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O voo do cisne
Composição: Selecções do Reader's Digest - Lisboa
Impressão: Maury Imprimeur, SA - Mallesherbes, França
Encadernação e acabamento: Reliures Brun - Mallesherbes, França
1.' edição: Junho de 1993
ISBN: 972-609-076 - 8
Printed in France
Para Laurie Collins, a batida das asas do cisne falava de uma mensagem irresistível fugir de um
marido que a espancava.
Mas, após a fuga, iam surgir novas necessidades. Porque a liberdade não é apenas partir. É
saber aonde se quer chegar...
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Parte I
O Esconderijo
O som sussurrante vinha do céu, forte, doce e estranho. Laurie olhou .
para cima, abraçando-se a si própria para parar de tremer... A dor, o choque
e o medo não desapareceram, e as nódoas negras no corpo e no rosto
marcado não deixaram de lhe doer. Mas o sussurrar longínquo e rítmico,
como música ao longe, aproximava-se e por algum motivo parecia trazer
consigo uma espécie de paz... ou talvez de segurança... Lá longe, dizia, alto
no céu, havia um mundo de ar azul e de sol, um mundo de espaços limpos e
abertos e sem pressões, para além do subir e baixar do vento... Sem medos
nem dúvidas, sequer, da nossa própria força e resistência. Um mundo de
liberdade.
Laurie levantou a cabeça para ver mais longe, por sobre as árvores
enfarruscadas de fuligem do pequeno quintal, e ali - num voo majestoso e
firme - vinham três cisnes brancos com os pescoços esticados numa linha
perfeita, apontando para o poente brilhante, e o seu bater de asas era lento,
forte e cheio de música.
“Livre... livre... livre...”, cantavam as asas pulsantes. “Fugir... fugir...
fugir...”, soavam ao passar no alto, douradas pelo sol. Observou-as até as
perder de vista, com a garganta a doer de lágrimas contidas.
“Sim”, pensou de pé ali, tremendo, no quintal miserável. “Fugir, fugir,
fugir! Para vocês é fácil, com todo o céu vasto e livre para voar.” - Mãe? -
chamou a voz de Jason da porta da cozinha. - Mãe? Fiz um pouco de chá.
Ela teve um suspiro profundo e entrecortado e levantou os olhos mais
uma vez para o pálido céu de Londres. Longe e ainda doce, parecia-lhe,
conseguia ouvir um leve sussurro de asas no vento.
- Lá vou - respondeu, e voltou a entrar na cozinha desarrumada.
“Francamente”, pensou, empurrando o cabelo para trás para afastá-lo da
testa ferida, enquanto limpava os pratos do almoço, “não devia deixar as
coisas chegarem a este ponto. Mas estou tão cansada. E tão confusa. E
quanto mais ele grita e me espanca, mais baralhada fico.”
- Vá lá, mãe... - Os braços de Jason abraçavam-na, conduzindo-a para a
cadeira. A voz meiga e jovem procurava consolá-la. Pôs-lhe a chávena de
chá à frente e tentou desajeitadamente arranjar-lhe o cabelo. - Quer que vá
buscar uma esponja para pôr no olho?
Ela abanou a cabeça.
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- Está tudo bem.
Mas não estava nada bem. De modo nenhum. Sobretudo a voz prática
do seu filho a falar com uma aceitação descontraída, nascida de muitas
ocasiões idênticas... “Quer que vá buscar uma esponja para pôr no olho?
Quer que varra os pratos partidos? Quer que telefone ao médico?” O rosto
infantil e preocupado do miúdo estava pálido com o esforço de tentar dar
algum apoio e conforto. Os olhos cinzentos estavam ansiosos e demasiado
abertos na face macilenta. Ela pôs-lhe um braço em volta dos ombros e
apertou-o com força.
- Não te preocupes, Jay. Estou bem. Onde está a Midge?
Ele mirou-a de forma estranha e séria, maduro e atento, muito para
além dos seus oito anos.
- Fugiu para o armário das vassouras e adormeceu. Por isso deixei-a lá,
onde estava a salvo. - Baixou os olhos para a sua própria chávena de chá,
mexendo com fúria. Depois, ergueu de novo os olhos e acrescentou:- Ela
está bem. Fui ver. Continua a dormir.
Laurie suspirou. Uma súbita onda negra de desalento invadiu-a,
esgotando-lhe a energia e a vontade. De que é que servia preocupar-se?
Estava presa ali naquela casa pequena e esquálida com um homem violento
que não fazia mais nada senão gritar e a erguer o punho contra o mundo
injusto - que não encontrava o trabalho a que estava habituado, não
suportava o facto de que era um falhado indesejável e gastava o tempo e o
dinheiro a embebedar-se até à inconsciência. Um homem que descarregava
a sua fúria e frustração na esposa esgotada, enquanto a filhinha se arrastava
para um armário e chorava até adormecer e o irmão assistia e tentava
confortar a assustada mãe.
Era demais. Era tudo demais, e ela não sabia o que fazer nem aonde as
coisas iriam parar. Enquanto lá fora, no ar azul e vasto, aquelas asas brancas
e puras pulsavam... pulsavam... Lá fora havia todo um mundo de árvores,
relva e céu.
- Jay - disse de repente -, pega no teu casaco. Eu acordo a Midge.
Levantou-se depressa, antes de mudar de ideias, e abriu a porta do armário
das vassouras. A criança estava deitada, enrolada num cobertor velho. O
cabelo, louro cor de mel como o da mãe, espalhava-se à volta da sua cabeça
em madeixas macias e emaranhadas. Uma das mãos apertava a juba de lã
do seu boneco preferido, um velho leão amarelo cujo pêlo de veludo estava
gasto e fino.
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“Como eu”, pensou Laurie, com uma centelha desesperada de humor.
“Estou fina de gasta. Na verdade, quase desfeita... Desfeita.” Aconchegou
Midge nos braços, procurou o casaco dela e enfiou-lhe os braços sonolentos
e passivos nas mangas. Depois, pegou no seu próprio casaco e na carteira e
seguiu Jason para a entrada estreita.
- Aonde vamos? - perguntou ele, seguindo pelo corredor pequeno e
escuro.
- Não sei... Ao parque... apanhar ar fresco.
Mas, ao chegarem à porta de entrada, alguém lhes barrava o caminho.
- Onde raio pensas tu que vais? - disparou Jeff.
O coração de Laurie contraiu-se. Viu logo que ele estivera a beber ainda
mais desde a hora do almoço. Estava bêbado e a fervilhar de fúria contra o
mundo negligente e desinteressado em geral e contra a jovem esposa em
particular.
- Ia... levá-los a passear.
- Ai ias, não ias? Pois podes voltar a entrar. - A mão disparou e fé-Ia
rodopiar, atirando-a para trás, para a porta da cozinha. - Sabes que horas
são? Ou estás demasiado passada para reparar? - A voz estava cheia de
sarcasmo. Parecia chocalhar-lhe na cabeça como uma dor física. - Se calhar,
é pedir muito ter comida pronta quando chego a casa. - Mas chegaste cedo...
- Cedo? Então, eu estive lá em baixo no Centro de Emprego a passar a
pente fino os anúncios todo o dia!
Ela fitou-o. Era óbvio onde ele passara a maior parte do dia. Mas não
valia a pena retorquir. Já fora violento que chegasse de manhã. Laurie
estremeceu.
- Não te ponhas com esse ar de mártir, sua manhosa - gritou ele de
repente, furioso. Até o silêncio dela era uma reprovação. - Volta ali para
dentro e cozinha alguma coisa, senão... - A mão elevou-se.
Ela recuou, sentindo os membros macios e sonolentos de Midge ficarem
rígidos nos seus braços. A mão infantil e tensa de Jason esgueirou-se para
dentro da dela. Olhou para baixo e viu o aviso nos olhos do filho.
“Agora, não”, pareciam dizer. “Agora, não. Não o deixe começar outra
discussão agora.”
Derrotada, voltou-se, entrou de novo na cozinha e, distraidamente,
começou a preparar qualquer coisa.
Mas a ira de Jeff ainda não se tinha esgotado. Quando Laurie pôs um
prato de comida à sua frente, ele mirou-o com nojo.
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- O que é isto?
- Estufado de feijão e lentilhas. Ele picou-o com o garfo.
- Onde está a carne?
- Não posso comprar carne todos os dias. O dinheiro não chega. Jeff
bateu com uma mão na mesa de tal maneira que toda a loiça saltou. E os
miúdos também, que estavam a tentar não ser vistos, a brincarem no chão.
- Dou-te mais que o suficiente. Tu é que és uma dona de casa miserável.
- Se não gastasses tanto no bar - replicou ela de súbito, corajosa e tão
zangada como ele estava -, podias comer carne todos os dias. Jeff pegou no
prato de estufado e atirou-lho. A mistura quente e peganhenta atingiu a
parede e ricocheteou para a cara dela, escaldando-a. O prato estilhaçou-se, e
um bocado de loiça partida em bico voou e cortou-lhe a face. O sangue e o
molho misturaram-se, pingando cara abaixo. Jeff levantou-se e dirigiu-se a
ela, cada vez mais furioso.
- Bebo - atirou - para esquecer que estou casado com uma ranhosa
ordinária como tu. -, Deu-lhe uma bofetada que a atirou contra o lava-loiça,
magoando-lhe as costas contra o bordo aguçado. - Olha para ti! Seu monte
de lixo sangrento. Lava essa imundície da cara.
Sem ver, ela virou-se para apanhar um pano húmido no lava-loiça. Ele
bateu-lhe outra vez. A sua cabeça bateu na parede com força e por
momentos ela ficou cega. Um zumbido alto e estranho começou a soar-lhe
nos ouvidos, quase como o voo dos cisnes.
- E bebo - gritou ele, debruçando-se sobre ela com ênfase aterrorizadora
- porque não consigo arranjar um emprego e ninguém quer saber peva do
que me acontece. Sabes o que me ofereceram hoje? Ir alcatroar estradas, a
mim que sou um vendedor!
Laurie segurava o pano húmido contra o rosto, fitando-o com os olhos
arregalados. As asas ainda adejavam na sua cabeça, tentando libertar-se.
Tudo estava desfocado. A cara distorcida de Jeff parecia subir e ficar estreita
num momento para depois encolher e esticar-se para os lados como um
balão monstruoso. Era uma sensação esquisita e aterrorizava-a.
- Um vendedor! - berrou ele, e começou a abaná-la selvaticamente. -
Arrastado para isto... - Abarcou com um braço a cozinha em desordem e as
crianças assustadas no chão e depois rodou-o com violência contra o rosto
dela. - Como é que posso trazer a casa um possível cliente para ver isto?
Quanto mais um eventual patrão!
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Estava a ficar entaramelado, e ela teve um desejo louco de rir. Desde
quando tivera ele possíveis clientes? Ou patrões?
Jeff deve ter vislumbrado o riso no rosto dela, porque bateu-lhe de novo
ainda com mais força, atirando-lhe a cabeça contra a parede novamente e
magoando-lhe as costas ainda mais contra o bordo do lava-loiça. Laurie
sabia vagamente que tinha de fazer um esforço para chamá-lo à razão. Pelo
menos pelas crianças, tinha de tentar parar aquilo de qualquer forma.
- Jeff - começou ela -, por favor. Eu sei que é frustrante...
- Frustrante! - berrou ele. - Bem podes dizê-lo. Contigo e com as crianças
penduradas ao meu pescoço como um fardo!
Ela baixou os olhos para a pequena Midge, agachada no chão. A suave e
meiga Midgezinha com os seus grandes olhos cinzentos. Um fardo?
- Então, porque não te vais embora? - Ouviu-se a si própria dizer com
um tom de coragem falsa na voz desesperada.
- Ir embora? - Soou como se ele não tivesse compreendido bem. Depois,
pareceu entender e desatou a rir. Era um som feio e fez arrepiar os cabelos
da nuca de Laurie. - Podia fazê-lo - ripostou, ainda a rir. - Tu até gostavas,
não era?
E então, como ela mais uma vez não respondesse, ele bateu-lhe de novo.
Ela percebeu nessa altura, num repente curioso e cristalino de
compreensão, que ele nunca a deixaria. Gostava de ter alguém em quem
bater e uma razão para a sua fúria e rancores. Ela e as crianças eram a sua
desculpa para os seus próprios fracassos e imperfeições. Não precisava de
se culpar a si próprio. Só tinha de puni-los a eles.
A eles? Laurie compreendeu que os filhos estavam em perigo. No
momento em que vislumbrava esta realidade, Jeff deu um passo atrás,
hesitante, e tropeçou no leão amarelo que Midge tinha deixado no chão, no
meio do terror, ao gatinhar para debaixo da mesa. Agora, ele avançava para
a criança com um punho levantado e um olhar vidrado de fúria.
- Seu pirralho maldito!
- Não! - exclamou Laurie, e pôs-se rapidamente em frente da mesa. -
Não, Jeff. A Midge não.
Ele nunca tinha batido nos miúdos. Até agora. Tinha sempre sido
Laurie que queria magoar, Laurie que queria humilhar e derrotar. Mas
agora o olhar no seu rosto ultrapassara o grau de sanidade. Ela teve medo.
Curvou-se e deitou os braços à criança.
- Jay - chamou bruscamente -, anda. Vou meter-vos aos dois na cama.
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- Não vais nada - gritou Jeff. - Deixa-os aí.
- Não - retorquiu Laurie, e recuou com rapidez, mantendo Jason atrás
de si.
Jeff virou a mesa de pernas para o ar -e veio atrás dela. Mas uma das
pernas da mesa revirada atingiu-o quando ele cambaleou para a frente,
ébrio, e fê-lo estatelar-se numa chuva de vidros e insultos.
As asas soavam muito forte na cabeça de Laurie.
Fugir... fugir... fugir!, diziam, e o som do seu voo seguro e rápido era
mais alto do que a voz de Jeff.
De alguma forma, sem saber bem como, Laurie encontrou-se na rua
com Midge nos braços e Jason ao lado, e a correr... a fugir no crepúsculo
azul da noite de Setembro, deixando muito' longe a figura minúscula de Jeff
aos gritos e a casa sufocante e acanhada. E com ela, enquanto corria, as asas
continuavam a pulsar.
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nível do da mãe. Ela levantou uma mãozinha e fez uma festa na face ferida
de Laurie.
- Coitadinha da mãe - lamuriou. - Tão tristinha.
Laurie engoliu à pressa um gole de chá quente. A ternura inesperada de
Midge quase fora a última gota.
- Podia arranjar-lhes um cachorro quente?- pediu, tentando sorrir para o
rosto enrugado à sua frente.
- Com certeza. - O homem meteu duas salsichas quentes entre duas
fatias de pão com umas colheres de cebola. - Molho?
- Sim, se faz favor - respondeu Jason, acenando a cabeça. - Molho! -
concordou Midge, sorrindo como um anjo.
- E a senhora? - Os olhos castanhos atentos vigiavam-na sem surpresa,
mas não sem compreensão.
- Não, obrigada. Não tenho fome.
- Teve uma noite má? - indagou com delicadeza.
- Acho que sim... - Aquecia as mãos na caneca, mas não conseguia parar
de tremer.
Ele pareceu abarcar toda a situação, com a cabeça inclinada. - Vai para
casa? - inquiriu.
- Não - ripostou ela, e estremeceu de novo. - Nunca mais.
O homem fez que sim com a cabeça para si próprio, como quem
compreende demasiado bem o problema. O seu rosto enrugado, meio
velho, meio novo, tinha um ar abatido de compaixão. Já tinha visto tudo
aquilo anteriormente. Mas antes que lhe pudesse dizer mais qualquer coisa,
ela desfaleceu à sua frente.
Jeff estava confuso. Quando Laurie fugira de casa a correr, ele supusera
que voltaria em breve, contrita, como de costume. Mas não voltara.
Inspeccionou os destroços da cozinha e o guisado de lentilhas espalhado
pela parede. Tinha sido de facto ele que fizera aquilo? O que o enfurecera
assim tanto? Não conseguia lembrar-se, mas a ideia daquela cena assustava-
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o. Caiu na cama numa nuvem de álcool e autocomiseração e sonhou que se
encontrava num carrocel, a rodar cada vez mais depressa, de tal maneira
que ficava cada vez mais tonto com cada volta. E Laurie e as crianças
estavam de pé, de mãos dadas, ao lado, a observarem, muito sérias,
enquanto ele continuava a rodopiar e não conseguia sair...
Acordou a sentir-se enjoado e estranhamente assustado com qualquer
coisa. Não havia ninguém em casa, e o silêncio e o vazio pareciam troçar
dele. Precisava de uma bebida. O dia passou num nevoeiro de bares e uma
sensação de perda que ele não entendia bem. Quando regressou a casa,
ainda não estava lá ninguém. Começou a interrogar-se se poderia ter
acontecido alguma coisa a Laurie.
“Não”, pensou ele. “Ela está só a vingar-se. Se calhar, dormiu em casa
de um dos vizinhos.” Enfurecido, deu um pontapé na mesa tombada da
cozinha. “É melhor limpar esta porcaria”, continuou a pensar. Mas deixou
tudo como estava.
De manhã, encontrou a carta do hospital, um.formulário impresso com
os espaços preenchidos com: “Mrs. Laura Collins, casada com Jeffrey
Collins, Wetherby Terrace, 14, deu entrada, sofrendo de costelas partidas,
fractura do crânio, concussão, grave equimose na coluna e contusões
múltiplas.” Nem uma palavra sobre quanto tempo lá ia ficar nem como
adquirira os ferimentos. O estômago contraiu-se-lhe de medo.
O que lhes teria ela dito? Todos aqueles ferimentos não podiam ter sido
provocados por ele. É verdade que tinham discutido duas vezes num dia,
mas não, ela tinha com certeza sido atropelada por um carro ou assaltada
ou qualquer outra coisa.
Era melhor ir ver como ela estava. Mas, e se o acusassem? Era melhor
esperar que entrassem em contacto com ele. Ou a mandassem para casa.
Afinal, não diziam que corria perigo. Entretanto, precisava de uma bebida.
Um choque e tanto, notícias daquelas.
Mas, após uma manhã no bar, sentiu-se com mais coragem. Começou a
pensar: e se não a fosse ver? Não iam pensar que não se importava com ela?
Não ia parecer que ele lhe tinha mesmo dado uma sova? Talvez fosse
melhor ir e fazer um ar preocupado. Fazer um ar? Bom, ele estava mesmo
preocupado.
Pensou vagamente no que teria acontecido às crianças. Não podia tê-las
com ela, pois não? Alguém devia estar a tomar conta delas. Bom, que lhes
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fizesse bom proveito! Talvez ficassem com elas um dia ou dois e lhe dessem
um momento de descanso. Ia fazer-lhe muito bem.
Ocorreu-lhe que, se ia trazer Laurie para casa, como um bom marido,
era melhor primeiro dar uma arrumadela a tudo. Para o caso de alguém
querer vir verificar pessoalmente. Arranjar-se um bocado também.
Emborcou mais um gole e comprou uma garrafa para levar para casa. As
coisas podiam tornar-se feias no hospital.
De regresso a casa, varreu os vidros partidos e as loiças e lavou todos os
pratos no lava-loiça. A seguir, limpou o guisado da parede. Ficou um pouco
abalado por lá encontrar sangue também. Por essa altura, a sua coragem
estava a evaporar-se de novo, por isso parou para beber uma boa dose de
whisky. Não gostava de hospitais nem nas melhores alturas, e aquela visita
podia ser traiçoeira.
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- Receio que tenha chegado tarde demais. - Depois, pareceu parar
deliberadamente, observando o terror súbito nos olhos de Jeff.
- O quê?
- Demos-lhe alta ontem.
Jeff ficou furioso de repente. Assustá-lo daquela maneira. Tinha
pensado por momentos que... e, afinal, ela não estava mal!
- Deram-lhe alta? Para onde? O Dr. Lang encolheu os ombros. - Não
faço a mínima ideia.
- Mas... Onde é que ela está? Não deixou um endereço?
- Só o seu endereço, Mr. Collins, e esse com muita relutância. - O quê?
Ela... Ela disse alguma coisa?
- Acerca de quê? Acerca de como adquiriu os ferimentos, talvez? Jeff
sentiu outra onda de medo.
- Bem, e disse? - A voz saiu-lhe demasiado alta, demasiado truculenta.
- Ela não contou muita coisa. Tinha uma concussão e estava em estado
de choque.
- Deve ter caído - tartamudeou Jeff. - Atropelada por um carro ou coisa
assim. Não perguntou por mim?
- Perguntar por si? - O médico parecia frio e desdenhoso. - Não, não
perguntou. Na realidade, a única vez que se mencionou o seu nome ela
ficou tão assustada que tentou sair logo nessa altura do hospital.
Houve um silêncio enquanto Jeff digeria aquilo. Por fim, o medo e a
fúria apoderaram-se dele.
- É ridículo! - rugiu. - O senhor recusar-se a dizer-me onde ela está! A
fazer essas acusações todas.
- Ninguém fez acusações nenhumas, Mr. Collins.
- Exijo saber onde ela está. E os meus filhos? Ela não tem o direito de
desaparecer sem deixar uma morada. E o senhor não tem o direito de a
deixar... - Avançou para o Dr. Lang, apontando um dedo acusador. - O
senhor sabe de certeza. Não saio daqui sem mo dizer.
O jovem médico limitou-se a fitá-lo, com as mãos nos bolsos da bata
branca.
- Lamento, mas não posso ajudá-lo.
Jeff atirou-se a ele às cegas, mas uma mão forte e rápida forçou-lhe o
braço para baixo.
- Aconselho-o a não ser violento, Mr. Collins - afirmou o Dr. Lang em
tom agradável. - Acho que já tivemos violência suficiente. Jeff tentou
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novamente bater-lhe. Mas desta vez uma enfermeira entrou seguida de dois
porteiros corpulentos, que agarraram cada um num braço de Jeff.
- Se fosse a si, eu ia-me embora sossegado - aconselhou o médico com
suavidade. - Ou quer que chame a Polícia?
Jeff ficou atemorizado. Lembrou-se do papel com a lista de ferimentos.
Mas a pressão forte dos porteiros enfurecia-o. Sacudiu-os, dizendo
entredentes:
- Larguem-me. Já lhes disse: não saio daqui enquanto não souber onde
ela está.
Os dois porteiros agarraram-no outra vez e seguiu-se uma luta. A
enfermeira foi chamar a Polícia. Quando lá chegaram, Jeff estava fora de si
de frustração e medo. Tentou bater nos porteiros, no Dr. Lang e num dos
polícias.
- Deixem-me - gritava. - Quero a minha mulher. Quero saber onde está.
Como é que se atrevem a esconder-ma!
Levaram-no, ainda a debater-se e a gritar.
- Bem - disse o Dr. Lang à enfermeira sombriamente -, não há grandes
dúvidas de onde aqueles ferimentos surgiram.
Foi Penny quem a levantou e a pôs na cama, lhe trouxe uma botija de
água quente e uma chávena de chá. Penny quem se debruçou na cama e lhe
disse com um alegre sentido prático:
- Não devia deixar que a perturbassem. Eu não deixo. Que se danem
todos, digo eu.
Laurie tentou rir-se.
- És um conforto, Penny. - Olhou para o rosto simpático e bonacheirão
da miúda à sua frente e perguntou de repente: - O que é que estás a fazer
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aqui? És demasiado nova para estares aqui connosco, mulheres gastas e
cansadas.
Penny abanou o pé para a frente e para trás e baixou os olhos.
- Depende do que quer dizer com demasiado nova - retorquiu. Laurie
ficou horrorizada.
- Tu? Espancada?
- Moída de pancada - assentiu ela. - Sim. Mas eu não era propriamente
esposa.
Laurie estava baralhada. - O quê, então?
- Filha - ripostou ela com verdadeiro azedume na voz. - Queres dizer
que o teu pai te batia?
- Ah, não. Bem, não exactamente... - Fixou os olhos em Laurie quase
com pena. - Não percebe mesmo nada, pois não?
- Não - concordou Laurie com um meio-sorriso. - Nada de nada. - Bom,
eu conto-lhe. - O tom- vigoroso e irreverente tinha voltado à sua voz. - O
meu pai era um bocadinho excitado, percebe? Gostava de rapariguinhas,
por isso... - Baixou os olhos para a sua própria barriga volumosa.
- Oh, meu Deus - exclamou Laurie. - Mas... Que idade tinhas? - Cerca de
oito anos quando começou. Não podia dizer à minha mãe... nem a quem
quer que fosse, na verdade. Ele ameaçava bater-me se o fizesse. Ele disse
que, de qualquer modo, negaria e ninguém ia acreditar em mim. Iam pensar
que eu não passava de uma perversa. - Um sorrisinho triste arrepanhou-lhe
os cantos da boca. - E no fim foi mesmo isso que pensaram, incluindo a
minha mãe.
- O quê? Quando tu... Quando ele te engravidou?
- A minha mãe não queria acreditar em mim. Gostava da vida que
tinha. E deu-me a maior das sovas que já apanhei por ser mentirosa e
conflituosa e ter uma mente doentia, como ela disse. Depois, pôs-me na rua.
- Mas, Penny. O que é que tu fizeste? Penny deu um suspiro.
- O Joe encontrou-me na rua como a encontrou a si. E depois a Jane
assumiu o comando. - Sorriu a Laurie, com a velha e animada alegria a vir
ao de cima. - Graças a Deus, existe a Jane, não é?
- Sim, mas, Penny, quantos anos tens agora? O que é que vais fazer?
- Tenho quase dezasseis. E hei-de conseguir! A Jane diz que posso ficar
cá como ajudante. - Olhou à volta e pela janela, para o jardim mal-arranjado,
e acrescentou, meio para si própria: - Mas não tenho a certeza de querer
educar o meu filho aqui. Pelo menos para sempre.
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- Não gostas disto?
- É bom. - Penny abanava o pé de novo e franzia o sobrolho. - É seguro.
Ninguém se mete connosco e temos que chegue para comer. Não estou a
dizer que não estou agradecida. - Levantou os olhos para Laurie outra vez,
sorrindo um pouco. - Mas... Ah, não sei, acho que um bebé precisa de um
sítio mais assente.
Laurie suspirou, pensando em Jay e Midge.
No dia seguinte, Laurie sentia-se mais perturbada que nunca.
Encontravam-se no escritório de Jane e o ambiente estava carregado de
silêncios significativos. Havia uma assistente social, Lois Brown, que era
simpática, mas insistente. E havia uma advogada de ar calmo chamada
Madeleine Williamson, que parecia ser amiga de Jane. E havia Jane, atenta e
neutra. Queriam falar com os miúdos a sós.
- Se não tem objecções estava Lois Brown a dizer educadamente.
Mas Laurie, francamente, tinha.
- Não são um pouco novinhos para interrogatórios? - indagou ela. -
Sabe - explicou Jane pacientemente -, a Madeleine está habituada a lidar
com estas situações. Ajuda muitas mulheres. E se e para ajudá-la com o
processo judicial e mais tarde com um divórcio, vão surgir questões sobre
quem fica com as crianças, etc. Ela precisa de saber o que sentem as crianças
sobre isso e se é seguro deixar o seu marido aproximar-se delas. E Lois
também.
- Podia ajudar-nos - confirmou Lois - a ter uma imagem completa.
“Uma imagem completa”, pensou Laurie, desesperada. “Como é que
podem alguma vez saber?” Mas em voz alta pediu:
- Desde que não os perturbem nem assustem. Disso já tiveram que
chegasse.
Olhou, impotente, para Jane, que garantiu:
- Temos todas muita experiência, Laurie. Nunca intimidaríamos uma
criança. Na verdade, é mesmo essa a ideia do Esconderijo... Nenhuma
intimidação de qualquer espécie.
Laurie fez um sorriso pálido e afastou o cabelo dos olhos.
- Desculpem. Sei que estou ansiosa. Mas, sabem...
- Nós sabemos muito bem, Laurie, acredite em mim - interrompeu Jane.
- Pode confiar em nós.
Mas Laurie não conseguia confiar em ninguém. Ainda não. Naquele
momento, Penny entrou com as crianças. Midge correu logo para Laurie e
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subiu-lhe para o colo. Mas Jason ficou de pé, quieto, a olhar da mãe para as
outras mulheres num silêncio interrogativo.
- Jay... - Laurie puxou-o para si. - A Jane e as amigas dela querem só
falar contigo um bocadinho. Podes contar-lhes o que querem saber. Basta
dizeres a verdade, está bem?
- Está bem - concordou Jason. - Se a mãe quiser... Jane levantou-se
decididamente.
- Então, a Laurie e eu vamos fazer um chá para toda a gente - anunciou
ela. - Midge, ficas aqui com o Jason, está bem?
Mas Midge fez uma cena. Agarrou-se a Laurie, com os braços apertados
à volta do pescoço dela, e chorou.
- Não faz mal - interveio Lois Brown rapidamente. - Falamos só com o
Jason. - Dirigiu a Laurie um sorriso tranquilizador.
- De qualquer forma - notou Madeleine Williamson numa voz calma e
clara-, acho que a Midge já nos disse o que queríamos saber. Após uma
breve olhadela em redor, Penny levou Laurie e Midge para a cozinha.
Portanto, agora era a vez de Jason enfrentar os problemas.
- Para já - começou Lois com suavidade -, queres voltar para casa?
- Não! - atirou Jason. E a seguir, com toda a franqueza: - Se ele lá estiver,
não.
- Gostas de cá estar? - A voz de Lois ainda soava casual.
- Mais ou menos. - Jason olhava para ela quase com desprezo. Fazia
perguntas tão óbvias. - Estamos protegidos - explicou ele.
- Protegidos de quê, Jason? - indagou Lois ainda com maior suavidade.
- Da maldade - retorquiu ele. E depois, vendo que esperavam que ele
continuasse, trocou-lhes por miúdos. - Do meu pai.
- Ele batia na tua mãe muitas vezes, Jason? - Sim. Todo o tempo.
- E batia em ti ou na Midge?
O rosto dele pareceu fechar-se como uma flor à noite. Não respondeu.
- Batia, Jason? - insistiu a assistente social.
- Sim - confessou ele. - Às vezes. Quando a mãe não estava. - Na Midge
também?
Uma espécie de escuridão pareceu encher-lhe então os olhos.
- Só quando ela chorava. Eu tentava impedi-lo... - Olhou para ela
desamparadamente. - Mas ele era forte demais. - As mulheres ficaram em
silêncio, perturbadas pela voz magoada e cheia de auto-reprovação. - Eu
21
bem lhe dizia para ela não chorar - continuou com uma franqueza dolorosa.
- E ela conseguia a maior parte das vezes.
Lois Brown retomou num tom falsamente casual: - Suponho... que a tua
mãe nunca vos batia?
Então, ele irritou-se de súbito. Os seus olhos pareciam reluzir de
incredulidade. -
- A minha mãe? Ela é incapaz de magoar alguém! - Nem mesmo o teu
pai?
- Não - respondeu ele com decisão. - Ela costumava dizer que não
devíamos odiá-lo. - O seu rosto ficou triste de repente. - Mas eu odeio-o
mesmo. Odeio-o por bater na minha mãe e na Midge.
Ficou ali, tenso e na defensiva, a desafiá-las a ambas. Mas antes que
pudessem fazer mais perguntas, Laurie voltou a entrar na sala, com Midge
a correr atrás dela. Dirigiu-se rapidamente até Jason e voltou-se para as
inquisidoras:
- Já chega - declarou. - Não vêem que ele já sofreu demais? E Penny,
atrás dela, acrescentou alegremente:
- Olha, Jason, trouxemos-te uma chávena de chá e uma bolacha de
chocolate.
Jason não disse mais nada. Mas encostou-se ao braço da mãe.
Toda a gente se descontraiu então, e Madeleine Williamson disse a
Laurie:
- Ele é um rapazinho muito corajoso. Deve ter orgulho nele.
- E tenho - concordou Laurie. A seguir, de certa forma hesitante,
perguntou: - Conseguiram... Descobriram o que queriam saber?
- Ah, sim. - A advogada acenou com a cabeça. - Vou representá-la no
tribunal na segunda-feira e, se quiser, depois também.
Quando o caso foi a tribunal, Jeff estava a sentir-se melhor. Brenda não
queria ir lá a casa. Não queria envolver-se em nenhum sarilho. Mas tinha-o
deixado subir ao apartamento dela, por cima do merceeiro. Não passou pela
cabeça de Jeff descarregar as suas frustrações nela como fazia com Laurie.
Ela era dura. Não suave e frágil e mesmo a pedir que lhe chegassem. Não,
esta era capaz de lhe dar uma sova a ele, se quisesse. Entretanto, fazia-o
sentir-se o maior e devolveu-lhe a arrogância no andar.
Mesmo assim, precisou de uma ajudinha antes de entrar no tribunal.
Quando se encontrou com o advogado, estava confiante e agressivo por fora
e muito assustado por dentro. As coisas pareceram acontecer num nevoeiro.
Não compreendeu o que estava a passar-se. Respondeu às perguntas deles
23
com ar carrancudo, com repentes de rebeldia, e depois tentava forçar-se a
ser calmo e encantador.
- Queria só ver a minha mulher - pediu com ar razoável.
- Quando foi a sua brutalidade que a pôs no hospital? Era a advogada
de Laurie. Era esperta.
- Um erro... - resmungou ele. - Perdi a cabeça. Lamento...
- Quando isto já durava há anos? Tenho uma declaração em como a sua
mulher já tinha pedido a protecção da Polícia pelo menos por duas vezes
anteriormente.
Falou-se mais um bocado, mas o magistrado parecia não estar disposto
a prolongar as coisas.
- Três meses pela primeira acusação - disse com voz áspera - e mais um
mês pela segunda. E vai ser obrigado a ter uma conduta irrepreensível e não
se aproximar, molestar ou perseguir a sua mulher, seja de que maneira for,
durante um ano.
Madeleine Williamson pensou para si própria com amargura: “Sim.
Três meses por ter tentado agredir um agente da autoridade e um mês por
quase matar a mulher. É assim a vida. Mas pelo menos vai estar fora da
circulação enquanto aquela coitada recupera.”
Jeff não podia acreditar. Cadeia? Ele? O que é que tinha feito para
merecer isso? Um homem tinha o direito de fazer o que quisesse à sua
mulher dentro da sua própria casa. Não tinha? Não era justo.
De súbito, levantou-se e gritou tudo isto a plenos pulmões. Mas não
serviu de nada. Empurraram-no para fora da sala, ainda a gritar e a tentar
explicar-se. Foi para a cadeia. E tudo por culpa de Laurie.
Parte II
Levantando voo
24
- Estávamos cá a pensar, a Penny e eu, se gostaria de ir dar um passeio
pelo campo. Quer dizer, você e os miúdos. - Mirava-a com olhos castanhos
brilhantes e atentos. - Pensei que talvez, aqui fechada, lhe soubesse bem
uma mudança. Tenho de ir buscar hortaliças, percebe?
- Pensei que tinha um quiosque nocturno de cafés.
- Tenho - concordou Joe. - Hortaliças de manhã, café à noite. - Foi você
quem me trouxe para o refúgio da Jane.
- Fui. - Sorria com conhecimento e simpatia.
- Bem, obrigada - atirou Laurie. - Provavelmente, salvou-me a vida, e a
das crianças também.
- Esqueça isso, menina. Bem, e quanto ao campo?
- Ah, Joe! É uma óptima ideia. - Ela resplandecia. - Campo a sério?
- Campo a sério. - Sorriu. - Prados verdes e tudo.
- Vá lá - pressionou Penny. - Não desperdice tempo. Vou buscar os
miúdos. - Voltou-se para Joe. - Faço umas sanduíches?
- Não - replicou ele. - Hamburgers e batatas fritas por minha conta.
Vamos fazer um dia de festa.
Riram-se todos. Parecia um piquenique da escola.
25
Enquanto Joe foi carregar a carrinha com produtos, Penny e as crianças
correram alegremente por uma das longas alamedas verdes de lúpulo.
Laurie seguiu-os mais devagar. Ainda lhe doía andar depressa, e as costelas
doridas dificultavam-lhe a respiração, mas era maravilhoso estar ao ar livre,
com aqueles vastos céus límpidos e navios de nuvens brilhantes navegando
por cima de si. O cheiro estranho e pungente do lúpulo misturava-se com o
cheiro mais doce das maçãs dos pomares. Sentia a cabeça mais desanuviada
do que há muitos dias. As asas pareciam não bater de todo lá dentro. Na
realidade, tinha uma estranha sensação de liberdade.
Uma das apanhadoras, uma mulher grande, levantou os olhos para
Laurie e sorriu. Trazia um avental de serapilheira amarrado à volta da saia
de algodão, e as grandes mãos estavam manchadas do verde e dou rado do
lúpulo, que ela deitava para dentro do saco. A família trabalhava à volta
dela em equipa.
- Vem juntar-se a nós? - perguntou a mulher.
Laurie hesitou, observando quão habilidosamente os dedos dela
tiravam o lúpulo da haste e o separavam das folhas.
- Costumava haver mais gente - continuou a mulher com melancolia. -
Mas as máquinas são mais rápidas. Hoje em dia, já não nos querem na
maior parte dos sítios.
Laurie acenou com a cabeça. - Mas aqui querem?
- Claro. O Stan é um bom patrão.
- Há muito tempo que vêm para aqui? A mulher riu-se.
- Mais do que quero lembrar-me! - Olhou de soslaio a plantação de
lúpulo, protegendo os olhos do sol. - O verificador vem aí - afirmou ela. -
Há competição hoje para ver quem é o apanhador mais rápido... com
prémios e tudo. - Apontou para um outro grupo de apanhadores. - Aqueles
são jornaleiros. Vêm todos os dias de autocarro. - Piscou o olho a Laurie. -
Mas não conhecem o ofício como nós.
- Qual é o prémio? - perguntou Laurie, sorrindo.
- Não sei. P'raí uma garrafa de cerveja. Ou cidra. - Olhou de esguelha
para Laurie e perguntou: - Vai cá ficar muito tempo?
- Não -suspirou Laurie. - Quem me dera...
- Parece-me que lhe faria bem - comentou a mulher com perspicácia.
Estendeu o olhar para. as alas altas e verdes onde Jason e Midge brincavam
entre um grupo de crianças aos gritos e continuou num tom
surpreendentemente mais suave: - Faz muitíssimo bem aos miúdos e tudo.
26
Laurie concordou. Havia muito, muito tempo, que não via as crianças
tão descontraídas e sem medo. Até Penny dava a impressão de ter perdido
um pouco do ar pesado e corria com os miúdos. Laurie ficou comovida pela
visão do seu abandono infantil. Afinal, lembrou a si mesma, a própria
Penny ainda era apenas uma criança.
- Porque não fica? - sugeriu a mulher com suavidade. - Há lugar nas
cabanas e ainda há muito lúpulo para apanhar enquanto o tempo está bom.
Acho que dava jeito ao patrão.
Laurie mirou-a. Todo o tipo de possibilidades amontoava-se-lhe na
cabeça. Mas não disse nada. Exactamente nessa altura, o verificador, alto e
esguio - Spider -, dirigiu-se para elas. Relanceou uma olhadela em volta,
com ar experiente, pelas protuberâncias verdes nos sacos. Após um cálculo
arguto do volume, começou a tirar o lúpulo e a atirá-lo para dentro do seu
cesto de alqueire, a contar enquanto o fazia e despejando-o para os grandes
sacos que iam ser postos no tractor e levados para a secagem.
- Três... quatro... cinco... - a voz continuava, monótona. Depois, somou-
os todos e escreveu no bloco-notas preto. - Estás à frente até agora, Dorrie -
afirmou, sorrindo, para a mulher.
- E aqueles outros ali? - perguntou Dorrie, continuando a debulhar
lúpulo para dentro do saco vazio enquanto falava.
- Nem perto - retorquiu ele, rindo-se. Depois, pôs outra vez o boné
sobre o cabelo ruivo e olhou para Laurie. - É nova aqui, não é?
- Estou só de visita - respondeu Laurie com timidez.
Ele reparou como o longo cabelo louro brilhava ao sol e como aqueles
olhos azuis, tão fortemente marcados pelo cansaço, o miravam do fundo de
uma fortaleza de decisão escondida e profunda.
- Bem - retorquiu - divirta-se! - e passou ao grupo seguinte de
apanhadores.
Algures no outro extremo, perto da estrada, uma campainha como a de
uma carrinha de gelados ecoou pelo ar rescendente a lúpulo.
- A comida chegou - exclamou Dorrie, e bamboleou-se na direcção do
som da campainha. De toda a plantação de lúpulo e dos pomares e campos
longínquos, apanhadores e crianças acorreram, numa multidão chilreante e
alegre.
- Hamburgers e batatas fritas - anunciou a voz de Joe mesmo atrás de
Laurie. - Como prometido. Vamos lá.
27
Sentaram-se num banco cheio de pó e marcas de pés e comeram
hamburgers em papéis gordurentos, lambendo o sal dos dedos. Era a
primeira vez que Laurie sentia fome desde... desde Deus sabia quando, e
reparou que Jason e Midge já tinham devorado a sua parte e olhavam à
volta à procura de mais. Penny entregava-lhes, a rir, as suas batatas fritas
para os manter sossegados.
Joe observava-os a todos com olhos experientes, mas não dizia nada.
Depois, afastou-se e comprou gelados para todos.
- Mãe - declarou Jason com a boca cheia -, gosto disto aqui. Não
podíamos cá ficar?
- Ficar! - concordou Midge, e comeu outra batata frita. Laurie desviou os
olhos deles para Penny e suspirou.
- Bem, e porque não? - replicou Penny. - Fazia-nos bem.
- Fazia-nos... ? - murmurou Laurie, com uma questão mais profunda em
mente.
- Sim, a nós - confirmou Penny. - Para onde forem, eu também vou. -
Depois, corou com súbita timidez e sacudiu o cabelo ruivo ao sol. - Isto é, se
não se importar.
Joe regressou então com os gelados, e Laurie tentou pagá-los em vão. -
Mas eu tenho algum dinheiro, Joe. O pessoal da Segurança Social deu-me
um subsídio de emergência para eu me orientar. A Jane tratou disso.
- Ela contou-me - resmungou Joe. - Mas isto é um presente, percebe?
Laurie olhou para o seu rosto determinado e percebeu. Agradeceu-lhe
com seriedade.
- Tem razão, claro. Não posso esbanjá-lo. Só Deus sabe de onde virá o
próximo. Estava a pensar se não podia ganhar algum aqui.
- Aqui? - perguntou Joe. - Quer dizer, a apanhar lúpulo?
- Porque não? - Ela relanceou os olhos pelas caras das crianças, que a
fitavam em súplica muda. - Eles adoram isto, Joe, o espaço e o... a verdura.
Depois de Londres é tão limpo.
Se Joe ouviu o tom de dor na voz dela, preferiu ignorá-lo.
- Está preparada para trabalhar então? - indagou. Mirou-a com ar
severo. - Não seria muito conveniente andar por aí a desmaiar pelos cantos
outra vez... - Laurie apercebeu-se do brilho no olhar dele e riu-se. - Outra
coisa - continuou ele, sério. - Se ficar aqui, a Jane pode não ter quarto vago
quando você voltar.
Laurie acenou que sim.
28
- Eu sei. Mas não posso lá ficar para sempre, Joe. - Afastou o cabelo dos
olhos num gesto familiar de ansiedade. - Não é bom para os miúdos. Pelo
menos permanentemente, quero dizer.
Joe concordou.
- O que é que gostaria de fazer então?
Laurie respirou fundo e levantou os olhos para o céu azul.
- Gostava de:,. - murmurou - de me afastar de Londres - “... e de Jeff e
da sua raiva”, pensou - para um sítio calmo. Talvez perto do mar, onde
fosse limpo... e eu pudesse trabalhar.
Joe ficou em silêncio por momentos. A seguir, meio a sorrir, perguntou:
- O que é que sabe fazer então, para além de colher lúpulo? Laurie
suspirou.
- Pouco. Sei cozinhar qualquer coisa e limpar uma casa, creio. E tratar
de um jardim. - Suspirou de novo. - Costumava ajudar o meu pai com no
jardim quando voltava do banco.
- Do banco? - A voz de Joe soou mais penetrante.
- Ah, sim, esqueci-me. Sei fazer balancetes de contabilidade. O meu pai
era subgerente do banco local. Arranjou-me lá um emprego. - Você vale o
seu peso em ouro, rapariga - comentou Joe. Depois, deu uma vista de olhos
às plantações de lúpulo. - Quer mesmo ficar aqui?
- Se houver trabalho.
- Vou ver - ripostou Joe, mirando-a com ar duvidoso. - E eu? - exigiu
Penny. - Posso colher.
- Nada de muito pesado - protestou Joe. - No teu estado, não, rapariga!
O Stan não ia gostar disso. - Pensou por instantes. - Há os grelos - afirmou
devagar. - E os morangos serôdios ainda. Mas isso é agachar demais.
- E daí? - bufou Penny. - Não. sou de vidro. Ele abanou a cabeça.
- Para que é que vou pôr o Stan em dificuldades?
Mas elas continuaram a olhar para ele com um apelo urgente nos olhos.
Joe suspirou.
- Está bem, está bem, vou pedir-lhe. - Sentia uma necessidade urgente
de dissipar a ansiedade do olhar de Laurie. - Mais alguma coisa que
queiram?
- Cisnes declarou de súbito Laurie, a olhar para o vasto céu. Joe
pareceu espantado.
- Cisnes? - indagou. - Bem, há o rio ali mesmo ao fundo, em baixo. O
lamacento Medway. Porque não vão ver enquanto falo com o Stan?
29
Laurie,. com Penny e as duas crianças a dançar à frente dela, desceu até
ao rio vagaroso. As margens estavam cor de ferrugem com as ervas do fim
de Setembro, mas ainda floridas, com balsaminas e ulmeiras. Umas
galinhas-d'água e galeirões chapinhavam por lá entre os canaviais e um
casal de patos-reais vogava rio abaixo.
- Ali! - disse suavemente Jason, apontando um dedo, excitado. - Ali
estão eles. Era o que queria?
E além, flutuando pacificamente na superfície serena do rio, estavam
dois cisnes calmos e graciosos.
- Não são lindos?- sussurrou Laurie, e afundou-se na relva para os
observar, com os olhos rasos de lágrimas inesperadas.
Penny olhou para ela de lado e depois, afastou-se e começou a falar com
Jason muito a sério sobre patos-reais e barcos. Afastaram-se lentamente,
com Midge segura com firmeza pela mão.
Laurie sentou-se ao sol a observar os sossegados cisnes, que navegavam
tão orgulhosos à frente do vento, como garbosos veleiros de outras eras.
Nessa altura, pareceram acordar do seu deslizar sonolento, quase como se
tivessem sido chamados, e começaram a nadar na direcção de uma pequena
língua de terra saliente. Ao chegarem aos baixios cheios de juncos, Laurie
viu a figura de um homem delineada contra o sol. Quase parecia fundir-se
com a paisagem, de tão quieto que estava, plantado direito na margem do
rio, como uma árvore a crescer.
Laurie afastou o cabelo dos olhos para observar novamente. Ele ergueu
uma mão para os cisnes, como que a cumprimentar velhos amigos, e eles
aproximaram-se bastante, de tal modo que, inclinando-se, ele acariciou a
bela curva das suas cabeças e longos pescoços brancos. Enfiou a mão num
bolso e tirou um pouco de comida, e eles comeram-na da sua mão com uma
dignidade calma. Depois, fez-lhes uma carícia final e Laurie ouviu o fraco
murmúrio da sua voz quando ele se afastou deles e se aproximou dela.
- Fortaleçam-se pareceu-lhe ouvir.
Ela não se mexeu. Ficou sentada a observá-lo enquanto ele se
aproximava com passos longos e lentos. Parecia quase hipnotizada pela sua
presença, como os cisnes estavam. Era tão calmo e pacífico. Uma sensação
extraordinária de libertação e felicidade parecia avolumar-se dentro de
Laurie ao vê-lo chegar, uma sensação de quase reconhecimento. Ali estava
alguém sem medos, intocado pelas sementes da raiva ou do despeito, que
estendia os braços para os cisnes com mãos meigas e compassivas. Alguém
30
que caminhava pelo mundo sarapintado dos campos húmidos, não como se
o possuísse, mas como se fizesse parte dele.
Quando ele se aproximou, Laurie deu por si a olhar para um rosto
moreno e magro, com rugas finas à volta de olhos perspicazes, de um
profundo cinzento de sombra de nuvem, que a miravam numa interrogação
amigável. Tinha cãs prateadas no cabelo castanho e ligeiramente
encaracolado, que se erguia de uma testa alta e abaulada. E a boca era
bondosa, embora Laurie suspeitasse de que seria capaz de se tornar severa
em certas ocasiões.
Ele, por seu lado, viu uma rapariga frágil e pálida com longos cabelos
louros que brilhavam ao sol e olhos que eram demasiado grandes e
demasiado escurecidos por sombras, mas que já deviam ter sido de um
azul-genciano límpido.
- São seus? - indagou ela. - O quê?
- Os cisnes.
- Ah... Ah, não. São cisnes-bravos, completamente selvagens e livres. -
Sorriu-lhe e o sol pareceu dardejar e dançar-lhe no rosto.
- Mas... conheciam-no.
- Isso é porque os encontrei feridos, e os tratei. Mas já estão bem de
novo e livres de partir e voltar.
- Livres? - murmurou Laurie, como se fosse uma palavra que não
conhecia.
- Só voltam porque sabem que sou amigo e é seguro - explicou ele, e
havia ternura no seu sorriso.
Porque sabem que sou amigo e é seguro. Laurie fechou os olhos por
instantes, fazendo retroceder lágrimas estúpidas. Quando voltou a abri-los,
ele estava sentado na margem ao seu lado.
- Há muitos cisnes no rio?
- Bastantes. Não tantos como era costume haver. - Porquê?
- Fazem-lhes mal... E eles morrem. - A expressão dele tornou-se
sombria.
- O que é que lhes acontece?
- Tudo. Ficam presos em linhas de pesca, dão-lhes tiros, ficam com
anzóis presos nas gargantas, são atacados por pessoas nas margens ou nos
barcos.
- Atacados? Cisnes?
31
- Ah, sim. Espancados com remos. Amarrados a uma árvore e usados
como alvo de setas. Atropelados por barcos a motor e cortados pela hélice.
Nem pode imaginar.
Os olhos de Laurie estavam arregalados e quase negros de fúria.
- Porquê? O que é que nós, seres humanos, temos? Porque é que somos
tão violentos? - Estremeceu.
- Acho que é uma espécie de desespero - murmurou ele. - Desespero?
- Sim, desespero. De que a vida possa ser tão feia e desapontadora.
Laurie fez que sim com a cabeça.
- Por isso espancam? - Conhecia o padrão.
- Mas não é, claro - acrescentou ele com o olhar pousado nos cisnes.
- O que é que não é?
- A vida não é desapontadora e feia. - Não é?
- Não - respondeu ele. - Nem sempre.
Exactamente nessa altura, nos longínquos pomares, um tiro soou e a
seguir uns gritos e uma série de detonações agudas como chicotadas. Laurie
deu um salto e começou a tremer.
- Não faz mal - afirmou o homem dos cisnes. - Espanta-pardais.
Normalmente, põem estes engenhos nos pomares depois de os apanhadores
irem para casa. Salva muita fruta.
- Ah! - Laurie tentava em vão parar de tremer. - Que tolice assustar-
me...
Ele mirou-a com gravidade.
- Leva tempo - declarou de forma obscura. - Às vezes, os cisnes que
salvo levam muito tempo.
- Le-levam? - Parecia mais do que uma simples pergunta.
- Ao princípio, não suportam ser tocados. - Ele não olhava para ela
agora, tinha o olhar perdido no rio. - Assustam-se com qualquer som. Até
uma colher a tirar comida de um prato de alumínio fá-los retesar com medo.
Detestam os homens. - Continuava a não olhar para ela.
- Não se pode culpá-los, pois não? A violência marca profundamente. -
Sim - sussurrou Laurie.
- Mas por fim aprendem a confiar em mim - afirmou com a voz viva de
compaixão. - E vêm comer-me à mão, como viu!
Laurie fez um sorriso cheio de dor.
- Sim, vi. - Ao longe, na margem, ouviu as vozes de Penny e das
crianças, que regressavam.
32
- Vai melhorar - murmurou ele para ninguém em especial, e observou
as figuras pequenas que se lhes dirigiam.
Midge correu para a mãe, palrando com alegria de patos e nenúfares.
Mas Jason aproximou-se dela devagar, de olhos pregados no seu rosto, e
estendeu-lhe uma longa pena branca de cisne que tinha encontrado.
- Mãe? - chamou, e pousou a pena no seu colo.
Não disse mais nada, mas no seu olhar estranhamente maduro Laurie
viu uma nova tranquilidade e nítida compreensão.
“Eu sei”, dizia. “Eu sei que nunca houve tempo para se sentar numa
margem de rio e olhar para os cisnes. Sei que quando uma coisa é bela isso
fá-la chorar. Mas eu estou aqui. E a Midge está aqui. E a Penny. E estamos
seguros. Não há nada aqui para nos atemorizar. Está tudo bem.”
Laurie estendeu a mão e apanhou a macia pena de asa. Avassalou-a um
desejo súbito e pungente de se meter no rio e mergulhar bem fundo, até que
todo o seu velho ser e a sua antiga vida tivessem sido expulsos dela e
lavados para que pudesse vir à superfície completamente nova e limpa,
como os puros e imaculados cisnes que deslizavam tão orgulhosos,
totalmente curados e livres. Mas em voz alta comentou apenas:
- Um pequeno pedaço de liberdade, Jay - e levantou a pena brilhante na
luz do sol de fins de Setembro.
O homem ao seu lado tocou na pena. Sorriu-lhe, e havia no seu olhar
compassivo a mesma consciência e tranquilidade que ela vira nos olhos de
Jason.
- Vai haver outros - afirmou suavemente; depois, levantou-se e afastou-
se deles em direcção ao sol.
33
convívio envolvidas pelo cheiro rodopiante do fumo das fogueiras nas
noites frescas de Setembro.
Toda a gente era simpática, e alguém emprestou a Laurie uma panela
velha enegrecida e uma lata de feijão até ela poder abastecer-se na loja
ambulante que vinha no dia seguinte; Penny conseguiu que a mulher do
lavrador lhe arranjasse uns ovos e leite e outra pessoa deu-lhe uma velha
chaleira, chá e meio-pão escuro “para remediar”, por isso aquela primeira
noite pareceu-lhes um banquete.
Levantavam-se cedo, tal como os outros, e iam para as plantações de
lúpulo. Trabalhavam todo o dia ao vento e ao sol, arrancando o lúpulo
verde-claro das hastes, e à noite sentavam-se às fogueiras e cozinhavam
mais feijão, salsichas no espeto e batatas assadas nas brasas.
O verificador, Spider, afeiçoara-se a Laurie, e uma noite aproximou-se
em grandes passadas da fogueira dela e ficou de pé a mirá-la na luz que
diminuía.
- Importa-se que me junte a vocês? - Como queira - retorquiu Laurie.
Ele fitou-a atentamente antes de se sentar na relva amassada. O rosto
dela tinha perdido algum do seu ar cansado e atormentado, mas ainda
havia sombras sob aqueles olhos azuis.
- Está sozinha, é? - indagou ele. Laurie olhou para ele com firmeza.
- Sim - ripostou, e a seguir ouviu a sua própria voz continuar: - E
tenciono manter-me assim.
Spider riu-se e esticou as pernas compridas na relva. - Não seja assim.
Só estava a perguntar.
Laurie suspirou. Serviu-lhe chá numa caneca de alumínio e deitou-lhe
algum leite.
- Tome - ofereceu. - Lamento, mas não tenho açúcar. - Observou-o por
instantes em silêncio enquanto ele beberricava o chá, e percebeu que ele
estava a magicar como haveria de prosseguir. - Ouça, Spider - declarou de
repente. - Lá porque tenho cabelo comprido e olhos azuis não quer dizer
que seja presa fácil para qualquer homem que apareça.
- Eh, espere lá. Eu não quis dizer...
- Não? - exclamou ela, incrédula. - Bem, de qualquer forma, não sou. -
Mirou-o de novo, quase com desespero. - Para lhe dizer a verdade, Spider,
estou um bocado farta de homens.
Ele olhou-a de relance, meio a sorrir. - A sério?
34
- Sim, a sério. Isto é, a não ser que você consiga tratar-me como
qualquer outro trabalhador, homem ou mulher. - Voltou a mirá-lo com
perspicácia, quase como se esperasse ver algo na cara dele que lá não
estava. - Sabia-me bem ter um ou dois amigos normais - murmurou meio
para si própria.
Spider sorriu e esvaziou a caneca de chá.
- Mensagem recebida e entendida - declarou, e levantou-se. Laurie
sentiu um ligeiro tremor de desilusão. Seria impossível a amizade normal
com Um homem?
Mais tarde nessa noite, quando estavam deitadas lado a lado no escuro,
Laurie pediu a Penny:
- Eras capaz de me cortar o cabelo?
Penny estava meio adormecida, mas apoiou-se num cotovelo para
espreitar Laurie, abismada.
- Cortar-lhe o cabelo? O que é... quer dizer, curto?
- Sim, curto. Bastante curto. - A sua voz soava decidida. - Acho que sim,
desde que tenha uma tesoura.
- A Dorrie deve ter.
Deu a impressão de que ia levantar-se e perguntar-lhe logo naquele
momento, mas Penny aconselhou numa voz calma:
- Amanhã de manhã. Quando houver luz. Não posso fazer isso agora...
podia arrancar-lhe a cabeça! - Riram-se baixinho no escuro. - Porquê? -
indagou Penny. - Por causa do Spider?
- Não, mas... - Laurie hesitou.- Decidi que tenho de ser diferente de
agora em diante.
Mas no fim da semana Laurie não voltara a ver Clem, e Joe devia estar a
vir comprar hortaliças e a levar o pequeno grupo de volta. Ela descobriu
que estava a ficar apavorada com isso. Não queria regressar ao Esconderijo
nem aos seus urgentes problemas de habitação, advogados e papéis de
divórcio. Queria ficar numa plantação de lúpulo do Kent, com o Medway a
correr ao lado e os cisnes. E Clem? Sim, respondeu a si própria. Queria ser
como os cisnes que ficavam perto de Clem, porque sabem que sou amigo e é
seguro.
Mas sabia que não podia ficar. Tinha uma vida a reconstruir. Três vidas,
porque Jay e Midge estavam tão marcados como ela pela violência e tensão.
Precisavam de segurança, de uma escola simpática para frequentar e de um
lugar quente e afectuoso, que fosse a sua casa. Como ia conseguir tudo
aquilo não fazia a mínima ideia.
E depois havia Penny. A Penny do cabelo ruivo cor de fogo, do senso
comum tenaz e do riso alegre. Penny... que já se tornara parte das suas
vidas. Penny... que esperava um filho do próprio pai nos próximos três
meses e também não tinha para onde ir. O que ia Laurie fazer com ela?
- Já chega de matutar por hoje. - E lá estava a Penny dos seus
pensamentos a oferecer-lhe uma chávena de chá. - Olhe, o sol brilha -
anunciou. - E é domingo. Nada de colheitas.
Laurie riu-se e aceitou o chá. - Não há sinais de Joe?
- Há. E traz um passageiro - retorquiu Penny. - Olhe!
Laurie viu Joe dirigir-se a ela em passadas largas, com Jane ao lado. -
Que bom! - exclamou Laurie. - Como é que conseguiu escapar-se?
- O Joe disse que eu precisava de descanso. - Jane sorria e parecia mais
nova e menos perturbada no ar suave de Setembro.
- E precisava mesmo - confirmou Joe no seu resmungar fingido. - Era
mais do que tempo!
39
- Por isso aqui estou.
- Temos coisas para discutir - continuou Joe, e olhava de Jane para
Laurie com os olhos experientes, brilhantes como pérolas.
- Venham tomar um chá - convidou Laurie, e levou-os para a sua
fogueira matinal.
- Sai um chá - cantou a voz de Penny. - Vou chamar os miúdos. Laurie
achou que aquilo estava tudo cuidadosamente orquestrado. - Digam-me o
que se passa - exigiu, assim que Penny foi à procura de Jay e Midge.
- Primeiro que tudo - começou Joe com um olho na cara atenta de Jane -,
o Stan quer que você cá fique mais uma semana. A colheita ainda não
acabou e ele diz que a sua contabilidade é impecável.
- A sério? - Laurie sentiu um estranho sobressalto de orgulho. Havia
alguma coisa que sabia fazer bastante bem, recebendo ainda dinheiro por
isso. E podiam ficar mais uma semana. Não era apenas orgulho que sentia,
mas alegria. Alegria verdadeira, simples e efervescente. - Isso seria
maravilhoso - suspirou. - Mas há tanta coisa que tenho de decidir.
- Como, por exemplo? - exigiu Joe.
- Bem, preciso de um sítio para viver, um emprego, uma escola para Jay
e... - Fez uma pausa. Havia Jeff. Também tinha de fazer alguma coisa
relativamente a Jeff.
- É demasiado cedo - murmurou Jane, como que lendo-lhe os
pensamentos.
- Será? - Laurie voltou os olhos para Jane. - Eu estou mais forte. Devia
visitá-lo. Ele não tem mais ninguém. - Falava sem amargura. - O que espera
conseguir? - indagou Jane.
- Nada. - O olhar de Laurie era firme. - Sei que nada vai mudar.
Também não vou voltar atrás em coisa alguma.
- Quer que o divórcio avance?
- Ah, sim. - A voz era calma. - Mas ele foi meu marido durante nove
anos. E está em muito piores lençóis que eu.
Jane olhou para ela, abismada. Depois de tudo por que passara, esta
rapariga conseguia ainda pensar no futuro do marido com verdadeira
compaixão.
- Está bem - acedeu. - Pode combinar-se isso.
- Quanto ao resto - Joe pigarreou, olhando de uma para a outra com
ansiedade -, tenho uma proposta.
O cérebro de Laurie ficou alerta. - Sim?
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- O meu pai - declarou Joe, como se aquilo resolvesse tudo. - O seu pai?
- repetiu Laurie, desorientada.
- Tem uma quintinha, percebe? Na Cornualha. Um sítio chamado
Tregarrow. Cultiva hortaliças e narcisos na Primavera. Perto do mar. Você
disse que gostava de viver ao pé do mar.
- Oh! - Laurie sorriu-lhe. - Lembrou-se.
- Claro que me lembrei - ripostou Joe, muito satisfeito consigo próprio.
- E...? - insistiu Laurie.
- Tem uma casita - explicou ele. - Vazia no Inverno. Aluga-a durante as
férias de Verão. - Os olhos bailavam de satisfação agora. - Se for capaz de
lhe fazer a contabilidade... e olhe que ele é pior que o Stan para números... e
ajudar a encaixotar as hortaliças e os narcisos, pode ficar com a casa sem
pagar renda e recebendo ainda um ordenado. Laurie arregalou os olhos
para ele de boca aberta.
- E receber? Ele deve ser maluco.
- Não, não é. Você vale o seu peso em ouro... a contabilidade. Já lhe
tinha dito.
Ela abanou a cabeça, incrédula. - Perto do mar? Tem a certeza? - Claro
que tenho a certeza. A falésia fica a uns cem metros. Quer dizer - agora ria-
se -, tem a certeza de que é a sério?
- E o meu pai - ripostou Joe com a boca numa linha direita e firme. - O
que ele diz é a sério. Está a ficar velhote. Dava-lhe jeito ter uma ajuda.
Manda uns produtos para mim, outros para o mercado de Penzance e mais
umas tantas lojas. Para ele, é uma dádiva de Deus.
Laurie pousou-lhe uma mão no braço.
- Joe, acho que você é o homem mais bondoso que alguma vez conheci. -
“Com excepção de um”, pensou com tristeza.
- Que disparate - exclamou Joe num tom zangado. - Tenho de pensar
nos meus também. O meu pai é especial, percebe?
Laurie e Jane olharam uma para a outra e riram-se. - O que é que acha,
Jane? - consultou Laurie.
- Conheço o pai do Joe, chama-se Luke Veryan - respondeu Jane -, e
penso que o Joe tem razão. É uma dádiva de Deus. - Olhou de relance para
Joe com ternura.
- E a Penny? - lembrou Laurie de súbito. - O que é que tem a Penny?
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- Bem, ela está muito apegada a nós. Os miúdos adoram-na e ela adora-
os. Podia levá-la comigo. Podia tomar conta dos miúdos enquanto eu
trabalhava. Era uma espécie de solução.
- Melhor que muitas - murmurou Jane.
- Ora, sim, senhor - concordou Joe com uma resmungadela aprovadora.
Ia ter de deixar Clem e os seus cisnes, pensou Laurie. Mas a oferta de
Joe era demasiado boa para ser recusada.
Quando lhe perguntaram a opinião, Penny ficou muito pálida, olhou
para Laurie com uma certa candura desesperada e indagou:
- Quer-me mesmo?
Laurie não hesitou. Apercebeu-se de repente de que nunca ninguém
dissera a Penny que era querida nem amada em toda a sua curta vida. -
Quero - respondeu. - E o Jay e a Midge também te querem. O sorriso de
Penny parecia um nascer-de-sol.
- Então, vou!
- O que é que achas, Jay? - inquiriu Laurie, sorrindo. - Vamos viver
numa casa à beira-mar!
Uma casa nossa? - perguntou Jay.
- Mesmo nossa, não. Pertence ao pai do Joe.
- Pais, não - exclamou de súbito Midge. - Não quero pais nenhuns.
Laurie e Jane suspiraram e lançaram a Joe um olhar pesaroso. Mas
Penny, que fora mais maltratada do que todos eles, retorquiu:
- Não sejas pateta, Midge. Nem todos os pais são maus. Pois não, Joe?
- Claro que não! - vociferou Joe. - O meu não é. É o melhor... o meu pai.
Vais ver. - Inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha amigável a
Midge. - Eu não sou mau, pois não, pitorrita?
- Não - respondeu Midge. E como que pensando melhor disse: - Deu-
nos gelados.
- Ai sim? - Joe sorriu e levantou-se. - Tenho de carregar as hortaliças.
Sabem, se alguém me ajudasse, talvez comprasse mais uns gelados.
Midge pegou-lhe na mão.
- Foi o que eu pensei - declarou.
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Penny tinha arrancado uma estaca mais comprida da vedação e
esticava-se com ela. Mas era demasiado curta. E as crianças estavam a ser
arrastadas pela corrente para o meio do rio.
- Aguentem-se aí! - gritou uma voz atrás deles. - Já lá vou! Laurie
alcançou Jason exactamente quando a velha bateira de Clem atravessava o
rio com um forte impulso.
- Aguente um minuto - disse ele. - Já agarrei a pequenina... - e estendeu
uma mão forte, içando Midge para dentro da bateira. - Agora tu - disse a
Jason, que engolira muita água do rio e tossia e arquejava. - Agarra na
minha mão.
A seguir, foi a vez de Laurie, que também aterrou nas pranchas
cinzentas da velha bateira. Clem mirou a sua carga encharcada. Depois, fez
sinal a Penny e gritou:
- Segue-nos. A minha casa fica a seguir à próxima curva - e impulsionou
a bateira novamente para o meio do rio.
Pouco depois, estavam todos sentados à volta do fogão de Clem,
enrolados em cobertores, a beber chá. Jason não parecia mal, embora
estivesse muito calado. Mas Midge agarrava-se com força a Laurie. Laurie,
por seu lado, estava pálida e sentia a cabeça esquisita de novo, mas olhava
das crianças para Penny e para Clem com gratidão. Estavam todos a salvo.
- Você parece cultivar o hábito de salvar coisas - comentou ela, sorrindo.
Clem riu-se.
- Sempre é uma variante dos cisnes!
- Como está aquele do anzol? Recuperou?
- Claro. - Fez um gesto vago na direcção da porta da cozinha. - Está lá
fora com os outros.
- Que outros? - indagou Jason, interessado.
- Acaba o teu chá que eu mostro-te - propôs Clem. Observou o corpo de
Jason coberto com o cobertor e acrescentou: - Podia arranjar-te uma T-shirt
seca e uns calções. Vão ficar-te enormes, mas acho que um cinto os
segurava!
Subiu as escadas e voltou com os braços cheios de roupas, e quando
estavam todos mais ou menos vestidos, saíram, rindo. Havia meia dúzia de
cisnes a nadar calmamente no pequeno lago que Clem lhes fizera e vários
casais de patos. Havia também uma alta garça-real, cinzenta, com o bico
ferido, e duas gaivotas que tinham sido trazidas com as penas cheias de
óleo. E havia uma cabeça molhada e lustrosa a nadar em direcção a eles.
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- O que é aquilo? - perguntou Jason, apontando.
- Aquilo? Ah, aquilo é o Jaunty. É uma lontra que encontrei numa
armadilha para enguias lá mais em baixo no rio, perto do estuário.
- Uma lontra? Nunca tinha visto uma lontra viva.
- Poucas pessoas as vêem hoje em dia - replicou Clem. - Estão a tornar-
se cada vez mais raras. - A sua voz soava triste.
- Porquê?
- Oh, motivos diversos. As pessoas caçam-nas e matam-nas.
Os olhos de Jason encontravam-se pousados na bela e inteligente cabeça
a sair da água para os espreitar.
- Não sei como é que alguém pode fazer-lhes mal - murmurou
entredentes.
- Não são só os caçadores. Os rios estão poluídos, os canaviais são
cortados e as dragas chegam. Os locais selvagens e secretos onde as lontras
gostam de viver estão a desaparecer gradualmente. É por isso que o Jaunty
vai ficando por cá. Aqui tem sossego e ninguém lhe corta as canas nem os
salgueiros.
- Ele é seu? Clem hesitou.
- Bem, mais ou menos. Quando deixei de ser veterinário na cidade, o
meu sócio comprou a minha parte, por isso fiquei com algum dinheiro.
Depois o pessoal da protecção da Natureza e eu juntámo-nos e comprámos
esta casa e o máximo de terreno que conseguimos. Isto está registado como
reserva natural e santuário de aves.
- Ainda bem - afirmou Jason com simplicidade.
Ficou fascinado, a observar Clem a deitar comida, cuidadosamente
escolhida, aos seus cisnes convalescentes e a remexer num balde de plástico
para encontrar um peixinho que atirou a Jaunty.
- A questão é que - explicou Clem, muito sério, a Jason - não se deve
dar-lhes comida demais, senão nunca mais se vão embora nem aprendem a
caçar sozinhos.
- Eles têm de se ir embora? - indagou Jason, ansioso.
O homem grande e calmo olhou-o de relance com simpatia.
Compreendeu a tristeza na voz do rapaz, o desejo de estar seguro, como
Jaunty... de ter alguém seguro como ele a quem recorrer.
- Sim - respondeu -, têm. Têm de aprender a ser independentes e livres.
Foi para isso que nasceram. - Os olhos dele desviaram-se para o rosto de
Laurie, e viu um olhar brilhante e singular de reconhecimento atravessado
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de determinação. - Mas é claro que - continuou rapidamente -, se
regressarem de vez em quando para um pouco de conforto e segurança, fico
muito satisfeito por vê-los.
Exactamente nessa altura, Jaunty mergulhou, nadou e mostrou a sua
agilidade flexível na água. Fez um pino, depois levantou-se sobre as patas
traseiras e sorriu-lhes, como a dizer: “Não sou esperto? Não sou bonito?” A
seguir, nadou para o meio do rio.
- Lá vai ele - exclamou Clem. - Mas há-de voltar. - Há-de? - Havia
tristeza na voz de Jason.
- Com certeza. Mais cedo ou mais tarde. - O sorriso dirigiu-se para
Jason. - Talvez amanhã. Ele não vai esquecer-me agora.
Jason suspirou, não conseguia exprimir a estranha dor que sentia. Foi
então que Laurie desmaiou. Inesperadamente, a margem do rio começou a
rodar, o céu revolteou e ficou preto e ela caiu como uma pedra aos pés de
Clem.
Midge gritou. Jason e Penny debruçaram-se sobre ela com ansiedade.
Clem pegou-lhe, levou-a para dentro e pousou-a no sofá do canto junto ao
fogão.
- É a cabeça - explicou Penny. - Tem uma ligeira fractura e acho que um
daqueles grosseirões chegou a bater-lhe.
Clem acenou com a cabeça em silêncio.
- Já vai acordar daqui a pouco. - Voltou-se para as crianças com a voz
calma. - Há uma esponja e uma bacia no meu lava-loiça. Tragam um bocado
de água...
Ele sabia que uma acção de qualquer tipo reduziria o pânico. Midge já
tinha parado de chorar e seguiu Jason. Regressaram carregando
cuidadosamente uma bacia cheia de água, e Clem banhou a testa de Laurie,
que tinha de facto um novo hematoma feio e vermelho. Passados poucos
instantes, Laurie abriu os olhos.
- Desculpem - murmurou entredentes, a esforçar-se para se sentar. - O
que é que me deu?
Clem sorriu.
- Levou um murro de um malandro. - Empurrou-a suavemente para
trás. - Descanse aí um pouco. A Penny e eu vamos arranjar qualquer coisa
para o almoço.
Em breve, Penny tinha preparado uma apetitosa mistura de carne
enlatada, feijão cozido, tomates de lata, espinafres da horta de Clem e
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cogumelos frescos. Pousou-a triunfalmente sobre a mesa. Nessa altura,
Laurie já recuperara o suficiente para se juntar a eles. O cheiro delicioso até
a fez sentir bastante fome.
Antes de a refeição acabar, Midge começou a cabecear. A excitação do
dia tinha sido demasiada para ela. Laurie deitou-a no sofá e tapou-a com
um cobertor. Depois, Penny anunciou com à-vontade:
- Acho que eu e o Jason vamos dar uma vista de olhos enquanto
descansa. - Voltou-se para Clem com um ar inquiridor: - Se não se importar,
claro.
- Com certeza - concordou Clem. - Andem só devagar para não
perturbarem as aves.
Laurie viu-os sair e pensou em pânico: “Não sei o que dizer a este
homem. Como posso explicar-lhe o que me tem vindo a acontecer ou o que
sinto?” Mas Clem surpreendeu-a.
- Quando é que se vão embora? - indagou. Laurie arregalou os olhos
para ele, espantada. - No fim da semana.
- E depois?
Titubeando, ela contou-lhe da casa e do emprego na Cornualha.
- Tenho de o aceitar - explicou. - É uma dádiva do céu. - Clem fez que
sim com a cabeça pensativamente. - E eu... eu gostava de viver ao pé do
mar... - A voz dela soava estranha e sonhadora. - Parece ser a única maneira
de me sentir limpa.
Ele não fez comentários, mas perguntou:
- As crianças sabem nadar?
- Não. Como viu hoje, Jay mal consegue boiar. Mas Midge...
- Traga-os cá - disse ele.
Ela fitou-o. - O quê?
- Traga-os cá, todos os dias, depois de acabar o trabalho. O bocado da
represa que eu abri é bastante limpo e não muito fundo nem lamacento.
- Mas...
- Todos os dias! - declarou com decisão. - Consigo ensiná-los numa
semana. Pelo menos, posso dar-lhes segurança dentro de água. E à Penny
também. Mesmo no estado dela, pode aprender a boiar. - Acrescentou
alegremente: - A natação é boa para as grávidas.
- Como é que sabe? - perguntou Laurie, rindo-se. Clem riu-se também.
- É lógico. Flutuam dentro de água... tira-lhes um peso de cima! Ainda
estavam a rir quando Penny e Jason regressaram. Nada de sério fora dito,
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nada de triste, perigoso ou importante. Mas Laurie sentia-se estranhamente
reconfortada. Clem parecia saber o que ela sentia. Aceitava a partida dela.
Até compreendia o seu desejo insaciável de se sentir limpa pelos ventos
fortes, pelas ondas da costa atlântica. Talvez um dia se sentisse em
condições para deixar outras pessoas aproximarem-se. Talvez um dia
voltasse àquela sossegada represa, como os cisnes. Mas, entretanto, havia
ainda esta última semana de ouro. E Jason e Midge a aceitarem já Clem
como um companheiro seguro e amigo, não um inimigo. Sobretudo Jay. Viu
que os olhos de Clem, pousados no rapaz, estavam cheios de carinho. Havia
uma ligação natural a crescer entre eles, porque Jason também adorava
animais selvagens... “Para onde é que este homem me está a levar?”, pensou
ela.
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Jason ficara preocupado com o recontro com os rufias na margem do
rio. Não que tivesse tido medo, claro. Já tivera que lidar com brigões na
escola. Sabia tomar conta de si. Mas eles tinham assustado Midge de tal
maneira que ela quase se afogara, e haviam mesmo batido na sua mãe e
feito a cabeça dela ficar pior outra vez. Prometeu a si próprio que ninguém
mais voltaria a bater na mãe. Não fora suficientemente forte para o evitar.
Que espécie de ajuda ia ser para a mãe se não conseguia sequer enfrentar
aqueles rapazes? Por isso, no dia seguinte foi perguntar à única pessoa que
sabia que era suficientemente forte e bondosa para tomar conta deles
todos... o seu novo amigo, Clem.
Encontrou Clem a dar de comer às aves e ficou a observá-lo por
instantes em silêncio, a magicar como havia de explicar-lhe o problema.
Mas Clem antecipou-se-lhe.
- Então, Jason? O que é que te preocupa?
Jason ainda hesitou, mas por fim, declarou com vergonha:
- É a mãe. E a Midge. - Fez uma pausa e a seguir acrescentou: - E a
Penny também. - O rapaz levantou os olhos com confiança, seguro de que
Clem saberia a resposta. - Como é que posso mantê-las em segurança?
Os olhos de Clem encheram-se de mágoa súbita. “Deus do céu”,
pensou. “Só tem oito anos e pergunta-me uma coisa destas!”
- Jay - afirmou por fim -, tu já tens vindo a mantê-las em segurança a
todas. Mas a partir de agora vai tudo tornar-se mais fácil.
- Foi difícil à beira do rio, e vai haver outras vezes. - Havia um mundo
de verdadeiro conhecimento na voz infantil.
- Sim, Jay, é verdade - concordou Clem. - Mas não vai ser tão grave.
- Não vai ser grave? - O rapaz parecia confuso.
Clem apontou para o outro lado do lago, onde a lontrazinha brincava
nos baixios.
- Lembras-te do Jaunty? Quando o apanhei, a vida tinha sido muito
dura com ele. Tinha medo de tudo. Até me mordeu quando tentei ajudá-lo.
Mas agora - pensou quanto precisaria de dizer - está forte outra vez. É capaz
de encarar seja o que for. Já não tenho de o proteger.
Houve um silêncio durante o tempo em que Jason matutava sobre
aquilo. Depois, disse devagar, sem olhar para Clem:
- A mãe está quase boa... - Sim, Jay, pois está.
- Mas a Midge ainda é pequena. Clem riu-se.
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- Dá-lhe tempo, Jay. Ela há-de crescer. Com certeza que vais precisar de
tomar conta delas, mas não tanto como dantes.
Clem interrogou-se se teria tirado algum do peso de preocupação dos
jovens ombros ou se só piorara as coisas. Jason ergueu os olhos para
Jaunty, que corria atrás da própria cauda.
- Quem me dera... - começou, e a seguir percebeu, de alguma forma, que
não devia dizê-lo. Em vez disso, transformou a frase num outro
pensamento que era igualmente verdadeiro. - Quem me dera poder um dia
ajudá-lo a tratar dos cisnes.
- Porque não? - O sorriso de Clem era franco e carinhoso. - Faz-me
sempre jeito mais um par de mãos, isto é, desde que sejam bondosas. Jason
baixou os olhos para as suas próprias mãos, admirado, e depois para as
mãos grandes e morenas de Clem.
- Bondosas?
- Bondosas - repetiu Clem com meiguice. - É esse o segredo, Jay.
Bondade. - Inclinou-se para os seus baldes de comida e tirou um peixe para
a lontra. - Toma. Dá um petisco ao Jaunty. Talvez ele faça uma cabriola.
Jason atirou o peixe pelo ar. Ele brilhou ao sol e Jaunty deu um salto
para o apanhar e fez de facto uma cabriola.
- Aí está - comentou Clem. - É assim que a vida vai ser, Jay, a partir de
agora. Só sol a brilhar e cabriolas.
Havia tanta certeza na sua voz que Jason quase acreditou.
Parte III
Voando em Liberdade
A vida na cadeia não era fácil para Jeff. Soube-se que batia na mulher e
provavelmente nas crianças também. Os outros presos não gostavam desse
tipo de gente. Era recebido por um silêncio de gelo à hora das refeições. Nas
oficinas era sujeito a brincadeiras desagradáveis. Os bancos fugiam de
debaixo dele; os martelos falhavam os pregos e acertavam-lhe nas mãos
distraídas; pilhas de troncos de madeira bem arrumados caíam à sua volta.
Para piorar as coisas, não havia bebida para apagar as humilhações do dia.
Portanto, não era surpresa que estivesse zangado e ressentido quando o
foram chamar à cela e lhe disseram que tinha uma visita. Seguiu para onde
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o mandaram num estado de espírito negro, à espera de ouvir mais outro
sermão de um visitante de prisões acerca do demónio da bebida.
Em vez disso, deu consigo sentado à frente de uma janela com a cara de
Laurie do outro lado. Uma Laurie diferente. O cabelo estava muito curto,
fazendo-a parecer mais velha e de certa forma mais forte. E o rosto tinha
uma expressão de decisão firme.
- Como estás, Jeff? - indagou ela.
- O que é que achas? Fechado aqui dentro! - Mostrou-lhe má cara, sem
ter a certeza do que a visita significava. - Para que vieste? Não me digas que
estás arrependida.
Ela ficou ali sentada a observá-lo com uma expressão avaliadora e
baralhada. “É este o homem com quem me casei?”, parecia perguntar a si
própria.
- Não - falou com cautela. - Só queria saber como estavas. - Ah,
obrigado. Já que tu é que me puseste aqui.
Ela suspirou.
- Eu não te pus aqui, Jeff. Foste tu que te puseste aqui. Tal como me
afastaste a mim e aos teus filhos. - Fitava-o agora com determinação,
desejando que ele visse a verdade. Só assim é que ele poderia vir a
recompor-se.
- Sua cabra estuporada e hipócrita! - gritou ele de súbito, e deu um
murro na janela. - Eu deito-te a mão quando sair daqui!
Mas Laurie não ficou assustada nem intimidada pelas ameaças dele. Da
distância do painel de vidro que os separava, viu não o monstro que
receara, mas um homem desnorteado e magro, cujo alegre mundo de
fantasia se desmoronara à sua volta. Descobriu que tinha pena dele.
- Vim despedir-me, Jeff - disse-lhe numa voz firme. - Vou-me embora.
- Despedir-te? - rosnou ele com a fúria a emergir de novo. - Não vais a
lado nenhum, percebes? És minha mulher e eles são meus filhos. - Já não -
respondeu ela. - Não compreendes? Acabou-se. O processo de divórcio está
a seguir os seus trâmites. E se queres ver as crianças outra vez, vais ter de
esperar até serem mais velhas. Têm demasiado medo de ti agora.
- Medo de mim? Que disparate! Tu é que lhes meteste isso na cabeça.
Laurie não deu uma resposta directa àquilo.
- Na verdade, Jeff, tu não as queres mais do que me queres a mim.
Somos só um estorvo. - Deu-lhe a sensação de ver então um lampejo de
esperança nos olhos furiosos, um vislumbre de uma vida nova e livre.
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Mas a ele ainda não lhe agradava a ideia de a mulher e os filhos estarem
à solta. Eles pertenciam-lhe.
- Não podes ir-te embora sem mais nem menos - protestou, tentando
soar de forma patética. - Eu preciso de ti.
Laurie levantou-se da cadeira. - Lamento - replicou ela.
Jeff não queria acreditar. Ela ia mesmo abandoná-lo. Soltou um
chorrilho de obscenidades furiosas. O guarda pegou-lhe num braço e
empurrou-o para fora.
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Cada uma pegou numa das crianças pela mão para o caso de o caminho
se tornar muito íngreme. O trilho estreito serpenteava pela encosta abaixo.
Só uma vez chegou perto da borda da falésia, e todos olharam sobre uma
descida vertiginosa para um amontoado de rochas afiadas. O caminho
continuava a descer até a uma enseada pequena e perfeita, uma curva de
areia branco-dourada em forma de concha guardada por dois braços de
falésias rochosas castanho-dourados.
- Oh! - gritaram as crianças, e atiraram com os sapatos, desatando a
correr pela areia firme até ao mar.
Todos patinharam. Laurie ficou a olhar fixamente para o mar, para
oeste, onde o Sol se punha em raios de vermelho cor de flamingo.
“O mar é puro”, pensou. “Amanhã, vou nadar. E então talvez comece a
sentir-me limpa e inteira de novo...” Em voz alta, anunciou: - Amanhã
vamos tomar banho. Agora, está a fazer-se tarde. Voltaram e abriram
caminho pela vereda acima até à casa na colina.
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- Tudo isso e a casa também? - Sentiu-se quase ultrajada por causa dele.
- Nunca vai conseguir ter lucro dessa maneira.
O riso súbito de Luke parecia mais um ladrar. - Está a recusar?
Ela fitou-o, muito séria.
- Não. Não sou assim tão tola. - Depois, sorriu. - Sabe - continuou com
ternura-, eu disse ao seu Joe que ele era o homem mais bondoso que eu
jamais conhecera. Deve sair a si.
Luke soltou um resmungo e voltou-se para remexer desnecessariamente
na secretária apinhada.
- Bem - propôs após uns instantes -, tudo assente, então? Tire o dia de
hoje para os seus assuntos. Começa amanhã.
- Cá estarei - garantiu Laurie, acenando com a cabeça com vivacidade.
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A primeira manhã de trabalho foi um pouco confusa, mas Laurie
começou a descodificar os livros de Luke e também foi aos barracões de
empacotamento e às estufas para ajudar nas entregas diárias de hortaliças e
fruta. Encontrou o velho Bob debruçado sobre as filas de crisântemos e
dálias e ficou a ajudá-lo a atá-los às estacas. Ele levantou os olhos com um
sorriso desdentado e cumprimentou com suavidade:
- Bom dia, menina. O tempo ainda está bom.
À hora do almoço, Laurie ouviu barulho na cozinha de Luke. Encontrou
lá Penny, envolta num grande avental, e Midge e Jason a porem a mesa.
Laurie mirou-a inquiridoramente.
- O Luke sabe que estás aqui? Penny acenou que sim.
- Eu disse-lhe, claro. Era burrice cozinhar para os miúdos lá em cima e
deixá-la a si e ao tio Luke à fome.
Os olhos de Laurie arregalaram-se.
- Ah, então já é o tio Luke, é?
- É mais fácil para os miúdos - explicou Penny com vivacidade. Deu
uma mexidela no guisado. - Além disso - acrescentou -, acho que ele até
gosta muito. Tem de ter uma espécie de família, não é, com o Joe tão longe e
tudo?
Portanto, estabeleceu-se uma rotina. Luke nunca disse se aprovava ou
condenava, mas aparecia para as refeiçõs de Penny, e o velho Bob também,
e fazia-lhes bem a ambos. A casa de Luke começou também a ter mais
aspecto de habitada. Os quartos foram lavados e o pó limpo, e o pedaço de
terra à volta da porta da cozinha cobriu-se de repente de rebentos de
violetas de Inverno e vasos de sardinheiras.
Laurie mal tinha tempo para si, mas ganhou o hábito de passear até à
enseada de manhã cedo. Àquela hora, era tudo pacífico, fresco e sossegado.
As areias cremes estavam limpas pela maré e havia corvos-marinhos a
espreitar das rochas, com os seus longos e elegantes pescoços recortados na
luz matinal. E o mar... O mar a toda a volta, quebrando-se com um
movimento suspirado na praia.
“Puro”, pensava Laurie. E com uma estranha sensação de abandono e
liberdade despia-se e entrava na água. Não demorava muito. Só tinha
tempo para uma nadadela rápida até às rochas e regressar. Depois, corria
pela areia fora para aquecer, trepava o carreiro até à casa para tomar o
pequeno-almoço com Penny, pôr Jason a caminho da escola, dar um abraço
61
extra a Midge para compensá-la de a deixar e descer para a quinta Para
mais um dia de trabalho.
Andava atarefada todo o dia e por vezes o trabalho era duro, sobretudo
quando saía para ajudar o velho Bob na colheita e na monda. Mas não se
importava. Ficava satisfeita por se encontrar infidavelmente ocupada, feliz
por dar o máximo, contente por chegar cansada ao fim do dia. Às vezes, as
preocupações com o futuro interrompiam-lhe o sono, mas punha-as de
lado. A única coisa que a preocupava era a sua visão. Tinha ataques
periódicos de visão dupla, de tal maneira que as colunas de números se
multiplicavam de súbito. Mas decidiu que aquilo desapareceria com o
tempo. Achou que não valia a pena consultar o Dr. Trevelyan.
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Laurie dirigiu-se então ao telefone. Passado bastante tempo, atendeu-a
uma voz trémula:
- Está? Quinta Veryan.
- Quem fala? - indagou Laurie, surpreendida pela voz fraca e velha. -
Aqui é Laurie Collins.
- Ah, Laurie! - A voz pareceu simultaneamente aliviada e aflita. - Aqui,
Bob. Estamos com problemas, rapariga. A Penny começou... - O quê? Mas
ainda não está no tempo.
- Eu sei... Escorregou no chão de Mr. Luke, foi... - Já mandaram chamar
o Dr. Trevelyan?
- Já tentámos. Saiu nas suas voltas e não pode voltar por causa das
cheias. A enfermeira Penwillis está em Poldurran a fazer outro parto.
Ninguém cá pode chegar por estrada.
Laurie ficou gelada de medo.
- Eu também estou presa, Bob. O autocarro teve de voltar atrás para St.
Buryan. O que é que vamos fazer?
- Mr. Luke foi tomar conta dela e dos miúdos. - A voz abalada e
esganiçada hesitou. -Ele já ajudou a parir uns tantos vitelos quando era mais
novo. Acho que vai saber o que fazer.
Laurie tentou imaginar Penny a lutar para ter o filho apenas com a
orientação pouco experiente de um velho lavrador para a ajudar. “Tenho de
lá chegar seja como for. Seja como for.” Em voz alta, disse:
- Se conseguir ir até lá a casa, diga a Mr. Luke que vou lá ter seja como
for e dê um beijinho à Penny. Diga-lhe que vou a caminho.
- Eu digo, menina. Mas cuidado! As estradas estão perigosas. Laurie
desligou, decidida a pedir ajuda. Certamente alguém teria um veículo que
conseguisse passar. Falou, desesperada, com o dono do bar, que bateu com
força no balcão com uma caneca de cerveja.
- Esta jovem aqui - anunciou - quer um voluntário para a levar o mais
perto possível de Tregarrow. Há um bebé para nascer; o médico e a
enfermeira não podem lá chegar. Alguém se sente com coragem para
enfrentar o temporal?
Houve silêncio por instantes.
- Se alguém me deixar perto do carreiro da falésia, posso fazer o resto a
pé - garantiu Laurie.
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- Perigoso com este vento... - declarou alguém com dúvidas. Uma figura
quadrada e corpulenta levantou-se de uma cadeira junto do lume e
ofereceu:
- Tenho um Land-Rover aqui. Se há um bebé para nascer, acho que é
melhor tentarmos.
O dono do bar exclamou:
- Boa sorte! - Como um coro, os restantes repetiram.
O homem entroncado agarrou Laurie por um braço com firmeza e
levou-a para o Land-Rover. Ajudou-a a entrar e trepou também,
amaldiçoando baixinho a cascata de água que lhe entrou pelo pescoço ao
abrir a porta do lado do condutor.
- Chamo-me Tom Tremayne - gritou-lhe acima do ruído do motor e do
rugido do vento lá fora. - É melhor tentarmos a estrada de cima e cortar
para trás.
Laurie acenou que sim, apertando as mãos uma na outra e desejando
manter a calma suficiente para não começar a gritar “Despache-se!”
O Land-Rover entrou na estrada e embrenhou-se noite dentro. Tom não
falava muito, mantendo os olhos pregados na estrada à sua frente. De
repente, descobriu um sinal na beira da estrada, à esquerda, e meteu-se pela
estrada secundária.
- Por aqui talvez dê...
O Land-Rover avançava aos solavancos. A certa altura, deram com um
monte de pedras de uma derrocada de um muro, mas Tom limitou-se a
virar para um portão aberto e conduziu, chocalhando e derrapando, através
da estrema superior de um campo de volta à estrada. Por fim, depararam
com um sinal que dizia TREGARROW.
- É esta a estrada que está inundada - afirmou Tom. - Acha que
consegue ir a pé a partir daqui?
- De certeza que consigo. - Laurie soava absolutamente confiante -, se
me indicar o caminho.
Ele fez que sim com a cabeça, mas continuou a avançar. - Vamos até
onde conseguirmos.
Desviaram-se novamente para evitar uma estaca caída, e então o Land-
Rover travou de repente. À frente, havia uma interrupção profunda na
estrada e uma extensão brilhante de água das cheias.
Dois candeeiros a petróleo vermelhos tinham sido colocados no meio da
estrada como aviso. Laurie olhou para Tom.
66
- Pode dar a volta aqui e regressar.
Mas Tom apeou-se e deu a volta ao carro para a ajudar a descer.
- Tem a lanterna? Venha, acompanho-a pelo carreiro da falésia. É
traiçoeiro com este tempo...
Nem ligou ao protesto de Laurie e conduziu-a firmemente pelo braço.
Andaram durante muito tempo em silêncio, ouvindo o rugido do vento e a
rebentação a estoirar lá em baixo nas rochas do cabo de Tregarrow. Por fim,
viram janelas iluminadas num monte de edifícios escuros e, abaixo deles, a
casa de Luke.
- Ora aí está - comentou Tom. - Agora vai ficar bem.
- Oh, mas... - Laurie falou rapidamente. - Por favor, entre. Podia ao
menos beber um chá quente.
- Está bem - disse ele, depois de uma hesitação momentânea.
Caminharam sobre a lama até à casa e entraram. Laurie deixou Tom e
correu escada acima, dizendo por cima do ombro:
- Tire a roupa molhada.
Entrou de rompante no quarto e encontrou Penny deitada na cama,
esticada, agarrada à cabeceira de ferro com mãos desesperadas. Luke estava
debruçado sobre ela e aconselhava:
- Tem calma, rapariga. Tem calma. Não tenhas pressa demais. - Ergueu
os olhos quando Laurie entrou e o rosto abriu-se-lhe num grande sorriso de
alívio. - Ainda bem que chegou.
Laurie inclinou-se para Penny e pousou uma mão fria e húmida contra
o seu rosto afogueado.
- Já cá estou. Não te preocupes. Vai correr tudo bem. - Não sabia como é
que ia correr tudo bem. Mas havia de correr. Afinal, ela própria tinha tido
dois filhos. Tinha obrigação de saber o que fazer. E havia Luke, que não era
parvo nenhum. Reparando na cara cansada e cinzenta dele, pediu com
delicadeza: - Importa-se de ir lá abaixo falar com o Tom Tremayne? Foi ele
quem me trouxe.
Luke presenteou Penny com um sorriso de confiança.
- Volto já, rapariga - disse. - Mas ficas em boas mãos.
Penny gemia e apertava as mãos na cabeceira da cama de ferro e
arqueava as costas contra a dor.
- As águas rebentaram... há bocado - arquejou ela. - Provavelmente, já
não demora muito... Ai! - Cerrou os dentes, gemeu de novo e caiu de costas,
67
exausta, quando a dor abrandou. - Está toda molhada - observou, ofegante.
- É melhor tirar... apanha uma constipação...
Laurie tirou o casaco molhado e vestiu uma saia e uma camisola secas
antes da contracção seguinte. Nessa altura, já estava ao lado de Penny a
segurar-lhe as mãos. Jason entrou no quarto com uma chávena de chá.
- O tio Luke disse que lhe fazia bem, mãe - declarou, sério. - Está muito
molhada?
- Já não - Laurie sorriu. - Onde está a Midge?
- Está a dormir. Pusemo-la no seu quarto. Mas eu fiquei acordado.
Pensei que talvez pudesse ajudar.
- E podes! - concordou Laurie.
Jason sorriu-lhe, não parecendo nada perturbado pela violência do
nascimento iminente, e saiu em bicos de pés lá para baixo.
Laurie tentava desesperadamente lembrar-se de todas as diferentes
fases do parto e de todas as coisas que devia fazer. Desejou que Penny não
fosse tão jovem. Seria mais penoso para ela? Haveria complicações? Desejou
que Agnes Penwillis lá estivesse ou o Dr. Trevelyan. O que é que havia de
fazer se as coisas corressem mal?
Foi então que Luke voltou com um jarro de água quente, lençóis e
toalhas limpas.
- O Tom Tremayne vai-se embora - anunciou. - Vai fazer os possíveis
por contactar a Agnes.
- Ai! - gritou Penny. - Ai, ela que se despache e venha!
- Tenta descontrair-te e respirar fundo - pediu Laurie, segurando-lhe a
mão. - Tenta, Penny... pode ajudar. - Sombriamente, os seus olhos
encontraram-se com os de Luke.
- Calma -- murmurou Luke. - Calma, rapariga. Já não tarda muito...
Perderam a noção do tempo, mas todos sentiram o ritmo inexorável do
parto a acelerar, a intensificar-se e a alcançar o seu clímax. E de súbito
houve um arquear desesperado e um grito rouco de Penny; e uma
criaturinha vermelha apareceu, contorcendo-se, no lençol, e um gritinho
feroz e fraco de protesto rompeu o ar.
Laurie lembrou-se de atar o cordão umbilical antes de o cortar. E foram
as mãos velhas e seguras de Luke que seguraram no recém-nascido,
enquanto ela o lavava e embrulhava num cobertor.
- O que é? - murmurou Penny, exausta e sem energia. - Está tudo bem.
- É uma menina - anunciou Laurie, sorrindo. - E é perfeita. Olha!
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Estava ela a colocar o bebé nos braços de Penny e Luke a baixar-se sobre
ela para lhe dizer de forma rude “Muito bem, rapariga!”, quando se
ouviram passos a correr escada acima e Agnes Penwillis entrou de
rompante a pingar água.
- Desculpem - disse sem fôlego. - Vim a pé pelo carreiro da falésia. O
tempo está horrível. - Os seus olhos dirigiram-se para a cama e o rosto
abriu-se-lhe num sorriso. - Mas vejo que se desembaraçaram muito bem
sem mim. - Tirou o bebé a Penny, entregou-o a Laurie e passou à acção com
a calma determinação da experiência.
Laurie sorriu a Luke e disse baixinho:
- Obrigada. Não teríamos conseguido sem si.
Luke encolheu ligeiramente os ombros, como se não fosse importante.
- É quase igual ao nascimento de um bezerro - declarou com um brilho
de malícia -, só que as vacas são maiores. Aquela pequenita foi esplêndida!
Isto, vindo de Luke, era um grande elogio, e Laurie deitou uma
olhadela a Penny para ver se ela tinha ouvido. Mas os olhos dela estavam
fechados e o seu cabelo ruivo brilhante espalhava-se sobre a almofada,
desgrenhado e escurecido pelo suor. Parecia incrivelmente jovem, uma
criança apanhada numa experiência demasiado violenta para conseguir
suportar. Suspirando, Laurie virou-se exactamente quando a voz de Jason
surgiu do umbral.
- Ouvi o bebé a chorar. Posso vê-lo?
Penny abriu os olhos e sentou-se, apresentando melhor aspecto. Laurie
acenou que sim e levou Jason para perto dela. Ele estendeu uma mão tímida
e tocou na cabeça húmida e macia do bebé.
- Tão pequenina - sussurrou. - Como é que lhe vais chamar? -
perguntou, enquanto Laurie punha o bebé outra vez nos braços da mãe. -
Não sei. - Penny olhou para a cara da filha com uma ternura triste. - Devia
ser uma mistura de madrugadora, temporal e tempestade. Rosa de Natal -
afamou Luke Veryan de súbito.
Olharam todos para ele, admirados. Mas Luke continuou calmamente:
- Elas surgem de repente no começo do Inverno. Não se importam com
a chuva nem o vento; são muito tenazes elas, e todas branquinhas e puras. ,
Pairou um silêncio espantado no quarto por momentos. Nenhum deles
esperara tal discurso poético de um velho lavrador da Cornualha. Então,
Penny olhou para ele com uma alegria súbita:
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- Certo, então - declarou. - Fica Rosa de Natal. Mas suponho que vamos
chamar-lhe só Rosa.
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Ela ficou gelada. As suas mãos, apertando os narcisos, ficaram
paralisadas de terror. Levantou os olhos, incrédula para a cara tensa de Jeff,
que sorria perigosamente. Passou-lhe uma série de pensamentos pela
cabeça, mas predominante foi a rápida percepção: “Está bêbado e furioso.
Não posso levá-lo para perto da casa. A Penny e o bebé estão lá, e as
crianças estão a chegar. Tenho de levar o Jeff para longe, tenho de o
enfrentar e fazê-lo ver a razão.” Levantou-se devagar e pousou os seus
molhos de narcisos. Tinha um forte nó de medo no estômago.
- Surpreendida? - perguntou Jeff com a voz sibilante como uma
chicotada.
- Não muito - respondeu Laurie com sinceridade. - Achei que ias acabar
por conseguir. - A seguir, acrescentou com a maior calma que conseguiu: -
Vamos.
- Vamos aonde? - A pergunta pairou no ar como uma ameaça. -
Suponho que queiras conversar - retorquiu Laurie com sensatez. - É melhor
caminharmos ao longo da falésia... É mais privado. - Começou a andar e Jeff
seguiu-a, com a frustração a aumentar. - Então? - Laurie parou quando
estavam fora do alcance da vista da quinta e da casa. - O que queres?
Jeff estava espantado.
- O que quero? Quero-te de volta aonde pertences; e aos miúdos
também.
- Porquê? - A pergunta foi franca e sem rodeios. - Porquê? Porque és
minha mulher... é por isso. Laurie deu um suspiro.
- Não, Jeff. Já não sou. Expliquei-te isso tudo.
- Explicaste uma ova! - berrou Jeff de forma brutal. - Vais voltar comigo.
Já! - Agarrou-lhe um braço.
- Larga-me. - Laurie falou de maneira bastante suave, mas havia de
certa forma uma ameaça na sua voz.
Jeff deu um passo atrás e levantou a mão num gesto quase automático.
Mas parou porque desta vez Laurie não estremeceu e ripostou com firmeza:
- Não sejas idiota. Se me bateres, só te vai servir para ires parar outra
vez à cadeia. Porque não te acalmas e és razoável?
- Razoável? - A calma de Laurie parecia enfurecê-lo ainda mais. -
Quando a minha mulher e os meus filhos fugiram, a minha casa está suja e
fria e não há nada para comer?
Laurie deu uma gargalhada.
73
- Ah! Agora é que estamos a tocar no ponto. Precisas de uma
governanta, Jeff, não de uma esposa. Só que, claro, não podias andar a dar-
lhe pancada o tempo todo.
Jeff praguejou e precipitou-se para ela de punhos fechados. Um deles
deu-lhe uma violenta pancada de lado na cabeça, e Laurie pestanejou com a
dor, que lhe atravessou o cérebro já traumatizado.
“A culpa é minha”, pensou ela. “Não devia espicaçá-lo. Tenho de tentar
argumentar com ele.” Mas antes que pudesse dizer o que quer que fosse,
várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Jeff atirou-se a ela de novo, e
ela deu consigo a lutar selvaticamente com ele. Midge veio a correr pelo
carreiro da falésia, gritando, assustada:
- Mãe!
E exactamente quando Jeff se voltou para olhar para a criança, Jason
passou a correr por ela e lançou-se contra o pai como um pequeno tornado.
- Pare com isso! - gritava o rapaz. - Pare de lhe bater! Vá-se embora! - E
esmurrava Jeff com os seus pequenos punhos num ímpeto de raiva
protectora.
- Jay! - chamou Laurie com voz dura.
Mas era tarde demais. Jeff soltou uma imprecação selvagem e atirou
com Jason para o chão. Midge deu um grito alto e prolongado e recuou na
direcção da orla da falésia.
- Midge! - A voz de Laurie elevou-se desesperadamente. - Fica quieta!
Mas a criança estava fora de si com o medo. No momento em que Jeff se
moveu na sua direcção, ela deu mais um passo atrás. O pé deslizou-lhe na
erva escorregadia; ela agitou os braços no ar descontroladamente, tentando
manter o equilíbrio, e desapareceu para lá da beira com um grito de terror.
Durante um segundo, Laurie ficou pregada ao chão. A seguir, atirou-se
ela própria para a beira e espreitou. E lá estava Midge, agarrada ao rebordo
de um rochedo, com a saia presa num pequeno arbusto de giesta que crescia
na superfície da falésia. Parecia ilesa, embora estivesse para lá dos limites
do pavor.
Nessa altura, Jason levantou-se, abalado, mas não muito magoado.
Laurie relanceou o olhar na sua direcção e ordenou-lhe:
- Jay, corre e vai buscar ajuda - e ficou aliviada de o ver encher o peito
de ar, como que a tomar uma decisão, e obedecer-lhe. Pelo menos, ele
estaria longe de problemas. Mas agora Jeff aproximava-se com um brilho
74
louco e estranho nos olhos. Laurie sabia que tinha de o convencer, fosse
como fosse.
- Jeff - chamou ela, contendo a histeria que crescia dentro de si. - É a tua
filha lá em baixo. É a tua filha. Queres matá-la?
Jeff parou, balançando um pouco sobre os pés, com a mistura de álcool
e de fúria lutando dentro de si.
- Midge? - indagou de forma insegura. Então, também ele olhou por
sobre a beira. - Meu Deus! - Pareceu ficar sóbrio de repente. - Temos de ir
buscá-la. - Começou a avançar de novo, como se tencionasse descer atrás
dela.
Midge viu-o e gritou outra vez, agarrando-se ainda mais ao rochedo e
apertando as mãos sobre o tronco áspero do arbusto de giesta.
- Não! - gritou Laurie. - Tu não, Jeff. Ela tem pavor de ti.
Não teve tempo de ver a chicotada de consciencialização amarga no
rosto de Jeff ao aperceber-se de que a sua própria filha tinha tanto medo
dele que preferia arriscar morrer a suportar a sua proximidade.
- Eu desço... - continuou Laurie, persuasiva. - Além disso, sou mais leve
e podes segurar-me e puxar-nos às duas.
Sem esperar pela resposta dele, começou a deslizar cautelosamente pela
beira, tentando não olhar para o vertiginoso declive até à confusão de
rochas afiadas lá em baixo e do mar agitado mais além. Tufos de urze a
crescer nas fendas davam-lhe algum apoio. Por fim, o seu pé tocou na
saliência em que Midge estava agarrada. Então, Laurie parou. Se tentasse
segurar-se ao arbusto de giesta, o seu peso podia arrancá-lo da rocha, por
isso deslocou-se devagar e cautelosamente um pouco mais para baixo e
escorou. os pés numa rocha saliente. Só então estendeu os braços e abraçou
a criança aterrorizada.
- Está tudo bem - murmurou. - Estás segura agora.
Jeff, entretanto, tinha tirado o casaco e estava deitado de barriga para
baixo no topo da falésia, com o casaco pendurado para lá da beira. Não era
suficientemente comprido. Tirou a gravata e amarrou-a bem à ponta de
uma das mangas. Depois, suspendeu-o de novo. Desta vez, Laurie já lhe
conseguia chegar.
- Amarra-o à Midge de uma forma qualquer - gritou ele - que eu puxo-a
para cima.
Laurie fez o que ele lhe disse. Mas foi preciso aliciar muito Midge para
se mexer sequer quando viu Jeff a olhar para baixo para ela.
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- Tenta, querida - pediu Laurie. - O pai só está a querer ajudar-te. Por
favor, tenta trepar. Isso mesmo. Agora o outro pé. Estou mesmo aqui atrás
de ti.
Com cuidado e horrível lentidão, Laurie incitou a aterrorizada criança a
subir, milímetro a milímetro, a superfície perigosa da falésia. Devagar, Jeff
puxou Midge e por fim içou-a por cima da extremidade da falésia.
Mas, ao fazê-lo, o ressalto argiloso debaixo dele começou a esboroar-se
num sinistro rumor de pedras.
- Foge, Midge. Depressa! - gritou ele, e atirou a criança para trás antes
de começar a cair em câmara lenta pela falésia abaixo.
Laurie encontrava-se encalhada abaixo dele, nem seguramente apoiada
pelo arbusto na saliência em que Midge estivera, nem ao alcance do topo.
Agachou-se ali, horrorizada, quando uma chuva de pedras soltas e seixos
de areia desabaram sobre ela. Juntamente com elas, desamparadamente
apanhado numa torrente de pedras, vinha Jeff.
- Cuidado! - gritou ele quando as pedras começaram a rolar. Laurie
estendeu-lhe uma mão no momento em que ele revolteava ao passar, e ele,
desesperado, agarrou-lhe o pulso. O choque do peso dele deu-lhe um tal
esticão na articulação do ombro que Laurie deu um berro. “Tenho o ombro
deslocado”, pensou ela. “Será que vai aguentar?” E quando uma pedra
pesada ressaltou da superfície da falésia e lhe bateu no mesmo braço
esticado, ela mal sentiu a outra dor.
Tinha fechado os olhos aquando do abanão inicial, mas depois abriu-os
de novo e deu por si a fitar a cara de Jeff. Ele estava suspenso no ar, com as
pernas a abanar desesperadamente, enquanto uma cascata de pedras
continuava a cair à sua volta. O aperto no pulso dela era a única segurança
que tinha contra a morte certa.
- Agarra-te - disse ela em voz fraca, doente de dores, incapaz de o
ajudar a ele ou a si própria por muito mais tempo.
E Jeff agarrou-se. Mas o peso do seu corpo era mais do que Laurie
conseguia suportar, e ela começou a sentir-se deslizar ligeiramente para
baixo. Em breve, seria um deslocar, e a seguir um resvalar inevitável e
ambos cairiam.
- Agarra-te - repetiu ela, tentando manter a lucidez. E olhou para baixo
de novo, bem para dentro dos olhos aterrorizados e mortiços de Jeff.
Mas estes já não estavam aterrorizados. De certa forma, quando Laurie
olhou para baixo, pareceram tornar-se límpidos e mais conscientes. Naquele
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olhar estava a consciência de tudo o que Jeff fora ou podia ter sido, do que a
sua jovem esposa podia ter sido se ele tivesse sabido como amá-la e
acarinhá-la. E naquele olhar penetrante estava a súbita percepção do perigo
que Laurie corria: Como a força do peso do seu próprio corpo estava a
arrastá-los a ambos para a destruição.
- Laurie - disse ele de forma muito calma e clara -, desculpa... - E os
dedos que agarravam o pulso dela com uma força convulsiva e desesperada
soltaram-se lentamente um a um, e ele largou-se.
Talvez a sua força, que diminuía, tivesse cedido. Talvez os dedos
apenas tivessem perdido força. Talvez todo o seu corpo encharcado em
álcool e a desintegrar-se tivesse desistido, desalentado. Nunca ninguém
saberia a verdade. Mas para Laurie, ao ver a expressão dos olhos dele, era
tudo muito claro. Jeff sabia o que estava a fazer. Tinha visto as duras
alternativas do futuro num momento único de lucidez e não fora capaz de o
suportar. Por isso, escolhera: largara-se.
- Jeff! - gritou Laurie. - Jeff! Não!
Durante segundos, ele parecera ficar suspenso no ar, de olhos postos em
Laurie, com a sua estranha e penetrante lucidez. E a seguir desaparecera,
precipitando-se, revolteando uma e outra vez até o seu corpo embater nos
rochedos lá em baixo, estatelado, de braços e pernas abertos, e totalmente
imóvel.
Laurie não conseguia vê-lo. Misericordiosamente, a vertente da falésia
tinha uma pequena protuberância antes do último declive terrível. Só via o
extremo dos rochedos e a espuma branca a saltar sobre eles, lavando-os sem
parar.
Agarrou-se ali, desamparada e a chorar, com o seu braço direito inútil
ainda a balançar à frente dela. Jeff tinha morrido. Não houvera maneira de
evitar aquela queda horrível. Mas chorou tristemente e com dolorosa pena
pelo jovem de cabelo brilhante e sorriso sedutor que outrora tanto amara.
Ainda estava agarrada ali quando os socorristas chegaram a correr, com
cordas, ganchos e macas, com Jason à frente deles.
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Antes de partir, Clem levou Laurie ao alto das colinas, sentou-a numa
rocha sob o sol fraco da Primavera e preparou-se para falar.
- Tenho saudades dos cisnes - declarou Laurie de repente. - Há tudo o
mais aqui, aves marinhas por todo o lado, mas não há cisnes. Clem sorriu.
Era a oportunidade por que esperara. Enfiou a mão no bolso, tirou de lá
qualquer coisa e pousou-lha na mão.
- A chave da caravana que está no meu pátio - explicou. - Lembras-te
dela? Bastante velha, mas tem quatro beliches e espaço para um berço de
bebé. E uma pequena zona de cozinha. - Laurie tinha os olhos pregados
nele, sem palavras. Clem riu-se ligeiramente com a expressão dela, pousou-
lhe um braço meigo à volta dos ombros e deu-lhe um abanão amoroso. -
Quanto aos pormenores práticos... - Estava decidido a ser enérgico e
objectivo, embora o olhar especado e incrédulo de Laurie o perturbasse um
pouco. - Há uma escola primária bastante boa na aldeia. Acho que o Jay e a
Midge vão gostar dela. E para o caso de tu e Penny quererem assistir a aulas
à noite ou coisa assim, há um autocarro. E eu estaria por perto se
precisassem de qualquer coisa.
- Clem... pára! - exclamou Laurie com os olhos rasos de lágrimas. Ele
parou, olhando para todo o lado menos para ela.
- E quanto a emprego, tenho a certeza de que o Stan te recebe de volta,
sem falar nos seus vários amigos lavradores, que são todos uns zeros em
contabilidade.
- Pára com isso - repetiu Laurie. - Oh, Clem - ergueu a mão e tocou-lhe o
rosto, a tremer -, não sei se eu...
- Não faz mal - retorquiu ele com rapidez. - Sem compromissos. Sei que
tens um longo caminho a percorrer ainda, mas um dia...
- É exactamente isso. - Laurie parecia perturbada e desesperadamente
franca ao mesmo tempo. - Não sei se sou capaz de...
Ele riu-se de súbito e,inesperadamente, inclinou a cabeça e beijou-a. Era
para ser um beijo leve, suave e meigo, mas transformou-se em algo
completamente diferente, longo, forte e apaixonado, e Laurie sentiu o seu
próprio desejo inesperado crescer dentro de si. Após um momento estranho
e palpitante em que o tempo parou, Clem afastou-se e olhou para ela,
sorrindo.
- Ias a dizer que não sabias se eras capaz de amar alguém, não ias? - Ela
fez que sim com a cabeça, e as lágrimas caíram-lhe como cristais de arco-íris
contra o sol. - Bem, agora já sabes.
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“Sim”, pensou ela, em pânico, “agora sei e estou cheia de medo. Sei o
que a paixão pode fazer. Já vi a paixão transformar um homem que era um
companheiro amoroso num desconhecido cruel.” Suspirou e pegou na mão
de Clem. Os dedos eram longos, extremamente sensíveis nas pontas,
delicados e fortes, e, de certa forma, incorruptíveis.
- Não é justo - sussurrou. - Neste momento, não é justo para ti. - Isso
decido eu - ripostou Clem com o sorriso cheio de certezas. - Os meus cisnes
ensinaram-me a não esperar demais nem demasiado cedo.
Laurie mirou-o com desespero.
- Mas pode demorar uma eternidade.
- Não faz mal. Posso ver-te a aprender a voar.
Ela bateu-lhe de súbito com o punho fechado no braço, como uma
criança assustada.
- Não percebes? Estou a servir-me de ti. Estou a agarrar-me à saída mais
fácil. Tenho-me apoiado vergonhosamente em ti.
- Eu preciso que se apoiem em mim. Eu amo-te, que diabo!
E quando a envolveu nos braços, ela perguntou numa voz desamparada
e chorosa:
- O que é que te hei-de fazer?
- Amar-me só um bocadinho - retorquiu Clem animadamente. - Eu
amo...
- E pegar-me na palavra. Não tens de decidir nada para já - garantiu-lhe,
ajeitando-lhe o cabelo com afagos. - Tens muito tempo. Tens a chave. Podes
ir quando quiseres. - Fechou-lhe os dedos sobre a chave e beijou-a de novo,
desta vez meiga e suavemente.
Ambos sabiam que aquilo era uma promessa feita.
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Parte IV
Pouso seguro
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- Clem! - exclamou, dirigindo-se-lhe rapidamente. - O que é que
aconteceu?
Ele abriu os olhos, incrédulo, e por instantes os seus olhos cinzentos
fixaram-se bem dentro dos dela.
- Vieste - murmurou, e depois, inesperadamente, pôs-se a rir. - Olha
para nós! - Sorriu, apontando para o braço engessado de Laurie. - Entre os
dois, quase fazíamos uma pessoa completa! - E a seguir, como se tivesse
compreendido de repente o que dissera, o riso morreu-lhe no rosto e olhou
de novo para Laurie com a mesma seriedade penetrante.
- Sim - concordou Laurie baixinho, enfrentando aquele olhar penetrante
com total segurança. - Acho que fazíamos. - Porque, ao vê-lo ali, vulnerável
e com dores, sentiu todas as suas dúvidas e ansiedades dissolverem-se
perante a necessidade que ele tinha dela. Era aqui que devia estar, ao lado
de Clem. Este encontro estava completamente correcto e nada mais tinha
qualquer significado.
- Cuidado - avisou Clem. - Sempre soube que tinhas um coração mole.
Um animal ferido faz despertar os teus instintos protectores. Laurie riu-se.
- Olha quem fala! - Mas depois também ficou séria, porque já sabia que
não podia permitir que esta nova sensação de enorme justeza dominasse. -
Clem - começou, e procurou às cegas a mão dele. - Eu não... Não vim para
ficar.
- Eu sei - retorquiu ele com calma. - Como é que sabes?
O sorriso dele era terno.
- Minha querida menina, a tua expressão não era exactamente a de uma
noiva radiante a vir ter com o apaixonado.
A escolha de palavras dele fê-la pestanejar. - Como... como é que eu
estava?
- Morta de medo. - Estendeu a mão e tocou-lhe o rosto. - E desgastada
pela dúvida. O que tem estado a acontecer-te?
- Isso pergunto eu! - ripostou ela.
Ele suspirou e mudou um pouco a posição da perna.
- É só uma simples fractura. Estava no barco a tentar salvar um cisne
emaranhado numa rede de plástico. O pobre animal estava aterrorizado, e
quanto mais se debatia e batia as asas, mais emaranhado ficava. Estava a
esticar-me para o soltar com a faca quando uma das asas me desequilibrou.
São muito fortes, sabes, as asas dos cisnes. Atingiu-me a perna como um
tronco e caí borda fora. Quase me afogou, o pobre animal enlouquecido.
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- Conseguiste salvá-lo?
- Ah, sim. Arranjei maneira de cortar a rede antes de mergulhar outra
vez. E a seguir agarrei-me ao barco e empurrei-me para a margem com a
perna sã. - Parou como se já tivesse dito o suficiente. E então, vendo a
expressão de Laurie, tocou-lhe o rosto de novo meigamente e pediu: - Não
fiques assim. Isto cura-se, como o teu braço. Agora, não era melhor
contares-me o que se passa nessa cabeça?
Ela observou-lhe o rosto, e a mesma consciência vívida estava presente
nos seus olhos, o mesmo anseio, o mesmo desejo e o mesmo conhecimento
de que uma crise de decisão os aguardava.
- Oh, Clem - murmurou. - Tenta compreender... - Estou à escuta -
respondeu.
Então, Laurie contou-lhe tudo o que acontecera e tudo o que a morte de
Luke Veryan e a sua oferta da casa implicavam para Rosa. Clem ouviu-a até
ao fim com paciência e calma. Quando acabou, ele afirmou:
- Laurie, antes de eu... Antes de nós decidirmos o que deve ser feito, só
queria fazer-te uma pergunta.
- Sim? - Laurie sabia qual seria a pergunta, e meia hora antes não teria
sabido como responder. Mas agora, inacreditavelmente, sabia. Levantou a
cabeça com coragem e enfrentou o olhar penetrante de Clem com uma
certeza intrépida.
- Tu amas-me?
- Amo. - A voz dela soava calma e límpida.
Ele acenou com a cabeça como se já soubesse a resposta mas quisesse
apenas confirmá-la.
- Já não tens medo disso? - Não.
- Pareces quase totalmente segura.
Ela tinha os olhos cheios de lágrimas agora.
- E estou. Não estava quando cheguei, mas logo que te vi, fiquei. -
Laurie - avisou ele reprovadoramente. - Eu avisei-te.
O sorriso dela igualava o dele e a sua alegria brotou com as lágrimas. -
Não consigo evitar. - A seguir, continuou com uma candura desesperada: -
Mas não posso abandonar a Penny e a Rosa.
Claro que não podes. -E há os meus filhos. - Não sejas tonta. É como se
já fossem meus. - Mas...
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Ele interrompeu-a com um beijo. Foi um movimento meigo, consolador,
mas com um toque de desejo escondido que não passou despercebido a
Laurie.
- Pára de te apoquentares - aconselhou. - Arranjamos uma solução. Já fiz
alguma coisa nesse sentido. Vê ali na minha secretária. Há aí uma carta de
um homem do Wildlife Trust com quem falei. Querem que eu monte mais
santuários de vida selvagem em Devon e na Cornualha.
Desnorteada, Laurie dirigiu-se à secretária e encontrou a carta. Leu-a
toda devagar, depois reparou na data. Fora escrita pouco após o regresso de
Clem da Cornualha. Devia tê-la na secretária há várias semanas.
- Clem, respondeste-lhe? - Não. Estava à tua espera. - Mas eu podia não
ter vindo.
- Havias de vir - afirmou com tranquilidade. -'És demasiado boa para
me deixares em suspenso para sempre. - Puxou-a para si. - Vês? Nada é
insuperável. Vai levar tempo a organizar, claro. Vou ter de andar de cá para
lá um pouco. Mas temos tempo, não temos? Todo o tempo do Mundo... - Ela
fez que sim com a cabeça, incapaz de falar. - Eh! - exclamou ele. - Devias
estar rejubilante.
- E estou - respondeu ela, e, sem forças, permitiu que Clem lhe limpasse
as lágrimas dos olhos.
- Sol a brilhar e cabriolas - disse ele de forma obscura, com um sorriso
retrospectivo estranho e espantosamente terno. - E, já me esquecia..., temos
de fazer a ronda antes que fique noite.
Laurie ficou um pouco alarmada. - Consegues?
- Claro. Sou um às das muletas. Sobretudo contigo para me guiar. -
Deitou a mão às leves muletas metálicas pousadas ao seu lado e ergueu-se.
Saíram juntos para a cintilante tarde primaveril. Ainda havia um brilho
de luz amarelo-pálida para oeste, enquanto por cima deles um céu claro
escurecia para uma noite cor de safira. Uma estrela brilhou por entre os
ramos entrelaçados dos salgueiros e uma fina unha de lua trepava, como
uma lâmina brilhante de foice, por detrás dos ulmeiros. Um rouxinol cantou
de amor e êxtase no ramo mais alto de um castanheiro.
- Ele tem razão - comentou Clem, olhando para cima. - Anuncia-o a toda
a gente. - E havia tal excitação de alegria na sua voz que Laurie ficou
estupefacta.
Estavam ali, lado a lado, quando houve um súbito rumor de asas sobre
a água, e os dois cisnes que Laurie tinha encontrado antes, os preferidos de
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Clem, desceram o rio ritmicamente num voo cadenciado e longo sobre as
cabeças deles. Aquilo recordou a Laurie a voz de Clem havia muito tempo,
quando se despedira dele pela primeira vez, entre as silenciosas plantaçóes
de lúpulo e pomares vazios. A liberdade não é apenas levantar voo. É saber
onde se quer aterrar e quando é tempo de regressar a casa.
As grandes aves brancas riscaram o céu numa harmonia perfeita,
parecendo dirigir-se directamente para a luz dourada do ocidente.
- Para onde vão? - perguntou Laurie, com uma estranha sensação de
perda, ao mesmo tempo que o som do seu voo se tornava mais fraco no
vento.
Clem observou-os com um olhar experiente enquanto viravam no céu
que escurecia e desenhavam um grande arco, de asas ainda a pulsar com
aquele som etéreo.
- Não vão a lado nenhum - respondeu, e havia um mundo de amor e
segurança na sua voz. - Estão a regressar a casa.
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