Vous êtes sur la page 1sur 18
MARIO DE ANDRADE E O PROJETO «PRONUNCIAS REGIONAIS DO BRASIL: Angela C. S. Rodrigues (*) RESUMO Como Diretor do Departamento de Cultura de Sito Paulo, de 1936 a 1938, € assesorado por Antenor Nascentes¢ Manuel Bandeira, Mans de Andrade fo das diferens Prd pronlasregonau asl Tallent ‘ zagao y jet0, até entéo iné- dito no Brasil, evidencia, tun lado, o dprega de Maro de-Andrade pela li. guia portuguesa viva, 10 Brasil, ¢, por outro, sua conscléncia de problema ica. da variagao lingistc Unitermos: do i; Socic uit : ac ra Unters: Foruguts do Bra Scilingitstce; VarogdoUngitie: Font Introdugiio Parte da documentacéo administrativa que restou daquilo que foi um.dia a Discoteca Pablica da Diviséo de Expans4o Cultural do De- Partamento de Cultura de Sao Paulo, dirigido por Mério de Andrade de 1936 a 1938, encontra-se atualmente espalhada por diversas repar- tigdes pdblicas municipais. Segundo Paulo Duarte, essas repartig6es tiveram a sorte de possuir funciondrios cuja "abnegada estupidez per- mitiu salvar uma pequena parte daquele outrora grande instituto paulista."(1) Talvez se deva mesmo a dedicagao ou perspicdcia de algum pru- * Prof Dr¥, de Lingua Portuguesa, do Dep. de Letras Cléssicas e Vernéculas da FFLCHAUSP. 1 DUARTE, Paulo. Mario de Andrade por ele mesma, So Paulo, EDART Livraria Editora, 1971. pp. 70-71. Rov, Inst. Est, Bras., SP, 33:17—34, 1992 w dente funciondério da antiga Discoteca a existéncia de duas caixas-ar- quivo, hoje sob guarda do Centro Cultural S40 Paulo, com documentos identificados pelo r6tulo Sociedade de Etnografia e Folclore do Depar- ‘tamento de Cultura idealizada por Mario de Andrade. Parte deles esté guardada em envelopes ou pastas, precariamente distribufdos por as- sunto ou contetido, tais como “Projeto do regimento interno da So- ciedade de Etnografia e Folclore", "Movimento da tesouraria", "Lista dos delegados correspondentes da sociedade, 1937", "Lista dos s6cios fundadores", "Estatutos da Sociedade", publicados como séparata da Revista do Arquivo Municipal do Departamento de Cultura em 1937; outros, simplesmente, foram agrupados segundo critérios estabeleci- dos pelo diligente funciondrio.(2) E 0 caso do material relativo as pesquisas sobre medicina popular, constitufdo pelas cartas e questiondrios enviados aos informantes, pelas respostas recebidas, jé numeradas e classificadas, e também por uma relagéo dos questiond4rios recusados. Trata-se do material que serviu para elaboracdo de um dos mapas que compdem os trabalhos de cartografia folclérica, cnviados ao Congresso Internacional de Fol- clore reunido em Paris, em 1937.(3) Desse conjunto de documentos, alguns atrafram particularmente Nossa atengdo. Eo caso, por exemplo: 1) do projeto (manuscrito) de um dicionério nacional de termos técnicos de Etnografia e Folclore; 2) do “quadro geral dos fonemas reconhecidos como existentes na Pro- nancia carioca", sem indicagdo do autor; 3) do texto datilografado da 23# aula do Curso de Etnografia (Cours d’Ethnologie pratique) regido durante um ano pela Professora Dina Lévi-Strauss que fora assistente no Museé de I'Homme, em Paris (4), cujo titulo € Lingiltstica; 4) e, mais especificamente, de uma nota misturada com sugestées para fu- turas pesquisas coordenadas pela Sociedade, guardadas num envelope 2 Parte do material fol publicada em: Mdrio de Andrade e a Sociedade de Emogrofia ¢ Fol- clore, no Departamento de Cultura da Prefeitura do Muniefpio de Sao Paulo, 1936-1939. Riode Je FUNARTE/instituto Nacional do Fotclore; So Paulo, Secretaria Muni: cipal de Cultura, 1983. (Col. Folciore/Meméria 2.) Duas partes compéem a publicacio: 1- Introdugio - "Mario de Andrade e o Folclore" (ensaio de Lélia Gontijo Soares); 2- Do- cumentos — Arquivo etnogrdfico, Boletins da Sociedade de Etnografia e Folclore, Esta- {ustos da Sociedade, Noticiério: Congresso Internacional de Folelore — a ariipasfo da Sociedade. Na Introducfo, Lélla Gontijo Soares fala em: 1) 5 (cinco) mapas relatives a dangas populares e suns variates fonétles: a congada,o calapé, o cururs ou caruru, 0 ‘samba ou batuque, o catereté ou catira; 2) mapas relatives a proibicdes alimentares, 0. (ato € que apenas 5 mapas foram apresentados no Congreso de Lingua Nacional Cantada (¥.nota 3) compondo 0 grupo de mapas alternatives: Ill, IV, V, VI, VIL. 3" Como vérias dos mapas con feccionadas versassem variasdes lingiisticas de nomes de dan- a5 po) foram eles apresentadas também ao Congresso da Lingua Nacional Canta- da". Trata-se do 2° Grupo de mapas, os de ndmeros Ill, IV, V, Vie Vil, tipo chamado “alternativo pela equipe de pesquisadores (Anais, 1938, pp. 169-178). 4 FROTA, Lélia Coelho. Mério de Andrade: uma vocaco de escritor pilblico. In: Mario de Andrade: carias de trabalho, ‘Cones pondéacia com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1945), Brasfila SPHAN/Pr6-Meméria, 1981. pp. 21-37. 8 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 33:17—34, 1992 identificado como “pesquisas a fazer"; "concomitantemente fazer uma pesquisa filolégica a respeito da linguagem popular da regio, de acor- do com indicagdes anexas." Nao h4 informagoes exatas a respeito da pesquisa espectfica a que se refere o autor da nota, muito menos sobre as "indicagdes anexas" por cle sugeridas. A existéncia entre os documentos da Sociedade de Etnografia e Folclore de material relativo a problemas de Lingiifstica em geral € aspectos do Portugués no Brasil néo é ocasional ou fortuita, mas vem. confirmar o continuo interesse de Mério de Andrade, Chefe do Depar- tamento de Cultura e responsdvel pela organizagao daquela sociedade, pela variedade brasileira da lingua portuguesa. Tal interesse, j4 denun- ciado, em 1922, no “Prefécio Interessantfssimo" 4 sua coleténea de poemas Pauticéia Desvairada,S) evidencia-se, de mancira inequ{voca, no decorrer dos anos de 1924 a 1929, quando organizou, metodica- mente, farto material(6) com vistas 4 elaboragao da Gramatiquinha da fala brasileira.(7) A testado Departamento de Cultura, teve oportunidade de definir, com seus companheiros, uma verdadeira polftica cultural a nortear os trabalhos daquela instituigéo; a criagio de uma Sociedade de Etno- grafia e Folclore se insere no quadro de suas realizagdes que objeti- varam envolver todo o universo da producao cultural brasileira, e 0 estudo da lingua portuguesa falada no Brasil ocupa lugar privilegiado nesse conjunto de preocupagées. Foi exatamente nessa €poca que Mario da Andrade juntou ao ma- terial destinado a organizagéo da Gramatiquinha textos avulsos, entre 0s quais "cinco folhas datilografadas, grampeadas ¢ intituladas Inquéri- to Geral Etnogrdfico — Formulario de pesquisas Folcléricas; quatro folhas soltas datilografadas e intituladas Gramatiquinha — Congresso da Lingua Nacional Cantada; trés folhas soltas, datilografadas e inti- tuladas Unia nova Instituigdo Cientifica — a Fonética Experimental.(8) Todo esse material confirma o interesse de Mario de Andrade pela fala viva, pela realizagao oral enquanto fonte de dados caracterizado- 5 "A lingua brasiira ¢ das mas rcas esonoras!E posto admirabilssin 30" !* Prono- mes? Escevo braiiro. Se uso onogufia porygiesa ¢ porque ndo glerando 0 d4-me uma onogafid' .(ANDRADE, Mério de. Poesias completas, 4¥ed, Sko Paulo, Mar- tins, 1974. pp. 22 28). 6 PINTO, Edith Pimentel, A Gramatiquinha. Texo ¢ contexto. FFLCH/USP, 1982. (ese de Livre-Docéncia), 7 "Historicamente, pois, a génese da Gramatiquinha remonta a 1922; sua idealizagfo, em termos ainda tmpreccn seo pertodo que vai de entéo a 1925, 1926, quando jé ae desen- voha allidaes de propangho pesto, de colts do dados e redagio de textos; ¢ sua concepetio final, ao triénio de 1927-1929, quando foi trabalhada em moldes aproximada- mente gramaticais”. (PINTO, Edith Pimentel, op. cit, p.29). 8 Idem, ib, p. 29. Rav. Inst, Est Bras,, SP, 33:17—34, 1992 “19 res do portugués do Brasil, Nao Ihe interessa apenas a lingua enquanto abstragdo, conjunto de formas ideais e sistemdticas sujeito a observa- cdo do lingilista teérico. Importa-Ihe muito a lingua enquanto ati dade produtiva, fendmeno concreto efetivamente realizado por falan- tes membros e criadores de diferentes comunidades num dado espago geografico, num dado momento hist6rico. Interessa-lhe a diversidade das falas concretas. Em outras palavras, Mario de Andrade concentra Sua atencao nos usudrios e nos usos da Ifngua, isto 6, valoriza o emis- Sor, 0 receptor € a variacao lingiilstica. Posteriormente, no infcio da década de quarenta, tais idéias so reiteradas nos trabalhos publicados em O empathador de passarinho, mais especificamente em "A lingua radiof6nica", "A lingua viva"e 0 "O. baile dos pronomes". Confirma-se, ent4o, seu empenho no estudo da modalidade oral do portugués do Brasil, documentado também em sua vaslissima correspondéncia: ele sabe que é na I{ngua efetivamente utili- zada por falantes brasileiros que se irdo buscar os elementos identifi- cadores de uma norma brasileira. O "Arquivo da palavra" e o Projeto " Prondncias regionais do Brasil” Norteados por esse principio, Mario de Andrade e seus companhei- tos definem os objetivos da Divisio de Expansao Cultural do Depar- tamento de Cultura. No tocante a I{ngua, Propunham-se organizar e manter um servigo de gravagées de discos ou de registros sonoros, de que fazia parte 0 Arquivo da palavra, subdividido em dois ramos: 0 registro das vozes dos homens ilustres do Brasil e os registros desti- nados especificamente aos estudos de Fonética. Parece que o plano inicial para gravacao do testemunho de falantes cultos ou brasileiros ilustres era muito amplo, devendo abranger a gra- vacio de vozes de, pelo menos, trinta e quatro pessoas; na realidade foram gravadas apenas as vozes de Rubens do Amaral, Camargo Guar- nieri, Souza Lima, Dulcina de Morais, Lasar Segall e José Alcantara Machado de Oliveira.(9) 9 Asnoticias sobrea gravacio do testemunho de pessoas ilustres do Brasil foram obtidas em BARONCELLI, Nileéia C. da Sitva. Hisiéria da Discoteca Publica Nacional (em vias de Bublicagéo) A pesquisadora do Centro Cultural Sfo Paulo também informa que a docu- fo arquivada sugere que estava prevista a gravaclo de vozes de: Alctintara Macha- doe Paulo Prado, escritores; Guilherme de Almeida ¢ Cassiano Ricardo, poelas; Tarsila do Amaral e Candido Portinari, pintores; Jdlio de Mesquita Filho e Rubens do Amaral, Jornalistas; Jofo de Souza Lima ¢ Antonieta Ridge, virtuoscs; Camargo Guarnieri e Joo ‘Gomes Jdnior, compositores; Maria da Gléria Capote Valente ¢ Candidode Arruda Bote- tho, cantores; Anhaia Mello e Jaime da Sitva Telies, arquitetos; Vitor Brecheret e Lasar Segall, escultores; Henrique Bayma e Cirilo Jr., deputados estaduais; Tomds Lessa ¢ Abraio Ribeiro, vereadores; Procdplo Ferreira e Dulcina de Morais, atores; Armando de Salles Oliveira e Fabio da Siiva Prado, governador do Estado e prefeito da cidade; Odu- valdo Viana, teatrélogo; Almeida Jdnior, educador; Dom Duarte Leopoldo ¢ Silva e Frei Lus de Sant‘Anna, sacerdotes ilustres; Valdemar Martins Ferreira, advogado; Dr. Ayres Netto, médico; Laclo Martins Rodrigues, engenheiro e Reynaldo Porchat. 2 Rev. Inst. Est Bras., SP, 33:17—34, 1992 Entretanto sdo os registros destinados aos estudos de fonética que, de fato, confirmam a preocupacao de Mério de Andrade pela caracte- Tizagdo da Ifngua falada no Brasil. Assessorado por Antenor Nascentes e Manuel Bandeira, foi ele respons4vel pela organizagéo de um mate- tial que deveria servir para estudo das prondncias regionais do Brasil. Encontram-se nos liis do Primeiro Congresso da Lingua Nacional Cantada informagées preciosas a respeito desse projeto inédito no Brasil: a fixagio em disco da prondncia de dois informantes alfabeti- zados, um cuito e um incuito, de cada uma das sete regides ou zonas fonéticas em que se considerou dividido o Brasil, com vistas a um es- tudo comparativo exato das dicgSes dessas regides.(10) Trata-se da série de discos AP 1 a 12 e AP 17-18 da Discoteca Pablica Municipal do Departamento de Cultura, gravados em 78 rpm, abaixo relaciona- dos. Disco No. Informante Parte(face) Conteddo APO nortistaculto 1? texto padrio 80.455-1 2 PNe AM AP 10 nortista 1» texto padrao inculto 80.464-1 . 2 PNe AM AP7 80.444 nordestino 1? texto padrao . culto 80.445 2 - PNe AM AP8 80.461-1 nordestino Ww texto padrio: inculto 2 PNe AM AP1 80.456(1) baianoculto 18 texto padrio 80.457 (1) 2 PNe AM AP2 80.487 baiano 12 texto padrao inculto 80.488 2 PNe AM AP3 80.440 cariocaculto 1? texto padréo 80.441 23 PNe AM bre Mérrio de Andrade "Prondncias do Bra- 10 TP tomm eallidas ex Anas Bee Primero ‘Congreso de Lingu Notional’ Canada “ongresso pp.179-186, Na noticia sobre o Congresso publicada em D: Casnurro, n° 15, ano 1, 19 de ‘Beosto de 1937 (PINTO, Edith Pimentel, Apéndice, pp. 32-37), diz Marlode Andrade que a DiscotecaPdbile apresentou uma colegio de dezscisdiscosd prondncia culta¢ incul- ta das olto regibes fonéticas do Brasil (gritos nossos). No relat6rio publicado nos naishé Tefertnclas a sete discos que, alids, correspondem ao material hoje arquWvado no Centro Cultural Sao Paulo. Rav. Inst. Est. Bras., SP, 33:17—94, 1992 24 AP4 80.442 carioca 1e texto padréo inculto 80.443, 28 PNe AM AP 17 2-BYX paulista A texto padraéo 3521 (1) culto BYX B PNe AM 3522 (2) . AP 18 BYX paulista A texto padrao 3563 (1) inculto BYX B PNe AM 3564 (2) APS 80.450(1) mineiroculto 18 texto padraéo 80.451 2 PNe AM AP6 80.467-1 mineiro Bt texto padréo inculto . 2 PNe AM AP 11 80.452-1 rio-granden- 18 texto padrao, se do sul culto 80.453-1 2 PNe AM AP 12 80.465-1 rio-grandense 1? texto padréo do sul inculto 80.466-1 2 PNe AM Desse conjunto de quatorze discos, apenas sete foram definitiva- mente prensados e trazem selos da Discoteca, com legenda informa- tiva, e encontram-se na Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultu- ral Sao Paulo. Séo eles: AP 1, AP 2, AP 3, AP 4, AP 5, AP 17, AP 18, Dos demais, apenas estAo arquivadas as provas de AP 9 (12 parte), AP 10 (28 parte), AP 7, AP 8 (12 parte), AP 6 (1 parte), AP 11 e AP 12. As demais gravagoes extraviaram-se. As gravagOes foram feitas pela RCA Victor Brasileira Inc. (AP 1-12) e pela Columbia Phonograph Co. Inc, (AP 17-18).(11) Manuel Bandeira, que, entre outras atribuigdes, recebeu a de rela- lar a pesquisa aos participantes do Primeiro Congresso da Lingua Nacional Cantada, esclarece que os trabalhos de registro dessa série, com excegdo dos discos que representam a prontincia paulista, foram 11 Os ndimeros correspondentes a cada uma das fa0es dos discos foram prensados pelas res- pectlvas gravadoraa. 2 Fev. Inst. Est. Bras., SP, 33:17—-34, 1992 feitos no Rio de Janeiro. Presume-se, entio, que a gravagdo do depoi- mento dos paulistas tenha sido feita em Séo: Paulo mesmo, pois, na- quela época, apenas Sao Paulo e Rio dispunham de estidios de gra- vagio. Alids, esta foi uma das razSes de ordem pratica que impediram a realizagdo das gravagGes na prépria regio de origem dos informan- tes. Outra razAo seria a dificuldade de transporte do aparelho gravador da Discoteca para cada zona, o que demandaria recursos dispendiosos um tempo enorme,-de que ndo se dispunha na ocasiao. "Assim a difi- culdade foi costeada com a escotha da capital do pats, ponto de afluéncia de individuos de todos os Estados, para centro dos trabathos, pois que 1d Seriam encontradas com relativa facilidade, pessoas recém-chegadas das vdrias zonas em questdo™.(12) As diversas prondncias regionais foram representadas pelos seguin- tes informantes: ” NORTISTA CULTO (Paraense): 45 anos. Formado em Di- reito. Deputado Federal. Natural de Belém. Pais e avés natu- rais de Belém. S6 deixou o Pard em viagens de recreio (Rio, Europa) e para os trabathos da Camara Federal. NORTISTA INCULTO (Paraense): 24 anos. Natural de Be- lém. Pais e avés do Pard, com excegéo do avé materno, que era alemao. NORDESTINO CULTO (Pernambucano): 29 anos. Pintor. Natural do Recife. Foi aluno de Arquitetura da Escola de Belas Artes, ndo tendo conclutdo o curso. Pais e avés do Recife. Tem vivido entre o Rio eo Recife, e nesta ultima cidade passou os iiltimos seis anos. Esteve em Sao Paulo a passeio. NORDESTINO INCULTO (Pernambucano): 27 anos. Na- tural do Recife. Esté no Rio hd 2 anos. Miisico dos Fuzileiros Navais. Pai, baiano. Mae pernambucana. Av6s, baianos. BAIANO CULTO: 30 anos. Natural de Santo Amaro (Bahia). Esté no Rio hd 4 anos. Jornalista. Pais e avés, baianos. BAIANO INCULTO: Nascido na Bahia (capital). Esté hd ano e meio no Rio. Pai e mae naturais do Estado da Bahia. Avé6s italianos. CARIOCA CULTO: 51 anos. Formado em Direito. Professor de portugués no Colégio Dom Pedro II. Pais, cariocas. Avés paternos naturais de Itaguat. Avé materno, alemao. Avé ma- terna, rio-grandense do sul. S6 se ausentou do Rio para férias de recreio (toda a costa do Brasil, reptiblicas sul-americanas, Estados Unidos, Europa, Palestina, Egito). CARIOCA INCULTO: 50 anos. “ Chauffer'. Nunca saiu do Rio. Pai baiano. Mae carioca. Avé materna, carioca. PAULISTA CULTO: 34 anos. Natural de Campinas. Advo- gado. Pais, campineiros. Avés paternos, portugueses. Avds 12 Anais do Primeiro Congresso da Lingua Nacional Cantada. Sho Paulo, Prefeitura do Mu- nic{pio de Sho Paulo, Dep. de Cultura, 1938, Rev. Inst. Est. Bras., SP, 33:17—34, 1992 23 maternos, campineiros. Além das viagens ao Rio de Janeiro, interior de Sdo Paulo e litoral, esteve a passeio em diversos patses da Europa (Franga, Inglaterra, Alemanha, Italia, Sutga, etc.) PAULISTA INCULTO: 46 anos. Natural de Santo Amaro (S. Paulo). Bedel da Faculdade de Direito. Pais e avés maternos, paulistas (Santo Amaro). Avés paternos, paulistas. Reside na Capital hé vinte anos, tendo antes morado em Santo Amaro. Nunca se ausentou deste munictpio. MINEIRO CULTO: 46 anos. Formado em Direito. Deputado Federal. Natural de Barbacena onde sempre viveu, desconta- das as auséncias para os trabalhos da Camara Federal e da Camara Estadual. Esteve em Sao Paulo de passagem. Pais e avds de Barbacena. MINEIRO INCULTO: 21 anos. Estd hd dois anos e meio no Rio, Misico dos Fuzileiros Navais. Natural de Ponte Nova. A imide, italiana, veio para o Brasil com um ano. Pai, de Ponte Nova. Avés paternos, mineiros. Avés maternos, italianos. RIO-GRANDENSE DO SUL CULTO: 37 anos. Natural da cidade do Rio Grande. Pai, italiano (Cremona). Mae rio-gran- dense. Avds paternos e maternos, italianos. Estd hd dois anos no Rio. Esteve em Sdo Paulo de passagem. RIO-GRANDENSE DO SUL INCULTO: 21 anos. Natural de Pelotas, Esté hd 3 anos no Rio. Mitsico dos Fuzileiros Navais. Pais e avés do Rio Grande do Sul." A lista dos informantes mostra que o Brasil foi dividido em sete zonas fonéticas: Norte (representada por falantes paraenses), Nor- deste (representada por pernambucanos), Bahia, Distrito Federal (Rio de Janeiro), S40 Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A primeira tarefa dos individuos escothidos consistiu na leitura de um texto elaborado por Manuel Bandeira. Por isso, foi descartada a participagéo do informante anaifabeto, pois “o analfabeto precisaria decorar o texto-padrdo, e fatalmente lhe daria por isso uma timbragao e um ritmo artificiais, como 0 fazem todos os individuos incultos cont os textos decorados. Além disso, sendo o texto-padrdo de dificil memorizagdo por se compor de frases soltas, sem seguimento légico 0 caso com- Plicaria ainda mais".(13) A segunda tarefa consistiu na recitagao do Padre Nosso e da Ave Maria. Os pesquisadores demonstraram-se conscientes que fatores si- tuacionais poderiam, eventualmente, influir na dicgio dos falantes, tais como: o ambiente do estidio de gravagao, o uso de microfone ea 13 Idem, p. 181. 24 Rev. Inst. Est. Beas., SP, $3:17—-34, 1992 propria forma escrita, entendida como possfvel elemento condiciona- dor de determinadas realizag6es fonéticas. Por isso acharam conve- niente "registrar algo que permitisse uma dicgao espontanea que todos soubessem de cor. Na falta de outro texto de domtnio geral, recorreu-se a textos religiosos, recaindo a escolha sobre o Padre-Nosso e a Ave-Ma- ria™.(14) Mario de Andrade, ao passar para Manuel Bandeira a incumbéncia de elaborar o texto padrdo, enfatizou a idéia de que ele deveria "ser bem simples, bem popular e durar de dois a cinco minutos".(15) Po- deria ser composto de frases soltas. O fildlogo Antenor Nascentes, autoridade em fonética no seu tem- Po, professor catedrdtico de Portugués do Colégio Pedro II forneceu “uma lista dos fonemas cuja pronunciagdo lhe parecia mais relevante apurar. Sao eles: (a) vogais proténicas; (b) hiatos; (c) L velar; (d) r consoante surda; _ (e) r final; (f) 5 consoante surda; (g) s consoante sonora; (h) s final; (i) z final; G) th; (k) nh; (1) grupos consonantais".(16) Além desses fonemas, Manuel Bandeira achou conyeniente obser- var a realizagdo de outros mais, a partir, ndo s6 das sugestdes do Prof. Souza da Silveira e de Mério de Andrade, mas também de sua prop! experiéncia, Sdo eles: "lia em fanitlia; ei em inteiro, manteiga, beiji, teimou; 0 t6- nico em Anténio, homem; nio em Antonio; x em prdxinio; uma; ruim; luas; j ent juiz, jejum; por preposigdo; nao dtono em Nao sei ndo; mais; qu em questdo; oi em oito; oitocentos e oitenta; 0 numeral 2; ou ent afrouxe; e em feche; i em assem= biéia; muito; eis em améveis e admirdveis; a craseado; Virgem Maria; 6 em garoa; dio em radio; a e e na primeira pessoa do plural do pretérito do indicativo dos verbos da I? e 24 conju- 14 Idem, p. 182, 15 Idem, p. 182, 16 Idem, p. 182, Rov. Inst. Est. Bras., SP, 33:17—34, 1992 3 gagdo (falamos, tiveros); ai ent caitas; ou em lavouras; ai ent Jaime; influéncia da vogal tonica sobre a proténica (esqueceu, esqueci), etc*.(17) Com base nessas sugest6es, foi organizado o texto-padr4o adiante transcrito. Os parénteses contém as letras correspondentes aos fone- mas sugeridos por Antenor Nascentes. Para ndo sobrecarregar de in- terrupg6es o texto nao foram assinalados todos os casos em que apa- recem aqueles fonemas, nem aqueles outros que Manuel Bandcira achou conveniente observar. Uma nota da Discoteca esclarece que " o texto foi escrito em ortogra- fia vulgar. Procurou-se cont isso evitar que a ortografia fonética, com seus acentos e simplificagdo de certos grupos consondnticos, viesse a influen- ciar na proniincia de alguns fonemas".(18) : Texto-padréo: “Ceardé (b), capital (a,c) Fortaleza (a,d). Rio (b) Grande do Norte, capital Natal. Elle esqueceu (f) que a luz (i) dos planetas é immovel. Que familia! Trdz-ante-hontem adquiri (b) um bilhete (j) de loteria inteiro. Perdi. O advogado {b) da companhia (k) jd deu o parecer (a). Quen: foi que disse que eu era de Pernambuco? Eu ndo sou pernam- bucano nado! O juiz (i) teimou. Vespera de Santo Antonio tomei (s) 0 bonde de Barcas (d) préximo do Quartel (c) General. Ao subir no estribo (f), esbarrei (a,g) numa mulher (i) vesga (g). No alto (c) daquele morro tem unt pau d‘arce pequeninho.(a) Acompanhe (k) sempre o menino: o principe é ruim. Olivro em que vem apontados por sua ordem os dias dos mezes com osnomes dos santos, as luas, os feriados (b), os jejuns, se chama folhi- nha (4, j). Por quanto o senhor vende o tordilho? Quem desdenha (g) quer comprar (e). O que elle contou? Nao sei nao. A pesca (f} é uma indtstria das mais rendosas. Nesta questao estou de corpo (d) e alma (c) com o meu compadre (a). Tio Pio viu que a agua do rio subiu (varios casos de b) muito. Oexcellente animal nasceu a 8 de.margo de 1882. Nao afrouxe: feche a assembléa. A porteira (a,d) apodreceu (a) muito. Enquanto (a) se mantiver 0 ensino (a) empregado (a), o collegio (a) 17 Idem, p. 184, 18 Idem, p. 183. 28 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 33:17—34, 1992 formardé homens amaveis e as vezes admirdveis (1). Virgem Maria que garoal Nos jé fallamos no radio. Tivemos exito absoluto.(t) O camondongo (a) se escondeu (f). Esqueci-me (a) de tapar (a) as 14 caixas de paina. Ludgero (1) comegou uma lavoura de feijdo. Jayme gosta de manieiga, ameixa, beijti e tapioca (b). Eu me escondi no primeiro andar (a). Néo continue".(19) O significado do projeto O tftulo da comunicagéo, apresentada por Manuel Bandeira, Pro- nuncias regionais do Brasil, € bastante sugestivo, pois esclarece, com Precisio, a perspectiva adotada por Mario de Andrade e seus assesso- res diante do problema da variagao lingijistica: no imenso territério brasileiro falam-se diferentes varicdades de portugues, cujos tragos caracter{sticos imediatamente observaveis sio de natureza fonética; cumpre ao estudioso a descrigdo desses tragos identificadores de cada uma dessas variedades diatGpicas. Trata-se, portanto, de uma nitida opgio pelo enfoque dialetoldgico, que péc em relevo a lingua falada em detrimento da lingua escrita literaria, e que vé no portugues do Brasil uma lingua matizada em variedades espaciais ou geogrdficas, isto é, variedades lingiifsticas associadas a um lugar ou regido particular, num determinado momento histérico. A diversidade de pronéncias seria indice indiscutfivel dessa realidade lingi{stica multifacetada, Nesse sentido, 0 projeto se insere numa tradigao de estudos diale- toldgicos inaugurada por Amadeu Amaral, com seu trabalho O dialero caipira (divulgado em 1916 ¢ publicado em livro em 1920), de que tam- bém fazem parte os estudos de Antenor Nascentes sobre a fala carloca €0 projeto de Candido Jucd Filho: este pretendia “ /evantar por corres- pondeéncia, tal como Paiva Boleo, em Portugal, no mesmo decénio, dados de léxico, de fonética e gramdtica, a fim de dar corpo a grande ambigdo da época: uma gramdtica e um diciondrio brasileiro da lfngua portu- guesa"'.(20) E evidente que as pretensbes de Mério de Andrade nfo se limitavam ao levantamento de dados de uma determinada regiao dia- letal; estava certo de que o estudo comparativo da lingua oral de todas as regides do Brasil poderia, com maior seguranga, levar & caracteri- zagdo da prondncia brasileira, enquanto uma das marcas identificado- ras da lingua portuguesa falada no Brasil. Trata-se, todavia, de uma postura diversa daquela que assumira nos anos em que se envolveu no projeto de elaboragdo da Gramatiquinha 19 Idem, pp. 183-184. 20 PINTO, Edith Pimentel (sel. e apres.) . do Brasil: teas crticos e tedricas. 2 — 192011945 — Fontes para a teoria ¢ a histéria. Rio de Janeiro; fo Paulo, Livros Técnicos ¢ CientificoyEDUSP, 1981: p-XIX. Rav. inst. Est, Bras., SP, 33:17—34, 1992 a (1927-1929), " como parte de um projeto mais amplo, de redescoberta e definigao do Brasil, o qual seria, nado uma consolidagdo completa e rigida dos tragos peculiares a norma brasileira, mas um discurso engajado, de implicagdes lingulsticas e estéticas".(21) Agora, menos comprometido com ideais nacionalistas, mais voltado para a fala em detrimento das cogitagées lingtiisticas gerais, abstratas, mais consciente das diferentes normas brasileiras ¢ amparado por metodologia de pesquisa fonética que se afirmava na década de 30, no Brasil, nado titubeou ao sugerir um estudo metdédico das diferentes prontncias brasileiras. Para isso, utilizou técnicas de coleta do material falado também inovadoras, j4 que pela primeira vez no Brasil se faziam gravagées em discos de amostras da I{ngua oral. De fato, tal procedimento vinha sanar alguma deficiéncia metodolégica das pesquisas até ent4o desen- volvidas no Brasil, que se baseavam, ora em observacGes impressio- nistas do préprio pesquisador, no caso de Antenor Nascentes(22), ora nas de observadores imparciais, pacientes ¢ metddicos, que se dedicas- sem a recolher elementos "ern suas regides, limitando-se estritamente ao terrreno conhecido e banindo por completo tudo quanto fosse hipotetico, i- certo, ndo verificado pessoalmente" (grifo do autor), no caso de Ama- deu Amaral.(23) As realizagées fonéticas assim observadas eram fixa- das graficamente, com utilizagéo das letras convencionais do alfabeto, procedimento até entdo corrente em trabalhos de fonética no Brasil. Assim, em 1937, Mario de Andrade pdde dispor do aparato técnico que Antenor Nascentes, em 1930, lamenta nado possuir quando desen- volveu pesquisas com vistas a fixagdo de uma pronGncia-padrao para o ensino das escolas primdrias, profissionais e normais do Rio de Janeiro.(24) Com vistas a um estudo comparativo das dicgdes das diversas zonas fonéticas, Mario de Andrade optou por outra estratégia, também iné- dita no Brasil: a definigio de um ndmero restrito de informantes, se- lecionados segundo critérios definidos a priori. Por isso, foram esco- Ihidos dois falantes de cada regido, a respeito dos quais sfo dadas in- formagées objetivas quanto a local de nascimento (naturalidade), faixa 21 Idem. A gamatiquinha... op. cit, p.39 22." Que requisitos deve preencher proponha a estudar uma variedade? Em nossa opi- iit, dere aro ur inteiamene hela 0 varedade que vai er estudada, ou und ntcbramerte alkcia as demats variedades do subdialecia. Filho de pais cariocas nas: Silo ne Dore Fd donde rapes ncoretamaspor prt ceeded ‘conseguinte na. ‘hipétese e nos cremos representantes da fala genui- tnamentecarioca® (NASCENTES Antenor. O dialao carioca en 1922, p21) 23 AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. So Paulo, HUCITECSecretaria de Cultura e Tecnologia. 1976. p. 43. 24 PINTO, Esith Pimentel, O Portugués... op. cit. p. XXX 28 Rev. Inst Est. Bras., SP, 99:17—34, 1992 etdria, grau de escolaridade (apenas dos falantes cultos), profissfo, naturalidade dos pais ¢ avés, e poss{veis afastamentos tempordrios de sua regido de origem. Todos os informantes, com excegdo dos paulistas, residiam, no momento da pesquisa, no Rio de Janeiro. Na definigdo de critérios de escolha dos informantes ressalta sua Preocupacado com os aspectos sociolingifsticos, a0 considerar as carac- terfsticas do falante e da situagdo em que se realiza a atividade verbal. Mostra-se consciente de que dados de situagéo podem provocar varia- Gao de comportamento verbal ou de registro, devida a maior ou menor tensdo na comunicagio. Por isso, ndo deixa de fazer referéncia a fa- tores que poderiam perturbar a leitura; buscou neutralizar-Ihes 0 efei- to, propondo que os informantes "recitassem* textos religiosos, que todos soubessem de cor e que se repetisse cada frase para “ confirmagdo e maior naturalidade de leitura na repeti¢do".(25) Tais preocupagbes no aparecem nas pesquisas dialetoldgicas até entdo desenvolvidas no Brasil. Antenor Nascentes, em O linguajar ca- rioca em 1922, muitas vezes se refere a existéncia de duas classes de falantes, uma culta e outra inculta;(26) Candido Juc4 Filho, na tese que desenvolveu no Congresso das Academias de Letras e Sociedade de Cultura Literéria, em 1936, observa que “os foneticistas geralmente reconhecem quatro tipos de pronincia: familiar rdpida, familiar lenta, cuidada e solene®.(27) Entretanto, ambos nao mostram maiores preo- cupagées por esclarecer tais idéias. Ao contrério, Mario de Andrade considerou relevantes os aspectos socioculturais para a escolha de seus informantes, pois fica evidente que ele percebeu ser um possfvel aspec- to questiondvel na sua pesquisa 0 fato de ndo ter gravado a fala dos individuos em suas regides de origem. Visando minimizar o efeito desse fator, buscou pessoas recém-chegadas ao Rio de Janeiro, Pproce- dentes das varias zonas em questo; partiu do pressuposto de que ainda nao havia ocorrido lapso de tempo suficiente para a perda de hdbitos articulat6rios antigos e posterior aquisi¢do de novos (cf. informante nordestino inculto, rio-grandense-do-sul culto, rio-grandense-do-sul inculto, baiano culto, baiano inculto, mineiro inculto). Tais fatos confirmam o interesse de Mario de Andrade pelo estudo das relagbes Ingua-sociedade, I{ngua-indivfduo, campo atual da Sociolingifstica e 25 Anais... op. cit, p. 184. 26 " No estudo dialeroldgico que tragarmas teremos em vista fazer da lingua do povo uma fixa- to que de furo sea aproveldvel Pouco nos ieresa a lingua das Clases culas primero porque € correcta, segundo porque Ihe falta a naturalidade, a idade da It Poptlar.Iremos ver os eos, tendar explicar a razao dé ser das moléstiax. Nao ox apadrin ‘remos embora reconhesamas que, por maior que seja a campanka contra 0 analfa tls dees bdo de implartarse na lnguager cuba fur, como nos ensin a do filologia" . (NASC! Antenor. op. cit, p. 16). 27 PINTO, Edith Pimentel. op. cit. p. XXXI. Rev, Inst. Est. Bras, SP, 33:17—34, 1992 2 da Psicolingafstica, bem como sua preocupacio por conferir as suas observagSes um cardter eminentemente cientifico, nos moldes da época, Enquanto tentativa de apresentar material suficiente para a com- posicao de um quadro geral da prondncia brasileira, sem preocupagao Por cotej4-Ia com a de Portugal, a iniciativa do Departamento de Cul- tura n&o deixa de ser renovadora. Ao mesmo tempo, é um trabalho perfeitamente inserido no seu momento, por algumas razées funda- mentais. Primeiramente, na década de 30, os estudos fonéticos constituem a grande preocupagdo dos estudiosos da Ifngua portuguesa no Brasil, quase sempre interessados em fixar uma prondncia padréo com fins pedagégicos.(28) Evidentemente, ta! preocupacdo imediatista ndo trans. parece na empresa de Mario de Andrade, sempre interessado pelos aspectos da fala brasileira, como atestam os documentos relativos a Fonética e Pros6dia, separados para uma possivel elaborago da Gra- matiquinha,e anexados justamente na década de 30. Ao mesmo tempo, Preocupa-se em "Jevantar os tracos tlpicos de outros dialetos sociais", ao organizar um Questiondrio lngua, cuja aplicagao explicita: “As observagées e pesquisas sobre a lingua nacional ndo de- vem Ser feitas exclusivamente entre pessoas das classes prole- tdrias, entre analfabetos e pessoas rurais. Deve estender-se a todas as classes, até mesmo aos cultos, mas sempre na sua linguagem desleixadamente espontanea e natural. As obser- vagdes 36 ndo devem se estender aos individuos que timbram em falar certo. Ou melhor: tem maior importancia em verificar € apontar as regras e casos em que mesmo estas pessoas" cul- teranistas“, por desatencdo momentdnea pecam contra o por- tugués de Portugal ou das gramdticas. 5-F *.(29) Em segundo lugar, o estudo sobre as prondncias do Brasil contém a sugestéo de Mario de Andrade para uma possfvel demarcagdo das 4reas dialetais no Brasil a partir de dados do presente. Ainda que a metodologia de pesquisa adotada por ele denuncie preocupagdo por conferir ao seu trabalho um cunho cientifico, revelado, com maior cla- Teza, em suas pesquisas de folclore, (30) no plano dos estudos diale- tolégicos nfo deixa de ser uma contribuigdo de cunho aprioristico, como foi toda a década de 30.(31) 28 Idem, ib. pp. XXVIL-XXXXIL 29 Idem. A Gramatiquinha... op. cit, p. 111. 30 Cf. em Anais comunicago " Mapas folcléricos das variag6es lingOsticas, sob a respon- sabilidade da Sociedade de Btnografia e Folciore, Divialo de Expanako Cultural do-De. partamento de Cultura’, pp. 171-178, 31 PINTO, Edith Pimentel. O Pornugues...op. cit, p. XX! 30 Rav, Inst. Est. Bras., SP, 33:17—34, 1992. Assessorado por Antenor Nascentes, era de se esperar que Mario de Andrade levasse em conta a sua proposta de divisSo do Brasil em zonas dialetais. Em 1922, consciente dos poucos dados que disp6e, o estudioso do dialeto carioca acha possivel reconhecer uma grande di- visio do Brasil em regi6es norte e sul: norte até a Bahia e sul daf para baixo; prop6e ainda uma provavel subdivisdo em quatro subdialetos: o nortista (Amazonas, Par4, litoral dos estados desde o Maranhéo até a Bahia), o fluminense (Espfrito Santo, Rio de Janeiro, sul de Minas Gerais e Zona da Mata, Distrito Federal), 0 sertanejo (Mato Grosso, Goids, norte de Minas, sertéo dos estados litoréneos desde o Mara- nhdo até a Bahia) € o sulista (S40 Paulo, Paran4, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Triangulo Mineiro).(32) Em 1933, em O Idioma Nacional, v.IV, ele apresenta um mapa dialetolégico do Bi em que a grande regio norte, sugerida em 1922, aparece subdividida em: norte (Amazonas e Par4) e nordeste, coincidindo com o litoral dos estados nordestinos do Maranhio até o sul da Bahia, donde a existéncia de cinco zonas dialetais no Brasil: norte, nordeste, fluminense, sul e sertao. A proposta de Mério de Andrade ndo coincide com a de Antenor Nascentes, pois sugere a existéncia de sete diferentes falares, corres- pondentes a sete zonas fonéticas caracterizadas por prondncias tfpicas: nortista, nordestino, baiano, carioca, paulista, mineiro e rio-granden- se-do-sul. E ele nfio nos dé qualquer informag&o a respeito dos crité- rios adotados para tal divisio, em que, evidentemente, € dado relevo especial as zonas correspondentes a So Paulo e Rio Grande do Sul nenhuma referéncia se faz a zona rotulada de sertfo por Antenor Nascentes. Ndo seria dificil relacionar essas zonas com as que o "turista apren- diz" Mério de Andrade de fato péde conhecer, com seguranga, em suas viagens pelo Brasil. Se elas constitufram experiéncia fundamental para sua "verificacdo da inteligéncia nacional ,(33) por que nao o teriam sido para a verificagao in loco das diferentes prondncias do Portugués do Brasil? Aliés, estaria ele usando o mesmo argumento invocado por Antenor Nascentes que, ao sugerir, em 1953, a existéncia de seus sub- falares no Brasil: 0 amazOnico, 0 nordestino (sub falares do norte), 0 baiano, o fluminense, o mineiro e o sulista, esclarece que naquele 32 NASCENTES, Antenor. op. cit, pp. 20-21. 33 "Essa "desooberta do Brasil", de que so marcos as suas viogens enogrdficas de 1927, 1928 e 1929, precedidas pelas de 1919 ¢ 1924-8 Minas Gerais, constituem experiéacia bdsica para a gua reverificaglo da inteligéncia nacional. Conhecedor seguro dss manifes- taco musicais populares regionsis mals importantes do pals, Mério também acompa- nnhava atentamente as tages da cultura material procedentes de diversos comtex- tos sociais brasileiroe, de economia pré-industrial” (ROTA, Lélia Coelho. Mario de “Andrade una vocal de exeitor pablo In ‘Mérlo de Andrade: cartas de trabalho, Cor- respondéncia com ‘Mello Francode Andrade (1936-1945). Brasilia, SPHAN/Pré- Meméria, 1981, pp.21-37). : Rev. Inst. Est. Bras., SP, 39:17—34, 1992 at momento ele ja teria realizado seu desejo de percorrer todo o Brasil, do Oiapoc ao Chuf, o que ihe dava condig6es para propor uma nova divisdo, talvez mais préxima da verdade.(34) Pergunta-se, entdo, se Mario de Andrade teria, nos dados fixados em disco, material suficiente " para um estudo comparativo exato (grifo nosso) das dicgdes das diversas regides" do Brasil, que viesssem com- provar a validade da sua proposta de diviséo do Brasil em sete zonas fonéticas. Eevidente que ele se fundamenta numa premissa bdsica para os dia- let6logos: a variavel ou as varidveis sob andlise sfo especificadas pre- viamente, localizadas geograficamente e ndo existe qualquer diivida quanto a sua existéncia no espago considerado. Além disso, pressu- pGe-se que o grupo a que pertence o informante seja razoavelmente homogéneo (no caso da pesquisa em pauta, os grupos cuito e inculto) e que a escolha desses informantes ffpicos (grifo nosso) €, como de fato foi, ditada em parte pela conveniéncia, em parte pelos habitos de tra- balho, em parte pela sua vontade de fazer gravagdes.(35) Explica-se, dessa maneira, 0 némero restrito de informantes j4 que, em princfpio, so eles considerados legftimos representantes da fala de sua regido. Pode-se questionar, entretanto, o grau de representatividade de alguns informantes ideais, ou tipicos, escolhidos pelos pesquisadores, quer por pertencerem a grupos et4rios diferentes, quer pelo fato deles jase encontrarem afastados hé algum tempo de suas regi6es de origem. Referimo-nos especificamente aos falantes incultos carioca e sul-rio- grandense de 21 anos de idade, residentes ha mais de dois anos e meio no Rio de Janeiro. Teriam eles conservado os mesmos habitos fonéti- cos de infancia adquiridos em suas regides de origem? Seriam eles tio fepresentativos quanto os outros informantes incultos de diversa faixa etéria, como é 0 caso do carioca e do paulista com, respectivamente, 50 e 46 anos de idade, que nunca se afastaram da terra natal? Pensamos que a heterogeneidade do restrito grupo de informantes fatalmente comprometeria os dados obtidos, que, por isso, néo viriam contribuir para um estudo comparativo exato das dicgdes regionais do Brasil. Questiona-se também o némero de informantes: um Gnico falante de cada faixa s6cio-econdmica seria insuficiente para proporcionar a quantidade de dados necessérios para a caracterizacéo da variedade de fala da regido, principalmente quando se leva em conta o fato de que no seriam, efetivamente, dados da lingua falada enquanto realizagso verbal concreta, no seio de uma comunidade lingiifstica. Trata-se, na realidade, de um tipo de lingua oral de “segunda m4o", observavel na leitura do escrito, aquela que 0 falante elabora a partir do escrito e 34 NASCENTES, Antenor, op. cit, p. 24 35 LABOV, Willlam. Estégios na aq do Inglés Standard. In: Fonseca, M. Stella ¢ ‘Neves, Moema F. (orgs.) Soclainguiates, Rio de Janeiro, Eldorado, 1974. p. 51. a2 Rev, inst. Est, Bras, SP, 39:17—34, 1992 aprendida na escola, e, por isso, totalmente diferente daquela que Ihe pertence pela aprendizagem na comunidade. A escola Ihe proporciona um modelo de realizagdo oral até certo ponto artificial, que nfo coin- cide com aquela aprendida espontaneamente pelo exercfcio da elabo- rag4o constante de atos de fala. As caracterfsticas intrinsecas do texto elaborado por Manuel Ban- deira muito contribufram para o artificialismo das realizagdes fonéti- cas observadas nas gravagGes: trata-se de uma série de frases soltas, auténomas quanto ao seu conteddo, descontextualizadas e artificial- mente construfdas com vistas a proporcionar ao informante oportu- nidade de realizagio de diferentes fonemas, escolhidos, em principio, por se realizarem de maneira diversa, no Brasil. Evidentemente, os pesquisadores partem do pressuposto de que o falante adquire, em suas regides de origem, um determinado feixe de habitos articulaté- tios, que individualizam sua fala, em contraste com a de outras zonas dialetais, ¢ que se manterdo inalterados no decorrer de sua vida, Para eles, esses habitos articulatérios podem ser perfeitamente verificados Ginica e exclusivamente na leitura de frases rigidamente organizadas de acordo com as regras prescritivas convencionalizadas para a escrita, como se ndo houvesse diferencas de grau de formalismo entre 0 estilo informal ou casual da fala cotidiana e o formal da escrita, claramente evidenciado pelo texto em questdo, donde as diferengas de elocugéo. Ndo queremos com isso dizer que a leitura nfo possa ser uma das Bosstveis estratégias utilizadas para o estudo de variveis fonoldgicas. © que nos mostra Labov nos seus estudos sobre a estratificagiio do Inglés em Nova York, quando observa que: 1) as cinco variaveis fono- l6gicas por ele escolhidas alternavam-se de maneira regular em fungio do estilo e do contexto; 2) o maior problema para o pesquisador é con- trolar os diversos contextos ¢ definir os estilos de discurso que apare-, cem em cada um deles.(36) A leitura € um dos contextos (contexto C) por ele sugeridos. Nas suas consideragées sobre os diferentes estilos contextuais, Labov refere-se a situagdo de entrevista (contexto B) e a leitura (con- texto C), enquanto duas etapas de coleta de dados em suas pesquisas em Nova York. Diz ele que decorrida uma parte significativa da entre- vista, o informante era convidado a ler dois textos-padrfo: um concen- trava em pardgrafos sucessivos as varidveis fonolégicas, outro apresen- tava pares minimos das variantes justapostos. Os entrevistadores su- geritam que os textos, redigidos em estilo coloquial, fossem lidos com relativa rapidez, visando a obten¢4o de um fluxo de fala o mais regular € continuo poss{vel. Isto reduziria ao minimo as diferengas de realiza- 40, comparadas as ocorréncias dos dois contextos. Labov também Ie- vou em conta o contetido dos textos, que versavam sobre dois temas 36 Idem, Sociolinguistique. Tradult pat Alain Kihm. Les Editions de Minuit, 1976 pp. 138 € segs. Rav. Inst. Est. Bras., SP, 33:17—34, 1992 3 com que os informantes facilmente se identificaram: a revolta tradi- cional do adolescente contra as press6es do mundo dos adultos ¢ sua exasperagdo diante dos caprichos ¢ incoeréncias das garotas com quem safam.(37) Confirma-se, assim, a validade do uso da leitura enquanto estraté- gia para 0 estudo de varidveis fonoldgicas. De novo se evidencia a in- tuigdo do pesquisador Mario de Andrade que, ao empreender a coleta de dados para a caracterizag¢do das prondncias brasileiras, se sentiu seguro para utilizar uma técnica até entdo desconhecida no Brasil ¢ cuja validade os estudos sociolingiifsticos posteriores vieram confir- mar. A possfvel deficiéncia de seu empreendimento est4, sobretudo, no fato de ter considerado a leitura como estratégia Gnica ¢ suficiente para a caracterizagao de variantes fonéticas, sem qualquer apelo ao contexto enquanto fator de variagao lingiifstica. E Mario de Andrade tinha consciéncia disso, como posteriormente veio a confirmar em seus escritos de O empathador de passarinho. Além disso, embora as frases escolhidas contivessem os fonemas Cuja realizagdo Mario de Andrade pretendia verificar, a propria estru- tura do texto enquanto somatéria de frases autnomas, cujo contetido fragmentado ndo se relacionava diretamente as experiéncias de cada informante, ndo constituiu fator favordvel a obtengdo de um fluxo o mais regular € contfnuo possfvel, como sugere Labov. Por isso tudo, 0 artificialismo das realizagdes fonéticas observadas, comprometeria, com certeza, os resultados da pesquisa sobre pronun- cias brasileiras e que acabou ficando comprometida irremediavelmen- te pelas deficiéncias técnicas de gravagdo. Apesar dos reparos que, necessariamente, devem ser feitos ao tra- balho de Mario de Andrade e assessores sobre as diferentes " dicgdes das diversas regides", € inegavel o cardter pioneiro de sua pesquisa, j4 que pela primeira vez se registrou material sonoro com vistas 4 carac- terizagdo do portugués fatado no Brasil. Recebido em 8/8/89 ABSTRACT Mario de Andrade did a development of aspects related 10 gathering facts about Mario de An lopment of aspect elated to gathering facts abo dation, fom isso 1938 This work inelted in Sree shows. on one tide Merio de Andrade for sound te one ide Merio de Andrade’s regard language and, on other side, the Problem of linguistic variation. om dis: Brazilian Sic linguistic — Linguistica Va Kepororte: Bra Porpues; Siocalingie — Linguistica Varian 37 Idem, ib. pp. 140-143. “ Rav. Inst. Est Bras, SP, 93:17—34, 1992

Vous aimerez peut-être aussi