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Copyright © 1986 Giulio Einaudi editore s. p. a., Torino Titulo original: Miti emblemi spie: morfologia e storia Capa: Joie Baptista da Coste Aguiar Sobre O bibliotecério, de Giuseppe Arcimboldo Traducio das passagens em latim: Fernando Pio de Almeida Fleck Preparagao de originais ‘Mario Vilele Revisio: Denise Santos Genulizo Santos 1989 EBditora Schwarcz Ltda Rua Tupi, 522 01233 — Sio Paulo — SP ones: (Ott) 825-5286 e 66-4867 INDICE Preficio nernnce Te RS 7 Feitigaria ¢ pia iapuleh Notas sobre um processo mo- denense de 1519 .. é 15 De A. Warburg aE. H. Gombrich: Notas sobre um pee de método .... eee 41 0 alto ¢ 0 baixo: © tema do conhecimento pie nos sé clos XVI @ XVI eee seen es Ticiano, xv ee Sinais: Raizes de um paradigma indiciério 4 143 Mitologia germanica ¢ nazismo: Sobre um velho livro de Georges Dumézil 181 Freud, 0 homem dos lobos ¢ os lobisomens ......+.+++++ 207 Nota bibliognifica ..... Pa : 219 221 Notas SINAIS RAIZES DE UM PARADIGMA INDICIARIO Deus esté no particular A. Warburg Um objeto que fala da perda, da destruigio, do desaparecimento de objetos. Nio fala de si. Fala de outros, Inclind também a eles? J. Jobns Nessas péginas tentarei mostrar como, por volta do final do século xrx, emergiu silenciosamente no ambito das ciéncias huma. nas um modelo cpistemolégico (caso se prefira, um paradigma'') a0 qual até agora nio se prestou suficiente atenglo, A andlise desse paradigma, amplamente operante de fato, ainda que nio teorizado explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos incémodos da con- traposigio entre “‘racionalismo” ¢ “‘irracionalismo”, ¥ 1. Entre 1874 ¢ 1876, apareceu na Zeitschrift fiir bildende Kunst uma série de artigos sobre a pintura italiana. Eles vinham assinados por um desconhecido estudioso russo, Ivan Lermolieff, fora um igualmente desconhecido Johannes Schwarze que os 143 twaduzira para 0 alemao. Os artigos propunham um novo método para a atribuiglo dos quadros antigos, que suscitou entre os his- toriadores da arte reagSes contrastantes ¢ vivas discussSes. Somen- te alguns anos depois, o autor tirou a dupla méscara ne qual se escondera. De fato, tratava-se do italiano Giovanni Morelli (sobre- nome do qual Schwarze € uma eépia € Lermolieff © anagrama, ou quase). E do “método morelliano” os histotiadores da arte falam correntemente ainda hoje? \Vejamos rapidamente em que consistia esse método. Os mu- seus, dizia Morelli, estio cheios de quadros atribufdos de maneira incorreta. Mas devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor € dificil: muitissimas vezes encontramo-nos frente a obras nio-assi- nadas, talvez repintadas ou num mau estado de conservacio. Nes- sas condigées, € indispensivel poder distinguir os originais das c6pias. Para tanto, porém (dizia Morelli), € preciso no se basear, como normalmente se faz, em caracteristicas mais vistosas, portan to mais facilmente imitéveis, dos quadros: os olhos erguidos para © céu dos personagens de Perugino, 0 sortiso dos de Leonardo, € assim por diante. Pelo contrétio, € necessitio examinar os porme: nores mais negligenciaveis, e menos influenciados pelas caracteris ticas da escola a que o pintor pertencia: os Iébulos das orelhas, 1s unhas, as formas dos dedos das mios e dos pés. Dessa mancira, Morelli descobriu, ¢ escrupulosamente catalogou, a forma de ore- Tha propria de Botticelli, a de Cosmé Tura e assim por diante tragos presentes nos originais, mas nao nas c6pias. Com esse méto- do, propés dezenas e dezenas de novas atribuigées em alguns dos principais museus da Europa. Freqiientemente tratava-se de atti buigdes sensacionais: numa Vénus deitada conservada na galeria de Dresden, que passava por uma cSpia de uma pintura perdida de Ticiano feita por Sassoferrato, Morelli identificou uma das pou- quissimas obras seguramente autdgrafas de Giorgione Apesar desses resultados, 0 método de Morelli foi muito cri- ticado, talvez também pela seguranga quase arrogante com que era proposto, Posteriormente foi julgado mecinico, grosseiramente po: sitivista, € caiu em descrédito.’ (Por outro lado, € possivel que 144 muitos estudiosos que falavam dele com desdém continuassem a usi-lo tacitamente para as suas atribuigées.) O renovado interesse pelos trabalhos de Morelli é mérito de Wind, que viu neles um exemplo tipico da atitude moderna em relagdo a obra de arte — atitude que leva « apreciar os pormenores, de preferéncia & obra em seu conjunto. Em Morelli existiria, segundo Wind, uma exa- cerbagio do culto pela imediaticidade do génio, assimilado por ele na juventude, no contato com os circulos roménticos berlinenses* E uma interpretagéo pouco convincente, visto que Morelli nio se colocava problemas de ordem estética (o que depois Ibe foi censu- rado), mas sim problemas preliminares, de ordem filolégica> Na realidade, as implicagSes do método proposto por Morelli cram outras, ¢ muito mais ricas. Veremos que 0 proprio Wind esteve muito préximo de intu‘-las. 2. “Os livros de Morelli” — escreve Wind — “tém um aspecto bastante insélito se comparados aos de outros historiado- res da arte. Eles estio salpicados de ilustragies de dedos e orelhas, cuidadosos registros das mindcias caracteristicas que traem a pre- senga de um determinado artista, como um criminoso é traido pelas suas impresses digitais... qualquer museu de arte estu- dado por Morelli adquire imediatamente 0 aspecto de um musea ceriminal...”"* Essa comparagio foi brilhantemente desenvolvida por Castelnuovo, que aproximou o método indiciério de Morelli 110 que era atribuido, quase nos mesmos anos, a Sherlock Holmes pelo seu criador, Arthur Conan Doyle.’ © conhecedor de arte € comparével ao detetive que descobre 0 autor do crime (do qua- dro) baseado em indicios imperceptiveis para a maioria, Os exem- plos da perspicécia de Holmes ao interpretar pegadas na lama, cinzas de cigarro etc. so, como se sabe, incontaveis. Mas, para se convencer da exatidio da aproximacio proposta por Castelnuovo, vejase um conto como “A caixa de papeldo” (1892), no qual Sherlock Holmes literalmente “di uma de Morelli”. O caso come- ca cxatamente com duas orelhas cortadas ¢ enviadas pelo correio uma inocente senhorita. Eis 0 conhecedor com mios & obra: Holmes 145 se interrompeu ¢ eu [Watson] fiquei surpreso, olhando-o, ao ver {que ele fixava com singular atengio 0 perfil da senhorita, Por lum segundo foi possivel ler no seu rosto ansioso surpresa e sats fagio ao. mesmo tempo, ainda que, quando ela se virou pars descobtir 0 motive do seu siléncio, Holmes tivesse se tornado impassivel como sempre# Mais adiante, Holmes explica a Watson (e aos leitores) © percurso do seu brilhante trabalho mental Na sua qualidade de médico senhor ndo ignorara, Watson, que nio existe parte do corpo humano que oferesa maiores va do que uma orelha, Cada orelha possui caracterfsticas propria ‘mente suas ¢ difere de todas as outras. Na Revista Antropaldgica do ano passado o senhor encontrara sobre este assunto duas bre ‘ves monografias de minha lavra. Portanto, examinei as orelbas contidas na caixa com olhos de especialista e observei acurada mente as suas caracteristicas anat®micas. Imagine entio « minha surpresa quando, pousando os olhos sobre a senhorita Cushing, rotei que a sua orelha correspondia exatamente 3 orelha feminina ‘que havia examinado pouco antes, Néo era possivel pensar numa coincidéncia. Nas duas existia 0 mesmo encurtamento da aba, mesma ampla curvatura do lébulo superior, a mesma circunvo- Iugio ea cattilagem interna. Em todos os pontos essenciais trata vase da mesma orelha. Naturalmente percebi de imediato a enor- ‘me importincia de uma tal observacio. Ere evidente que a vitima devia ser uma patente consangiiinea, provavelmente muito pré- xxima, da senhorita, 7 3. Veremos em breve as implicagées desse paralelismo.” ‘Antes, porém, seré bom retomar uma outra preciosa intuigio de Wind: |A alguns dos erticos de Morelli parecia estranho 0 ditame de ‘que “a personalidade deve ser procurada onde 0 esforco pessoal menos intenso”. Mas sobre este ponto a psicologia moderna estaria certamente do lado de Morelli: os nossos pequenos gestos inconscientes tevelim 0 nosso cariter mais do que qualquer ati: tude formal, cuidadosamente preparada por nés." “Os nossos pequenos gestos inconscientes. ..": a gen expressio “‘psicologia moderna” pode ser diretamente substituida pelo nome de Freud. As péginas de Wind sobre Moteli, de fato, 146 atrafram a atengio dos estudiosos” para uma passagem, por muito tempo negligenciada, do famoso ensaio de Freud O Moisés de Michelangelo (1914). No comeso do segundo parégrafo, Freud ceserevia: ‘Muito tempo antes que cu pudesse ouvir falar de psicandlise vim a saher que um especialista de arte russo, Ivan Lermolieff, ccujos primeiros ensaios foram publicados em alemfo entre 1874 € 1876, havia provocado uma revolugio nas galerias da Europa recolocando em discussio a atribuigio de muitos quadros a cada pintor, ensinando a distinguir com seguranga entre as imitagdes © 06 criginais, e construindo novas individualidades artisticas partir daquelas obras que haviam sido liberadas das suas atti- buigSes anteriores. Ele chegou a esse resultado prescindindo da impressio geral e dos tragos fundamentais da pintura, ressaltando, pelo contritio, a importincia caracteristica dos detalhes secundé tos, das particuluridades insignificantes, como a conformacio das tunhas, dos lobos auriculares, da auréola ¢ outros elementos que normelmente passavam desapereebidos e que © copista deixa de Imitar, ao passo, porém, que cada artista os executa de um modo que o diferencia. Foi depois muito interessante para mim saber que sob © pseudénimo russo escondia-se um médico italiano de nome Morelli. Tendo se tornado senador do reino da Isdlia, Mo- relli morreu em 1891. Creio que o seu método estd estreitamente sparentado 4 técnica da psicanilise médica. Esta também tem por hhfbico penetear em coisas concretas e ocultas através de elemen tes pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou “‘refugos” da nossa observagdo (auch diese ist gewdhnt, aus gering geschitz ten odet nicht heachtenten Ziigen, aus dem Abhub — dem refuse” — der Beobachtung, Geheimes und Verbotegenes mu etraten).!* ensaio sobre 0 Moisés de Michelangelo num primeiro mo- mento aparecera andnimo: Freud reconhecen sua paternidade so- mente na ocasiio de inclu‘-lo em suas obras completas. Supds-se que a tendéncia de Morelli para apagar, ocultando-a sob pseudé- rnimos, sua personalidade de autor acabasse de certo modo por contagiar também a Freud; apresentaram-se hipSteses mais ou ‘menos aceitaveis sobre significado dessa convergéncis."* O certo que, coberto pelo véu do anonimato, Freud declarou de maneira a0 mesmo tempo explicita € reticente a considerével influencia 147 intelectual que Morelli exerceu sobre ele, auma fase muito ante rior descoberta da psicandlise ("lange bevor ich etwas von der Paychoanalyse dren konnte. ..”). Reduair essa influéncia, como se fez, apenas a0 ensaio sobre 0 Moisés de Michelangelo, ow em ‘getal 20s ensaios sobre temas ligados a histéria da arte,” significa restringir indevidamente o alcance das palavras de Freud: “Cxcio ‘que © seu método (de Morelli) estd estreitamente aparentado & técnica da psicandlise médica”. Na realidade, toda a declaracio de Freud que citamos garante a Morelli um lugar especial na his: téria da formagio da psicandlise, De fato, tratase de uma conexiio documentada, ¢ no conjetural, como a maior parte dos “antece: dentes” ou “‘precursores” de Freud; além do mais, o encontro com 0s textos de Morelli ocorreu, como jé dissemos, na fase “pré-ana: litica” de Freud, Temos de tratar, portanto, com um clemento que contribuiu diretamente para a cristalizagio da psicandlise fe no (como no caso da pégina sobre 0 sonho de J. Popper “Lynkeus”, lembrada nas recdigdes da Traumdentung)® com uma coincidéncia encontrada posteriormente, quando jé se dera a des coberta. 4. Antes de tentar entender 0 que Freud pode extrair da leitura dos textos de Morelli, seré oportuno determinat 0 momen: to em que ccorreu essa leitura, O momento, ou melhor, os mo mentos, visto que Freud fala de dois encontros distintos: “muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicandlise, vim « saber que um especialista de arte tusso, Ivan Lermolieff “Foi depois muito interessante para mim saber que sob 0 pseu rnimo russo escondia-se um médico italiano de nome Moreli A primeire afirmacio é datével apenas hipoteticamente, Como terminus ante quem podemos colocar 1895 (ano da publicacio dos Estudos sobre a bisteria de Freud e Brever) o 1896 (quando Freud usou pela primeira vez o termo “‘psicandlise”).” Como ter- minus post quem, 1883. Em dezembro daquele ano, de fato, Freud contou numa Jonga carta a noiva a “descoberta da pintura” feita durante uma visita a galeria de Dresden. No passado, a pintura no o interessara; agora, escrevia, “tirei de mim a barbérie e come 148 cei a udmirar””™ & dificil supor que, antes dessa data, Freud fosse atraido pelos textos de um desconhecido historiador da arte; perfeitamente plausivel, pelo contrério, que se pusesse a Iélos pouco depois da carta & noiva sobre a galeria de Dresden, visto ue 0s primeiros ensaios de Morelli reunidos em livro (Leipzig, 1880) referiam-se as obras dos mestres italianos nas galerias de Munique, Dresden e Berlim.” segundo encontro de Freud com os textos de Morelli € da- tével com uma precisio talvez maior. O verdadeiro nome de-Ivan Letmolieff tornou-se pablico pela primeira vez no frontispicio da traducio inglesa, publicada em 1883, dos ensaios que acabamos de citar; nas reedigSes © tradugdes posteriores a 1891 (data da morte de Morelli) aparecem sempre tanto o nome como 0 pseudé- nimo.” Nao € de se excluir que um desses volumes chegasse antes ou depois is mios de Freud; mas provavelmente ele veio a co- ahecer a identidade de Ivan Lermolieff por puro acaso, em setem: bro de 1898, bisbilhotando numa livraria milanesa. Na biblioteca de Freud conservada em Londres, de fato, aparece um exemplar do livro de Giovanni Morelli (Ivan Lermolieff), Da pintura ita liana. Estudos bistéricos eriticos. As galerias Borghese e Doria Pampbili em Roma, Milio, 1897. No frontispicio esté escrita a data da aquisicio: Milio, 14 de setembro A nica estada mila nesa de Freud ocorren no outono de 1898," Naquele momento, Por outro lado, o livro de Morelli tina para Freud mais um outro motivo de interesse. Havin alguns meses, ele vinha se ocupando dos lapsos; pouco tempo antes, na Dalmécia, ocorreu o episcdio, depois analisado na Psicopatologia da vida cotidiana, em que ten tara inutilmente lembrar 0 nome do autor dos afrescos de Orvie to, Ora, tanto o verdadeiro autor (Signorelli) como os autores ficticios que num primeiro momento vieram & meméria de Freud (Botticelli, Boltraffio) cram mencionados no livro de Morelli Mas 0 que péde representar para Freud — para 0 jovem Freud, ainda muito distante da psicandlise — a leitura dos ensaios de Morelli? E 0 préprio Freud a indicélo: a proposta de um mé todo interpretativo centrado sobre os residuos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores Aor 149 EO! malmente considerados sem importincia, ou até triviais, “baixos” fomeciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espi, rito humano: “os meus adversérios”, escrevia ironicamente Mo! relli (uma ironia talhada para agradar a Freud), “comprazemse em me julgar como alguém que nao sabe ver sentido espiritual de uma obta de arte e por isso dé uma importincia particular a meios exteriores, como as formas da mio, da orelha € até, horri- bile dictu, de um objeto tio antipitico como as unhas"# Morelli também poderia se apropriar do lema virgiliano caro a Freud, es- colhido como epigrafe para A interpretagao de sonbos: “Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo” [Se no posso dobrar os poderes superiores, moverei o Aqueronte].* Além disso, esses dados marginais, para Morelli, eram reveladores porque consti- tufam os momentos em ue 0 controle do artista, ligado a tradi cio cultural, distendiase para dar luger « tragos puramente indi Viduais, “que Ihe escapam sem que ele se dé conta”. Ainda mais do que @ alusio, nao exceptional naquela época, a uma atividade inconsciente,” impressiona a identificasio do nticleo intimo da in- dividualidade artistica com os elementos subtrafdos ao controle de consciéncia 5. Vimos, portanto, delinear-se uma analogia entre os méto- dos de Morelli, Holmes ¢ Freud. Do nexo Morelli—Holmes e Mo: relli—Freud jé falamos. Da singular convergéncia entre os proce: dimentos de Holmes e 0s de Freud por sua vez falou S. Marcus.™ proprio Freud, aligs, manifestou a um paciente (“o homem dos lobos”) 0 seu interesse pelas aventuras de Sherlock Holmes. Mas, 1 um colega (T. Reick) que aproximava 0 método psicanalitico 20 de Holmes, falou antes com admiragio, na primavera de 1913, das técnicas atributivas de Morelli. Nos trés casos, pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingivel. Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de Freud), indicios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictéricos (no caso de Morelli)” Como se explica essa tripla analogia? A tesposta, & primeira vista, € muito simples. Freud era um médico; Morelli formou-se 150 ‘em medicina, Conan Doyle havia sido méttico antes de dedicar-se A literatura, Nos trés casos, entrevé-se o modelo da semistica mé-_ dica: a disciplina que permite diagnosiicar as doengas inacessiveis 3 observagao direta na base de sintomas superficiais, as vezes itrelevantes aos olhos do leigo —- 0 doutor Watson, por exemplo. (De passagem, pode-se notar qué a dupla Holmes — Watson, 0 de tetive agudissimo € o médico obtuso, representa o desdobramento de uma figura real: um dos professores do jovem Conan Doyle, famoso pelas suas extraordindrias capacidades diagnésticas.) ® Mas nfo se trata simplesmente de coincidéncias biogrificas. No final do século xx — mais precisamente, na década de 1870-80 comegou a se afirmar-nas ciéncias humanas um paradigma indi- cidrio baseado_justamente na semitica, Mas as suas raizes eram muito antigas. | I 1, Por milénios © homem foi cagador. Durante imimeras per- seguigdes, ele aprenden a reconstruir as formas € movimentos das presas invisiveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pélos, plumas emaranhadas, odores estagna- dos. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classficar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operagSes men. tais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas. Geragdes © geragies de cacadores enriqueceram ¢ transmiti- ram esse patriménio cognoscitivo. Na falta de uma documentacio verbal para se pr ao lado das pinturas rupestres € dos artefatos, podemos recorrer as narrativas de fébulas, que do saber daqueles remotes cagadores transmitem-nos 3s vezes um eco, mesmo que tardio © deformado. Trés irmios (narra uma fabula oriental, di fundida entre os quirquizes, tértaros, hebreus, turcos. . .)"* encon- tram um homem que perdeu um camelo — ou, em outeas varian tes, um cavalo, Sem hesitar, descrevem-no para ele: ¢ branco, ‘cego de um olho, tem dois odres nas costas, um cheio de vinho, © 131 ‘outro cheio de éleo. Portanto, viram-no? Nao, nao o viram. Entio so acusados de roubo ¢ submetidos a julgamento. E, para os irmios, o triunfo: num instante demonstram como, através de indicios minimos, puderam reconstruit 0 aspecto de um animal «gue nunca viram Os trés irmaos sio evidentemente depositérios de um saber de tipo venatério (mesmo que nio sejam descritos como cacado- res). O que caracteriza esse saber ¢ a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligencidveis, remontar a uma realidade complexa no experimentavel diretamente. Pode-se acrescentar que ‘esses dados so sempre dispostos pelo observador de modo tal a dar lugar a uma seqiiéncia narrativa, cuja formulagio mais simples po- deria ser “‘alguém passou por 14" (Talvez a prdpria idéia de narra- do (distinta do sortilégio, do esconjuro ou da invocacéo) * tenha nascido pela primeira vez numa sociedade de cacadores, a partir da cexperiéncia da decifragéo das pistas.JO fato de que as figuras retéti cas sobre as quais ainda hoje funda-se a linguagem da decifracio venatétia — a parte pelo todo, o feito pcla causa — sio recondu ziveis ao cixo narrative da metontmia, com rigorosa exclusio da metafora,” reforgaria essa hipstese — obviamente indemonstrivel, O cagador teria sido o primeiro a “narrar uma histéria” porque era © tinico capaz de ler, nas pistas mudas (se_néo imperceptiveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos. “Decifrar” ou “ler” as pistas dos animais sio metéforas. Sen- timo-nos tentados a tomé-las ao pé da letra, como a condensagao verbal de um processo histérico que levou, num espago de tempo talvez longuissimo, & invengGo da escrita. A mesma conexiio € formulada, sob forma de mito etiolégico, pela tradicao chinesa que atribuia a invengao da esctita a um alto funciondrio, que observara as pegadas de um péssaro imprimidas nas margens arenosas de um rio.* Por outro lado, se se abandona o ambito dos mitos ¢ hipé- teses pelo da histéria documentads, fica-se impressionado com as inegaveis analogies entre o paradigma venatétio que delineamos © 0 paradigma implicito nos textos divinatérios mesopotimicos, redigidos a partir do terceiro milénio a.C. em diante.* Ambos pressupdem 0 minucioso reconhecimento de wma sealidade talvez 192 infima, para descobrit pistas de eventos nio dirctamente experi mentéveis pelo abservador. De um lado, esterco, pegadas, pelos, plumes; de outro, entranhas de animais, gotas de leo na agua, astros, movimentos involuntérios do corpo ¢ assim por diante, E verdade que a segunda série, a diferenga da primeira, € pratica mente ilimitada, no sentido de que tudo, ou quase tudo, podia tornar-se objeto de adivinhagio para os adivinhos mesopotimicos. Mas a principal divergéncia aos nossos olhes é outra: 0 fato de que @ adivinhaglo se voltava para o futuro, ¢ a decifragio, para 0 passado (talvez um passado de segundos). Porém a atitude cognes. citiva era, nos dois casos, muito parecida; as operagées intelectuais envolvidas — andlises, comparagées, classificages —, formalmen. te idénticas, E certo que apenas formalmente: © contexto social era totalmente diferente. Notowse, em particular; como a inven- sao da escrita modelou profundamente a arte divinatéria mesopo- timica. As divindades, de fato, era atribuida, entre as outras prer- rogativas dos soberanos, a de se comunicar com os stiditos através de mensagens escritas — nos astros, nos corpos humanos, em toda arte —, que os adivinhos tinham a tarefa de decifrar (idia essa destinada a desembocar na imagem multimilenar do “livro da na- tureza”). E a identificagio da arte divinatéria com a deciftagio de caracteres divinos inscritos na realidade cra refoscada pelas caracteristicas pictogréficas da escrita cuneiforme: cla também, como a arte divinatéria, designava coisas através de coisas.” Também uma pegada indica um animal que passou. Em com. paragio com a concretude da pegada, da pista materialmente en- tendida, o pictograma jé representa um incalculfvel passo & frente no caminho da abstraglo intelectual. Mas as capacidades abstrati- vas, pressupostas na introducio da escrita pictogrifica, sio por sua vez bem poucas em comparacio com as exigidas pela passagem para a escrita fonética. De fato, elementos pictogréficos e fonéti 0s continuaram & coexistir na escrita cuneiforme, assim como na literatura divinatéria mesopotimica a progressiva intensificagio dos tracos aprioristicos © generalizantes no apagou a tendéncia fundamental de inferir as causas a partir dos efeitos.® E essa de que explica, por um lado, a infiltragio na lingua da arte 153 nat6ria mesopotimica de termos técnicos extraides do léxico juri dco; por outro, a presenga nos tratados divinatérios de trechos de fisiognomonia e semiética médica.” Depois de um longo rodeio, portanto, voltamos 2 semistica Encontramola incluida numa constelacéo de disciplinas (mas termo é evidentemente anacrénico) de aspecto singular. Poder-se-ia ficar tentado a conttapor duas pscudociéncias como a atte divina ‘ria e a fisiognomonia a duas ciéncias como o direito ¢ a medici- na — atribuindo a heterogeneidade da aproximacio 3 distincia espacial e temporal das sociedades de que estamos falando. Mas seria uma conclusio superficial. Algo ligava realmente essas for- mas de saber na antiga Mesopotamia (se excluirmos a adivinhagéo inspirada, que se fundava em experiéncias de tipo extético):” uma atitude orientada para a anlise de casos individuais, reconstrui vveis somente através de pistas, sintomas, indicios. Os préprios textos de jurisprudéncia mesopotimicos nao consistem em coleti- neas de leis ou ordenagées, mas na discussao de uma casufstica concreta."" Em suma, pode-se falar de paradigma indicifrio ou di- vinatério, dirigido, segundo as formas de saber, para o passado, © presente ou o futuro. Para 0 futuro — e tinhase a arte divina- ‘ria em sentido proprio —; para o passado, o presente e o futu- ro —€ tinha-se a semiética médica na sua dupla face, diagnéstica f prognéstica —; para o passado — e tinhase a jurisprudéncia Mas, por trés desse paradigma indicidtio ou divinatério, entrevé- se 0 gesto talver mais antigo da histéria intelectual do género humane: 0 do cagador sgachado na lama, que escruta as pistas da presa, 2. Tudo o que dissemos até aqui explica como uma diagnose de traumatismo craniano, formulada a partir de um estrabismo bilateral, podia se encon:rar num tratado de arte divinatéria me- sopotimico;* de modo mais geral, explica como apareceu histori- camente uma constelagio de disciplinas centrades na decifragio de signos de vétios tipos, dos sintomas as escritas. Passando das civilizagdes mesopotimicas para a Grécia, essa constelagao mudou profundamente, em seguida & constituigio de disciplinas novas, 154 como a historiografia © a filologia, © @ conquista de uma nova autonomia social e epistemoldgica por parte das antigas discipli- nas, como a medicina. O corpo, a linguagem e a histéria dos hhomens foram submetidos pela primeira vez a uma investigacio ssem preconceitos, que por principio exclufa a intervengio divina. Dessa virada decisiva, que caracteri2ou a cultura da polis, nds somos, como € dbvio, ainda herdeiros. Menos Sbvio é 0 fato de que nessa virada um papel de primeizo plano tenha sido desempe- hado por um paradigma definivel como semistico ou indicidtio.® Isso € particularmente evidente no caso da medicina hipocrética, que definiu seus métodos refletindo sobre a nogio decisiva de sin- toma (semeion). Apenas observando atentamente ¢ registrando com extrema minicia todos os sintomas — afirmavam os hipocré ticos —, é possivel elaborar “histérias” precisas de cada doenca: ‘8 doenga é, em si, inatingivel. Essa insisténcia na natureza indi cidtia da medicina inspirava-se, com todas as probabilidades, na contraposicio — enunciada pelo médico pitagético Alemeon — entre a imediatez do conhecimento divino ¢ a conjeturalidade do humano Nessa negacio da transparéncia da realidade, implicita legitimacio encontrava um paradigma indiciésio de fato operante em esferas de atividades muito diferentes. Os médicos, os histo- riadores, 08 politicos, os oleiros, os carpintciros, os marinhciros, (5 cacadores, os pescadores, as mulheres: so apenas algumas entre as categorias que operavam, para os gregos, no vasto territério do saber conjetaral. Os confins desse tertit6rio, significativamente go- vernado por uma deusa como Métis, a primeira esposa de Jipiter, que personificava a adivinhagio pela Agua, cram delimitados por termos como “‘conjetura”, “‘conjeturar”” (tekmor, tekmairesthai) Mas esse paradigma permaneceu, como se disse, implicico — esma- ‘ado pelo prestigioso (c sotialmente mais elevado) modelo de co- nhecimento elaborado por Platdo.® 3. © tom apesar de tudo defensive de certas passagens do “corpus” hipocritico® dé a entender que, jé no séeulo v a.C., co- megata a manifestarse a polémica, destinada a durar até nossos dias, contra a incerteza da medicina, Tal persisténcia se explica 155 pelo fato de que as relagées entre o médico € paciente — carac: terizadas pela impossibilidade, para o segundo, de controlar o saber € 0 poder detidos pelo primeiro — nfo mudaram muito desde o tempo de Hipécrates. Mudaram, pelo contririo, durante quase 2500 anos, os termos da polémica, a par com as profundas ‘transformagGes sofridas pelas nogées de “rigor” e “‘ciéncia’”. Como € Sbvio, a cesura decisiva nesse sentido € constituide pelo apare cimento de um paradigma cientifico centrado na fisica galileana, ‘mas que se revelou mais duradouro do que ela. Ainda que a fisi- cea moderna nao se possa definir como “galileana’” (mesmo nio tendo renegado Galileu), 0 significado cpistemolégico (e simbéli co) de Galileu para a ciéncia em geral permaneceu intacto.” Ora, € claro que 0 grupo de disciplinas que chamamos de indicirias (inclufda a medicina) nao entra absolutamente nos critérios de cientificidade deduziveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas eminentemente qualitativas, que tém por objeto casos, situagdes e documentos individuais, enquanto individuais, € justamente por isso alcangam resultados que tém uma margem inelimindvel de casualidade: basta pensar no peso das conjeturas (0 proprio termo & de origem divinatéria) * na medicina ou na filologia, além da arte mantica. A ciéncia galileana tinha uma natu: reza totalmente diverse, que poderia adotar o lema escoléstico individuum est ineffabile, do que € individual no se pode falar. O emprego da matemética e 0 método experimental, de fato, im- plicavam respectivamente a quantificagio © a repetibilidade dos fendmenos, enquanto a perspectiva individualizante exclufa por definigéo a segunda, e admitia a primeira apenas em fungdes auxi- Tiares. Tudo isso explien por que a histéria nunca consegui se \tornar uma ciéncia galileana. Justamente durante o século xvii, pelo contrétio, 0 enxerto dos métodos do conhecimento antiqué: io no tronco da historiografia trouxe indiretamente & luz as distances origens indicidrias desta iltima, ocultas durante séculos. Esse ponto de partida permaneceu inalterado, nio obstante as relagdes sempre mais estreitas que ligam a histéria as ciéncias socias, fe histéria se manteve como uma ciéncia social sui generis, irremediavelmente ligada a0 concreto. Mesmo que © historiador 156 do possa deixar de se referir, explicita ou implicitamente, a séries de fenémenos compariveis, a sua estratégia cognoscitiva assim como os seus eédigos expressivos permanecem intrinsecamente individualizantes (mesmo que individuo seja talvez um grupo social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, o histotiador € comparivel ao médico, que utiliza os quadros nosogrificos para analisar 0 mal especifico de cada doente. E, como o do médico, 0 conhecimento histérico € inditeto, indicidrio, conjetaral.” ~ Mas & contraposicio que sugerimos & esquemética demais. No imbito das disciplinas indicidrias, uma delas — a filologia, e mals, precisamente a crftica textual — constituiu desde 0 seu surgimen- 10 um caso sob certos aspectos atipico. ee © seu cbjeto, de fato, constituise através de uma dréstica selegio — destinada a se reduzir ulteriormente — dos clementos pertinentes. Esse acontecimento interno da disciplina foi escondi- do por duas cesuras histSricas decisivas: a invencio da escrita € a dla imprensa. Como se sabe, 4 critica textual nasceu depois da primeira (quando decidiu-se transcrever os poemes homéricos) ¢ consolidou-se depois da segunda (quando as primeiras e freqiien- temente apressadas edigSes dos clissicos foram substitufdas. pot ediges mais confisveis).” Inicialmente, foram considerados iio pertinentes ao texto os elementos ligados A oralidade e a gestuai dade; depois, também os elementos ligados ao caréter fisico da excrita. O resultado dessa duple operagio foi a progressiva desma- terializacio do texto, continuamente depurado de todas as refe: réncias sensiveis: mesmo que seja necesséria uma relacdo sensivel para que 0 texto sobreviva, o texto nfo se identifica com 0 seu supotte.” Tudo isso nos parece Sbvio, hoje, mas nio o é em termos absolutos. Basta pensar na fungio decisiva de entonagio nas lite: raturas ortis, ou da caligrafia na poesia chinesa, para pereeber que a nogio de texto que acabamos de invocar esté ligada a uma esco: tha cultural, de aleance incalculivel. Que essa escolha no tenha sido determinada pela afirmacio da reprodugio mecinica em lugar dda manual é demonstzado pelo exemplo clamoroso da China, onde a invengio da imprensa néo rompeu o elo entre texto lteritio € “7 a i i I ee caligrafia. (Veremos em breve como o problema dos “textos” figu- rativos se colocou historicamente em termos totalmente dif rentes.,) Essa nogio profundamente abstrata de texto explica por que a crftica textual, mesmo se mantendo largamente divinatétia, tinha cem si potencialidades de desenvolvimento em sentido rigorosa. ‘mente cientifico que amadureceriam durante 0 século x1x." Com ‘uma decisio radical, cla levara em consideragio apenas os elemen- tos reprodutiveis (antes manualmente, depois mecanicamente, a partir de Gutenberg) do texto. Desse modo, mesmo assumindo como objeto os casos individuais,® acabara por evitar o principal obstéculo das cigncias humanas: a qualidade, £ significative que, no momento em que se fundava — com ume redugfo igualmente drdstica — a moderna ciéncia da natureza, Galileu tenha invocado 1 filologia. A tradicional comparacio medieval entre mundo livro funda-se na evidéncia, na legibilidade imediata de ambos: Galileu, pelo contrério, ressaltou que ‘a filosofia . . . escrita neste enorme livro que esté continuamente aberto diante dos nossos olhos (digo 0 universo)... nao se pode entender se antes nio se aprende a entender a lingua, conbecer os caracteres nos quais esté escrito”, isto €, “triangulos, cfrculos € outras figuras geométri- cas Para o fil6sofo natural, como para 0 fildlogo, 0 texto € ‘uma entidade profunda invisivel, a ser reconstruida para além dos dados sensiveis: “as figuras, os ntimeros ¢ os movimentos, mas niio os odores, nem os sabores, nem os sons, os quais fora do ani: ‘mal vivo nao creio que sejam nada além de nomes”® ‘Com essa frase Galileu imprimia & ciéncia da natureza uma guinada em sentido tendencialmente antiantropocénirico © anti antropomérfico que ela nao viria mais a abandonat. No mapa do saber abria-se um rasgo destinado a se alargar continuamente. E certamente entre 0 fisico galileano, profissionalmente surdo aos sons ¢ insensfvel aos sabores ¢ aos odores, © © médico contempo- riineo seu, que atriscava diagnésticos pondo o ouvido em peitos estertorantes, cheirando fezes e provando utinas, 0 contraste nao poderia ser maior. 158 | 4. Um desses médicos era Giulio Mancini, de Siena, médico: mor de Urbano vit, Nio parece gue conhecesse Galileu pessoal mente; mas é bem provével gue os dois tenham se encontrado, porque freqiientavam os mesmos ambientes romanos (da corte papal 4 Accademia dei Lincei) e as mesmas pessoas (de Federico Cesi a Giovanni Ciampoli, a Giovanni Faber).* Num vivissimo retrato, Nicio Eritreo, alias Gian Vittorio Rossi, delineou o atets ‘mo de Mancini, suas extraordindrias capacidades diagnésticas (des- ctitas com termos do léxico divinatério) ¢ 2 falta de escripules ‘em extorquir dos clientes os quadros de que eta “intelligen tissimus”. Mancini de fato redigira uma obra intitulada Algu- ‘mas consideracoes referentes & pintura como deleite de um gentil homem nobre e como introducio ao que se deve dizer, que circulou amplamente em manuscrito (a primeira impressio integral remon- ta a duas décadas).* © livro, como mostra o titulo, era dirigido no aos pintores, mas avs gentis-homens diletantes — agueles vit- ‘uoses que, em némero sempre maior, lotavam as exposiges de ‘quadros antigos e modernos que aconteciam todos os anos no Pantheon, em 19 de marco.” Sem esse mercado artistico, a parte talvez mais nova das Consideragdes de Mancini — a dedicada a0 “reconhecimento da pintura”, isto €, aos métodos para reconhecer os falsos, para distinguir os originais das cépias ¢ assim por diante® — nunca teria sido escrita. A primeira tentativa de fun- dagdo da connoisseursbip (como se chamaria um século depois) remonta, portanto, a um médico célebre pelos scus fulminantes diagndsticos — um homem que, encontrando um doente, com um répido olhar “quem exitum morbus ille esset habiturus, divinabat” Cadivinhava que fim aquela doenca viria a ter].“' Serd permitido, 1 esse ponto, ver no par olho clinico-olho do conheeedor algo mais que uma simples coincidéncia. Antes de seguir de perto os argumentos de Mancini, desta- ‘quemos um pressuposto comum a ele, 20 ‘‘gentil-homem nobre” a quem se ditigiam as Consideracdes, e a nés. Um pressuposto nio declarado porque julgado (erroneamente) dbvio: 0 de que entre tum quadro de Rafael e uma ofpia sua (trate-se de uma pintura, uma gravura ou, hoje, uma fotografia) existia uma diferenga ineli 159 mingvel. As implicagées comerciais dese pressuposto — de que uma pintura € por definigio um wnicum, irrepetivel® — sio Sbvias. A clas esté ligado o surgimento de uma figura social como © do conhecedor. Mas trata-se de um pressuposto que nasce de uma escolha cultural de forma alguma prevista, como mostra 0 fato de nao se aplicar aos textos escritos. Os supostos caracteres etemos da pintura ¢ da literatura nao cabem af. Jé vimos antes as guinadas histdricas pelas quais « nocio de texto escrito foi de purada de uma série de elementos considerados nao-pertinentes, No caso da pintura, essa depuraglo (ainda) nfo se verificou, Por isso, aos nossos olhos, as c6pias manuscritas ou as edigdes do Orlando Furioso podem reproduzir exatamente 0 texto desejado por Aviosto; as c6pias de um retrato de Rafael, nunca.” O diferente estatuto das eSpias na pintura © na literatura explica por que Mancini nio podia se servir, enquanto conhece- dor, dos métodos da critica textual, mesmo estabelecendo em prin- cipio uma analogia entre 0 ato de pintar © 0 ato de excrever. Mas, justamente partindo dessa analogia, recorreu em busca de ajuda a outras disciplinas, em vias de formacio. © primeiro problema que ele se colocava era o da datacio das pinturas. Para tanto, afirmava, & necessério adquirir “uma ‘erta prética na cogni¢io da variedade da pintura quanto a0 seu tempo, como tém esses antiquérios e bibliotecérios dos caracteres, ‘0s quais reconhecem o tempo da escrita”® A alusio 4 “cogni- ‘gio... dos caracteres” refere-se quase certamente aos métodos ela borados nos mesmos anos por Leone Allacci, bibliotecério da Va ticana, para datar os manuscritos gregos ¢ latinos — métodos destinados a ser retomados desenvolvidos meio século mais tarde pelo fundador da ciéncia paleogréfica, Mabillon. Mas, “além da propriedade comum do século”, existe — continuava Mancini — “a propricdade propria individual”, assim como “vemos nos escri tores em que se reconhece essa propriedade distante”. O nexo analégico entre pintura e escrita, sugerido antes em escala macros- Spica (“os tempos”, “o século”), era entio novamente proposto em escala mictoscdpica, individual, Nese ambito, os métodos protopaleogrificos de um Allacci nfo eram utiliziveis. Houvera 160 _porém, nesses mesmos anos, uma tentativa isolada de submeter & anilise, de um ponio de vista incomim, a8 escritas individuais. O médieo Mancini, eitando"Hipécrates; observava que € possivel re- montar das “operagdes” as “impresses” da alma, que por sua vez tém rafzes nas “propriedades” dos corpos singulares: “‘suposicio pela qual € com a gual, como ereio, slgumas belas inteligéncias \ deste nosso século escreveram e quiseram dar regra para reconhe- cer 0 intelecto e a inteligéncia dos outros com 0 modo de escrever ¢ da escrita deste ou daquele homem”(Uma dessas “belas intel séncias"” era, com todas as probabilidades, o médico bolonhés, Camillo Baldi, que em seu Tratado sobre como de uma carte mis- \ siva se conbece a natureza e a qualidade do escritor havia incluido ‘um capitulo que pode-se considerar 0 mais antigo texto de grafo- “ logia jé aparecido na Europa. “Quais si0 os significados” — € 0 titulo do capitulo vi do Tratado “que na figura do caréter podem-se aprender”: onde “‘caréter” designa “a figura, e 0 traga do da letra, que se chamiclemento, feito com a pena sobre o papel’”® Mas, no obstante as palavras elogiosas que lembramos, Mancini desinteressou-se quanto ao objetivo declarado da nascente arafologia, isto é, a reconstrugio da personalidade dos escreventes remontando-se do “carter” escrito a0 “ardter” psicolégico (sino- nimia esta que remete, uma vez mais, a uma mesma remota matriz disciplinar). Ele se deteve, pelo contrétio, no pressuposto da nova ina: a diversidade, ou melhor, a singularidade inimitével das esctitas individuais. Isolando nas pinturas elementos igualmen- te inimitaveis, estaria aleangado o fim que Mancini se prefixav: a claboragdo de um método que permitisse distinguir entre os originais ¢ os falsos, as obras dos mestres ¢ as c&pias ou trabalhos de escola, Tudo isso explica a exortagio para se conferir se nas pinturas vése aquela deseavoltura do mestre, e em particular naquelas partes que necessariamente fazem-se com resolugio, de modo que rio podem passar bem com a imitacio, como sio em particular 0 cabelos, a barba, os olhos. Que o anelar dos cabelos, quando se deve imitar, faz-se com muito custo, que depois na eSpia ape rece, €, se 0 copiador no quer imitélo, entio ndo tem a per feicio do mescre. E essas partes na pintura x0 como os tragos € 161 0s volteios na escrita, que precisam daquela desenvoltura ¢ reso- lugio de mestre. Isso deve-se ainda observar em alguns sopros © sgolpes de luz de expaso em expaco, que pelo mestre sio postos dde uma vez e com a resolucio de uma pincelada inimitivel; assim nas dobras dos tecidos ¢ em sua luz, os quais dependem mais da fantasia ¢ resolugio do mestre do que da verdade da coisa criad Como se vé, 0 paralelo, ja sugerido por Mancini em vérios contextos, entre 0 ato de escrever e 0 de pintar é retomado nessa passagem de um ponto de vista novo, sem precedentes (se se exce tuar uma fugaz alusio de Filarete, que Mancini podia néo co: nhecer™). A analogia se ressalta com o uso de termos técnicos recorrentes nos tratados de escrita contemporineos, como “desen- voltura”, “tracos”, “volteios”.® Também a insisténcia na “veloci- dade” tem a mesma origem: numa época de crescente desenvol vimento burocritico, as qualidades que asseguravam o sucesso de tema letra chanceleresca cursiva no mercedo escriturétio eram, além da elegiincia, a rapidez no ductus (condugio da pena). Em geral, 1 importincia atribufda por Mancini aos elementos ornamentais demonstra uma reflexio no superficial sobre as caracteristicas dos modelos de esctita predominantes na Irdlia entre 0 final do século XVI € 0 inicio do século xvi1.” O estudo da escrita dos “caracte res" mostrava que a identificagdo da mio do mestre deveria ser procurada de preferéncia nas partes do quadro a) executadas mais rapidamente ¢, portanto, 6) tendencialmente desligadas da repre- sentagio do real (emaranhado de cabeleitas, tecidos que “depen: dem mais da fantatsia e resolugio do mestre do que da verdade dda coisa crisda”). Sobre a riqueza que jaz nessas afirmagdes — uma riqueza que nem Mancini nem os seus contemporineos foram capazes de trazer A luz —, voltatemos mais adiante 5. “Caracteres”. Por volta de 1620, a prépria palavra retorna, em sentido préprio ou analégico, de um lado nos textos do fundador da fisica moderna ¢, de outro, nos iniciadores da pa leografia, da grafologia ¢ da connoisseurship, respectivamente, certo que, entte os “caracteres” imateriais que Galileu lia com os colhos do cézebro no livro da natureza, e os que Allacci, Baldi ‘ou Mancini decifravam materialmente em pepéis © pergaminhos, 162 tclas ou quadros, o parentesco era apenas metafSrico. Mas a iden- tidade dos termos ressalta ainda mais a heterogeneidade das disci- plinas que comparamos. O seu grau de cientificidade, na acepgio alileana do termo, decrescia bruscamente, i medida que das “propriedades” universais da geometria passava-se is ““proprieda- des comuns do século” das escritas e, depois, as “propriedades préprias individuais” das pinturas — ou até das caligrafias. Essa escala decrescente confirma que 0 verdadeiro obstéculo a aplicaczo do paradigma galileano era a centralidade maior ou menor do elemento individual em cada disciplina. Quanto mais 0s tragos individuais eram considerados pertinentes, tanto mais se esvala a possibilidade de um conhecimento cientifico rigoro Certamente a decisio preliminar de negligenciar os tragos indivi- duais no garantia por si s6 a aplicabilidade dos métodos fisico- mateméticos (sem a qual nfo se podia falar em adogio do para- digma galileano propriamente dito) — mas, pelo menos, exclula-e de vez 6. Nesse ponto, abriam-se duas vias: ou sacrificar 0 conheci- mento do elemento individual & generalizagio (mais ou menos ri- gorosa, mais ou menos formulivel em linguagem matemética), ou procurar elaborar, talvez as apalpadelas, um paradigma diferente, fandado no conhecimento cientifico (mas de toda uma cientifi dade por se definir) do individual. A primeiza via foi percorrida pelas cigncias naturais, ¢ s6 muito tempo depois pelas ciéncias humanas. O motivo € evidente. A tendéncia a apagar 0s tragos in- dividuais de um objeto é diretamente proporcional 4 distancia cemocional do observador. Numa pégina do Tratado de arguitetw Filarete, depois de afirmar que € impossivel construir dois edifi ‘cios perfeitamente idénticos — assim como, apesar das aparéncias, as “fugas tirtaras, que tem todas a mesma cara, ou as da Etiépia, que sio todas negras, se olhares direito, verds que existem dife- rengas nas semelhancas” —, admitia que existem ‘‘muitos animais gue sfo semelhantes uns aos outros, como as moscas, formiges, vermes € rs © muitos peixes, que daquela espécie nfo se reconhe- ce um do outro”.* Aos olhos de um arquiteto europeu, as diferen- 163 «sas mesmo pequenas entre dois edificios (europeus) cram relevan- tes, as entre duas fugas trtaras ou etfopes, negligencidveis, ¢ as entre dois vermes ou duas formigas, até inexistentes. Um arqui- teto tértaro, um etfope desconhecedor de arquitetura ou uma formiga teriam proposto hierarquias diferentes. O conhecimento individualizante € sempre antropocéntrico, ctnocéntrico ¢ assim por diante especificando, E certo que também os animais, mine- rais ou plantas poderiam ser considerados numa perspectiva indi- vidualizante, por exemplo divinatéria’ — sobretudo no caso de cexemplares claremente fora das normas. Como se sabe, a terato- logia era uma parte importante da arte divinatéria, Nas primeiras décadas do séeulo xv1t, a influéncia exercida mesmo que indireta- mente por um paradigma como o galileano tendia a subordinar 0 estudo dos fendmenos anormais & pesquisa sobre a norma, a adivi- nhagio ao conhecimento generalizante da natureza. Em abril de 1625, nasceu nas cercanias de Roma um bezerro com duas cabe- as. Os naturalistas ligados Accademia dei Lincei interessaram- se pelo caso. Nos jardins vaticanos de Belvedere, encontravam-se cem discussie Giovanni Faber, secretétio da Accademia, Ciampoli (ambos, como se disse, muito ligados a Galileu), Mancini, o car deal Agostino Vegio ¢ 0 papa Urbano vit. A primeiza pergunta a ser colocada foi a seguinte: 0 bezerro bicéfalo deve ser conside- rado um animal tinico ou duplo? Para os médicos, o elemento que distingue o individuo € o cérebro; para os seguidores de Aristéte les, € 0 coracio.™ Nessa descrigio de Faber, peroebe-se 0 eco pre sumivel da intervengio de Mancini, o tinico médico presente na discussio. Portanto, apesar dos seus interesses astrolégicos,” ele analisava as catacteristicas especificas do parto monstruoso no ‘com um fim de tirar auspicios, mas para chegar a uma definicio mais precisa do individuo normal — o individuo que, por perten- cer a uma espécie, podia com todo o direito ser considerado repe- tivel. Com a mesma atengio que normalmente dedicava ao exame cde uma pintura, Mancini teve de investigar @ anatomia do bezerro bicefalo. Mas a analogia com a sua atividade de conhecedor parava por af, Num certo sentido, justamente um personagem como Man- cini expressava a unio entre 0 paradigma divinat6rio (o Mancini 164 diagnosticador e conhecedot) ¢ o paradigma generalizante (0 Ma ini anatomista e naturalista). A unio, mas também a diferenca Nao obstante as aparéncias, a descrigéo precisa da autépsia do bezerro, redigida por Faber, ¢ as minuciosas gravuras que a acom- panhavam, representando os étgios internos do animal,” nio se propunham captar as “propriedades comuns” (aqui naturais, no histéricas) da espécie. Desse modo, era retomada e aperfeicoada a tradigao naturalista que se fondava em Aristételes. A vista, bolizada pelo Tince de olhar agudissimo que ornamentava o brasio da Academia de Federico Cesi, tornava-se 0 érgio privilegiado das disciplinas para as quais estava vedado 0 olho suprasensivel da ‘matemética.” || 7. Entre essas estavam, pelo menos aparentemente, as cién- cias humanas (como as definitiamos hoje). A fortiori, num certo sentido — quando menos pelo seu tenaz antropocentrismo, expres- s0 com tanta simplicidade na pégina jé lembrada de Filarete. No entanto, houve tentativas de introduzir o método matemético tam- bém no estudo dos fatos humanos.” E compreensfvel que a pri meira ¢ mais bem-sucedida — a dos aritméticos politicos — tenha adotado como seu objeto os gestos humanos mais determinados tem sentido biolégico: nascimento, procriagio e morte. Essa dristi- ca redusio permitia uma pesquisa rigorosa — e, ao mesmo tem. po, bastava para as finalidades cognoscitivas militares ou fiscais dos Estados absolutistas, orientados, dada a escala das suas opers- 68es, em sentido exclusivamente quantitative. Mas a indiferenca gualitativa dos comitentes da nova cincia — a estatistica — nao desfez totalmente vinculo entre ela e a esfera das disciplinas que chamamos de indiciérias. (O célculo das probabilidades, como diz © titulo da obra clissica de Bernouilli (Ars conjectandi), procura- va dar uma formulagio matemética rigorosa aos problemas que haviam sido enfrentados pela arte divinatéria de maneira comple- tamente diferente." ‘Mas 0 conjunto das ciéncias humanas permaneceu solidamen- te ancorado no qualitativo. Nao sem makestar, sobretudo no caso da medicina, Apesar dos progtessos realizados, seus métodos mos- 165 travam-se incertos, ¢ os resultados, dibios. Um texto como A cer- teza da medicine de Cabanis, publicado no final do século xvarr,® admitia essa falta de rigor, ainda que depois se esforcasse em reco- nhecer medicina, apesar de tudo, uma cientificidade sui generis. “incerteza” da medicina pareciam ser fundamental- mente duas. Em primeiro Iugar, no bastava catalogar todas as doengas até compé-las num quadto ordenado: em cada individuo, 1 doenca assumia caracterfsticas diferentes. Em segundo lugar, 0 conhecimento das doengas permanecia indireto, indiciério: © corpo vivo era, por definiglo, inatingivel. Certamente podiase seccionar © cadaver; mas como, do cadéver, j4 corrompido pelos processos da morte, cheger as catacteristicas do individuo vivo? ® Diante dessa dupla dificuldade, era inevitével reconhecer que a propria cficscia dos procedimentos da medicina era indemonstravel. Em conclusio, a impossibilidade de a medicina alcangar o rigor prprio das ciéncias da natureza derivava da impossibilidade da quantifi- cago, a nio ser em fungdes puramente auxiliares; a impossibil dade da quantificado derivava da presenca ineliminvel do quali- tativo, do individual; e a presenga do individual, do fato de que 0 colho humano & mais sensivel as diferengas (talvez marginais) entre 198 seres humanos do que as diferengas entre as pedras ou as folhas. Nas discussOes sobre a “incerteza” da medicina, jé estavam for- mulados os futtros nés epistemoldgicos das cincias humana. 8. Entre as linhas do texto de Cabanis transparecia uma compreenstvel impaciéncia. Apesar das objegdes, mais ou menos justificadas, que Ihe poderiam ser dirigidas no plano metodolégico, a medicina sempre se mantinha, porém, uma ciéncia plenamente te- conhecida do ponto de vista social. Mas nem todas as formas de conhecimento indiciério se beneficiavam, naquela época, de seme: Ihante prestigio. Algumas, como a connoisseurship, de origem re- lativamente recente, ocupavam uma posigio ambigua, & margem das disciplinas reconhecidas. Outras, mais ligadas a pritica conti diana, estavam simplesmente de fora. A capacidade de reconhecer um cavalo defeituoso pelos jarretes, a vinda de um temporal pela 166 repentina madanga do vento, uma intengio hostil num rosto que se sombreia certamente nio se aprendia nos tratados de alveitaria, de meteorologia ou psicalogia. Em todo caso, essas formas de saber“eram mais rieas do que qualquer codificagio escrita; no ‘eram aprendidas nos livros mas a viva voz, pelos gestos, pelos olhares; fundavam-se sobre sutilezas certamente nao-formalizaveis, freqiientemente nem sequer traduziveis em nivel verbal; consti- tuiam 0 patrim6nio, em parte unitério, em parte diversificado, de homens © mulheres pertencentes a todas as classes sociais. Um sutil parentesco as unia: todas nasciam da experiéncia, da concretude da experiencia, Nessa concretude estava a forga desse tipo de saber, 0 seu limte — a incapacidade de servir-se do poderoso e terri- vel instrumento da abstragao* Desse corpo de saberes locais,” sem origem nem meméria ou hhist6ria, a cultura escrita tentara dar a tempo uma formulacio verbal precisa, Tratava-se, em geral, de formulagées desbotadas € cempobrecidas. Basta pensar no abismo que separava a rigidez esquemética dos tratados de fisiognomonia ¢ a acuidade fisiogno- ménica flexivel e rigorosa de um amante, um mercador de cavalos cou um jogador de cartas. Talvez s6 no caso da medicina a codifi- casio escrita de um saber indiciério tenha dado lugar a um verda- deiro enriquecimento (mas a histéria das relagSes entre medicina culta ¢ medicina popular ainda esta por ser escrita). Ao longo do século Xvitt, a situagio muda. Hi uma verdadeira ofensiva cultu- ral da burguesia, que se apropria de grande parte do saber, indi- , de artesios © camponeses, codificando simultaneamente intensificando um gigantesco processo de acultu: raGio, jé iniciado (obviamente com formas e conteddos diversos) pela Contra-Reforma, O simbolo € o instrumento central dessa ofensiva é, naturalmente, a Encyclopédie. Mas também seria pre- iso analisar epis6dios insignificantes mas reveladores, como a in- tervengio do anénimo mestre-pedreiro romeno, que demonstra a ‘Winckelmann, provavelmente estupefato, que a “pedrinha peque- nae chata” reconbecivel entre os dedos da mio de uma estitua descoberta em Porto d’Anzio era a “bucha ou a rotha da émbula”. ciério © nio-indicistio, 167 A coletinea sistemitica desses “pequenos discernimentos”, como chama-os Winckelmann em outro lugar," alimentou entre 0s séculos xvii © x1x as novas formulagdes de antigos saberes — da cozinha a hidrologia © & veterinéria. Para um niimero sempre crescente de leitores, 0 acesso « determinadas experiéncias torna- se cada vez mais mediado pelas péginas dos livros. © romance simplesmente forneceu % burguesia um substituto ¢, a0 mesmo tempo, uma reformulacio dos ritos de iniciagio — isto €, 0 acesso A experiéncia em geral E & justamente gracas a literatura de imaginagio que 0 paradigma indiciério conheceu nessa época um novo, e inesperado, destino. 9. Jé lembramos, a propésito da remota origem provavelmen- te venatéria do paradigma indiciério, a fabula ou conto oriental dos trés irmios que, interpretando uma série de indicios, conse guem descrever 0 aspecto de um animal que nunca vitam. Esse conto apareceu pela primeira vez. no Ocidente através da coletdnee de Sercambi. Posteriormente, retornou como ponto alto de uma coletinea de contos muito mais ampla, apresenteda como tredu- cio do persa para o italiano aos cuidados de Cristoforo Arménio, qe aparecen em Veneza na metade do século xv1 sob o titulo Peregrinaczo dos trés jovens filbos do rei de Serendip. Dessa forma, 0 livro foi reeditado ¢ traduzido outras vezes — antes em alemio, depois, durante século xvitt, na onda da moda orienta lizante de entdo, nas principais Iinguas européias.” O sucesso da histéria dos filhos do rei de Serendip foi tal que levou Horace Walpole, em 1754, a cunhar © neologismo serendipity para desi. nar as “descobertas imprevistas, feitas gracas a0 acaso ¢ & intel géncia”.® Alguns anos antes, Voltaite reelaborara, no terceiro ca pitulo de Zadig, o primeiro conto da Peregrinacao, que lera na tradugio francesa, Na reelaboragio, 0 camelo do original havia se transformado numa cadela ¢ num cavalo, que Zadig conseguia descrever minuciosamente decifrando as pistas sobre 0 terreno. Acusado de furto © conduzido perante os jutzes, Zadig justficava- se reconstituindo em voz alta 0 trabalho mental gue Ihe permitica tragar o retrato dos dois animais que nunca havia visto: 168. J'ai vu sur la sable les traces d’un animal, et j'ai jugé aisément {que c'étaient celles d'un petit chien. Des sillons Iégers et longs, imprimés sur de petites éminences de sable entre les traces des pattes, mont fait connaitre que était une chienne dont les mamelles étaient pendantes, et qu’ ainsi elle avait fait des petits ily a pew de jours... Nessas linhas, e nas que seguiam, estava 0 embrito do ro- mance policial. Nelas inspiraram-se Poe, Gaboriau, Conan Doyle — os dois primeiros diretamente, o terceiro talver indiretamente® Os motives do extraordindrio destino do romance polic sio conhecidos. Sobre alguns deles voltaremos adiante. Mas pode- se observar desde ja que ele se fundava num modelo cognoscitivo a0 mesmo tempo antigiissimo © moderno. Da sua antiguidade simplesmente imemorial jé falamos. Quanto 4 sua modernidade, bastard citar a pégina em que Carvier exaltou os métodos e suces sos da nova ciéncia paleontolégica: aujourd'hui, quelgu’un qui voit seulement la piste d'un pied fourchu peut en conelure que V'animal qui a Isissé ect empreinte ruminait, et cette conclusion est tout aussi certaine qu'aucune autre em physique et en morale. Cette seule piste donne done & ‘celui qui observe, et la forme des dents, et la forme des machoi- res, et la forme des veridbres, et la forme de tous les 05 des jambes, des cuisses, des épaules et du bassin de Panimal qui vient de passer: cest une marque plus sire que toutes celles de aig? Um sinal mais seguro, talvez; mas também intimamente se- melhante. O nome de Zadig tornara:se tio simbélico que Thomas Huxley, em 1880, no ciclo de conferéncias proferidas para a difu- ‘io das descobertas de Darwin, definiu como “‘método de Zadig” © procedimento que reunia a hist6ria, a arqueologia, a geologia, a astronomia fisica e a paleontologia: isto 6, a capacidade de fazer profecias retrospectivas. Disciplinas como estas, profundamente petmeadas pela diacronia, nfo podiam deixar de se voltar para 0 paradigma indicidcio ou divinatério (e Huxley falava explicita- mente de adivinhagio voltada para 0 passado)" descartando 0 paradigma galileano. Quando as causas nko sio reproduziveis, 56 resta inferi-las a partir dos efeitos. 169 UL. 1, Poderfamos comparar os fios que compdem esta pesquisa aos fios de um tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a compor- se numa trama densa ¢ homogénea. A coeréncia do desenho é ve rificdvel percorrendo o tapete com os olhos em varias diregdes Verticalmente, e teremos uma seqiiéncia do tipo Serendip-Zadig- Poe-Gaboriau-Conan Doyle. Horizontalmente, ¢ teremos no inicio do século xvrit um Dubos que classifica, uma 20 lado da outra, em ordem decrescente de inconfiabilidade, a medicina, a connois seurship © a identificacao das escritas." Até mesmo diagonalmen- te — saltando de um contexto hist6rico para outro —, e as costas de monsieur Lecog, que percorreu febrilmente um “terreno in- culto, coberto de neve”, pontilhado de pistas de criminosos, com- parando-o a “imensa pagina branca onde as pessoas que procuta- mos deixaram escrito no s6 seus movimentos e seus passos mas também seus pensamentos secretos, as esperangas ¢ angtistia que vam" veremos perfilarem-se autores de tratados sobre a fisiognomonia, adivinhos babilonicos empenhados em ler as men- sagens escritas pelos deuses nas pedras © nos céus, cagadores do Neolitico © tapete é @ paradigma que chamamos a cada vez, conforme os contextos, de venatdrio, divinat6rio, indiciério ou semiscico. ‘Trata-se, como € claro, de adjetivos ndo-sinonimos, que no entan: to remetem a um modelo epistemolégico comum, articulado em disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo emprést- mo de métodos ou termoschave. Ora, entre os séculos xvitt € XIX, com © aparecimento das “‘ciéncias humanas”, a constelagio das disciplinas indicidrias modifica-se profundamente: aparecem novos astros destinados a um répido crepisculo, como a frenologia” ou um grande destino, como a paleontologia, mas sobretudo afirma- se, pelo seu prestigio epistemol6gico e social, a medicina. A ela se referem, explicita ou implicitamente, todas'as “ciéncias humans”. Mas a que parte da medicina? Na metade do século x1x, vemos desenhar-se uma alterativa: 0 modelo anatomicode um lado, 0 semidtico de outro, A metéfora da “anatomia da sociedade”, usada 170 numa passagem crucial também por Marx,% exprime a aspiragio 1 um conhecimento sistematico numa época que vira enfim o des- moronamento do tiltimo sistema filosético, © hegeliano. Mas, nfo obstante grande destino do marxismo, as cincias humanas aca- bbaram por assumir sempre mais( com uma relevante exceg#o, como veremos) 0 paradigma indicidrio da semiética, E aqui reencontra- mos a triade MorelliFreud-Conan Doyle da qual partimos 2. Até agora falamos de um paradigma indiciétio (e seus si: ‘nénimos) em sentido lato. Chegou 0 momento de desatticulé-o. Uma coisa & analisar pegadas, astros, fezes (animais ou humanas), catarros, cézneas, pulsagSes, campos de neve ou cinzas de cigarto outra é analisar escritas, pinturas ou discursos. A distingao entre natureza (inanimada ou viva) cultura € fundamental — certa- mente mais do que aquela, infinitamente mais superficial e mutavel, entre as disciplinas individuais. Ora, Morelli propusera-se buscar, no interior de um sistema de signos culturalmente condicionados como 0 pictérico, os signos que tinham a involuntariedade dos sintomas (¢ da maior parte dos indicios). Nio s6: nesses signos involuntérios, nas “miudezas materiais — um caligrafo as chama- ia de garatujas” compardveis is “palavras e frases prediletss”” que ‘‘a maioria dos homens, tanto falando como escrevendo. introduzem no discurso as vezes sem intenglo, ov seja, sem se aperceber”, Morelli reconhecia o sinal mais certo da individvali- dade do artista.” Dessa maneira, ele retomava (talver indiretamen- te) ™ © desenvolvia os principios de método formulados havia tanto tempo pelo seu predecessor Giulio Mancini. Que aqueles principios viessem a amadurecer depois de tanto tempo nfo era casual. Justamente entio vinha surgindo uma tendéncia cada vez mais nitida de um controle qualitative ¢ minucioso sobre a socie dade por parte do poder estatal, que utilizeva uma nogio de indi- vidao baseada, também ela, em tragos minimos e involuntétios. 3. Cada sociedade observa a necessidade de distinguit os seus ‘componentes; mas os modos de enfrentar essa necessidade variam conforme os tempos € os lugares." Existe, antes de mais nada, 0 171 nome; mas, quanto mais a sociedade ¢ complexa, tanto mais o nome parece insuficiente para circunscrever inequivocamente a identidade de um individuo. No Egito greco-romano, por exemplo, de quem se comprometia perante um notirio a desposar uma mulher ou a cumprir uma transagio comercial eram registrados, 10 lado do nome, poucos ¢ sumirios dados fisicos, acompanhados pela indicacio de cicatrizes (se existiam) ou outros sinais particula- res As possibilidades de erro ou substituigio dolosa da pessoa, porém, continuavam clevadas. Em comparacio, a essinatura aposta 20 pé da pigina nos contratos apresentava muitas vantagens: no 1 do século xvitt, numa passagem da sua Histéria pictorica, de- dicada aos métodos dos conhecedores, o abade Lanzi afirmava que 2 inimitabilidade das escritas individuais fora desejada pela natu: reza pare a “‘seguranga” da “sociedade civil” (burguess).® Certs ‘mente, as assinaturas também podiam ser falsificadas — ¢, sobre- tudo, exclufam do controle os analfabetos. Mas, apesar dessas falhas, por séculos ¢ séculos as sociedades curopéias nao sentiram a necessidade de métodos mais seguros e préticos de averiguacio da identidade — nem quando © nascimento da grande indistria, a mobilidade geogrsfica © social a ela ligada, a rapidissima forma- fo de gigantescas concentragées urbanas alteram radicalmente os dados do problema. Todavia, numa sociedade com tais caracterfs- ticas, fazer desapasccer os prdprios rastros © reaparecer com uma outra identidade cra uma brincadeira de crianga — no s6 numa cidade como Londres ou Paris. Mas somente nas iltimas décadas do século xix foram propostos por virios lados, em concorréncia entre si, novos sistemas de identificagio. Era uma exigéncia que surgia dos fatos contemporaneos da luta de classes: @ constituigao cde uma associagio internacional dos trabalhadores, a repressio da ‘oposicio operdria depois da Comuna, as modificagées da crimina- Tidade. © aparecimento de relagdes de produgio capitalistas havia provocado — na Inglaterra desde 1720 aproximadamente,™ no resto da Europa quase um século depois, com o Cédigo Napoled- nico — uma transformacio, ligada ao novo conceito burgués de propriedade, da legislagio, que aumentara o nimero de delitos 172 puniveis ¢ © valor das penas. A tendéncia & criminalizagio da luta de classes veio acompanhada pela construgio de um sistema carce- rivio fundado sobre a detengio por longo prazo." Mas o céreere produz criminosos. Na Franga, 0 niimero de reincidentes, em con- tinuo aumento a partir de 1870, alcangou no final do século uma porcentagem igual & metade dos criminosos submetidos a proces so." O problema da identificagio dos reincidentes, que se colocou naquelas décadas, constituiu de fato a caberade-ponte de um pro- jeto geral, mais ou menos consciente, de controle generalizado sutil sobre a sociedade. Para a identificagio dos reincidentes era necessério provar 4) que um individuo jé havia sido condenado, 5) que o indivi. duo em questio cra o mesmo que j& sofrera condenagio. " O pri meiro ponto foi resolvido pela criagio dos registros policiais. O segundo levantava dificuldades mais sérias. As antigas penas que marcavam um condenado para sempre, estigmatizando-o ou mati- lando-o, haviam sido abolidas. © lirio gravado no ombro de Mi- lady permitira a D'Artagnan reconhecer nela uma envenenadora jf punida no passado pelos seus crimes — enquanto dois fugiti vos como Edmond Dantés ¢ Jean Valjean puderam reaparecer na cena social disfarcados sob trajes respeitiveis (bastariam esses ‘exemplos para mostrar até que ponto a figura do criminoso rein- cidente pesava na imaginacio oitocentista).™ A. respeitabilidade burguesa precisava de sinais de reconbecimento igualmente inde: léveis, mas menos sanguindrios e humilhantes do que os impostos sob 0 ancien régime. A idéia de um enorme arquivo fotogtifico criminal foi num primeiro momento descartada, porque colocava problemas de clas- sificacio insoliveis: como recortar elementos discretos no conti- nnuo da imagem? A via da quantificagio pareceu mais simples e rigorosa. De 1879 em diante, um funciondrio da prefeitura de Paris, Alphonse Bertillon, elaborou um método antropométrico (que depois ilustrou em vérios ensaios ¢ memérias) baseado em minuciosas medigdes do corpo, que convergiam para uma ficha pessoal. E claro que um pequeno engano de poucos milfmetros criava as premissas de um erto judicial; mas o principal defeito do 173 méiodo antropométrico de Bertillon era outro, isto é, 0 de ser pu ramente negativo. Ele permitia separar, no momento do teconhe- cimento, dois individuos diferentes, mas ndo afirmar com seguran- ‘2 que duas séties idénticas de dados se referissem a um mesmo individuo."" A. irredutivel elusividade do individuo, expulsa pela porta através da quantificagio, voltava a entrar pela janela, Por iss0, Bertillon propés integrar © método antropométrico com © chamado “‘retrato falado”, isto é, a descrigéo verbal analitica das unidades discretas (nariz, olhos, orelhas etc.), cuja soma deve- ria restituir a imagem do indivicuo — possibilitendo assim o pro- cedimento de identificagio. As piginas de orelhas exibidas por Bertillon'® relembram irresistivelmente as ilustragSes que, nos mesmos anos, Morelli incluia em seus ensaios. Talvez nfo se tra tasse de uma influéncia direta — ainda que seja surpreendente verificar que Bertillon, em sua atividade de especialista grafoldgi co, considerava indicios reveladores de uma falsificagio as part cularidades ou “idiotismos” do original que o falsitio nao conse- guia reproduzir e, eventualmente, substitufa pelas suas préprias” Como se tera percebido, © método de Bertillon era incrivel- mente complicado. Jé nos referimos a0 problema posto pelas me diagdes. © “retrato falado” piorava ainda mais as coisas. Como distinguir, no momento da descrigio, um nariz giboso-areado de sar os matizes de um olho uum nariz.arcado-giboso? Como cla verde-azulado? (Mas desde a sua dissertacdo de 1888, posteriomente cotrigi- da ¢ aprofundada, Galton propusera um método de identficagto muito mais simples, no que se referia tanto a coleta dos dados como sua classficasio. O método baseava-se, como se sabe, ‘nas impressdes digitais. Mas o proprio Galton, com muita hones- tidade, reconhecia ter sido precedido, tedrica e praticamente, por outros. ‘A anilise cicntifica das impresses digitais iniciarase desde 1823 com o fundador da histologia, Purkyne, na sua dissertagio Commentatio de examine physiologico organi visus et systematis cutanei. Ele distinguiu e desereveu nove tipos fundamentais de linbas papilares, 20 mesmo tempo afirmando, porém, que nio exis: 174 tem dois individuos com impresses digitais idénticas. As possibi- lidades de aplicacio pritica da descoberta eram ignoradas, a0 con- tritio de suas implicagdes filoséficas, discutidas num capitulo intitulado “De cognitione organismi individualis in genere”."* O. conhecimento do individuo, dizia Purkyne, é central na medicina pritica, a comegar pela diagnose: em individuos diferentes os sin- tomes se apresentam de formas diferentes ¢, portanto, devem set curados de modos diferentes. Por isso, alguns modernos, que nio nomeava, definiram a medicina prética como “‘artem individuali- sandi (die Kunst des Individualisirens)”!"" Mas os fundamentos dessa arte se encontravam na filosofia do individuo. Aqui Purky- nne, que quando jovem estudara filosofia em Praga, reencontrava 0s temas mais profundos do pensamento de Leibniz. O individuo, “ens omnimodo determinatum” [ente totalmente determinado], possui uma singularidade verificdvel até em suas caracteristicas imperceptiveis, infinitesimais. Nem 0 acaso nem os influxos exter- ros bastam para explicéla. E necessério supor a existéncia de uma norma ou “typus” interno, que mantém a diversidade dos orga- niismos dentro dos limites de cada espécie: © conhecimento dessa “norma” (afiemava profetivamente Purkyne) “descerraria 0 co: nhecimento oculto da natureza individual”.* © erro da fisiogno- monia foi o de enfrentar a diversidade dos individuos 4 luz de opinides preconcebidas ¢ conjeturas apressadas; dessa maneia, foi até agora impossivel fundar uma fisiognomonia cientfica, descriti- va, Abandonando o estudo das linhas da mio a ‘va ciéncia” dos quiromantes, Purkyne coneentrou a sua atengio num dado muito ‘menos aparente — e nas linhas impressas nas pontas dos dedos encontrava a senha oculta da individualidade. Deixemos a Europa por um momento ¢ passemos a Asia. A diferenga de seus colegas europeus, ¢ de forma totalmente inde- pendente, os adivinhos chineses © japoneses também haviam se interessado pelas linhas pouco aparentes que suleam a pele da mio. O costume, atestado na China, e sobretudo em Bengala, de impri- mir nas cartas € documentos uma ponta de dedo borrada de piche ou tinta!™ provavelmente tinha por trés uma série de reflexdes de carter divinatério. Quem estava habituado 4 decifrar escritas 175 misteriosas nos veios das pedras ou da madeira, nos rastros dei- xados pelos passaros ow nos desenhos impressos nas costas das tartarugas™ certamente chegaria sem esforgo a conceber como ‘uma escrita as linhas impressas por um dedo sujo numa superficie ‘qualquer. Em 1860, sir William Herschel, administrador-chefe do distrito de Hooghly em Bengela, notou esse costume difundido entre as populagdes locais, avaliou sua utilidade ¢ pensou em ‘silo para um melhor funcionamento da administragio britanica. (Os aspectos tebricos da questio nfo o intercssavam; a disserta- ‘gio latina de Purkyne, que por meio século permaneceu. como letra morta, etalhe totalmente desconhecida,) Na realidade, obser- vou Galton retrospectivamente, sentia-se uma grande necessidade cde um instrumento de identificagio eficaz — nas col6nias britini- cas, € no somente na India: 08 nativos eram analfabetos,litigio sos, astutos, mentirosos e, aos olhos de um europeu, todos iguais ‘entre si, Em 1880, Herschel anunciou em Nature que, depois de dezessete anos de experiéncias, as impressGes digitais foram intro- duzidas oficialmente no distrito de Hooghly, onde ji eram usadas havia trés anos com Stimos resultados. Os funcionatios impe- riais tinhamse apropriado do saber indiciério dos bengaleses viraram-no contra eles. Do artigo de Herschel, Galton tirou a inspiragio para repen- sar ¢ aprofundar sistematicamente toda a questio. O que possi litava sua pesquisa era a confluéncia de trés elementos muito dife- rentes. A descoberta de um cientista puro como Purkyne; o saber cconcreto, ligado & pritica cotidiana das populagies bengalesas; a sagecidade politica e administrativa de sir William Herschel, fiel funcionério de Sua Majestade Britinica. Galton prestou homens: gem ao primeiro © a0 terceiro, Tentou, além disso, distinguir peculiaridades racinis nas impressGes digitais, mas sem sucesso; de qualquer maneira, comprometew-se a prosseguir as pesquisas sobre algumas tribos indianas, na esperanga de nelas encontrar caracteristicas “mais préximas as dos macacos”” (a more monkey like pattern). ‘Além de dar uma contribuigio decisiva & andlise das impres Galton, como se disse, vira também suas implicagées sbes digit 176 priticas. Em pouguissimo tempo © método foi introdurido na Inglaterra, ¢ dali gracualmente no mundo todo (um dos tiltimos paises a ceder foi a Franca). Desse modo, cada ser humano — observou orgulhosamente Galton, aplicando si mesmo o elogio 0 seu concorrente Bertillon proferide por um funcionério do Ministétio do Interior francés — adquiria uma identidade, uma individualidade sobre a qual poder-se-ia se basear de modo certo duradouro." Assim, aguela que, aos olhos dos administradores britinicos, fora até pouco antes uma multidio indistinta de “fucas” bengs. lesas (para usar 0 termo pejorativo de Filarete) tornava-se subite mente uma sétie de individuos assinalados cada qual por um trago bioldgico especifico, Essa prodigiosa extensio da nogio de indivi- dualidade ocortia de fato através da relagio com o Estado e seus Srgios burocréticos ¢ policiais. Até o iltimo habitante do mais ‘miserdvel vilarejo da Asia ou da Europa tomava-se, gragas as im- presses digitais, reconecfvel e controlével. 4. Mas 0 mesmo paradigma indiciério usado para elaborar formas de controle social sempre mais sutis e minuciosas pode se converter num instrumento para dissolver as névoas da ideologia que, cada vez mais, obscurecem uma estrutura social como a do capitalismo maduro, Se as pretenses de conhecimento sistemético mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a iddia de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrério: a existéncia de uuma profunda conexio que explica os fenémenos superficiais € reforcada no préptio momento em que se afirma que um conheci mento direto de tal conexio no € possivel. Se a realidade é opaca, cexistem zonas privilegiadas — sinais, indfeios — que permitem decifri-la Essa idéia, que constitui o ponto essencial do paradigma indi- cidtio ou semidtico, penctrou nos mais variados ambitos cognosci- 10s, modelando profundamente as ciéncias humanas. Mindsculas particularidaces paleogrificas foram empregadas como pistas que permitiam reconstruir trocas ¢ transformagSes culturais — com uma explicita invocagio a Morelli, que saldava a divida que Man- 7 ini contraira junto a Allacci, quase +2 séculos antes. A repre- sentagio das roupas esvoagantes nos pintores florentinos do século XV, 08 neologismos de Rabelais, a cura dos doentes de escréfula pelos reis da Franca e da Inglaterra sio apenes alguns entre os exemplos sobre o modo como, esporadicamente, alguns indicios rminimos eram assumidos como elementos reveladores de fendme- nos mais gerais: a visio de mundo de uma classe social, de um cscritor ou de toda uma sociedade.™ Uma disciplina como a psica- nilise constitui-se, como vimos, em torno da hipstese de que por- menores aparentemente negligencidveis pudessem revelar fendme nos profundos de notivel alcance. A decadéncia do pensamento sistemético veio acompanhada pelo destino do pensamento aforis mitico — de Nietzsche a Adomo. O préprio termo “aforismético” € revelador. (E um indicio, um sintoma, um sinal: do paradigma nio se escapa.) Com efeito, Aforismos era o titulo de uma famosa obra de Hipéerates. No século xv1t, comesaram a sair coletineas de Aforismos politicos. A literatura aforismética é, por defini io, uma tentativa de formular juizos sobre 0 homem ¢ a socieda- de a partir de sintomas, de indicios: um bomem uma sociedade ue estio doentes, em crise. E também “crise” é um termo médi- co, hipocritico.™ Pode-se demonstrar facilmente que o maior ro- mance da nossa época — a Recherche — € constituido segundo um rigoroso paradigma indiciério.” 5. Mas pode um paradigma indiciério ser rigoroso? A orien ‘ago quantitativa ¢ antiantropocéntrica das ciéncias da navureza a partir de Galileu colocou as ciéncias humanas num desagradével dilema: ou assumir um estatuto cientifico frégil para chegar @ re- sultados relevantes, ou assumir um, estatuto cientifico forte para chegar a resultados de pouca relevancia. $6 a lingtifstica conse- uiu, no decorrer deste século, subtrar-se a esse dilema, por isso pondo-se como modelo, mais ou menos atingido, também para outras disciplinas. ‘Mas vem a diivida de que este tipo de rigor € no 96 inatin- pivel mas também indesejavel para as formas de saber mais ligadas a experiencia cotidiana — ou, mais precisamente, a todas as si ® SU ene eee ses em que a unicidade € 0 cardter insubstitutvel dos dados sio, aos olhos das pessoas envolvidas, decisivos. Alguém disse que apaixonar-se & a superestimagio das diferengas marginais que exis- fem entre uma mulher e outra (ou entre um homem e outro). Mi isso também pode se estender as obras de arte ou aos cavalos.!* Em situagGes como essas, 0 rigor flexivel (se nos for permitido 0 ceximoro) do paradigma indicidrio mostrase inelimindvel. Trata-se de formas de saber tendencialmente mudas — no sentido de que, como jé dissemos, suas regras no se prestam a ser formalizadas rnem ditas. Ninguém aprende o oficio de conhecedot ou de diagnos- ticador limitando-se a pér em prética regras precxistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (dizse notmalmente) ele ‘mentos imponderdveis: faro, golpe de vista, intuigao. Até aqui abstivemo-nos escrupulosamente de empregar esse termo minado. Mas, se se insiste em querer usé-lo, como sinénimo de processos racionais, seré necessério distinguir entre uma intui- so baixe © uma intuigio alta A antiga fisiognomonia érabe estava baseada na firasa: nogio complexa, que designava em geral a capacidade de passar imediata mente do conbecido para 0 desconhecido, na base de indicios. O termo, extraido do vocabulitio dos sufi, era usado pare designar tanto 4s intuigdes misticas quanto as formas de discernimento € sagacidade, como as atribuidas aos filhos do rei de Serendip.” Nessa segunda acepsio, a firasa nfo € sendo 0 érgio do saber indi- Essa “‘intuigdo baixa” esté arraigada nos sentidos (mesmo su- perando‘os) — ¢ enquanto tal no tem nada a ver com a intuicio Suprasensivel dos vitios irracionalismos dos séculos x1x e xx, E difundida 20 mundo todo, sem limites gcogrificos, histdricos, tnicos, sexuais ou de classe — e esté, portanto, muito distante de qualquer forma de conhecimento superior, ptvlégio de poucos cleitos. E patriménio dos bengaleses expropriados do sea saber por sir William Herschel, dos cagadores, dos marinheiros, das mulheres. Une estreitamente o animal homem as outras espécies animais 179 Keungen mur Sala dei Giganti Ginlio Romans", em Mistelungen des Kansthistorischen Institutes in Florenz, xxt (1977), pp. 3548 (que me foi ‘ssinalado por Carlos Dionisoti). Sobre a dedicatéria de Doke Ticino, Giscutidaacima, ver as indieagSes de C. Dioaisoti fem Tiziano ¢ il maniersmo europeo, « cargo de R. Palluccini, Florengs, 1978 (mas o ensaio todo & importante). (No mesmo livro, ver o ensaio de IM, Gregori, “Tiziano e Aretino”,) A importincia das vulgarizagbes de Ovidio para Ticiano foi ressalteda, segundo Dionisoti, por A. Chastel, “Titien et les humanistes", em Tiziano Vecellio (atas dos coléquics dos Lincei, 29), Roma, 1977, pp. 31-48. De opinido diferente, A. Gentli, Di Tiziano 3 Tiziano, Roma, 1980, que polemiza (pp. 173 ss.) com a interpretagio pro- posta por mim. Corcijo um engano a propésito do nome do tradutor de Achille Tazio © esclarego que a teferéncia 3 Danse de Ticano valia. para imbas as versbes. De resto, nio me parece que Gentili tena entendido o sentido da minha argumentacio, que visava a negar nfo a capacidade de invengio de Tiiano (imegine!)” mat simplesmente a sim dependéncia cm relagio ao texto latino, conforme a hipétese de Panofsky. As tentativas de Aeselorizar 4 importincia da passager, to clara, da dedicatéria de Dolce, estdo evidentemente fadadas a0 insucesso) SINAIS (1) Emprego este termo na acepeio proposta por T. S. Kuhn, La strata delle riolaciont sctentificke, Tarim, 1969, prescindindo das’ die ingSes € especificagées posteriormente introduzidas pelo préprio autor (cf Postscript — 1969", em The structure of scientific revolutions, 2° ed. am pliada, Chicago, 1974, pp. 174 ss) (2) Sobre’ Morelli, ef. aniss de tudo E. Wind, Arte e anarcbia, Milao, 1972, pp. 527, 1668, ¢ a bibliografi ali ctada, Para a biografia acrescentar M. Ginoulhaic, “Giovanni Morelli. La vita", em Bergomune, xxxt¥ (1940), 22 2, pp. 31-4; 10 método moreliano voltaram recentemente R. Wolheim, "Giovanni Morelli and the origins of scientific conncisseurship”, em On ar? and the mind. Essays and lectures, Londres, 1973, pp. 177-201; H. Zerner, ‘Giowanni Morelli et la scence de Tart”, em Revue de Art, 978, n° 01 pp. 209-15, © G. Previtali, “A propos de Morelli, idem, 1978, n> 42, pp. 2731, Outras contrbuigses estio eitadas na nota 12. Inflismente, falta om estudo geral sobre Morelli que analise,além dos texzos de histéria da arte, 2 formagio cienifca juvenil, as relagSes com o ambiente alemio, a amizade fom De Sancti, a participacao ma vida politica, No que se refere a De Sanctis, ver a carta na qual Morelli o indicava para a cadcira de literatura italiana no Poliéenico de Zurich (F. De Sancti, Lettre dall'slio (1853. 1860), « cargo de B. Croce, Bari, 1938, pp. 348), e também os indices dos volumes do Epistelario desanctsiano (4 vol, Turim, 195648). Sobre 0 cengajamento politico de Morelli, ver por ora as ripidas referéncas de G. Spini, Risorgimento ¢ protestanit, Népoles, 1936, pp. 114, 261, 235, Para 1 repereussio eutopeia dos textos de Morelli, ver © que cle escrevia de Minghetsi, em 22 de junbo de 1882: “O velho Jacob Burckhardt, 260 ‘que fui visitar ontem a noite, dewme a methor scolhida, © quis passar comigo toda a noite. £ um homem origialissimo tanto no fazet como 10 pensar, ¢ agradaria também a vocé, mas seria de agrado principalmente i possa senhora Laura. Falowsme do livro dé Lermolieff, como se © conhecesse se cor, € serviuse dele para me fazer uma infinidade de perguntas — coisa {gue Tisonjeos ndo poucd o meu amor proprio. Hoje de manhi vou me en contrar de novo com cle..." (Biblioteca Comunale di Bologna (Archiginna sio], Carte Minghetti, xx, 54), G) Longhi julgava Morelli, em comparagio 20 “grande” Cavaleaslle, ‘menor, mas também notivel”; mas logo depois falava de “indicagies immrialstas” que tornivam o seu “mérodo presungoso © esteticamente im: prestdvel” (*Cartella tixianesca”, em Sugai e ricerche — 1925.1928, Floren {4 1967, p. 234), (Sobre as impliagées deste © outros julzos semelhantes de Longhi, cf. G. Contini, "Longhi prosstore”, em Aliré esereih (1942-1971), Turim, 1972, p. 117.) A comparasio com Cavalcaselle, rotalmente desfavo € retomada por exemplo por M. Fagiolo em G. C. Argan € M. Pagiolo, Guida alla storie dellarte, Florenga, 1974, pp. 97, 101 (4) CE. Wind, Arie, cit, pp. 645. Croce, a0 invés, falou de “sensual: dade dos pormenores immediate « separadon” (La critica © le storia delle arti Figurative. Question: di metodo, Bati, 19463, p. 15) (5) Cf. Longhi, Sugg, cit, p. 321: “Para 0 sentido de qualidade em Morelli, aliés tio paseo desenvolwide e tio freqiientemente desviado do poder lnresstivel dos simples atos do ‘reconhecedor ..."; logo depois define Mo tellidefinitivamente como 0 “mediocre e nefando extico de Gorlaw" (Gor law & a versio russa de Gorle, localidade perto de Bergamo onde morava Morel-Lermolief) (6) CE Wind, Are, cit, p. 63 (7) CE. E. Castelnuovo, “Attribution”, em Encyclopaedia universals, vol. 1, 1968, p. 782. Mais em geral, A. Hauser, Le teorie dell'arte. Tendenze ¢ metodi deta critica moderns, Turim, 1969, p. 97, ceenpara 0 método de detetive de Freud a0 de Morelli (ef. sot 12). (8) A. Conan Doyle, “The cardbord box", em The complete Sherlock Holmes short stores, Londres, 1976, pp. 92-47 (trad. it. em Liultimo saluto 4di Sherlock Holmes, vol. 1, Milfo, 1974, pp. 73-108). A passagem citada encontrase, respectivamente, nas pp. 932 ¢ 86. (9) CE id, The complete Sherlock Holmes, cit, pp. 9378 (e L'udtimo soluto, cit, pp. 943), “The cardbox” apareceu pels’ primeiea vex em The Strand Magazine, ¥, jancirojunho de 1893, pp. 61.73. Ors, foi notado (cf ial, The annotated Sherlock Holmes, a eargo de W. S. Bating-Gould, Lon- dres, 1968, vol. 1, p. 208) que na shesma revista, poucos meses depois, foi Publicado um artigo andnimo sobre as diferentes formas da orelha humana (Ears: a chapter on™, em The Strand Magazine, vi, julho-dezembro 1893, pp. 38891, 525-27). Segundo © curador da Annotated Sherlock Holmes (cit, p. 208), 0 autor do artigo até poderia ter sido Conan Doyle, que teria acabado por redigit a contribuigio de Holmes 10 Anthropological Journal (engano em lugar de Journal of Anthropology). Mas tratvase provave mente de uma suposicdo gratuita: 0 artigo sobre as orclhas precedigo, sempre no Strand Megacie, v, janeitojunho de 1893, pp. 11923, 295-301, por um 261 artigo intvulado “Hands”, assinado por Beckles Wilson. De qualquer me neira, a pigina do Strand Magazine que repredaz as virias formas de orelha lembra irresstivelmente as ilustrges que acompanham os textos de Mo: relli — 0 que confirma a circulasio de temas do género na cultura daqueles (10) Todavia, no se pode exeluir que se trata de algo mais que am patalelismo. Um tio de Conan Doyle, Henry Doyle, pintor e eritico de arte, fornouse em 1869 diretor da National Art Gallery de Dublin (cf. P. Nordon, Sir Artbur Connan Doyle. L’komme et Voewore, Pasi, 1964, p. 9). Emm 1887 ‘Morel encontrou Henry Deyle,¢ escreveu a0 amigo sir Henry Layard: “Ce ‘que vous me dites de la Galérie de Dublin ma beaucoup interessé et cautane plus que j'si cu la chance 4 Londres de faite la connaissance per tonnelle de ce brave Monsicur Doyle, qui ma fait a meilleure des impres sions... hélas, au Tiew des Doyle quels personnages crouvez vous ordinate ment a la direction des Galeries en Europe?!” (British Museum, Add. ms 38965, Layard Papers, vol. xxx¥, £120»). O conhecimento do método mo- telliano por parte de Henry Doyle (Gbvio, na époct, para um histoiador, dda arte) € provado pelo Catalogue of the works of art in the National Gal lery of Ireland (Dublin, 1890) por ele tedigido, que utilize (¢., por exem- plo, p. 87) 0 manual de Kugler, profundamente reclaborado por Layard em 1887 sob orientagio de Moreli. A primeira tracusio inglesa dos textos de Morelli apareceu em 185} (cf. a bibliogratia em Iualienische Malerei der Renaissance im Briefwecbsel von Giovanni Morelli und Jean Paul Richter = 1876-1891, a cargo de J. ¢ G. Richter, Baden-Baden, 1960). A_ptimeira aventura de Holmes (A siudy in scarlet) foi impressa cm 1887. Tudo isso tgere a porsibilidade de um conhecimento direto do métedo morelliana por parte de Connan Doyle, por intermédio do tio. Mas tratase de uma supo ‘gio nio-neceasdria, na medida em que os textos de Morelli certamente no fram 0 tinico veicaio de idéias como as que tentamos anaisr. (ul) Cf, Wind, Aree, cit, 62. (12) Além de uma referéncia precise de Hauser (Le teorie dell'arte, cit, p. 97; 0 original é de 1959), ver: J. J- Spector, “Les méthodes de la critique d'art et la psychanalyse freudicane”, em Diogenes, 1969, n.° 66, pp. 7201; H. Damisch, “La partie et le tout”, em Reoue d'Estbétigue, 2, 1970, pp. 168-88; id, “Le gardien de Fincerprétaion", em Tel Quel, n2 43, inverno 1971, pp. 7096; R Wollheim, “Freud and the understanding of the art", em On ort and the mind, cit, pp. 208-10. (13) Cf. S. Freud, I Mosé di Michelangelo, Turim, 1976, pp. 367 (para o texto original, ef. “Det Moses des Michelangclo", em S. Freud, Gesammelte Werke, wl. x, p. 185). R. Bremer, “Freud and Michelangelo's Moses”, em American Imago, 33, 1976, pp. 60.75, discute a interpretagio do ‘Moisés'proposta por Freud, sem ocuparse de Morell. Nio pude ver K Vietorius, “Der ‘Moses des Michelangelo’ von Sigmund Freud”, em Enifal twig der Psychoanalyse, a cargo des. Mitscherlch, Stuttgart, 1956, pp. 110, (18) Ch. 8. Kofman, L’enfonce de l'art. Une interprézation de Uesthé tique freadienne, Pati, 1975, pp. 19, 27; Damisch, "Le gardien”, ct, pp. 70 ss; Wollheim, On art and the mind, cit, p. 210, 262 (13) B uma excegdo 0 dtimo ensaio de Spector, que porém reps a cxistencia de uma relagio real entre 0 método de Morelli ¢ 0 de Freud (Les méthodes", cit, pp. 825) (16) CE. $_ Freud Linerpretacione dei zogni, Turim, 1976, p. 289, nota (na p. 107, nots, estio indicados dois textos posteriores de Frew! sobre suas relagdes com "Lynkeus”). (17) CEM. Robert, La rivolusione psicoanaltice. Le vita ¢ Vopera di Freud, Terim, 1967, p. 84 (18) CE. E. H, Gombrich, “Freud e Varte”, em Freud ¢ la psicologie dellere, Tarim, 1967, p. 14. € signficativo que Gombrich nesse ensaio no ‘mencione a passagem de Fread sobre Morell (19) I. Lermolieff, Die Werke italienscher Meister in den Galerien von Miinchen, Dresden und Berlin, Ein kritscher Versuch, Aus dem Rusti schen sibersets von Dr. Jobannes Schwarze, Leipsig, 188. (20) G. Morel: (I, Lermoliet{), Italian matters in German galleries. A

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