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Documentário emocional
Quando, na primeira metade dos anos 1990, a fotografia feita por africanos come-
çou a ser «descoberta», ou seja, divulgada por europeus e norte-americanos, Mo-
çambique estava na primeira linha e tinha uma forte história própria. Eram então
numerosos os autores expostos e publicados nos palcos internacionais, e Ricardo
Rangel era naturalmente a figura de referência da fotografia de Maputo. Foto-jor-
nalista que conseguira abrir um largo espaço de afirmação para as imagens na
imprensa colonial de Lourenço Marques, embora reconhecido como adversário do
colonialismo, mantinha-se como figura tutelar.
De facto, antes e depois da independência, a fotografia testemunhal e de interven-
ção foi objecto de especial atenção em Moçambique. Reconhecia-se-lhe um papel
relevante na imprensa liberal que o regime colonial tolerava (em especial o maga-
zine Tempo, fundado em 1970). Rangel e Kok Nam são os autores que mais se
destacaram, e eles juntam as qualidades de grandes fotógrafos a personalidades
carismáticas que lhes permitiram atravessar sempre na primeira linha e com inde-
pendência as mutações políticas. Da África do Sul chegara Rogério (Pereira), in-
formado do activismo mais radical e da revista Drum. Em paralelo, a Frelimo da
guerra independentista, primeiro, e depois o novo país revolucionário, na década
de Samora Machel, atribuíram à fotografia e ao cinema um grande papel comuni-
cativo e mobilizador, que contou com o apoio financeiro, técnico e humano de vá-
rias cooperações estrangeiras.
Tete, 1993
A sua actualidade não era, não é, a da guerra civil, da violência urbana ou da mi-
séria quotidiana - é de um panorama mais profundo e definitivo que se trata, à dis-
tância de muita fotografia africana que balança entre a vitimização e o exotismo.
Não é um olhar indiferente à realidade do País, pelo contrário - é um olhar interve-
niente, construtivo, lúcido e livre, e não há lugar na sua obra para retóricas fotográ-
ficas formalistas ou essencialistas. O País, Moçambique, está lá sempre, procura-
do num longo documentário, por vezes metódico, observado através uma outra
forma de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão
ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna
e íntima ou intimista. Fotógrafo culto, informado pela literatura e o convívio literá-
rio, viajado, por Itália, Estados Unidos e Portugal, à boleia de alguns prémios e
bolsas, ou de convites para exposições, Cabral tem um perfil de excepção e de
ruptura, original e crítico.
Para além de ter ensinado no Centro de Formação Fotográfica, desde 1986, com
Rangel e ao tempo de Gin Angri e de outros estrangeiros cooperantes, Cabral abre
a passagem entre o colectivo que foi a fotografia moçambicana e a emergência
dos novos fotógrafos que ensaiam destinos internacionais (primeiro Luís Basto,
depois Mário Macilau, Mauro Pinto, Filipe Branquinho) com quem se joga uma se-
gunda afirmação da fotografia de Moçambique, nas novas condições de mercado
internacional. Para isso contou a firmeza irredutível do homem e a sua obra, e em
especial a reivindicação da autoria desta obra, a diferença autoral, a individualiza-
ção do artista arriscadamente inscrito no seu meio. Essa foi a outra luta libertária
que era preciso travar.
Xai-xai, 1990
A comparência pública de Cabral nas duas décadas do séc. XXI fez-se em especi-
al através de exposições subtilmente antológicas, situáveis entre um lugar à mar-
gem e o reconhecimento público, da imprensa e dos seus pares. Foram sendo
construídas com a revelação de muito numerosos inéditos e tiveram um sentido
cada vez mais autobiográfico e intimista, que não transparece nos títulos das ima-
gens, sempre discretos, topográficos, mas que confere mais densidade emotiva à
objectividade do documentário. Não se trata de um discurso subjectivo e menos
ainda narcísico.
Em As linhas da minha mão, de 2006, na 3ª e última edição do fugaz Photofesta,
Encontros Internacionais de Fotografia de Maputo, usou o título de Robert Frank
como explícita pista de leitura e como homenagem, firmando a dimensão pessoal
de uma galeria de retratos, lugares e episódios, percurso de vida.
Espelhos Quebrados, 2012, foi outra revisão da obra, mais desafiadora, ao colo-
car-se o fotógrafo presente no fotografado, em situação e em cena, em jogo, em
risco. Apresentou parte em Lisboa (A Pequena Galeria, 2013) sob o título De per-
to, que precisamente refuta a possível distância de um autor-observador alheado
do mundo real e das suas circunstâncias.
Moçambique, este livro, fez-se entre Maputo e Lisboa, seguindo a via aberta pelo
autor nestas três exposições e revisitando parte do acervo de negativos, a que se
somaram ficheiros digitais de vária proveniência e condição. As cores da Ilha de
Moçambique e do livro falhado A Guerra da Água (1995, com um filme de Licínio
de Azevedo) são mais do que uma experiência, e são uma surpresa.