, quanto às leis, num sentido mais
geral. Por essa razão, Caizzi acredita que escolher como objeto da frase a palavra “os
deuses” ou a palavra “as leis” não resulta em “variação radical” e não compromete a
Antifonte visa criticar as leis escritas e não escritas, usos e costumes, comportamento e
regras religiosas, Caizzi apresenta como exemplo o argumento utilizado pelo acusador
na primeira Tetralogia.
“Seria de fato impossível demonstrar a culpabilidade dos autores de crimes premeditados, se não
pudéssemos fazê-lo nem baseado nos testemunhos, nem baseado nas verossimilhanças; e é contrário ao
interesse público que este homem, que é impuro e desonrado, penetre nos santuários dos deuses e,
profanando a santidade, se sente na mesma mesa que os inocentes e lhes transmita sua impureza: pois eis
aqui aquilo que produziu as más colheitas e fez fracassar os negócios. Vós deveis, portanto, considerar a
vingança do morto como vossa obrigação pessoal: que apenas sobre o assassino recaia sua impiedade; que
o mal seja para ele e que a cidade seja purificada” (Tetralogia A a 10).
137
O eixo central do argumento mostra que Antifonte, sempre que possível,
trecho acima citado, observa a helenista, Antifonte pretende mostrar que não é de
interesse público que uma pessoa contaminada pelo crime de sangue por ter
transgredido uma regra religiosa, que provém de um acordo estabelecido pelos homens,
seja absolvida pela lei codificada, que também resulta de um acordo (1986, p. 63).
A escolha entre um dos dois termos também deve ser orientada pelo tom
oposição entre natureza e lei. Seguindo o tom polêmico do primeiro fragmento, seria o
segundo Caizzi, pelo contexto histórico em que este se encontra inserido, pois na época
em que Antifonte escreveu sua obra a discussão sobre o relativismo dos costumes e das
oportuna” proposta pela helenista Maria Serena Funghi, que toma como ponto de
ares, as águas, e lugares, escrito por Hipócrates, visa apenas descrever como a distância
Caizzi mostra que é possível estabelecer um paralelo entre estes e o texto de Antifonte
para, enfim, interpretar com mais precisão o termo bebarbarômetha. O uso político-
realidade, não se colocam num nível diferente desses mesmos bárbaros89. Deste modo,
Para finalizarmos nossa incursão pelos estudos de Caizzi, resta-nos dizer que o
nosso estudo aceita como premissa a tese unitarista tão bem defendida por esta autora.
89
Citamos aqui as palavras de Caizzi: “Obiettivo primario della critica è il comportamento dei Greci, che
conoscono e venerano solo i propri déi o le proprie leggi, e cio facendo si comportano come i barbari,
mentre nulla in natura consente di stabilire differenze di valore tra ciò che fa parte del patrimonio
culturale barbaro (1986, p. 65).
139
2.2.7- Bárbara Cassin
papiro e da primeira Tetralogia, tendo como referência a edição italiana organizada por
como ponto de partida para pensar o problema da identidade desse autor. Ela
Bignone, Gernet e da helenista russa Luria, Cassin observa que o resultado desses
oligarca, visto por Bignone e por Gernet como um “humanista” e “moralista amável”, a
um Antifonte “criador do mais antigo sistema anarquista”, como sugere a obra de Luria
(1995, p. 159).
Cassin, tendo em vista o conteúdo ideológico destes trabalhos, propõe o que ela
que o universal da espécie humana é a “politicidade”. Por seu turno, observa a helenista,
diretamente ao exercício da arte retórica, tão apreciada pelos sofistas, e empregada nos
discursos deliberativos das assembléias e nos discursos judiciários dos tribunais. Eis o
exemplifica o princípio da duplicação ao dizer que: “a mesma lei que nos inocenta,
sem que seja necessário, como afirma a helenista, buscar um “álibi” na história (Cassin,
1995, p. 164).
Para conhecer mais sobre a identidade de Antifonte, Bárbara Cassin propõe uma
nova leitura do papiro seguindo um caminho diferente do que foi trilhado pela tradição
interpretativa. Ela pretende mostrar que a oposição entre natureza e lei apresentada no
Cassin qualifica como cômoda e falha permite ao pesquisador estabelecer com maior
141
Partindo dessas relações temáticas, encontramos, no lugar da separação proposta pela
tradição interpretativa, a fusão dos dois Antifontes, que nos leva a não mais distinguir o
orador e o sofista.
marcado pela reflexão acerca das “regras de conduta em caso de conflito”, ou seja,
como o cidadão deve agir no momento em que a prescrição da lei codificada está em
fragmento do papiro ele diz que, na presença de testemunhas, o cidadão deve obedecer
às prescrições da lei, mas quando está só, sem testemunhas, deve seguir as prescrições
da natureza, que sempre estão ligadas ao que é útil e prazeroso; no texto da primeira
Tetralogia, ele reconhece que o crime premeditado é o crime cometido em segredo, cuja
testemunha é a própria morte. Os dois casos, segundo Cassin, mostram que Antifonte
“politicidade” da justiça, pois ele mostra que a idéia de justiça, em si mesma, deve ser
substituída pela idéia de “usos da justiça” (1995, p. 169). Esta é, de fato, uma estratégia
Contudo, afastar Antifonte da doutrina do direito natural é negar sua vocação filosófica.
Para nós, o Antifonte autor do fragmento do papiro, visto como precursor do jus-
judiciários. Sabemos que o fragmento do papiro está incompleto e por isso assume um
tom enigmático que suscita diferentes especulações. Por essa razão, abriremos no final
142
Na seção intitulada, Barbariser: Différence de Nature ou de Culture?, Bárbara
Cassin comenta o segundo trecho do papiro tendo como ponto de partida a tradução e a
análise feitas por Fernanda D. Caizzi (1995, p. 175). O trecho comentado diz respeito à
discutido neologismo bebarbarômetha, que, Cassin traduz por barbarizar. Ela utiliza,
como ponto de partida da sua leitura intertextual, o mesmo trecho do Menéxeno que foi
A análise mais notável feita por Bárbara Cassin diz respeito ao texto de
Eurípides. Na peça Orestes, Cassin mostra que é na cena de ágon onde figuram Orestes,
Tíndaro e Menelau que encontramos a antinomia entre gregos e bárbaros debatida por
Antifonte no papiro. Nesta cena, Orestes tenta persuadir Menelau a votar pela sua
absolvição na assembléia do povo, onde ele será julgado como matricida. Em seguida,
Tíndaro - Salve tu também, Menelau, meu genro! (Olhando para Orestes). Ah! Como é mau não
conhecer o futuro! Eis, junto do palácio, a serpente matricida de olhar dardejante e doentio, objeto do
meu ódio. Menelau, tu diriges-lhe a palavra, a esse homem ímpio?!90.
Tíndaro - Ele, naquilo que ele se tornou, a natureza o teria feito nascer de um mesmo pai!
Menelau - Ela o fez nascer. E se ele está com azar, ele é digno de respeito.
Tíndaro - E às leis em todo caso, não querer ser superior (v. 481-487).
90
Neste trecho, que não é citado por Cassin, consultamos a tradução portuguesa editada Augusta
Fernanda de Oliveira Silva (1982, p. 68). Os demais versos seguem a tradução proposta por
Cassin.
143
Nestes versos, Eurípides, como afirma Cassin, estabelece uma intensa
Tíndaro encarna aquilo que a lei nunca consegue ser, refletindo a crítica de Antifonte,
que afirma que o justo segundo a lei é incapaz de evitar a injustiça. Seguindo essa
analogia, Tíndaro, “ou a justiça do tribunal”, representaria um “elo a mais na cadeia das
da tragédia”, neste caso representada pela maldição que ronda a casa dos Átridas,
confirma a representação do universal legal feita por Antifonte, que utiliza a lógica do
cálculo, não para indicar o que é de fato a justiça, mas para indicar qual seria o melhor
Para concluir sua incursão pela obra de Antifonte, Cassin nos propõe pensar que,
o olho crítico que os atenienses teriam colocado sobre eles mesmos” (1995, p. 187). A
crítica que Antifonte dirige à insuficiência prática e ética das leis e sua repulsa ao
liberal”. O problema a ser resolvido resume-se numa única pergunta: “o que é afinal a
justiça, para o próprio Antifonte?” Cassin responde sem hesitar, para Antifonte, a
“justiça não é e não tem que ser una, eterna e inabalável, como o Ser dos eleatas”. Para
Antifonte a justiça é imperfeita e sua imperfeição não o obriga a buscar na natureza uma
144
solução definitiva e satisfatória91. Assim, Cassin afirma que da identidade de Antifonte,
podemos dizer sem riscos que ele foi um pensador crítico e realista mais do que um
91
Reproduzimos aqui uma frase lapidar de Cassin: “Au lieu de l’aristotélicien “l’art - et la politique aussi
est une tekhné – imite la nature et la parachève”, Antiphon dirait: la nature imite la loi et la parachève, au
point de lui servir de modèle” (1995, p. 189).
145
CAPÍTULO 3
Antifonte foi mestre de retórica e foi por amor à arte de criar discursos
persuasivos que ele escreveu as Tetralogias, discursos judiciários que tratam de causas
logo na época de sua redação e publicação. A partir desse momento, sua influência será
cada vez maior. Nas diversas leituras - traduções, comentários e estudos - que até os
nossos dias já se fizeram de seu texto, as formulações jurídicas ali emitidas são vistas
como problemas a serem resolvidos devido a sua posição inusitada com relação ao
direito positivo ateniense. Além disso, e esse é o ponto que mais nos interessa, o texto
das Tetralogias também é encarado como um trabalho de reflexão que visa explicar o
muito importante, pois mostram que este texto exerceu um grande poder sugestivo em
seus leitores, revelando que cada época compreende o passado de acordo com sua
92
Trata-se de um pequeno “prefácio” que antecede o texto da primeira Tetralogia de Antifonte e que,
supostamente, foi escrito por um gramático anônimo durante o período helenístico, como sugere Alfred
Croiset em seu livro Histoire de la litterature Grecque.
“Antifonte revela onde quer que seja a potência (dynamin) que o distingue, mas particularmente nessas
Tetralogias onde disputa consigo mesmo (autos prós autón agônidzestai); exercita-se de fato expondo
dois discursos de acusação e dois de defesa com sucesso (eudokimôn) na mesma medida em ambos”
(Antifonte, I).
146
própria maneira de pensar. A nosso ver, é através da interação dessas diferentes formas
de leitura que emerge o significado histórico do texto e a imagem literária de seu autor.
um único autor: o Antifonte real, logógrafo profissional e seu alter-ego, Antifonte autor
como demonstrou o helenista francês Louis Gernet93. Para Gernet, a maneira de redigir
e argumentar própria do Antifonte real tem como ponto de partida fatos concretos, como
Antifonte autor das Tetralogias redige seus discursos movido apenas pela imaginação,
Convém aliás acrescentar à observação feita por Gernet, que o que está em jogo
nas Tetralogias não é apenas a adequação das palavras ao fim desejado, adequação esta
93
É muito instigante a posição adotada por Gernet com relação à duplicação da identidade de Antifonte.
Antes mesmo de apreciar essa questão e concluir que os argumentos apresentados a favor da duplicação
são os mais convincentes, Gernet nos mostra que é possível “quadruplicar” a identidade de Antifonte,
tendo em vista a multiplicidade de atividades exercidas por ele. Assim, é possível duplicar a
personalidade do orador distinguindo o logógrafo profissional do mestre de retórica, do mesmo modo que
é possível duplicar a personalidade do sofista distinguindo o filósofo que trata de reflexões especulativas,
do mestre que adota uma atitude prática vendendo sua sabedoria enciclopédica aos jovens que o procuram
(Gernet, 1954, p. 02-16).
147
Do ponto de vista formal, Gernet observa que as Tetralogias são “extremamente
sofísticas”, pois revelam com minúcias os temas e lições mais discutidos pela retórica
dos sofistas.
ocupam lugar de destaque as noções religiosas que nos enviam aos primórdios da
94
Escolhi a primeira Tetralogia mais para cumprir os prazos estabelecidos do que para satisfazer a
proposta inicial do meu projeto, onde proponho analisar os três grupos de Tetralogias. Contudo, o texto
da primeira Tetralogia demonstra o caráter antilógico deste texto, satisfazendo, plenamente, o objetivo
final do projeto.
148
A leitura de uma obra como as Tetralogias de Antifonte apresenta uma
complexidade que nos surpreende. De início, a composição dos discursos está longe de
ser simples e há muito a dizer sobre o modo como são apresentados os argumentos
dedicados à discussão dos três casos de assassinato que, embora sejam narrados com
a uma apropriação muito peculiar das leis codificadas. Quando acrescentamos a isso o
mais antigos que chegaram até nós e que foram escritos no mesmo momento em que
retórica.
movimento, da passagem das mensagens, cuja tarefa era zelar pela comunicação em
Sobre as reflexões da arte retórica empreendidas por Empédocles nossos dados são
escassos. Sobre Córax e Tísias sabemos que, depois da queda da tirania na Sicília, no
ano 467 a.C., usando como instrumento a habilidade oratória, eles incentivaram a
149
Solucionando os conflitos políticos por meio da oratória eles destacaram a importância
Uma anedota narrada por Sexto Empírico nos mostra como Córax explora a
retórica como uma prática discursiva centrada na persuasão, na medida em que prioriza
Córax em litígio com um de seus alunos que se recusava a pagar pelas lições recebidas.
Os juízes declaram que Córax tinha razão em reclamar o pagamento pelas lições, pois o
jovem aluno se comprometeu a pagar o salário que o mestre fixara assim que ganhasse
sua primeira causa. Diante deste quadro, Córax argumenta que, vencendo ou não a
causa, ele deveria receber o salário. Se ele vencesse, deveria receber porque ele teria
vencido, se ele perdesse, também deveria receber tendo em vista os termos do acordo,
no qual o jovem tinha se comprometido a pagar o salário quando vencesse seu primeiro
processo. Mas, seu jovem aluno pede novamente a palavra e, em sua réplica, usando o
pela força persuasiva desses discursos retóricos, os juízes expulsam Córax e seu aluno
determinadas circunstâncias, os hábeis oradores empregam sua arte mostrando que não
existem conceitos únicos sobre a verdade e a justiça aos quais os discursos deveriam se
95
A fonte mais antiga de que dispomos para reconstituir a história dos primórdios da retórica é a obra
Brutus do filósofo romano Cícero que utiliza um texto de Aristóteles que não chegou até nós. Além de
Cícero, Sexto Empírico nos oferece uma anedota envolvendo Córax e um de seus discípulos no livro
Contra os professores (II, 97-99). Para uma abordagem histórica mais minuciosa, ver o capítulo Les
premiers inventeurs do livro La Rhétorique dans l’ antiquitè de Laurent Pernot, 2000.
96
Sobre a desconfiança do auditório com relação ao uso astucioso da habilidade oratória, Tucídides, no
livro VIII da sua História, nos conta que devido a sua magnífica eloqüência Antifonte despertava a
suspeita do povo e, por essa razão, deixou de discursar durante as reuniões públicas das assembléias e
tribunais.
150
conformar, visto que a verdade e a justiça são construídas através dos discursos 97. É a
que se modela uma inovação. Esta inovação, que leva a persuasão a caminhar lado a
através da afirmação de Protágoras: "sobre cada coisa, existem dois discursos possíveis,
empregado com astúcia por Antifonte nas Tetralogias, onde ele busca ensinar seus
alunos a abordar uma causa examinando todas as suas faces, interrogando com
profundidade os fatos para, enfim, serem capazes de prever todas as objeções possíveis.
do ensinamento prático, nos mostram que as divisões dos discursos foram por ele
fixadas em suas linhas essenciais, tal como fora estabelecido pela retórica nascente dos
97
Como nos diz Christian Meyer:”La rhétorique est une invention des sophistes: c’est à eux qu’elle doit
les premières ébauches de grammaire, ainsi que la disposition du discours, ainsi que l’ideal d’une prose
ornée et savante. A eux l’idée que la vérite n'est jamais qu’un accord entre interlocuteurs, accord final que
résulte de la discussion, accord initial aussi, sans lequel la discussion ne serait pas possible” (1999, p. 25).
A este respeito Laurent Pernot observa que os sofistas inauguraram “une réflexion profonde sur l’usage
de la parole dans toutes les situations où la vérité n’est pás identifiée préalablement et extérieurement, oú
la discussion se situe dans l’ordre des valeurs et des probabilités, non des affirmations certaines et des
démonstrations scientifiques. Le caractère provocateur de la sophistique consiste à dire qu’il n’existe que
des situations de ce type” (Pernot, 2000, p. 29).
151
visa criar a persuasão. Consagrando ao gênero judiciário mais do que os planos de
Croiset acrescentam que é importante observar que, mesmo dispondo de fórmulas fixas
linguagem.
152
3.1- Primeira Tetralogia98
estrada deserta quando voltava para casa acompanhado de seu escravo. Para apresentar
o caso aos juízes, Antifonte escolhe argumentos que o levam a propor, no discurso de
tipo de delito a ser analisado, Antifonte pretende mostrar que as novas conjecturas
exigem também uma nova avaliação sobre o autor do delito, deslocando, assim, o foco
criminoso99.
“Não é difícil encontrar a prova (elénkhestai) de um crime quando é tramado pelo primeiro que
aparece; mas quando os criminosos são indivíduos com qualidades naturais, experientes, que estão na
idade onde a inteligência está na plenitude da sua força (krátistoi phronein), é tão difícil desmascará-los
quanto provar sua culpa. A grandeza do perigo os torna circunspetos, levando-os a premeditar seus golpes
98
Nas referências às Tetralogias de Antifonte encontramos três indicações, duas delas usam letras do
alfabeto grego e a outra indicação usa números em arábico: a primeira, em letra grega maiúscula, refere-
se ao número da Tetralogia; a segunda, em letra grega minúscula, indica o discurso; a terceira, em
arábico, indica o parágrafo.
99
No artigo Athenian Homicide Law, M. Gagarin afirma que os casos de homicídio em Atenas não eram
encaminhados exatamente do mesmo modo que hoje em dia. Para Gagarin, muitos casos hoje são
decididos pelas “evidências científicas”, enquanto os oradores atenienses, sobretudo Antifonte, confiavam
muito mais nas “evidências circunstanciais”. Por essa razão, os oradores atenienses buscavam contar uma
“história plausível”, com “caracteres convincentes”, ao invés de buscar o rigor do método científico como
fazem os juristas modernos (Gagarin, 2003, p. 05-06).
153
com muito cuidado. E não empreendem coisa alguma se não têm sua defesa assegurada contra toda
suspeita 100” (A 1,2).
tirarem do conjunto dos argumentos uma idéia mestra, que esses mesmos juízes não
saberiam apreender se faltasse o confronto entre aparência (tá eikóta) e realidade (tó
100
Utilizamos na nossa tradução do texto das Tetralogias a edição francesa organizada por Louis Gernet
(1954) e a edição italiana organizada por Fernanda D. Caizzi (1969).
101
Em sua Retórica, Aristóteles, ao observar que “todas as ações praticadas pelo homem sem ser ele
mesmo a causa acontecem ou por azar, ou por natureza, ou por força”, menciona as “sete causas das
ações” e entre elas inclui o cálculo racional, o hábito, o apetite irascível e o desejo passional (Livro I,
1369a). Ao introduzir a “causalidade psicológica”, Aristóteles remonta seu estudo sobre a oratória
judiciária ao modelo do raciocínio prático e à análise da ação humana tal como nos apresenta Antifonte
nessa primeira Tetralogia.
154
contrapartida, perseguido muitas vezes e por questões ainda mais graves, nunca foi absolvido e por isso
perdeu uma grande parte de sua fortuna. Recentemente, a vítima depôs contra ele uma acusação pelo
roubo de relíquias sagradas, no valor de dois talentos: sabendo-se culpado; consciente da força de seu
adversário, lembrava-se da ofensa recebida no passado, verossimilmente (eikótos) premeditou o delito,
verossimilmente (eikótos) matou o inimigo para evitar a hostilidade” (A 5-6).
mesmo tempo, transmite aos juízes uma impressão de precisão e clareza ao dizer:
“O desejo de vingança lhe fez esquecer o perigo; o medo dos males que o ameaçavam cegaram-
no exacerbando seu impulso para o crime: ele imaginava, ao cometer o assassinato, que ele não seria
descoberto e que, ao mesmo tempo, ele escaparia da acusação de roubo: ninguém, com efeito, o
perseguiria, e o caso, por falta de acusador, não prosseguiria; supondo que fosse condenado, lhe parecia
mais nobre não ter sido sem vingança do que sucumbir covardemente à acusação, sem ter devolvido golpe
por golpe; ele sabia antecipadamente que seria condenado: a prova é que ele não teria julgado o processo
(agôna) atual como menos perigoso” (A 7- 8).
domina os momentos finais da argumentação. Como ele mesmo diz, as boas razões
acusação e a própria natureza hipotética das provas produzidas com o auxílio dos
“entimemas” lhe serve de prova imediata. Nesse caso, ele relata o que poderia ter
cria muitos detalhes que carecem de evidências externas102. O texto indica que o
acusador não dispunha de fontes seguras que pudessem apoiar suas “suposições” e
102
Michael Gagarin no livro, Antiphon. Oratory, Law and Justice in the age of the sophists,
sugere que Antifonte constrói nas Tetralogias uma “sofistópolis”, onde ele exerce um controle absoluto
sobre as circunstâncias (2002, p. 104). Mais adiante Gagarin observa: “As Tetralogias são um tipo de
Antilogiae nas quais os opositores apresentam seus lógoi opostos em um mundo juridico artificial”.
155
“insinuações” e indica também como ele simplesmente imagina, inventa tudo o que o
maneira excepcional: ele destaca as condições gerais do crime, por meio da descrição
troca as provas produzidas por persuasão, obtidas mediante o discurso, pelas evidências
externas, ou, em linguagem aristotélica, podemos dizer que ele substitui dentre as
classes de provas retóricas aquelas que podem ser preparadas pelo orador, éntekhnoi,
Antifonte consegue, enfim, erigir uma espécie de sistema, no qual cada elemento insere-
se em um todo cada vez mais pleno e convincente, que revela o próprio movimento do
103
Cf. Aristóteles. Retórica, I, 1355 B. A este respeito, Caizzi observa que a transição das entekhnói
pisteis para as atekhnói pisteis: “è uno procedimento psicologicamente valido, in quanto porta l’uditore
dalla persuasione intima a quella che gli proviene dall’esterno”. Ela acrescenta: “la testimonianza dello
schiavo non abia importanza alcuna, e venga fatta rientrare volutamente nel gioco di eikós su cui è
fondata tutta la tetralogia” (Caizzi, 1969, p. 15-16).
104
Sobre a legitimidade do testemunho dos escravos no interior do código penal ateniense, Gagarin
observa que os documentos disponíveis atestam que se um litigante desejasse introduzir o testemunho de
um escravo, ele tinha que pedir ao seu oponente permissão para que o escravo fosse interrogado sob
ameaça de tortura, na presença de ambas as partes (2003, p. 02).
156
pensamento, sempre em busca de indícios e confirmações e disposto a desviar-se de sua
“Seria de fato impossível demonstrar a culpabilidade dos autores de crimes premeditados, se não
pudéssemos fazê-lo nem baseados nos testemunhos, nem nas verossimilhanças (méte hypò tôn eikóton); e
é contrário ao interesse público que este homem, que é impuro e desonrado, penetre nos santuários dos
deuses e, profanando a santidade, sente-se à mesma mesa que os inocentes e lhes transmita sua impureza:
pois eis aqui aquilo que produziu as más colheitas e fez fracassar os negócios. Vós deveis, portanto,
considerar a vingança do morto como vossa obrigação pessoal: que apenas sobre o assassino recaia sua
impiedade; que o mal seja para ele e que a cidade seja purificada” (A 10).
juízes, ele concede grande importância ao valor das verossimilhanças e recorre ao tema
constrói um enredo muito atraente - a idéia do homem amuado pelo infortúnio, vítima
“Eu não acredito estar enganado, considerando-me como o mais desafortunado de todos os
homens. Todos aqueles que são atingidos pelo infortúnio, tendo que lutar contra a tempestade, encontram
a bonança quando a calmaria retorna; se eles sofrem de doença, encontram a salvação recuperando a
157
saúde e, em geral, se qualquer desgraça os oprime, a mudança que sobrevém é vantajosa. Para mim, ao
contrário: vivo, este homem foi a ruína da minha casa; morto, ele me deixou, mesmo que eu seja
absolvido, muitas tristezas e preocupações. Pois eu chego a tal ponto do opressor infortúnio, que não me
basta, para ser salvo, comportar-me como puro e inocente: se não consigo, além disso, descobrir e
demonstrar a culpa dos assassinos, que os vingadores do morto são incapazes de descobrir, serei julgado
como assassino e morrerei de maneira ímpia” (A 1-2).
é algo tão lancinantemente poético que nos leva a pensar no apelo trágico das cenas
“proêmio” é a intenção do orador. Ele acerta admiravelmente no alvo, que é obter dos
de que somente os recursos afetivos podem auxiliá-lo em sua defesa, pois, como ele
mesmo disse, sua inocência não pode ser demonstrada de outra maneira devido à
que vai ser tratado no decorrer da narração e da argumentação, onde o ritmo do discurso
“Aquelas pessoas afirmam, ao mesmo tempo, que sou hábil, pois é muito difícil demonstrar a
minha culpa, e que sou um tolo, pois meus próprios atos revelam minha culpa. De fato, se a violência do
meu ódio é a vossos olhos um índice verossímil (eikótos), é mais verossímil (eikóteron) ainda que eu
tivesse previsto, antes de agir, a suspeita que atribuíram a mim: se eu soubesse que um outro premeditava
o assassinato, eu o deveria impedir, ao invés de cometê-lo eu mesmo e me expor voluntariamente a
suspeitas indubitáveis e previsíveis. Pois se eu fosse descoberto depois do crime, eu estaria perdido; se eu
não fosse, eu saberia muito bem que a suspeita cairia sobre mim” (A 3).
Pode-se dizer que essa apresentação antitética da inocência é muito sutil, pois o
bailado de antíteses e verossimilhanças dissolve a suspeita que foi apresentada pelo
acusador em seu discurso. Para dissolver a suspeita construída no discurso de acusação,
são reapresentadas as evidências circunstanciais e as descrições dos caracteres
psicológicos em sentido negativo. O acusado retoma os mesmos argumentos do
adversário: a vítima era de fato sua inimiga, o que implica que a suspeita recairia
imediatamente sobre ele; logo ele não correria o risco de cometer um assassinato em
105
Ver por exemplo Ésquilo, Oréstia,1176-1225, Sófocles, Antígona, 883-943, Eurípides, Orestes, 01-
140.
158
condições tão desfavoráveis106. É ao realçar as divergências produzidas pelos
argumentos do seu adversário que o orador impõe a primeira “antilogia”. Ao se
defender, ele revida a argumentação do acusador em dois tempos: ele responde às
acusações contradizendo-as. Em seguida, ele encaminha a argumentação apoiando os
raciocínios sobre os “entimemas” ou silogismos retóricos.
“Mísera é, portanto, a minha condição, forçado como sou não apenas a me defender, mas
também a descobrir os assassinos. Devo, portanto testar-me: sem dúvida, nada parece ser (éoiken einai)
mais cruel do que a necessidade. Ora, eu não tenho outros elementos de investigação que aqueles que
serviram ao acusador para desculpar os outros e para afirmar que as circunstâncias da morte me
denunciam como culpado. Se, de fato, a aparente inocência destas pessoas faz recair sobre mim o delito,
as acusações que pesarão sobre eles serão uma conjectura legítima de minha inocência” (A 4).
utiliza para demonstrar, em sentido oposto, a tese do adversário, ou seja, demonstrar que
ele não tinha outra arma senão o raciocínio antilógico. Ele próprio admite as
dificuldades que o acompanham e é por isso que apenas uma grande e maravilhosa
façanha o poderia auxiliar. Ora, forçado pela necessidade, sua única saída é trocar o
cálculo das probabilidades. Somar, acrescentar, incluir, em uma única evidência isolada,
outras possíveis evidências, produz efeitos benéficos107. Por isso, ele afirma que é
para garantir sua absolvição. Para confirmar sua inocência e incriminar os possíveis
suspeitos, ele volta a aplicar sua invulgar habilidade no manejo das verossimilhanças.
106
Temos aqui, segundo Michael Gagarin, o uso deliberado do “argumento reverso” tal como o descreve
Aristóteles em sua Retórica (2002, p. 112). Na Retórica, o filósofo ao falar da tékhne de Córax observa:
“se um homem não se presta à acusação que se lhe dirige, se, por exemplo, um homem fraco é processado
por sevícias, sua defesa será que não é verossímil que ele seja culpado; mas se o acusado se presta à
acusação, se, por exemplo, ele for forte, sua defesa será que não é verossímil que seja culpado, pois era
verossímil que o julgassem culpado. O mesmo se dá em outros casos; pois, necessariamente, ou a pessoa
se presta ou não se presta à acusação. Ora, os dois casos parecem verossímeis; porém um é realmente
verossímil e o outro não o é absolutamente, mas na medida em que o tenhamos dito” (II, 1402 A 17-18)
107
O procedimento lógico ao qual nos referimos é a “inclusão” (periokhê). Aristóteles a menciona em sua
Retórica, II, 1402A 23-24.
159
“Não é inverossímil (ouk apeikós), como estas pessoas afirmam, mas é verossímil (eikós) que a
vítima, vagando numa hora tão avançada da noite, tivesse sido assassinada por causa das suas roupas. Que
ela não tenha sido roubada não prova nada: se os ladrões não tiveram tempo de fazê-lo, se eles
renunciaram com medo dos transeuntes, seria sábio da parte deles, e não uma tolice, preferir a salvação
no lugar do lucro. É possível também que a vítima não tenha sido morta por causa das suas roupas: ela
pode ter visto outros que estivessem fazendo algo errado, e que, temendo serem denunciados, a teriam
matado; quem sabe? Ou ainda, aqueles que a odiavam não menos que eu - e eram muitos - não seriam
eles, com mais verossimilhança (eikòs ... mâllon) do que eu, seus assassinos? Era evidente para eles, com
efeito, que a suspeita recairia sobre mim, tanto que eu sabia muito bem que seria incriminado em seu
lugar” (A 5-6).
argumentos dos acusadores, ele não vacila em formular retoricamente duas perguntas,
onde são questionadas com rigor crítico as suspeitas que cercam a autoria do crime. Na
seqüência do discurso ele prossegue sua busca tentando a todo custo remover as
“Como pode ser digno de fé o testemunho do escravo? Assustado pelo perigo, não era verossímil
(ouk eikós) que reconhecesse os assassinos, mas era verossímil (eikós) que, obedecesse às sugestões dos
patrões. Por outro lado, geralmente, os testemunhos dos escravos são suspeitos; de outro modo, se nós
não o submetemos a tortura, com que justiça me matarias, prestando fé no testemunho deste escravo? Se
estimamos que nesse testemunho há contra mim verossimilhanças que equivalem à verdade (tà eikóta
alethésin isa), consideremos, ao contrário (toût' aû antilogisástho), o seguinte: eu deveria, na minha
emboscada, tomar todas as precauções para a minha segurança, portanto não devendo estar presente na
cena do crime; eis aqui o que é mais verossímil (eikóteron) do que ter sido reconhecido pelo escravo no
momento em que ele era golpeado” (A 7-8).
Nada mais possivelmente verdadeiro do que esse processo verbal dominado pela
(eikóteron).
ocupam um lugar de destaque nas reflexões que Louis Gernet empreendeu sobre essa
160
apresenta a argumentação judiciária da maneira como ela foi concebida pela “arte da
auxilia o acusado nesse trecho do seu discurso é o confronto rigoroso com as teses mais
“Quanto ao perigo que corro agora, a menos que eu tenha perdido o juízo, não o considero menos
temível que aquele que resultou da acusação de roubo, mas infinitamente mais grave. E eu o provo:
estabelecido o ponto principal da acusação, eu sabia que eu seria despojado da minha fortuna, mas
eu salvaria a vida e os direitos civis; e, preservando ambos, teria que recorrer a um empréstimo
entre os meus amigos para não cair na miséria; ao invés disso, se eu for condenado hoje, morro
deixando aos meus filhos a desonra e a mácula - a menos que eu me exile para envelhecer em terras
estrangeiras, mendigando e sem pátria.” (A 9).
Acima de tudo, vemos intervir no próprio relato a evocação das acusações que
podem decidir o processo. O acusado tenta mostrar que é possível anular as acusações
parágrafo seguinte.
“Assim, nenhuma das acusações merecem crédito; e mesmo se tivesse verossimilhança (eikótos)
o fato de eu ser o assassino, o que eu não sou, minha absolvição é a solução mais justa: por um lado, com
efeito, é evidente que eu suportei graves injustiças por ter que me defender; não sou acusado com
verossimilhança (eikótos) por tê-lo matado; por outro lado, aqueles que mataram, não são acusados de ter
matado, o que é condenável. E se de nenhum lado a acusação me atinge, eu não profanarei a santidade
dos deuses, penetrando em seus santuários, assim como, querendo vos persuadir a me absolver, não
cometo nenhuma impiedade. Aqueles, ao contrário que, ao me perseguirem, perseguem um inocente e
deixam escapar o culpado, são os que causam as colheitas infecundas; e querendo vos persuadir a vos
tornardes ímpios perante os deuses, eles merecem como pagamento o castigo que julgavam digno para
mim” (A 10-11).
acusação, descobrimos que, agora, esse jogo é trocado. Através do discurso do acusado
ele busca explicitar que a suspeita recai sobre um assassino que não é um assassino
161
“verdadeiro”, mas sim um assassino “verossímil”. Até o tema religioso, invocado tanto
pelo acusador como pelo acusado, mostra que somente a punição do “verdadeiro”
pois na maioria dos casos a justiça administrada pelos tribunais impõe uma sentença que
pode ser muito distinta da verdade que envolve os fatos (Antifonte, DK87 B 44A). A
Assim, Antifonte toma partido do acusado porque este corre o risco de ser
“As pessoas que merecem este tratamento privam-se de toda confiança. Quanto a mim, meu
passado vos mostrará que eu não sou homem de preparar emboscadas contra alguém, nem de cobiçar os
bens de outrem: ao contrário, tenho deixado numerosas e importantes contribuições, fui muitas vezes
trierarkho110, exerci brilhantemente a khoregia, concedi empréstimo a muitos amigos, para muitos saldei
108
Sobre este ponto Caizzi escreve: “Si può però notare, innanzi tutto, che una serie di elementi porta ad
attribuire più importanza e più interesse alla difesa che all’acusa: ciò se verifica in tutte e tre Tetralogie,
dove la sottigliezza dell’argomentazione si dispiega nei discorsi a discolpa; dove l’enfasi drammatica pesa
prevalentemente nelle parole dell’imputato (Caizzi, 1969, p. 45-48)”.
109
Protágoras também utiliza dessa antítese na esfera dos discursos para criticar, como nos mostra
Porfírio, a ontologia nos termos propostos pelos filósofos eleatas. Ver capítulo I.
110
Uma das liturgias ou atos públicos mais importantes, que os membros ricos da comunidade eram
obrigados a financiar, de tempos em tempos; o Trierakhos servia por um ano como comandante de uma
trireme e, embora a cidade fornecesse alguns equipamentos e pagamentos para a tripulação, o trierarca
162
débitos como fiador, conquistei minha fortuna não com processos, mas com trabalho, sempre respeitando
as celebrações sagradas e as leis. A um tal homem, não devem imputar nem desonra, nem impiedade. Se a
vítima estivesse viva e eu fosse perseguido por ela, eu não me contentaria em defender minha causa: eu
estabeleceria sua própria culpa e daquelas pessoas que buscaram não vingar-se, mas se enriquecer às
minhas custas – pois este é o objetivo de vossas acusações111. Eu abandono este assunto, mais para
obedecer às conveniências do que para atender à justiça; e me dirijo a vós, homens que estão dentre os
maiores juízes e senhores, que tenham piedade do meu infortúnio, propiciando-lhe cura, peço-vos não vos
reunirdes ao ataque deles e que eu não seja destruído por eles sem observar o que é justo e divino” (A
12,13).
homem de nobre caráter (agathós), que ajudou inúmeras vezes seus concidadãos tendo
em vista os interesses da comunidade. Mas essa mesma nobreza, projetada pelas ações
do acusado, não pode ser encontrada na atitude assumida pelos acusadores e até mesmo
pela própria vítima. A advertência final dirigida aos juízes diz respeito ao uso da justiça
jurídica como remédio contra o infortúnio e, até mesmo, contra a impiedade tão
censurada pela religião. A julgar pelo que diz Fernanda Caizzi, Antifonte foi
influenciado pelos pitagóricos e pelo dramaturgo Ésquilo que concebem a justiça como
medicina, como remédio (iatreuein) contra as paixões que geram a maldade (1969, p.
192).
contribuem para despertar a piedade naqueles que julgam, mostrando que tudo o que diz
devia gastar grandes quantidades com reparos e compensando faltas no pagamento de seus homens. O
custo médio de uma Trierarquia era de 50 minas. Ver: Maidment, K. J. Edição e tradução. In: Perseus
Classical Texts: http://www.perseus.tufts.edu
111
Implicando que a propriedade do acusado seria confiscada, se ele fosse condenado, e uma percentagem
seria dada à acusação. Ver: Antiphon. Speeches. Edição e tradução de Maidment, K. J. In: Perseus
Classical Texts: http://www.perseus.tufts.edu
163
Segundo discurso de acusação
Destacamos a última frase do trecho acima citado porque ela nos permite
entrever e desvendar um dos meios utilizados por Antifonte para transmitir seu modo
Antifonte além de utilizar a “refutação” como meio mais favorável para alcançar uma
arte da discussão nos diálogos escritos pelo historiador, Romilly diz que “os
procedimentos mais decisivos são aqueles que consistem em voltar contra o adversário
os argumentos que ele mesmo utiliza: mostra-se, então, que aquilo que ele acreditava
112
Sobre a autoria das “hipóteses” que aparecem na forma de brevíssimos prefácios que antecedem os
discursos das Tetralogias, seguimos a interpretação de Alfred Croiset. O helenista francês acredita que as
“hipóteses” foram redigidas por um gramático, durante o período helenístico (Croiset, 1900, p.12).
164
ser-lhe favorável é, na verdade, desfavorável, ou mesmo favorável à parte contrária. Em
um caso trata-se de uma inversão, no outro, de uma verdadeira retorsão. Está última
deixa o adversário totalmente desarmado” (1988, p. 120). Romilly nos mostra como
Tucídides aprendeu com o mestre Antifonte a trocar, em seus discursos, “cada idéia por
se ocupar mais do que o primeiro da refutação, pode oferecer uma boa amostra disso.
Essa característica que favorece uma singular técnica de combate com argumentos,
“Este homem ofende o infortúnio abrigando o crime para esconder a mácula que lhe atinge. Ele
não merece vossa misericórdia, enquanto mergulha a vítima numa infelicidade involuntária e,
voluntariamente, se expõe ao perigo. Que ele seja o assassino, é o que nós provamos no nosso primeiro
discurso; que sua defesa não vale nada, é o que vamos nos esforçar para mostrar” (A 1).
Nesse brevíssimo proêmio a idéia que se liga mais diretamente ao trecho acima é
acusado está apoiado sobre dados falsos. Logo depois dessa demonstração, ele dedica-se
a afastar a relação entre os fatos e o discurso, privando, deste modo, o acusado de seus
argumentos, anulando-os.
“Será que foi porque alguns passantes estavam chegando, que os assassinos teriam fugido antes
de despir o morto? Esses passantes, supondo que tivessem encontrado o patrão já morto, teriam
encontrado o escravo ainda respirando, porque ele respirava quando foi resgatado e pôde testemunhar:
então, depois de interrogá-lo, nos teriam indicado os culpados com conhecimento de causa, e este homem
não seria colocado em julgamento. Ou será que foram outros malfeitores, que as vítimas teriam
surpreendido cometendo o crime e que, para não serem denunciados, mataram-nas. Este outro delito teria
sido denunciado ao mesmo tempo que o assassinato e a suspeita cairia sobre eles” (A 2).
165
acusação nova: “culpados seriam outros malfeitores” e não o acusado. Esta acusação
discurso um tom impetuoso. Para alcançar esse efeito de estilo, Antifonte emprega a
produz tal disposição no ânimo dos juízes porque o orador, ao sugerir, hipoteticamente,
que outros suspeitos teriam cometido o crime, concedendo, assim, matéria para a
“A defesa não diz o que é certo ao afirmar que o testemunho do escravo não é digno de fé. Em
tal caso, não colocamos os escravos sob tortura: ao contrário, lhes damos a liberdade. É quando eles
negam um roubo ou ajudam seus mestres a dissimular alguma coisa, que a tortura é para nós a garantia da
sua veracidade114. Por outro lado, sua ausência do lugar do crime não é de modo algum mais verossímil
(eikóteron) que a sua presença. Ausente, ele devia correr o mesmo perigo que presente: pois qualquer um
dos cúmplices que fosse capturado o teria denunciado como mandante; mas não teria agido tão bem; pelo
contrário, teria agido com menor ardor” (A 4-5).
Aqui o orador enfraquece a objeção feita pelo acusado em seu primeiro discurso
mostra que as verossimilhanças invocadas pelo acusado não atestam sua inocência;
enfim ele afirma que a suposta ausência do acusado do local do crime apenas indica que
113
Para a análise do uso retórico da interrogação, cf. Aristóteles, Retórica, livro III, 1419 a;. Nessa
passagem, Aristóteles toma como exemplo o texto do diálogo platônico Apologia, visando mostrar que a
finalidade da interrogação seguida de resposta é induzir ao absurdo o argumento do adversário.
114
O testemunho de escravos só era aceito sob tortura, que não podia ser aplicada sem o consentimento
do proprietário. Há casos de compra de escravos, com o único propósito de utiliza-los para prestar
depoimento. Um escravo que defendesse a vida do seu senhor, correndo o risco de perder a própria vida
era freqüentemente compensado com a liberdade. O argumento aqui implica que o escravo, moribundo, é
praticamente livre, pois deu a vida pelo seu senhor; logo, não é o caso de se argumentar que seu
depoimento não pode valer sem ter a tortura como garantia de veracidade. Ver: Antiphon. Speeches.
Edição e tradução de Maidment, K. J. In: Perseus Classical Texts: http://www.perseus.tufts.edu
166
o crime teria sido cometido com menos ardor, apontando, assim, o caráter violento do
verdadeiro assassino.
proposições contraditórias.
“Enfim, o perigo que o faz correr a acusação (de roubo) não lhe parecia menor, mas muito mais
grave que o perigo atual. E eu o provo. Admitamos que houvesse para ele, num e noutro processos, tanto
probabilidade de absolvição, quanto de condenação: que a acusação não fosse conduzida até o fim, ele
não podia esperar, enquanto o acusador vivesse, pois aquele não se deixaria dobrar por ele; enquanto ele
podia esperar não ser envolvido neste caso, pois acreditava que, mesmo tornando-se um assassino, ele não
seria descoberto” (A 6).
homicídio para, enfim, ocultar o roubo que já havia sido revelado foi, segundo o
acusador, a estratégia usada pelo criminoso. É notável, que a partir desse ponto do
“Ele julga erradamente, pedindo que vós não o condeneis pelo fato de que a suspeita recairia
evidentemente sobre ele. Se o medo da suspeita bastasse para o desviar do atentado, sendo que ele estava
exposto aos maiores perigos, ninguém, sendo assim, teria premeditado o assassinato: pois todos aqueles
que corressem menos perigo, temendo a suspeita mais que o perigo, estariam ainda menos dispostos que
ele ao atentado. Quanto às suas contribuições e às suas khoregías, elas são um sinal suficiente de sua
riqueza, mas não de sua inocência, ao contrário: pois o medo de ser despojado dessa riqueza é motivo
verossímil (eikótos) para um assassinato ímpio. Ao dizer que os assassinos são não os que mataram
verossimilmente (eikótos), mas os que mataram realmente, ele fala corretamente, se nos fosse claro quais
foram os assassinos. Falta a evidência e, além disso, ele é acusado pelas verossimilhanças (hypò tôn
eikóton), ele apenas e nenhum outro, de ser o assassino. Aliás, tais crimes não se cometem diante de
testemunhas, mas escondido” (A 7-8).
167
Em primeiro lugar, o acusador possui total confiança que o criminoso nunca
deixaria de agir contando com a pressuposição de que a suspeita bastaria para provar
imagem que o acusado cultivou de si mesmo em seu discurso, ele prefere traçar o retrato
de um assassino dissimulado, ávido de ganho, cujo único medo é perder a riqueza que
possui.
presença de tal caráter é um índice seguro, aos olhos do acusador, de que o homem que
assassino. Como as evidências não estão presentes, o acusado é incapaz de apontar para
crime. Este é o argumento principal de que se serve o acusador para fundamentar sua
“A morte é certa, como sabeis; uma pista evidente conduz a ele; o testemunho do escravo é
digno de fé: como podereis vós absolvê-lo justamente? E se vós o absolverdes injustamente, não é contra
nós, é contra vós que voltará a sombra irritada da vítima. Conscientes disso, ajudai ao morto, puni o
assassino, purificai a cidade. Fareis pois três bens: vós diminuireis o número dos assassinos deliberados,
vós aumentareis aquele dos que observam a piedade e vos liberareis a vós mesmos da mácula que emana
do assassino aqui presente” (A 10-11).
168
Desse modo, sem que nada nos fatos e nos argumentos houvesse sido mudado,
todo o sistema de explicação é mantido. E fica possível entender que a manutenção dos
escravo é tido por ele como uma evidência que permite uma visão clara do conjunto dos
fatos.
responsabilidade dos juízes. Os juízes, para quitar uma obrigação moral e religiosa,
devem ajudar a todas as vítimas que foram assassinadas violentamente. Quando eles se
recusam a ajudar, sofrem terríveis assombros por parte do fantasma do morto. Aqui,
169
Segundo discurso de defesa
Antifonte nos mostra que o infortúnio que aflige o acusado é ainda mais terrível
porque, além de ser difamado pela calúnia dos acusadores, ele corre o risco iminente de
ameaça destruir a eticidade da ação humana. A justiça jurídica, segundo nosso autor,
sendo incapaz de revelar a verdade dos fatos, acaba punindo erroneamente, gerando
mais injustiça.
“Todos aqueles que, tendo sofrido uma ofensa se defendem sem ter eles mesmos tomado a
iniciativa; todos aqueles que têm pais perversos e no entanto lhes fazem bem; aqueles que deixam seus
adversários os acusarem sob juramento, mas não fazem a mesma coisa eles mesmos; de todos esses
exemplos poderemos ver que muitos são contrários à natureza: todos implicam que sofremos mais quando
podemos sofrer menos; e temos menos alegrias, quando poderíamos ter mais alegrias; sofremos males
quando poderíamos não suportá-los mais Se, àqueles que escolhem uma tal linha de conduta, alguma
assistência viesse da parte das leis, e aqueles que não a escolhem, se opõem a ela, algum dano viesse,
então, a obediência às leis traria vantagens”. (DK 87 B44 A).
natureza e cultura. Antifonte denuncia nas duas obras os efeitos maléficos da justiça
oriunda das leis, que põe em risco a felicidade do homem, fazendo-o sofrer. Com isso,
170
a mensagem que Antifonte transmite é que a justiça promulgada pelos tribunais pode
Boa ocasião para observar novamente a posição adotada por Fernanda Caizzi.
Ela considera que os discursos de defesa dessa primeira Tetralogia são verdadeiros
“Cabe a mim nada além de me defender contra o testemunho do escravo, e não denunciar ou condenar os
assassinos, mas responder à acusação. É preciso, entretanto, que eu me esforce a fim de que, por todos os
meios, sua maquinação seja mostrada e a suspeita afastada de mim Meu papel deveria se limitar a discutir
o testemunho do escravo: não cabe a mim denunciar nem desmascarar os assassinos; eu sou acusado, eu
respondo pela acusação. Devo, portanto, me esforçar a fim de que, por todos os meios, sua maquinação
seja revelada e a suspeita se afaste de mim. O infortúnio que serve para me caluniar, eu peço que ele se
transforme em boa fortuna; vos peço, façam-me feliz, absolvendo-me, ao invés de ter piedade de mim
depois de ter me condenado” (A 3-4).
argumentação são os objetivos deste proêmio. Depois de preparar os juízes para que eles
acolham com boa vontade sua causa, o acusado inicia sua jornada rumo à persuasão.
Ele trilha um caminho de mão dupla: numa das vias a refutação do adversário é
“Segundo eles, quem quer que tenha encontrado as vítimas deveria, segundo as
verossimilhanças, se informar com precisão sobre os assassinos e depois ir na casa das vítimas para
anunciar o crime, em vez de seguir seu caminho. De minha parte, não acredito que haja um homem tão
moderado e tão corajoso que, encontrando numa hora avançada da noite os corpos estendidos na terra,
palpitando, não desse meia volta fugindo, ao invés de arriscar sua vida para se informar sobre os
malfeitores. E, por outro lado, quando estes passantes tivessem feito aquilo que era mais verossímil
(mâllon eikòs), seria verossímil (eikótos) também que aqueles que tivessem matado as vítimas para roubá-
las, as abandonassem: por isso eu estou liberado da suspeita” (A 4-5).
jogo das verossimilhanças. Essa re-apresentação dos argumentos usados pelo acusador
171
em seus dois discursos (A 4, A 2) é inquestionavelmente invertida. O que parecia
verossímil adquire a aparência oposta, pois, segundo o acusado, é possível mostrar que
rapidamente o local do crime, antes mesmo de fazer uma investigação minuciosa dos
fatos, visto que a imagem aterrorizante dos cadáveres palpitantes bastaria para justificar
adversário são fielmente retomados, porém nenhum deles tem agora o mesmo sentido.
Ou, mais precisamente, podemos dizer que nenhum dos argumentos escapa da
contradição.
preciso ponto onde o acusado passa a evocar a seu favor a possibilidade de ser vítima de
“Quanto ao testemunho do escravo, como lhe conceder mais confiança que àquele dos homens
livres? Estes, com efeito, são atingidos com a atimia e com uma multa pecuniária, quando seu testemunho
é considerado não ser conforme a verdade. Mas aquele de quem não temos o controle e que não testamos
pela tortura, como puni-lo? Aliás, que controle seria possível? Ele não corria nenhum risco ao
testemunhar: não é nada estranho que ele se deixe persuadir por seus mestres, meus inimigos, para me
acusar falsamente; mas seria uma impiedade me matar, baseado num testemunho suspeito” (A 7).
172
É importante nesse contexto, onde o orador dramatiza tão poderosamente a luta
expressiva. Ganha-se com isso a convicção de que, pelo menos por algum tempo,
que ele dá um salto súbito e ousado: identifica-se por inteiro com as forças que o
estavam pressionando. Esse salto é tão rápido que o acusado ao se dar conta de o haver
" Dizem ainda que minha ausência era mais improvável (apistóteron) que minha presença no
lugar do crime. Mas eu vou mostrar, não a partir de verossimilhanças, mas de fato (ouk ek tôn eikóton
all´érgo), que eu estava ausente: todos os escravos que eu possuo, homens ou mulheres, eu os ofereço
para que sejam torturados; e se não for provado que naquela noite eu dormi em minha casa e que eu não
fui a lugar algum, eu me reconhecerei como o assassino. Em que noite ocorreu não é difícil de
estabelecer, porque o assassinato aconteceu no dia das Dipolias" 115 (A 8).
Não é difícil admitir que o acusado substituiu o jogo já exaurido e estéril das
verossimilhanças pela força dinâmica dos fatos116. Esse desvio notável forma uma nova
álibi é sem dúvida muito espontânea: seguindo as prescrições legais basta submeter à
115
Dipolias era uma festa em honra de Zeus Polieus.
116
A esse respeito, Caizzi observa que o acusado contrapõe os fatos ao que é verossímil visando adquirir
um álibi. Sobre o papel desse álibi, ela escreve: “È chiaro che quest’offerta finale há uma grande
importanza nello svolgimento della causa; e pare mostrare che tutta una serie di ipotesi fondate su eikhós
puó venir smantellata di fronte ad um ergón, un fatto accertabile con gli strumenti giudiziari consueti,
accettati da entrambe le parti (Caizzi, 1969, p. 207).
173
tortura todos os escravos do acusado, testemunhas capazes de confirmar a ausência do
patrão no local do crime, para obter uma prova verdadeira, concreta, de sua inocência.
Com efeito, o extraordinário impacto causado pelo álibi possibilita ao acusado lançar
“Eu teria medo, dizem eles, pela minha riqueza: isto seria o motivo verossímil (eikótos) do
assassinato. Erro completo: é aos desafortunados que inovar pode beneficiar, pois é provável que sua má
situação melhore: mas os bem afortunados devem ficar tranqüilos e proteger seu êxito atual, pois a
mudança só pode lhes fazer passar da boa fortuna ao infortúnio” (A 9).
atingido pelo infortúnio, que surge uma impossibilidade por onde o real toma seus
direitos: é impossível que um homem permita que sua felicidade seja destruída pelas
o melhor que se tem a fazer, o infortúnio é de fato uma catástrofe, uma queda
vertiginosa e trágica. Se nos movermos para o pólo oposto do pensamento, como sugere
o acusado, é certo concluir que apenas aos desgraçados, que desconhecem a felicidade,
desfavorável, ele se torna favorável, e em vez de tornar-se o seu ponto fraco, fornece à
174
A fim de mostrar como as coisas mudaram a seu favor, o acusado termina sua
termos dos quais o adversário tirava sua força e afastar a relação que ele via neles,
“Eles simulam apoiar-se em verossimilhanças (ek tôn eikõton) para me condenar: eles dizem que
sou não o assassino verossímil do homem, mas o real (ouk eikótos all´óntos phonéa me phasi toû andròs
eînai). Mas ficou demonstrado que as verossimilhanças são mais a meu favor (ta dè eikóta allá pròs emoû
mâllon apodédeiktai ónta). Quanto ao testemunho, ficou estabelecido que é suspeito nele mesmo e que
não é possível controlá-lo. Permanecem as presunções: eu fiz ver que elas são a meu favor, e não a favor
deles; e a pista do assassinato não recai sobre mim, mas sobre aqueles que eles inocentam. Nenhuma das
acusações merece crédito, isto foi demonstrado: e não é porque eu serei absolvido que não haverá mais
recursos para incriminar os culpados; a verdade é que, se eu for condenado, não haverá para os acusados
nenhuma defesa eficaz” (A 10).
Nessa última grande cena de confronto, é com muita astúcia que o acusado
resume tudo o que foi dito sobre os dois lados da questão. O acusado deixa-se deter
nessa retrospectiva dos argumentos para torná-los mais convincentes, pois, é ao nutrir e
renovar as controvérsias, que ele consegue produzir uma visão afirmativa da própria
inocência. Nesse caso, voltar atrás é uma maneira de seguir adiante, visto que ele
antecipa o trabalho dos juízes ao estreitar a relação entre os dois discursos inversos e ao
àqueles a que está respondendo. Ele insiste numa questão essencial: devem os juízes
pelo acusador?
175
“Acusando-me de modo tão injusto, eles têm a pretensão, tentando fazer com que eu morra de
modo sacrílego, de serem puros; e porque eu tento vos persuadir a respeitar a piedade, é a mim que eles
consideram sacrílego. Pois bem, eu que sou puro de toda reprovação, em meu nome, eu vos convoco a
respeitar o caráter sagrado da inocência; e, em nome da vítima, eu vos lembro da vingança que lhe é
devida, eu vos exorto a não deixar escapar o culpado, condenando o inocente. Pois o culpado, se eu
morrer, ninguém o procurará mais. Obedecei aos deveres religiosos e, tal como o exigem a piedade e a
justiça, absolvei-me; temerosos de reconhecer um dia vosso erro e de vos arrepender: em tal caso, o
arrependimento não tem remédio” (A 11-12).
Esse epílogo serve para definir o próprio discurso de defesa como uma espécie
de guia ou mapa que aponta aos juízes o caminho que eles devem trilhar, um passaporte
rumo à inocência do réu. Ainda que o ponto de partida desse discurso seja a
pronunciada pelo orador se concentra. É aqui, no epílogo, no fecho do discurso, que ele
encontra esse porto seguro, lugar onde a proclamação dos deveres religiosos expressa as
de aproximação que unem piedade e justiça117, pois desprezar tais vínculos significa
negar a origem sagrada do direito. Sem dúvida, o acusado tem consciência de que, na
fronteiras que dividem e opõem o direito humano e o direito divino. Por isso, o acusado
a ordem cívica. É nesse espaço de atmosfera fascinante e mistificadora que ele exorta os
juízes a “não deixar escapar o culpado, culpando o inocente”. É para manter o precário
equilíbrio entre a esfera divina e humana que os juízes precisam, ressalta o acusado,
observar que uma condenação injusta e impiedosa produz na vida da cidade a anarquia
material e espiritual.
117
Caizzi observa que a presença do binômio “piedade e justiça” simboliza a origem divina das leis
humanas (1969, p. 209).
176
Conclusão certamente convincente, ao final de um longo exercício dialético.
Uma vez que depende dos juízes o juízo final, no final a história chega ao fim com eles,
pois, como afirma Antifonte, cabe aos “juízes soberanos das causas mais graves” a
manutenção da justiça.
177
2º Discurso de Acusação 2º Discurso de Defesa
Epílogo (colunas 10-11) Advertência aos Epílogo (colunas: 11-12) Advertência aos
juízes: se o acusado for absolvido injustamente juízes sobre a necessidade da veneração do
o fantasma do morto irá perseguí-los. Somente caráter sagrado da inocência. A absolvição está
a condenação do culpado poderá purificar a em conformidade com a aplicação da lei e com
cidade. o cumprimento dos deveres religiosos.
178
CONCLUSÃO
pensamentos, entre a boca e o coração. Meu desejo é que o texto desta dissertação
atenta, é possível perceber no texto antigo e, por outro, a força das imagens que dele
nosso percurso.
políticas, o homem comum busca, no plano jurídico, meios para se afirmar enquanto
entre as potências religiosas Díké, a justiça e Ares, a discórdia. Este confronto das
poema trágico, sempre que os deuses interferem na vida dos homens é para viabilizar a
desta tensão trágica. Por essa razão, insistimos, em nossa pesquisa, na associação entre
179
o método discursivo das antilogias de Protágoras e os duelos oratórios das cenas de
Afinal, o que é a antilogia? A antilogia é a arte de discursar que tem como meta
o confronto de duas teses. Para além de uma definição tão precisa e breve como esta,
propomos pensar numa definição mais centrada no texto das Tetralogias. Assumindo
outro, nossa relação inquiridora com as palavras que circulam ao nosso redor e nossa
capacidade tão humana de buscar por trás de uma primeira causa, uma outra causa, ao
passionalmente aos juízes o que se propõe "provar", mostra que é tarefa do orador agir
180
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Edition. Oxford, [1940] 1996.
186
ANEXOS
que seguem as exigências de forma e conteúdo que são necessárias para a identificação
ANEXO I118
Oréstia
118
Para a estrutura formal da tragédia grega seguimos as indicações apresentadas por Aristóteles na Arte
Poética XI-XII. Para o esquema das tabelas ver: Centro Virtual de estudos
Clássicos.http://www.sbec.com.br
187
Diálogo entre o coro e Agamêmnom que chega Cena de reconhecimento ou
ao palácio à frente de um grande cortejo. O anagnórisis: É a saída de um
coro faz homenagens ao rei. Agamêmnom fala estado de ignorância para o
sobre a gratidão dos deuses para com os conhecimento, seja este a
Aqueus e elogia a fidelidade e a coragem de descoberta de algum vínculo de
Odisseu durante a guerra e cujo paradeiro é sangue entre as personagens, ou
desconhecido. Finalmente acontece o diálogo a descoberta de alguma ação
3º Episódio entre Agamêmnom e Clitmnestra. A rainha dá praticada pelo personagem. Este
início a conversa dizendo que sentiu uma é o caso desta cena, onde
solidão insuportável durante a ausência de Agamêmnom narra seus feitos
Agamêmnom. Ele agradece todas as honrarias durante a guerra e reconhece a
concedidas em seu nome. Antes de entrar no altivez de Odisseu.
palácio orei ordena às criadas que cuidem de
Cassandra, sua prisioneira que veio de Tróia (v.
874-1121)
O coro canta, em tom profético, vaticínios
terríveis. Ele enfatiza que a "fortuna" dos
3º Estásimo
homens caminha numa marcha cega e
inexorável, rumo à destruição (v. 1122-1175).
Diálogo entre Clitmnestra e Cassandra que Cena Patética: Ocorre quando o
permanece em silêncio. Neste momento o coro personagem expressa seu
interfere dizendo que Cassandra fala uma sofrimento e sua dor durante a
4º Episódio "língua exótica". Clitmnestra sai de cena e tem cena. Como exemplo podemos
início um diálogo entre o corifeu e Cassandra. citar esta cena onde Cassandra,
Ela começa a profetizar a própria morte e o ao profetizar a própria morte,
assassinato do rei (v. 1176-1532). lamenta o seu destino.
O coro canta o destino que os deuses
concederam à Agamêmnom que deverá pagar
4º Estásimo
com a própria morte pelas mortes que ele
acarretou (v. 1533-1547).
Diálogo entre o coro e Clitmnestra. Em meio Cena de Catástrofe: São as
aos gritos de Agamêmnom, que acaba de ser cenas de violência, que
ferido mortalmente, os anciãos do coro geralmente não são
comentam o crime. Eles decidem entrar no representadas no palco mas
palácio para defender o rei. Quando as portas narradas, posteriormente, por um
do palácio se abrem eles avistam os corpos de dos personagens. Na cena de
Agamêmnom e Cassandra. Clitmnestra está ao catástrofe sempre ocorre uma
lado dos cadáveres com as mãos mudança para pior no destino de
ensangüentadas e se dirige ao coro dos anciãos um personagem. Neste episódio,
desmentindo as palavras amáveis que ela por exemplo, o assassinato de
5º Episódio
pronunciou durante o cortejo do rei e termina Agamêmnom por Clitmnestra
elogiando seu ato criminoso. O coro condena as caracteriza a cena de catástrofe.
palavras e ações insensatas da rainha, tem
início entre as duas partes que defendem pontos
de vista opostos. Ocorre um jogo de réplicas
não simétricas, neste caso temos uma cena
onde o conteúdo corresponde ao de uma cena
de ágon , que não pode ser classificada como
tal devido a insuficiência de elementos formais
(v. 1548-1812).
O coro canta o sábio mandamento de Zeus que
diz:: "quem for culpado há de sofrer castigo". O
coro lamenta o destino dos Átridas que é
5º Estásimo
marcado pela maldição imposta pelos deuses
que, neste momento, fazem de Agamêmnom a
sua principal vítima (v. 1813-1821).
Diálogo entre Clitmnestra e seu cúmplice Cena de agón
Êxodo
Egisto, primo de Agamêmnom. Ambos dizem Corifeu: Não é da natureza
Episódio Final
que fizeram justiça com as próprias mãos. Com dos argivos adular os homens
188
esse crime Clitmnestra vingou a morte da filha vis!
Ifigênia e Egisto vingou a morte de seus irmãos Egisto: Verei chegar em breve
que foram assassinados pelo pai de o dia de vingar-me deste
Agamêmnom, o rei Atreu, e servidos num atrevimento!
banquete. Em seguida temos um diálogo entre Corifeu: Não verás esse dia,
o corifeu e Egisto. Para o corifeu a vingança do um deus há de guiar Orestes
povo está nas mãos de Orestes, filho de para cá!
Agamêmnom. O corifeu afirma que Orestes é o Egisto: Sei bem que os exilados
único que tem direito legítimo de ocupar o se alimentam de esperanças
trono de Argos e, para que isso ocorra, ele ilusórias.
precisa deter Egisto que age como se fosse Corifeu: Prossegue! Adorna
sucessor de Agamêmnom. Para se defender de com sarcasmo, enquanto
tal injúria Egisto começa a discutir com o podes, teus nefandos crimes!
corifeu. Essa discussão é um duelo oratório Egisto: Serás sem falta
marcado pelas réplicas ordenadas e breves. castigado pelas insolências ora
Aqui encontramos todos os elementos ditas!
necessários para incluirmos esse debate entre Corifeu: Ostenta força alheia,
os personagens dentro dos moldes do agón galo presunçoso perto da
lógon., tal como era encontrado nos debates dos galinha! (v. 1949-1955).
tribunais e nas lutas erísticas, onde a técnica
discursiva das antilogias prevalecia entre os
debatedores. O conteúdo e a forma presentes
nesse diálogo cumprem as exigências
estabelecidas pela definição da cena de agón
(v. 1822-1957).
189
Partes Diálogos Falados,
Cenas Típicas da Tragédia
da Tragédia Diálogos Líricos e Monodias
Nas Eumênides a ação é transferida de Argos
para Delfos. Os primeiros noventa e dois
versos são cantados pela profetiza no templo
de Apolo, em Delfos. Ela começa invocando
os deuses que concedem aos humanos os dons
da profecia. Ao entrar no templo ela encontra
Prólogo
Orestes junto ao altar central, como suplicante,
com o punhal nas mãos. Um grupo de Erínias
dormem nos assentos do templo, bem
próximas de Orestes. A profetiza sai de cena
invocando Apolo e pedindo ao deus a
purificação de Orestes.
Diálogo ente Apolo e Orestes. Apolo promete
defender Orestes da maldição das Erínias,
deusas da antiga tradição. Orestes agradece ao
1º Episódio
deus de Delfos que recorre ao deus Hermes
para conduzir Orestes ao julgamento no templo
de Palas Atena em Atenas (v.93-137).
Ainda em Delfos entra em cena o fantasma de Cena Patética
Clitmnestra. O fantasma da rainha se dirige as Clitmnestra expressa a sua dor
Erínias com palavras ásperas dizendo que elas dizendo que nas profundezas do
não estão cumprindo o seu papel de inferno as demais almas não
2º Episódio
vingadoras, pois deixaram Orestes escapar. O param de humilhá-la, mesmo ela
fantasma de Clitmnestra canta o seu tendo sido vítima do próprio
sofrimento no mundo dos mortos, onde ela é filho.
chamada de assassina impiedosa(v. 138-190).
O corifeu desperta e começa a convocar as
outras Erínias para continuarem a perseguir
Orestes. O coro de Erínias começa a entoar
Párodo
uma ladainha onde cantam os seus sofrimentos
provocados pelas transgressões dos novos
deuses, Apolo e Atena (v.191-233).
Entra em cena Apolo. O deus de Delfos, com o Cena de Reconhecimento ou
arco nas mãos, expulsa as Erínias do seu anagnórisis
santuário. Ocorre uma primeira contestação Apolo reconhece que o seu
entre as Erínias, e Apolo. As Erínias acusam o oráculo ordenou que Orestes
3º Episódio deus Apolo de ser cúmplice no matricídio. assassinasse a própria mãe para
Apolo sugere que o julgamento do crime seja vingar a morte do pai.
encaminhado por Atena. A cena termina com
os personagens se dirigindo para o templo de
Atena (v. 234-310).
Orestes entoa uma prece para a deusa Atena
pedindo-lhe proteção. Abraçado a imagem da
1º Estásimo
deusa, Orestes diz que está aguardando o
veredicto da justiça (v.311-323).
Diálogo entre o coro das Erínias e Orestes. As
Erínias entram em cena perseguindo Orestes e
4º Episódio clamando por vingança. Orestes diz que está se
purificando do crime cometido, pois passou
por vários rituais de purificação (v. 324-417).
O coro de Erínias fazem uma roda em volta de
Orestes e começam a dançar e cantar um hino
de terror. Elas cantam a história das suas
2º Estásimo
origens e falam sobre a sua tarefa de evitar que
as novas divindades afastem-nas de sua missão
vingadora (v.418-516).
5º Episódio Atena entra em cena e dirigindo-se ao coro das
190
Erínias pede que elas se identifiquem e
justifiquem o seu rancor com relação aos
novos deuses. As Erínias apresentam os seus
ancestrais e falam sobre a necessidade de
vingança devido ao matricídio cometido por
Orestes. Atena se dirige a Orestes pedindo que
ele se identifique e justifique a sua presença
no templo. Depois de ouvir as duas partes
Atena decide convocar os melhores cidadãos
de Atenas para julgarem o crime (v. 517-650).
O coro das Erínias profetizam a própria derrota
e advertem os mortais dizendo que sem os
3º Estásimo
castigos e sem o respeito às antigas divindades
a anarquia tomará conta da cidade (v.651-739).
Atena entra em cena e institui o tribunal do Cena de agón
Areópago. A deusa pede aos participantes Corifeu: Nossa presença
deste litígio que formalizem suas testemunhas pesará sobre essa terra se
e provas que servirão para reforçar suas razões tentares privar-nos de nosso
perante os juízes. O debate começa com o direito.
interrogatório de Orestes, pois as Erínias são Apolo: Exorto-vos a respeitar
responsáveis pela acusação. Orestes, após as profecias que não são
responder ao interrogatório, pede o somente minhas, pois vêm de
depoimento de Apolo. O deus de Delfos Zeus também! Não mateis seus
dirige-se às Erínias dizendo que foi Zeus frutos!
quem determinou a vingança de Orestes contra Corifeu: Estás intrometendo-te
a própria mãe. As Erínias contestam dizendo em crimes sangrentos, que
que Zeus não pode ter especial apreço pelos nada tem a ver com tuas
pais, pois ele correntou seu próprio pai, o deus profecias; se persistires não
Cronos. Atena interfere na discussão terás os lábios puros para
convocando os juízes para depositarem os exercer tuas funções
votos na urna. No momento do julgamento tem oraculares.
início um verdadeiro duelo oratório entre Apolo: Então meu pai estava
Apolo e a Erínia que representa o corifeu. Este errado quando Ixíon, o
duelo possui todas as características de uma primeiro assassino, aproximou-
cena de agón e segue as formas dos debates se dele pedindo proteção como
6º Episódio
judiciários. Na cena seguinte Atena conta os seu suplicante?
votos e declara que Orestes foi absolvido (v. Corifeu: Disseste estas
740-1030). palavras! Se nos derrotares,
nossa presença trará males
para Atenas!
Apolo: Sois desprezadas tanto
pelos deuses novos como pelos
antigos! Vereis meu triunfo!
Corifeu: Anulas a partilha feita
há muito tempo e enganas com
teu vinho antigas divindades!
Apolo: Desgosta-vos a decisão a
ser tomada e apenas cuspireis
sobre quem vos enfrenta um
veneno de agora em diante
inofensivo.
Corifeu: Sentes prazer em
humilhar nossa velhice, deus
novo, espero ouvir o veredicto
aqui, freando a minha ira
contra esta cidade.
As Erínias do coro lamentam com muita
4º Estásimo tristeza e rancor o resultado do julgamento.
Elas condenam ao sofrimento e a destruição a
191
cidade e as suas novas leis e dirigem-se aos
novos deuses com palavras de maledicência (v.
1031-1048).
Diálogo final entre Atena e as Erínias. Atena Peripécia: Mudança na sorte das
esforça-se para persuadir as Erínias a se personagens numa direção
integrarem na nova ordem da cidade, inversa ao que se esperava. Tal
Êxodo prometendo às antigas deusas um santuário em ocorre nesta cena: as Erínias, que
Episódio Final Atenas. No final da cena as antigas divindades prometiam vingar a derrota no
reconciliam-se com Atena e passam a morar em julgamento de Orestes, acabam
Atenas e a proteger seus cidadãos (v. 1049- se transformando em deusas
1367). benévolas (= Eumênides).
192
ANEXO II
Antígona
193
misteriosamente, o cadáver havia sido coberto
com uma camada de terra, além de receber as
oferendas fúnebres. Creonte, muito irritado,
acredita que tal ato tenha sido executado por
aqueles que conspiram contra o seu governo (v.
162-332).
O coro canta o famoso "hino á grandeza do
homem" e as suas conquistas como: a
navegação, a agricultura, a caça, a pesca, a
1º Estásimo domesticação dos animais, a fala, o pensamento,
a arquitetura, a medicina e a capacidade de
organizar a vida em sociedade através das leis
(V. 335-375) .
Entra em cena o guarda acompanhado por Cena de agón:
Antígona que foi presa ao tentar sepultar, pela Creonte: Dos filhos de
segunda vez, seu irmão Poliníces. Na presença Cadmo, és a única a encarar
de Creonte, Antígona assume o seu ato os fatos dessa maneira.
transgressor. Creonte inicia o interrogatório da Antígona: Estes também
culpada. Antígona defende a sua atitude em concordam comigo, mas
oposição as determinações de Creonte, tem refreiam a boca na tua
início a cena de agón. Antígona afirma que o preseça.
édito do rei não tem o poder de subjulgar "os Creonte: E tu não tem
preceitos não escritos, mas imutáveis dos vergonhas de pensares dessa
deuses," pois é mais valioso seguir a lei dos maneira?
deuses do que temer a lei escrita por um Antígona: Não é opróbrio
homem. Creonte responde dizendo que embora prestar honras aos que
Antígona seja sua sobrinha não escapará como nasceram das mesmas
vitoriosa da "pior das sortes." As duas partes entranhas.
passam a defender suas posições através de Creonte: Com que então não
réplicas curtas e simétricas, que reproduziremos era do mesmo sangue o que
no quadro ao lado. A cena de agón termina morreu no campo adverso?
quando Ismena entra em cena e tenta dividir Antígona: Do mesmo sangue,
com a irmã a autoria do sepultamento, mas e filho da mesma mãe e do
Antígona recusa o auxílio tardio. Ismena mesmo pai.
implora a Creonte o perdão argumentando que Creonte: Nesse caso, como
Antígona é noiva de Hemom, filho de Creonte. podes prestar-lhe um tributo
2º Episódio
O rei determina que as duas irmãs sejam ímpio aos olhos do outro?
condenadas à pena capital (v. 376-581). Antígona: Não será esse o
testemunho do falecido.
Creonte: Mas sim, já que o
honras do mesmo modo que
ao ímpio.
Antígona: Não foi um escravo
que morreu; foi um irmão.
Creonte: ...Que ia assaltar
esta terra; o outro tomou
armas por ela.
Antígona: Hades deseja,
contudo, que o ritual seja o
mesmo.
Creonte: Mas ao honesto não
compete o mesmo que ao
malvado.
Antígona: Quem sabe se
debaixo da Terra isso não é
exato. Creonte: O inimigo
jamais se tornará amigo, nem
mesmo depois de morto.
Antígona: Não nasci para
194
odiar, mas sim para amar.
Creonte: Agora que vais lá
para baixo, ama-os, se amar
se devem; mas, enquanto eu
viver, não será uma mulher
quem dá ordens (v. 508-525).
195
de razão?
Hémon: Queres falar e depois
não ter que ouvir.
Creonte: Sim, pois pelo
Olimpo fica sabendo que não
me ultrajarás com as tuas
censuras impunemente. (Para
os guardas) Tragam essa
abjeta criatura, para que
morra imediatamente diante
dos olhos do noivo, e ao lado
dele.
Hémon: Não de mim, com
certeza, não o julgues jamais;
nem ela perecerá perto de
mim, nem de modo algum
avistarás o meu rosto, vendo-
o com os teus olhos. De forma
que serás louco, sim, mas na
companhia dos amigos que o
queiram (v. 740-766).
O coro canta o poder de Eros confirmando,
deste modo, os sentimentos que envolvem
Hèmom e Antígona. Diálogo entre o coro e
Antígona que expressa toda a sua dor de padecer
3º Estásimo injustamente. O coro responde dizendo que
Antígona Segue para o Hades como uma pessoa
"ilustre e coberta de elogios", embora expie a
falta cometida pelos seus antepassados (v. 781-
882).
ANEXO III
Orestes
198
desventuras?
Orestes: Ó ancião, eu bem
receio falar diante de ti num
assunto em que vou causar
mágoa ao teu espírito. Eu sei,
sou ímpio por ter matado a
mãe, mas piedoso certamente, a
outro título, por honrar o pai.
(...) Que devia eu ter feito? Na
verdade compara as idéias duas
a duas: por um lado, o pai
gerou-me, por outro, tua filha
deu-me á luz, como terra que a
semente recebeu das mãos de
outro; contudo, sem pai, nunca
um filho existiria. Entendi, por
isso, que ao primeiro autor dos
meus dias eu devia mais o ser,
do que àquela que se
encarregou de me criar (...) E
sobre as palavras ameaçadoras
que pronunciaste, de que eu
devo ser lapidado escuta como
fui útil a toda a Hélade. Se,
efetivamente, as mulheres
chegarem a este grau de
audácia de matarem os
maridos, obtendo refúgio junto
dos filhos, ao mostrarem
compaixão mostrando os
peitos, nada lhes custará
fazerem perecer os esposos, a
pretexto de um agravo,
qualquer que ele seja. Ao
praticar uma ação terrível,
como tu alardeias, eu aboli este
costume.
O coro canta a mudança da "fortuna" dos
Átridas.
Aqui, a imagem da roda da fortuna torna-se
nítida nas palavras do coro que, relembrando o
2º Estásimo sucesso da vitória dos Átridas, Agamêmnom e
Menelau durante a guerra de Tróia, mostra que
a felicidade do passado cedeu lugar ao terror
da discórdia marcado pela sucessão de crimes
(v.807-843).
Este é o episódio mais longo da peça. De Cena de Catástrofe
início temos o diálogo entre Electra, o coro e o Nesta cena, a notícia da pena de
mensageiro. O coro e Electra aguardam morte anunciada pelo mensageiro
notícias da assembléia que foi instituída para marca a consumação da maldição
votar o seu destino e o de Orestes. O imposta aos Átridas pelos deuses.
mensageiro chega da cidade e comunica à Os personagens condenados à
3º Episódio Electra a sua sentença de morte e a de seu morte expressam todo o seu
irmão que foi promulgada pela assembléia dos sofrimento e num ímpeto de
cidadãos. O mensageiro narra, resumidamente, desespero e insanidade decidem
os discursos de acusação e defesa dos oradores levar ao extremo seus atos
que participaram da assembléia. Esses criminosos e se voltam para a
discursos refletem o entrechocar-se das imoralidade ao planejarem o
opiniões dos contendores. Se aceitarmos as assassinato de Helena e o rapto
199
restrições textuais, pois os discursos não são de Hermione.
apresentados na sua totalidade, podemos dizer
que, durante a assembléia, a apresentação dos
discursos de defesa e acusação constituem um
agón.
Por fim, o mensageiro narra o breve discurso de
Orestes que repete o argumento utilizado na
discussão com Tíndaro. Com a mesma
profundidade, Orestes voltou a afirmar que
matou a própria mãe para defender a cidade da
insubordinação das mulheres. Orestes
conseguiu persuadir a assembléia a aceitar que,
ao invés da lapidação, ele e Electra dessem fim
as suas vidas. Electra ao ouvir estas palavras
começa a lamentar o próprio destino.
Terminado o lamento fúnebre o coro anuncia a
chegada de Orestes e Pílades. Tem início um
diálogo entre os dois irmãos sentenciados à
morte precoce. Orestes assume uma atitude de
patética coragem frente as lamentações de
Electra. Pílades participa do diálogo dizendo
que também deve morrer, pois foi cúmplice de
Orestes. Os dois amigos e Electra decidem que,
antes de morrer, é necessário vingar o inimigo.
Para isto eles decidem matar Helena e
seqüestrar sua filha, Hermione(v. 844-1352).
O coro canta a terrível decisão de vingança
anunciada pelos condenados e teme pela morte
de Helena, ainda que ela mereça ser punida
3º Estásimo
por ter causado muitos males à Hélade. O coro
anuncia a chegada de um escravo frígio,
serviçal de Helena (v. 1353-1368).
Marcado pelo longo diálogo lírico (kommos)
entre o coro e o escravo frígio que acaba de
fugir do palácio. O escravo narra a entrada de
Orestes e Pílades no palácio em busca de
Helena e Hermione para colocar em ação o
plano de vingança. Contudo, no momento em
4º Episódio que Orestes se preparava para cravar a espada
na garganta de Helena, ela desapareceu
misteriosamente. Na cena seguinte, Orestes sai
do palácio e ordena ao escravo fugitivo que ele
pare de contar o que se passa no interior do
palácio para que a cidade não fique sabendo do
seu plano de vingança (v. 1369-1536) .
O coro anuncia num tom mórbido a nova
seqüência de crimes que volta a atormentar o
4º Estásimo palácio dos Àtridas. Ele canta também as
desventuras do destino reservado pelos deuses
aos mortais(v. 1537-1553).
Menelau, recém chegado da cidade, anuncia a
Orestes que irá combater contra ele para
resgatar Hermione. Orestes mantém Hermione
5º Episódio como refém e ameaça colocar fogo no palácio
se Menelau não persuadir os cidadãos de
Argos a retirarem a sentença de morte (v.
1554-1624)
Apolo entra em cena acompanhado de Helena Peripécia
Êxodo que, desde então, passará a viver entre os A súbita aparição de Apolo, que
200
imortais. Apolo solicita a Orestes e Menelau se recusou a aparecer durante
(Episódio que façam o que ele ordenar, pois suas todo o processo de acusação e
Final) palavras exprimem a vontade de Zeus. O deus julgamento de Orestes, nos
ex machina interfere no curso dos mostra que a interferência
acontecimentos solucionando todos os operante e visível do deus atua
problemas e fazendo que tudo termine em mudando, num sentido inverso
harmonia. Ele assume a responsabilidade do do que se esperava, a sorte das
crime de Clitmnestra e ordena que Orestes personagens.
assuma o governo de Argos depois de um ano
de exílio e se case com Hermione. Ele sugere,
também, que Electra se case com Pílades . A
peça termina com o coro cantando as boas
dádivas concedidas pelos deuses aos mortais
(v. 1625-1694)
201