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Elizabeth Webster

O voo do cisne
Composição: Selecções do Reader's Digest - Lisboa
Impressão: Maury Imprimeur, SA - Mallesherbes, França
Encadernação e acabamento: Reliures Brun - Mallesherbes, França
1.' edição: Junho de 1993

ISBN: 972-609-076 - 8
Printed in France

“Voa.. voa... voa...


Livre... livre... livre...”

Para Laurie Collins, a batida das asas do cisne falava de uma mensagem irresistível fugir de um
marido que a espancava.

Fugir para salvar os filhos. Fugir e ser livre para sempre.

Mas, após a fuga, iam surgir novas necessidades. Porque a liberdade não é apenas partir. É
saber aonde se quer chegar...

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Parte I

O Esconderijo
O som sussurrante vinha do céu, forte, doce e estranho. Laurie olhou .
para cima, abraçando-se a si própria para parar de tremer... A dor, o choque
e o medo não desapareceram, e as nódoas negras no corpo e no rosto
marcado não deixaram de lhe doer. Mas o sussurrar longínquo e rítmico,
como música ao longe, aproximava-se e por algum motivo parecia trazer
consigo uma espécie de paz... ou talvez de segurança... Lá longe, dizia, alto
no céu, havia um mundo de ar azul e de sol, um mundo de espaços limpos e
abertos e sem pressões, para além do subir e baixar do vento... Sem medos
nem dúvidas, sequer, da nossa própria força e resistência. Um mundo de
liberdade.
Laurie levantou a cabeça para ver mais longe, por sobre as árvores
enfarruscadas de fuligem do pequeno quintal, e ali - num voo majestoso e
firme - vinham três cisnes brancos com os pescoços esticados numa linha
perfeita, apontando para o poente brilhante, e o seu bater de asas era lento,
forte e cheio de música.
“Livre... livre... livre...”, cantavam as asas pulsantes. “Fugir... fugir...
fugir...”, soavam ao passar no alto, douradas pelo sol. Observou-as até as
perder de vista, com a garganta a doer de lágrimas contidas.
“Sim”, pensou de pé ali, tremendo, no quintal miserável. “Fugir, fugir,
fugir! Para vocês é fácil, com todo o céu vasto e livre para voar.” - Mãe? -
chamou a voz de Jason da porta da cozinha. - Mãe? Fiz um pouco de chá.
Ela teve um suspiro profundo e entrecortado e levantou os olhos mais
uma vez para o pálido céu de Londres. Longe e ainda doce, parecia-lhe,
conseguia ouvir um leve sussurro de asas no vento.
- Lá vou - respondeu, e voltou a entrar na cozinha desarrumada.
“Francamente”, pensou, empurrando o cabelo para trás para afastá-lo da
testa ferida, enquanto limpava os pratos do almoço, “não devia deixar as
coisas chegarem a este ponto. Mas estou tão cansada. E tão confusa. E
quanto mais ele grita e me espanca, mais baralhada fico.”
- Vá lá, mãe... - Os braços de Jason abraçavam-na, conduzindo-a para a
cadeira. A voz meiga e jovem procurava consolá-la. Pôs-lhe a chávena de
chá à frente e tentou desajeitadamente arranjar-lhe o cabelo. - Quer que vá
buscar uma esponja para pôr no olho?
Ela abanou a cabeça.
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- Está tudo bem.
Mas não estava nada bem. De modo nenhum. Sobretudo a voz prática
do seu filho a falar com uma aceitação descontraída, nascida de muitas
ocasiões idênticas... “Quer que vá buscar uma esponja para pôr no olho?
Quer que varra os pratos partidos? Quer que telefone ao médico?” O rosto
infantil e preocupado do miúdo estava pálido com o esforço de tentar dar
algum apoio e conforto. Os olhos cinzentos estavam ansiosos e demasiado
abertos na face macilenta. Ela pôs-lhe um braço em volta dos ombros e
apertou-o com força.
- Não te preocupes, Jay. Estou bem. Onde está a Midge?
Ele mirou-a de forma estranha e séria, maduro e atento, muito para
além dos seus oito anos.
- Fugiu para o armário das vassouras e adormeceu. Por isso deixei-a lá,
onde estava a salvo. - Baixou os olhos para a sua própria chávena de chá,
mexendo com fúria. Depois, ergueu de novo os olhos e acrescentou:- Ela
está bem. Fui ver. Continua a dormir.
Laurie suspirou. Uma súbita onda negra de desalento invadiu-a,
esgotando-lhe a energia e a vontade. De que é que servia preocupar-se?
Estava presa ali naquela casa pequena e esquálida com um homem violento
que não fazia mais nada senão gritar e a erguer o punho contra o mundo
injusto - que não encontrava o trabalho a que estava habituado, não
suportava o facto de que era um falhado indesejável e gastava o tempo e o
dinheiro a embebedar-se até à inconsciência. Um homem que descarregava
a sua fúria e frustração na esposa esgotada, enquanto a filhinha se arrastava
para um armário e chorava até adormecer e o irmão assistia e tentava
confortar a assustada mãe.
Era demais. Era tudo demais, e ela não sabia o que fazer nem aonde as
coisas iriam parar. Enquanto lá fora, no ar azul e vasto, aquelas asas brancas
e puras pulsavam... pulsavam... Lá fora havia todo um mundo de árvores,
relva e céu.
- Jay - disse de repente -, pega no teu casaco. Eu acordo a Midge.
Levantou-se depressa, antes de mudar de ideias, e abriu a porta do armário
das vassouras. A criança estava deitada, enrolada num cobertor velho. O
cabelo, louro cor de mel como o da mãe, espalhava-se à volta da sua cabeça
em madeixas macias e emaranhadas. Uma das mãos apertava a juba de lã
do seu boneco preferido, um velho leão amarelo cujo pêlo de veludo estava
gasto e fino.
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“Como eu”, pensou Laurie, com uma centelha desesperada de humor.
“Estou fina de gasta. Na verdade, quase desfeita... Desfeita.” Aconchegou
Midge nos braços, procurou o casaco dela e enfiou-lhe os braços sonolentos
e passivos nas mangas. Depois, pegou no seu próprio casaco e na carteira e
seguiu Jason para a entrada estreita.
- Aonde vamos? - perguntou ele, seguindo pelo corredor pequeno e
escuro.
- Não sei... Ao parque... apanhar ar fresco.
Mas, ao chegarem à porta de entrada, alguém lhes barrava o caminho.
- Onde raio pensas tu que vais? - disparou Jeff.
O coração de Laurie contraiu-se. Viu logo que ele estivera a beber ainda
mais desde a hora do almoço. Estava bêbado e a fervilhar de fúria contra o
mundo negligente e desinteressado em geral e contra a jovem esposa em
particular.
- Ia... levá-los a passear.
- Ai ias, não ias? Pois podes voltar a entrar. - A mão disparou e fé-Ia
rodopiar, atirando-a para trás, para a porta da cozinha. - Sabes que horas
são? Ou estás demasiado passada para reparar? - A voz estava cheia de
sarcasmo. Parecia chocalhar-lhe na cabeça como uma dor física. - Se calhar,
é pedir muito ter comida pronta quando chego a casa. - Mas chegaste cedo...
- Cedo? Então, eu estive lá em baixo no Centro de Emprego a passar a
pente fino os anúncios todo o dia!
Ela fitou-o. Era óbvio onde ele passara a maior parte do dia. Mas não
valia a pena retorquir. Já fora violento que chegasse de manhã. Laurie
estremeceu.
- Não te ponhas com esse ar de mártir, sua manhosa - gritou ele de
repente, furioso. Até o silêncio dela era uma reprovação. - Volta ali para
dentro e cozinha alguma coisa, senão... - A mão elevou-se.
Ela recuou, sentindo os membros macios e sonolentos de Midge ficarem
rígidos nos seus braços. A mão infantil e tensa de Jason esgueirou-se para
dentro da dela. Olhou para baixo e viu o aviso nos olhos do filho.
“Agora, não”, pareciam dizer. “Agora, não. Não o deixe começar outra
discussão agora.”
Derrotada, voltou-se, entrou de novo na cozinha e, distraidamente,
começou a preparar qualquer coisa.
Mas a ira de Jeff ainda não se tinha esgotado. Quando Laurie pôs um
prato de comida à sua frente, ele mirou-o com nojo.
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- O que é isto?
- Estufado de feijão e lentilhas. Ele picou-o com o garfo.
- Onde está a carne?
- Não posso comprar carne todos os dias. O dinheiro não chega. Jeff
bateu com uma mão na mesa de tal maneira que toda a loiça saltou. E os
miúdos também, que estavam a tentar não ser vistos, a brincarem no chão.
- Dou-te mais que o suficiente. Tu é que és uma dona de casa miserável.
- Se não gastasses tanto no bar - replicou ela de súbito, corajosa e tão
zangada como ele estava -, podias comer carne todos os dias. Jeff pegou no
prato de estufado e atirou-lho. A mistura quente e peganhenta atingiu a
parede e ricocheteou para a cara dela, escaldando-a. O prato estilhaçou-se, e
um bocado de loiça partida em bico voou e cortou-lhe a face. O sangue e o
molho misturaram-se, pingando cara abaixo. Jeff levantou-se e dirigiu-se a
ela, cada vez mais furioso.
- Bebo - atirou - para esquecer que estou casado com uma ranhosa
ordinária como tu. -, Deu-lhe uma bofetada que a atirou contra o lava-loiça,
magoando-lhe as costas contra o bordo aguçado. - Olha para ti! Seu monte
de lixo sangrento. Lava essa imundície da cara.
Sem ver, ela virou-se para apanhar um pano húmido no lava-loiça. Ele
bateu-lhe outra vez. A sua cabeça bateu na parede com força e por
momentos ela ficou cega. Um zumbido alto e estranho começou a soar-lhe
nos ouvidos, quase como o voo dos cisnes.
- E bebo - gritou ele, debruçando-se sobre ela com ênfase aterrorizadora
- porque não consigo arranjar um emprego e ninguém quer saber peva do
que me acontece. Sabes o que me ofereceram hoje? Ir alcatroar estradas, a
mim que sou um vendedor!
Laurie segurava o pano húmido contra o rosto, fitando-o com os olhos
arregalados. As asas ainda adejavam na sua cabeça, tentando libertar-se.
Tudo estava desfocado. A cara distorcida de Jeff parecia subir e ficar estreita
num momento para depois encolher e esticar-se para os lados como um
balão monstruoso. Era uma sensação esquisita e aterrorizava-a.
- Um vendedor! - berrou ele, e começou a abaná-la selvaticamente. -
Arrastado para isto... - Abarcou com um braço a cozinha em desordem e as
crianças assustadas no chão e depois rodou-o com violência contra o rosto
dela. - Como é que posso trazer a casa um possível cliente para ver isto?
Quanto mais um eventual patrão!

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Estava a ficar entaramelado, e ela teve um desejo louco de rir. Desde
quando tivera ele possíveis clientes? Ou patrões?
Jeff deve ter vislumbrado o riso no rosto dela, porque bateu-lhe de novo
ainda com mais força, atirando-lhe a cabeça contra a parede novamente e
magoando-lhe as costas ainda mais contra o bordo do lava-loiça. Laurie
sabia vagamente que tinha de fazer um esforço para chamá-lo à razão. Pelo
menos pelas crianças, tinha de tentar parar aquilo de qualquer forma.
- Jeff - começou ela -, por favor. Eu sei que é frustrante...
- Frustrante! - berrou ele. - Bem podes dizê-lo. Contigo e com as crianças
penduradas ao meu pescoço como um fardo!
Ela baixou os olhos para a pequena Midge, agachada no chão. A suave e
meiga Midgezinha com os seus grandes olhos cinzentos. Um fardo?
- Então, porque não te vais embora? - Ouviu-se a si própria dizer com
um tom de coragem falsa na voz desesperada.
- Ir embora? - Soou como se ele não tivesse compreendido bem. Depois,
pareceu entender e desatou a rir. Era um som feio e fez arrepiar os cabelos
da nuca de Laurie. - Podia fazê-lo - ripostou, ainda a rir. - Tu até gostavas,
não era?
E então, como ela mais uma vez não respondesse, ele bateu-lhe de novo.
Ela percebeu nessa altura, num repente curioso e cristalino de
compreensão, que ele nunca a deixaria. Gostava de ter alguém em quem
bater e uma razão para a sua fúria e rancores. Ela e as crianças eram a sua
desculpa para os seus próprios fracassos e imperfeições. Não precisava de
se culpar a si próprio. Só tinha de puni-los a eles.
A eles? Laurie compreendeu que os filhos estavam em perigo. No
momento em que vislumbrava esta realidade, Jeff deu um passo atrás,
hesitante, e tropeçou no leão amarelo que Midge tinha deixado no chão, no
meio do terror, ao gatinhar para debaixo da mesa. Agora, ele avançava para
a criança com um punho levantado e um olhar vidrado de fúria.
- Seu pirralho maldito!
- Não! - exclamou Laurie, e pôs-se rapidamente em frente da mesa. -
Não, Jeff. A Midge não.
Ele nunca tinha batido nos miúdos. Até agora. Tinha sempre sido
Laurie que queria magoar, Laurie que queria humilhar e derrotar. Mas
agora o olhar no seu rosto ultrapassara o grau de sanidade. Ela teve medo.
Curvou-se e deitou os braços à criança.
- Jay - chamou bruscamente -, anda. Vou meter-vos aos dois na cama.
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- Não vais nada - gritou Jeff. - Deixa-os aí.
- Não - retorquiu Laurie, e recuou com rapidez, mantendo Jason atrás
de si.
Jeff virou a mesa de pernas para o ar -e veio atrás dela. Mas uma das
pernas da mesa revirada atingiu-o quando ele cambaleou para a frente,
ébrio, e fê-lo estatelar-se numa chuva de vidros e insultos.
As asas soavam muito forte na cabeça de Laurie.
Fugir... fugir... fugir!, diziam, e o som do seu voo seguro e rápido era
mais alto do que a voz de Jeff.
De alguma forma, sem saber bem como, Laurie encontrou-se na rua
com Midge nos braços e Jason ao lado, e a correr... a fugir no crepúsculo
azul da noite de Setembro, deixando muito' longe a figura minúscula de Jeff
aos gritos e a casa sufocante e acanhada. E com ela, enquanto corria, as asas
continuavam a pulsar.

Quando a pontada se tornou demasiado forte, ela parou para recuperar


fôlego. Estavam numa zona de Londres que não conhecia, mas as ruas eram
bem iluminadas e havia um quiosque de café aberto na esquina. Olhou para
baixo, para os miúdos, com os rostos voltados para ela numa pergunta
muda, indagando. E agora? Agarrou com força a alça da carteira. Tinha
algum dinheiro que guardara para o dia seguinte... O dia seguinte? Não
conseguia pensar até tão longe. Nesse momento, precisavam de uma bebida
quente e algo para comer.
Aproximou-se do quiosque com cuidado. Não sabia que aspecto
apresentava, claro, com o rosto marcado e o corte por baixo do olho ainda a
deixar escorrer um fiozinho de sangue, o cabelo solto em longas madeixas
desgrenhadas e os olhos arregalados, em choque.
O dono do estabelecimento deu-lhe uma olhadela e serviu uma caneca
de chá quente.
- O que é que os miúdos vão tomar? - perguntou.
- Chá - respondeu Jason prontamente. - Se faz favor. - E a pequenina?
Leite quente? Para a aquecer um pouco? Laurie acenou que sim com a
cabeça.
- Deixe ver - disse o homem com compreensão. - Sente-a aqui em cima.
Descanse um pouco os braços, menina. - Sentou Midge no balcão, que ficou
com as pernitas de quatro anos de idade penduradas, e o rosto ao mesmo

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nível do da mãe. Ela levantou uma mãozinha e fez uma festa na face ferida
de Laurie.
- Coitadinha da mãe - lamuriou. - Tão tristinha.
Laurie engoliu à pressa um gole de chá quente. A ternura inesperada de
Midge quase fora a última gota.
- Podia arranjar-lhes um cachorro quente?- pediu, tentando sorrir para o
rosto enrugado à sua frente.
- Com certeza. - O homem meteu duas salsichas quentes entre duas
fatias de pão com umas colheres de cebola. - Molho?
- Sim, se faz favor - respondeu Jason, acenando a cabeça. - Molho! -
concordou Midge, sorrindo como um anjo.
- E a senhora? - Os olhos castanhos atentos vigiavam-na sem surpresa,
mas não sem compreensão.
- Não, obrigada. Não tenho fome.
- Teve uma noite má? - indagou com delicadeza.
- Acho que sim... - Aquecia as mãos na caneca, mas não conseguia parar
de tremer.
Ele pareceu abarcar toda a situação, com a cabeça inclinada. - Vai para
casa? - inquiriu.
- Não - ripostou ela, e estremeceu de novo. - Nunca mais.
O homem fez que sim com a cabeça para si próprio, como quem
compreende demasiado bem o problema. O seu rosto enrugado, meio
velho, meio novo, tinha um ar abatido de compaixão. Já tinha visto tudo
aquilo anteriormente. Mas antes que lhe pudesse dizer mais qualquer coisa,
ela desfaleceu à sua frente.

Acordou num quarto desconhecido numa casa cheia de sons


desconhecidos. Estava deitada numa cama de campanha coberta com uma
manta cinzenta da tropa. Havia outra cama no quarto e dois beliches. Mas
não havia sinais dos filhos. Começou a levantar-se em pânico, mas o
movimento súbito causou-lhe uma dor violenta e penetrante na cabeça, e ela
voltou a recostar-se com as mãos na cabeça, que latejava.
- Está tudo bem - afirmou uma voz perto. - Tenha calma. - Os meus
filhos...
- Estão bem. A Penny está a tomar conta deles.
Laurie abriu os olhos. A dor abrandara um pouco. Deu consigo a olhar
para o rosto de uma mulher rija e seca, com cabelo cinzento curto, uma boca
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recta e determinada e olhos de um estranho tom dourado que pareciam
emanar calor e segurança.
Onde... Que sítio é este?
- É a Casa Hyde, um refúgio para mulheres. - Um... um refúgio?
- Exactamente. - Um ligeiro sorriso perpassou pela boca firme. -
Chamam-lhe O Esconderijo. E eu sou a fundadora, Jane Everett.
- Como é que eu... Como é que viemos cá parar?
- O Joe trouxe-vos. O dono do quiosque. Ele traz muitas vezes pessoas
para cá. Já viu muita coisa assim, o nosso Joe. E é um homem bom. Laurie
suspirou.
- Sim... Lembro-me. Foi muito bondoso.
Jane Everett acenou que sim com a cabeça. A seguir, sentou-se aos pés
da cama de Laurie e afirmou com suavidade:
- O seu sensato rapaz, Jason, disse-me o seu nome e o da Midge, mas há
uma ou duas coisas que quero saber. Acha que aguenta umas perguntas?
- Sim. Mas não sei as respostas... Jane voltou a sorrir.
- Pois, não creio que as saiba neste momento. Mas, ouça, eu quero que
vá para o hospital e que essa cabeça ferida seja vista, e eles vão fazer-lhe
perguntas.
- Não preciso...
- Precisa, sim, senhora. - Jane calou-se por momentos e depois
prosseguiu: - E se, como desconfio, não tem intenções de voltar para mais
espancamentos, pode precisar das provas dos seus ferimentos por parte do
hospital. Compreende?
Laurie mirou-a. Num repente, todo o assustador processo judicial... e as
consequências das acções de Jeff e as da sua fuga... se apresentaram aos seus
olhos como uma estrada de pesadelo.
- Ou quer voltar? - indagou Jane, ainda a falar com suavidade. - Não -
respondeu Laurie. - Não, não posso voltar. - Olhou com ansiedade para o
rosto da outra mulher, como a tentar justificar a sua decisão. - São as
crianças, percebe? - explicou ela com a voz a tremer. - Já não estão seguras.
Não estão... seguras... - Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.
Jane Everett rodeou-lhe os ombros com um braço.
- Não se preocupe agora. Estão perfeitamente seguras aqui. Vou mandá-
las com a Penny e pode ver com os seus próprios olhos.
Laurie fez que sim com a cabeça, esquecendo-se da dor, e depois deu
um ligeiro grito.
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- Desculpe - murmurou desamparadamente. - Desculpe estar a dar
tanto incómodo. - Mas não conseguia fazer parar as lágrimas. Nessa altura,
Jason entrou, equilibrando uma bandeja com pão com doce e uma chávena
de chá, e Midge trazia uma sardinheira vermelho-vivo. Com eles estava
uma alegre rapariga ruiva, grávida e sem aliança. - Eu sou a Penny -
apresentou-se e sorriu. - Vou partilhar este quarto consigo e com os miúdos.
Eles dão-se bem comigo, por isso pode deixá-los enquanto vai ao hospital
para ser vista. - Piscou um olho azul a Jason. - Ele e eu somos bons amigos,
sabe? Nós tomamos conta da Midge, não tomamos, Jay?
Laurie tentava comer pão com doce e parar de chorar ao mesmo tempo.
Jason abraçou-a.
- Não chore, mãe. Está tudo bem. Nós gostamos disto aqui.
O quarto rodava em frente dos seus olhos e ela deitou-se, exausta.
Penny deitou-lhe uma olhadela e fez sinal em silêncio a Jason. Depois,
pegou em Midge ao colo e saiu do quarto.

O pessoal hospitalar era activo, eficiente e inesperadamente bondoso.


Jane apresentou uma explicação breve da situação e anunciou que voltaria
para saber os resultados dos exames. Pôs então em movimento os processos
dos serviços sociais que iam ajudar Laurie e os filhos a sobreviver.
Laurie foi levada para as radiografias. Quando a despiram, até ela se
espantou um pouco com a quantidade das contusões. Parecia ter nódoas
negras por todo o lado; as costelas ardiam-lhe como brasas quando
inspirava; e a coluna, no sítio em que Jeff a atirara contra o bordo do lava-
loiça, provocava-lhe agora uma dor profunda e paralisante.
Deram-lhe uns pontos no corte da face e radiografaram-lhe a cabeça, as
costelas e a coluna. Depois, deitaram-na numa enfermaria. Tremia imenso
nessa altura, morta de frio, mas empilharam-lhe cobertores em cima e
trouxeram-lhe uma botija de água quente. A enfermeira de serviço
debruçou-se sobre ela, sorrindo, e disse:
- Não se preocupe. É só do estado de choque. Apareceu um médico
novo e sentou-se ao lado dela. - Sou o Dr. Lang - informou. - Como se sente
agora?
- Bem. Só tenho fr-frio... - Inspirou entrecortadamente. A cabeça ainda
estava estranha. As asas continuavam a rodopiar lá dentro, a tentar sair.
Tornava-se difícil concentrar-se.
- Queremos que fique cá esta noite. - Mas não posso. Os meus filhos...
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- Pode, sim, senhora. Os seus filhos estão muito bem entregues. - Sorriu
para ela confiantemente e pousou-lhe uma mão no punho, tomando-lhe o
pulso com dedos competentes e frescos. - Garanto-lhe que não vamos retê-la
por mais tempo do que o necessário. Temos poucas camas.
Ela tentou retribuir o sorriso. - Quais são os estragos?
- Tem uma ligeira concussão e uma possível fractura em cabelo.
Também tem três costelas partidas e uma equimose grave na coluna que lhe
vai doer muito durante algum tempo. - Deu-lhe uma palmadinha alegre no
braço e levantou-se. - Parece mau, mas, na verdade, são tudo coisas que só
requerem descanso. Teve sorte.
- Sim - murmurou ela. - Muita sorte...
Nessa altura, um funcionário dos serviços de registo entrou no quarto e
perguntou:
- Podemos fazer-lhe a ficha agora? Não devíamos chamar o marido?
- Não! - exclamou Laurie. - Não! Não podem!
- Deixem os formulários por agora - declarou o Dr. Lang com firmeza.
Laurie tentou sair da cama.
- Não posso ficar aqui! Deixem-me ir embora!
O médico agarrou no pulso de Laurie com uma das mãos e garantiu: -
Não vem cá ninguém. Não vou permiti-lo. Vamos dar-lhe qualquer coisa
para dormir. Esqueça tudo. Está absolutamente segura.
De algum modo, a voz calma e a pressão segura dos seus dedos longos
e frescos atingiram-na. Ela descontraiu-se e encostou-se para trás na cama,
exausta. Por fim, adormeceu.

De manhã, deixaram-na tomar banho, mas nem o toque agradável da


água quente no corpo macerado conseguia apagar a sensação das mãos
duras de Jeff, as pancadas intermináveis e castigadoras dos seus punhos e a
voz zangada - que parecia não se calar - a gritar-lhe dentro da cabeça
dorida. E aquelas asas ainda lá estavam.
Quando voltou à enfermaria em cima das pernas vacilantes, com uma
bata do hospital, Penny estava lá com uma mão-cheia de roupa limpa.
Sorriu.
- Vim buscá-la para a levar para casa - anunciou.
“Para casa?”, pensou Laurie. “Qual casa?” Em voz alta, perguntou
rapidamente:
- As crianças? Estão bem?
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- Claro que estão. Sãs que nem peros. Já vai vê-las.
Nesse momento, chegou o Dr. Lang. Verificou-lhe os olhos, estudou a
ficha e mais uma vez tomou-lhe o pulso com a mão fresca e firme.
- Vai aguentar-se - declarou, sorrindo. - Mas quero que tenha cuidado
durante pelo menos uma semana. Se as dores de cabeça piorarem ou
começar a ter visão dupla, volte cá imediatamente.
Laurie mirou-o, sentindo-se desorientada, mas não disse nada.
- Jane Everett tratou das coisas para que ficasse com as crianças na Casa
Hyde durante quinze dias - explicou ele ao ver a dúvida e confusão nos
olhos dela. - Depois disso, logo vemos...
- Ela disse pelo menos quinze dias - interrompeu Penny. - E eu posso
tomar conta dos miúdos. Vai poder fazer exactamente o que o doutor
mandou.
Laurie tapou a cara com as mãos e afirmou numa voz sufocada:
- Só queria... que não fossem todos tão horrivelmente simpáticos. O Dr.
Lang riu-se.
- Creio bem que vai habituar-se a isso. Embora possa aperceber-me de
que não tem tido muito contacto com a simpatia nos últimos tempos. “Nos
últimos tempos?”, pensou Laurie com tristeza. Há quanto tempo Jeff não
demonstrava qualquer simpatia? Há quanto tempo ela tinha medo de cada
vez que Jeff entrava em casa?
Não tinha sido sempre assim. Lembrava-se ainda de um tempo
longínquo em que Jeff tinha sido atencioso e amável, até ternurento. E lhes
trazia pequenos presentes para casa, e os seus olhos eram suaves e não
acusadores. Nervosamente, fez a pergunta vital:
- O que é que... Sabe se notificaram alguém? O médico sorriu.
- Dei instruções ao serviço de registo para notificarem o seu marido,
mas a carta só vai ser enviada hoje. - Uma ligeira piscadela pareceu
perpassar pelos olhos dele por um instante.
- Ah! - Laurie retribuiu-lhe o sorriso com uma breve onda de esplendor.
- Ah... obrigada.

Jeff estava confuso. Quando Laurie fugira de casa a correr, ele supusera
que voltaria em breve, contrita, como de costume. Mas não voltara.
Inspeccionou os destroços da cozinha e o guisado de lentilhas espalhado
pela parede. Tinha sido de facto ele que fizera aquilo? O que o enfurecera
assim tanto? Não conseguia lembrar-se, mas a ideia daquela cena assustava-
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o. Caiu na cama numa nuvem de álcool e autocomiseração e sonhou que se
encontrava num carrocel, a rodar cada vez mais depressa, de tal maneira
que ficava cada vez mais tonto com cada volta. E Laurie e as crianças
estavam de pé, de mãos dadas, ao lado, a observarem, muito sérias,
enquanto ele continuava a rodopiar e não conseguia sair...
Acordou a sentir-se enjoado e estranhamente assustado com qualquer
coisa. Não havia ninguém em casa, e o silêncio e o vazio pareciam troçar
dele. Precisava de uma bebida. O dia passou num nevoeiro de bares e uma
sensação de perda que ele não entendia bem. Quando regressou a casa,
ainda não estava lá ninguém. Começou a interrogar-se se poderia ter
acontecido alguma coisa a Laurie.
“Não”, pensou ele. “Ela está só a vingar-se. Se calhar, dormiu em casa
de um dos vizinhos.” Enfurecido, deu um pontapé na mesa tombada da
cozinha. “É melhor limpar esta porcaria”, continuou a pensar. Mas deixou
tudo como estava.
De manhã, encontrou a carta do hospital, um.formulário impresso com
os espaços preenchidos com: “Mrs. Laura Collins, casada com Jeffrey
Collins, Wetherby Terrace, 14, deu entrada, sofrendo de costelas partidas,
fractura do crânio, concussão, grave equimose na coluna e contusões
múltiplas.” Nem uma palavra sobre quanto tempo lá ia ficar nem como
adquirira os ferimentos. O estômago contraiu-se-lhe de medo.
O que lhes teria ela dito? Todos aqueles ferimentos não podiam ter sido
provocados por ele. É verdade que tinham discutido duas vezes num dia,
mas não, ela tinha com certeza sido atropelada por um carro ou assaltada
ou qualquer outra coisa.
Era melhor ir ver como ela estava. Mas, e se o acusassem? Era melhor
esperar que entrassem em contacto com ele. Ou a mandassem para casa.
Afinal, não diziam que corria perigo. Entretanto, precisava de uma bebida.
Um choque e tanto, notícias daquelas.
Mas, após uma manhã no bar, sentiu-se com mais coragem. Começou a
pensar: e se não a fosse ver? Não iam pensar que não se importava com ela?
Não ia parecer que ele lhe tinha mesmo dado uma sova? Talvez fosse
melhor ir e fazer um ar preocupado. Fazer um ar? Bom, ele estava mesmo
preocupado.
Pensou vagamente no que teria acontecido às crianças. Não podia tê-las
com ela, pois não? Alguém devia estar a tomar conta delas. Bom, que lhes

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fizesse bom proveito! Talvez ficassem com elas um dia ou dois e lhe dessem
um momento de descanso. Ia fazer-lhe muito bem.
Ocorreu-lhe que, se ia trazer Laurie para casa, como um bom marido,
era melhor primeiro dar uma arrumadela a tudo. Para o caso de alguém
querer vir verificar pessoalmente. Arranjar-se um bocado também.
Emborcou mais um gole e comprou uma garrafa para levar para casa. As
coisas podiam tornar-se feias no hospital.
De regresso a casa, varreu os vidros partidos e as loiças e lavou todos os
pratos no lava-loiça. A seguir, limpou o guisado da parede. Ficou um pouco
abalado por lá encontrar sangue também. Por essa altura, a sua coragem
estava a evaporar-se de novo, por isso parou para beber uma boa dose de
whisky. Não gostava de hospitais nem nas melhores alturas, e aquela visita
podia ser traiçoeira.

- Venho ver a minha mulher, Mrs. Laura Collins - anunciou Jeff.


A recepcionista respondeu, sem sequer levantar os olhos:
- Segundo andar. Enfermaria dez. Apanhe o elevador ao fundo do
corredor.
Jeff apanhou o elevador. Sub-repticiamente, tomou mais um trago da
garrafa de whisky escondida no bolso. À entrada da enfermaria 10, cruzou-
se com uma enfermeira.
- A minha mulher, Laura Collins Pôs o seu ar mais simpático. - É esta
a enfermaria dez?
A enfermeira mirou-o.
- Mrs. Collins? - Fez uma pausa. - Espere um momento - acrescentou
com rispidez. - Vou saber.
Por fim, a enfermeira voltou e convidou com delicadeza:
- Não se importa de esperar aqui, Mr. Collins? O Dr. Lang já desce para
falar consigo. - Conduziu-o por uma porta para dentro de uma pequena sala
de espera. - O doutor não se demora.
Derrotado, Jeff sentou-se numa cadeira ao lado de outro homem que
também estava à espera. Em breve, o outro homem foi levado. Só deu
tempo para Jeff dar mais outra golada rápida antes de o rosto sério do
jovem médico aparecer no umbral.
- Mr. Collins? - Sim, sou eu. A resposta do médico foi seca e sem meios-
termos.

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- Receio que tenha chegado tarde demais. - Depois, pareceu parar
deliberadamente, observando o terror súbito nos olhos de Jeff.
- O quê?
- Demos-lhe alta ontem.
Jeff ficou furioso de repente. Assustá-lo daquela maneira. Tinha
pensado por momentos que... e, afinal, ela não estava mal!
- Deram-lhe alta? Para onde? O Dr. Lang encolheu os ombros. - Não
faço a mínima ideia.
- Mas... Onde é que ela está? Não deixou um endereço?
- Só o seu endereço, Mr. Collins, e esse com muita relutância. - O quê?
Ela... Ela disse alguma coisa?
- Acerca de quê? Acerca de como adquiriu os ferimentos, talvez? Jeff
sentiu outra onda de medo.
- Bem, e disse? - A voz saiu-lhe demasiado alta, demasiado truculenta.
- Ela não contou muita coisa. Tinha uma concussão e estava em estado
de choque.
- Deve ter caído - tartamudeou Jeff. - Atropelada por um carro ou coisa
assim. Não perguntou por mim?
- Perguntar por si? - O médico parecia frio e desdenhoso. - Não, não
perguntou. Na realidade, a única vez que se mencionou o seu nome ela
ficou tão assustada que tentou sair logo nessa altura do hospital.
Houve um silêncio enquanto Jeff digeria aquilo. Por fim, o medo e a
fúria apoderaram-se dele.
- É ridículo! - rugiu. - O senhor recusar-se a dizer-me onde ela está! A
fazer essas acusações todas.
- Ninguém fez acusações nenhumas, Mr. Collins.
- Exijo saber onde ela está. E os meus filhos? Ela não tem o direito de
desaparecer sem deixar uma morada. E o senhor não tem o direito de a
deixar... - Avançou para o Dr. Lang, apontando um dedo acusador. - O
senhor sabe de certeza. Não saio daqui sem mo dizer.
O jovem médico limitou-se a fitá-lo, com as mãos nos bolsos da bata
branca.
- Lamento, mas não posso ajudá-lo.
Jeff atirou-se a ele às cegas, mas uma mão forte e rápida forçou-lhe o
braço para baixo.
- Aconselho-o a não ser violento, Mr. Collins - afirmou o Dr. Lang em
tom agradável. - Acho que já tivemos violência suficiente. Jeff tentou
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novamente bater-lhe. Mas desta vez uma enfermeira entrou seguida de dois
porteiros corpulentos, que agarraram cada um num braço de Jeff.
- Se fosse a si, eu ia-me embora sossegado - aconselhou o médico com
suavidade. - Ou quer que chame a Polícia?
Jeff ficou atemorizado. Lembrou-se do papel com a lista de ferimentos.
Mas a pressão forte dos porteiros enfurecia-o. Sacudiu-os, dizendo
entredentes:
- Larguem-me. Já lhes disse: não saio daqui enquanto não souber onde
ela está.
Os dois porteiros agarraram-no outra vez e seguiu-se uma luta. A
enfermeira foi chamar a Polícia. Quando lá chegaram, Jeff estava fora de si
de frustração e medo. Tentou bater nos porteiros, no Dr. Lang e num dos
polícias.
- Deixem-me - gritava. - Quero a minha mulher. Quero saber onde está.
Como é que se atrevem a esconder-ma!
Levaram-no, ainda a debater-se e a gritar.
- Bem - disse o Dr. Lang à enfermeira sombriamente -, não há grandes
dúvidas de onde aqueles ferimentos surgiram.

Numa cela nua, quando a fúria ébria se desvaneceu, Jeff sentou-se e


chorou. Queria ir para casa. Queria a mulher. Até queria os filhos. Estava
aterrorizado com o que acontecera a Laurie e a si próprio. Não compreendia
como é que a vida tinha seguido de repente um caminho tão horrivelmente
errado.
- Ande lá - mandou o agente de serviço, puxando-o para o pôr de pé. -
Não é preciso chorar. Pode ir para casa depois de prestar declarações. O
sargento está à espera.
Quando a provação terminou, tendo ele sido acusado de agressão a um
agente e de comportamento desordeiro e ébrio, o sargento declarou: -
Julgamento na segunda-feira. Apresente-se a horas. É melhor manter-se
sóbrio até lá e não se meter em sarilhos.
- Ai, sem dúvida - garantiu Jeff piamente. - Sem dúvida.

Quando Laurie acordou no refúgio, na manhã seguinte a ter saído do


hospital, o pequeno quarto encontrava-se vazio. Ela levantou-se e deu com
os miúdos a brincarem no quintal. Correram para ela, que os abraçou e
depois deixou voltar para a brincadeira. Decidida a tornar-se útil, foi para
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dentro um pouco zonza e encontrou Jane Everett com um pincel e uma lata
de tinta azul a preparar-se para pintar uma porta.
- Não posso fazer isso? - perguntou Laurie. Jane observou-lhe o rosto
ensombrado.
- Hoje não - respondeu, sorrindo. - Talvez amanhã. Estamos a tentar
alegrar um pouco as instalações.
- Tenho de fazer alguma coisa - disse Laurie com a voz embargada.
Jane pousou o pincel e levou Laurie para a cozinha.
- Sei que é maçador - continuou, sorrindo -, mas pode ajudar a arranjar
os legumes. Para já, não me parece que deva deitar a mão a nada muito
cansativo, sobretudo com três costelas partidas.
Era verdade que as costelas lhe doíam bastante quando se mexia mais
bruscamente.
- Está bem - concordou, retribuindo o sorriso a Jane.
Parecia uma criança pequena sem saber se era bem-vinda, e Jane sentiu-
se compelida a indagar:
- Laurie, que idade tem? - Vinte e sete.
- E o Jason tem...
- Oito. Deixei a minha família em Sunderland e casei com o Jeff aos
dezoito anos. A minha mãe era contra, mas ele convenceu-me a fugir com
ele. Não estava grávida... só mais tarde. - Laurie fechou os olhos e
estremeceu. Como descrever quanto Jeff tinha mudado, do homem
afectuoso, alegre e risonho que fora? Como ela própria mudara da
jovenzinha que ficara tão ofuscada com o encanto dele. - Mas quando o
bebé nasceu, ele não gostava de ficar em casa à noite. Estava habituado a
divertir-se. Depois, perdeu o emprego. Não conseguia arranjar outro.
Convenceu-se de que, se não fosse por minha causa e por causa das
crianças, podia ter partido para algum lado. Ser vivaço, solteiro e sem
prisões... e desejado. Por isso - Laurie olhou para Jane dolorosamente -,
começou a beber um bocadinho mais.
- O que é que por fim a despertou? - perguntou Jane.
- Ele ia bater na Midge - explicou Laurie. - Mas foram os cisnes, na
verdade...
- Os cisnes?
- Sim. A voarem muito alto... mesmo por cima da nossa casa. Tudo se
tornou claro para mim. Algures por aí fora há um mundo. Tinha-me
esquecido de como era belo, mas não posso continuar a ignorá-lo nem
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deixar os meus filhos crescerem sem o conhecer. Tenho de sair e encontrá-
lo.
- Sim - concordou Jane. - Sim. É claro que tem.
Ao fim dessa tarde, falaram do hospital para Jane com a notícia da
prisão de Jeff. Ela ligou para a Polícia e sugeriu que lessem o relatório do
médico. Parecia-lhe que havia provas suficientes para conseguir uma
acusação de agressão física grave - e conseguir uma sentença proibindo o
marido de molestar mais a mulher. Qual era a opinião deles?
Veio uma mulher-polícia jovem ao refúgio para se informar sobre a
questão. Verificou que Laurie não estava ainda refeita do recente
espancamento.
- Alguma vez recorreu à Polícia?
- Sim - suspirou Laurie. - Duas vezes. Uma vez, fiquei assustada e
fechei-o lá fora e ele deitou a porta abaixo. Entrei em pânico e levei as
crianças para a esquadra. Deram-me uma chávena de chá e mandaram-me
para casa.
- E da segunda vez?
- Atirou-me pela janela para o quintal. Fui à Polícia e pedi-lhes para
falarem com ele. Veio um agente comigo, mas nessa altura já Jeff se tinha
acalmado. Foi muito sensato. Disse que tinha sido um acidente e que eu era
nova, assustava-me com facilidade e era exagerada. Ele é capaz de ser muito
persuasivo e encantador quando quer. O polícia acreditou nele.
- Sim - murmurou a mulher-polícia. - Compreendo.
Depois, foi-se embora e Laurie começou a tremer. Um suor frio
apareceu-lhe na fronte. As asas, que tinham estado sossegadas a maior parte
do dia, de súbito iniciaram uma batida urgente na sua cabeça. Pareciam
revoltear e crescer até as suas poderosas penas encherem o ar e taparem a
luz. Perante a sua potente investida, Laurie caiu sem um ai.

Foi Penny quem a levantou e a pôs na cama, lhe trouxe uma botija de
água quente e uma chávena de chá. Penny quem se debruçou na cama e lhe
disse com um alegre sentido prático:
- Não devia deixar que a perturbassem. Eu não deixo. Que se danem
todos, digo eu.
Laurie tentou rir-se.
- És um conforto, Penny. - Olhou para o rosto simpático e bonacheirão
da miúda à sua frente e perguntou de repente: - O que é que estás a fazer
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aqui? És demasiado nova para estares aqui connosco, mulheres gastas e
cansadas.
Penny abanou o pé para a frente e para trás e baixou os olhos.
- Depende do que quer dizer com demasiado nova - retorquiu. Laurie
ficou horrorizada.
- Tu? Espancada?
- Moída de pancada - assentiu ela. - Sim. Mas eu não era propriamente
esposa.
Laurie estava baralhada. - O quê, então?
- Filha - ripostou ela com verdadeiro azedume na voz. - Queres dizer
que o teu pai te batia?
- Ah, não. Bem, não exactamente... - Fixou os olhos em Laurie quase
com pena. - Não percebe mesmo nada, pois não?
- Não - concordou Laurie com um meio-sorriso. - Nada de nada. - Bom,
eu conto-lhe. - O tom- vigoroso e irreverente tinha voltado à sua voz. - O
meu pai era um bocadinho excitado, percebe? Gostava de rapariguinhas,
por isso... - Baixou os olhos para a sua própria barriga volumosa.
- Oh, meu Deus - exclamou Laurie. - Mas... Que idade tinhas? - Cerca de
oito anos quando começou. Não podia dizer à minha mãe... nem a quem
quer que fosse, na verdade. Ele ameaçava bater-me se o fizesse. Ele disse
que, de qualquer modo, negaria e ninguém ia acreditar em mim. Iam pensar
que eu não passava de uma perversa. - Um sorrisinho triste arrepanhou-lhe
os cantos da boca. - E no fim foi mesmo isso que pensaram, incluindo a
minha mãe.
- O quê? Quando tu... Quando ele te engravidou?
- A minha mãe não queria acreditar em mim. Gostava da vida que
tinha. E deu-me a maior das sovas que já apanhei por ser mentirosa e
conflituosa e ter uma mente doentia, como ela disse. Depois, pôs-me na rua.
- Mas, Penny. O que é que tu fizeste? Penny deu um suspiro.
- O Joe encontrou-me na rua como a encontrou a si. E depois a Jane
assumiu o comando. - Sorriu a Laurie, com a velha e animada alegria a vir
ao de cima. - Graças a Deus, existe a Jane, não é?
- Sim, mas, Penny, quantos anos tens agora? O que é que vais fazer?
- Tenho quase dezasseis. E hei-de conseguir! A Jane diz que posso ficar
cá como ajudante. - Olhou à volta e pela janela, para o jardim mal-arranjado,
e acrescentou, meio para si própria: - Mas não tenho a certeza de querer
educar o meu filho aqui. Pelo menos para sempre.
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- Não gostas disto?
- É bom. - Penny abanava o pé de novo e franzia o sobrolho. - É seguro.
Ninguém se mete connosco e temos que chegue para comer. Não estou a
dizer que não estou agradecida. - Levantou os olhos para Laurie outra vez,
sorrindo um pouco. - Mas... Ah, não sei, acho que um bebé precisa de um
sítio mais assente.
Laurie suspirou, pensando em Jay e Midge.
No dia seguinte, Laurie sentia-se mais perturbada que nunca.
Encontravam-se no escritório de Jane e o ambiente estava carregado de
silêncios significativos. Havia uma assistente social, Lois Brown, que era
simpática, mas insistente. E havia uma advogada de ar calmo chamada
Madeleine Williamson, que parecia ser amiga de Jane. E havia Jane, atenta e
neutra. Queriam falar com os miúdos a sós.
- Se não tem objecções estava Lois Brown a dizer educadamente.
Mas Laurie, francamente, tinha.
- Não são um pouco novinhos para interrogatórios? - indagou ela. -
Sabe - explicou Jane pacientemente -, a Madeleine está habituada a lidar
com estas situações. Ajuda muitas mulheres. E se e para ajudá-la com o
processo judicial e mais tarde com um divórcio, vão surgir questões sobre
quem fica com as crianças, etc. Ela precisa de saber o que sentem as crianças
sobre isso e se é seguro deixar o seu marido aproximar-se delas. E Lois
também.
- Podia ajudar-nos - confirmou Lois - a ter uma imagem completa.
“Uma imagem completa”, pensou Laurie, desesperada. “Como é que
podem alguma vez saber?” Mas em voz alta pediu:
- Desde que não os perturbem nem assustem. Disso já tiveram que
chegasse.
Olhou, impotente, para Jane, que garantiu:
- Temos todas muita experiência, Laurie. Nunca intimidaríamos uma
criança. Na verdade, é mesmo essa a ideia do Esconderijo... Nenhuma
intimidação de qualquer espécie.
Laurie fez um sorriso pálido e afastou o cabelo dos olhos.
- Desculpem. Sei que estou ansiosa. Mas, sabem...
- Nós sabemos muito bem, Laurie, acredite em mim - interrompeu Jane.
- Pode confiar em nós.
Mas Laurie não conseguia confiar em ninguém. Ainda não. Naquele
momento, Penny entrou com as crianças. Midge correu logo para Laurie e
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subiu-lhe para o colo. Mas Jason ficou de pé, quieto, a olhar da mãe para as
outras mulheres num silêncio interrogativo.
- Jay... - Laurie puxou-o para si. - A Jane e as amigas dela querem só
falar contigo um bocadinho. Podes contar-lhes o que querem saber. Basta
dizeres a verdade, está bem?
- Está bem - concordou Jason. - Se a mãe quiser... Jane levantou-se
decididamente.
- Então, a Laurie e eu vamos fazer um chá para toda a gente - anunciou
ela. - Midge, ficas aqui com o Jason, está bem?
Mas Midge fez uma cena. Agarrou-se a Laurie, com os braços apertados
à volta do pescoço dela, e chorou.
- Não faz mal - interveio Lois Brown rapidamente. - Falamos só com o
Jason. - Dirigiu a Laurie um sorriso tranquilizador.
- De qualquer forma - notou Madeleine Williamson numa voz calma e
clara-, acho que a Midge já nos disse o que queríamos saber. Após uma
breve olhadela em redor, Penny levou Laurie e Midge para a cozinha.
Portanto, agora era a vez de Jason enfrentar os problemas.
- Para já - começou Lois com suavidade -, queres voltar para casa?
- Não! - atirou Jason. E a seguir, com toda a franqueza: - Se ele lá estiver,
não.
- Gostas de cá estar? - A voz de Lois ainda soava casual.
- Mais ou menos. - Jason olhava para ela quase com desprezo. Fazia
perguntas tão óbvias. - Estamos protegidos - explicou ele.
- Protegidos de quê, Jason? - indagou Lois ainda com maior suavidade.
- Da maldade - retorquiu ele. E depois, vendo que esperavam que ele
continuasse, trocou-lhes por miúdos. - Do meu pai.
- Ele batia na tua mãe muitas vezes, Jason? - Sim. Todo o tempo.
- E batia em ti ou na Midge?
O rosto dele pareceu fechar-se como uma flor à noite. Não respondeu.
- Batia, Jason? - insistiu a assistente social.
- Sim - confessou ele. - Às vezes. Quando a mãe não estava. - Na Midge
também?
Uma espécie de escuridão pareceu encher-lhe então os olhos.
- Só quando ela chorava. Eu tentava impedi-lo... - Olhou para ela
desamparadamente. - Mas ele era forte demais. - As mulheres ficaram em
silêncio, perturbadas pela voz magoada e cheia de auto-reprovação. - Eu

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bem lhe dizia para ela não chorar - continuou com uma franqueza dolorosa.
- E ela conseguia a maior parte das vezes.
Lois Brown retomou num tom falsamente casual: - Suponho... que a tua
mãe nunca vos batia?
Então, ele irritou-se de súbito. Os seus olhos pareciam reluzir de
incredulidade. -
- A minha mãe? Ela é incapaz de magoar alguém! - Nem mesmo o teu
pai?
- Não - respondeu ele com decisão. - Ela costumava dizer que não
devíamos odiá-lo. - O seu rosto ficou triste de repente. - Mas eu odeio-o
mesmo. Odeio-o por bater na minha mãe e na Midge.
Ficou ali, tenso e na defensiva, a desafiá-las a ambas. Mas antes que
pudessem fazer mais perguntas, Laurie voltou a entrar na sala, com Midge
a correr atrás dela. Dirigiu-se rapidamente até Jason e voltou-se para as
inquisidoras:
- Já chega - declarou. - Não vêem que ele já sofreu demais? E Penny,
atrás dela, acrescentou alegremente:
- Olha, Jason, trouxemos-te uma chávena de chá e uma bolacha de
chocolate.
Jason não disse mais nada. Mas encostou-se ao braço da mãe.
Toda a gente se descontraiu então, e Madeleine Williamson disse a
Laurie:
- Ele é um rapazinho muito corajoso. Deve ter orgulho nele.
- E tenho - concordou Laurie. A seguir, de certa forma hesitante,
perguntou: - Conseguiram... Descobriram o que queriam saber?
- Ah, sim. - A advogada acenou com a cabeça. - Vou representá-la no
tribunal na segunda-feira e, se quiser, depois também.

A vida continuava a ser cruel para Jeff. Voltou, depois de sair da


esquadra, para uma casa fria e desarrumada, para um vazio cheio de ecos.
Estava furioso com o hospital e com a Polícia, zangado consigo próprio e
ainda mais danado com Laurie, que causara toda aquela confusão por ter
fugido. Deu uns pontapés de frustração à toa.
No dia seguinte, apareceu uma pessoa à porta que lhe entregou uma
intimação judicial. Havia outra acusação contra ele. Estava abismado.
Laurie fizera tudo isto? Aquela ratazana miserável? Devia ter encontrado
algures um advogado intrometido. Era melhor ele procurar um também.
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Mais tarde, no bar, alguém lhe recomendou um tipo que não era muito
careiro. Não ocorreu a Jeff que também não devia ser muito bom. Em vez
disso, emborcou uns copos para ganhar coragem e foi logo contratá-lo.
A seguir, sentiu-se melhor. Agora, iam tratar-lhe das coisas.
Provavelmente, safar-se-ia com uma reprimenda, disse o advogado.
Voltou ao bar e encostou-se ao balcão para falar com Brenda, a
empregada. Era grande e roliça e normalmente alegre, mas também forte
que nem um cavalo. Toda a gente gostava dela.
- Bebe um à minha conta- convidou Jeff, acenando com uma nota numa
mão ousada.
- Porto e limão, obrigada - replicou Brenda. - E tu? - Whisky - pediu ele.
- Estou a afogar as mágoas. - Ai sim? Porquê?
- Estou muito só - suspirou como um menino perdido. -A minha mulher
foi-se embora.
- Lamento.
Jeff mirou Brenda apreciativamente. Não era nada feia, na verdade. Boa
pele e um sorriso bonito quando queria. E ele gostava bastante delas roliças,
sobretudo depois daquela escanzelada da Laurie.
- O que é que fazes quando saíres do trabalho? - indagou, depois de um
gole para dar coragem.
- Nada que te interesse - replicou Brenda.
- Tens a certeza? - perguntou Jeff, transmitindo todo o encanto de que
era capaz.
- Bem - Brenda mirou-o -, veremos...

Quando o caso foi a tribunal, Jeff estava a sentir-se melhor. Brenda não
queria ir lá a casa. Não queria envolver-se em nenhum sarilho. Mas tinha-o
deixado subir ao apartamento dela, por cima do merceeiro. Não passou pela
cabeça de Jeff descarregar as suas frustrações nela como fazia com Laurie.
Ela era dura. Não suave e frágil e mesmo a pedir que lhe chegassem. Não,
esta era capaz de lhe dar uma sova a ele, se quisesse. Entretanto, fazia-o
sentir-se o maior e devolveu-lhe a arrogância no andar.
Mesmo assim, precisou de uma ajudinha antes de entrar no tribunal.
Quando se encontrou com o advogado, estava confiante e agressivo por fora
e muito assustado por dentro. As coisas pareceram acontecer num nevoeiro.
Não compreendeu o que estava a passar-se. Respondeu às perguntas deles

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com ar carrancudo, com repentes de rebeldia, e depois tentava forçar-se a
ser calmo e encantador.
- Queria só ver a minha mulher - pediu com ar razoável.
- Quando foi a sua brutalidade que a pôs no hospital? Era a advogada
de Laurie. Era esperta.
- Um erro... - resmungou ele. - Perdi a cabeça. Lamento...
- Quando isto já durava há anos? Tenho uma declaração em como a sua
mulher já tinha pedido a protecção da Polícia pelo menos por duas vezes
anteriormente.
Falou-se mais um bocado, mas o magistrado parecia não estar disposto
a prolongar as coisas.
- Três meses pela primeira acusação - disse com voz áspera - e mais um
mês pela segunda. E vai ser obrigado a ter uma conduta irrepreensível e não
se aproximar, molestar ou perseguir a sua mulher, seja de que maneira for,
durante um ano.
Madeleine Williamson pensou para si própria com amargura: “Sim.
Três meses por ter tentado agredir um agente da autoridade e um mês por
quase matar a mulher. É assim a vida. Mas pelo menos vai estar fora da
circulação enquanto aquela coitada recupera.”
Jeff não podia acreditar. Cadeia? Ele? O que é que tinha feito para
merecer isso? Um homem tinha o direito de fazer o que quisesse à sua
mulher dentro da sua própria casa. Não tinha? Não era justo.
De súbito, levantou-se e gritou tudo isto a plenos pulmões. Mas não
serviu de nada. Empurraram-no para fora da sala, ainda a gritar e a tentar
explicar-se. Foi para a cadeia. E tudo por culpa de Laurie.

Parte II

Levantando voo

Laurie estava no Esconderijo havia mais de uma semana, ainda exausta


e confusa, quando recebeu uma visita. Um vulto quadrado e moreno entrou
no quarto atrás de Penny, e, ao avançar, Laurie reconheceu-o num repente
súbito de memória.
- Sou eu, o Joe - disse ele. - Então, como vai isso? - Melhor. - Laurie
sorriu. - Muito melhor, obrigada.

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- Estávamos cá a pensar, a Penny e eu, se gostaria de ir dar um passeio
pelo campo. Quer dizer, você e os miúdos. - Mirava-a com olhos castanhos
brilhantes e atentos. - Pensei que talvez, aqui fechada, lhe soubesse bem
uma mudança. Tenho de ir buscar hortaliças, percebe?
- Pensei que tinha um quiosque nocturno de cafés.
- Tenho - concordou Joe. - Hortaliças de manhã, café à noite. - Foi você
quem me trouxe para o refúgio da Jane.
- Fui. - Sorria com conhecimento e simpatia.
- Bem, obrigada - atirou Laurie. - Provavelmente, salvou-me a vida, e a
das crianças também.
- Esqueça isso, menina. Bem, e quanto ao campo?
- Ah, Joe! É uma óptima ideia. - Ela resplandecia. - Campo a sério?
- Campo a sério. - Sorriu. - Prados verdes e tudo.
- Vá lá - pressionou Penny. - Não desperdice tempo. Vou buscar os
miúdos. - Voltou-se para Joe. - Faço umas sanduíches?
- Não - replicou ele. - Hamburgers e batatas fritas por minha conta.
Vamos fazer um dia de festa.
Riram-se todos. Parecia um piquenique da escola.

A velha carrinha verde de Joe matraqueou pelo meio dos campos


verdes da rica província de Kent até chegar a um caminho comprido e
arenoso com uma casa de quinta ao fundo. De um lado do caminho, havia
campos planos de grelos e couves, cenouras e cebolas e filas de morangos
serôdios, com os apanhadores ainda a deslocarem-se por entre eles. Do
outro lado, havia pomares verdes alinhados, com as suas macieiras
carregadas de fruta rosada, e para lá dos pomares havia altas alas de lúpulo
a crescer em latadas, como sólidas paredes cobertas de folhas. Grupos de
pessoas aglomeravam-se à volta de sacas de serapilheira, apanhando o
lúpulo verde e vistoso.
Quando Joe conduziu a carrinha para dentro do pátio, Laurie e os
outros viram um celeiro de aspecto estranho, com um belo telhado circular
de antigas telhas avermelhadas, encimado por um alto cata-vento. - O que é
aquilo? - indagou Jason, apontando para ele.
- A casa do forno onde secam o lúpulo. - Joe apontou o polegar para um
tractor que se movia entre altas paredes de hastes de lúpulo em cascata. -
Estão a apanhá-lo agora, vês? Toca a sair!

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Enquanto Joe foi carregar a carrinha com produtos, Penny e as crianças
correram alegremente por uma das longas alamedas verdes de lúpulo.
Laurie seguiu-os mais devagar. Ainda lhe doía andar depressa, e as costelas
doridas dificultavam-lhe a respiração, mas era maravilhoso estar ao ar livre,
com aqueles vastos céus límpidos e navios de nuvens brilhantes navegando
por cima de si. O cheiro estranho e pungente do lúpulo misturava-se com o
cheiro mais doce das maçãs dos pomares. Sentia a cabeça mais desanuviada
do que há muitos dias. As asas pareciam não bater de todo lá dentro. Na
realidade, tinha uma estranha sensação de liberdade.
Uma das apanhadoras, uma mulher grande, levantou os olhos para
Laurie e sorriu. Trazia um avental de serapilheira amarrado à volta da saia
de algodão, e as grandes mãos estavam manchadas do verde e dou rado do
lúpulo, que ela deitava para dentro do saco. A família trabalhava à volta
dela em equipa.
- Vem juntar-se a nós? - perguntou a mulher.
Laurie hesitou, observando quão habilidosamente os dedos dela
tiravam o lúpulo da haste e o separavam das folhas.
- Costumava haver mais gente - continuou a mulher com melancolia. -
Mas as máquinas são mais rápidas. Hoje em dia, já não nos querem na
maior parte dos sítios.
Laurie acenou com a cabeça. - Mas aqui querem?
- Claro. O Stan é um bom patrão.
- Há muito tempo que vêm para aqui? A mulher riu-se.
- Mais do que quero lembrar-me! - Olhou de soslaio a plantação de
lúpulo, protegendo os olhos do sol. - O verificador vem aí - afirmou ela. -
Há competição hoje para ver quem é o apanhador mais rápido... com
prémios e tudo. - Apontou para um outro grupo de apanhadores. - Aqueles
são jornaleiros. Vêm todos os dias de autocarro. - Piscou o olho a Laurie. -
Mas não conhecem o ofício como nós.
- Qual é o prémio? - perguntou Laurie, sorrindo.
- Não sei. P'raí uma garrafa de cerveja. Ou cidra. - Olhou de esguelha
para Laurie e perguntou: - Vai cá ficar muito tempo?
- Não -suspirou Laurie. - Quem me dera...
- Parece-me que lhe faria bem - comentou a mulher com perspicácia.
Estendeu o olhar para. as alas altas e verdes onde Jason e Midge brincavam
entre um grupo de crianças aos gritos e continuou num tom
surpreendentemente mais suave: - Faz muitíssimo bem aos miúdos e tudo.
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Laurie concordou. Havia muito, muito tempo, que não via as crianças
tão descontraídas e sem medo. Até Penny dava a impressão de ter perdido
um pouco do ar pesado e corria com os miúdos. Laurie ficou comovida pela
visão do seu abandono infantil. Afinal, lembrou a si mesma, a própria
Penny ainda era apenas uma criança.
- Porque não fica? - sugeriu a mulher com suavidade. - Há lugar nas
cabanas e ainda há muito lúpulo para apanhar enquanto o tempo está bom.
Acho que dava jeito ao patrão.
Laurie mirou-a. Todo o tipo de possibilidades amontoava-se-lhe na
cabeça. Mas não disse nada. Exactamente nessa altura, o verificador, alto e
esguio - Spider -, dirigiu-se para elas. Relanceou uma olhadela em volta,
com ar experiente, pelas protuberâncias verdes nos sacos. Após um cálculo
arguto do volume, começou a tirar o lúpulo e a atirá-lo para dentro do seu
cesto de alqueire, a contar enquanto o fazia e despejando-o para os grandes
sacos que iam ser postos no tractor e levados para a secagem.
- Três... quatro... cinco... - a voz continuava, monótona. Depois, somou-
os todos e escreveu no bloco-notas preto. - Estás à frente até agora, Dorrie -
afirmou, sorrindo, para a mulher.
- E aqueles outros ali? - perguntou Dorrie, continuando a debulhar
lúpulo para dentro do saco vazio enquanto falava.
- Nem perto - retorquiu ele, rindo-se. Depois, pôs outra vez o boné
sobre o cabelo ruivo e olhou para Laurie. - É nova aqui, não é?
- Estou só de visita - respondeu Laurie com timidez.
Ele reparou como o longo cabelo louro brilhava ao sol e como aqueles
olhos azuis, tão fortemente marcados pelo cansaço, o miravam do fundo de
uma fortaleza de decisão escondida e profunda.
- Bem - retorquiu - divirta-se! - e passou ao grupo seguinte de
apanhadores.
Algures no outro extremo, perto da estrada, uma campainha como a de
uma carrinha de gelados ecoou pelo ar rescendente a lúpulo.
- A comida chegou - exclamou Dorrie, e bamboleou-se na direcção do
som da campainha. De toda a plantação de lúpulo e dos pomares e campos
longínquos, apanhadores e crianças acorreram, numa multidão chilreante e
alegre.
- Hamburgers e batatas fritas - anunciou a voz de Joe mesmo atrás de
Laurie. - Como prometido. Vamos lá.

27
Sentaram-se num banco cheio de pó e marcas de pés e comeram
hamburgers em papéis gordurentos, lambendo o sal dos dedos. Era a
primeira vez que Laurie sentia fome desde... desde Deus sabia quando, e
reparou que Jason e Midge já tinham devorado a sua parte e olhavam à
volta à procura de mais. Penny entregava-lhes, a rir, as suas batatas fritas
para os manter sossegados.
Joe observava-os a todos com olhos experientes, mas não dizia nada.
Depois, afastou-se e comprou gelados para todos.
- Mãe - declarou Jason com a boca cheia -, gosto disto aqui. Não
podíamos cá ficar?
- Ficar! - concordou Midge, e comeu outra batata frita. Laurie desviou os
olhos deles para Penny e suspirou.
- Bem, e porque não? - replicou Penny. - Fazia-nos bem.
- Fazia-nos... ? - murmurou Laurie, com uma questão mais profunda em
mente.
- Sim, a nós - confirmou Penny. - Para onde forem, eu também vou. -
Depois, corou com súbita timidez e sacudiu o cabelo ruivo ao sol. - Isto é, se
não se importar.
Joe regressou então com os gelados, e Laurie tentou pagá-los em vão. -
Mas eu tenho algum dinheiro, Joe. O pessoal da Segurança Social deu-me
um subsídio de emergência para eu me orientar. A Jane tratou disso.
- Ela contou-me - resmungou Joe. - Mas isto é um presente, percebe?
Laurie olhou para o seu rosto determinado e percebeu. Agradeceu-lhe
com seriedade.
- Tem razão, claro. Não posso esbanjá-lo. Só Deus sabe de onde virá o
próximo. Estava a pensar se não podia ganhar algum aqui.
- Aqui? - perguntou Joe. - Quer dizer, a apanhar lúpulo?
- Porque não? - Ela relanceou os olhos pelas caras das crianças, que a
fitavam em súplica muda. - Eles adoram isto, Joe, o espaço e o... a verdura.
Depois de Londres é tão limpo.
Se Joe ouviu o tom de dor na voz dela, preferiu ignorá-lo.
- Está preparada para trabalhar então? - indagou. Mirou-a com ar
severo. - Não seria muito conveniente andar por aí a desmaiar pelos cantos
outra vez... - Laurie apercebeu-se do brilho no olhar dele e riu-se. - Outra
coisa - continuou ele, sério. - Se ficar aqui, a Jane pode não ter quarto vago
quando você voltar.
Laurie acenou que sim.
28
- Eu sei. Mas não posso lá ficar para sempre, Joe. - Afastou o cabelo dos
olhos num gesto familiar de ansiedade. - Não é bom para os miúdos. Pelo
menos permanentemente, quero dizer.
Joe concordou.
- O que é que gostaria de fazer então?
Laurie respirou fundo e levantou os olhos para o céu azul.
- Gostava de:,. - murmurou - de me afastar de Londres - “... e de Jeff e
da sua raiva”, pensou - para um sítio calmo. Talvez perto do mar, onde
fosse limpo... e eu pudesse trabalhar.
Joe ficou em silêncio por momentos. A seguir, meio a sorrir, perguntou:
- O que é que sabe fazer então, para além de colher lúpulo? Laurie
suspirou.
- Pouco. Sei cozinhar qualquer coisa e limpar uma casa, creio. E tratar
de um jardim. - Suspirou de novo. - Costumava ajudar o meu pai com no
jardim quando voltava do banco.
- Do banco? - A voz de Joe soou mais penetrante.
- Ah, sim, esqueci-me. Sei fazer balancetes de contabilidade. O meu pai
era subgerente do banco local. Arranjou-me lá um emprego. - Você vale o
seu peso em ouro, rapariga - comentou Joe. Depois, deu uma vista de olhos
às plantações de lúpulo. - Quer mesmo ficar aqui?
- Se houver trabalho.
- Vou ver - ripostou Joe, mirando-a com ar duvidoso. - E eu? - exigiu
Penny. - Posso colher.
- Nada de muito pesado - protestou Joe. - No teu estado, não, rapariga!
O Stan não ia gostar disso. - Pensou por instantes. - Há os grelos - afirmou
devagar. - E os morangos serôdios ainda. Mas isso é agachar demais.
- E daí? - bufou Penny. - Não. sou de vidro. Ele abanou a cabeça.
- Para que é que vou pôr o Stan em dificuldades?
Mas elas continuaram a olhar para ele com um apelo urgente nos olhos.
Joe suspirou.
- Está bem, está bem, vou pedir-lhe. - Sentia uma necessidade urgente
de dissipar a ansiedade do olhar de Laurie. - Mais alguma coisa que
queiram?
- Cisnes declarou de súbito Laurie, a olhar para o vasto céu. Joe
pareceu espantado.
- Cisnes? - indagou. - Bem, há o rio ali mesmo ao fundo, em baixo. O
lamacento Medway. Porque não vão ver enquanto falo com o Stan?
29
Laurie,. com Penny e as duas crianças a dançar à frente dela, desceu até
ao rio vagaroso. As margens estavam cor de ferrugem com as ervas do fim
de Setembro, mas ainda floridas, com balsaminas e ulmeiras. Umas
galinhas-d'água e galeirões chapinhavam por lá entre os canaviais e um
casal de patos-reais vogava rio abaixo.
- Ali! - disse suavemente Jason, apontando um dedo, excitado. - Ali
estão eles. Era o que queria?
E além, flutuando pacificamente na superfície serena do rio, estavam
dois cisnes calmos e graciosos.
- Não são lindos?- sussurrou Laurie, e afundou-se na relva para os
observar, com os olhos rasos de lágrimas inesperadas.
Penny olhou para ela de lado e depois, afastou-se e começou a falar com
Jason muito a sério sobre patos-reais e barcos. Afastaram-se lentamente,
com Midge segura com firmeza pela mão.
Laurie sentou-se ao sol a observar os sossegados cisnes, que navegavam
tão orgulhosos à frente do vento, como garbosos veleiros de outras eras.
Nessa altura, pareceram acordar do seu deslizar sonolento, quase como se
tivessem sido chamados, e começaram a nadar na direcção de uma pequena
língua de terra saliente. Ao chegarem aos baixios cheios de juncos, Laurie
viu a figura de um homem delineada contra o sol. Quase parecia fundir-se
com a paisagem, de tão quieto que estava, plantado direito na margem do
rio, como uma árvore a crescer.
Laurie afastou o cabelo dos olhos para observar novamente. Ele ergueu
uma mão para os cisnes, como que a cumprimentar velhos amigos, e eles
aproximaram-se bastante, de tal modo que, inclinando-se, ele acariciou a
bela curva das suas cabeças e longos pescoços brancos. Enfiou a mão num
bolso e tirou um pouco de comida, e eles comeram-na da sua mão com uma
dignidade calma. Depois, fez-lhes uma carícia final e Laurie ouviu o fraco
murmúrio da sua voz quando ele se afastou deles e se aproximou dela.
- Fortaleçam-se pareceu-lhe ouvir.
Ela não se mexeu. Ficou sentada a observá-lo enquanto ele se
aproximava com passos longos e lentos. Parecia quase hipnotizada pela sua
presença, como os cisnes estavam. Era tão calmo e pacífico. Uma sensação
extraordinária de libertação e felicidade parecia avolumar-se dentro de
Laurie ao vê-lo chegar, uma sensação de quase reconhecimento. Ali estava
alguém sem medos, intocado pelas sementes da raiva ou do despeito, que
estendia os braços para os cisnes com mãos meigas e compassivas. Alguém
30
que caminhava pelo mundo sarapintado dos campos húmidos, não como se
o possuísse, mas como se fizesse parte dele.
Quando ele se aproximou, Laurie deu por si a olhar para um rosto
moreno e magro, com rugas finas à volta de olhos perspicazes, de um
profundo cinzento de sombra de nuvem, que a miravam numa interrogação
amigável. Tinha cãs prateadas no cabelo castanho e ligeiramente
encaracolado, que se erguia de uma testa alta e abaulada. E a boca era
bondosa, embora Laurie suspeitasse de que seria capaz de se tornar severa
em certas ocasiões.
Ele, por seu lado, viu uma rapariga frágil e pálida com longos cabelos
louros que brilhavam ao sol e olhos que eram demasiado grandes e
demasiado escurecidos por sombras, mas que já deviam ter sido de um
azul-genciano límpido.
- São seus? - indagou ela. - O quê?
- Os cisnes.
- Ah... Ah, não. São cisnes-bravos, completamente selvagens e livres. -
Sorriu-lhe e o sol pareceu dardejar e dançar-lhe no rosto.
- Mas... conheciam-no.
- Isso é porque os encontrei feridos, e os tratei. Mas já estão bem de
novo e livres de partir e voltar.
- Livres? - murmurou Laurie, como se fosse uma palavra que não
conhecia.
- Só voltam porque sabem que sou amigo e é seguro - explicou ele, e
havia ternura no seu sorriso.
Porque sabem que sou amigo e é seguro. Laurie fechou os olhos por
instantes, fazendo retroceder lágrimas estúpidas. Quando voltou a abri-los,
ele estava sentado na margem ao seu lado.
- Há muitos cisnes no rio?
- Bastantes. Não tantos como era costume haver. - Porquê?
- Fazem-lhes mal... E eles morrem. - A expressão dele tornou-se
sombria.
- O que é que lhes acontece?
- Tudo. Ficam presos em linhas de pesca, dão-lhes tiros, ficam com
anzóis presos nas gargantas, são atacados por pessoas nas margens ou nos
barcos.
- Atacados? Cisnes?

31
- Ah, sim. Espancados com remos. Amarrados a uma árvore e usados
como alvo de setas. Atropelados por barcos a motor e cortados pela hélice.
Nem pode imaginar.
Os olhos de Laurie estavam arregalados e quase negros de fúria.
- Porquê? O que é que nós, seres humanos, temos? Porque é que somos
tão violentos? - Estremeceu.
- Acho que é uma espécie de desespero - murmurou ele. - Desespero?
- Sim, desespero. De que a vida possa ser tão feia e desapontadora.
Laurie fez que sim com a cabeça.
- Por isso espancam? - Conhecia o padrão.
- Mas não é, claro - acrescentou ele com o olhar pousado nos cisnes.
- O que é que não é?
- A vida não é desapontadora e feia. - Não é?
- Não - respondeu ele. - Nem sempre.
Exactamente nessa altura, nos longínquos pomares, um tiro soou e a
seguir uns gritos e uma série de detonações agudas como chicotadas. Laurie
deu um salto e começou a tremer.
- Não faz mal - afirmou o homem dos cisnes. - Espanta-pardais.
Normalmente, põem estes engenhos nos pomares depois de os apanhadores
irem para casa. Salva muita fruta.
- Ah! - Laurie tentava em vão parar de tremer. - Que tolice assustar-
me...
Ele mirou-a com gravidade.
- Leva tempo - declarou de forma obscura. - Às vezes, os cisnes que
salvo levam muito tempo.
- Le-levam? - Parecia mais do que uma simples pergunta.
- Ao princípio, não suportam ser tocados. - Ele não olhava para ela
agora, tinha o olhar perdido no rio. - Assustam-se com qualquer som. Até
uma colher a tirar comida de um prato de alumínio fá-los retesar com medo.
Detestam os homens. - Continuava a não olhar para ela.
- Não se pode culpá-los, pois não? A violência marca profundamente. -
Sim - sussurrou Laurie.
- Mas por fim aprendem a confiar em mim - afirmou com a voz viva de
compaixão. - E vêm comer-me à mão, como viu!
Laurie fez um sorriso cheio de dor.
- Sim, vi. - Ao longe, na margem, ouviu as vozes de Penny e das
crianças, que regressavam.
32
- Vai melhorar - murmurou ele para ninguém em especial, e observou
as figuras pequenas que se lhes dirigiam.
Midge correu para a mãe, palrando com alegria de patos e nenúfares.
Mas Jason aproximou-se dela devagar, de olhos pregados no seu rosto, e
estendeu-lhe uma longa pena branca de cisne que tinha encontrado.
- Mãe? - chamou, e pousou a pena no seu colo.
Não disse mais nada, mas no seu olhar estranhamente maduro Laurie
viu uma nova tranquilidade e nítida compreensão.
“Eu sei”, dizia. “Eu sei que nunca houve tempo para se sentar numa
margem de rio e olhar para os cisnes. Sei que quando uma coisa é bela isso
fá-la chorar. Mas eu estou aqui. E a Midge está aqui. E a Penny. E estamos
seguros. Não há nada aqui para nos atemorizar. Está tudo bem.”
Laurie estendeu a mão e apanhou a macia pena de asa. Avassalou-a um
desejo súbito e pungente de se meter no rio e mergulhar bem fundo, até que
todo o seu velho ser e a sua antiga vida tivessem sido expulsos dela e
lavados para que pudesse vir à superfície completamente nova e limpa,
como os puros e imaculados cisnes que deslizavam tão orgulhosos,
totalmente curados e livres. Mas em voz alta comentou apenas:
- Um pequeno pedaço de liberdade, Jay - e levantou a pena brilhante na
luz do sol de fins de Setembro.
O homem ao seu lado tocou na pena. Sorriu-lhe, e havia no seu olhar
compassivo a mesma consciência e tranquilidade que ela vira nos olhos de
Jason.
- Vai haver outros - afirmou suavemente; depois, levantou-se e afastou-
se deles em direcção ao sol.

Stan concordou em contratá-los pelo menos durante a semana seguinte,


uma vez que a apanha estava quase no fim. Laurie abraçou Joe e foi
telefonar a Jane, que aconselhou:
- Tire o máximo partido disso!
Para Laurie, Penny e as crianças começou então um tempo de
inesperada paz e liberdade. Os alojamentos eram simples mas limpos, as
cabanas tinham sido caiadas por dentro recentemente. Havia uma cozinha
comunitária, mas a maior parte das famílias preferia fazer os seus
cozinhados em fogões de campismo a gás ou fogueiras no chão plano e
espezinhado em frente das cabanas. Isto proporcionava reuniões de

33
convívio envolvidas pelo cheiro rodopiante do fumo das fogueiras nas
noites frescas de Setembro.
Toda a gente era simpática, e alguém emprestou a Laurie uma panela
velha enegrecida e uma lata de feijão até ela poder abastecer-se na loja
ambulante que vinha no dia seguinte; Penny conseguiu que a mulher do
lavrador lhe arranjasse uns ovos e leite e outra pessoa deu-lhe uma velha
chaleira, chá e meio-pão escuro “para remediar”, por isso aquela primeira
noite pareceu-lhes um banquete.
Levantavam-se cedo, tal como os outros, e iam para as plantações de
lúpulo. Trabalhavam todo o dia ao vento e ao sol, arrancando o lúpulo
verde-claro das hastes, e à noite sentavam-se às fogueiras e cozinhavam
mais feijão, salsichas no espeto e batatas assadas nas brasas.
O verificador, Spider, afeiçoara-se a Laurie, e uma noite aproximou-se
em grandes passadas da fogueira dela e ficou de pé a mirá-la na luz que
diminuía.
- Importa-se que me junte a vocês? - Como queira - retorquiu Laurie.
Ele fitou-a atentamente antes de se sentar na relva amassada. O rosto
dela tinha perdido algum do seu ar cansado e atormentado, mas ainda
havia sombras sob aqueles olhos azuis.
- Está sozinha, é? - indagou ele. Laurie olhou para ele com firmeza.
- Sim - ripostou, e a seguir ouviu a sua própria voz continuar: - E
tenciono manter-me assim.
Spider riu-se e esticou as pernas compridas na relva. - Não seja assim.
Só estava a perguntar.
Laurie suspirou. Serviu-lhe chá numa caneca de alumínio e deitou-lhe
algum leite.
- Tome - ofereceu. - Lamento, mas não tenho açúcar. - Observou-o por
instantes em silêncio enquanto ele beberricava o chá, e percebeu que ele
estava a magicar como haveria de prosseguir. - Ouça, Spider - declarou de
repente. - Lá porque tenho cabelo comprido e olhos azuis não quer dizer
que seja presa fácil para qualquer homem que apareça.
- Eh, espere lá. Eu não quis dizer...
- Não? - exclamou ela, incrédula. - Bem, de qualquer forma, não sou. -
Mirou-o de novo, quase com desespero. - Para lhe dizer a verdade, Spider,
estou um bocado farta de homens.
Ele olhou-a de relance, meio a sorrir. - A sério?

34
- Sim, a sério. Isto é, a não ser que você consiga tratar-me como
qualquer outro trabalhador, homem ou mulher. - Voltou a mirá-lo com
perspicácia, quase como se esperasse ver algo na cara dele que lá não
estava. - Sabia-me bem ter um ou dois amigos normais - murmurou meio
para si própria.
Spider sorriu e esvaziou a caneca de chá.
- Mensagem recebida e entendida - declarou, e levantou-se. Laurie
sentiu um ligeiro tremor de desilusão. Seria impossível a amizade normal
com Um homem?

Mais tarde nessa noite, quando estavam deitadas lado a lado no escuro,
Laurie pediu a Penny:
- Eras capaz de me cortar o cabelo?
Penny estava meio adormecida, mas apoiou-se num cotovelo para
espreitar Laurie, abismada.
- Cortar-lhe o cabelo? O que é... quer dizer, curto?
- Sim, curto. Bastante curto. - A sua voz soava decidida. - Acho que sim,
desde que tenha uma tesoura.
- A Dorrie deve ter.
Deu a impressão de que ia levantar-se e perguntar-lhe logo naquele
momento, mas Penny aconselhou numa voz calma:
- Amanhã de manhã. Quando houver luz. Não posso fazer isso agora...
podia arrancar-lhe a cabeça! - Riram-se baixinho no escuro. - Porquê? -
indagou Penny. - Por causa do Spider?
- Não, mas... - Laurie hesitou.- Decidi que tenho de ser diferente de
agora em diante.

De manhã, pediram a tesoura emprestada a Dorrie, e quando as longas


madeixas douradas jaziam em molhos aos pés de Laurie, Midge pareceu
que ia chorar. Mas Jason afirmou determinado:
- Fica-lhe a matar. Parece um rapaz, só que mais bonito.
Laurie riu-se. Parecia-se, de facto, mais com um rapaz delgado e frágil,
com o corte escadeado e laivos de sardas do sol de Outono. Tentou ver o
seu reflexo na panela com água em cima da fogueira. Uma imagem pálida e
tremeluzente de uma desconhecida, nova e decidida, olhava para ela. “Toda
nova”, pensou. “Tenho de começar de novo.” Mas só disse:
- Gosto. Faz-me sentir bastante forte!
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Após o trabalho desse dia, Laurie foi à quinta buscar mais ovos e leite.
No escritório, ao lado da vacaria, Stan, um homem forte de cabelos cor de
areia, com mãos grandes, estava sentado à secretária a rever dolorosamente
os números para calcular a colheita do dia. Spider encontrava-se de pé a seu
lado. Quando Laurie passou pareceu ficar boquiaberto perante o aspecto
dela. Assobiou elogiosamente.
- Santo Deus - exclamou. - O que é que você fez? Laurie abanou a cabeça
loura.
- O meu novo eu - explicou. - Precisava de uma mudança. - Começou a
afastar-se.
- Espere um bocadinho - chamou Stan, levantando-se. - O Joe diz que
você percebe de contabilidade. É verdade?
Laurie hesitou.
- Sei somar dinheiro e fazer um balancete.
Stan convidou-a a entrar e mostrou-lhe os registos complicados e
riscados dos seus livros.
- Isto faz algum sentido para si? - indagou.
- É possível... - respondeu Laurie cautelosamente. Stan suspirou de
alívio.
- Quer encarregar-se disto? É menos duro do que a colheita. Laurie
abanou a cabeça, pedindo desculpa.
- Não. Tenho de estar com as crianças. É importante para elas sentirem-
se seguras neste momento. - Stan e Spider ficaram nitidamente desiludidos.
- Mas talvez pudesse vir durante uma hora, à tarde.
A cara de Stan abriu-se num sorriso.
- Podia? Tirava-me um grande peso de cima. - Olhou dela para Spider
com um certo pesar. - Não tenho grande cabeça para números... não tenho
mesmo.
- Já somos dois - retorquiu Spider. Laurie sorriu.
- Está bem. Amanhã. -Hoje não?
- Não, desculpe. Prometi aos miúdos ovos para o lanche. Tenho de
voltar.
Saiu do escritório muito calmamente. “Acho que o corte de cabelo me
tornou mesmo mais forte”, pensou.
Com a colheita do lúpulo e o trabalho na contabilidade de Stan,
passaram-se alguns dias antes de Laurie ter oportunidade de descer
novamente até ao rio para ver os cisnes. Ou seria o homem dos cisnes que
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ela queria ver? Não sabia. Mas algo lhe martelava a mente e a atraía para
aquele lento rio castanho...
Uma tarde chovia, por isso pararam de trabalhar cedo, incapazes de
apanhar o lúpulo enquanto estava húmido. Penny e as crianças ofereceram-
se para fazer o jantar, e assim Laurie saiu sozinha para passear à chuva.
Ainda havia alturas em que as recordações de Jeff a atormentavam.
Alturas em que se sentia torturada pela culpa de ele estar na cadeia. Mas
depois lembrava-se das cenas de violência. Passeando ao longo da margem
do rio, perseguida por estes pensamentos, quase esbarrou com o homem
dos cisnes, que estava agachado à borda d'água com um deles nos braços.
- Desculpe - sussurrou, ansiosa por não assustar a ave ferida. - Posso
ajudar? - Deixou-se cair na relva húmida ao lado dele.
- Um anzol na garganta- explicou ele. - Está a sufocar. - Mirou Laurie,
como que a avaliá-la. - Sim. Veja se consegue mantê-lo quieto enquanto lhe
enfaixo as asas.
De uma maleta de médico que se encontrava aberta na relva junto dele
tirou uma longa tira de pano. Enrolou-a com presteza à volta das poderosas
asas, mantendo-as bem junto do corpo do cisne para que o animal não
pudesse debater-se.
- Um golpe destas asas - explicou - pode partir um braço ou uma perna
sem mais nada.
Laurie segurou a ave magoada nos braços, sentindo o calor do peito
sedoso nos dedos e o bater selvagem e agitado do coração enquanto o cisne
se esforçava por respirar. “Era como eu me sentia”, pensou. “Agitada e
desesperada, quase a morrer de medo.”
Logo que o cisne ficou bem seguro, o homem estendeu a mão para o
saco e tirou um fórceps fino. Com cuidado e delicadeza, obrigou o bico a
abrir-se e começou a procurar.
- Está muito fundo - afirmou entredentes. - Se calhar não consigo
chegar-lhe. - Mas continuou a tentar.
E Laurie continuou a segurar firmemente a ave.
- Fica quieto, cisne - trauteou. - Ele não te vai magoar. Vais ficar melhor
não tarda.
Por fim, o homem dos cisnes torceu o ferro um pouco e deu-lhe um
puxão ligeiro e seco.
- Cá está! - exclamou, triunfante, e retirou a mão da garganta do cisne.
Entre as estreitas lâminas do fórceps, encontrava-se um anzol de aço com
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um pedaço de fio de nylon agarrado. O cisne teve uma náusea convulsiva,
pareceu arquejar e a seguir começou a respirar mais normalmente.
- Está tudo bem, meu amigo - afirmou o homem, sorrindo um pouco e
afagando o longo pescoço com uma mão consoladora. - Vais ficar bom
depois de um descanso. Vou levar-te para casa agora. - Levantou-se e olhou
para Laurie. Agora que a ave estava livre de perigo, parecia vê-la melhor.
Tocou ao de leve numa madeixa do cabelo certinho. - Outro pequeno
pedaço de liberdade?
Ela sorriu-lhe e continuou com as mãos à volta do cisne, até que ele se
baixou e meteu a ave abatida debaixo do braço.
- Vem? - Ficou de pé a observá-la, enquanto ela hesitava. - Pode ajudar-
me a deitá-lo.
Caminharam juntos ao longo da margem, sem pressas, com medo de
perturbar o cisne.
- Como se chama? - indagou Laurie. Ele voltou-se e sorriu-lhe.
- A maior parte das vezes, chamam-me aquele tontinho dos cisnes,
Harper. Mas os meus amigos chamam-me Clem. E você?
- Eu? Laurie.
- Então, venha lá, Laurie - convidou. E alargou um pouco as passadas,
de tal modo que ela teve de esticar as suas pernas para conseguir
acompanhá-lo.
Chegaram por fim a uma curva do rio e a uma pequena represa, onde se
encontrava uma velha roulotte apoiada em tijolos e atrás dela, meio
escondida numa confusão de salgueiros verdes, uma casinha com telhado
de telhas avermelhadas e um amontoado de telheiros e anexos. Havia um
lago artificial perto da casa, escavado a partir da represa, onde Laurie viu
um grande número de cisnes e outras aves aquáticas a nadarem em pacífica
reclusão.
Clem abriu a porta da cozinha com o ombro e pousou o seu fardo num
cesto baixo e largo cheio de juncos secos e ervas. Fez uma última festa
meiga à ave e virou-se para Laurie.
- Pão com queijo? - ofereceu. - E chá? Vamos sentar-nos lá fora a ver os
cisnes. A chuva parou.
Sentaram-se juntos no degrau da cozinha, rodeados por um mundo
aquático e verde, sereno e tranquilo. Não falaram muito, mas crescia entre
os dois uma sensação de companheirismo e de curiosa união sem palavras.
Nenhum deles a entendia; nenhum deles a questionava. Laurie sentiu anos
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de tensão e medo a abandonarem-na. Finalmente, mexeu-se e disse
baixinho:
- Tenho de ir andando.
Ele não tentou retê-la. Voltou para ela o seu sorriso meigo e lento e
acenou em concordância.
- Voltamos a ver-nos - declarou. Estava a fazer uma afirmação, e não
uma pergunta.
Laurie mirou-lhe o rosto e respondeu: - Voltamos, claro.

Mas no fim da semana Laurie não voltara a ver Clem, e Joe devia estar a
vir comprar hortaliças e a levar o pequeno grupo de volta. Ela descobriu
que estava a ficar apavorada com isso. Não queria regressar ao Esconderijo
nem aos seus urgentes problemas de habitação, advogados e papéis de
divórcio. Queria ficar numa plantação de lúpulo do Kent, com o Medway a
correr ao lado e os cisnes. E Clem? Sim, respondeu a si própria. Queria ser
como os cisnes que ficavam perto de Clem, porque sabem que sou amigo e é
seguro.
Mas sabia que não podia ficar. Tinha uma vida a reconstruir. Três vidas,
porque Jay e Midge estavam tão marcados como ela pela violência e tensão.
Precisavam de segurança, de uma escola simpática para frequentar e de um
lugar quente e afectuoso, que fosse a sua casa. Como ia conseguir tudo
aquilo não fazia a mínima ideia.
E depois havia Penny. A Penny do cabelo ruivo cor de fogo, do senso
comum tenaz e do riso alegre. Penny... que já se tornara parte das suas
vidas. Penny... que esperava um filho do próprio pai nos próximos três
meses e também não tinha para onde ir. O que ia Laurie fazer com ela?
- Já chega de matutar por hoje. - E lá estava a Penny dos seus
pensamentos a oferecer-lhe uma chávena de chá. - Olhe, o sol brilha -
anunciou. - E é domingo. Nada de colheitas.
Laurie riu-se e aceitou o chá. - Não há sinais de Joe?
- Há. E traz um passageiro - retorquiu Penny. - Olhe!
Laurie viu Joe dirigir-se a ela em passadas largas, com Jane ao lado. -
Que bom! - exclamou Laurie. - Como é que conseguiu escapar-se?
- O Joe disse que eu precisava de descanso. - Jane sorria e parecia mais
nova e menos perturbada no ar suave de Setembro.
- E precisava mesmo - confirmou Joe no seu resmungar fingido. - Era
mais do que tempo!
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- Por isso aqui estou.
- Temos coisas para discutir - continuou Joe, e olhava de Jane para
Laurie com os olhos experientes, brilhantes como pérolas.
- Venham tomar um chá - convidou Laurie, e levou-os para a sua
fogueira matinal.
- Sai um chá - cantou a voz de Penny. - Vou chamar os miúdos. Laurie
achou que aquilo estava tudo cuidadosamente orquestrado. - Digam-me o
que se passa - exigiu, assim que Penny foi à procura de Jay e Midge.
- Primeiro que tudo - começou Joe com um olho na cara atenta de Jane -,
o Stan quer que você cá fique mais uma semana. A colheita ainda não
acabou e ele diz que a sua contabilidade é impecável.
- A sério? - Laurie sentiu um estranho sobressalto de orgulho. Havia
alguma coisa que sabia fazer bastante bem, recebendo ainda dinheiro por
isso. E podiam ficar mais uma semana. Não era apenas orgulho que sentia,
mas alegria. Alegria verdadeira, simples e efervescente. - Isso seria
maravilhoso - suspirou. - Mas há tanta coisa que tenho de decidir.
- Como, por exemplo? - exigiu Joe.
- Bem, preciso de um sítio para viver, um emprego, uma escola para Jay
e... - Fez uma pausa. Havia Jeff. Também tinha de fazer alguma coisa
relativamente a Jeff.
- É demasiado cedo - murmurou Jane, como que lendo-lhe os
pensamentos.
- Será? - Laurie voltou os olhos para Jane. - Eu estou mais forte. Devia
visitá-lo. Ele não tem mais ninguém. - Falava sem amargura. - O que espera
conseguir? - indagou Jane.
- Nada. - O olhar de Laurie era firme. - Sei que nada vai mudar.
Também não vou voltar atrás em coisa alguma.
- Quer que o divórcio avance?
- Ah, sim. - A voz era calma. - Mas ele foi meu marido durante nove
anos. E está em muito piores lençóis que eu.
Jane olhou para ela, abismada. Depois de tudo por que passara, esta
rapariga conseguia ainda pensar no futuro do marido com verdadeira
compaixão.
- Está bem - acedeu. - Pode combinar-se isso.
- Quanto ao resto - Joe pigarreou, olhando de uma para a outra com
ansiedade -, tenho uma proposta.
O cérebro de Laurie ficou alerta. - Sim?
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- O meu pai - declarou Joe, como se aquilo resolvesse tudo. - O seu pai?
- repetiu Laurie, desorientada.
- Tem uma quintinha, percebe? Na Cornualha. Um sítio chamado
Tregarrow. Cultiva hortaliças e narcisos na Primavera. Perto do mar. Você
disse que gostava de viver ao pé do mar.
- Oh! - Laurie sorriu-lhe. - Lembrou-se.
- Claro que me lembrei - ripostou Joe, muito satisfeito consigo próprio.
- E...? - insistiu Laurie.
- Tem uma casita - explicou ele. - Vazia no Inverno. Aluga-a durante as
férias de Verão. - Os olhos bailavam de satisfação agora. - Se for capaz de
lhe fazer a contabilidade... e olhe que ele é pior que o Stan para números... e
ajudar a encaixotar as hortaliças e os narcisos, pode ficar com a casa sem
pagar renda e recebendo ainda um ordenado. Laurie arregalou os olhos
para ele de boca aberta.
- E receber? Ele deve ser maluco.
- Não, não é. Você vale o seu peso em ouro... a contabilidade. Já lhe
tinha dito.
Ela abanou a cabeça, incrédula. - Perto do mar? Tem a certeza? - Claro
que tenho a certeza. A falésia fica a uns cem metros. Quer dizer - agora ria-
se -, tem a certeza de que é a sério?
- E o meu pai - ripostou Joe com a boca numa linha direita e firme. - O
que ele diz é a sério. Está a ficar velhote. Dava-lhe jeito ter uma ajuda.
Manda uns produtos para mim, outros para o mercado de Penzance e mais
umas tantas lojas. Para ele, é uma dádiva de Deus.
Laurie pousou-lhe uma mão no braço.
- Joe, acho que você é o homem mais bondoso que alguma vez conheci. -
“Com excepção de um”, pensou com tristeza.
- Que disparate - exclamou Joe num tom zangado. - Tenho de pensar
nos meus também. O meu pai é especial, percebe?
Laurie e Jane olharam uma para a outra e riram-se. - O que é que acha,
Jane? - consultou Laurie.
- Conheço o pai do Joe, chama-se Luke Veryan - respondeu Jane -, e
penso que o Joe tem razão. É uma dádiva de Deus. - Olhou de relance para
Joe com ternura.
- E a Penny? - lembrou Laurie de súbito. - O que é que tem a Penny?

41
- Bem, ela está muito apegada a nós. Os miúdos adoram-na e ela adora-
os. Podia levá-la comigo. Podia tomar conta dos miúdos enquanto eu
trabalhava. Era uma espécie de solução.
- Melhor que muitas - murmurou Jane.
- Ora, sim, senhor - concordou Joe com uma resmungadela aprovadora.
Ia ter de deixar Clem e os seus cisnes, pensou Laurie. Mas a oferta de
Joe era demasiado boa para ser recusada.
Quando lhe perguntaram a opinião, Penny ficou muito pálida, olhou
para Laurie com uma certa candura desesperada e indagou:
- Quer-me mesmo?
Laurie não hesitou. Apercebeu-se de repente de que nunca ninguém
dissera a Penny que era querida nem amada em toda a sua curta vida. -
Quero - respondeu. - E o Jay e a Midge também te querem. O sorriso de
Penny parecia um nascer-de-sol.
- Então, vou!
- O que é que achas, Jay? - inquiriu Laurie, sorrindo. - Vamos viver
numa casa à beira-mar!
Uma casa nossa? - perguntou Jay.
- Mesmo nossa, não. Pertence ao pai do Joe.
- Pais, não - exclamou de súbito Midge. - Não quero pais nenhuns.
Laurie e Jane suspiraram e lançaram a Joe um olhar pesaroso. Mas
Penny, que fora mais maltratada do que todos eles, retorquiu:
- Não sejas pateta, Midge. Nem todos os pais são maus. Pois não, Joe?
- Claro que não! - vociferou Joe. - O meu não é. É o melhor... o meu pai.
Vais ver. - Inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha amigável a
Midge. - Eu não sou mau, pois não, pitorrita?
- Não - respondeu Midge. E como que pensando melhor disse: - Deu-
nos gelados.
- Ai sim? - Joe sorriu e levantou-se. - Tenho de carregar as hortaliças.
Sabem, se alguém me ajudasse, talvez comprasse mais uns gelados.
Midge pegou-lhe na mão.
- Foi o que eu pensei - declarou.

Portanto, ia haver outra semana de ouro nas plantações de lúpulo. E os


meses de Inverno estavam resolvidos também. Laurie mal acreditava na sua
sorte. Quase se sentiu culpada ao ver Jane e Joe afastarem-se dos campos
para regressar às suas vidas de trabalho árduo em Londres, ao passo que ela
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se preparava para um passeio à beira-rio com Penny e as crianças para ver
os cisnes.
Penny foi à frente, com as crianças a correr adiante. Depois, Laurie
ouviu Penny gritar e a voz aguda de Jason a dizer:
- Larguem-me!
Em pânico, Laurie começou a correr. Chegou de rompante à curva do
rio e quase embateu em cheio em dois rapazes crescidos que seguravam
Jason pelos braços.
- Atiramo-lo lá p'ra dentro? - dizia um deles.
Penny batia-lhes, feita louca, com um pau que apanhara na relva, mas
um terceiro meliante agarrou-a por trás. A pequena Midge, petrificada de
horror, recuava devagar na direcção de um maciço de juncos na borda-
d'água.
- Parem com isso! - gritou Laurie de repente, demasiado zangada para
ter medo. Agarrou num pau de uma vedação partida e começou a bater nos
rapazes. - Deixem-nos em paz! - berrou. - Porque não procuram alguém do
vosso tamanho?
Os três grosseirões soltaram alguns impropérios de surpresa, e o mais
alto balançou um braço brutalmente, atingindo Laurie com uma forte
pancada na fonte. Depois, voltaram-se e fugiram.
Mas tinham de passar por Midge, e ela viu-os aproximarem-se. Deu
mais um passo aterrorizado para trás, pôs o pé nuns juncos flutuantes e caiu
dentro do rio. Os atacantes deram uma olhadela assustada e continuaram a
fugir. Jason tomou fôlego e mergulhou na água atrás dela.
- Não, Penny - gritou Laurie ao vê-la também a dirigir-se ao rio. - Estás
demasiado pesada. Fica aí para nos puxares! -E também ela se atirou para
dentro do canavial lamacento e estendeu a mão para Jason e Midge.
A água era mais profunda e fria do que esperava, e a sua filha já se
afundara duas vezes, mas Jason deitara-lhe a mão ao cabelo e mantinha-lhe
corajosamente a cabeça à tona. Só que ele também estava quase sem pé e os
seus pés afundavam-se cada vez mais na lama do rio. Laurie apercebeu-se
com súbito terror de que o que começara como um simples incidente
aborrecido estava rapidamente a transformar-se numa tragédia. Debateu-se
na direcção das crianças, pontapeando para libertar as pernas da lama
peganhenta e das ervas.

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Penny tinha arrancado uma estaca mais comprida da vedação e
esticava-se com ela. Mas era demasiado curta. E as crianças estavam a ser
arrastadas pela corrente para o meio do rio.
- Aguentem-se aí! - gritou uma voz atrás deles. - Já lá vou! Laurie
alcançou Jason exactamente quando a velha bateira de Clem atravessava o
rio com um forte impulso.
- Aguente um minuto - disse ele. - Já agarrei a pequenina... - e estendeu
uma mão forte, içando Midge para dentro da bateira. - Agora tu - disse a
Jason, que engolira muita água do rio e tossia e arquejava. - Agarra na
minha mão.
A seguir, foi a vez de Laurie, que também aterrou nas pranchas
cinzentas da velha bateira. Clem mirou a sua carga encharcada. Depois, fez
sinal a Penny e gritou:
- Segue-nos. A minha casa fica a seguir à próxima curva - e impulsionou
a bateira novamente para o meio do rio.
Pouco depois, estavam todos sentados à volta do fogão de Clem,
enrolados em cobertores, a beber chá. Jason não parecia mal, embora
estivesse muito calado. Mas Midge agarrava-se com força a Laurie. Laurie,
por seu lado, estava pálida e sentia a cabeça esquisita de novo, mas olhava
das crianças para Penny e para Clem com gratidão. Estavam todos a salvo.
- Você parece cultivar o hábito de salvar coisas - comentou ela, sorrindo.
Clem riu-se.
- Sempre é uma variante dos cisnes!
- Como está aquele do anzol? Recuperou?
- Claro. - Fez um gesto vago na direcção da porta da cozinha. - Está lá
fora com os outros.
- Que outros? - indagou Jason, interessado.
- Acaba o teu chá que eu mostro-te - propôs Clem. Observou o corpo de
Jason coberto com o cobertor e acrescentou: - Podia arranjar-te uma T-shirt
seca e uns calções. Vão ficar-te enormes, mas acho que um cinto os
segurava!
Subiu as escadas e voltou com os braços cheios de roupas, e quando
estavam todos mais ou menos vestidos, saíram, rindo. Havia meia dúzia de
cisnes a nadar calmamente no pequeno lago que Clem lhes fizera e vários
casais de patos. Havia também uma alta garça-real, cinzenta, com o bico
ferido, e duas gaivotas que tinham sido trazidas com as penas cheias de
óleo. E havia uma cabeça molhada e lustrosa a nadar em direcção a eles.
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- O que é aquilo? - perguntou Jason, apontando.
- Aquilo? Ah, aquilo é o Jaunty. É uma lontra que encontrei numa
armadilha para enguias lá mais em baixo no rio, perto do estuário.
- Uma lontra? Nunca tinha visto uma lontra viva.
- Poucas pessoas as vêem hoje em dia - replicou Clem. - Estão a tornar-
se cada vez mais raras. - A sua voz soava triste.
- Porquê?
- Oh, motivos diversos. As pessoas caçam-nas e matam-nas.
Os olhos de Jason encontravam-se pousados na bela e inteligente cabeça
a sair da água para os espreitar.
- Não sei como é que alguém pode fazer-lhes mal - murmurou
entredentes.
- Não são só os caçadores. Os rios estão poluídos, os canaviais são
cortados e as dragas chegam. Os locais selvagens e secretos onde as lontras
gostam de viver estão a desaparecer gradualmente. É por isso que o Jaunty
vai ficando por cá. Aqui tem sossego e ninguém lhe corta as canas nem os
salgueiros.
- Ele é seu? Clem hesitou.
- Bem, mais ou menos. Quando deixei de ser veterinário na cidade, o
meu sócio comprou a minha parte, por isso fiquei com algum dinheiro.
Depois o pessoal da protecção da Natureza e eu juntámo-nos e comprámos
esta casa e o máximo de terreno que conseguimos. Isto está registado como
reserva natural e santuário de aves.
- Ainda bem - afirmou Jason com simplicidade.
Ficou fascinado, a observar Clem a deitar comida, cuidadosamente
escolhida, aos seus cisnes convalescentes e a remexer num balde de plástico
para encontrar um peixinho que atirou a Jaunty.
- A questão é que - explicou Clem, muito sério, a Jason - não se deve
dar-lhes comida demais, senão nunca mais se vão embora nem aprendem a
caçar sozinhos.
- Eles têm de se ir embora? - indagou Jason, ansioso.
O homem grande e calmo olhou-o de relance com simpatia.
Compreendeu a tristeza na voz do rapaz, o desejo de estar seguro, como
Jaunty... de ter alguém seguro como ele a quem recorrer.
- Sim - respondeu -, têm. Têm de aprender a ser independentes e livres.
Foi para isso que nasceram. - Os olhos dele desviaram-se para o rosto de
Laurie, e viu um olhar brilhante e singular de reconhecimento atravessado
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de determinação. - Mas é claro que - continuou rapidamente -, se
regressarem de vez em quando para um pouco de conforto e segurança, fico
muito satisfeito por vê-los.
Exactamente nessa altura, Jaunty mergulhou, nadou e mostrou a sua
agilidade flexível na água. Fez um pino, depois levantou-se sobre as patas
traseiras e sorriu-lhes, como a dizer: “Não sou esperto? Não sou bonito?” A
seguir, nadou para o meio do rio.
- Lá vai ele - exclamou Clem. - Mas há-de voltar. - Há-de? - Havia
tristeza na voz de Jason.
- Com certeza. Mais cedo ou mais tarde. - O sorriso dirigiu-se para
Jason. - Talvez amanhã. Ele não vai esquecer-me agora.
Jason suspirou, não conseguia exprimir a estranha dor que sentia. Foi
então que Laurie desmaiou. Inesperadamente, a margem do rio começou a
rodar, o céu revolteou e ficou preto e ela caiu como uma pedra aos pés de
Clem.
Midge gritou. Jason e Penny debruçaram-se sobre ela com ansiedade.
Clem pegou-lhe, levou-a para dentro e pousou-a no sofá do canto junto ao
fogão.
- É a cabeça - explicou Penny. - Tem uma ligeira fractura e acho que um
daqueles grosseirões chegou a bater-lhe.
Clem acenou com a cabeça em silêncio.
- Já vai acordar daqui a pouco. - Voltou-se para as crianças com a voz
calma. - Há uma esponja e uma bacia no meu lava-loiça. Tragam um bocado
de água...
Ele sabia que uma acção de qualquer tipo reduziria o pânico. Midge já
tinha parado de chorar e seguiu Jason. Regressaram carregando
cuidadosamente uma bacia cheia de água, e Clem banhou a testa de Laurie,
que tinha de facto um novo hematoma feio e vermelho. Passados poucos
instantes, Laurie abriu os olhos.
- Desculpem - murmurou entredentes, a esforçar-se para se sentar. - O
que é que me deu?
Clem sorriu.
- Levou um murro de um malandro. - Empurrou-a suavemente para
trás. - Descanse aí um pouco. A Penny e eu vamos arranjar qualquer coisa
para o almoço.
Em breve, Penny tinha preparado uma apetitosa mistura de carne
enlatada, feijão cozido, tomates de lata, espinafres da horta de Clem e
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cogumelos frescos. Pousou-a triunfalmente sobre a mesa. Nessa altura,
Laurie já recuperara o suficiente para se juntar a eles. O cheiro delicioso até
a fez sentir bastante fome.
Antes de a refeição acabar, Midge começou a cabecear. A excitação do
dia tinha sido demasiada para ela. Laurie deitou-a no sofá e tapou-a com
um cobertor. Depois, Penny anunciou com à-vontade:
- Acho que eu e o Jason vamos dar uma vista de olhos enquanto
descansa. - Voltou-se para Clem com um ar inquiridor: - Se não se importar,
claro.
- Com certeza - concordou Clem. - Andem só devagar para não
perturbarem as aves.
Laurie viu-os sair e pensou em pânico: “Não sei o que dizer a este
homem. Como posso explicar-lhe o que me tem vindo a acontecer ou o que
sinto?” Mas Clem surpreendeu-a.
- Quando é que se vão embora? - indagou. Laurie arregalou os olhos
para ele, espantada. - No fim da semana.
- E depois?
Titubeando, ela contou-lhe da casa e do emprego na Cornualha.
- Tenho de o aceitar - explicou. - É uma dádiva do céu. - Clem fez que
sim com a cabeça pensativamente. - E eu... eu gostava de viver ao pé do
mar... - A voz dela soava estranha e sonhadora. - Parece ser a única maneira
de me sentir limpa.
Ele não fez comentários, mas perguntou:
- As crianças sabem nadar?
- Não. Como viu hoje, Jay mal consegue boiar. Mas Midge...
- Traga-os cá - disse ele.
Ela fitou-o. - O quê?
- Traga-os cá, todos os dias, depois de acabar o trabalho. O bocado da
represa que eu abri é bastante limpo e não muito fundo nem lamacento.
- Mas...
- Todos os dias! - declarou com decisão. - Consigo ensiná-los numa
semana. Pelo menos, posso dar-lhes segurança dentro de água. E à Penny
também. Mesmo no estado dela, pode aprender a boiar. - Acrescentou
alegremente: - A natação é boa para as grávidas.
- Como é que sabe? - perguntou Laurie, rindo-se. Clem riu-se também.
- É lógico. Flutuam dentro de água... tira-lhes um peso de cima! Ainda
estavam a rir quando Penny e Jason regressaram. Nada de sério fora dito,
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nada de triste, perigoso ou importante. Mas Laurie sentia-se estranhamente
reconfortada. Clem parecia saber o que ela sentia. Aceitava a partida dela.
Até compreendia o seu desejo insaciável de se sentir limpa pelos ventos
fortes, pelas ondas da costa atlântica. Talvez um dia se sentisse em
condições para deixar outras pessoas aproximarem-se. Talvez um dia
voltasse àquela sossegada represa, como os cisnes. Mas, entretanto, havia
ainda esta última semana de ouro. E Jason e Midge a aceitarem já Clem
como um companheiro seguro e amigo, não um inimigo. Sobretudo Jay. Viu
que os olhos de Clem, pousados no rapaz, estavam cheios de carinho. Havia
uma ligação natural a crescer entre eles, porque Jason também adorava
animais selvagens... “Para onde é que este homem me está a levar?”, pensou
ela.

Clem era um homem calmo que não se zangava facilmente. Mas


naquela altura estava tão zangado que não conseguia estar quieto, por isso
foi passear ao longo do rio.
Há muito tempo que Clem estava habituado a passear sozinho. Por
opção sua. Tinha jurado, aquando da ruptura final com Sylvia, que nunca
mais permitiria a um ser humano aproximar-se tanto que pudesse destruir-
lhe a vida. No entanto, ali estava ele, apanhado inextricavelmente, como um
dos seus cisnes, numa confusão de fio de pesca emaranhado, por uma
jovem pequena e magra de olhos pisados e dilatados pelo estado de choque
e um sorriso frágil como cristal.
Sylvia não era frágil. Era muito segura de si. Enquanto ele estava fora,
noite após noite em serviço, como era natural para um veterinário ocupado,
ela tinha-se divertido. Quando percebera que o divertimento era com o seu
sócio, amigo e colega, Clem largara o consultório, deixara o sócio comprar a
sua quota e levar a sua mulher. Tinha virado as costas aos caniches
demasiado gordos e aos seus donos demasiado ricos. Tinha fugido para
aquele santuário verde atrás dos salgueiros entrelaçados e devotado a vida
às necessidades das criaturas selvagens.
Era uma existência calma e segura. Então, porquê esta súbita fúria
dilacerante? Não era só devido aos grosseirões da margem do rio... nem
mesmo ao homem que pusera tanto medo nos olhos de Laurie. Clem tinha
receio. Uma fúria tão profunda e violenta como aquela estava muitas vezes
demasiado próxima do amor.

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Jason ficara preocupado com o recontro com os rufias na margem do
rio. Não que tivesse tido medo, claro. Já tivera que lidar com brigões na
escola. Sabia tomar conta de si. Mas eles tinham assustado Midge de tal
maneira que ela quase se afogara, e haviam mesmo batido na sua mãe e
feito a cabeça dela ficar pior outra vez. Prometeu a si próprio que ninguém
mais voltaria a bater na mãe. Não fora suficientemente forte para o evitar.
Que espécie de ajuda ia ser para a mãe se não conseguia sequer enfrentar
aqueles rapazes? Por isso, no dia seguinte foi perguntar à única pessoa que
sabia que era suficientemente forte e bondosa para tomar conta deles
todos... o seu novo amigo, Clem.
Encontrou Clem a dar de comer às aves e ficou a observá-lo por
instantes em silêncio, a magicar como havia de explicar-lhe o problema.
Mas Clem antecipou-se-lhe.
- Então, Jason? O que é que te preocupa?
Jason ainda hesitou, mas por fim, declarou com vergonha:
- É a mãe. E a Midge. - Fez uma pausa e a seguir acrescentou: - E a
Penny também. - O rapaz levantou os olhos com confiança, seguro de que
Clem saberia a resposta. - Como é que posso mantê-las em segurança?
Os olhos de Clem encheram-se de mágoa súbita. “Deus do céu”,
pensou. “Só tem oito anos e pergunta-me uma coisa destas!”
- Jay - afirmou por fim -, tu já tens vindo a mantê-las em segurança a
todas. Mas a partir de agora vai tudo tornar-se mais fácil.
- Foi difícil à beira do rio, e vai haver outras vezes. - Havia um mundo
de verdadeiro conhecimento na voz infantil.
- Sim, Jay, é verdade - concordou Clem. - Mas não vai ser tão grave.
- Não vai ser grave? - O rapaz parecia confuso.
Clem apontou para o outro lado do lago, onde a lontrazinha brincava
nos baixios.
- Lembras-te do Jaunty? Quando o apanhei, a vida tinha sido muito
dura com ele. Tinha medo de tudo. Até me mordeu quando tentei ajudá-lo.
Mas agora - pensou quanto precisaria de dizer - está forte outra vez. É capaz
de encarar seja o que for. Já não tenho de o proteger.
Houve um silêncio durante o tempo em que Jason matutava sobre
aquilo. Depois, disse devagar, sem olhar para Clem:
- A mãe está quase boa... - Sim, Jay, pois está.
- Mas a Midge ainda é pequena. Clem riu-se.

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- Dá-lhe tempo, Jay. Ela há-de crescer. Com certeza que vais precisar de
tomar conta delas, mas não tanto como dantes.
Clem interrogou-se se teria tirado algum do peso de preocupação dos
jovens ombros ou se só piorara as coisas. Jason ergueu os olhos para
Jaunty, que corria atrás da própria cauda.
- Quem me dera... - começou, e a seguir percebeu, de alguma forma, que
não devia dizê-lo. Em vez disso, transformou a frase num outro
pensamento que era igualmente verdadeiro. - Quem me dera poder um dia
ajudá-lo a tratar dos cisnes.
- Porque não? - O sorriso de Clem era franco e carinhoso. - Faz-me
sempre jeito mais um par de mãos, isto é, desde que sejam bondosas. Jason
baixou os olhos para as suas próprias mãos, admirado, e depois para as
mãos grandes e morenas de Clem.
- Bondosas?
- Bondosas - repetiu Clem com meiguice. - É esse o segredo, Jay.
Bondade. - Inclinou-se para os seus baldes de comida e tirou um peixe para
a lontra. - Toma. Dá um petisco ao Jaunty. Talvez ele faça uma cabriola.
Jason atirou o peixe pelo ar. Ele brilhou ao sol e Jaunty deu um salto
para o apanhar e fez de facto uma cabriola.
- Aí está - comentou Clem. - É assim que a vida vai ser, Jay, a partir de
agora. Só sol a brilhar e cabriolas.
Havia tanta certeza na sua voz que Jason quase acreditou.

Então, todos os dias ao calor do fim da tarde, após um dia nas


plantações de lúpulo, todos nadavam na pequena represa, mantendo-se na
parte aberta e soalheira para não perturbarem as aves mais tímidas de Clem
entre os canaviais. Laurie achava a água fria do rio um bálsamo. Penny
patinhava, mais como uma foca gorda e preguiçosa, e Clem não tentou
persuadi-la a fazer mais do que aprender a manter-se à tona da água. Mas
as crianças aprendiam depressa. Jason já conseguia atravessar a represa, a
nadar à cão, de um lado ao outro e Midge não lhe ficava muito atrás.
Na última noite, Laurie e Clem passearam lado a lado e viram as
sombras alongarem-se nos prados ao pé do rio. Não falaram muito. Clem
tinha sempre tendência para silêncios pacíficos mais do que para palavras, e
Laurie ficava-lhe grata por isso. Mas por fim pararam, por consentimento
mútuo, para observar dois cisnes brancos que deslizavam na superfície
resplandecente do rio ao pôr do Sol.
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Em geral, Clem era paciente. Aprendera que não se podia banir o medo
e construir a confiança da noite para o dia. Laurie, tal como os seus cisnes,
tinha de encontrar o seu próprio caminho, a sua própria coragem. Mas, à
beira do rio, naquela última noite juntos, sentiu uma grande tentação. Os
seus braços ansiavam por abraçá-la. Virou-se repentinamente para ela e
pôs-lhe os braços em redor dos ombros. Sentiu-a ficar levemente tensa e
disse a si próprio, desesperado: “Burro! Demasiado cedo, demasiado cedo.”
Por isso, afrouxou o abraço, sorriu-lhe e murmurou em jeito de desculpa:
- É uma altura mágica, o pôr do Sol. Até os cisnes a sentem. - Inclinou a
cabeça e beijou-a, muito suave e calmamente, no rosto ansioso voltado para
cima.
Laurie sabia que o magoara, mas a sua reacção fora instintiva. Não
conseguia dizer nada para o sossegar. Ainda não...
De repente, os dois cisnes levantaram voo num planar lento e longo,
deixando um rasto na água com as patas, até a força das suas asas levar a
melhor. Voaram rio abaixo num arco largo e suave, e quando estavam já
quase fora do alcance da vista e o som do seu voo cadenciado quase
desaparecera, viraram no meio do ar azul e regressaram, aterrando numa
chuva de salpicos cintilantes. Pareciam olhar para Clem, como que
contentes por ele ainda ali estar, e depois deslizaram placidamente para os
baixios, flutuando como fantasmas brancos nas sombras que se fechavam
sob os grandes ramos cinzentos dos salgueiros entrelaçados.
- A liberdade - disse Clem suavemente - não é apenas levantar voo. É
saber onde se quer aterrar e quando é tempo de regressar a casa. Não olhou
para Laurie. Não disse mais nada.
- Sim - murmurou Laurie, de olhos postos nos cisnes. - Eu sei.

Parte III

Voando em Liberdade

De regresso a Londres, Laurie virou os seus pensamentos


decididamente para os seus problemas imediatos e tentou não continuar a
pensar no sol dourado no rio. Deixou Penny e as crianças aos cuidados de
Jane e foi buscar umas roupas à esquálida casinha com todas as suas
recordações sombrias. O seu coração teve um sobressalto de terror
relembrado quando ela enfiou a chave na fechadura e entrou. Não foi à
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cozinha - não conseguia enfrentar aquilo -, subiu logo ao andar superior, ao
quarto. Havia duas malas velhas atrás do armário. Levou uma para o
quarto das crianças e encheu-a com todas as roupas que encontrou. A
seguir, regressou, sem vontade, ao quarto escuro que compartilhara com
Jeff e atirou apressadamente alguma da sua própria roupa para dentro da
outra mala. Não olhou para a cama. Não conseguia suportar lembrar-se das
vezes que Jeff se atirara para cima dela, bêbado e selvagem, e a forçara, sem
amor nem piedade, numa espécie de raiva cega, nem das vezes que cedera,
desesperada e em silêncio, sabendo que tudo se tornaria ainda mais
violento se tentasse protestar. Estremeceu, atirando os últimos poucos
objectos e peças do toucador para dentro da mala.
Quando carregava as malas para baixo,ouviu uma pancada curta e forte
na porta. Laurie ficou gelada. Poderia ser Jeff? Teria saído da cadeia mais
cedo? Respirou fundo e dirigiu-se à porta.
Joe encontrava-se de pé no degrau com ar ansioso; a sua velha carrinha
verde estava estacionada junto ao passeio.
- Achei que talvez precisasse de boleia - explicou. Os dentes de Laurie
batiam.
- Como sabia...
- A Jane disse-me. Não ia deixá-la atravessar Londres carregada de
malas. Além disso - deu uma olhadela cautelosa, não lhe passando
despercebidos os sinais de tensão -, achei que isto era capaz de a abalar.
- Sim - admitiu Laurie com um sorriso pálido -, abala sim.
Joe deixou-a no Esconderijo e combinou levá-la, a ela, a Penny e às
crianças, ao terminal das camionetas daí a dois dias para a viagem até à
quinta do pai dele, na Cornualha. Entretanto, Laurie tinha ainda mais uma
obrigação desagradável.

A vida na cadeia não era fácil para Jeff. Soube-se que batia na mulher e
provavelmente nas crianças também. Os outros presos não gostavam desse
tipo de gente. Era recebido por um silêncio de gelo à hora das refeições. Nas
oficinas era sujeito a brincadeiras desagradáveis. Os bancos fugiam de
debaixo dele; os martelos falhavam os pregos e acertavam-lhe nas mãos
distraídas; pilhas de troncos de madeira bem arrumados caíam à sua volta.
Para piorar as coisas, não havia bebida para apagar as humilhações do dia.
Portanto, não era surpresa que estivesse zangado e ressentido quando o
foram chamar à cela e lhe disseram que tinha uma visita. Seguiu para onde
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o mandaram num estado de espírito negro, à espera de ouvir mais outro
sermão de um visitante de prisões acerca do demónio da bebida.
Em vez disso, deu consigo sentado à frente de uma janela com a cara de
Laurie do outro lado. Uma Laurie diferente. O cabelo estava muito curto,
fazendo-a parecer mais velha e de certa forma mais forte. E o rosto tinha
uma expressão de decisão firme.
- Como estás, Jeff? - indagou ela.
- O que é que achas? Fechado aqui dentro! - Mostrou-lhe má cara, sem
ter a certeza do que a visita significava. - Para que vieste? Não me digas que
estás arrependida.
Ela ficou ali sentada a observá-lo com uma expressão avaliadora e
baralhada. “É este o homem com quem me casei?”, parecia perguntar a si
própria.
- Não - falou com cautela. - Só queria saber como estavas. - Ah,
obrigado. Já que tu é que me puseste aqui.
Ela suspirou.
- Eu não te pus aqui, Jeff. Foste tu que te puseste aqui. Tal como me
afastaste a mim e aos teus filhos. - Fitava-o agora com determinação,
desejando que ele visse a verdade. Só assim é que ele poderia vir a
recompor-se.
- Sua cabra estuporada e hipócrita! - gritou ele de súbito, e deu um
murro na janela. - Eu deito-te a mão quando sair daqui!
Mas Laurie não ficou assustada nem intimidada pelas ameaças dele. Da
distância do painel de vidro que os separava, viu não o monstro que
receara, mas um homem desnorteado e magro, cujo alegre mundo de
fantasia se desmoronara à sua volta. Descobriu que tinha pena dele.
- Vim despedir-me, Jeff - disse-lhe numa voz firme. - Vou-me embora.
- Despedir-te? - rosnou ele com a fúria a emergir de novo. - Não vais a
lado nenhum, percebes? És minha mulher e eles são meus filhos. - Já não -
respondeu ela. - Não compreendes? Acabou-se. O processo de divórcio está
a seguir os seus trâmites. E se queres ver as crianças outra vez, vais ter de
esperar até serem mais velhas. Têm demasiado medo de ti agora.
- Medo de mim? Que disparate! Tu é que lhes meteste isso na cabeça.
Laurie não deu uma resposta directa àquilo.
- Na verdade, Jeff, tu não as queres mais do que me queres a mim.
Somos só um estorvo. - Deu-lhe a sensação de ver então um lampejo de
esperança nos olhos furiosos, um vislumbre de uma vida nova e livre.
53
Mas a ele ainda não lhe agradava a ideia de a mulher e os filhos estarem
à solta. Eles pertenciam-lhe.
- Não podes ir-te embora sem mais nem menos - protestou, tentando
soar de forma patética. - Eu preciso de ti.
Laurie levantou-se da cadeira. - Lamento - replicou ela.
Jeff não queria acreditar. Ela ia mesmo abandoná-lo. Soltou um
chorrilho de obscenidades furiosas. O guarda pegou-lhe num braço e
empurrou-o para fora.

A separação de Jane foi inesperadamente emotiva. Laurie sentiu que


uma linha de vida de sanidade e apoio estava a ser cortada. Mas Jane
afirmou com bondade:
- Vamos manter-nos em contacto, Laurie. E sabe que pode sempre
regressar. - Entregou a Laurie um envelope. - Isto é o resto do seu subsídio
de emergência dos serviços sociais. A partir de agora, pode levantar os
abonos na repartição deles em Penzance.
Laurie olhou para Jane e abanou a cabeça sem palavras. Depois, atirou-
lhe os braços ao pescoço e abraçou-a.
- Não sei o que seria de mim sem si.
- Vá lá. - A voz de Jane era quente de afeição. - Passem um bom
Inverno.
Joe arrumou-os a todos na carrinha e deixou-os no terminal das
camionetas. Laurie abraçou-o e declarou:
- Obrigada por tudo.
Joe retribuiu-lhe com um apertão alegre e despediu-se de todos:
- Divirtam-se, miudagem. - A seguir, virou-se depressa para a sua
pequena carrinha verde.

De Penzance, apanharam uma velha camioneta, embrenhando-se nas


estradinhas estreitas da Cornualha. Foram deixados num cruzamento ao
lado de uma antiga cruz celta.
- Tregarrow é para aquele lado - informou o motorista da camioneta. - A
quinta de Luke Veryan é acima do vale.
Pegaram na bagagem e desceram com dificuldade um caminho estreito
até chegarem a um portão de quinta. Para lá do portão, via-se um pátio
enlameado e um amontoado de edifícios, a maior parte deles de pedra
esboroada e ardósia cinzenta. Uma pequena casa de quinta erguia-se a um
54
canto do pátio, e um barulho de desnatadeiras e baldes de ordenha saía das
portas abertas do celeiro contíguo.
Laurie deixou os outros no pátio e aproximou-se do celeiro baixo e
comprido. Seis vacas-leiteiras aguardavam pacientemente nos seus
estábulos, e um homem alto e magro, de fato-macaco manchado, despejava
leite de um balde para uma desnatadeira metálica. Ergueu os olhos quando
viu Laurie e uma vaga centelha de reconhecimento atravessou-lhe o rosto
triste e cinzento, mas não parou o que estava a fazer até o balde ficar vazio.
- Posso ajudar? - indagou Laurie, vendo outros baldes cheios.
- Porque não? - ripostou Luke Veryan com uma pronúncia entrecortada
e abrupta. - Poupava tempo, lá isso é verdade.
Ela entrou e despejou com cuidado o leite espumoso para dentro da
desnatadeira que o aguardava. Ele não voltou a falar até o último balde ficar
vazio. A seguir, endireitou as costas e mirou Laurie um pouco mais
calorosamente.
- É a Laurie Collins, suponho? - perguntou, e espreitou para o resto do
grupinho, hesitante no pátio. - Não tiveram grande recepção, pois não? - Fez
um sorriso e indicou o caminho para fora do celeiro. - Já os levo à casa.
Tenho de tirar as vacas primeiro.
Jason avançou.
- Posso ajudar - ofereceu-se. - Para onde quer levá-las?
Luke Veryan mirou o rapaz de alto a baixo. Depois, acenou com a
cabeça.
- Em princípio, sabem o caminho. Mantém-te atrás delas e vai andando.
Tirou as vacas para o pátio. Automaticamente, a chefe da manada
encaminhou-se para o campo em frente e lentamente as outras seguiram-na.
Jason seguiu com confiança atrás delas. Quando uma das vacas tentou
desviar caminho, ele acenou com os braços.
- Não - disse ele baixinho. - Por aí não, tonta. Anda lá!
Ao vê-lo, Laurie pensou que parecia ter andado a pastorear gado toda a
vida. Depois de as vacas estarem todas no pasto, Veryan virou-se para
fechar o portão e deu com o rapaz já a empurrar a cancela.
- Óptimo - afirmou. - Serves. - E o ligeiro sorriso surgiu novamente ao
ver Jason corar de prazer.
Luke Veryan pegou em duas das malas com mãos grandes e
competentes e indicou-lhes o caminho para lá da casa de quinta, por um
trilho empedrado ao longo da encosta da colina. Andaram cerca de cinco
55
minutos e por fim o trilho alargou-se e chegaram a uma casinha quadrada
encostada à colina. Para baixo, ficava uma falésia inclinada coberta de
giestas e chorão e abaixo dela, estendendo-se até ao horizonte que escurecia,
o mar.
- Oh! - exclamou um coro de vozes extasiadas. - O mar!
Luke Veryan emitiu um som de indiferença. O mar não era novo para
ele. Mas também o afectava à sua maneira. E ficava sempre contente
quando os visitantes davam aquele “Oh!” inicial de prazer.
- Tregarrow fica por baixo da colina - explicou. - Mais para lá na
enseada. - Fez um sinal com o polegar na direcção da estreita entrada do
vale, onde os dois braços da falésia se encontravam. - Podem lá ir às
compras - acrescentou. - Mas fiz um abastecimento para vocês, a título
temporário.
Tirou uma chave do bolso do fato-macaco e abriu a robusta porta,
indicando-lhes que entrassem com um gesto da mão.
Lá dentro, havia uma sala quadrada, caiada e limpa, com um sofá e
duas cadeiras pequenas de braços num canto à volta de uma lareira. No
outro canto, havia uma mesita de jantar quadrada e quatro cadeiras de
espaldar direito e uma cozinha bem equipada.
Laurie correu lá acima para dar uma vista de olhos aos quartos. Eram
dois, um com duas camas individuais e outro com um beliche e um divã
individual. Ambos tinham janelinhas de onde se via o mar para lá da
encosta íngreme da colina. Era maravilhosamente sossegado. Desceu as
escadas a correr no momento em que Luke Veryan saía.
- A que horas começo amanhã? - perguntou-lhe.
Na meia-luz, os olhos, dele, castanhos como os de Joe, mas mais
sombrios, pareceram avaliá-la com severidade.
- Nada de trabalho amanhã. Dia de arrumações. Apareça lá em casa
depois do pequeno-almoço e eu mostro-lhe o que há para ver.
- Está bem - concordou Laurie; e deu um passo tímido na direcção dele.
- E... muito obrigada, Mr. Veryan.
Ele acenou com a cabeça e afastou-se em passos pesados colina acima.
Laurie olhou pela janela para o mar que escurecia.
- Será tarde demais para lá ir abaixo à enseada? - pensou em voz alta.
- Se nos despacharmos, não. - Penny estava tão ansiosa como Jason e
Midge.

56
Cada uma pegou numa das crianças pela mão para o caso de o caminho
se tornar muito íngreme. O trilho estreito serpenteava pela encosta abaixo.
Só uma vez chegou perto da borda da falésia, e todos olharam sobre uma
descida vertiginosa para um amontoado de rochas afiadas. O caminho
continuava a descer até a uma enseada pequena e perfeita, uma curva de
areia branco-dourada em forma de concha guardada por dois braços de
falésias rochosas castanho-dourados.
- Oh! - gritaram as crianças, e atiraram com os sapatos, desatando a
correr pela areia firme até ao mar.
Todos patinharam. Laurie ficou a olhar fixamente para o mar, para
oeste, onde o Sol se punha em raios de vermelho cor de flamingo.
“O mar é puro”, pensou. “Amanhã, vou nadar. E então talvez comece a
sentir-me limpa e inteira de novo...” Em voz alta, anunciou: - Amanhã
vamos tomar banho. Agora, está a fazer-se tarde. Voltaram e abriram
caminho pela vereda acima até à casa na colina.

Na manhã seguinte, Laurie encontrou Luke Veryan no pátio a lavar o


celeiro da ordenha.
- Vou mostrar-lhe as estufas primeiro - anunciou ele, indicando o
caminho para uma longa fila de estufas atrás dos celeiros. - Alfaces de
Inverno - explicou, apontando para duas filas de caixas de sementes. - E
crisântemos serôdios e vasos de plantas para o mercado de Natal.
- Ah! - sussurrou Laurie, encantada pelas longas filas de flores e pelo
seu cheiro forte e aromático. - Que beleza!
Luke deu-lhe uma olhadela e esboçou um sorriso.
-Também gosto de flores. São caras lindas e não magoam ninguém.
Laurie fez um pequeno sorriso e mergulhou a cara num emaranhado branco
de pétalas. A seguir, Luke levou-a lá para fora, para a horta, com as suas
filas arrumadas de legumes e uma profusão maravilhosa de dálias serôdias.
Um homem de idade estava dobrado a mondar pacientemente entre as filas.
- Este é o Bob - apresentou Luke. - Vem da vila quando o lumbago lhe
permite.
Laurie pôs-se a olhar em redor à luz suave do Sol. Havia flores por todo
o lado à espera de serem apanhadas e arranjadas... ásteras tardias,
crisântemos de exterior, várias filas de gladíolos, além do brilho das dálias.
- Onde são os campos de narcisos? - indagou, mirando o espaço a
abarrotar.
57
O difícil sorriso de Luke Veryan abriu-se.
- Veio pelo meio deles, rapariga. No caminho de casa para aqui. - Vim?
- Todo aquele espaço verde entre aqui e o mar está cheio de narcisos na
Primavera. - Sorriu. - Andou por cima deles, rapariga. Milhares de bolbos
debaixo dos seus pés!
Laurie baixou os olhos para as suas botas de borracha cheias de lama
seca e riu-se. “Toda aquela beleza dourada e verde debaixo dos meus pés, à
espera de o Inverno acabar e a Primavera chegar.”
Luke levou-a para a casa da quinta por uma passagem calcetada até um
pequeno escritório. Mostrou-lhe os seus livros de encomendas e a sua
contabilidade, os rendimentos do leite e o calendário de empacotamento,
juntamente com um monte de encomendas e contas não especificadas.
- Caos! - admitiu ele, apontando-os com uma das mãos. A seguir,
indicou um outro livro cheio de nomes. - Apanhadores e embaladores à
jorna para contratar em Fevereiro - esclareceu.
Então, Laurie fez a sua primeira pergunta importante:
- Jason, o meu rapaz, devia ir para a escola. Há alguma aqui perto? Luke
acenou que sim.,
- Mesmo em Tregarrow. - Fez uma pausa, a pensar. - Creio que deve
haver vaga. É melhor perguntar a Mrs. Weelkes, a directora.
- E o Joe deve ter-lhe falado da Penny - continuou Laurie. Ele fez que
sim sem se comprometer. - Bem, ela precisa de consultar o médico e marcar
uma cama no hospital. Suponho que isso seja em Penzance.
- Ah... é. - Soou um pouco abrupto, e Laurie sentiu-se obrigada a
acrescentar com uma ponta de malícia.
- Quero dizer, o senhor não há-de querer que o bebé nasça à sua porta!
Eu não sou parteira.
- Nem eu - resmungou Luke, com um piscar de olho inconfundível bem
lá no fundo. - Há o Dr. Trevelyan - informou então. - O consultório é na
aldeia. E há a Agnes Penwillis... essa é que é mesmo parteira. - Laurie
acenou com alívio. Mas Luke tinha os olhos nos livros e o sobrolho franzido.
- Acha que é capaz de lidar com esta praga destes livros?
- Sim, acho que sim.
Um sorriso revirou-lhe o canto dos lábios. Depois, ele murmurou
qualquer coisa acerca de ordenados e disse um número que fez os olhos de
Laurie arregalarem-se.

58
- Tudo isso e a casa também? - Sentiu-se quase ultrajada por causa dele.
- Nunca vai conseguir ter lucro dessa maneira.
O riso súbito de Luke parecia mais um ladrar. - Está a recusar?
Ela fitou-o, muito séria.
- Não. Não sou assim tão tola. - Depois, sorriu. - Sabe - continuou com
ternura-, eu disse ao seu Joe que ele era o homem mais bondoso que eu
jamais conhecera. Deve sair a si.
Luke soltou um resmungo e voltou-se para remexer desnecessariamente
na secretária apinhada.
- Bem - propôs após uns instantes -, tudo assente, então? Tire o dia de
hoje para os seus assuntos. Começa amanhã.
- Cá estarei - garantiu Laurie, acenando com a cabeça com vivacidade.

O Dr. Trevelyan era um homem grisalho e franco. Mirou Laurie por


debaixo das sobrancelhas farfalhudas e indagou:
- Em que posso ajudá-la?
Laurie explicou-lhe toda a difícil situação de Penny e da vinda para a
casa de Luke durante o Inverno. A seguir, levantou-se e anunciou:
- Deixo-o para observar a Penny.
O Dr. Trevelyan levantou-se também e pousou-lhe uma mão no braço
para a deter.
E a senhora? - Eu?
- Não disse uma palavra sobre si. Sabe, é que eu mantenho-me em
contacto com o Luke, e ele com o filho dele, Joe. - Os olhos piscaram. -- Não
tem tido dores de cabeça?
- Algumas - respondeu ela, hesitante. - Perturbações de visão?
- Às vezes...
.` - Talvez precisemos de tirar mais umas radiografias. E essas costelas?
- Só me doem quando subo a colina a correr.
- Bem; tenha cuidado. Se tiver algum problema, venha ter comigo.
- Eu venho. - Mas não tencionava de facto fazê-lo. O trabalho dela
dependia de uma boa saúde.
Laurie deixou Penny no gabinete do médico e subiu a rua à procura da
escola, com Jason e Midge a correrem à sua frente. A estrada era íngreme e
estreita, com casinhas de pedra encostadas umas às outras. A escola ficava
no fim da aldeia, com o pátio de recreio a dar para a vertente da colina
selvagem e coberta de urze. Havia crianças no recreio, todas a correr e aos
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gritos, e uma senhora atarracada e de aspecto simpático, com o cabelo
salpicado de cinzento, vigiava-as da porta.
Emma Weelkes sabia quem Laurie era. O falatório da aldeia já tinha
espalhado a notícia dos arrendatários de Inverno de Luke Veryan. As
pessoas de Tregarrow demoravam a aceitar gente nova, mas no fundo eram
bastante simpáticas. A viverem ao pé do mar, com muita da população
masculina ainda a trabalhar no feroz Atlântico, estavam habituadas a
problemas. Sabiam reconhecer a desorientação aturdida que as pessoas
tinham quando o destino as maltratava. Laurie tinha esse ar, e já se
comentava que ela precisaria com certeza de alguma ajuda.
Portanto, Emma Weelkes deu as boas-vindas a Laurie com um sorriso e
disse:
- Deve ser Mrs. Collins. Entre e dê uma vista de olhos. - Conduziu
Laurie e as crianças para uma sala de aula grande e cheia de sol, decorada
com pinturas de crianças e mapas de parede, e depois a uma sala de creche
cheia de brinquedos pintados de cores garridas, mesinhas e cadeiras. - Que
idade tem a sua pequenina? - indagou.
- Quatro... Faz cinco pelo Natal. - Mas Laurie apercebeu-se da mão de
Midge a agarrar a sua com força. - Só que acho que vamos ter de esperar um
pouco até ela estar preparada para a escola.
A professora voltou-se para Midge e convidou:
- Gostavas de ver o nosso coelho mascote? Chama-se Maurice, e são os
meninos que tomam conta dele.
Falando sempre com à-vontade, levou-os lá para fora, para um pequeno
recinto fechado com arame no canto relvado do recreio. Maurice era um
macho grande de orelhas pendentes, pêlo castanho-dourado e um olhar
atrevido. Jason ficou encantado.
- Posso fazer-lhe uma festa?
- Ele é muito manso. - A professora mostrou a Jason como chegar dentro
da coelheira.
- Posso mexer-lhe também? - pediu Midge, e largou a mão de Laurie.
- Com certeza.
Minutos depois, as duas mulheres afastaram-se silenciosamente. - Há
vaga para Jason? - indagou Laurie.
- Há sim, não estamos superlotados. E quanto à sua pequenina... -
Emma Weelkes sorriu. - Deixe que seja ela a decidir

60
A primeira manhã de trabalho foi um pouco confusa, mas Laurie
começou a descodificar os livros de Luke e também foi aos barracões de
empacotamento e às estufas para ajudar nas entregas diárias de hortaliças e
fruta. Encontrou o velho Bob debruçado sobre as filas de crisântemos e
dálias e ficou a ajudá-lo a atá-los às estacas. Ele levantou os olhos com um
sorriso desdentado e cumprimentou com suavidade:
- Bom dia, menina. O tempo ainda está bom.
À hora do almoço, Laurie ouviu barulho na cozinha de Luke. Encontrou
lá Penny, envolta num grande avental, e Midge e Jason a porem a mesa.
Laurie mirou-a inquiridoramente.
- O Luke sabe que estás aqui? Penny acenou que sim.
- Eu disse-lhe, claro. Era burrice cozinhar para os miúdos lá em cima e
deixá-la a si e ao tio Luke à fome.
Os olhos de Laurie arregalaram-se.
- Ah, então já é o tio Luke, é?
- É mais fácil para os miúdos - explicou Penny com vivacidade. Deu
uma mexidela no guisado. - Além disso - acrescentou -, acho que ele até
gosta muito. Tem de ter uma espécie de família, não é, com o Joe tão longe e
tudo?
Portanto, estabeleceu-se uma rotina. Luke nunca disse se aprovava ou
condenava, mas aparecia para as refeiçõs de Penny, e o velho Bob também,
e fazia-lhes bem a ambos. A casa de Luke começou também a ter mais
aspecto de habitada. Os quartos foram lavados e o pó limpo, e o pedaço de
terra à volta da porta da cozinha cobriu-se de repente de rebentos de
violetas de Inverno e vasos de sardinheiras.
Laurie mal tinha tempo para si, mas ganhou o hábito de passear até à
enseada de manhã cedo. Àquela hora, era tudo pacífico, fresco e sossegado.
As areias cremes estavam limpas pela maré e havia corvos-marinhos a
espreitar das rochas, com os seus longos e elegantes pescoços recortados na
luz matinal. E o mar... O mar a toda a volta, quebrando-se com um
movimento suspirado na praia.
“Puro”, pensava Laurie. E com uma estranha sensação de abandono e
liberdade despia-se e entrava na água. Não demorava muito. Só tinha
tempo para uma nadadela rápida até às rochas e regressar. Depois, corria
pela areia fora para aquecer, trepava o carreiro até à casa para tomar o
pequeno-almoço com Penny, pôr Jason a caminho da escola, dar um abraço

61
extra a Midge para compensá-la de a deixar e descer para a quinta Para
mais um dia de trabalho.
Andava atarefada todo o dia e por vezes o trabalho era duro, sobretudo
quando saía para ajudar o velho Bob na colheita e na monda. Mas não se
importava. Ficava satisfeita por se encontrar infidavelmente ocupada, feliz
por dar o máximo, contente por chegar cansada ao fim do dia. Às vezes, as
preocupações com o futuro interrompiam-lhe o sono, mas punha-as de
lado. A única coisa que a preocupava era a sua visão. Tinha ataques
periódicos de visão dupla, de tal maneira que as colunas de números se
multiplicavam de súbito. Mas decidiu que aquilo desapareceria com o
tempo. Achou que não valia a pena consultar o Dr. Trevelyan.

Em Novembro, veio o primeiro dos temporais de Inverno. As árvores


quase se dobravam ao meio, e as folhas eram arrancadas numa corrente de
ouro escuro. As ondas tornaram-se gigantescas e rebentavam contra as
rochas amarelo-acastanhadas em grandes torres de espuma. Laurie ficou
fascinada, quase petrificada, pelo seu poder terrível e proibiu as crianças de
se aproximarem sequer da água. Mesmo assim, foram todos ver as grandes
ondas esmagarem-se contra as vertentes ensopadas da falésia e ouviram,
aterrados, o rugir da rebentação e a fúria e o bramido do vento.
Havia uma atmosfera de ansiedade em Tregarrow. Os aldeãos
conheciam os temporais e o preço que por vezes tinham de pagar.
E na verdade, à noitinha, Laurie viu Luke correr com um rolo de cabo e
uma bóia salva-vidas nas mãos e um magote de rapazes da aldeia atrás
dele.
- Barco nas rochas - gritou sem fôlego.
Após uma olhadela ao céu escurecido, Laurie acendeu a lanterna de
tempestade de Luke e seguiu-os. No topo da falésia, onde a confusão de
rochas começava, estava um grupo de pessoas, entre as quais Agnes
Penwillis, a enfermeira distrital.
- O que posso fazer? - indagou Laurie, tentando fazer-se ouvir acima do
rugido do temporal.
- Não há muito que qualquer de nós possa fazer - ripostou a enfermeira,
abanando a cabeça. - O barco partiu-se ao meio nas rochas. - Olhou para
Laurie e acrescentou: - Os rapazes estão a trazer macas. Pode haver feridos.
Cobertores e um termo de chá podiam dar jeito.
De trás de Laurie veio a voz de Penny. - Eu já trouxe.
62
- Penny! - Laurie parecia quase zangada. - Não devias estar cá fora.
Podes escorregar numa rocha ou coisa assim.
- Segura que nem um camião - garantiu Penny, sorrindo. - E quase tão
grande. - Depois, vendo o rosto ansioso de Laurie, acrescentou: - O velho
Bob ficou com a Midge em casa. Diz que está perro demais para ser útil.
Mas o Jay vem aí com os outros rapazes e as macas. Houve um súbito
movimento confuso e um coro de gritos vindo das rochas, e a seguir um
brilho iluminou a cena por um curto instante. Laurie viu a proa de um
navio encaixado nas rochas e um cabo esticado da sua superstrutura para
um ponto em terra. Um homem balançava suspenso desse cabo, tentando
desajeitadamente agarrar-se com ambas as mãos, enquanto os homens em
terra o puxavam.
- Um - murmurou entredentes Agnes Penwillis, e preparou-se para
receber o seu primeiro ferido. Em silêncio e com eficiência, os aldeãos
ensopados passaram o ferido de uns para os outros até ser entregue
cuidadosamente à enfermeira. - O que é que sentes? - perguntou ela. - O
tornozelo partido, acho eu - respondeu ele.
- Os maqueiros estão aqui - disse uma forma escura perto dela. - A
ambulância vem lá em cima.
Agnes deitou as mãos ao trabalho com determinação, e a seguir os
maqueiros carregaram o homem para o topo da falésia.
Mais dois homens foram içados ilesos e passados para os salvadores na
praia. Depois, veio um gravemente ferido. Agnes fez o que pôde por ele,
abanando um pouco a cabeça, e mandou-o para a ambulância. Laurie tinha-
se transformado em sua ajudante, passando-lhe ligaduras, tesouras e
compressas quando necessário.
O salvamento continuou durante quase toda a noite, e salvaram todos
os homens... excepto um que fora atirado borda fora no primeiro impacte e
não foi encontrado na escuridão envolvente. Pela madrugada, o grupo
esgotado de salvadores mirou mais uma vez o navio naufragado e começou
o longo caminho de regresso a casa, encharcado e cansado.
Laurie achou que fora desde aquela noite do naufrágio que os aldeãos
começaram a aceitá-la a ela e à família. Penny cruzava-se com caras
simpáticas na aldeia quando ia com Midge buscar Jason, vindo da escola, e
a própria Midge conheceu um rapazito da creche que lhe gritava sempre
que ela passava:
- Então, vens? Vens qualquer dia? E um dia Midge respondeu:
63
- Vou!

Naquele fim-de-semana, havia uma quermesse na igreja para angariar


fundos para o barco salva-vidas, e Penny insistiu que fossem todos porque
talvez houvesse um carrinho de bebé para venda. Havia mesmo um
carrinho de bebé, e Penny comprou-o por duas libras. Laurie comprou
umas camisolas de lã para os miúdos e um par de jeans para Jason, que
estava a ficar grande demais para toda a sua roupa.
Ela encontrava-se junto de uma das tendas, a olhar fixamente para os
potes de mel e doce caseiro, quando os seus olhos de repente lhe pregaram
uma das suas partidas alarmantes e ela deu consigo a olhar para duas filas
de frascos de doce. Balançou um bocadinho, sentindo-se estranhamente
tonta e desequilibrada, e depois caiu no chão.
Desta vez, o Dr. Trevelyan insistiu em fazer outra radiografia; por isso,
no dia seguinte, ela foi a Penzance de autocarro, faltando, cheia de
complexos de culpa, a um dia de trabalho. Teve de esperar muito tempo até
decidirem que as radiografias estavam satisfatórias e que podia regressar a
casa.
Para a viagem de regresso, o autocarro partiu debaixo do que se tornara
uma chuva torrencial, rolando colina acima e colina abaixo no meio de uma
tempestade violenta. Laurie não conseguia ver nada através dos vidros, mas
lá dentro estava quente e os poucos passageiros sentiam-se embalados pelo
barulho monótono do motor, seguros no seu casulo de vidro barulhento.
Mas, de súbito, surgiram luzes na estrada lá à frente e figuras indistintas
de impermeáveis com lanternas de tempestade nas mãos.
- A ponte ruiu... - ouviu-se um grito. - Há quase metro e meio de água
na estrada.
O motorista conferenciou com os homens na estrada. Depois, gritou aos
passageiros:
- Vamos voltar para St. Buryan. Não podemos passar por aqui. - E virou
o autocarro de volta à cidadezinha que tinham deixado havia vinte minutos.
Ali, o motorista e todos os passageiros aglomeraram-se num bar, onde
aquele foi telefonar enquanto os outros pediam bebidas.
Por fim, o motorista largou o telefone e anunciou:
- Não se pode passar esta noite. Lamento muito. Dizem que até a
estrada de cima está má.

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Laurie dirigiu-se então ao telefone. Passado bastante tempo, atendeu-a
uma voz trémula:
- Está? Quinta Veryan.
- Quem fala? - indagou Laurie, surpreendida pela voz fraca e velha. -
Aqui é Laurie Collins.
- Ah, Laurie! - A voz pareceu simultaneamente aliviada e aflita. - Aqui,
Bob. Estamos com problemas, rapariga. A Penny começou... - O quê? Mas
ainda não está no tempo.
- Eu sei... Escorregou no chão de Mr. Luke, foi... - Já mandaram chamar
o Dr. Trevelyan?
- Já tentámos. Saiu nas suas voltas e não pode voltar por causa das
cheias. A enfermeira Penwillis está em Poldurran a fazer outro parto.
Ninguém cá pode chegar por estrada.
Laurie ficou gelada de medo.
- Eu também estou presa, Bob. O autocarro teve de voltar atrás para St.
Buryan. O que é que vamos fazer?
- Mr. Luke foi tomar conta dela e dos miúdos. - A voz abalada e
esganiçada hesitou. -Ele já ajudou a parir uns tantos vitelos quando era mais
novo. Acho que vai saber o que fazer.
Laurie tentou imaginar Penny a lutar para ter o filho apenas com a
orientação pouco experiente de um velho lavrador para a ajudar. “Tenho de
lá chegar seja como for. Seja como for.” Em voz alta, disse:
- Se conseguir ir até lá a casa, diga a Mr. Luke que vou lá ter seja como
for e dê um beijinho à Penny. Diga-lhe que vou a caminho.
- Eu digo, menina. Mas cuidado! As estradas estão perigosas. Laurie
desligou, decidida a pedir ajuda. Certamente alguém teria um veículo que
conseguisse passar. Falou, desesperada, com o dono do bar, que bateu com
força no balcão com uma caneca de cerveja.
- Esta jovem aqui - anunciou - quer um voluntário para a levar o mais
perto possível de Tregarrow. Há um bebé para nascer; o médico e a
enfermeira não podem lá chegar. Alguém se sente com coragem para
enfrentar o temporal?
Houve silêncio por instantes.
- Se alguém me deixar perto do carreiro da falésia, posso fazer o resto a
pé - garantiu Laurie.

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- Perigoso com este vento... - declarou alguém com dúvidas. Uma figura
quadrada e corpulenta levantou-se de uma cadeira junto do lume e
ofereceu:
- Tenho um Land-Rover aqui. Se há um bebé para nascer, acho que é
melhor tentarmos.
O dono do bar exclamou:
- Boa sorte! - Como um coro, os restantes repetiram.
O homem entroncado agarrou Laurie por um braço com firmeza e
levou-a para o Land-Rover. Ajudou-a a entrar e trepou também,
amaldiçoando baixinho a cascata de água que lhe entrou pelo pescoço ao
abrir a porta do lado do condutor.
- Chamo-me Tom Tremayne - gritou-lhe acima do ruído do motor e do
rugido do vento lá fora. - É melhor tentarmos a estrada de cima e cortar
para trás.
Laurie acenou que sim, apertando as mãos uma na outra e desejando
manter a calma suficiente para não começar a gritar “Despache-se!”
O Land-Rover entrou na estrada e embrenhou-se noite dentro. Tom não
falava muito, mantendo os olhos pregados na estrada à sua frente. De
repente, descobriu um sinal na beira da estrada, à esquerda, e meteu-se pela
estrada secundária.
- Por aqui talvez dê...
O Land-Rover avançava aos solavancos. A certa altura, deram com um
monte de pedras de uma derrocada de um muro, mas Tom limitou-se a
virar para um portão aberto e conduziu, chocalhando e derrapando, através
da estrema superior de um campo de volta à estrada. Por fim, depararam
com um sinal que dizia TREGARROW.
- É esta a estrada que está inundada - afirmou Tom. - Acha que
consegue ir a pé a partir daqui?
- De certeza que consigo. - Laurie soava absolutamente confiante -, se
me indicar o caminho.
Ele fez que sim com a cabeça, mas continuou a avançar. - Vamos até
onde conseguirmos.
Desviaram-se novamente para evitar uma estaca caída, e então o Land-
Rover travou de repente. À frente, havia uma interrupção profunda na
estrada e uma extensão brilhante de água das cheias.
Dois candeeiros a petróleo vermelhos tinham sido colocados no meio da
estrada como aviso. Laurie olhou para Tom.
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- Pode dar a volta aqui e regressar.
Mas Tom apeou-se e deu a volta ao carro para a ajudar a descer.
- Tem a lanterna? Venha, acompanho-a pelo carreiro da falésia. É
traiçoeiro com este tempo...
Nem ligou ao protesto de Laurie e conduziu-a firmemente pelo braço.
Andaram durante muito tempo em silêncio, ouvindo o rugido do vento e a
rebentação a estoirar lá em baixo nas rochas do cabo de Tregarrow. Por fim,
viram janelas iluminadas num monte de edifícios escuros e, abaixo deles, a
casa de Luke.
- Ora aí está - comentou Tom. - Agora vai ficar bem.
- Oh, mas... - Laurie falou rapidamente. - Por favor, entre. Podia ao
menos beber um chá quente.
- Está bem - disse ele, depois de uma hesitação momentânea.
Caminharam sobre a lama até à casa e entraram. Laurie deixou Tom e
correu escada acima, dizendo por cima do ombro:
- Tire a roupa molhada.
Entrou de rompante no quarto e encontrou Penny deitada na cama,
esticada, agarrada à cabeceira de ferro com mãos desesperadas. Luke estava
debruçado sobre ela e aconselhava:
- Tem calma, rapariga. Tem calma. Não tenhas pressa demais. - Ergueu
os olhos quando Laurie entrou e o rosto abriu-se-lhe num grande sorriso de
alívio. - Ainda bem que chegou.
Laurie inclinou-se para Penny e pousou uma mão fria e húmida contra
o seu rosto afogueado.
- Já cá estou. Não te preocupes. Vai correr tudo bem. - Não sabia como é
que ia correr tudo bem. Mas havia de correr. Afinal, ela própria tinha tido
dois filhos. Tinha obrigação de saber o que fazer. E havia Luke, que não era
parvo nenhum. Reparando na cara cansada e cinzenta dele, pediu com
delicadeza: - Importa-se de ir lá abaixo falar com o Tom Tremayne? Foi ele
quem me trouxe.
Luke presenteou Penny com um sorriso de confiança.
- Volto já, rapariga - disse. - Mas ficas em boas mãos.
Penny gemia e apertava as mãos na cabeceira da cama de ferro e
arqueava as costas contra a dor.
- As águas rebentaram... há bocado - arquejou ela. - Provavelmente, já
não demora muito... Ai! - Cerrou os dentes, gemeu de novo e caiu de costas,

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exausta, quando a dor abrandou. - Está toda molhada - observou, ofegante.
- É melhor tirar... apanha uma constipação...
Laurie tirou o casaco molhado e vestiu uma saia e uma camisola secas
antes da contracção seguinte. Nessa altura, já estava ao lado de Penny a
segurar-lhe as mãos. Jason entrou no quarto com uma chávena de chá.
- O tio Luke disse que lhe fazia bem, mãe - declarou, sério. - Está muito
molhada?
- Já não - Laurie sorriu. - Onde está a Midge?
- Está a dormir. Pusemo-la no seu quarto. Mas eu fiquei acordado.
Pensei que talvez pudesse ajudar.
- E podes! - concordou Laurie.
Jason sorriu-lhe, não parecendo nada perturbado pela violência do
nascimento iminente, e saiu em bicos de pés lá para baixo.
Laurie tentava desesperadamente lembrar-se de todas as diferentes
fases do parto e de todas as coisas que devia fazer. Desejou que Penny não
fosse tão jovem. Seria mais penoso para ela? Haveria complicações? Desejou
que Agnes Penwillis lá estivesse ou o Dr. Trevelyan. O que é que havia de
fazer se as coisas corressem mal?
Foi então que Luke voltou com um jarro de água quente, lençóis e
toalhas limpas.
- O Tom Tremayne vai-se embora - anunciou. - Vai fazer os possíveis
por contactar a Agnes.
- Ai! - gritou Penny. - Ai, ela que se despache e venha!
- Tenta descontrair-te e respirar fundo - pediu Laurie, segurando-lhe a
mão. - Tenta, Penny... pode ajudar. - Sombriamente, os seus olhos
encontraram-se com os de Luke.
- Calma -- murmurou Luke. - Calma, rapariga. Já não tarda muito...
Perderam a noção do tempo, mas todos sentiram o ritmo inexorável do
parto a acelerar, a intensificar-se e a alcançar o seu clímax. E de súbito
houve um arquear desesperado e um grito rouco de Penny; e uma
criaturinha vermelha apareceu, contorcendo-se, no lençol, e um gritinho
feroz e fraco de protesto rompeu o ar.
Laurie lembrou-se de atar o cordão umbilical antes de o cortar. E foram
as mãos velhas e seguras de Luke que seguraram no recém-nascido,
enquanto ela o lavava e embrulhava num cobertor.
- O que é? - murmurou Penny, exausta e sem energia. - Está tudo bem.
- É uma menina - anunciou Laurie, sorrindo. - E é perfeita. Olha!
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Estava ela a colocar o bebé nos braços de Penny e Luke a baixar-se sobre
ela para lhe dizer de forma rude “Muito bem, rapariga!”, quando se
ouviram passos a correr escada acima e Agnes Penwillis entrou de
rompante a pingar água.
- Desculpem - disse sem fôlego. - Vim a pé pelo carreiro da falésia. O
tempo está horrível. - Os seus olhos dirigiram-se para a cama e o rosto
abriu-se-lhe num sorriso. - Mas vejo que se desembaraçaram muito bem
sem mim. - Tirou o bebé a Penny, entregou-o a Laurie e passou à acção com
a calma determinação da experiência.
Laurie sorriu a Luke e disse baixinho:
- Obrigada. Não teríamos conseguido sem si.
Luke encolheu ligeiramente os ombros, como se não fosse importante.
- É quase igual ao nascimento de um bezerro - declarou com um brilho
de malícia -, só que as vacas são maiores. Aquela pequenita foi esplêndida!
Isto, vindo de Luke, era um grande elogio, e Laurie deitou uma
olhadela a Penny para ver se ela tinha ouvido. Mas os olhos dela estavam
fechados e o seu cabelo ruivo brilhante espalhava-se sobre a almofada,
desgrenhado e escurecido pelo suor. Parecia incrivelmente jovem, uma
criança apanhada numa experiência demasiado violenta para conseguir
suportar. Suspirando, Laurie virou-se exactamente quando a voz de Jason
surgiu do umbral.
- Ouvi o bebé a chorar. Posso vê-lo?
Penny abriu os olhos e sentou-se, apresentando melhor aspecto. Laurie
acenou que sim e levou Jason para perto dela. Ele estendeu uma mão tímida
e tocou na cabeça húmida e macia do bebé.
- Tão pequenina - sussurrou. - Como é que lhe vais chamar? -
perguntou, enquanto Laurie punha o bebé outra vez nos braços da mãe. -
Não sei. - Penny olhou para a cara da filha com uma ternura triste. - Devia
ser uma mistura de madrugadora, temporal e tempestade. Rosa de Natal -
afamou Luke Veryan de súbito.
Olharam todos para ele, admirados. Mas Luke continuou calmamente:
- Elas surgem de repente no começo do Inverno. Não se importam com
a chuva nem o vento; são muito tenazes elas, e todas branquinhas e puras. ,
Pairou um silêncio espantado no quarto por momentos. Nenhum deles
esperara tal discurso poético de um velho lavrador da Cornualha. Então,
Penny olhou para ele com uma alegria súbita:

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- Certo, então - declarou. - Fica Rosa de Natal. Mas suponho que vamos
chamar-lhe só Rosa.

Na véspera de Natal, Luke levou o último carregamento de plantas para


Penzance de manhã bem cedo e regressou mesmo quando Penny e as
crianças estavam a pôr na mesa um almoço quente. Quando abriu a
carrinha, lá dentro encontrava-se uma árvore de Natal, uma caixa de
enfeites e algumas luzes de Natal.
- A árvore é para si - disse ele a Laurie.
- Vamos fazer um jantar de Natal - anunciou Laurie. - Queremos que o
senhor e o Bob estejam connosco.
- O quê? - exclamou o velho Bob, surpreso. - Eu? Penny fez que sim com
a cabeça, dizendo:
- Claro. Todos juntos. É Natal. Laurie sorriu e declarou:
- Então, está combinado.
Na manhã seguinte, ainda houve mais surpresas. Penny e Laurie
tinham sido comedidas, mas cada uma conseguira um presentinho para
toda a gente. O velho Bob deu à família uma colecção de nós de marinheiro,
maravilhosamente feitos, dispostos numa tábua e ofereceu-se para ensinar
Jason a fazê-los. Quando o jantar de Natal estava quase pronto, Joe chegou
de Londres com uma braçada de roupas mandadas por Jane. A seguir, Joe
deu-lhes outro embrulho e anunciou:
- Este é do vosso amigo Clem.
Lá dentro havia animais minúsculos esculpidos por Clem: uma lontra e
um conjunto de patos-reais. No fundo, uma pena branca e pura de cisne
com uma etiqueta, PARA LAURIE.
Após o jantar, Joe pegou na pequena Rosa ao colo e levantou-a para ver
as luzes a brilhar e a piscar na árvore, enquanto Luke fixava atentamente os
olhos do bebé, acenava com a cabeça e sorria.
- Joe - afirmou Laurie por fim -, acho que este é o Natal mais feliz da
nossa vida.
JEFF saiu da prisão no fim de Janeiro, num dia frio de chuva e vento.
A primeira coisa que fez foi tomar uma bebida no bar mais próximo.
Após dois whiskies sentiu-se melhor. Depois de três, olhou para o dinheiro,
que escasseava, e resolveu ir para casa.
Na casa fria e vazia, deambulou desconsoladamente de quarto em
quarto. As coisas de Laurie tinham desaparecido, e as das crianças também.
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Praguejando, deu um pontapé numa cadeira numa névoa de
autocomiseração solitária.
Laurie e os miúdos tinham sido um inferno quando lá estavam, mas
agora que se encontrava entregue a si próprio sentia falta deles. Ao ir servir-
se de uma bebida, viu a sua cara no espelho da cozinha. “Aquilo sou eu?”,
pensou, abismado. “Aquele farrapo curvado e barbudo? Eu? O jovem e
desembaraçado Jeff Collins, vendedor nato, com uma mala cheia de
encomendas e uma mulher bonita em casa?” Como descera tanto?
Então, de súbito, naquele momento de dolorosa lucidez, percebeu que
ele - Jeff Collins - fizera aquilo a si próprio. Respirou fundo e fez a única
coisa de que era capaz. Deu um murro no espelho. O momento de verdade
espalhou-se em fragmentos de vidro no chão da cozinha.
No dia seguinte, dirigiu-se ao edifício dos serviços sociais e falou com
uma das assistentes sociais. Pouco tempo depois, a mulher tinha uma
imagem de um marido penitente e consciencioso, desempregado e ansioso
por manter a sua jovem família unida, que perdera a cabeça uma vez, só
uma vez, e nunca mais deixara de se arrepender. Queria persuadir a esposa
a voltar. Tinha saudades dos filhos. A assistente social foi procurar mais
alguns pormenores e regressou com uns registos de pagamentos.
- Bem, Mr. Collins - afirmou -, compreendo o seu problema, mas receio
que não possa dar-lhe o endereço da sua esposa. É contra o regulamento. De
qualquer forma, os abonos estão agora a ser pagos noutra repartição nossa,
que nem é sequer desta zona.
“E agora?”, pensou Jeff. Olhou para o outro lado da secretária, para a
assistente social e para os papéis à frente dela. Um deles tinha uma morada
no topo: o departamento dos serviços sociais de Penzance.
Penzance? Que diabo estava Laurie a fazer em Penzance? Se se dirigisse
aos serviços sociais de lá, talvez lhe dissessem alguma coisa. Jeff agradeceu
à assistente pelo seu tempo e paciência e saiu tão depressa quanto pôde.
Quando chegou a casa, Mrs. Banks, a vizinha do lado, estava encostada à
vedação a olhar para ele. Andava sempre por ali a tagarelar e a observar o
que se passava.
- Ela foi-se embora de vez, não foi? - atirou-lhe Mrs. Banks em voz alta,
mirando-o de alto a baixo com desprezo.
- Quem? - perguntou Jeff, apanhado de surpresa.
- A sua mulher. Levou as malas e foi-se embora com um fulano com
uma carrinha.
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- Que carrinha? - ripostou Jeff com a cabeça a andar à roda. - Que
fulano?
- Namorado novo, não me espantava nada.
Um grupo de miúdos vizinhos brincavam na rua e ouviam a troca de
palavras com manifesta satisfação. Um deles pôs-se aos saltos e a cantarolar:
- Laurie foi-se embora numa carrinha. Laurie foi-se embora... - Que
carrinha? - gritou Jeff.
- Do Joe - retorquiu o rapaz. - Dizia na carrinha, percebe? Joe's. -
Hortaliças - acrescentou outro garoto solicitamente.
- Mercado da Kite Street - informou o primeiro rapaz, que nunca perdia
pitada.
- Dizia na carrinha, percebe? - entoaram.

Jeff localizou a Kite Street no dia seguinte sem grande dificuldade.


Estava cheia de barracas e de gente. Todos os donos das barracas conheciam
Joe. Joe Veryan. Não estava lá na altura, informaram. Tinha ido a Kent
buscar as hortaliças. Mas havia de lá estar no dia seguinte, quando chegasse
a mercadoria vinda de Penzance.
- Penzance? - exclamou Jeff, mirando-os, desvairado.
- Do pai - explicou alguém. - Manda-lhe mercadoria regularmente.
Jeff tinha conseguido aquilo para que viera. Veryan. Penzance. E Laurie
tinha partido na carrinha de Joe. Iria a Penzance no dia seguinte, e quando
apanhasse Joe, quem quer que ele fosse, ensinava-lhe a não se meter com as
mulheres dos outros.

Laurie apanhava narcisos. As coisas tinham andado mais calmas na


quinta em Janeiro, mas o Inverno mantivera-se suave e húmido e os
narcisos tinham florido cedo. Agora, havia muito trabalho e Laurie adorava
isso. Gostava da sensação dos caules robustos nos dedos e dos botões
gordos e verdes a tentarem tão ardentemente abrir-se em flores douradas.
De manhã, chegara um camião cheio de apanhadores, de St. Buryan,
para ajudar, e Laurie habituara-se a vê-los movimentarem-se lentamente
através dos campos verdes de narcisos, por isso não ergueu os olhos de
imediato quando alguém se aproximou.
- Olá, Laurie - cumprimentou uma voz bem perto, por cima da cabeça
dela.

72
Ela ficou gelada. As suas mãos, apertando os narcisos, ficaram
paralisadas de terror. Levantou os olhos, incrédula para a cara tensa de Jeff,
que sorria perigosamente. Passou-lhe uma série de pensamentos pela
cabeça, mas predominante foi a rápida percepção: “Está bêbado e furioso.
Não posso levá-lo para perto da casa. A Penny e o bebé estão lá, e as
crianças estão a chegar. Tenho de levar o Jeff para longe, tenho de o
enfrentar e fazê-lo ver a razão.” Levantou-se devagar e pousou os seus
molhos de narcisos. Tinha um forte nó de medo no estômago.
- Surpreendida? - perguntou Jeff com a voz sibilante como uma
chicotada.
- Não muito - respondeu Laurie com sinceridade. - Achei que ias acabar
por conseguir. - A seguir, acrescentou com a maior calma que conseguiu: -
Vamos.
- Vamos aonde? - A pergunta pairou no ar como uma ameaça. -
Suponho que queiras conversar - retorquiu Laurie com sensatez. - É melhor
caminharmos ao longo da falésia... É mais privado. - Começou a andar e Jeff
seguiu-a, com a frustração a aumentar. - Então? - Laurie parou quando
estavam fora do alcance da vista da quinta e da casa. - O que queres?
Jeff estava espantado.
- O que quero? Quero-te de volta aonde pertences; e aos miúdos
também.
- Porquê? - A pergunta foi franca e sem rodeios. - Porquê? Porque és
minha mulher... é por isso. Laurie deu um suspiro.
- Não, Jeff. Já não sou. Expliquei-te isso tudo.
- Explicaste uma ova! - berrou Jeff de forma brutal. - Vais voltar comigo.
Já! - Agarrou-lhe um braço.
- Larga-me. - Laurie falou de maneira bastante suave, mas havia de
certa forma uma ameaça na sua voz.
Jeff deu um passo atrás e levantou a mão num gesto quase automático.
Mas parou porque desta vez Laurie não estremeceu e ripostou com firmeza:
- Não sejas idiota. Se me bateres, só te vai servir para ires parar outra
vez à cadeia. Porque não te acalmas e és razoável?
- Razoável? - A calma de Laurie parecia enfurecê-lo ainda mais. -
Quando a minha mulher e os meus filhos fugiram, a minha casa está suja e
fria e não há nada para comer?
Laurie deu uma gargalhada.

73
- Ah! Agora é que estamos a tocar no ponto. Precisas de uma
governanta, Jeff, não de uma esposa. Só que, claro, não podias andar a dar-
lhe pancada o tempo todo.
Jeff praguejou e precipitou-se para ela de punhos fechados. Um deles
deu-lhe uma violenta pancada de lado na cabeça, e Laurie pestanejou com a
dor, que lhe atravessou o cérebro já traumatizado.
“A culpa é minha”, pensou ela. “Não devia espicaçá-lo. Tenho de tentar
argumentar com ele.” Mas antes que pudesse dizer o que quer que fosse,
várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Jeff atirou-se a ela de novo, e
ela deu consigo a lutar selvaticamente com ele. Midge veio a correr pelo
carreiro da falésia, gritando, assustada:
- Mãe!
E exactamente quando Jeff se voltou para olhar para a criança, Jason
passou a correr por ela e lançou-se contra o pai como um pequeno tornado.
- Pare com isso! - gritava o rapaz. - Pare de lhe bater! Vá-se embora! - E
esmurrava Jeff com os seus pequenos punhos num ímpeto de raiva
protectora.
- Jay! - chamou Laurie com voz dura.
Mas era tarde demais. Jeff soltou uma imprecação selvagem e atirou
com Jason para o chão. Midge deu um grito alto e prolongado e recuou na
direcção da orla da falésia.
- Midge! - A voz de Laurie elevou-se desesperadamente. - Fica quieta!
Mas a criança estava fora de si com o medo. No momento em que Jeff se
moveu na sua direcção, ela deu mais um passo atrás. O pé deslizou-lhe na
erva escorregadia; ela agitou os braços no ar descontroladamente, tentando
manter o equilíbrio, e desapareceu para lá da beira com um grito de terror.
Durante um segundo, Laurie ficou pregada ao chão. A seguir, atirou-se
ela própria para a beira e espreitou. E lá estava Midge, agarrada ao rebordo
de um rochedo, com a saia presa num pequeno arbusto de giesta que crescia
na superfície da falésia. Parecia ilesa, embora estivesse para lá dos limites
do pavor.
Nessa altura, Jason levantou-se, abalado, mas não muito magoado.
Laurie relanceou o olhar na sua direcção e ordenou-lhe:
- Jay, corre e vai buscar ajuda - e ficou aliviada de o ver encher o peito
de ar, como que a tomar uma decisão, e obedecer-lhe. Pelo menos, ele
estaria longe de problemas. Mas agora Jeff aproximava-se com um brilho

74
louco e estranho nos olhos. Laurie sabia que tinha de o convencer, fosse
como fosse.
- Jeff - chamou ela, contendo a histeria que crescia dentro de si. - É a tua
filha lá em baixo. É a tua filha. Queres matá-la?
Jeff parou, balançando um pouco sobre os pés, com a mistura de álcool
e de fúria lutando dentro de si.
- Midge? - indagou de forma insegura. Então, também ele olhou por
sobre a beira. - Meu Deus! - Pareceu ficar sóbrio de repente. - Temos de ir
buscá-la. - Começou a avançar de novo, como se tencionasse descer atrás
dela.
Midge viu-o e gritou outra vez, agarrando-se ainda mais ao rochedo e
apertando as mãos sobre o tronco áspero do arbusto de giesta.
- Não! - gritou Laurie. - Tu não, Jeff. Ela tem pavor de ti.
Não teve tempo de ver a chicotada de consciencialização amarga no
rosto de Jeff ao aperceber-se de que a sua própria filha tinha tanto medo
dele que preferia arriscar morrer a suportar a sua proximidade.
- Eu desço... - continuou Laurie, persuasiva. - Além disso, sou mais leve
e podes segurar-me e puxar-nos às duas.
Sem esperar pela resposta dele, começou a deslizar cautelosamente pela
beira, tentando não olhar para o vertiginoso declive até à confusão de
rochas afiadas lá em baixo e do mar agitado mais além. Tufos de urze a
crescer nas fendas davam-lhe algum apoio. Por fim, o seu pé tocou na
saliência em que Midge estava agarrada. Então, Laurie parou. Se tentasse
segurar-se ao arbusto de giesta, o seu peso podia arrancá-lo da rocha, por
isso deslocou-se devagar e cautelosamente um pouco mais para baixo e
escorou. os pés numa rocha saliente. Só então estendeu os braços e abraçou
a criança aterrorizada.
- Está tudo bem - murmurou. - Estás segura agora.
Jeff, entretanto, tinha tirado o casaco e estava deitado de barriga para
baixo no topo da falésia, com o casaco pendurado para lá da beira. Não era
suficientemente comprido. Tirou a gravata e amarrou-a bem à ponta de
uma das mangas. Depois, suspendeu-o de novo. Desta vez, Laurie já lhe
conseguia chegar.
- Amarra-o à Midge de uma forma qualquer - gritou ele - que eu puxo-a
para cima.
Laurie fez o que ele lhe disse. Mas foi preciso aliciar muito Midge para
se mexer sequer quando viu Jeff a olhar para baixo para ela.
75
- Tenta, querida - pediu Laurie. - O pai só está a querer ajudar-te. Por
favor, tenta trepar. Isso mesmo. Agora o outro pé. Estou mesmo aqui atrás
de ti.
Com cuidado e horrível lentidão, Laurie incitou a aterrorizada criança a
subir, milímetro a milímetro, a superfície perigosa da falésia. Devagar, Jeff
puxou Midge e por fim içou-a por cima da extremidade da falésia.
Mas, ao fazê-lo, o ressalto argiloso debaixo dele começou a esboroar-se
num sinistro rumor de pedras.
- Foge, Midge. Depressa! - gritou ele, e atirou a criança para trás antes
de começar a cair em câmara lenta pela falésia abaixo.
Laurie encontrava-se encalhada abaixo dele, nem seguramente apoiada
pelo arbusto na saliência em que Midge estivera, nem ao alcance do topo.
Agachou-se ali, horrorizada, quando uma chuva de pedras soltas e seixos
de areia desabaram sobre ela. Juntamente com elas, desamparadamente
apanhado numa torrente de pedras, vinha Jeff.
- Cuidado! - gritou ele quando as pedras começaram a rolar. Laurie
estendeu-lhe uma mão no momento em que ele revolteava ao passar, e ele,
desesperado, agarrou-lhe o pulso. O choque do peso dele deu-lhe um tal
esticão na articulação do ombro que Laurie deu um berro. “Tenho o ombro
deslocado”, pensou ela. “Será que vai aguentar?” E quando uma pedra
pesada ressaltou da superfície da falésia e lhe bateu no mesmo braço
esticado, ela mal sentiu a outra dor.
Tinha fechado os olhos aquando do abanão inicial, mas depois abriu-os
de novo e deu por si a fitar a cara de Jeff. Ele estava suspenso no ar, com as
pernas a abanar desesperadamente, enquanto uma cascata de pedras
continuava a cair à sua volta. O aperto no pulso dela era a única segurança
que tinha contra a morte certa.
- Agarra-te - disse ela em voz fraca, doente de dores, incapaz de o
ajudar a ele ou a si própria por muito mais tempo.
E Jeff agarrou-se. Mas o peso do seu corpo era mais do que Laurie
conseguia suportar, e ela começou a sentir-se deslizar ligeiramente para
baixo. Em breve, seria um deslocar, e a seguir um resvalar inevitável e
ambos cairiam.
- Agarra-te - repetiu ela, tentando manter a lucidez. E olhou para baixo
de novo, bem para dentro dos olhos aterrorizados e mortiços de Jeff.
Mas estes já não estavam aterrorizados. De certa forma, quando Laurie
olhou para baixo, pareceram tornar-se límpidos e mais conscientes. Naquele
76
olhar estava a consciência de tudo o que Jeff fora ou podia ter sido, do que a
sua jovem esposa podia ter sido se ele tivesse sabido como amá-la e
acarinhá-la. E naquele olhar penetrante estava a súbita percepção do perigo
que Laurie corria: Como a força do peso do seu próprio corpo estava a
arrastá-los a ambos para a destruição.
- Laurie - disse ele de forma muito calma e clara -, desculpa... - E os
dedos que agarravam o pulso dela com uma força convulsiva e desesperada
soltaram-se lentamente um a um, e ele largou-se.
Talvez a sua força, que diminuía, tivesse cedido. Talvez os dedos
apenas tivessem perdido força. Talvez todo o seu corpo encharcado em
álcool e a desintegrar-se tivesse desistido, desalentado. Nunca ninguém
saberia a verdade. Mas para Laurie, ao ver a expressão dos olhos dele, era
tudo muito claro. Jeff sabia o que estava a fazer. Tinha visto as duras
alternativas do futuro num momento único de lucidez e não fora capaz de o
suportar. Por isso, escolhera: largara-se.
- Jeff! - gritou Laurie. - Jeff! Não!
Durante segundos, ele parecera ficar suspenso no ar, de olhos postos em
Laurie, com a sua estranha e penetrante lucidez. E a seguir desaparecera,
precipitando-se, revolteando uma e outra vez até o seu corpo embater nos
rochedos lá em baixo, estatelado, de braços e pernas abertos, e totalmente
imóvel.
Laurie não conseguia vê-lo. Misericordiosamente, a vertente da falésia
tinha uma pequena protuberância antes do último declive terrível. Só via o
extremo dos rochedos e a espuma branca a saltar sobre eles, lavando-os sem
parar.
Agarrou-se ali, desamparada e a chorar, com o seu braço direito inútil
ainda a balançar à frente dela. Jeff tinha morrido. Não houvera maneira de
evitar aquela queda horrível. Mas chorou tristemente e com dolorosa pena
pelo jovem de cabelo brilhante e sorriso sedutor que outrora tanto amara.
Ainda estava agarrada ali quando os socorristas chegaram a correr, com
cordas, ganchos e macas, com Jason à frente deles.

Midge estava ilesa, à excepção de algumas arranhadelas, embora


terrivelmente assustada. Mas Laurie não teve a mesma sorte. Tinha o ombro
deslocado e o braço partido em dois sítios, onde a pedra lhe batera, e
tiveram que lhe pôr talas. Não se lembrava bem daquilo, uma vez que
estava quase desmaiada de dor e choque quando os seus salvadores
77
chegaram junto de si. Mas na manhã seguinte deu consigo deitada numa
cama de hospital limpa, com o braço engessado apoiado numa almofada e
Luke Veryan a fitá-la.
- Não vou demorar-me - disse ele em voz rouca. - Vim para dizer que
tomo conta da jovem Penny e das crianças.
Laurie acenou com a cabeça. - Suponho que... Jeff?
- Morreu antes de chegarmos junto dele. - A sua expressão ficou de
repente bondosa. -Deve ter sido instantâneo. -Estendeu uma mão nodosa e
agarrou as dela. - Não tenha pena, rapariga. Foi melhor assim.
Laurie não lhe respondeu. Encontrava-se demasiado ocupada a engolir
as lágrimas. “Tinha tanto medo dele”, pensou. “E às vezes odiava-o: Mas
nunca... nem uma única vez... desejei que morresse.”
- Não vamos falar agora - aconselhou Luke numa voz reconfortante. -
Veja se dorme. - Fez-lhe uma festa de forma desajeitada. - Ainda bem que
está viva, minha filha - afirmou com brusquidão, e saiu do quarto com
passos pesados.
Laurie afundou-se de novo nas almofadas e fechou os olhos, por isso
não viu outra pessoa chegar e ficar à porta. Não percebeu que lá estava
alguém, até uma voz chamar:
- Laurie?
“Não pode ser”, pensou. “Estou a sonhar. É só porque estou tão
cansada e preciso tanto de apoio...”
- Laurie? - chamou de novo a voz.
Os seus olhos abriram-se num repente, incrédulos. - Tu? És mesmo tu?
- Sou eu - disse Clem, sorrindo com um ar grave. - Posso entrar? O rosto
de Laurie enrugou-se e ela tentou estender o único braço são. - Oh, meu
Deus... Clem!
Ele atravessou o quarto com uma única passada e abraçou-a com força,
de maneira que ela pudesse encostar-se no seu ombro como uma criança
cansada, sentindo o calor e a força dele envolvê-la num manto de bem-estar.
De repente, os terríveis acontecimentos da véspera abateram-se sobre ela e
começou a chorar desesperadamente.
- Eu tentei - repetia. - Eu tentei, mas não consegui segurá-lo, Clem. Ele
largou-se. Percebeu que me estava a puxar para baixo também. Ele largou-
se!
- Sim - concordou Clem com calma. - Claro que largou... - E embalou-a
nos braços, esperando que a tempestade passasse.
78
Por fim, Laurie acalmou-se. Clem deitou a mão a um monte de lenços
de papel que se encontravam sobre a mesa, secou-lhe com meiguice o rosto
e afastou-lhe o cabelo dos olhos com dedos amorosos.
- Vá lá - pediu, entregando-lhe um lenço. - Assoa-te.
Laurie riu-se e fez o que ele lhe disse. Depois, ainda abismada coma
presença dele, disse:
- Não percebo como é que estás aqui. Clem segurou-lhe na mão.
- É simples, na verdade. Tinha assuntos a tratar em Exeter e Truro. As
pessoas do Wildlife Trust estão a planear montar mais um ou dois
santuários de aves. É aqui perto e achei que devias gostar de uma visita.
Laurie arregalou os olhos para ele sem acreditar.
- Ainda não compreendo como sabias que precisava de ti exactamente
agora.
O sorriso morreu no rosto de Clem e ele mirou-a com uma seriedade
súbita e penetrante:
- Eu também não - afirmou em voz baixa. - Mas graças a Deus que sabia.

O enterro foi discreto e sossegado, um serviço fúnebre triste no


crematório, mas com flores surpreendentemente belas.
- Foi o velho Bob quem as arranjou - explicou a voz resmungona de
Luke Veryan, ao lado de Laurie. - Disse que você gostaria. Jeff partira... e
apenas restavam umas cinzas e um ramo de radiosas flores de Primavera. A
mão de Clem avançou calmamente e envolveu a dela num aperto forte e
tranquilo. E Luke Veryan declarou numa voz rouca:
- Nada mais a fazer aqui. É melhor irmos para casa.
Clem ficou mais três dias. Nessa altura, Laurie já tinha falado com a
advogada, Madeleine Williamson, pelo telefone e combinado ir a Londres
mais tarde para resolver os assuntos dela. Jeff não possuía muito para
deixar, apenas a mobília da casa e um seguro de vida que ia, na maior parte,
ser absorvido pelo pagamento das dívidas dele. Mas Laurie ficaria livre de
qualquer ónus e com algum dinheiro de sobra no fim.
Clem foi incansavelmente bondoso para com os miúdos e passou muito
tempo a persuadir a pequena Midge a voltar a rir. Apaixonou-se à primeira
vista pela Rosinha de Natal. Era agora um bebé excepcionalmente bonito -
com um começo de caracóis ruivos macios como os da mãe e os olhos mais
azuis, grandes e curiosos do Mundo.

79
Antes de partir, Clem levou Laurie ao alto das colinas, sentou-a numa
rocha sob o sol fraco da Primavera e preparou-se para falar.
- Tenho saudades dos cisnes - declarou Laurie de repente. - Há tudo o
mais aqui, aves marinhas por todo o lado, mas não há cisnes. Clem sorriu.
Era a oportunidade por que esperara. Enfiou a mão no bolso, tirou de lá
qualquer coisa e pousou-lha na mão.
- A chave da caravana que está no meu pátio - explicou. - Lembras-te
dela? Bastante velha, mas tem quatro beliches e espaço para um berço de
bebé. E uma pequena zona de cozinha. - Laurie tinha os olhos pregados
nele, sem palavras. Clem riu-se ligeiramente com a expressão dela, pousou-
lhe um braço meigo à volta dos ombros e deu-lhe um abanão amoroso. -
Quanto aos pormenores práticos... - Estava decidido a ser enérgico e
objectivo, embora o olhar especado e incrédulo de Laurie o perturbasse um
pouco. - Há uma escola primária bastante boa na aldeia. Acho que o Jay e a
Midge vão gostar dela. E para o caso de tu e Penny quererem assistir a aulas
à noite ou coisa assim, há um autocarro. E eu estaria por perto se
precisassem de qualquer coisa.
- Clem... pára! - exclamou Laurie com os olhos rasos de lágrimas. Ele
parou, olhando para todo o lado menos para ela.
- E quanto a emprego, tenho a certeza de que o Stan te recebe de volta,
sem falar nos seus vários amigos lavradores, que são todos uns zeros em
contabilidade.
- Pára com isso - repetiu Laurie. - Oh, Clem - ergueu a mão e tocou-lhe o
rosto, a tremer -, não sei se eu...
- Não faz mal - retorquiu ele com rapidez. - Sem compromissos. Sei que
tens um longo caminho a percorrer ainda, mas um dia...
- É exactamente isso. - Laurie parecia perturbada e desesperadamente
franca ao mesmo tempo. - Não sei se sou capaz de...
Ele riu-se de súbito e,inesperadamente, inclinou a cabeça e beijou-a. Era
para ser um beijo leve, suave e meigo, mas transformou-se em algo
completamente diferente, longo, forte e apaixonado, e Laurie sentiu o seu
próprio desejo inesperado crescer dentro de si. Após um momento estranho
e palpitante em que o tempo parou, Clem afastou-se e olhou para ela,
sorrindo.
- Ias a dizer que não sabias se eras capaz de amar alguém, não ias? - Ela
fez que sim com a cabeça, e as lágrimas caíram-lhe como cristais de arco-íris
contra o sol. - Bem, agora já sabes.
80
“Sim”, pensou ela, em pânico, “agora sei e estou cheia de medo. Sei o
que a paixão pode fazer. Já vi a paixão transformar um homem que era um
companheiro amoroso num desconhecido cruel.” Suspirou e pegou na mão
de Clem. Os dedos eram longos, extremamente sensíveis nas pontas,
delicados e fortes, e, de certa forma, incorruptíveis.
- Não é justo - sussurrou. - Neste momento, não é justo para ti. - Isso
decido eu - ripostou Clem com o sorriso cheio de certezas. - Os meus cisnes
ensinaram-me a não esperar demais nem demasiado cedo.
Laurie mirou-o com desespero.
- Mas pode demorar uma eternidade.
- Não faz mal. Posso ver-te a aprender a voar.
Ela bateu-lhe de súbito com o punho fechado no braço, como uma
criança assustada.
- Não percebes? Estou a servir-me de ti. Estou a agarrar-me à saída mais
fácil. Tenho-me apoiado vergonhosamente em ti.
- Eu preciso que se apoiem em mim. Eu amo-te, que diabo!
E quando a envolveu nos braços, ela perguntou numa voz desamparada
e chorosa:
- O que é que te hei-de fazer?
- Amar-me só um bocadinho - retorquiu Clem animadamente. - Eu
amo...
- E pegar-me na palavra. Não tens de decidir nada para já - garantiu-lhe,
ajeitando-lhe o cabelo com afagos. - Tens muito tempo. Tens a chave. Podes
ir quando quiseres. - Fechou-lhe os dedos sobre a chave e beijou-a de novo,
desta vez meiga e suavemente.
Ambos sabiam que aquilo era uma promessa feita.

Após a partida de Clem, Laurie fez o possível por preencher os dias


com trabalho, tanto quanto o seu braço enfermo lhe permitia, mas estava
desolada sem ele. E, no entanto, sentia que tinha de aprender a ser forte
sozinha. Só assim poderia ser livre de espírito. Livre de escolher viver a
vida com Clem? Ou de a viver sozinha? Não sabia. Mas à medida que
Fevereiro deu lugar aos ventos de Março, cheios do aroma das flores, sentiu,
de forma obscura, que, se continuasse a trabalhar perto da terra que
desabrochava, as coisas haviam de tornar-se claras.
- Jay - perguntou um dia de súbito, quando ele chegou aos campos de
narcisos depois da escola -, tens muitas saudades do Clem?
81
O rapaz mirou-a do fundo dos seus olhos cinzentos e honestos. - Tenho.
A mãe não tem?
Ela fez que sim com a cabeça, mal se atrevendo a admitir quanto
;mesmo para si própria.
- Porquê, Jay? - De súbito, quis saber o que ele sentia. Ele meditou por
momentos.
- Porque... ele se preocupa com o que acontece connosco. - Olhou para a
mãe. - Não. Não é isso... Porque eu gosto dele.
- Todos nós gostamos - afirmou Penny mesmo atrás dele, com Rosinha
ao colo. - Não é, Laurie? - Ria-se, mas os seus olhos estavam brilhantes e
desafiadores.
Ocorreu então a Laurie que Penny e as crianças sabiam o quanto Clem
era importante para ela, e todos ansiavam por que se decidisse e enchesse a
sua vida e a deles com o calor da protecção de Clem. Esta consciência só
tornava a decisão ainda mais difícil. Seria tão fácil aceitar, tão bom para
todos! Mas estaria certo? Seria justo para Clem? Podia ela oferecer-lhe o
amor inteiro e sem limites que ele estava preparado para lhe dar a ela?
- Claro que sim - respondeu. - Mas não é assim tão fácil. Foi então que o
velho Bob chegou a correr, de olhos arregalados. - Venha depressa, menina!
Venha depressa. É o patrão.
Laurie disparou a correr à desfilada atrás dele. Penny voltou-se para
Jason e ordenou com urgência:
- Leva a Midge e o bebé para a quinta, Jay, e espera lá por nós. - Depois,
seguiu Laurie até ao fundo do campo, onde um pequeno grupo de pessoas
se tinha aglomerado.
Luke Veryan estava deitado de borco no meio de um emaranhado de
narcisos partidos. As mãos, fechadas em punhos de dor, cravavam-se na
terra vermelha e pedregosa. Laurie inclinou-se e tentou virá-lo. Alguém a
ajudou a erguê-lo um pouco para que pudesse apoiar-lhe a cabeça.
Respirava ainda, mas cada inspiração era áspera e difícil e o rosto estava
cinzento de dor.
“É um ataque de coração”, pensou ela.
- Chamem o Dr. Trevelyan - pediu. - Depressa. - Abriu-lhe o colarinho
para o ajudar a respirar.
Finalmente, alguns dos trabalhadores chegaram com uma padiola de
vime, pousaram-no em cima dela e carregaram-no para dentro de casa. O
resto foi um autêntico pesadelo. Não se conseguiu encontrar o Dr.
82
Trevelyan. A enfermeira Penwillis estava numa quinta longínqua, mas viria
logo que pudesse. A ambulância vinda de Penzance estava a caminho, mas
ia demorar pelo menos meia hora. E, entretanto, a respiração de Luke
Veryan tornava-se cada vez mais áspera e mais desesperada.
Por fim, ouviram a sirene da ambulância ao mesmo tempo que o carro
do Dr. Trevelyan. Deram uma injecção a Luke, puseram-lhe uma máscara
de oxigénio e meteram-no na ambulância. Laurie julgara que ele estava
inconsciente, mas ele abriu os olhos e fitou-a enquanto o carregavam lá para
fora. Debruçou-se sobre ele e disse-lhe baixinho:
- Está em boas mãos agora.
Os seus dedos agarraram os dela por um instante. Tirou a máscara de
oxigénio e sussurrou:
- Linda menina... obrigado...
Então, o enfermeiro da ambulância prendeu-lhe outra vez a máscara na
cara. As portas foram fechadas e levaram-no.
“Joe”, pensou Laurie. “Tenho de avisá-lo.” Conseguiu ligação para Jane
no refúgio e deixou um recado urgente para Joe, mas na altura em que Jane
lhe falou a dizer que Joe ia a caminho, já tinham ligado do hospital a dizer
que Luke Veryan morrera na ambulância.

Luke foi enterrado na encosta ventosa da colina virada para o mar.


Toda a aldeia lá estava, e a sepultura tinha uma pilha de narcisos,
junquilhos e todas as flores primaveris de que ele gostava. Havia uma
pequena grinalda especialmente feita por Penny e pelas crianças. Tinha
algumas frágeis rosas de Natal no meio. Após o funeral, Joe deambulou
com eles até à casa.
- Quero falar convosco - anunciou. - Estão muito cansados?
- Não. - Laurie conduziu-o para dentro, Penny acendeu o lume e
sentaram-se todos juntos.
- O meu pai - começou Joe sem introdução - sabia o que fazia. - Fitou o
lume, - A quinta fica para mim, com as dívidas e tudo. Posso vendê-la ou
tentar governá-la. Mas esta casa - olhou de Laurie para Penny com um
sorriso estranho - deixou-a à Rosinha.
- O quê? - Penny levantou-se da cadeira de um salto, e Rosinha, que
tinha adormecido nos braços dela, soltou um protesto sonolento. - Sim! -
acenou Joe. - Tudinho. Para a Rosinha. - Riu-se da expressão atordoada de
Penny. -Comigo como administrador.
83
Penny fitava-o incrédula.
- O que é que isso quer dizer exactamente?
- Quer dizer que podes viver nela ou alugá-la e obter um rendimento,
mas não podes vendê-la. Quando a Rosa tiver dezoito anos, pode decidir
por si própria. Isto quer dizer que tens um telhado para te resguardar, se
quiseres. Ou tu e a Rosa podem ter dinheiro para gastar na educação dela.
O que quer que decidam, pelo menos ela não vai passar fome.
Penny continuava a olhar para ele de boca aberta. Mas agora as
lágrimas vinham-lhe aos olhos e corriam-lhe pelas faces coradas.
- O tio Luke... - murmurou entredentes furiosamente. - Aquele velho
teimoso e maravilhoso... Eu não queria o dinheiro dele.
- Ele não to deu a ti - retorquiu Joe. - Deu-o à Rosa. - Sorria para ela
agora com a mesma bondade não expressa e dissimulada do pai. - Afinal de
contas - acrescentou -, ele até ajudou a pô-la no mundo. Acho que se sentia a
modos que responsável. - A seguir, olhou para Laurie. Era suficientemente
perspicaz para ver que isto lhe tornava a vida ainda mais complicada. -
Agora, sobre a quinta - continuou com viva cidade. - Não quero governá-la
eu próprio. Tenho a minha vida em Londres. - Laurie acenou com a cabeça.
- Bem... - Joe ainda a mirava de forma inquiridora. -Não sei o que pensa
disso, mas calculo que era capaz de a gerir sozinha se quisesse. Conhece a
organização; fez a contabilidade. Mas ia precisar de um outro homem mais
activo que o velho Bob. Seria um trabalho longo, difícil e monótono... mais
ou menos para sempre. Não é uma propriedade suficientemente grande, de
facto, para se tirar um bom lucro. Mas podiam viver todos na casa da quinta
e alugar a outra casa. - Laurie voltou a acenar com a cabeça. - Ou -
continuou Joe, mirando novamente o lume - eu posso vendê-la. - O que é
que quer fazer, Joe?
Ele suspirou.
- Não sei, rapariga. Acho que depende de si. Não quero sobrecarregá-la
com isto se tem outros planos.
“Outros planos”, pensou Laurie, desesperada. “Ciem. Como é que
posso ir-me embora agora? Não posso deixar Penny aqui sozinha.”
- Eu... eu vou ter de pensar nisso - respondeu, e o seu olhar cruzou-se de
repente com o de Penny. - Ambas temos coisas a decidir. Joe acenou com a
cabeça.
- Eu sei que têm. Não há pressa. - Levantou-se e tocou na cabeça do
bebé. - Ela é que tem razão. Durmam sobre isso. - Fez um sorriso vivo e saiu
84
sem dizer mais nada. Se sofria por Luke Veryan, guardou o sofrimento para
o carreiro escuro da colina e a noite calma em que caminhava sozinho.

Laurie passou os dias seguintes num estado de confusão cansada. Os


pensamentos rodopiavam-lhe sem parar na cabeça. Perguntas infindáveis
sem resposta. Seria capaz de gerir a quinta sozinha? As crianças seriam
felizes ali? Estaria bom para Penny? Ou devia deixar Penny e Rosa e ir para
o outro lado de Inglaterra, para junto de Clem? Claro que não. Penny não ia
ser capaz de criar um bebé sozinha com dezasseis anos. Como podia pensar
em abandoná-la? Mas como podia levá-la, agora que ela tinha um sítio seu
para viver? Era tudo impossível e não sabia o que fazer.
Penny viu-a tentar arrumar os pensamentos e absteve-se de dizer fosse
o que fosse a princípio. Por duas vezes, Laurie saiu para um longo passeio
sozinha e regressou cansada e pálida. Por fim, Penny não conseguiu
aguentar mais e, uma noite, já tarde, depois de as crianças estarem a dormir,
indagou:
- Não era melhor pormos as coisas em pratos limpos? Laurie suspirou.
- Oh, Penny, quem me dera conseguir.
- Na minha opinião, você precisa do Clem. E as crianças também. O
rosto de Laurie pareceu murchar como uma flor fechada.
- Sim, mas tu e a Rosa precisam de mim aqui. E a quinta também. Penny
não parecia convencida.
- Então, e o Clem?
Laurie tentou aparentar calma e, como se os seus próprios sonhos não
estivessem a ser destruídos com cada palavra, declarou:
- Ele há-de entender.
- O Jay não - ripostou Penny de forma persistente.
Laurie fechou os olhos. “Clem e Jay”, pensou. “Já gostam um do outro
como pai e filho. O que hei-de fazer?”
- Sabe - afirmou Penny -, eu acho que devia ir perguntar ao Clem.
- Perguntar-lhe?
- Sim. Porque não? Ele tem mais bom-senso que nós todos.
- Mas, Penny, se eu fizesse esse caminho todo para o ver, ele ia pensar...
- Não, não ia. O Clem é justo. Ouve-a e há-de saber o que é melhor. Va
lá perguntar-lhe!

85
Parte IV

Pouso seguro

Laurie seguiu a curva do rio na direcção da casa de Clem, com os pés


lentos de dúvida. Deveria ter vindo... sem nada assente na cabeça, nada
para lhe oferecer? O Medway estava calmo e plácido naquela tarde
perfumada de Primavera, e os salgueiros inclinavam-se e miravam-se a si
próprios, imagens intactas na superfície vidrada. Ia a andar, quando dois
cisnes saíram das sombras, sob os ramos rastejantes do salgueiro, e se lhe
dirigiram. Pensou que era o mesmo par que vira cumprimentar Clem
naquela primeira ocasião em que ele viera sentar-se ao lado dela na
margem.
- Olá - cumprimentou, parando para olhar para eles e estendendo uma
mão hesitante. - Lembram-se de mim?
Parecia que sim, porque nadaram confiantemente na sua direcção, e
quando estavam ao alcance da margem, ficaram ali a boiar pacificamente,
como que à espera de qualquer coisa. Ela lembrou-se de que Clem lhe tinha
dado de comer, que eles se tinham esticado para aceitar a sua oferta. “No
fim”, dissera ele “vêm comer-me à mão.”
“Tenho o resto da minha sanduíche”, pensou. “Será que a aceitariam?”
Tirou do bolso um pedaço engelhado de pão e estendeu-o aos cisnes. Por
qualquer razão, parecia-lhe extremamente importante que o aceitassem. E
aceitaram. Comeram tudo o que tinha para lhes oferecer, depois viraram-se
calmamente e partiram de novo para a corrente lenta.
Laurie continuou a andar. Não havia sinais de Clem, e começou a
magicar se estaria fora ou ausente. Não lhe tinha enviado nenhum recado e
pareceu-lhe de súbito monstruosamente arrogante vir por ali fora e esperar
que ele estivesse à sua espera. Cheia de uma dolorosa incerteza, atravessou
o caminho cheio de musgo para a parte de trás da casa. A porta das traseiras
encontrava-se aberta, mas embora já estivesse a anoitecer, não havia luz lá
dentro. Confusa, espreitou lá para dentro. E então escapou-lhe uma
exclamação suave de consternação. Porque ali estava Clem, estiraçado num
sofá velho, de olhos fechados, o rosto cinzento de cansaço e uma perna
rígida engessada espetada à sua frente em cima de uma almofada de veludo
desbotado.

86
- Clem! - exclamou, dirigindo-se-lhe rapidamente. - O que é que
aconteceu?
Ele abriu os olhos, incrédulo, e por instantes os seus olhos cinzentos
fixaram-se bem dentro dos dela.
- Vieste - murmurou, e depois, inesperadamente, pôs-se a rir. - Olha
para nós! - Sorriu, apontando para o braço engessado de Laurie. - Entre os
dois, quase fazíamos uma pessoa completa! - E a seguir, como se tivesse
compreendido de repente o que dissera, o riso morreu-lhe no rosto e olhou
de novo para Laurie com a mesma seriedade penetrante.
- Sim - concordou Laurie baixinho, enfrentando aquele olhar penetrante
com total segurança. - Acho que fazíamos. - Porque, ao vê-lo ali, vulnerável
e com dores, sentiu todas as suas dúvidas e ansiedades dissolverem-se
perante a necessidade que ele tinha dela. Era aqui que devia estar, ao lado
de Clem. Este encontro estava completamente correcto e nada mais tinha
qualquer significado.
- Cuidado - avisou Clem. - Sempre soube que tinhas um coração mole.
Um animal ferido faz despertar os teus instintos protectores. Laurie riu-se.
- Olha quem fala! - Mas depois também ficou séria, porque já sabia que
não podia permitir que esta nova sensação de enorme justeza dominasse. -
Clem - começou, e procurou às cegas a mão dele. - Eu não... Não vim para
ficar.
- Eu sei - retorquiu ele com calma. - Como é que sabes?
O sorriso dele era terno.
- Minha querida menina, a tua expressão não era exactamente a de uma
noiva radiante a vir ter com o apaixonado.
A escolha de palavras dele fê-la pestanejar. - Como... como é que eu
estava?
- Morta de medo. - Estendeu a mão e tocou-lhe o rosto. - E desgastada
pela dúvida. O que tem estado a acontecer-te?
- Isso pergunto eu! - ripostou ela.
Ele suspirou e mudou um pouco a posição da perna.
- É só uma simples fractura. Estava no barco a tentar salvar um cisne
emaranhado numa rede de plástico. O pobre animal estava aterrorizado, e
quanto mais se debatia e batia as asas, mais emaranhado ficava. Estava a
esticar-me para o soltar com a faca quando uma das asas me desequilibrou.
São muito fortes, sabes, as asas dos cisnes. Atingiu-me a perna como um
tronco e caí borda fora. Quase me afogou, o pobre animal enlouquecido.
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- Conseguiste salvá-lo?
- Ah, sim. Arranjei maneira de cortar a rede antes de mergulhar outra
vez. E a seguir agarrei-me ao barco e empurrei-me para a margem com a
perna sã. - Parou como se já tivesse dito o suficiente. E então, vendo a
expressão de Laurie, tocou-lhe o rosto de novo meigamente e pediu: - Não
fiques assim. Isto cura-se, como o teu braço. Agora, não era melhor
contares-me o que se passa nessa cabeça?
Ela observou-lhe o rosto, e a mesma consciência vívida estava presente
nos seus olhos, o mesmo anseio, o mesmo desejo e o mesmo conhecimento
de que uma crise de decisão os aguardava.
- Oh, Clem - murmurou. - Tenta compreender... - Estou à escuta -
respondeu.
Então, Laurie contou-lhe tudo o que acontecera e tudo o que a morte de
Luke Veryan e a sua oferta da casa implicavam para Rosa. Clem ouviu-a até
ao fim com paciência e calma. Quando acabou, ele afirmou:
- Laurie, antes de eu... Antes de nós decidirmos o que deve ser feito, só
queria fazer-te uma pergunta.
- Sim? - Laurie sabia qual seria a pergunta, e meia hora antes não teria
sabido como responder. Mas agora, inacreditavelmente, sabia. Levantou a
cabeça com coragem e enfrentou o olhar penetrante de Clem com uma
certeza intrépida.
- Tu amas-me?
- Amo. - A voz dela soava calma e límpida.
Ele acenou com a cabeça como se já soubesse a resposta mas quisesse
apenas confirmá-la.
- Já não tens medo disso? - Não.
- Pareces quase totalmente segura.
Ela tinha os olhos cheios de lágrimas agora.
- E estou. Não estava quando cheguei, mas logo que te vi, fiquei. -
Laurie - avisou ele reprovadoramente. - Eu avisei-te.
O sorriso dela igualava o dele e a sua alegria brotou com as lágrimas. -
Não consigo evitar. - A seguir, continuou com uma candura desesperada: -
Mas não posso abandonar a Penny e a Rosa.
Claro que não podes. -E há os meus filhos. - Não sejas tonta. É como se
já fossem meus. - Mas...

88
Ele interrompeu-a com um beijo. Foi um movimento meigo, consolador,
mas com um toque de desejo escondido que não passou despercebido a
Laurie.
- Pára de te apoquentares - aconselhou. - Arranjamos uma solução. Já fiz
alguma coisa nesse sentido. Vê ali na minha secretária. Há aí uma carta de
um homem do Wildlife Trust com quem falei. Querem que eu monte mais
santuários de vida selvagem em Devon e na Cornualha.
Desnorteada, Laurie dirigiu-se à secretária e encontrou a carta. Leu-a
toda devagar, depois reparou na data. Fora escrita pouco após o regresso de
Clem da Cornualha. Devia tê-la na secretária há várias semanas.
- Clem, respondeste-lhe? - Não. Estava à tua espera. - Mas eu podia não
ter vindo.
- Havias de vir - afirmou com tranquilidade. -'És demasiado boa para
me deixares em suspenso para sempre. - Puxou-a para si. - Vês? Nada é
insuperável. Vai levar tempo a organizar, claro. Vou ter de andar de cá para
lá um pouco. Mas temos tempo, não temos? Todo o tempo do Mundo... - Ela
fez que sim com a cabeça, incapaz de falar. - Eh! - exclamou ele. - Devias
estar rejubilante.
- E estou - respondeu ela, e, sem forças, permitiu que Clem lhe limpasse
as lágrimas dos olhos.
- Sol a brilhar e cabriolas - disse ele de forma obscura, com um sorriso
retrospectivo estranho e espantosamente terno. - E, já me esquecia..., temos
de fazer a ronda antes que fique noite.
Laurie ficou um pouco alarmada. - Consegues?
- Claro. Sou um às das muletas. Sobretudo contigo para me guiar. -
Deitou a mão às leves muletas metálicas pousadas ao seu lado e ergueu-se.
Saíram juntos para a cintilante tarde primaveril. Ainda havia um brilho
de luz amarelo-pálida para oeste, enquanto por cima deles um céu claro
escurecia para uma noite cor de safira. Uma estrela brilhou por entre os
ramos entrelaçados dos salgueiros e uma fina unha de lua trepava, como
uma lâmina brilhante de foice, por detrás dos ulmeiros. Um rouxinol cantou
de amor e êxtase no ramo mais alto de um castanheiro.
- Ele tem razão - comentou Clem, olhando para cima. - Anuncia-o a toda
a gente. - E havia tal excitação de alegria na sua voz que Laurie ficou
estupefacta.
Estavam ali, lado a lado, quando houve um súbito rumor de asas sobre
a água, e os dois cisnes que Laurie tinha encontrado antes, os preferidos de
89
Clem, desceram o rio ritmicamente num voo cadenciado e longo sobre as
cabeças deles. Aquilo recordou a Laurie a voz de Clem havia muito tempo,
quando se despedira dele pela primeira vez, entre as silenciosas plantaçóes
de lúpulo e pomares vazios. A liberdade não é apenas levantar voo. É saber
onde se quer aterrar e quando é tempo de regressar a casa.
As grandes aves brancas riscaram o céu numa harmonia perfeita,
parecendo dirigir-se directamente para a luz dourada do ocidente.
- Para onde vão? - perguntou Laurie, com uma estranha sensação de
perda, ao mesmo tempo que o som do seu voo se tornava mais fraco no
vento.
Clem observou-os com um olhar experiente enquanto viravam no céu
que escurecia e desenhavam um grande arco, de asas ainda a pulsar com
aquele som etéreo.
- Não vão a lado nenhum - respondeu, e havia um mundo de amor e
segurança na sua voz. - Estão a regressar a casa.

ACERCA DA AUTORA

Elizabeth Webster foi sempre uma contadora de histórias - primeiro


inventando-as para os seus próprios filhos, mais tarde escrevendo peças de
teatro e óperas para o Young Arts Center, de Cheltenliam, que ajudou a
organizar e depois dirigiu durante vinte e dois anos. Mas tinha sessenta e
dois anos quando publicou o seu primeiro livro, um romance sobre as
“crianças dos barcos” que fugiam do Vietname.
Foi o primeiro de uma série de romances com uma intenção.
- Acho que se pode atingir um público mais vasto com um romance do
que com um relato verídico e levar as pessoas a sensibilizarem-se e a
interessarem-se mais por um assunto - diz Mrs. Webster.
Os leitores têm reagido ao seu trabalho com enorme entusiasmo. Dois
dos seus livros, Bracken e A Busca de Johnnie, foram já publicados com
grande sucesso nos Livros Condensados. E agora publicamos O Voo dos
Cisnes.
- As pessoas só agora estão a tomar consciência de que o problema das
mulheres espancadas precisa de ser levado a sério - diz Mrs. Webster. - É
um assunto que precisa muito de ser abordado.
Ela sabe. Após a 11 Guerra Mundial, organizou uma creche-internato
para crianças de famílias com problema e antes de escrever O Voo dos
90
Cisnes visitou muitos abrigos a fim de poder criar uma imagem convincente
do Esconderijo.
Mrs. Webster também conhece o poder da Natureza para curar espíritos
perturbados, um tema constante na sua obra. Vive na bela província inglesa
do Gloucestershire, onde há muitos interessados pela vida selvagem.
- Viver perto da Natureza torna-nos mais calmos - afirma ela. - Começa
a aprender-se os verdadeiros valores da vida.
Um desses valores é seguramente a família. No Verão de 1989,
exactamente quando estava a acabar O Voo dos Cisnes, Elizabeth Webster e
o marido, Neil, juntaram os três filhos e os dez netos para comemorarem as
suas bodas de ouro.

http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

91

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