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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CÍCERO DA SILVA OLIVEIRA

NA MEMÓRIA, NO ESPAÇO, NO CORPO:


OS RITUAIS DOS PENITENTES DO GENEZARÉ
(ASSARÉ-CE, 1951 AOS DIAS ATUAIS)

FORTALEZA – CEARÁ
2015
CÍCERO DA SILVA OLIVEIRA

NA MEMÓRIA, NO ESPAÇO, NO CORPO:


OS RITUAIS DOS PENITENTES DO GENEZARÉ
(ASSARÉ-CEARÁ, 1951 AOS DIAS ATUAIS)

Dissertação submetida ao Programa de Pós-


Graduação em História em Nível de Mestrado,
do Centro de Humanidades, da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial para
a obtenção do grau de Mestre em História.

Área de Concentração: História e Culturas


Orientadora: Profª. Drª. Sílvia Márcia Alves
Siqueira

FORTALEZA – CEARÁ
2015
À minha mãe, d. Teresinha,
e à minha irmã, Naizete,
pelo alicerce que representam
na minha trajetória.
AGRADECIMENTOS

É hora de agradecer! Declarar publicamente que sem as instituições e pessoas mencionadas


adiante minha trajetória acadêmica recente teria sido muito mais penosa e os resultados deste
trabalho aquém do que ora segue. Devo dizer que a ordem dos agradecimentos não obedece
ao nível de importância das contribuições. Aliás, é muito difícil para mim hierarquizar tantos
aportes fundamentais.
A minha estada em Fortaleza durante o período no qual frequentei o MAHIS foi facilitada
pelas contribuições de d. Maria Amélia, “Seu” João Sérgio e d. Chaguinha que ofereceram
hospedagem na minha primeira semana na Capital. Os contatos com a família Medina (minha
querida professora Daniela, Tetê e Diana) proporcionaram uma parceira essencial naqueles
primeiros meses de 2012 enquanto eu passava por um processo de adaptação as exigências da
“cidade grande” e aos prazeres do meu Benfica (Ah, o Black Cat!). Tenho uma dívida de
gratidão impagável com o meu amigo Evanderto Almeida e com minha amiga Vandinha pelo
que proporcionaram a mim ao longo daquele ano. A amizade de vocês permanece
indispensável. Minha gratidão, gente querida!
Entretanto, para que Fortaleza e o MAHIS adquirem-se ares de realidade contei com as
colaborações impossíveis de mensurar e difíceis de enumerar do meu povo da URCA,
professores e colegas. Meus queridos e queridas, parceiros e parceiras, um pouco de distância
não consegue dissipar os afetos construídos ao longo dos quatro anos de graduação, Elaine,
Adriana e Victor Emmanuel (Permanente). Meus professores e professoras, Josinete (a
orientadora), minha querida (inquieta porque viva) Fatiana, meu chapa Danilo Linard,
professor Océlio (meu primeiro interlocutor a fundamentar os meus diálogos com a História
Oral). As professoras Jane Semeão, Rúbia Micheline e Sônia Meneses igualmente expuseram
suas generosidades no fornecimento de materiais e sugestões de estudo fundamentais para o
meu ingresso no Mestrado. E o que dizer dos incentivos afáveis de Jucieldo? Ah, Joaquim...
sem você por perto em momentos cruciais não sei se as metas seriam alcançadas... Sintam-se
todos e todas, abraçados e abraçadas, pela minha gratidão.
As professoras Drª. Anna Christina Farias de Carvalho e Drª. Roberta Bivar Carneiro Campos
atenderam prontamente os meus contatos e forneceram sugestões de grande valia. A ambas
igualmente agradeço.
O despertar do meu interesse pelo tema foi também possibilitado pelas convivências
inspiradoras com os parceiros e parceiras da Associação Malungo de Produções Artísticas e
Culturais (Ponta da Serra-Crato-CE.) e da Fundação Balceiro de Cultura Popular (Assaré-
CE.). Devo declarar também minha dívida de gratidão com a equipe da Secretaria Municipal
de Cultura de Assaré, liderada alternadamente por Eugênio Oliveira, Marcos Salmo e Felipe
Lira. Os ensinamentos de cada um de vocês gravaram uma profunda marca na minha
trajetória de vida. .
Nesse meu recente percurso, tem sido crescente a admiração pelo padre Vileci Vidal. Suas
escolhas e posturas, associadas à sua colaboração, inspiram meu olhar e encorpam o meu
trabalho de pesquisador. Obrigado, querido!
Menciono aqui a atenção dispensada por Luciano Lima e demais funcionários da Paróquia de
Nossa Senhora das Dores de Assaré permitindo o meu acesso a alguns arquivos paroquiais de
grande importância para os meus anseios. Elisabete Alencar, a quem também agradeço, da 1ª.
Igreja Batista de Assaré concedeu a mim, mais uma vez, seu trato gentil e disponibilizou
alguns documentos do acervo da sua instituição que sugeriram outros olhares acerca do
campo religioso local.
Quero igualmente abraçar os meus colegas e colegas do MAHIS. Vamos lá! Fred (e os nossos
itinerários etílicos e afetivos pela Cidade, quase poéticos), Eudesia (Deputada querida!),
Rochester (vai longe e “sem mastigado de sola”...), Cintya (a Bebê merece, na teoria e na
prática...), Tiago (estudante dedicado, de “outros carnavais”...), Cecília (construiu uma
pesquisa e trabalho, tenho por certo, de referência), Gabriela (Gaby ‘n The Beatles), Eliene
(sempre muito gentil e afetuosa. Sorria, menina!). Calma, Rok Sônia! Para de chorar! Deixei
você por último, mas não quer dizer que a sua importância é menor (Engole esse choro!).
Há espaço para mencionar as meninas Ana Cláudia, Mayara, Natália e Elcelane. Grato pelos
diálogos ainda em construção!
Meu amadurecimento acadêmico é tributário das intervenções sempre precisas dos
professores e professoras, Zilda Lima (que reúne bagagem intelectual com sensibilidade
ímpar), Erick Araújo (algumas dicas mereciam um capítulo próprio nesse texto. Salve o
refrigério das manhãs de sábado!), João Rameres (professor estimado) e Altemar Muniz
(estimado anfitrião...). Sem o suporte teórico ofertado pelo professor Gisafran Nazareno Mota
Jucá as reflexões acerca dos procedimentos e fundamentos da História Oral que marcam
algumas das páginas que seguem seriam inviáveis ou inconsistentes. Agradeço-o também pelo
sua disposição em participar da Banca Examinadora deste trabalho. Ao professor Gérson
Júnior, pela sua contribuição espontânea e desinteressada, devo dizer: sinta-se igualmente
construtor deste trabalho.
À professora Sílvia Márcia Alves Siqueira, minha orientadora, coube indicar caminhos nunca
antes por mim vislumbrados e que deram a pesquisa o corpo e a coerência de que tanta
carecia. Seu nível de exigência e suas palavras colocaram diante de mim os desafios e
estímulos necessários ao percurso. Minha gratidão...
Sem reservas, deixo também meus agradecimentos à Professora Edilece Souza Couto (UFBA)
pela atenção dispensada quando convidada a participar da Banca Examinadora.
Aos servidores públicos estaduais que atuam no MAHIS deixo também o meu
reconhecimento pela paciência diante do desrespeito (quase inevitável) com alguns prazos e
normas...
Entretanto, tudo pareceria sem sentido sem a disposição dos Penitentes do Genezaré em abrir
suas memórias e residências para mim. A “Seu” Deca, “Seu” Luizinho, “Seu” Joaquim, “Seu”
Antônio de Quinco, Fortunato, Antônio de Dora, Luizeto, Bacum e as suas famílias devoto o
meu respeito e publico minha gratidão e desejos de longevidade a todos e todas.
Agradeço a todos os meus alunos e alunas que dialogaram e ainda dialogam comigo nessa
minha opção pela educação que já dura pouco mais de uma década. Não esqueço também dos
meus colegas professores e professoras pelos muito incentivos ao longo da nossa convivência
dentro e fora dos muros das escolas nas quais trabalhei e trabalho. Minha gratidão aos colegas
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI-Campus Picos)
Os estímulos primeiros e constantes para essa “aventura” são de responsabilidade de quem
tem suportado ao meu lado (e bem perto) parte das delicias e angústias do percurso, Edna. As
crianças Júnio, Clara e Giovana fazem parte desse caminho... Meu melhor muito obrigado aos
quatro...
Finalmente, sem o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação, a pesquisa e os seus resultados estariam
fortemente comprometidos.
Tenho plena consciência que sou e realizo a soma de muitas palavras, pensamentos,
sentimentos e ações de um grupo de pessoas e de divindades (Eparrêi Oyá!!! Êxeu Epá Babá!)
mais facilmente lembráveis porque presenças constantes e de outras tantas que nem ao menos
o nome recordo e há ainda aquelas que efetivamente contribuíram comigo e que nem sequer
reconheço o rosto.
Resta dizer que a minha ambição não pequena, a minha inquietação e o meu senso de
realidade não permitem a mim o meu envaidecimento. Não estou no começo e dificilmente
isto é o meu fim.
Permaneçam comigo e o caminho será muito menos enfadonho.
“[...] um encontro com seres de carne e osso
que são contemporâneos
daquele que lhes narra as vidas”.

(ROGER CHARTIER)
RESUMO

Este estudo tem por objetivo refletir acerca dos rituais religiosos da Irmandade de Penitentes
autoflagelantes da Vila do Genezaré, município de Assaré, sul do Estado do Ceará, levando
em consideração suas perspectivas estéticas e performáticas. Para tanto, os procedimentos
metodológicos uniram a realização de uma série de entrevistas com os oitos membros do
grupo, gestores públicos municipais e lideranças católicas locais, balizadas pelos fundamentos
da História Oral, com análise de matérias de jornais impressos, leis daquele município que
regem as políticas públicas culturais municipais e produções cinematográficas que têm como
protagonistas sujeitos e coletivos adeptos de crenças e práticas marcadas pela autoimposição
de sacrifícios inscritos nos corpos dos praticantes. Regidos por alguns desacordos, tais rituais
permanecem sofrendo re-interpretações e re-elaborações que põem em evidência as
negociações e vitórias alternadas dos indivíduos sobre o grupo, do nomotético sobre o
idiográfico, do passado sobre o presente, revelando assim, a fragilidade das oposições entre
norma social e sujeito, memória e invenção, comunicação e expressão, desejo e realidade, atos
repetitivos e improviso. Em outro sentido, a memória da Irmandade, em permanente
construção, está sujeita a inúmeras disputas em torno do jogo recordar/esquecer constante nas
elaborações mnemônicas que, por sua vez, apontam para interesses dos mais diversos:
econômicos, religiosos, políticos, científicos, culturais etc., ou, não raro, uma associação de
todas ou algumas destas preocupações combinadas.

Palavras-chave: Rituais. Penitentes. Genezaré.


ABSTRACT

This study aims to reflect on the religious rituals of the Penitents Self flagellant Brotherhood
in Genezaré, Village located in Assaré, city in the southern of Ceará State, taking into account
their aesthetic and performative perspective. Therefore, the methodological procedures united
themselves to hold a series of interviews with the eight group members, municipal
administrators and local Catholic leaders, determined by the fundamentals of Oral History,
with analysis of newspapers printed materials, laws from that city which rule the municipal
public cultural policies and film productions whose protagonists and collective fans of beliefs
and practices marked by self imposing sacrifices entered in the bodies of practitioners.
Governed by some disagreements such rituals remain suffering re-interpretations and re-
elaborations that highlight the negotiations and alternate victories of individuals on the group,
the nomothetic on the idiographic, the past on the present, revealing the fragility of
oppositions between social norm and subject, memory and invention, communication and
expression, desire and reality, repetitive acts and improvisation. In another sense, the memory
of the Brotherhood, in permanent construction, is liable to numerous disputes around the
constant issue remember / forget in mnemonic elaborations that, in turn, point to the most
diverse interests: economic, religious, political, scientific, cultural etc. or, not rarely, a
combination of all or some of these concerns combined.

KEYWORDS: Rituals. Penitents. Genezaré.


13

INTRODUÇÃO

“O que espero não é um discurso


em forma, quer dizer, defensivo e fechado em
si mesmo, um discurso que procure antes de
mais (e é compreensível) esconjurar o medo da
crítica, mas uma apresentação simples e
modesta do trabalho realizado, das
dificuldades encontradas, dos problemas, etc.
Nada é mais universal e
universalizável que as dificuldades.”

(BOURDIEU, 1989, p. 17-18)

A pesquisa cujos percursos e resultados são apresentados nas presentes páginas


reflete sobre os rituais da Irmandade de Penitentes do Genezaré, comunidade rural pertencente
ao município de Assaré, na macrorregião denominada Cariri1, no sul do Estado do Ceará.
A noção de irmandade conforme compreendida nas páginas que seguem aponta
pelo menos para três pontos de reflexão, a saber: o princípio de uma filiação paterna comum a
todos os membros de um mesmo grupo a fundamentar a “identidade penitente”
(CARVALHO, 2011); O caráter ativo das irmandades de leigos na divulgação e manutenção
de um catolicismo mais recentemente denominado “popular”, “devocional” ou “diferenciado”
e sua trajetória espaço-temporal que remonta à Europa medieval, no distante século XIII
(COUTO, 2010; CARVALHO, 2011); E, finalmente, no caso da Irmandade de Penitentes do
Genezaré e de outros grupos semelhantes, a dispensa de estatutos ou outros tipos de normas
conservadas em documentos escritos a balizar as condutas individuais de cada irmão e/ou
coletivas. O saber transmitido através dos recursos da memória e da oralidade, nesse aspecto,
ganha especial destaque.

1
Erigido à condição de Vila pela Resolução Provincial nº. 1.159 de 19 de julho de 1865, desmembrado de
Saboeiro, o município de Assaré está localizado a uma distância média de 560 km da capital cearense, Fortaleza.
De acordo com o professor Francisco Régis Lopes Ramos (2011, p. 25) “O Cariri é uma região localizada no sul
do Ceará. O nome originalmente referia-se aos nativos que viviam por lá (e em outros lugares). O povoamento
do Cariri, pelo homem branco, teve seu início no final do século XVII. Eram os criadores de gado de
Pernambuco e da Bahia que vinham para a região atraídos, provavelmente, pelas vantagens que o sertão não
oferecia: solo fértil e fontes de águas que raramente secam”.
14

O interesse pelo tema emergiu no início de 2009 durante a minha licenciatura em


História pela Universidade Regional do Cariri (URCA), Campus Pimenta (Crato-CE.) mesmo
período em que fiz parte da equipe técnica da Secretaria Municipal da Cultura de Assaré e
mantive os primeiros contatos com os oito integrantes daquele grupo que, conforme pude
constatar, ingressaram em irmandades autoflagelantes de leigos por distintas motivações, com
destaque para as influências dos círculos familiares. .
Dentre os variados grupos autodenominados de penitentes, aquele, cujos rituais
são objeto do presente trabalho, é caracterizado para além das práticas de autoflagelo, por
peregrinações durante as Semanas Santas, intercessão pelos mortos anualmente no Dia de
Finados e outras formas de sacrifício autoimpostas a partir de convites elaborados por devotos
ou seus familiares e, mais recentemente, pela participação em eventos organizados por
instituições de gestão cultural e/ou educacional públicas ou ainda pela Igreja Católica quando
convocam os Penitentes à participação.
Em face de tantas possibilidades de exploração do tema, interessou a mim,
sobretudo, promover a análise dos rituais em questão a partir do caráter estético e dimensão
performativa dos rituais praticados por aqueles Penitentes, levando em consideração as
múltiplas possibilidades relacionais que aquela Irmandade tem mantido com outros grupos
integrantes da sociedade ao longo dos mais de sessenta anos contados a partir da chegada dos
penitentes da família Duarte, oriundos do município de Lavras da Mangabeira, no centro-sul
cearense, ao município de Assaré.
O presente trabalho é constituído de três capítulos. Partindo da noção que rituais
possuem uma dimensão estética a ser explorada e que tal dimensão revela a fragilidade das
oposições entre norma social e sujeito, memória e invenção, comunicação e expressão, desejo
e realidade, atos repetitivos e improviso, todas presentes no tema objeto deste estudo, optei
por dividir o contéudo das páginas que seguem de acordo com conteúdos vinculados à matéria
do meu interesse e que sugerem uma relação de influências mútuas e múltiplas entre ambos,
elementos destacados e rituais.
No primeiro capítulo, as narrativas orais dos Penitentes do Genezaré são pensadas
na sua relação com o tema deste estudo. Os seus ofícios religiosos coletivos são tratados pelos
narradores como um amálgama com outros tempos, personagens e lugares. Nas suas
narrativas eles revelam discordâncias interpretativas que influenciam como os seus rituais têm
sido por eles conduzidos ao longo da sua trajetória em irmandades. Se o corpo, conforme
sugerido no capítulo III, impõe limites à execução de alguns ofícios religiosos do grupo,
narrando os Penitentes do Genezaré falam igualmente da morte e revelam como interpretam
15

essa relação penitentes/morte. Morreram os antigos irmãos de penitência que deixaram nas
suas memórias modelos de execução dos rituais hoje apenas parcialmente seguidos. Ainda, os
narradores destacam enquanto narram seu processo de envelhecimento que limita sua atuação
durante os rituais e a morte surge como uma metáfora quando a narrativa sugere o medo do
fim da trajetória de práticas penitenciais no Genezaré, a “morte” do grupo.
No segundo capítulo, a análise dos rituais dos Penitentes do Genezaré indica que
os espaços destinados à sua execução dependem das distintas maneiras que historicamente a
irmandade é percebida pela comunidade local, pelas lideranças da Igreja Católica de Assaré e
pelo poder público municipal, além de instituições socioeducativas ou de produção cultural.
Nesse processo, espaços antes impensáveis ou tidos por improváveis aos Penitentes passam a
ser cenários para execução de seus rituais com toda a sua carga performática. Tal fenômeno é
pensado a partir das experiências de outras irmandades com trajetórias semelhantes.
Finalmente, no terceiro capítulo, a atenção está voltada para a forma como aqueles
indivíduos integrantes de uma irmandade autoflagelante interpretam os rituais que executam
na relação com o corpo de cada indivíduo. Nesse sentido, ganha destaque a noção dos
entrevistados do sacrifício como mecanismo de comemoração do flagelo vicário de Jesus
contrariando, dessa forma, algumas definições sacralizadas em relação aos significados do
sofrimento que membros de irmandades de penitentes impõem a si. Ainda pode ser percebido
que nem todos os Penitentes do Genezaré praticam os rituais de autoflagelo utilizando como
argumento a aquisição de novas formas de compreensão do sacrifício ou do ofício das
irmandades e, ainda, por ser o corpo passível de limitações que vão sendo acentuadas com o
passar dos anos, conforme já referido.
Uma vasta bibliografia indica que a noção de ritual (ou rito) tem sido pensada de
formas variadas e aplicada na análise de situações aparentemente sem nexos entre si. Apenas
para exemplificar, recentemente foram reunidos em uma só obra, trabalhos que fazem uso da
noção de ritual como ferramenta analítica para refletir sobre o Programa de Desligamento
Voluntário (PDV) implementado pelo Banco do Brasil em 1995, as formas e gestos cotidianos
empregados no vestir, os cuidados com o corpo a partir da etnografia de vestiários femininos
de academias de ginástica e musculação, a “montagem” de uma DragQueen, performances
em um bar às sextas-feiras à noite, o desfile de uma nação de maracatu cearense, os
espetáculos de Rock Metal, a pesca artesanal, a cura segundo uma tribo indígena, cultos na
Igreja Presbiteriana, práticas romeiras na cidade de Juazeiro do Norte, retomadas de terras por
indígenas, criação de entidade bancária por uma associação de moradores e programas
eleitorais na televisão (RODRIGUES, 2011). Vale dizer que, de acordo com a proposta da
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organização, todos os trabalhos constantes na obra imediatamente acima referida fazem uso
da teoria antropológica considerada clássica, cujo tema das reflexões é os rituais, para pensar
questões contemporâneas. Em concordância com Roberto DaMatta (1997, p. 37), os autores
dos trabalhos acima entendem “que [...] tudo pode ser posto em ritualização porque tudo o
que faz parte do mundo pode ser personificado, reificado”.
Em busca de uma definição para ritual, Paul Connerton (1999), a princípio,
reconhece o “desacordo substancial quanto à forma como a palavra ritual deveria ser
utilizada”. Entretanto, o referido autor opta por uma definição que ele considera “sucinta e
funcional”. O ritual designa para ele “uma actividade orientada por normas, com carácter
simbólico, que chama a atenção dos seus participantes para objectos de pensamento e de
sentimento que estes pensam ter um significado especial” (LUKES apud CONNERTON,
1999, p. 50).
Dessa forma, Paul Connerton (1999) destaca que os ritos são portadores, a um só
tempo, de elementos expressivos e formais. Ainda, extrapolando os limites da formalidade, os
rituais são envolvidos pelo senso de obrigação que os seus executores sentem em relação ao
que executam. Finalmente, os efeitos dos rituais fogem do limite do espaço-tempo da sua
execução e ofertam “valor e sentido” à existência dos seus praticantes.
Em análise mais abrangente que toma como referência igualmente as distintas
perspectivas teóricas que têm os rituais como tema, Valerio Valeri (1994) observa que, ainda
durante o século XIX, duas abordagens foram adotadas por estudiosos que tentaram dar aos
rituais um tratamento científico. Para o autor, trata-se da abordagem “intelectualista” e da
perspectiva “funcionalista” representadas, no primeiro caso, por Tylor, Frazer e, mais
recentemente, por Lévy-Strauss e Horton, e no segundo caso, associada a William Robertson
Smith. Se na primeira abordagem, os rituais sugerem pelas ações dos seus executantes crenças
que são produto de “processos e preocupações intelectuais”, na outra abordagem, tomando
como exemplo as ações rituais religiosas, os ritos teriam por função “reproduzir a sociedade”
(VALERI, 1994, p. 327-329).
Sintetizando os argumentos de Valerio Valeri (1994), tanto considerar o rito como
um ordinário veículo comunicativo com raízes inconscientes (perspectiva estrutural-
funcionalista) ou como uma banal expressão ou realização de crenças pautadas em decisões
essencialmente conscientes (perspectiva intelectualista) indica teorias de frágeis sustentações
em relação aos rituais. Para Valeri (1994), se os ritos possuem potencial comunicativo ou
expressam crenças, não deve ser desprezada a sua capacidade de produzir e através deles
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serem obtidas “informações novas”. Os ritos, assim, são valorizados na sua capacidade
criadora de conhecimento.
Estudar os rituais dos Penitentes do Genezaré sob a perspectiva apresentada por
Valeri (1994) é perceber o diálogo constante e, por vezes, tenso entre formas cristalizadas de
pensar irmandades semelhantes e os seus rituais e as interpretações alternativas ofertadas
pelos praticantes. Esse exercício sugere uma ação intelectual consciente que envolve
pesquisador e os Penitentes na produção de “reinterpretações, críticas, reformas etc.” Trata-se,
sobretudo, de um desafio, visto que os ritos portam “um conjunto de signos sem contudo
oferecer o código que os permita interpretar completamente” (VALERI, 1994, p. 345).
Igualmente importante na análise dos rituais é perceber sua capacidade de pôr em
evidência conflitos, contradições e aquilo que é aparentemente destituído de sentido na
sociedade (ou em um grupo numericamente de proporções reduzidas como os Penitentes do
Genezaré) e nas experiências individuais dos sujeitos. Certamente, os ritos possuem distintos
aspectos que podem ser combinados de forma que alguns deles sobressaiam em um ou outro
momento específico do ritual.
Em suma,

De um ponto de vista geral, o rito constitui um fenômeno aparentado


com outros, tais como a festa e o jogo, durante os quais a sociedade, na sua
totalidade ou nalgumas das suas manifestações de relevo, se torna actor, pelo forte
envolvimento que nela se produz. Todavia, ao contrário das festas e dos jogos, não
se verificam no rito apenas comportamentos [...] segundo certas regras mas
produzem-se e reproduzem-se formas bastante complexas de comunicação,
complexas porque ligadas a signos, símbolos, imagens [...] a que é atribuído um
significado ou conjunto de significados. Neste sentido, o rito não é apenas um
discurso ou uma simples narração [...], mas reenvia para um texto cuja expressão e
leitura é confiada a uma série de processos [...] que se situam numa zona de
fronteira entre ordem/desordem, natureza/cultura, exclusão/integração e no jogo e
na manipulação que todas as partes presentes praticam no cerimonial. O rito, com
efeito, pode ser desmontado e novamente montado com uma série de registos que
envolvem tanto a parte consciente dos que nele participam [...], as origens míticas
[...] do grupo social, como o seu conhecimento da natureza, da morte, do
nascimento e, para além da esfera que se refere ao corpo, todas as regras [...] e
instituições nas quais se funda a sociedade no presente e no futuro (VALERI, 1994.
p. 359). (Grifos do autor).

Dessa forma, para que rituais sejam executados seus praticantes empreendem
escolhas que resultam na divulgação de encontros entre pares construídos historicamente
como inconciliáveis ou em disputas (“ordem/desordem, natureza/cultura,
exclusão/integração”, dentre muitos). Em outra perspectiva, assumir essas decisões seletivas
e executá-las caracteriza opções que são inscritas pelos sentidos e nos sentidos dos praticantes
e que resultam em sensações agradáveis para os executantes, ainda que marcadas por dores ou
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autolimitações físicas e/ou psicológicas. Praticando e reinventando rituais, os Penitentes do


Genezaré, portanto, vivenciam experiências estéticas no sentido mais largo do termo,
empreendem uma busca quase sempre bem sucedida pelo que julgam ser-lhes mais agradável.
Quanto aos procedimentos metodológicos, ao adotar os pressupostos daa História
Oral, fui convencido pelos argumentos de Janaína Amado e Marieta de Morais Ferreira
(2002) que tal modalidade da História trata-se de uma metodologia que não dispõe de
conceitos capazes de caracterizá-la como uma disciplina autônoma, mas que não deve ser
reduzida a uma ordinária técnica de coleta de dados. O seu caráter metodológico aponta ainda
para a necessidade de fundamentação teórica a fim de uma consistente análise do corpo de
fontes que no, caso da História Oral, consta de entrevistas que podem ser elaboradas,
aplicadas e registradas de distintas maneiras.
Para esta pesquisa, foram formuladas questões comuns apresentadas
individualmente aos oito membros da Irmandade de Penitentes do Genezaré. Na medida em
que os diálogos iam sendo conduzidos, novas questões surgiam e outras perguntas eram
acrescidas ao núcleo comum inicialmente elaborado. Além dos Penitentes do Genezaré, foram
entrevistados gestores públicos e líderes católicos locais. De acordo com a noção de ritual
adotada, a História Oral revelou-se bastante adequada visto que, como bem afirma o professor
Gisafran Nazareno Mota Jucá (2011, p. 44),

Os depoimentos coletados dificilmente podem fornecer uma visão


coesa acerca do assunto estudado, mas a diversidade de informações prestadas não
limita a compreensão desejada, uma vez que a relação entre indivíduo e sociedade
fornece a sua identidade, que não pode ser entendida como uma forma de exclusão
social, mas como um comprovante de sua identidade histórica.

Embasando teoricamente o uso metodológico da História Oral, pareceu a mim


adequada a noção de memória social, conforme James Fentress e Chris Wickham (1992), em
detrimento do conceito de memória coletiva desenvolvido por Maurice Halbwachs (2006).
Pensar com este último é, de certa forma, considerar os indivíduos subjugados pelo poder
coercitivo dos grupos aos quais estão filiados.
De acordo com as indicações que as fontes proporcionavam averiguei a não
adequação da teoria sustentada por Halbwachs (2006) à minha proposta e igualmente à noção
de ritual aplicada à pesquisa que, por sua vez, expõe algumas críticas às perspectivas
funcionalistas e estruturalistas de análise dos rituais.
Se tanto para James Fentress e Chris Wickham (1992) como para Maurice
Halbwachs (2006) a memória estrutura-se a partir das identidades coletivas dos grupos nos
19

quais os indivíduos encontram-se inseridos desde o seu nascimento, em Halbwachs, o


primeiro teórico das ciências sociais a refletir acerca da constituição de memórias coletivas,
pode ser encontrada uma noção de memória coletiva que parece conceder “[...] um destaque
talvez excessivo à natureza colectiva da consciência social e um relativo desprezo à questão
do relacionamento entre a consciência individual e as colectividades que esses indivíduos
efectivamente constituíram” (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p. 7).
Na mesma linha de James Fentress e Chris Wickham (1992, p. 7), ainda fiz
questão de usar o conceito de memória social “para contrapor o seu objeto ao da memória dos
indivíduos”.
Mas afinal o “que faz a história oral diferente” ou com características melhores
adequadas ao estudo dos rituais dos Penitentes do Genezaré na perspectiva que tenho
adotado? A primeira parte do questionamento não é inédita e nem recente, ela já foi elaborada
por Alessandro Portelli (1997) em texto publicado originalmente em 1979.
Partindo do pressuposto que “fontes orais e escritas não são mutuamente
excludentes. (Antes) Elas têm em comum características autônomas e funções específicas que
somente uma ou outra pode preencher (ou que um conjunto de fontes preenche melhor que a
outra”, Alessandro Portelli (1997, p. 26) defende que a depreciação ou a supervalorização da
História Oral ou das fontes orais provoca a incompreensão das especificidades e valor dessa
forma de se produzir História. É preciso, portanto, perceber o que há de essencial e exclusivo
na História Oral a fim de que sua utilização seja o mais condizente e honesto com a produção
do saber histórico.
Dessa forma, a História Oral em seus aspectos que mais despertam o interesse
neste trabalho aponta para a possibilidade de quase que exclusivamente pela audição das
narrativas elaboradas pelos Penitentes do Genezaré se ter acesso às emoções, às experiências
subjetivas dos narradores bem como à multiplicidade de pontos de vista presentes em um
grupo ainda que composto por um número reduzido de participantes em relação a um
determinado tema que, no caso específico deste trabalho, é os rituais religiosos da Irmandade.
Assim, se a História Oral não recusa o aspecto objetivo dos fatos históricos, em outro sentido,
ela aplaina os caminhos que podem permitir o encontro com os significados, sonhos, crenças
sobre o que se fez e sobre o que se está fazendo e as interpretações presentes projetadas em
retrospectiva sobre indivíduos, grupos e os acontecimentos a eles relacionados. Fatos
históricos, portanto, são o que eles, narradores, acreditam que sejam (PORTELLI, 1997, p.
31).
20

Nesse sentido, as narrativas orais dos Penitentes do Genezaré revelaram maneiras


individuais e coletivas de atribuição de sentido ao passado a partir do contexto histórico atual,
forjado nas múltiplas relações socio-históricas que a Irmandade tem estabelecido no tempo e
no espaço. O que poderia parecer depreciativo às falas dos narradores evidencia, pelo
contrário, a beleza das narrativas: sua capacidade de utilizar diferentes ritmos ou outros
recursos da fala em discursos “históricos, poéticos e míticos” quase sempre de forma
“inextrincavelmente misturada” rompendo também com as “enganosas fronteiras entre o
individual e o coletivo” (PORTELLI, 1997, p. 30).
Os relatos dos Penitentes do Genezaré que tematizam sobre os rituais da
Irmandade são, dessa forma, o campo do equívoco, das vozes polifônicas, momento da
certeza de que o individuo não raro supera a norma, visão da pluralidade. E, como bem
afirmou o professor Gisafran Nazareno Mota Jucá (2011), a diversidade do narrado não
compromete a compreensão que o pesquisador anseia.
Em outro aspecto não menos importante, a História Oral só é possível a partir de
encontros pessoais nos quais a História admite-se como um produto conjunto do pesquisador
e narrador entrevistado. Em tais encontros, de acordo com Alessandro Portelli (2010, p. 20),
“Os conteúdos da memória são evocados e organizados verbalmente no diálogo interativo
entre fonte e historiador, entrevistado e entrevistador”. O historiador que opta pela História
Oral enquanto procedimento metodológico de trabalho “[...] assume um papel diferente
daquele que em geral é atribuído a quem realiza pesquisas de campo: mais do que “recolher”
memórias e performances verbais, deve provocá-las [...]” e, assim, “[...] literalmente,
contribuir com sua criação: por meio da sua presença, das suas perguntas, das suas reações”.
Encontro que adequadamente pode ser definido como uma “entre/vista” ainda que não
completamente eficiente diante das barreiras que estabelecem limites entre pesquisador e
narradores.
Não poucos diálogos que caracterizam uma pesquisa, como bem afirma Roger
Chartier (2002a, p. 215), “que não é uma busca desesperada de almas mortas, mas um
encontro com seres de carne e osso que são contemporâneos daquele que lhes narra as vidas”.
Contemporâneos sim, mas apenas parcialmente visto que as sensibilidades na mesma medida
em que podem aproximar indivíduos não extinguem sua capacidade de distanciar pessoas que
compartilham dos mesmos espaços e tempos de suas existências (CORBIN, 2005). Os
“entre/vistados”, pesquisador e narradores, são dialogadores que falam cada um de um lado
de uma barreira erigida por sensibilidades distintas, visões de mundo e interesses não raro
21

conflitantes, expectativas calculadas antes, durante e depois dos diálogos a partir de


exigências quase nunca necessariamente irmanadas.
Encontros e diálogos, tudo isto e não apenas isto estimulando um conjunto de
reflexões alicerçadas na inquietante relação da História com a Memória.
O historiador Jacques Le Goff (1996) já havia alertado acerca das diferenciações
que envolvem a Memória e a História. Segue uma dupla perspectiva dessa relação abordada
não de forma exclusiva por Le Goff. Com uma reflexão não distante das elaborações do autor
de História e Memória, Alistair Thomson, Michael Frisch e Paula Hamilton (2002, p. 75-76)
falam de uma relação pautada na capacidade que as duas partes têm de subverterem uma a
outra. Apelam como argumento à historicidade dos diálogos entre ambas.
Quando a História tem seu interesse reanimado pelos domínios de Mnemosine, o
Século XX já havia deixado para trás algumas das suas décadas. Ainda que constrangidos a
reconhecer as dificuldades causadas pelo reencontro, não há como negar a beleza dos
resultados. A História passa a dar mais atenção à Memória como um constructo histórico
seletivo e que atende aos mais diversos interesses inscritos nas relações de poder. Nesse
mesmo aspecto, a memória social passa a ser compreendida como uma elaboração que varia
sensivelmente quanto aos seus suportes. A iconografia, a escrita ou audiovisual podem ser
citados como exemplos. Em contrapartida e a partir de tais constatações, a Memória traz para
a História a possibilidade de ter como dialogadores novos sujeitos até então alijados ou
simplesmente silenciados nas produções históricas convencionais. A História Oral
inicialmente patrocina esses novos diálogos ainda que sob as desconfianças dos mais
reticentes em relação à incipiente metodologia, para em seguida ver a si no centro de
produtivos debates capazes de renovar teórica e metodologicamente as possessões de Clio
(THOMSON, FRISCH, HAMILTON, 2002; PORTELLI, 1997).
Ainda em relação às fontes utilizadas no presente estudo cujos resultados e
percursos o leitor tem diante de si, registros paroquiais e documentos relacionados à gestão
pública municipal da cultura foram consultados e indicaram formas de condução da Igreja
Católica e do Município que dialogaram e ainda dialogam com os Penitentes do Genezaré e
seus rituais. Materiais de divulgação de eventos religiosos e festivais culturais que mencionam
a Irmandade de Penitentes do Genezaré foram pensados objetivando contribuições que
sugerem os espaços destinados ou interditados aos Penitentes e seus rituais nos eventos
mencionados, às construções mnemônicas dos membros da Irmandade e suas performances
religiosas coletivas.
22

Algumas fontes hemerográficas e narrativas cinematográficas nas quais constam


informações ou foram verificadas a atuação dos Penitentes do Genezaré ou de irmandades
semelhantes foram igualmente utilizadas. Dessa forma, uma maneira de perceber a relação
daquela Irmandade com outros grupos de penitentes ocorreu através das páginas da imprensa
e de documentários, especialmente aqueles integrantes do conjunto da obra dos cineastas
Antônio Rosemberg de Moura (Rosemberg Cariry) e seu filho Petrus Cariry. Refiro-me de
forma mais específica às produções Juazeiro: A nova Jerusalém e A ordem dos penitentes,
produções dirigidas pelos cineastas acima mencionados, respectivamente. Fez parte também
da minha preocupação o vídeo-documentário Mestres dos Saberes e Fazeres da Cultura
Popular Assareense, do diretor Felipe Lira.
Contudo, a seleção, registro e tratamento das fontes elencadas não tornaram
menos significativas as informações obtidas pela minha presença entre os Penitentes e a
assistência durante os seus rituais.
Nesse sentido, os registros sonoros, fotográficos e audiovisuais por mim
realizados em distintos momentos dedicados pelos Penitentes aos seus rituais contemplaram
detalhes que não receberam o devido destaque nas demais fontes. Acompanhando nos últimos
cinco anos da minha trajetória acadêmica e profissional os Penitentes do Genezaré em muitos
dos seus ofícios religiosos coletivos em datas e locais variados, pude experimentar igualmente
algumas situações e sensações que somente a presença do pesquisador entre seus dialogadores
pode proporcionar. Assim, fui igualmente impactado pelas suas performances, conforme
algumas das páginas que seguem podem confirmar.
Colaborando ainda de forma efetiva para a construção do objeto de pesquisa e
atuando na organização e exposição das ideias em torno do meu interesse, devo afirmar que,
na medida em que as preocupações iam avançando e tomando forma menos pulverizada,
ocorreram encontros com parte da extensa bibliografia que tem irmandades de penitentes,
suas crenças e seus rituais como tema. A princípio, as leituras selecionadas estavam
vinculadas a impressões acerca das irmandades em questão cujas trajetórias têm o Cariri
cearense como cenário. Tais registros são importantes documentos que sugerem formas
específicas e deslocamentos nas maneiras de compreender o tema, ao mesmo tempo em que
revelam as formas como os rituais em questão têm sido praticados desde meados do Século
XIX no sul cearense.
Recentemente expus em textos a minha análise que dividiu tal produção
bibliográfica em duas vertentes com distintas perspectivas teórico-metodológicas vinculadas
ao lugar social (CERTEAU, 2011) dos seus produtores que, por sua vez, refletem novas
23

perspectivas de tratar sujeitos, crenças e práticas de acordo novas noções de patrimônio


cultural nas suas vertentes material e imaterial (OLIVEIRA, 2012b; 2013b).
Para a historiadora Patrícia Bezerra (2010), existem textos que representam a
trajetória de irmandades de penitentes no Cariri cearense e, igualmente, funcionam como
construções mnemônicas dos e sobre os ditos grupos, dentre os quais merecem destaque os
Diários de Viagem de Francisco Freire Alemão (2006; 2007), a obra Os Sertões de Euclides
da Cunha (2000) e os escritos dos intelectuais caririenses Irineu Pinheiro (1881-1954) e J. de
Figueiredo Filho (1904-1973). Contudo, minhas inquietações a esse respeito sugeriram que eu
empreendesse uma análise dos recentes trabalhos acadêmicos que tematizam sobre os
penitentes caririenses, suas crenças e seus rituais.
Assim, ocorreram para mim outros encontros proveitosos com as pesquisas, da
antropóloga Roberta Bivar Carneiro Campos (2008) e da socióloga Anna Christina Farias de
Carvalho (2011). Portanto, vê-se que distintas áreas da produção de conhecimento possuem
representantes com interesses voltados para as irmandades de penitentes estabelecidas no
Cariri cearense. Cada uma, de acordo com as especificidades das suas disciplinas, traz
significativas contribuições para melhor compreensão do tema que estudam.
Nos escritos de Roberta Bivar Carneiro Campos (2008) a preocupação é
direcionada para o grupo denominado “Ave de Jesus” da periferia do município de Juazeiro
do Norte, a linguagem e identidade do lugar pautada em um ethos da piedade e da
misericórdia que os penitentes ajudaram a construir. As pesquisas de Anna Christina Farias de
Carvalho (2011) revelaram a sua a busca pelas “estruturas homólogas” entre distintas
irmandades autodenominadas de penitentes dos municípios de Juazeiro do Norte e Barbalha e
a proposta de uma definição mais abrangente da categoria analítica “penitente”.
As pesquisas acima foram construídas articulando de forma transdisciplinar os
discursos das três áreas de conhecimento representadas pelas autoras: História, Antropologia e
Sociologia. Compartilham ainda tais análises de procedimentos metodológicos que promovem
o diálogo entre as descrições etnográficas das práticas das irmandades com entrevistas com
seus praticantes. Dessa forma, senti-me provocado pelo valor dessa opção metodológica e
pela necessidade da articulação dos discursos de outras disciplinas com as preocupações e
fundamentos da História.
No mesmo sentido, pude ainda receber as contribuições presentes na Dissertação
de Mestrado do historiador Cícero Joaquim dos Santos (2009). O citado pesquisador dirigiu o
seu olhar para o município de Porteiras, também localizado no Cariri cearense, no qual ao
longo do século XX desenvolveu-se o culto à Santa Cruz da Rufina.
24

Segundo as narrativas orais que gestaram uma tradição acerca da personagem de


uma devoção local, Rufina foi vítima de uma morte violenta na zona rural daquele município
caririense e passou a atender aos mais variados pedidos daqueles que a ela recorriam,
verdadeiros milagres que estimularam a peregrinação ao local santificado pela presença da
Cruz da Rufina.
Dentre os vários grupos que praticavam peregrinações até o local e realizavam
rituais onde fora fincada a Santa Cruz, encontravam-se os penitentes que entoando os seus
benditos faziam-se ouvir ao longo dos caminhos de acesso ao lugar sagrado. Para o autor, os
penitentes alimentavam “os estados sensíveis” dos seus narradores que, no presente, fazem
referências aos antigos penitentes e suas atuações nas horas avançadas da noite. Assim,
“embora sejam recalcados na tradição, [os penitentes] possuem uma percuciente presença na
memória social”. (SANTOS, 2009, p. 169) (Grifos meus).
A partir das assertivas de Cícero Joaquim dos Santos (2009) adotei a sugestão que
os rituais dos penitentes são ações performativas. Para Paul Zumthor (2007, p. 50), “[...]
performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado
como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato
de maneira imediata”. Portanto, o ato de rememorar a atuação dos penitentes ao longo dos
caminhos sugere um envolvimento entre as irmandades e os habitantes das comunidades que
assistiam às suas peregrinações. O caráter performativo dos rituais dos Penitentes do
Genezaré é confirmado pelas narrativas orais dos membros da Irmandade e por aqueles que
têm assistido aos seus rituais e sofrem o impacto das performances em seus sentidos, dentre
os quais também sou contado.
Para além dos limites espaciais do Cariri cearense, ou mesmo do Estado do Ceará,
alguns estudos ganharam a minha atenção.
No primeiro caso, o antropólogo Roberto Lima (2006) anuncia os resultados da
sua pesquisa sobre irmandades de penitentes com atuação nas cidades de Xique-Xique e
Juazeiro, ambas no Estado da Bahia. O autor analisa o processo de retração das irmandades no
primeiro município enquanto o segundo, Juazeiro, com maior população e maior concentração
urbanas, assiste contemporaneamente ao crescimento numérico de grupos de penitentes. Um
dos fatores que contribui para esse fenômeno é a interferência do poder público juazeirense
que investe na transformação dos encontros de distintos “cordões” de penitentes
(“alimentadeiras” das almas e disciplinadores) no cemitério local durante as Semanas Santas
em eventos de turismo religioso. Pelos casos acima relatados fica claro como as irmandades
25

de penitentes e os seus rituais podem sofrer interferências externas capazes de alterar


consideravelmente os grupos e suas rotinas religiosas.
Outro caso digno de atenção é o relatado pelo cientista das religiões Magno
Francisco de Jesus Santos (2010) no qual é posta em evidência a trajetória de vida de uma
penitente sergipana. Pensando nos dramas pessoais da Sra. Otacília, do município de Itabaiana
(SE), o autor descreve os sofrimentos pessoais que estimularam a protagonista da narrativa
tornar-se uma penitente, fundadora de uma irmandade no seu município, bem como parte dos
conflitos vivenciados entre a penitente e seus familiares que não concordavam com seus
sacrifícios. Em outro sentido, a morte da líder provocou o esfacelamento do grupo e o seu
ocaso. Em discussão, portanto, os diversos estímulos para o ingresso na prática da penitência
e possibilidades para a dissolução de um grupo.
Fui, portanto, desafiado a perceber que o estudo dos rituais das irmandades de
penitentes não devem ser limitados à compreensão do que é praticado no espaço/tempo com
fins rituais. Existe um conjunto de disposições, ânimos e motivações, ethos e visões de mundo
vinculados aos rituais e símbolos neles presentes (GEERTZ, 1989)2.
Finalmente, chamo a atenção para o trabalho do historiador João Paulo Araújo de
Carvalho (2009). Nele, o autor destaca as práticas e representações acerca da Paixão e Morte
de Jesus Cristo presentes em procissões que ocorrem anualmente às Sextas-Feiras Santas no
município de Nossa Senhora das Dores (SE). Naquele dia, os penitentes daquela cidade
realizam também a sua procissão. Fazendo uso da noção de campo religioso (BOURDIEU,
1999), aquele historiador busca compreender as disputas que envolvem o mercado dos bens
simbólicos local. Cada procissão tenta, ao seu modo, demarcar e expandir seu campo de
atuação e influência. Nesse sentido, os penitentes entram em conflito, a um só tempo, com os
outros três grupos que realizam suas procissões naquela data e ainda com as lideranças da
Igreja Católica daquele município. Ficam reafirmados assim, os vínculos sociais que os
penitentes mantêm com outros grupos religiosos e que podem gerar conflitos nos quais os
membros de irmandades não são sujeitos que aceitam com passividade todas as tentativas de
imposições que sobre eles recaem.
Diante do exposto, os trabalhos acima mencionados orientaram a minha
percepção para os múltiplos sentidos que envolvem irmandades de penitentes, suas crenças e
práticas. Tais irmandades são objetos de uma série de discursos capazes de revelar que a
memória dos grupos está sujeita a inúmeras disputas em torno do jogo recordar/esquecer

2
Principalmente capítulos IV (A Religião como Sistema Cultural) e V (“Ethos”, Visão de Mundo e a Análise
dos Símbolos Sagrados) daquela obra.
26

constante nas construções mnemônicas que, por sua vez, sugerem interesses dos mais
diversos: econômicos, religiosos, políticos, científicos, culturais etc., ou, não raro, uma
associação de todas ou algumas destas preocupações combinadas.
Se pudesse sugerir uma metáfora imagética para os rituais dos Penitentes do
Genezaré ela seria a recorrente figura de um palimpsesto. Os rituais em questão comportam
novos “textos” que são impressos sobre “escritos” cujas antigas marcas não desapareceram
por completo. Nesse processo de re-apropriação contínua do material e do que nele havia sido
registrado, é possível ler novas mensagens e encontrar vestígios inteligíveis de uma produção
recuada no tempo.
Se “Roskoff demonstrou o declínio na crença no Diabo, e Bloch a crise do
milagre régio” (MATA, 2010, p. 77; BLOCH, 1993), a secularização do mundo de forma
como previsto na aurora da Modernidade sucumbiu no seu nascedouro. Os fenômenos
religiosos permanecem dignos de atenção de historiadores capazes de construí-los como
objeto de pesquisa ofertando-lhes tratamentos teórico-metodológicos consistentes ainda que
envolvidos por problemas e dificuldades os quais competem aos homens denunciar e aos
deuses perdoar.
Em síntese, os rituais dos Penitentes do Genezaré atribuem um sentido ao passado
a partir das experiências presentes e constroem suas imagens do contemporâneo a partir de
suas vivências, em uma relação com o mundo que segundo Roger Chartier (2002b, p. 23) tem
por objetivo “fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no
mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição” através do conjunto das
representações que elaboram.
As palavras de Pierre Bourdieu ditas aos alunos da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais em um seminário no mês de outubro de 1987 e constantes na epígrafe desta
introdução pareceram a mim adequadas ao que ora apresento para apreciação. Disse-as a mim
e transmito-as aos leitores. Trata-se de um discurso ainda em aberto, entregue às críticas, um
relato dos problemas e dificuldades enfrentadas e alguns não superados pelo seu autor e que
os olhos e as mentes atentos saberão apontar sem dispêndio de maior esforço.
Ainda que nada modesto, o objetivo deste trabalho é também indicar novas
possibilidades de pensar os rituais de uma forma geral e, de forma específica, a variedade de
fenômenos religiosos que caracterizam a contemporaneidade. Permanecendo no campo das
finalidades, desejo que os resultados aqui exposto sejam “[...] reconhecidos como válidos
tanto por crentes quanto por descrentes – supondo-se, é claro, que tanto uns quanto outros
coloquem o valor da integridade intelectual acima de todos os demais” (MATA, 2010, p. 19).
27

NA MEMÓRIA:
NARRATIVAS ORAIS RE-INVENTANDO OS RITUAIS DA
IRMANDADE DE PENITENTES DO GENEZARÉ

“Tal como o passado não é a


História mas o seu objeto, também a memória
não é a história, mas um dos seus objetos e
simultaneamente um nível elementar de
elaboração histórica”.

(LE GOFF, 1996, p. 46)

Nas páginas seguintes, tentarei demonstrar que os rituais da Irmandade de


Penitentes do Genezaré, município de Assaré, no sul cearense, sofrem re-significações e estão
sujeitos às exigências e possibilidades contemporâneas inscritas nas relações que a Irmandade
sustenta ou nas distâncias que mantém com instituições políticas e religiosas do seu
município, em prioridade. Não menos significativo é perceber que tais relações sugerem aos
Penitentes espaços, décadas atrás, improváveis ou impensáveis para a execução dos seus
rituais emergindo, dessa forma, uma nova cartografia religiosa do grupo e acrescentando datas
ao calendário regular das suas atividades. Finalmente, nesse complexo de muitos diálogos,
alguns membros da Irmandade têm forjado experiências inscritas nos seus corpos desde o
nascedouro da segunda metade do século XX e até os nossos dias ainda em construção,
temporalidade definida de acordo com as narrativas orais dos seus oito integrantes cujos
rituais são objeto deste trabalho.
São narrativas, espaços e corpos destinados à comemoração do sofrimento vicário
de Cristo através dos rituais dos Penitentes do Genezaré, salvação graciosa pelo sacrifício do
Deus encarnado, forma corpórea da intervenção divina na história que impõe ao cristão à
missão do anúncio da Paixão. De acordo com Deca Pinheiro, decurião 3 daquela Irmandade,
sua “obrigação” é uma trajetória que ele voluntariamente abraçou e escreve na sua carne com

3
No âmbito desta pesquisa, decurião é o líder de uma irmandade de penitentes autoflagelantes responsável pela
organização, nos mais variados aspectos, das atividades do grupo e por verificar se os seus irmãos de penitência
conservam posturas cotidianas tidas por mais aceitáveis entre os membros de tal irmandade. No caso específico
dos Penitentes do Genezaré, a ausência de vícios (principalmente álcool e tabaco) entre os membros daquela
Irmandade ocupa especial atenção do decurião Deca Pinheiro.
28

o cacho da disciplina4 e outras formas de autolimitações e autoimposições corporais e


psicológicas, missão apenas efetivamente cumprida quando da sua morte. Há que se usar
também a voz cantando e narrando as vidas de autoanulação do Cristo das Dores e dos santos
que almejaram e foram agraciados nas suas trajetórias com particulares semelhanças do
sofrimento e amor do Filho de Deus. É recorrente encontrar nas narrativas orais e benditos
entoados por aqueles Penitentes reivindicações através das quais os membros da Irmandade
afirmam fazer parte dessa tradição de sacrifício, dor e glória, inaugurada pelo Homem das
Dores e exposta nas páginas que seguem5.

Figura 1 - Detalhe do "Cacho" da Disciplina.


(Foto: Cícero da Silva Oliveira)

4
Pequeno chicote de couro com aproximadamente 30 cm de comprimento que une em uma das suas
extremidades três lâminas metálicas afiadas, cada uma delas com pouco menos de 5 cm de comprimento,
denominado cacho da disciplina, cacho ou simplesmente disciplina.
5
Nas suas pesquisas realizadas no município baiano de Andaraí, Carolina Pedreira (2010, p. 6) analisou os
benditos cantados nos rituais de alimentação das almas realizados por “alimentadeiras” das almas de uma
irmandade de penitentes local. Para esta pesquisadora, “Os benditos hagiológicos, chamados de benditos ou
incelências, são rezas cantadas ou cantos rezados que versam sobre história de santos e santas, sobre a vida de
Jesus, seu sofrimento na Cruz, o padecimento e força de Nossa Senhora (e de muitas Nossas Senhoras),
ressaltando agruras e/ou feitos heroicos dessas e outras entidades”. O mesmo objetivo textual é verificado nos
benditos entoados pelos Penitentes do Genezaré e vale ainda destacar a noção que benditos assumem funções de
oração que objetivam abençoar os seus cantores ou aqueles por quem intercedem.
29

Narrando e cantando, Deca Pinheiro e os seus liderados falam de si e do seu grupo


como integrantes e mantenedores de uma tradição com datas, lugares e personagens
marcantes amalgamados sensivelmente entre rubatos e barafundas. Seus rituais, dessa
maneira, são reconstruídos também pela fala que revela o trabalho seletivo da memória, pela
narrativa que organiza em um todo significativo a dispersão das lembranças. Dessa forma, os
Penitentes do Genezaré falam do outro sem omitirem o si, assumem o protagonismo das suas
trajetórias por eles, narradores, ligadas a tantos outros espaços, sujeitos e momentos.

2.1 – OS RITUAIS DOS PENITENTES DO GENEZARÉ: TRADIÇÃO RELIGIOSA E


SUPORTES DA MEMÓRIA

Esta é uma elaboração historiográfica acerca de homens que lutam contra o


esquecimento das suas trajetórias individuais e coletivas pautadas em princípios religiosos e
que os seus praticantes consideram e constroem como uma tradição cuja emergência envolve
mito e história. Os Penitentes do Genezaré desejam permanecer em atividade anunciando uma
revelação divina marcada pelo sacrifício do Filho de Deus. Para tanto, recorrem à sua
capacidade de narrar e cantar, executam suas performances e posturas corporais
características dos seus rituais em cada espaço permitido aos mesmos, de acordo com os
diálogos firmados entre a tradição e as exigências e sugestões contemporâneas.
“Os homens esquecem” (BERGER, 1985, p. 53), mas utilizam grande carga de
criatividade contra essa constatação, lutam com muito dos recursos que dispõem e que
constroem para não esquecer. Aceitar de forma passiva o esquecimento seria romper laços
com o passado e, dessa forma, experimentar uma sensível desestruturação da existência, viver
no presente sem perspectiva de articular o hoje com outras dimensões do tempo. Nesse
aspecto, a tradição objetiva vincular os grupos a um passado que seja significativo para a
coletividade e atribui significado ao presente sem dispensar um olhar conservador para o
futuro. De forma específica, os rituais dos Penitentes do Genezaré merecem atenção pela sua
atuação na constituição e transmissão da memória social do grupo quer seja por palavras, quer
seja por performances corporais.
“O tempo próprio da lembrança é o presente, isto é, o único tempo apropriado
para lembrar e, também, o tempo do qual a lembrança se apodera, tornando-o próprio”. Com
essas palavras, Beatriz Sarlo (2007, p. 10) indica como Gilles Deleuze interpreta o
pensamento de Henri Bergson. O que a autora propõe ao expor facetas da relação em via
dupla tempo/recordação é trazer para superfície a capacidade de o passado ser feito presente e,
30

em alguns casos, de forma independente das escolhas humanas. Decerto, nossos sentidos
parecem sofrer de forma mais imediata aquilo que estimula os processos capazes de produzir
recordações aparentemente inesperadas. Um cheiro, um toque, um gosto, um som, uma
imagem acometem um instante e, de imediato, retomamos um lugar, uma situação ou alguém
que há muito pareciam adormecidos da nossa existência.
Ainda que levado a concordar com a autora, tenho por certo e procurado destacar
nestas páginas o esforço da memória, as tentativas quase desesperadas e voluntárias dos
Penitentes do Genezaré estabelecerem vínculos com o seu passado, de forma enfática, através
dos seus rituais; Lutar contra o esquecimento a partir das circunstâncias presentes. Trata-se
mesmo de uma elaboração refletida na constituição de uma tradição com características que
atendem aos anseios de uma coletividade específica. Construção, é bem verdade, sempre
problemática e nunca com resultados homogêneos que impedem uma atuação criativa dos
indivíduos.
De fato, operar com a intenção de estabelecer continuidade com o passado é um
dos mais destacados objetivos das tradições (HOBSBAWN, 2012, p. 8). É preciso que seja
dito, entretanto, que as tradições necessariamente não são produtos de uma longa duração. O
relativamente novo pode ser tido por tradicional, reivindicar para si uma trajetória maior do
que aquela que dispõe em verdade e assim dilatar o tempo na direção de sujeitos, épocas e
acontecimentos significativos para o grupo em um rico processo de ficcionalização de si e da
coletividade como têm realizado os Penitentes do Genezaré, conforme segue.
A tradição no seu afã de estabelecer vínculos entre presente e passado faz questão
de manter com o máximo de rigor possível repetições que sejam capazes de transmitir para os
indivíduos do presente os valores por ela divulgados e comemorados. Cada gesto, vestimenta
e palavra, cada silêncio e olhar, cada prece e alimento, dizem de um passado idealizado e
desejado o qual não morreu e que não deverá sob nenhum efeito ser esquecido. A tradição
leva os homens a dizerem de si: “nós devemos ser reconhecidos como aqueles que não
esquecem o seu passado, não traem os seus valores. Representamos o que foi construído sobre
duras penas pelas mãos dos homens e pelos desígnios dos deuses”.
Contudo, a tradição não é apenas uma reprodução literal e irredutível do
memorável. Se ela promove uma viagem dos homens ao seu passado tido por significativo
para um grupo, nesse percurso, os viajantes levam consigo a bagagem da contemporaneidade
e no presente o passado buscado encontra os seus motivos e a sua renovação. A tradição é
mesmo “condenada à mudança”, a sua “enfermidade” nos dizeres de Henri Hatzfeld (1993, p.
65). No terreno das religiosidades, a tradição não está livre das suas características
31

anteriormente mencionadas, sofre perdas e acréscimos, vive momentos, tem seus acordos
revistos, logo ganha atributos de um objeto semântico.
Retomando símbolos tradicionais ainda que situada em um universo problemático
porque em constante transformação, a tradição religiosa requer para si a sua origem divina
(HATZFELD, 1993, p. 46). Os indivíduos ligados a uma tradição desse tipo desenvolvem
uma memória capaz de comemorar acontecimentos, lugares e pessoas que podem representar,
a um só tempo, experiências que fundem o domínio do histórico e do mítico, do não-vivido
pelos narradores com o imediato de quem lembra, do distante no tempo e no espaço com a
vivência entre familiares que partilham dos mesmos símbolos e constituem a mesma tradição
tal qual acontece com os Penitentes do Genezaré.
Dentre os símbolos que têm marcado a trajetória penitencial de distintas
irmandades de leigos autoflagelantes, a cruz merece destaque pela sua presença a reforçar as
elaborações centradas na noção de sacrifício. De fato, a cruz como instrumento simbólico
reflete para os rituais dos Penitentes do Genezaré uma vinculação com uma longa trajetória de
usos cristãos daquele símbolo que cruzou o Atlântico junto com os portugueses no início do
século XVI. Para Riolando Azzi (1978), a cruz funcionou como um marco de conquista e
ainda hoje estabelece os espaços litúrgicos, a mesma cruz que extrapolando as tentativas de
controle eclesiástico torna-se uma expressão da “devoção popular”.
Cruzes brancas costuradas na parte da frente e na parte de trás dos coletes (opas)
azuis que os Penitentes do Genezaré usam sobre camisas geralmente brancas durante os seus
rituais. Feita de madeira e com aproximadamente cinquenta centímetros de comprimento, ela
está quase sempre presente em uma das mãos do decurião Deca Pinheiro. Cruz que indica o
local de uma sepultura e sugere um espaço de devoção aos mortos tão caro aos rituais daquela
Irmandade. Cruz vazia, em posse de decuriões de outras irmandades exibindo um pedaço de
pano branco envolvendo parcialmente o ponto de encontro dos dois pedaços de madeira
dispostos perpendicularmente na sua construção. Instrumento de representação da Paixão e
ressurreição do Deus encarnado. Cruz em sinal sobre a fronte, a boca e o peito a fim de
proteger os Penitentes no início de cada Terço rezado em favor das almas dos mortos.
Símbolo, portanto, criado e reinterpretado pelos homens, portador de uma mensagem capaz de
pôr seus criadores em diálogos consigo e com os seus próximos.
Dessa forma, nesse complexo emaranhado simbólico que alimenta e garante certa
estabilidade à tradição religiosa, a noção de revelação ganha relevância. Deve ser admitido,
portanto, que no processo de conservação e transmissão da revelação, repousa sobre a tradição
a preocupação com a fidelidade dos seus ditos, repetidos em meio a um mundo polifônico e
32

em permanente mudança. Ainda que destinada a sofrer transformações inevitáveis, a tradição


luta para manter a revelação objeto da sua mensagem o mais distante possível de vícios e
falsificações que podem acometer os seus rituais. Ao “corpo de homens sábios” de uma
determinada tradição religiosa, para citar mais uma vez Henri Hatzfeld (1993, p. 74), compete
conhecer e comentar os enunciados corretos, eles “Definem os textos, fixam a sua
classificação e a sua hierarquia, precisam a autoridade respectiva de cada um deles”. Ainda
mais, “sabem apreciar os novos factos, os casos e os problemas inéditos em função dos seus
conhecimentos dos documentos e do passado”. O decurião Deca Pinheiro e os mais velhos
dentre os Penitentes do Genezaré, todos com mais de sessenta anos de idade, partilham dessa
função entre si.
No cristianismo, a revelação adquire também a forma histórica da encarnação,
Paixão e morte do Deus filho, revelação com a marca da carne e do sofrimento nela inscrito,
revelação divulgada no corpo dos seguidores que anseiam comemorar as dores do Salvador
nas limitações autoimpostas. Contudo, algo sempre foge ao controle dos homens sábios,
balizas da tradição, conforme o estudo dos rituais dos Penitentes do Genezaré pode confirmar.
O mundo no qual a tradição religiosa atua não é apenas cambiante, ele encerra
questões que os homens não conseguem responder sem elaborações complexas e que buscam
legitimar ou por em xeque o estado atual das coisas. Por um lado, se o presente contribui para
uma atualização contínua da tradição, em contrapartida a tradição religiosa vem fornecer
soluções plausíveis para os problemas que inquietam e fazem sofrer os indivíduos no seu
estado contemporâneo. Os homens não sabem, a tradição religiosa ensina. Portanto a tradição
há que ser protegida, mesmo preservada, pela sua capacidade de aliviar os homens nas suas
crises constantes de incerteza (HATZFELD, 1993, p. 79).
Em linhas gerais, qualquer situação cotidiana enfrentada pelos integrantes da
Irmandade de Penitentes do Genezaré é averiguada tomando como referência princípios
religiosos. Na visão dos membros do grupo, o Deus cristão, seu Filho e os santos católicos
sustentam todas as coisas pela intervenção direta na história. Nada pode existir ou sobreviver
sem a interferência divina. Os casos extremos pessoais (problemas de saúde, salvação de uma
alma padecente no Purgatório) ou sociais (falta de chuvas) exigem dos Penitentes que seus
rituais sejam executados como maneira de sacrificar à divindade, quer seja em forma de
súplica, quer seja por retribuição por dádivas recebidas.
Assim, a trajetória e percalços de um grupo, de uma sociedade ou mesmo da
humanidade como um todo são interpretadas pelos Penitentes nunca de forma isolada, há
sempre os desígnios dos deuses atuando de maneira dialógica com o livre arbítrio dos homens
33

na construção e manutenção dos mundos. Uma alegria ou a morte não são, por esse princípio,
acidentais, são fragmentos de uma conversa entre os homens e seus deuses. Nada para aqueles
homens que adotam princípios religiosos pode fugir dessa relação.
Diante do que se tem dito, deve ser admitido que os Penitentes do Genezaré
através dos seus rituais compartilham da noção que não existe uma tradição religiosa “pura”.
O encontro com a emergência de uma tradição é sempre uma empresa com grandes riscos de
insucesso para os que optam por essa aventura. Mais coerente é mesmo buscar pelos pequenos
“momentos da tradição”, suas variações que atendem as sugestões de algum tempo presente,
sua aceitação ou rejeição a partir do que pensam os contemporâneos (HATZFELD, 1993). É
preciso compreender a tradição como um empreendimento não apenas socialmente
constituído, mas indefinido e inacabado porque em construção é o próprio mundo onde ela
atua e os indivíduos que dela participam. E isso não diminua sua capacidade de estruturar e
sustentar o mundo dos homens, colocar em harmonia os integrantes de um grupo entre si e os
indivíduos e os seus grupos com os deuses e com os mortos.
O estudo dos rituais dos Penitentes do Genezaré reconhece e busca, sobretudo, o
encontro com esse “momento da tradição” bordado nas e a partir das relações e interpretações
que os membros da Irmandade têm elaborado na sua trajetória de mais de sessenta anos desde
a chegada dos Duarte ao município de Assaré.
Assim, o mundo no qual a tradição religiosa atua não é apenas cambiante,
problemático e inacabado. Ele também revela toda a sua imperfeição e a necessidade de ser
reconstruído continuamente. Como bem afirma Peter Berger (1985, p. 19), “se é necessário
que se construam mundos, é muito difícil mantê-los em funcionamento”. Nesse sentido, a
religião é um dos muitos empreendimentos coletivos capazes de estabilizar ainda que
momentaneamente o mundo dos homens frequentado pelos deuses e vitimado por desalinhos
e alguma sorte.
Na sua qualidade de empreendimento coletivo e marcado pela capacidade criativa
dos homens, a religião retroage sobre seus criadores. Tem-se, na realidade, uma via de mão
dupla. Assim, “Em todas as suas manifestações, a religião constitui uma projeção imensa de
significados humanos na amplidão vazia do universo, projeção essa, que na verdade, volta
como uma outra realidade para assombrar os que a produziram” (BERGER, 1985, p. 112).
Homens e religião inventam-se mutuamente, portanto, através de um processo contínuo de
exteriorização, objetivação e interiorização6.

6
Conforme argumentos de Peter Berger (1985). Ver capítulo I daquela obra.
34

No seu processo de construir e ofertar significados ao mundo dos homens, a


religião promove igualmente a ligação entre mundos distintos, o imediato e o além. Nesse
aspecto, deve ser percebido, conforme Peter Berger (1985, p. 48), que a religião tem o
potencial de legitimar as instituições a partir da inserção dos constructos humanos em um
“quadro cósmico de referências”.
Se por um lado, como tenho defendido, a religião pode incluir toda e qualquer
situação da existência humana, quer sejam de gozo ou de lamento incurável, em diálogo com
os intentos dos deuses no universo em sua totalidade cósmica, em outro aspecto deve ser
percebido que as instituições humanas são, dessa maneira, mistificadas (BERGER, 1985, p.
103).
Em outras palavras, o homem na sua qualidade de construtor omite-se da
realização dos seus feitos, cede a autoria do realizado aos deuses, supremos construtores. Com
esse ato de transferência, as instituições vacilantes parecem ganhar maior estabilidade porque
arquitetadas e postas de pé por mãos outras, divinas e repletas de um poder que o homem
considera por certo não deter. Cada instituição assim interpretada perde em humanidade e
superabunda em divindade.
Como resultado desse processo de transferência de autoria da obra criadora dos
homens para os seus deuses, os Penitentes do Genezaré são levados a admitir a sua completa
dependência em relação às suas divindades. Assim, os deuses estabilizam as instituições
contra as intempéries e a religião não escapa do seu instrumental legitimador dos mundos
socialmente constituídos. A legitimação religiosa, por sua vez, opera no estabelecimento de
diálogos intergeracionais, os mais novos precisam sempre receber dos mais velhos – o “corpo
dos homens sábios” de que fala Henri Hatzfeld (1993) – o conteúdo e a forma da tradição.
Nesse processo de transmissão, os Penitentes utilizam um vasto repertório simbólico a partir
de um não menos incrementado conjunto de suportes comunicativos.
Ao empreenderem suas narrativas, os Penitentes do Genezaré destacam as suas
conquistas individuais com sendo vitórias dos seus deuses, suas dificuldades são instrumentos
divinos a fim de pô-los à prova, seus fracassos rapidamente podem ser transformados em
oportunidades de crescimento dadas por quem a tudo controla. O padecer dos seus corpos são
graças que propiciam recordar sofrimentos maiores inscritos nos corpos dos deuses, cada
chegada e partida não seria possível sem a companhia do “supra-humano”, as suas vozes são
preservadas como instrumentos de louvor aos seus eleitos dentre tantos que compõem o
panteão erigido pelos homens para os deuses por eles criados e que a todos dominam, não
deixando sem atenção nem ao menos um sequer dos aspectos que preocupam a existência
35

humana, seres que vigiam até mesmo o que foge ao controle dos sentidos mais atentos entre
os mais cuidadosos homens.
Nesse aspecto, o homem religioso produz em si as marcas da autoanulação, da
autolimitação levada ao extremo. do sacrifício. Suas posturas e gestos, a sua voz e os seus
escritos são mensageiros de uma revelação, são instrumentos da tradição, por certo, tem o
máximo conservadorismo como alvo. Na verdade, os homens religiosos são guardiões de uma
ficção, têm na sua trajetória a desilusão de nunca atingir plenamente os seus objetivos,
fracassam duplamente. Em primeiro lugar, o novo é inevitável. Sem as demandas do presente
a tradição perderia o seu significado, ela é destinada à mudança como mencionado
anteriormente a partir das reflexões de Henri Hatzfeld (1993, p. 147). Em outro sentido, a
autoanulação humana na sua plenitude é uma impossibilidade ainda que o homem seja
instigado a reconhecer a supremacia dos deuses. Persevera, contudo, o desejo do sacrifício
sem o qual os rituais religiosos seriam expressões carentes de maior significado. Os rituais
dos Penitentes do Genezaré trazem essa marca.
Nesse sentido, Henri Hatzfeld (1993) oferta mais uma vez sua contribuição para
melhor interpretação dos significados presentes nos rituais motivo desse estudo. Pela presença
dos sacrifícios nos rituais, os homens dizem para si e para o outro o que os seus deuses
significam para quem sacrifica e ritualiza. Em outras palavras, “[...] todos os sacrifícios, sejam
quais forem as suas diferenças, situam de maneira comparável o homem e o deus a qual ele
faz um sacrifício” (HATZFELD, 1993, p. 149). Sacrificar, portanto, é estabelecer
comparações, fundar relações de poder entre os homens e seus deuses. Ainda que
reconhecendo que os poderes despertados ou manipulados pelo sacrifício são desconhecidos
ou, por vezes, temidos, os homens anseiam por essa relação com os detentores de tais poderes.
Nesse complexo de gestos, posturas e vozes, os homens em sacrifício demonstram para si e
para os outros ainda toda a incerteza que envolve o mundo, o seu constante tatear por
caminhos misteriosos repletos de sombras medonhas. Sobretudo, os homens constroem seus
deuses, dão a eles características de acordo com o poder a eles atribuídos para resolução de
situações específicas (HATZFELD, 1993, p. 147- 152).
Assim,

De forma geral, é o sacrifício que tece os laços sagrados entre os seres


e especialmente entre aqueles que não estão ou já não estão unidos por laços
visíveis. É o reconhecimento da interdependência de todas as categorias de seres e
de todas as partes do universo (BIARDEAU apud HATZFELD, 1993, p. 133).
36

A partir dessa noção, não é difícil admitir os sacrifícios presentes nos rituais dos
Penitentes do Genezaré possibilitam uma sinergia entre os seus executantes e entre estes e os
seus deuses. Isso só é viável porque os rituais afirmam a existência de um além, outro mundo,
distância com aproximações possíveis estabelecidas por rituais, por sacrifícios. Existe mesmo
nos rituais em questão o encontro dos homens com “presenças incertas” através da abertura da
“porta da transcendência”. O homem que ritualiza e sacrifica expressa os seus anseios e
angústias, expõe suas dúvidas e medos, os mais íntimos e os mais facilmente publicáveis,
espera respostas dos deuses de acordo com a urgência das suas reivindicações. Não é difícil
aceitar que os rituais promovem aberturas para uma “dupla transcendência”: “A invenção do
símbolo e do que é simbolizado é simultânea” (HATZFELD, 1993, p. 137). Sem as tentativas
de autoanulação de quem ritualiza tantos encontros teriam suas possibilidades de ocorrência
reduzidas ainda que a autolimitação tenha sempre sua plenitude como um ponto nunca
atingido.
Nesse encontro entre humanos e dos homens com o inumano (HATZFELD, 1993,
p. 147), no qual aqueles que ritualizam e sacrificam reconhecem que o poder encontra-se nas
mãos do outro, sob o domínio dos deuses, os Penitentes contentam-se com a dor, quer seja ela
corporal ou não, em uma atitude denominada por Peter Berger (1985) de “masoquista”. Para
este autor, masoquismos e sadismos são elementos recorrentes nas relações humanas. Em
relação aos Penitentes do Genezaré, ambas as atitudes podem ser identificadas nas situações
ordenadas de acordo com as normas dos sacrifícios.
Dessa forma,

Toda sociedade exige certa renúncia do eu individual e suas


necessidades, ansiedades e problemas. Uma das funções-chave dos nomoi é a
facilitação dessa renúncia na consciência individual. Há também uma intensificação
dessa entrega autonegadora à sociedade e sua ordem que é de particular interesse em
relação à religião. É a atitude do masoquismo, isto é, a atitude em que o indivíduo se
reduz a um objeto inerte e semelhante a uma simples coisas frente a seus
semelhantes, tomados separadamente ou em coletividades ou nos nomoi por eles
estabelecidos. Nessa atitude, a própria dor física ou mental, serve para ratificar a
auto-renúncia até o ponto de se tornar subjetivamente agradável (BERGER, 1985, p.
67).

Em síntese, os homens inventam as sociedades, fundam as religiões, produzem os


deuses, atribuem a criação de tudo o que fazem a forças supra-humanas e têm prazer de
praticar a autoanulação em favor das suas criações. Essa interiorização revela o sucesso
sempre parcial do processo de socialização. Parcial sim, porque como afirma Peter Berger
(1985, p. 32-33), o indivíduo não é um mero produto da sociedade e “Assim como não pode
37

haver indivíduos totalmente socializados, assim sempre haverá também significados


individuais que permanecem fora ou à margem do nomos comum”.
Decerto, “nenhum sistema normativo é, de fato, suficientemente estruturado para
eliminar toda possibilidade de escolha consciente, de manipulação ou interpretação das regras,
de negociação”, (LEVI apud CHARTIER, 2002b, p.84). Os Penitentes do Genezaré não
abdicam plenamente das suas escolhas e da sua capacidade de ofertar algo novo ao já dito,
estabelecido pela tradição, sedimentado pela cultura. Assim interpretando, os seus sacrifícios
aos seus deuses tornam-se sempre parciais ainda que envolvidos por um desejo sincero. O
desparecimento total dos Penitentes diante da divindade, sua autoanulação é efetivada apenas
parcialmente nesse encontro entre norma e indivíduo, anseio e impossibilidade, gozo pelo
realizado e certeza que algo mais poderia ser feito. Eles vivem nesse caminho repleto de
possibilidades experimentadas pelos sentidos que trazem, dentre muitas sensações, uma
resposta agradável como recompensa ao dispêndio de energia daqueles que religiosamente
sacrificam.
Se por um lado, como tenho argumentado, a satisfação do Penitente que sacrifica
dá-se pela atitude masoquista que pressupõe a autoanulação do homem diante dos seus deuses
e a correspondente crença que a divindade sente prazer com o sacrifício humano. Em outro
sentido, sacrificando, o homem religioso alimenta a sua convicção que os deuses
permanecerão sensíveis ou terão suas atenções despertadas para as necessidades de quem
sacrifica, quer sejam próprias ou demandas em favor de terceiros. Os Penitentes do Genezaré
creem nessa possibilidade, afirmam a existência de deuses cuidadosos dos interesses
humanos, e assim crendo afirmam tacitamente que “os deuses não fazem o que querem”
(HATZFELD, 1997, p. 184). Na verdade, homens e deuses ficam obrigados a uma retribuição
a partir do instante no qual recebem do outro alguma dádiva, quer seja por sacrifício (homem)
ou por graça (deuses).
Os homens constroem deuses graciosos capazes de atender as necessidades de
quem sacrifica, deuses realmente sensíveis aos clamores e desejos humanos, acessível a suas
dores e apelos. Na verdade, os homens admitem que “os deuses podem”. Quem sacrifica
mantém a convicção que existe um poder em outras mãos que não as suas, poder que os
homens não têm e decidem influenciar sacrificando aos senhores de tal poder, estabelecendo
uma relação de colaboração entre as partes (a que sacrifica e a que recebe a dádiva) ou mesmo
instituir um comércio com os deuses (HATZFELD, 1997, p. 212).
Marcel Mauss (2003, p. 188) no despertar do século XX já anunciava que os
homens entre si e os grupos com seus deuses fundam um complexo sistema de prestações
38

totais fundamentado nas obrigações de dar e nas obrigações de receber e de retribuir. O autor
destaca o “caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no entanto
obrigatório e interessado, dessas prestações”. Nesse sentido, interessa menos o valor ou
tamanho do objeto da dádiva e mais o estabelecimento da obrigação, da reciprocidade.
Primeiramente, a dádiva não pode ser rejeitada sob pena de desestabilizar a
relação entre as partes envolvidas no sistema de prestações totais. Em segundo lugar, é
igualmente penoso fugir da obrigação da retribuição. Portanto, os homens dão presentes e
ofertam de si uns aos outros e aos deuses e esperam receber do outro não menos do que o
objeto da graça dada. Quando os Penitentes do Genezaré sacrificam, eles ofertam mais do que
bens ou outras dádivas tangíveis, seguem com os seus sacrifícios as suas almas como
presentes aos seus deuses como um fardo a pesar sobre aqueles que foram agraciados.
Ocorre, entretanto, uma sensível diferença entre as obrigações prestadas por
homens entre si e pelos homens com os seus deuses. Os Penitentes reconhecem que os deuses
possuem uma capacidade única de retribuir com correção o preço das coisas ofertadas e,
assim, “[...] é dos deuses que se deve comprar” (MAUSS, 2003, p. 206), receber dádivas
materiais ou intangíveis como resposta ao sacrifício. Nessa relação análoga a trocas
comerciais não raras poder, riqueza, desprendimento são associadas aos sacrifícios entregues
a quem são julgados os verdadeiros donos ou administradores das dádivas ofertadas e de todo
o que há: os deuses ou os mortos. É urgente que essa relação entre homens e seres além seja
fundada com base na impossibilidade de não sacrificar e no risco de fazê-lo de forma
inadequada. É por demais arriscado negligenciar tal obrigação, melhor é fundar e conservar a
comunhão e a aliança com aqueles que detêm o poder que os homens de mãos vazias carecem
para manter a sua existência em harmonia com os seus semelhantes e com todo o universo de
seres inanimados, divinos e demoníacos, vivos e mortos, com a natureza. E dessa forma, a
história ganha um sentido.
È preciso dar, receber e retribuir. Diante desses “três temas da dádiva” pode-se
concluir que os esses sistemas de prestações totais fazem parte de um complexo de relações
que os homens constroem. São os homens em sociedade que forjam as suas instituições,
elaboram as suas normas e transferem a autoria da sua obra criadora para o supra-humano.
Nessa contextura, apela-se para situações que garantam a harmonia entre as partes envolvidas
e negligenciá-las pode colocar em risco não somente o estado presente das relações entre
homens e entre os grupos e seus deuses, mas também comprometer o sentido da história e
uma drástica re-significação da memória social dos envolvidos marcada pela ideia do
sacrifício como uma tentativa urgente e desesperada de agradar aos deuses e de outras formas
39

de dádiva como um recurso que “estabelece um vínculo bilateral e irrevogável” (MAUSS,


2003, p. 288) entre os que ofertam e aqueles que são agraciados.
Finalmente, não é difícil constatar que muitas ações generosas entre os homens
são interpretadas como dádivas ofertadas aos deuses. Especificamente, esmolas doadas
sugerem, a um só tempo, uma maior riqueza do ofertante, estabelece uma relação de poder
entre quem doa e quem recebe e, não menos importante, revela um desprendimento de quem
oferta e um gesto de sujeição de quem é agraciado. Quem dá, demonstra sua liberalidade;
Quem recebe deixa patente seu senso de responsabilidade com o sistema de retribuição. Os
Penitentes creem que os deuses têm especial prazer com essas situações. A liberalidade, a
humildade, a consciência social em oposição à arrogância, à avareza e ao individualismo são
atitudes consideradas virtuosas entre os integrantes daquela Irmandade e reforçam os sistemas
de prestações totais. “Quem dá aos pobres, empresta a(os) deus(es)”, afirma um dito popular
recorrente nas falas de Deca Pinheiro e dos seus liderados, e os deuses são capazes de retribuir
em justo medida e ainda multiplicando as dádivas de quem oferta liberalmente. Esse talvez
seja uma crença igualmente marcante entre os que adotam esse sistema. Não por acaso o
recolhimento de esmolas faz parte dos rituais dos Penitentes do Genezaré realizados durante
as Semanas Santas.
As trajetórias dos Penitentes do Genezaré trazem essas marcas contadas e
cantadas nas narrativas orais de cada membro daquela Irmandade ditas às sombras dos oitões
das suas residências ou pelos caminhos em nossos muitos diálogos e nos benditos entoados
durante os seus rituais. No processo sem interrupção de constituição da memória social do
grupo é recorrente os narradores reivindicarem para si e para a Irmandade as suas inserções
em uma longa tradição capaz de comemorar no corpo e pelo corpo as dores do Deus
encarnado em favor da salvação dos homens perdidos. Exibem, portanto, através dos seus
rituais um desejo de autoanulação para que aquele que anunciam seja pressentido mais
nitidamente. Essa opção provoca nos Penitentes uma sensação de prazer eficiente para
superação da dor que o sacrifício pode provocar. Para além dessa perspectiva, o mundo dos
membros da Irmandade de Penitentes do Genezaré é fundado igualmente a partir dessa noção
da pequenez humana diante da grandeza e capacidade provedora dos deuses, mais
especificamente do Deus do cristianismo, dos seus santos e das almas dos mortos. Com
homens e com deuses e com os antepassados, os Penitentes estabelecem um complexo
sistema de obrigações de dádivas e retribuições.
No processo de constituição da memória social daqueles Penitentes, os narradores
elegem os personagens, lugares e momentos capazes de ofertar significação à trajetória da
40

irmandade. Em detrimento da ordem cronológica, as narrativas são estruturadas levando em


consideração menos a datação e mais a apropriação do passado para garantir sentido ao
presente. Assim, dialogar com os Penitentes do Genezaré é participar da construção inacabada
de uma memória social repleta de lapsos, marcada pela seletividade do narrado, na qual
personagens, lugares e acontecimentos separados no tempo, na perspectiva geográfica e na
imensidão da existência, são irmanados pela voz que teima em unir o aparentemente
irredutível a uma mesma narrativa. Cada elemento do narrado abraça a um outro
reivindicando continuidade com o passado, o gozo dizível da coautoria de uma tradição.
Apropriar-se da memória de personagens, lugares e acontecimentos operando re-
significações é um mecanismo para elaboração da memória social da Irmandade de Penitentes
do Genezaré. A memória, sob esse princípio, não pode ser considerada um território de
domínio exclusivo, nem uma obra irretocável. Cada elemento do narrado certamente já sofreu
outras e não poucas interpretações, contribuiu para forjar e foi objeto de vastas sensibilidades,
integrou o domínio de muitas narrativas unidas a outras facetas desconhecidas ou
deliberadamente omitidas pelos Penitentes do Genezaré.
Personagens, lugares e acontecimentos são incontáveis na trajetória de Deca
Pinheiro e dos seus liderados. Entretanto, nessa vastidão os narradores selecionam de acordo
com o rememorado o que deve ser transmitido aos seus dialogadores de acordo com os
interesses em jogo nas “entre-vistas”. Inevitável é a atuação do esquecimento, deixando parte
do vivido distante das narrativas a menos que um “próximo”, para mencionar Paul Ricoeur
(2007), traga a sua contribuição dizendo do/ao narrador aquilo que escapa aos seus esforços
de rememoração e que será integrado ou não ao seu acervo narrativo7.
Nesse sentido, Jesus, São Francisco e padre Cícero Romão Batista são unidos a
antigos decuriões ou outros membros de irmandades de penitentes como personagens de
significado inquestionável para a trajetória dos Penitentes do Genezaré de forma geral e para
os seus rituais, especificamente. Uma capela ou uma cruz à beira de um caminho, a sombra de
uma árvore ou os arredores de uma residência, um cemitério ou uma praça pública não são
menos emblemáticos. Uma visão ou uma doença, uma oração ou uma visita, uma

7
Para o autor, os próximos são “[...] essas pessoas que contam para nós e para as quais contamos, (e que) estão
situados numa faixa de variação das distâncias na relação entre si e os outros” (RICOEUR, 2007, p.141). Se o
meu nascimento e a minha morte são para além dos extremos entre a minha capacidade de rememorar e a prática
continua dos meus projetos e sonhos, para os meus próximos, meu nascimento e a minha morte adquirem
importância talvez jamais atribuída pela sociedade em geral senão pelos seus valores estatísticos e perspectiva
demográfica. Dessa forma, os próximos devem ocupar espaço privilegiado na atribuição dos verdadeiros sujeitos
das operações da memória.
41

peregrinação ou um convite, uma morte ou uma missa não devem ser desprezados na sua
importância para os mesmos temas.
Ao dialogar com os Penitentes do Genezaré sobre uma possível origem das
práticas penitenciais na trajetória da humanidade sobre o mundo, os mais velhos não
titubeiam: “Jesus foi o primeiro penitente”. E não apenas isso, tomando como referência os
relatos bíblicos do Novo Testamento nos Evangelhos, os narradores admitem serem os
apóstolos uma irmandade de penitentes fundada por Jesus. Portanto, não raro afirmam que o
ideal é que toda e qualquer ordem penitencial semelhante a que integram tenham o número de
doze membros conforme suposto modelo deixado pelo Homem das Dores.
Com isso, as narrativas orais dos Penitentes do Genezaré insistem que a memória
social do grupo une a apropriação de outras tantas narrativas tornadas conhecidas pela fala
dos mais antigos membros de irmandades com novas formas de interpretação de alguns
escritos. O que os mais antigos penitentes transmitiram nos diálogos e nos cânticos foi aos
poucos sendo incorporado ao repertório das narrativas dos atuais membros da Irmandade de
Nossa Senhora, muito do não-visto e não-vivido toma por esse mecanismo a forma de uma
experiência pessoal dos narradores que chega aos seus contemporâneos por intermédio dos
recursos da oralidade. Alguns dos nossos diálogos revelaram as barafundas referidas.
“Seu” Luizinho Camilo, por exemplo, fala na primeira pessoa do plural ao
mencionar os rituais executados pelos penitentes na zona rural do município de Lavras da
Mangabeira quando aquele narrador ainda era uma criança, antes de sua família migrar para o
município de Assaré. Na verdade, sua inserção em irmandades de penitentes ocorreu apenas
quando o mesmo já contava com aproximadamente vinte e cinco anos de idade e habitava
paragens assareenses. Suas narrativas orais indicam que suas vivências de penitente são
reforçadas com as recordações que guarda dos diálogos mantidos com o seu pai, o velho
decurião Camilo Duarte, e com o seu tio Quinco Duarte.
Em outro sentido, a memória social dos Penitentes do Genezaré atua na re-
significação de textos bíblicos e de outros produtos escritos. A ideia de uma irmandade com
doze penitentes, em referência ao número de apóstolos arregimentados por Jesus, é
significativa mais não exclusiva nas insinuações que os narradores fazem da apropriação de
textos escritos pela Irmandade. Tentativa que sugere alguma frustração ao decurião Deca
Pinheiro.
Diante de uma exigência contemporânea, o líder da Irmandade de Penitentes do
Genezaré tem que conformar-se com um grupo que conta com apenas oito integrantes. Na
falta dos doze membros, quantia julgada adequada, que acrescentaria “beleza” à Irmandade,
42

resta mantê-la em atividade com a quantidade de penitentes à disposição. Nesse aspecto, a


impossibilidade do julgado ideal não estabelece o ocaso do grupo, segundo os argumentos de
Deca Pinheiro e dos seus penitentes. E assim, é possível que o número de penitentes da
Irmandade do Genezaré possa variar (e eventualmente varia) de acordo com demandas
inscritas nos meandros do tempo. O idealizado, portanto, é passível de ajustes pelos diálogos
infindáveis entre presente e passado.
Ao desejar saber como ocorria o aprendizado dos benditos, informei aos amis
velhos dos Penitentes do Genezaré sobre essa minha dúvida. O mesmo “Seu” Luizinho
Camilo respondeu que seu pai, o já mencionado decurião Camilo Duarte, viajava algumas
vezes por ano de Lavras da Mangabeira para o município de Juazeiro do Norte a fim de
comercializar gêneros de primeira necessidade para manutenção da sua numerosa família;
Vendia os produtos de que dispunha gerados pela colheita anual e alguns derivados de
pequena atividade pecuária e adquiria os faltantes no comércio da crescente “Juazeiro do
Padim Ciço”. Essas viagens igualmente serviam para que o velho decurião adquirisse naquela
cidade alguns livros de benditos vendidos nos arredores de algumas igrejas locais. A menção
de “Seu” Luizinho Camilo destaca a Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (ou
simplesmente Capela do Socorro) na qual permanece inumado o corpo do padre Cícero.
Restava ainda uma dúvida inquietante: como aqueles homens que não dominavam
nem a escrita, nem a leitura, podiam acessar os conteúdos daquelas publicações
essencialmente escritas? Para “Seu” Luizinho Camilo isso era algo simples de ser resolvido.
O velho decurião Camilo Duarte pedia para que alguém capaz de decodificar, ainda que de
forma não fluente, os símbolos grafados lesse para os penitentes as palavras e frases contidas
nos livros de benditos enquanto os ouvintes memorizavam o que escutavam. “Ele tinha
memória muito boa” e “os mais velhos sabiam todo os bendito”, afirma “Seu” Luizinho
Camilo em relação ao seu pai e aos velhos penitentes que inspiram seus relatos. Logicamente,
nesse processo e com o avançar dos anos, com alguma dificuldade de rememoração dos
velhos, alguns benditos sofreram algumas alterações em relação ao seu conteúdo verbal ou
musical (harmonia e melodia). Isso pode ser percebido, por exemplo, nas dificuldades que o
decurião Deca Pinheiro tem atualmente de “acompanhar” os demais penitentes durante a
execução dos benditos. Ainda que cantando o mesmo bendito, as letras variam sensivelmente
e alguns desencontros ocorrem quanto a tonalidades e melodias entoadas.
A apropriação por irmandades de penitentes de textos escritos não é uma
exclusividade do grupo liderado por Deca Pinheiro. A socióloga Anna Christina Farias de
43

Carvalho (2011, p. 62) constatou o mesmo fenômeno promovido pelos “Ave de Jesus”,
penitentes mendicantes, do município de Juazeiro do Norte. De acordo com a autora,

O discurso dos integrantes da Irmandade de Penitentes Peregrinos


Públicos (Ave de Jesus), demonstra a re-elaboração do discurso da Igreja Católica a
partir de dois textos: A Machadinha de Noé e a Missão Abreviada, que se revelaram
enquanto suporte para essa vivência religiosa. Essas duas narrativas textuais são
importantes fontes de reconstrução de aspectos da cultura religiosa das Irmandades
de Penitentes.

Discursos e memória social elaborados através de processos comuns de


apropriação de narrativas textuais, mas diferenciados em relação aos textos objetos de tais
apropriações. Para os Penitentes do Genezaré, a Bíblia Sagrada é uma referência significativa.
O conhecimento dos textos bíblicos ocorreu essencialmente através da audição de passagens
lidas ou comentários de terceiros, clérigos ou leigos, que, por sua vez, constituem igualmente
interpretações daquele livro sagrado. Em relação aos “Ave de Jesus”, conforme destaca Anna
Christina Farias de Carvalho (2011), A Machadinha de Noé e a Missão Abreviada ganham
maior destaque.
No primeiro dos dois textos analisados pela socióloga imediatamente acima
referida, A Machadinha de Noé, consta uma série de referências ao final dos tempos e
admoestações aos cristãos para conservarem sua integridade de caráter e retidão nos atos a
fim de garantirem a salvação eterna das suas almas. O livro, cuja autoria é atribuída ao padre
Cícero Romão Batista em evidente referência ao “fim do mundo” promovido pelo dilúvio nos
dias de Noé, convida igualmente todos os pecadores ao arrependimento antes que os séculos
sejam definitivamente consumados. No segundo caso,

A mística que envolve a Missão Abreviada pode ser aproximada de


uma verdadeira devoção, pois envolve além do culto ao livro enquanto
representação do sagrado, atitudes e ritos de veneração. Esta inter-relação promove
uma negociação com o sagrado que reverte o objeto em relíquia, como parte do
sagrado (CARVALHO, 2011, p. 71).

A Missão Abreviada tem como autor o padre português Manuel Gonçalves Couto
(1819-1897). Desde o seu subtítulo fica presente a intencionalidade do autor: Para despertar
os descuidados converter os pecadores e sustentar o fructo das missões. Logo no seu início, o
livro afirma ainda que: “É destinado este livro para fazer oração, e instrucções ao povo,
particularmente povo d’Aldeia”. E mais, “Obra utilíssima para os parochos, para os capellães.
Para qualquer sacerdote que deseja salvar almas, e finalmente para qualquer pessoa que faz
oração pública” (COUTO, 1871, p. 3).
44

O texto do padre Manuel Couto circulou e obteve grande aceitação nos sertões
nordestinos desde meados do século XIX por intermédio das Santas Missões. Não apenas os
párocos, mas igualmente leigos letrados e iletrados tiveram acesso à Missão Abreviada e,
assim, puderam tecer suas reinterpretações dos escritos do padre Couto. São quase 1.000
páginas exortando os cristãos à prática de boas obras, à conservação das virtudes ensinadas
pelo Salvador, à penitência8.
A tradição oral e os recursos da escrita unem-se, portanto, na constituição da
memória social dos penitentes do Cariri cearense. Digno de nota é não haver nenhuma
menção dos Penitentes do Genezaré aos textos citados como referência pelos “Ave de Jesus”.
E quando perguntados acerca de A Machadinha de Noé e da Missão Abreviada os narradores
do Genezaré alegaram completo desconhecimento. Por outro lado, suas narrativas orais
confirmam apropriações e reelaborações de benditos publicados em livretos e de passagens
bíblicas como exemplificado na referência ao número de penitentes adequado a uma
irmandade na sua tentativa de equiparação ao número de apóstolos segundo os evangelhos e a
tradição cristã.
Narrativas orais que tomam como referências outras falas e incontáveis escritos
que permitiram o acesso dos Penitentes do Genezaré a personagens essenciais na constituição
da memória social do grupo e não menos significativa para os seus rituais.
Passo a destacar agora mais alguns personagens marcantes nas narrativas orais
dos Penitentes do Genezaré.
Nascido Geovanni Bernadone em Assis, em 1181 ou 1182, Francesco tornou-se
com o passar dos anos

Meio religioso, meio leigo, nas cidades em pleno desenvolvimento,


nas estradas e no retiro solitário, no florescimento da civilização urbana combinada
com uma nova prática de pobreza, da humildade e da palavra, à margem da Igreja e
sem cair na heresia, revoltado sem niilismo, ativo naquele ponto mais fervilhante da
cristandade, a Itália central, entre Roma e a solidão de Alverne, Francisco
desempenhou um papel decisivo na impulsão das novas ordens mendicantes
difundindo um apostolado voltado para a nova sociedade cristã, e enriqueceu a
espiritualidade com uma dimensão ecológica que fez dele o criador de um
sentimento medieval da natureza expresso na religião, na literatura e na arte. Modelo
de um novo tipo de santidade centrado sobre o Cristo a ponto de se identificar com
ele como o primeiro homem a receber os estigmas, Francisco foi uma das
personagens mais impressionantes do seu tempo e, até hoje, da história medieval
(LE GOFF, 2011, p. 9).

8
De acordo com a historiadora Edianne Nobre e com o historiador Jucieldo Alexandre (2011), “A narrativa da
Missão Abreviada tinha a conversão como objetivo maior. Tornar crível as penas pós-morte, e principalmente,
tornar possível a crença nos espaços do além. Temos assim, na narrativa do padre Couto, uma percepção de um
mundo permeado pelas noções de sagrado e de profano que contém os elementos/conteúdos fundamentais para a
construção de um mundo mítico (CASSIRER, 2004)”.
45

O fato de o Santo de Assis ter optado por virtudes associadas de forma direta ao
Homem das Dores, tais como pobreza e humildade e haver organizado grupos fundamentados
em princípios considerados semelhantes ao do cristianismo primitivo, contribuiu de forma
significativa para sua eleição como personagem central de um “novo modelo de santidade”
como afirma Jacques Le Goff (2011) no fragmento citado imediatamente acima. E não apenas
isso, a sua busca por uma plena identificação com o Deus encarnado permitiu que na sua
carne fossem inscritas as marcas dolorosas de sofrimentos análogos ao do Salvador através de
estigmas. Assim, São Francisco é um dentre a imensidão de crentes que têm no Filho de Deus
seu exemplo e que, a partir da relação mística que mantêm com o Salvador, torna-se exemplar
para quem anseia a mesma e mais completa possível relação e identificação de si com o
Cordeiro de Deus sacrificado no Calvário.
Não é difícil perceber, portanto, os caminhos que levam um servo que toma o seu
Senhor como modelo tornar-se ele mesmo, o servo, um exemplo para outros que perseguem
essa mesma trilha. Igualmente, não é difícil aceitar que a Irmandade de Penitentes do
Genezaré tenha pelo Santo de Assis uma destacada devoção digna de referência em suas
narrativas orais. São Francisco é uma das personagens capazes de estabilizar a relação
daqueles Penitentes com a tradição a qual afirmam dar continuidade. Escolhas inscritas no
corpo do Santo de Assis e nos corpos dos liderados de Deca Pinheiro. Na sua busca de
estabelecer uma continuidade com o passado, os integrantes daquela Irmandade têm em
Francisco mais um elo humano entre tempos, tornando fragmentos caóticos em um todo
inteligível, ofertando coerência à memória social do grupo. Francisco foi santo porque foi
servo, tornou-se modelo porque é santo disposto a atender os seus devotos nas suas carências
e angústias.
Fortalecendo a relação entre os Penitentes do Genezaré e o Santo em questão
encontram-se as graças alcançadas por aqueles que chegam diante do sujeito da sua devoção
em súplicas e dádivas. Há ainda uma questão local unindo os Penitentes e o Santo de Assis:
São Francisco é o padroeiro do Genezaré e o decurião Deca sente-se com o seu grupo
representante da comunidade e da religiosidade local, participa com os seus liderados das
festas alusivas ao seu padroeiro e, assim, laços afetivos e contratuais entre devotos e santos
são reforçados e renovados anualmente a cada mês de outubro nas festas franciscanas locais.
No mesmo sentido em que tenho exposto a relação dos Penitentes do Genezaré
com São Francisco devo mencionar a presença do padre Cícero Romão Batista (1844-1934)
nas narrativas orais dos integrantes do grupo e na constituição da sua memória social.
46

De acordo com Ralph Della Cava (1976, p. 23),

Em 11 de abril de 1872, chegava ao Joaseiro, lugarejo de população


reduzida, um sacerdote recém-ordenado, Padre Cícero Romão Batista. Nesse dia,
rezou a missa na rústica Capela de Nossa Senhora das Dores, um modesto santuário
rural, único marco que destacava nesse longínquo distrito dos confins nordestinos do
próspero município de Crato. No decorrer daquele mesmo dia, o jovem padre, de
pequena estatura, cabelos escuros e pele clara, continuou a dar a confissão aos
moradores da localidade e a ministrar-lhes os sacramentos. Nada no seu
comportamento, nem no exercício de seus deveres sacerdotais indicava que, na
Capela de Nossa Senhora das Dores, menos de dois decênios mais tarde, viria ele a
ser o protagonista de um milagre.

Naquele distante abril, as intenções do padre apontavam para uma breve


permanência no povoado do Joaseiro9. Seu desejo era partir com brevidade para Fortaleza e
ali estabelecer residência e quem sabe lecionar no Seminário da Prainha no qual havia
recebido os estudos necessários para receber o título de sacerdote. Mesmo um provável
convite para tornar-se capelão em Joaseiro, com garantia de moradia e justos emolumentos,
não deveriam dissuadi-lo dos seus planos. Entretanto, um sonho promove uma mudança
repentina no quadro ora narrado.
Então,

De acordo com o relato desse sonho, Cristo apareceu na escola (na


qual o padre Cícero estava temporariamente alojado e descansava em uma rede) tal
como no retrato litúrgico popular do século XIX, e que se encontrava em quase
todos os lares piedosos da época. Nesse quadro, o coração do Nazareno está
visivelmente exposto e, simbolicamente, representado como que incendiado de amor
pelos homens e, também, despedaçado e sangrando das feridas infligidas pelos
pecados da humanidade e pela indiferença à fé. Conhecido pelo nome de Sagrado
Coração de Jesus, foi esse quadro, naquele tempo, objeto de grande devoção
religiosa e popular através da Europa, principalmente na França, e no Brasil,
devoção que assegurava a seus fiéis participantes a salvação, quer das chamas
eternas do inferno, quer das intermináveis adversidades terrenas (DELLA CAVA,
1976, p. 24).

Na verdade, o Cristo tal qual descrito no relato do sonho encontrava-se em meio


aos seus doze apóstolos que contemplavam o seu Mestre da mesma forma que o padre Cícero
também o fazia. O momento contemplativo do Cristo e seu coração em exposição é quebrado
repentinamente quando ainda em sonho o dito padre vê a escola onde repousava ser invadida
por uma grande quantidade de sertanejos de aparência maltrapilha. Então, o Cristo volta-se
para Cícero e afirma sua intenção de promover um último esforço a fim de salvar a
humanidade e caso o arrependimento necessário não ocorresse o Criador findaria o mundo

9
Antiga forma de grafia da palavra “Juazeiro”, conforme presente em Ralph Della Cava (1976).
47

que criara. A atenção e palavras do Filho de Deus naquele instante são voltadas para o
inexperiente sacerdote que contara naquela ocasião com vinte e oito anos de idade e que ouve
a voz do Cristo a dizer-lhe: “E você, padre Cícero, toma conta deles”. Meses depois o padre
decidira permanecer em Joaseiro exercendo seu sacerdócio entre os pobres daquela não
menos carente localidade.
Menos de vinte anos depois daquela abnegada decisão, Joaseiro tornara-se um
lugarejo marcado por “[...] fenômenos extraordinários como viagens ao Purgatório, Céu e
Inferno, aparecimento de hóstias ensanguentadas, estigmas de crucificação, sangramento de
crucifixos de metal maciço, relatos de visões, profecias, êxtases e comunhões espirituais”
(NOBRE, 2011b, p. 20). Protagonizando tais fenômenos, o padre Cícero e pelo menos nove
beatas daquele universo de devotas, dentre as quais ganha destaque Maria de Araújo (1863-
1914).
Fatos extraordinários divulgados pela imprensa e através das narrativas orais dos
sertanejos que visitavam a terra do padre Cícero ou tomavam conhecimento das bem-
aventuranças que aquele lugarejo reservava aos seus moradores através dos viajantes que
cortavam todo o interior do Nordeste brasileiro, um consequente vertiginoso crescimento
populacional e o padre aos poucos ia tornando-se o padrinho (“padim”) daquela gente que ali
chegava em grandes levas na transição do século XIX para o século XX. Figura que pela
proximidade com os “afilhados” chegava a substituir os pais na criação e proteção dos órfãos
separados irremediavelmente, sobretudo, da presença paterna.
Os novos moradores e moradoras do Juazeiro não raro eram organizados
religiosamente em irmandades de penitentes lideradas por alguém com reconhecida
experiência no trato das questões religiosas mais elementares e que contasse com uma
conduta considerada irrepreensível pela comunidade. Indispensável, da mesma forma, era que
o líder contasse com a aprovação e benção do “padim Ciço”. Dentre tantos grupos de
penitentes o caso mais notável foi, sem nenhuma dúvida, a Ordem dos Penitentes do
Caldeirão da Santa Cruz do Deserto liderada pelo beato José Lourenço (RAMOS, 2011)10.
Dessa forma, foi inicialmente gestada a denominada “questão religiosa do
Juazeiro” (DELLA CAVA, 1976). A Igreja, representada pela sua hierarquia imediata na sua
avidez por controle das crenças e práticas dos fiéis, não assistiu passiva ao desenrolar dos
fatos com suas mencionadas consequências.

10
A narrativa cinematográfica O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (1986), do cineasta Rosemberg Cariry,
reconstrói parcialmente a trajetória da irmandade de penitentes liderada pelo Beato José Lourenço (1872-1946)
através dos relatos orais de alguns sobreviventes dos embates entre as forças militares do Governo e os
moradores da localidade.
48

Aqueles eram dias do processo denominado Ultramontanismo ou Romanização.


Tempos que cobravam dos católicos “[...] valorização da hierarquia católica, combate ao
catolicismo popular (visto como fanatismo, heresia ou ignorância religiosa), maior
fortalecimento da disciplina e submissão da Igreja brasileira à Roma” (RAMOS, 2011, p. 27-
28). Os sacerdotes, por sua vez, eram ensinados a viver e propagar os mesmos princípios.
Padre Cícero, educado para o sacerdócio no Seminário da Prainha, espaço privilegiado de
formação de líderes romanizados no Ceará, compreendia bem os valores da Romanização
embora revelasse algumas dificuldades em vivenciar alguns deles.
Dois inquéritos eclesiásticos depois com julgamentos não favoráveis ao padre
Cícero, ao Joaseiro e aos seus romeiros a localidade crescia como também era visível a
elaboração daquela localidade como a “Terra da Mãe de Deus”, Nossa Senhora das Dores
(BARROS, 2008). Dessa forma, segundo re-elaborações contínuas, Juazeiro do Padre Cícero
é também a Nova Jerusalém prometida nos relatos bíblicos, padre Cícero é o próprio Filho de
Deus que veio para salvar o mundo. Sua geografia é redefinida a partir das imagens bíblicas,
seus lugares sagrados trazem as marcas da passagem de Jesus sobre a terra. Ainda é possível
ver em alguma rocha o afundamento provocado pelo seu joelho quando o Salvador prostrava-
se para clamar ao Pai pela humanidade.
As irmandades de penitentes surgidas no Joaseiro desde aqueles dias nos quais
pequenas multidões chegavam ao povoado contribuíram para a construção da Terra do
“padim Ciço” como o lugar de cumprimento de inúmeras profecias apocalípticas. Pela sua
presença e crenças aqueles penitentes e outras irmandades surgidas posteriormente e ainda
atuantes na cidade, participam da elaboração ainda em voga de um ethos local pautado na
piedade e na misericórdia (CAMPOS, 2008). Ao agirem dessa forma, os penitentes constroem
a si mesmos e desenvolvem cosmogonias capazes de garantir sentido às suas trajetórias
individuais e coletivas (CARVALHO, 2011)11.
Nas narrativas orais dos Penitentes do Genezaré o Juazeiro e o padre Cícero
aparecem de forma recorrente. A cidade une-se a outros tantos lugares que trazem em si as
marcas das trajetórias dos penitentes e dos seus rituais. O Juazeiro, o município de Várzea
Alegre, o Cariri são tidos por lugares nos quais as irmandades existiam em grandes
quantidades e, portanto, sem maiores restrições à execução dos seus rituais. Entretanto, se tais
lugares são referidos na sua relação com os penitentes e seus rituais considerada como

11
Através da narrativa cinematográfica de Rosemberg Cariry, Juazeiro: A Nova Jerusalém, além da
anteriormente mencionada O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, e de Petrus Cariry (A Ordem dos Penitentes)
pode-se ter acesso a das muitas informações que alimentam os argumentos presentes nesse parágrafo.
49

estabelecida em um passado distante e ideal, não são apenas municípios ou seus conjuntos que
constituem suportes materiais à memória social dos Penitentes do Genezaré. Uma sombra de
uma árvore, uma cruz à beira de um caminho, um cemitério, um palco, uma rua, uma igreja
compõem igualmente a cartografia do permitido aos rituais dos Penitentes do Genezaré
elaborada a partir das suas rememorações transmitidas através das suas narrativas orais.
Cada espaço mencionado nas narrativas dos membros da Irmandade de Penitentes
do Genezaré pode tomar a forma de um lugar propício ou inadequado à prática dos seus
rituais. Dos espaços mais dilatados aos de menores proporções, afastados pelo tempo ou pelos
lapsos geográficos, dos mais característicos aos mais inusitados são conjugados na
constituição desses olhares sobre o passado que têm o suporte material do espaço como
referência. O presente permite essa reconstrução. Esse é um trabalho da memória que carrega
consigo os traços fortes das sensibilidades, reconstruindo essa cartografia os Penitentes do
Genezaré reinventam-se a si mesmos e a Irmandade que integram.
Suas trajetórias passam a ser vistas a partir dos cenários das suas realizações, a
cada lugar é atribuído uma voz a dizer de onde todos vêm e em qual ponto encontram-se do
caminho (“Eu vim de lá e estou aqui”). É possível mesmo contemplando os espaços
estabelecer um destino; As errâncias não são passos perdidos porque há lugares indicando os
pontos significativos da trajetória.
Mas, falar de lugares é ir além do topográfico visto que também há

[...] lugares monumentais como os cemitérios ou as arquiteturas;


lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os
emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias, ou as
associações: estes memoriais têm a sua história (NORA apud LE GOFF, 1996, p.
473).

Caros aos historiadores, porque humanos, demasiadamente humanos, os lugares


são elaborações coletivas e guardam relação intrínseca com os seus frequentadores e os
acontecimentos que neles encontram guaridas. São, portanto, de grande préstimo também aos
seus construtores cotidianos. Dessa matéria a memória é alimentada: lugares, personagens e
acontecimentos. Cada um desses elementos não dispensa aos outros quando narrativas orais
realizam seu papel de fazer conhecidos elementos da memória social dos narradores.
Nas narrativas orais dos Penitentes do Genezaré, como não poderia deixar de ser,
esses elementos aparecem integrados e dispensando rigidez cronológica ou mesmo alguma
coerência espaço-temporal. Por exemplo, quando o diálogo foi encaminhado para a origem de
irmandade de penitentes, Fortunato afirmou acreditar que “tudo surgiu com o meu padim
50

Ciço” e emendou que “tudo o que ele havia dito estava se cumprindo”. Para outros penitentes
da Irmandade, Jesus fundou o primeiro grupo. Também, “os penitentes vêm desde o começo
do mundo”. Personagens e acontecimentos vão sendo colocados um ao lado do outro como
contemporâneos.
Se Jesus é antes de tudo e fundou as primeiras irmandades de penitentes, em outro
sentido, “tudo vêm” do padre Cícero que também é encarado como um personagem fundador
das ordens de penitentes. Nessa complexa elaboração, padre Cícero é partilhou do mesmo
tempo da existência de Jesus, ambos estavam presentes num tempo mítico, dentro e fora da
história simultaneamente, antes de tudo e assim inaugurando as práticas penitenciais de
leigos.
A esses personagens e acontecimentos com tantos cenários distintos, juntam-se
nomes do convívio dos Penitentes do Genezaré incorporados à sua memória social. São
antigos penitentes cujas trajetórias são reconstruídas e divulgadas através das narrativas orais
de Deca Pinheiro e seus irmãos de penitência. Sem dúvida, Camilo Duarte e seu irmão Quinco
são objeto das menções mais frequentes. Entretanto, outros penitentes com trajetórias de vida
consideradas não tão exemplares como as dos velhos Duarte são igualmente comemoradas
com algumas referências nas falas dos atuais integrantes daquela Irmandade. De qualquer
forma, as narrativas orais que integram parte do corpo de fontes desta pesquisa cujo resultado
segue nessas páginas unem a memória em torno de penitentes cujos exemplos de dedicação e
sacrifício jamais serão atingidos, na concepção dos narradores, a outros que “não tinham
coragem de se cortar” ou “num sabiam de nada”, como bem afirma Deca Pinheiro em riso e
em relação a alguns dos membros de irmandades anteriores das quais fizera parte.
Esse é um processo ainda em construção e não é condição essencial para fazer
parte dos personagens integrantes da memória social dos Penitentes do Genezaré ser também
penitente. Suas narrativas orais fazem menção igualmente a indivíduos com marcas recentes
na trajetória do grupo e que nunca integraram irmandades de penitentes. São padres, gestores
públicos, pesquisadores, cineastas, repórteres, que de alguma forma são vinculados aos seus
rituais a partir das relações que os penitentes têm estabelecido desde o início dos anos 2000
ou um pouco antes. Novas relações, dessa forma, vão produzindo novos lugares,
acontecimentos e personagens a serem integrados à memória daquela Irmandade.
Pode ser percebido, portanto, que as narrativas orais dos Penitentes do Genezaré
promovem o diálogo de distintos e separados espaços, acontecimentos e personagens. Nesse
processo, vivos e mortos encontram-se pelo trabalho da memória dos narradores. E, em
complemento a essa afirmação, devo dizer que ao reconstruir os seus rituais pelo esforço do
51

rememorar, os Penitentes do Genezaré falam em nome de vivos e de mortos. Finalmente, os


narradores, re-interpretando suas trajetórias pela memória e pela fala, promovem um encontro
inevitável com a morte que, por sua vez, é tão presente nos rituais dos Penitentes do
Genezaré.

2.2 – NOS RITUAIS E NA MEMÓRIA UM ENCONTRO INEVITÁVEL COM A MORTE

Na trajetória dos Penitentes do Genezaré, o passado não é um invasor indesejado,


é um convidado querido e que tem espaço privilegiado nas suas vidas. Eles procuram,
portanto, estabelecer vínculos com o passado alegando uma continuidade com a tradição que
re-inventam a partir das exigências do presente que, a um só tempo, constroem e por ele são
envolvidos. Buscam com dedicação, elaboram com mestria elos e guardam suas convicções
acerca de si como representantes de uma trajetória de rituais cuja emergência é de difícil
precisão. Confundem datas, unem personagens, põem espaços distantes em diálogo para o
bem da coerência daquilo que narram e creem.
Pelas falas e cânticos, os Penitentes do Genezaré re-inventam, da mesma forma,
trajetórias hagiográficas e ofertam longevidade aos mortos exemplares. Na verdade, levam os
vivos até os mortos e aplainam o caminho inverso, unem mundos pondo-lhes em
comunicação. Sob essa perspectiva, manter uma continuidade com o passado pelo
estabelecimento de uma tradição é também garantir sensíveis encontros com os seus mortos.
A morte e os seus mortos, portanto, têm lugar assegurado entre vivos, sentam-se com estes à
mesa, dividem sem constrangimentos espaços com os viventes às suas camas, percorrem
caminhos de mãos dadas uns aos outros. O trabalho da memória traz os mortos de volta.
Nesse aspecto, História e Memória guardam alguma semelhança. A historiografia “re-
presenta mortos no decorrer de um itinerário narrativo” (CERTEAU, 2011, p. 108).
O passado é o lugar dos mortos (CERTEAU, 2011). De lá, guiados pelas mãos,
vozes e crenças dos vivos, eles sempre voltam. Retornam com seus corpos nus ou vestidos,
com formas preservadas ou quase irreconhecíveis pelo trabalho da decomposição, falam ou
tocam os vivos, assombram pela presença, ordenam ou revelam carências, trazem seus sonhos
e frustrações. Quer leve pouco ou muito tempo, os mortos voltam (QUEIROS JÚNIOR,
1983). É urgente, portanto, conservar a paz com esses visitantes do tempo.
Honrá-los e dar a eles túmulos é o caminho apontado por Michel de Certeau
(2011). Para este autor, a operação historiográfica cumpre essa função pelas mãos dos
historiadores. Assim, a função da escrita
52

[...] pode ser particularizada por dois aspectos. Por um lado, no


sentido etnológico e quase religioso do termo, a escrita representa um rito de
sepultamento; ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso. Por outro lado, tem
uma função simbolizadora; permite a uma sociedade situar-se, dando-lhe, na
linguagem, um passado, e abrindo assim um espaço próprio para o presente:
“marcar” um passado é dar um lugar à morte, mas também redistribuir o espaço das
possibilidades, determinar negativamente aquilo que está por fazer e,
consequentemente, utilizar a narratividade, que enterra os mortos, como meio de
estabelecer um lugar para os vivos (CERTEAU, 2011, p. 109).

De acordo com o pensamento de Michel de Certeau (2011), portanto, a escrita


supõe uma separação efetiva entre mortos e vivos, verdadeiro trabalho de “exorcismo”. As
presenças aterrorizantes da morte e dos mortos precisam ser, de alguma forma, controladas.
Há que se providenciar um túmulo capaz de estabelecer distância segura entre os vivos e as
visitas que afrontam pela impertinência. Nesse sentido, a historiografia é repleta de passado,
logo traz consigo a vileza da morte. Mas, em outro aspecto, os mortos aquietam-se, perdem
muito da sua mobilidade pela perenidade que a escrita representa. A morte e os mortos são,
portanto, amarrados e quase que completamente dominados pelas suas supostas vítimas,
homens e mulheres que dominam os saberes exigidos à prática e ao discurso que sustentam à
historiografia.
Exorcizar a morte e aquietar os mortos, contudo, não é o único resultado positivo
que a historiografia propõe ofertar a mortos e vivos. Determinar um lugar adequado para a
menor mobilidade dos mortos faz com que os vivos também reconheçam o seu lugar no
tempo. E o seu tempo é o presente, sequência de momentos nos quais a vitória sobre a morte é
elaborada no seu caráter ficcional. A historiografia, pelo seu esforço, traz um efeito de
controle dos vivos sobre a morte e os mortos, mas ambos os combatidos permanecem ativos e
à espreita. A morte e os mortos não são tão facilmente dominados. Há sussurros e
movimentos que partem das sepulturas. Sob camadas de escrituras, os inumados teimam em
permanecer falando pelas vozes dos seus coveiros. Nessa ficção, os vivos esforçam-se por
negar sua impotência diante daqueles que querem exorcizar e sepultar, mas basta uma breve
olhada e eis que seus planos de fuga são desmascarados na sua fragilidade. E, os mesmos
vivos correm com suas questões ao encontro daqueles que por eles foram sepultados,
esperando que possam obter dos inumados alguma resposta, mas são apenas vivos que falam
em nome dos ausentes.
A historiografia, dessa forma, pode ser interpretada como um tratado de paz
elaborado pelos vivos e proposto aos seus mortos. E isso é bem diferente de um escrito de
rendição, se posso ainda abusar das metáforas bélicas. Em síntese, os vivos persistem na
busca da presença desnorteadora dos mortos como que aguardando deles alguma explicação
53

ainda que nos seus projetos objetivem distâncias seguras. Finalmente, atribuem parte das suas
falas aos seus antepassados. Presente projetado no passado e passos no caminho inverso. Não
seria isso mesmo o estabelecimento de uma tradição? Mortos e vivos seguindo juntos
dispensando concordarem sempre e em tudo.
Decerto, as veredas dos Penitentes do Genezaré são repletas de mortos que,
através das narrativas orais daqueles homens, adquirem capacidade de rejuvenescimento.
Acredito que esse seja um ponto que revela a idiossincrasia da oralidade: com os seus
recursos, os mortos são reinventados com maior fluidez, parecem igualmente dotados de
maior dinamicidade. A cada novo diálogo, outras possibilidades de os mortos serem
renovados juntamente com os passados aos quais pertencem. Alimentando esse processo, o
presente e os vivos com as suas curiosidades não satisfeitas, com suas novas formas de olhar
os seus mortos, portando um mais incrementado universo de possibilidades de análise.
Portanto, historiografia e oralidade, cada uma ao seu modo, buscam a paz com os
mortos em face de uma luta sem tréguas contra a morte – “Toda sociedade humana, em última
instância, consiste em homens unidos perante a morte” (BERGER, 1985, p. 64). Os grupos ou
as sociedades convivem com o inevitável processo de falências físicas. Em contrapartida,
elaboram suas muitas versões para explicar ou disfarçar sua derrota ou incompetência diante
da ceifa fatal. Dessa forma, a morte compreende toda a humanidade e cultura dos homens e
adquire características que interessam o fazer historiográfico (ARIÈS, 2003, VOVELLE,
2004). A história, nesse aspecto, nas palavras de Michel Vovelle (2004, p. 59), deve “[...]
reencontrar os homens e compreender suas reações diante de uma passagem que não admite
fraudes”.
Na qualidade de empreendimento coletivo dos vivos, a religião bem representa
uma elaboração contra a morte ao mesmo tempo em que tenta guardar a paz dos vivos com os
mortos, dos vivos uns com os outros, dos mortos entre si, do presente com o passado.
Decerto, num repertório de infindáveis causas, todos morrem e transformam os caminhos dos
vivos em passeio dos mortos em desassossego.
Dessa matéria humana no seu sentido mais amplo, dado natural e objeto de
refinadas e diversas elaborações culturais, a morte e os mortos, os Penitentes do Genezaré
encorpam os seus rituais. Basta lembrar, talvez, que o seu calendário anual regular de
atividades religiosas coletivas compreende os eventos executados ao longo da Semana Santa e
do Dia de Finados. Com menor rigidez em relação a datas, foi anteriormente mencionado que
os Penitentes do Genezaré podem ser convidados pela população local para intercederem pela
54

alma dos mortos através de Terços rezados em locais específicos, algumas vezes atendendo às
exigências de uma promessa feita pelo devoto ao seu santo de devoção.
As Semanas Santas reservam para os cristãos muitas oportunidades e exigências
de comemoração dos sofrimentos vicários de Cristo em favor da humanidade. O conjunto de
sete dias em questão tem início com o denominado Domingo de Ramos que faz referência ao
relato bíblico conhecido como “a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém” e é findado no
domingo seguinte, o de Páscoa, no qual os cristãos acreditam ter o Senhor ressuscitado. A
Sexta-Feira daquela Semana marca as comemorações da agonia e morte de Jesus na cruz do
Calvário. Suas dores e as afrontas por ele sofridas são recordadas pelas palavras, gestos e
autoimposições de cristãos dirigidas aos seus corpos e mentes. Os rituais do período trazem a
mensagem de um Cristo sofredor, que morre, mas vence a morte em favor da humanidade.
Dessa forma, o sofrimento, o sacrifício é compreendido como um prenúncio de salvação na
medida em que cristãos elaboram suas comemorações que articulam os dois estágios de uma
mesma obra redentora expressa, por exemplo, nas palavras do apóstolo Paulo,

Antes de tudo, vos entregue o que também recebi: que Cristo morreu
pelos nossos pecados segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao
terceiro dia, segundo as escrituras. E apareceu a Cefas e, depois, aos doze. Depois,
foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maioria
sobrevive até agora; porém alguns já dormem. Depois foi visto por Tiago, mais
tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos foi visto também por mim
como por um nascido fora de tempo [...] E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa
pregação, e vã, a vossa fé.. (BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João
Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil. 2. ed. São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993).

Em sentido mais amplo,

No calendário litúrgico do ano cristão, o ciclo da Páscoa celebra o


mistério central da Morte e Ressurreição de Cristo, também conhecido como
Mistério Pascal ou Mistério da Redenção. Tendo o seu ponto alto nos dias “maiores”
da Semana Santa com o epicentro na Vigília Pascal, na noite de Sábado Santo para
Domingo de Páscoa, [sic] esta celebração é preparada pelos cristãos ao longo da
Quaresma, como caminhada espiritual e penitencial, a lembrar os quarenta anos da
grande “Páscoa” ou “passagem” do Povo Hebreu, através do deserto, da escravidão
no Egipto para a liberdade na Terra de Israel (SANTOS, 2011).

Os Terços rezados em favor dos mortos de acordo com convites elaborados por
terceiros trazem consigo alguns elementos de destaque na relação de irmandades de penitentes
com os mortos. Para que os Penitentes do Genezaré passassem a receber convites para
executar esse ritual anteriormente comum àqueles penitentes que chegaram ao município de
Assaré ao longo dos anos 1950, foi necessário, segundo os relatos de Deca Pinheiro. Luizinho
55

Camilo e Joaquim Camilo, que as antigas irmandades organizadas naquelas paragens


adquirissem certo reconhecimento entre parte dos seus contemporâneos locais. Em outras
palavras, os moradores da localidade, segundo a interpretação dos narradores, reconheceram a
eficácia da atuação dos Penitentes na intercessão pelos mortos. Os Penitentes do Genezaré,
portanto, passam a ser contados entre aqueles e aquelas que possuem um conjunto de saberes,
dizeres e fazeres capazes de pôr em contato inteligível vivos e mortos. Iniciava-se, com base
nessa interpretação, um novo momento na trajetória dos ritos penitenciais daquelas
irmandades no município de Assaré, de acordo com as narrativas orais dos mais antigos
membros do atual grupo liderado por Deca Pinheiro.
Se as observações imediatamente acima sugerem a existência de homens e
mulheres com uma capacidade peculiar de interceder pelos mortos nas suas necessidades
sendo os intercessores agraciados, assim, por aqueles para quem as preces são dirigidas. Em
outro sentido, existem mortos capazes de interceder pelos fiéis diante das suas mais variadas
aflições.
Nessa forma de interpretar os mortos ou as suas almas, dividindo-os por tipos ou
categorias, os Penitentes do Genezaré afirmam existirem almas carentes que habitam o
Purgatório e outras que divulgando suas necessidades podem eventualmente assombrar os
vivos através de suas aparições, presenças reconhecidas pela conservação nos mortos de
algumas características corpóreas que identificavam cada um deles quando em vida e
igualmente auxiliam na sua identificação após a morte. Elaboração bastante complexa, de
fato: “alma” que pode ser reconhecida pela não superação efetiva do que é corpo.
Ao fazer referência ao Purgatório, mais uma vez sou levado a refletir sobre uma
longa tradição cristã que através da Idade Média experimentou tentativas vitoriosas de
reanimação (OLIVEIRA, 1991). De fato, para Maria Gabriela Oliveira (1991, p. 349),

O Concílio de Trento, na sessão XXV, 1563, proclama a existência do


Purgatório e a eficácia do Purgatório e a eficácia do sufrágio pelos defuntos. Embora
essa concepção atravesse toda a história da Igreja desde os seus primórdios, as
contestações da Reforma, nomeadamente de Lutero, levaram os Padres Conciliares a
reafirmar a veracidade do Purgatório, instituindo o dogma da fé, por decreto
publicado em 1580.

Por essa perspectiva, Trento promove a ampliação de antigas crenças correntes


entre os cristãos católicos12 e que contribuíram para o estabelecimento de uma identidade
religiosa em oposição aos dogmas protestantes que adquiriam cada vez mais espaços para sua

12
Deve ser lembrado que a crença no Purgatório já havia sido aprovada no Concílio de Lião, em 1274
(CAMPOS, 2006, p. 48).
56

divulgação naqueles dias. A emergência do Purgatório promove uma reorganização da


geografia do além, pautada na relação dos vivos com os seus mortos. Nas palavras do papa
Inocêncio III, “os vivos ocupam-se dos mortos porque são eles próprios futuros mortos” (LE
GOFF, 1995, p. 251).
Em dias de morte domada, deve ser destacado o processo de individualização e
imediato julgamento do cristão em antecipação ao juízo final. A iconografia daqueles séculos
representa o quarto do moribundo como um espaço preenchido pelos familiares daquele que
preside a própria morte e por seres do além, santos, anjos e demônios, que disputam
previamente a alma de quem deixava o mundo dos vivos, características da morte domada
(ARIÈS, 2003). A cena indicava a aferição dos homens em seu leito de morte a fim de sugerir
qual o destino eterno das suas almas, “[...] um veredicto menos solene, um julgamento
individual logo a seguir à morte que as imagens cristãs medievais vêem espontaneamente sob
a forma de uma luta pela alma do defunto entre anjos bons e maus, entre anjos propriamente
ditos e demônios” (LE GOFF, 1995, p. 253).
O cristão do medievo, no meio daquela intensa batalha travada à cabeceira do seu
leito de morte, via sua alma gradualmente ser afastada da guarda dos anjos e ser entregue por
um tempo determinado (ainda que desconhecido) aos tormentos purificadores do local
destinado àquele processo imediatamente posterior à sua morte. Muitas informações, por
certo. Emergia um lugar de expurgação para quem não havia extrapolado em vida os limites
dos pecados veniais, para quem não cometesse pecados mortais, lugar de passagem
temporária e que reservava sofrimento aos seus frequentadores por suas características
semelhantes àquelas anterior e posteriormente atribuídas ao Inferno. Agruras efêmeras, ainda
que horrivelmente intensas. Lugar de difícil localização até mesmo para teólogos experientes
e temido até mesmo por santos. Contudo, lugar de possibilidades de salvação e que interessa
também pela sua capacidade de estabelecer responsabilidades mútuas entre vivos e mortos
(OLIVEIRA, 1991; NOBRE, ALEXANDRE, 2011; LE GOFF, 1995). Reivindicações
daquele século XII tão distante no tempo. Se o indivíduo era diretamente responsável por
presidir os rituais necessários a sua transição pacífica e eficiente do mundo dos vivos para o
mundo dos mortos, de acordo com os inúmeros requisitos da arte do bem morrer, em outro
sentido aos vivos era urgente cuidar para que os sofrimentos da alma dos seus mortos no
Purgatório fossem abreviados no tempo e na intensidade.
Dessa forma,

A existência do Purgatório está, pois, ligada à própria existência


/conduta do cristão no mundo e subentende uma ideia de continuidade entre o
57

espaço terreno e o além da purgação. Consideramos que esse espaço do além estaria
separado do plano terreno por uma linha bastante tênue, daí a possibilidade das
viagens espirituais ao Purgatório, bem como de visitas espectrais aos espaços
terrenos (NOBRE; ALEXANDRE, 2011, p. 107).

Na verdade, de acordo com Jacques Le Goff (1995), a permanência de uma alma


no Purgatório atendia a um complexo de procedimentos judiciais inspirados nos modelos
terrenos. Atuavam em favor das almas em agonia, a misericórdia divina através das ações de
anjos, as virtudes cristãs do morto demonstradas quando ele ainda habitava o mundo dos
vivos e, sem maiores questionamentos, a mediação dos parentes do morto por intermédio dos
rituais eclesiásticos.
Não foram poucos os folhetos, as orações, imagens e jaculatórias que, a partir de
meados do século XVII, forneceram aos vivos motivos e modelos de intercessão em favor dos
mortos que padeciam temporariamente no Purgatório conforme as elaborações conciliares do
século imediatamente anterior. O Barroco enriqueceu aquele complexo cultural elaborado
como contra-argumentação aos interesses da Reforma Protestante do século XVI. Não é
difícil acreditar nos fins didáticos da arte barroca. Fundando uma “Estética da Maravilha”,
aquele estilo possuía a capacidade de impactar quem mantinha contato com as suas produções
e, dessa forma, atuava como instrumento de persuasão religiosa. A teatralização e o apelo à
participação popular potencializavam tal impacto (REILY, 2011). Entretanto, sem dispensar a
participação da arte barroca, as próprias almas carentes não negavam a si o direito de
comunicar, sem intermediários, suas necessidades aos vivos.
De fato,

As aparições dos fantasmas representam entre os vivos e os mortos


um deslocamento inverso às viagens ao além. Na rica literatura das visões e das
viagens ao além — do livro VI da Eneida de Virgílio à Divina comédia de Dante,
passando pelo Purgatório de são Patrício —, acontece de o visionário encontrar
almas de mortos que ele próprio conheceu na terra ou cujo nome e renome chegaram
até ele (SCHMITT, 1999, p. 14).

As almas do Purgatório são portadoras de uma natureza ambígua. Sua santidade


encontra-se em processo de ascensão, purificação em meio à aflição. Na medida em que são
beneficiadas com ações dos vivos, as almas ganham mais proximidade com Deus e com essa
distância sempre diminuída são levadas a reconhecer dolorosamente a sua pequenez. Com
uma maior consciência, são cada vez mais atraídas pela presença de Deus. Impotentes em
relação a si, essas almas intercedem em favor dos vivos, pela sua salvação. Não contentes
com essa estratégia, voltam e trazem consigo avisos em relação aos rigores do juízo
58

individual. Chegam mesmo a propagar preciosas informações acerca da geografia do além.


Elas foram grandes divulgadoras do Purgatório entre os vivos. Desejam com toda a força que
os seus não passem pelas mesmas aflições que sofrem. Portanto, indicam posturas adequadas
aos vivos, condizentes com a garantia de salvação, dispensando a passagem por aquele lugar,
tão temido até mesmo por santos. Para quem a elas recorrem, clamando em face das suas
necessidades, elas são almas santas, pesadas pela balança em posse de São Miguel, veneradas
e cuidadas por irmandades que levam o seu nome (CAMPOS, 2006; OLIVEIRA, 1991, 1994;
LE GOFF, 1995).
Nesse processo de elaborações relacionadas à morte e aos mortos, interceder em
favor das almas dos falecidos e obter êxito nas suas súplicas reflete a crença dos Penitentes do
Genezaré e de muitos cristãos católicos na potencialidade de alguns homens e mulheres ou
mesmo de grupos entregues aos seus rituais intercessores. Em contrapartida a tal
potencialidade, as almas dos mortos também podem vir de encontro aos vivos, revelando suas
necessidades, trazendo orientações ou mesmo partilhando segredos que somente pertencem
àqueles e àquelas que já passaram pela morte.
Para que as aparições possam ser efetivadas, Deca Pinheiro é quem narra, são
exigidas ao menos duas características daqueles e daquelas que podem ser potencialmente
visitados e visitadas pelas almas dos mortos: Em primeiro lugar, há que não se temer a visão e
o que possa ser visto. Depois, é necessário ter “o corpo aberto” para que ocorra esse encontro.
São palavras de Deca Pinheiro:

As veiz a pessoa que morreu aparece à pessoa que tem o seu bom coração, que tem o
seu corpo aberto, já própi pra receber aquelas alma. Aí quer dizer... que é o seguinte:
a alma, ela só procura uma pessoa quando ela vê que ele tá perparado pra receber
ela, né? Que ela tem medo... ela não vai se apresentar a todo mundo. Ela tem mais
muito medo de nóis do que nóis dela. Qualquer palavrinha é sujeita a se perder. E o
freguês tando perparado elas vem sem sobrossa, ta conhecendo. Foi o causo desse
penitente que andava na minha turma também que ele chegou ver – viu a primeira,
viu a segunda, viu a terceira, chegou a ver até seis alma aí quando foi pra ele ver a
sete, que é pra completar as sete que é pra fechar o corpo, mas que ele não resistiu,
não aguentou a pantarma que vinha com ela. Porque ele falava que a pessoa que
morre ainda com umas companhia do lado deles. Agora uns vem bem perparada,
bem organizadazinha com um bom equipamento, mas já tem outros que vem com
equipamento de outro sistema porque o povo disse que não aguentava ver aquele
movimento. Aí ele foi e mandou ela se afastar porque não queria nem ver ela não. Aí
ela se afastou-se e ele não pode fechar o corpo dele. Aí foi o tempo que ele morreu
também. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de
idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em janeiro de 2012).

Outra característica que precisa estar alinhada as duas anteriormente mencionadas


aos indivíduos que potencialmente podem receber visitações das almas dos mortos é “ter um
59

bom coração”. Assim, bondade e coragem funcionam para Deca Pinheiro como chaves que
abrem essa possibilidade de comunicação entre sujeitos que habitam mundos distintos com
“equipamentos” próprios. Os “equipamentos” que acompanham as almas dos mortos durante
seus encontros com os vivos podem provocar pavor nesses últimos. Dando espaços e
dobrando-se diante dos seus medos em momentos específicos, os vivos permanecem com
seus “corpos abertos”, ou seja, permanecem passíveis a novos encontros. Entretanto, o
objetivo de quem “vê almas” não seria atingir o sétimo encontro e “fechar o corpo” para
livrar-se desses embates tensos? Deca Pinheiro acredita que sim e seu antigo irmão de
penitência não conseguiu atingir seu objetivo, com o “corpo aberto” juntou-se aos mortos.
De qualquer forma, aqueles eram dias mais afastados no tempo (e aqueles eram
penitentes) nos quais as almas pareciam frequentar mais assiduamente o mundo dos vivos que
procuravam ouvir de forma mais atenta aos seus mortos. Na medida em que as narrativas
orais dos Penitentes do Genezaré tematizam sobre dias mais próximos dos atuais a aparição
de almas vai se dissipando e na mesma proporção os convites elaborados por moradores do
Genezaré para que os seus Penitentes intercedam em favor dos seus mortos também vão se
tornando mais esporádicos. Portanto, os rituais dos Penitentes do Genezaré sofrem também
influência das relações que vivos mantêm com os seus mortos, relações com as quais os
Penitentes igualmente contribuem pelas suas práticas religiosas coletivas. Nesse ponto, devo
dar mais atenção aos rituais executados no Dia dedicado aos mortos.
Os convites faltantes em outras ocasiões superabundam a cada 02 de novembro,
no Dia de Finados, comemorado anualmente no cemitério do Genezaré. Nos anos de 2012 e
2013 os rituais executados naqueles dia e mês trouxeram significativas contribuições para as
reflexões propostas nesta pesquisa. Destaco que, na verdade, ao tratar como superabundantes
os convites para que os Penitentes do Genezaré intercedam em favor das almas dos mortos no
dia a estes dedicados, levo em consideração o tempo disponível e os procedimentos que
envolvem os rituais executados naquele dia e mês.
Em 02 de novembro de 2012 cheguei ao Genezaré no início da tarde. Como
previamente já havia acertado os detalhes daquela visita com Deca Pinheiro, fui sem demoras
até a sua residência. Mantivemos alguns diálogos brevemente interrompidos pela necessidade
que o anfitrião tinha de realizar algumas atividades do seu cotidiano de agricultor que lida
com suas terras e alguns poucos animais como gado bovino, caprinos, ovinos e muares.
Naquela tarde, como em tantas outras ocasiões as conversas seguiam sem a exigência de
cuidados com gravação e anotações mais detalhadas. Não que o interesse do pesquisador
fosse de todo abandonado, apenas acreditava (e ainda acredito) que muitas das informações
60

que o praticante da História Oral busca (e ainda outras inesperadas ainda que igualmente
relevantes) podem ser atingidas em diálogos pouco engessados pelo peso das perguntas
previamente elaboradas e pela força da intimidação que os equipamentos de gravação
sugerem. Caso haja a necessidade de retomar um tema mencionado na informalidade de
algum diálogo, um novo momento poderá ser providenciado com a presença de maiores
rigores técnicos.
Antes que findasse aquela tarde, Deca Pinheiro e eu começamos, a passos
apressados, vencer a distância de pouco mais ou pouco menos de meia hora de caminhada
entre a casa daquele decurião e a residência de Fortunato na Vila do Genezaré. O motivo era a
reunião prévia dos Penitentes naquela residência para que em seguida tivesse início os rituais
daquela Irmandade destinados ao Dia de Finados. Em um pequeno quarto localizado logo na
entrada da casa de Fortunato, os Penitentes cobriam as suas roupas cotidianas com as
vestimentas características dos ofícios religiosos da Irmandade. Comumente, os Penitentes do
Genezaré têm transportado em nossos dias as vestimentas que devem ser utilizadas em seus
rituais em sacolas plásticas dessas que acompanham as compras feitas no comércio em geral.
O vestir-se para os rituais ocorre apenas esporadicamente de forma individualizada antes que
o grupo esteja ao menos parcialmente reunido.
Minha atenção foi chamada inicialmente por perceber que vestimentas estavam
sendo entregues a dois dos filhos de “Seu” Joaquim Camilo como se os mesmos fossem
integrantes da Irmandade e não apenas familiares de alguns dos Penitentes do Genezaré.
Minhas reflexões posteriores apontaram para o surgimento de novos pontos de encontro entre
os Penitentes, para que a partir desses locais os seus rituais sejam iniciados. Se em outros
tempos a escuridão e lugares ermos eram considerados os mais adequados para que aquelas
reuniões ocorressem, desde que os Penitentes passaram a manter relações mais próximas com
a população. Igreja e poderes públicos locais os encontros passaram a acontecer com menor
rigidez quanto ao espaço e horários considerados adequados. Contudo, os Penitentes do
Genezaré concordam apenas parcialmente quando o tema é posto para suas análises e algumas
situações evidenciam o desacordo13.
O Dia de Finados de 2013 pode ser citado como exemplo do que foi anteriormente
mencionado. Em processo semelhante ao ocorrido no ano anterior, cheguei à casa de Deca
Pinheiro e após os diálogos costumeiros a nossa direção foi a casa de Fortunato. Pela hora um
pouco avançada ainda que não fosse noite, Deca Pinheiro e eu, segundo sua sugestão,

13
Tema melhor discutido no capítulo seguinte deste trabalho.
61

optamos por esperar os demais Penitentes na pequena praça que está localizada em frente à
Capela de São Francisco na Vila do Genezaré. A impaciência do decurião não demorou a ser
demonstrada. Seus liderados mais uma vez tardavam em chegar, a hora combinada para o
encontro já havia sido desrespeitada e a mesma sensação que Deca Pinheiro sentia em relação
ao tempo parecia sentir em relação a si. Atacado por aquilo que considerava um desrespeito,
Deca Pinheiro permanecia esperando os seus Penitentes em meio a pequenas olhadas para um
lado e outro e com alguns suspiros entre algumas frases. Quando pudemos ouvir as vozes dos
liderados de Deca Pinheiro os quais entoavam seus benditos na medida em que caminhavam
em nossa direção já era noite. O ritual havia começado sem o seu líder. O decurião aguardava
os seus penitentes em praça pública.
De lá, seguimos até o cemitério local em uma caminhada de poucos mais de dez
minutos. No percurso, alguns moradores das imediações juntaram-se ao nosso cortejo que já
era partilhado também por algumas crianças e adultos que estavam na praça assistindo ao
encontro entre o decurião e seus Penitentes. Difícil precisar se o principal estímulo para que
seguissem conosco até o nosso destino fosse os Penitentes e os seus cânticos. Mais provável é
que aguardassem o momento adequado para realizarem a visita ao túmulo dos seus mortos
naquele início de noite. A caminhada parecia mais longa porque marcada pelos cânticos
melancólicos entoados naqueles minutos. Nem ao menos as advertências de Deca Pinheiro, o
qual pouco cantava durante o percurso, levou os seus penitentes a empreenderem passos mais
rápidos. Então, o percurso parecia prolongar-se mais ainda devido a ansiedade não sem
motivo do decurião dos Penitentes do Genezaré. Havia muito a ser feito naquela noite
dedicada aos mortos.
E o préstito seguia. Havia, porém, uma sensível diferença no percurso entre o ano
de 2012 e o ano subsequente: o caminho fora pavimentado e a iluminação pública rompera
com a escuridão tantas vezes experimentadas pelos Penitentes, demais moradores da
localidade e antigos habitantes residentes em outras localidades que voltam ao Genezaré para
as “visitas de covas” dos seus parentes a cada ano naquele dia e mês. Apenas o cemitério
ainda permanece sem os benefícios da energia elétrica. Transformações estruturais desse tipo
favorecem a instauração de novas sensibilidades relacionadas aos rituais dos penitentes, como
foi argumentado também pelo antropólogo Roberto Lima (2006) na sua pesquisa que trata das
práticas religiosas coletivas dos penitentes de Juazeiro (BA). Para este pesquisador, alterações
estruturais desse tipo provocam tensões e distintas interpretações entre os penitentes
envolvidos em rituais cada vez mais públicos e visíveis, gostos e desgostos de quem percebe
que os seus rituais sofrem influências externas.
62

Ao chegar ao nosso destino, aqueles que haviam solicitado dos Penitentes do


Genezaré a intercessão destes através do Terço das Almas nos túmulos dos seus mortos
aparentavam a mesma impaciência do decurião Deca Pinheiro. As solicitações haviam partido
naquele ano de 2013 de pelos menos quatro famílias diferentes que foram acrescidas aos
Terços costumeira e anualmente rezados nos túmulos nos quais permanecem inumados os
familiares e os mais antigos penitentes da família Duarte que habitavam a localidade.
O cemitério do Genezaré, conforme já referido, está localizado a uma distância
média de dez minutos de caminhada tomando como referência a Capela de São Francisco,
padroeiro daquela localidade. Chegando de Assaré ao Genezaré ou fazendo o caminho inverso
é possível passar em frente aquele local, o único destinado oficialmente ao sepultamento dos
mortos em um raio de quase duas dezenas de quilômetros. De acordo com as narrativas de
Deca Pinheiro, o terreno para a construção do cemitério foi doado por um antigo morador e
político local. Anteriormente, havia ali apenas uma pequena cruz fincada ao chão indicando
um corpo inumado. Após a edificação do cemitério, aquele corpo foi transportado para uma
nova sepultura no interior do espaço público destinado ao sepultamento dos mortos no
Genezaré. Essa versão é compartilhada por outras narrativas dos Penitentes liderados por
Deca Pinheiro.
Os deslocamentos à noite naquele espaço não são fáceis de executar. O terreno
não é aplainado na sua totalidade, a distribuição irregular dos túmulos e a ausência de
iluminação elétrica não favorecem locomoções descuidadas após o pôr do sol. Na noite
destinada à “visita de cova” o maior fluxo de pessoas no local complica ainda mais esse
quadro.
Nos anos nos quais tive oportunidades de acompanhar os rituais dos Penitentes do
Genezaré realizados no cemitério local a cada 02 de novembro, pude perceber a polifonia que
envolvia aquelas primeiras horas da noite durante as “visitas de covas”. Entre rezas, cânticos e
alguns lamentos contidos que falam de saudade, algumas conversas e risos barulhentos e
algum choro de crianças que parecem não incomodar quem está ali de forma mais
compenetrada a interceder e buscar a intercessão das almas dos mortos.
63

Figura 2 - Decurião Deca Pinheiro em


oração pelos mortos no Cemitério da Vila
do Genezaré – Assaré - Ceará. (Foto:
Cícero da Silva Oliveira)

As sensações de quem participa daqueles momentos não param por aí. Há sempre
muitas velas a iluminar ainda que de forma irregular aquelas horas e aquele lugar. Dispostas
diretamente sobre o chão, coladas com o seu próprio material sobre cruzes de madeira ou em
grades marcadas geralmente com as iniciais dos nomes dos falecidos, suas datas de
nascimento e/ou morte que cercam e identificam as covas ou organizadas em jazigos que
buscam a semelhança com pequenas igrejas, as velas proporcionam ao ambiente um cheiro
característico unido ao perfume de algumas flores que ao longo daquele dia e horas murcham
de forma apressada depositadas em alguns túmulos. As chamas das velas parecem sugerir
imagens, imaginações poéticas de crianças que brincam com aquela luz e de adultos com
olhar perdido e atraído pelas chamas (BACHELARD, 1989)14.
Finalmente, a pele sente a poeira e grava as marcas das muitas muriçocas e alguns
outros insetos que habitam os novembros e outros meses quentes na região. Também

14
Para Gaston Bachelard (1989), não é apenas o espaço que atua facilitando elaborações de imagens poéticas, a
chama de uma vela permite processo análogo. Assim, “Entre todas as imagens, as imagens da chama – das mais
ingênuas às mais apuradas, das sensatas às mais loucas – contêm um símbolo de poesia. Todo sonhador
inflamado é um poeta em potencial. Toda fantasia diante da chama é uma fantasia admiradora. Todo sonhador
inflamado está em estado de primeira fantasia. Esta primeira admiração está enraizada em nosso passado
longínquo. Temos pela chama uma admiração natural, ouso mesmo dizer: uma admiração inata. A chama
determina a acentuação do prazer de ver, algo além do sempre visto. Ela nos força a olhar. A chama nos leva a
ver em primeira mão: temos mil lembranças, sonhamos tudo através da personalidade de uma memória muito
antiga e, no entanto, sonhamos como todo mundo, lembram-nos como todo mundo se lembra – então, seguindo
uma das leis mais constantes da fantasia diante da chama, o sonhador vive em um passado que não é mais
unicamente seu, no passado dos primeiros fogos do mundo” (BACHELARD, 1989, p. 11).
64

integrando aquele cenário, um ou outro ambulante comercializa principalmente velas, produto


bastante procurado naquele dia. Envolvido pela reunião de todos esses elementos e outros
tantos não captados pela minha atenção, os Penitentes do Genezaré entregues aos seus rituais.
As páginas que até aqui foram escritas e as que seguem tentam demonstrar que os
rituais dos Penitentes do Genezaré são caracterizados pela interpretação polifônica dos seus
praticantes. Regidos por alguns desacordos, esses rituais permanecem sofrendo re-
interpretações e re-elaborações que põem em evidência as negociações e vitórias alternadas
dos indivíduos sobre o grupo, do nomotético sobre o idiográfico, do passado sobre o presente.
Os rituais executados pelos Penitentes do Genezaré no Dia de Finados trazem essa mesma
marca. As discordâncias entre os Penitentes são revelados desde o momento e o local da
reunião do grupo e estendem-se até a forma como os rituais devem ser realizados em face da
demanda incomum para uma mesma data e poucas horas.
O Terço das Almas, por vezes conhecido como “do Repouso Eterno” ou “Terço
de Penitente”, por conter partes cantadas e repetidas em cada um dos seus mistérios15 torna-se
significativamente mais longo que os Terços que contêm apenas orações faladas.
A estrutura do Terço católico é composta de forma fixa por seis orações do Pai-
Nosso e cinquenta e três Ave-Marias e por outras orações ou Sinais da Cruz livres de maior
rigor, conforme distribuição indicada na sequência.
O seu início ocorre com o gestual do Sinal da Cruz16. Para realizar tal Sinal, o fiel
desenha com o polegar direito (sempre a mão direita e toda a carga simbólica que a envolve,
HERTZ, 198017) uma cruz sobre a fronte, a boca e o peito. Gestual que deverá ser realizado
sempre que possível com o fiel de pé e em postura ereta. Logo em seguida, reza-se um Pai-
Nosso e mais três Ave-Marias e uma pequena oração denominada Glória ao Pai. Inicia-se a

15
Conjunto de orações (um Pai-Nosso, uma Ave Maria, um Glória ao Pai e uma jaculatória) de cada Terço que,
segundo a tradição católica, expressam a vida, morte e ressurreição de Jesus e indicam a terça parte de um
Rosário. Por sua vez, o Rosário é composto de quatro grupos de outros cinco mistérios, a saber: Mistérios
Gozosos (citados às segundas e sábados), os Mistérios Dolorosos (mencionados às terças e sextas-feiras),
Mistérios Gloriosos (comemorados às quartas-feiras e domingos) e, finalmente, instituído pelo papa João Paulo
II, os Mistérios da Luz que devem ser relembrados com periodicidade semanal a cada quinta-feira.
16
O Sinal da Cruz é um costume que não está reduzido apenas aos momentos litúrgicos do catolicismo
institucionalizado. Segundo Riolando Azzi (1978, p. 13), “Persignar-se tornou-se um hábito familiar aos
brasileiros: ao passar diante de um oratório, de uma igreja, de um enterro, de uma tumba, as pessoas geralmente
fazem o sinal da cruz. Como o fazem também com freqüência os banhistas antes de entrar na água da piscina ou
do mar, os jogadores de futebol antes da partida e os passageiros antes da decolagem do avião”.
17
De acordo com Robert Hertz (1980), algumas crenças religiosas fundamentam os usos e atribuições de cada
uma das mãos. Portanto, existe um dualismo socialmente construído entre o direito e o esquerdo como
característica de uma Lei de Polaridade. À mão direita compete honras e virtudes, bênçãos e a vida. Enquanto
isso, a esquerda guarda a morte e os poderes ocultos, as fraudes por fim. Com bases nessas construções, grupos
promovem uma verdadeira mutilação social, paralisar a mão esquerda para que a direita prevaleça.
65

partir daí um conjunto repetido por cinco vezes composto por um Pai-Nosso, dez Ave-Marias
e a Jaculatória ou Oração de Nossa Senhora de Fátima através da qual o fiel intercede por sua
salvação do “fogo do Inferno” bem como pelas almas que permanecem recolhidas ao
Purgatório. O objetivo do crente que reza o Terço em relação às almas dos mortos é óbvio:
que a cada uma delas seja permitido deixar o Purgatório e migrar sem mais demoras para o
Céu.
A parte conclusiva do Terço é marcada por orações de agradecimento, Salve-
Rainhas, ladainhas, oferecimento e súplicas mais diversas. Percebe-se que nessa conclusão o
fiel goza de maior liberdade para expressar seus desejos e necessidades. Também o devoto
inclui ali as orações destinadas aos seus santos de preferência e pode mencionar igualmente
pedidos feitos por terceiros. Por essa fluidez, é difícil precisar com rigor o tempo máximo que
será exigido para que um Terço seja finalizado.
Agora, imagine-se substituir cada uma das cinquenta Ave-Marias ditas logo após
a introdução do Terço (as três primeiras são conservadas) pela estrofe cantada e repetida
“Repouso eterno, daí Senhor/Da luz divina o esplendor”. Em outras palavras, para cada Ave-
Maria a pessoa responsável para liderar o Terço canta os versos acima e a assistência repete
sem ressalvas as mesmas palavras, respeitando a estrutura melódica, rítmica e harmônica do
que fora exemplarmente cantado. Isso é o Terço das Almas. Difícil descrever a monotonia
daquele conjunto de orações e cânticos a passar impressões que o tempo impreciso para a sua
execução torna-se maior ainda do que o exigido. O conjunto de características ambientais do
cemitério do Genezaré naquelas noites de 02 de novembro reunido às tensões preliminares
experimentadas pelos Penitentes sugerem, pelo menos momentaneamente, o agravamento
daquele quadro melancólico.
Como agir diante daquela situação na qual tempo e espaço não favorecem o
atendimento plausível de todas as demandas daquela data? Essa é uma questão que também
não encontra resposta unânime entre os Penitentes do Genezaré. As sugestões multiplicam-se.
Diante de convites para que quatro ou cinco “Terços de Penitente” sejam rezados em uma
única noite, Deca Pinheiro e seus liderados contemplam o inviável, sem poder simplesmente
responder negativamente aos convites dirigidos ao grupo, alguns deles objetos de promessa
dos vivos em favor dos seus mortos.
Cada solução apontada pelos Penitentes do Genezaré traz um obstáculo à sua
efetivação. Deca Pinheiro sugere que seja rezado um único Terço para todas as almas aos pés
da maior cruz de madeira erigida quase que ao centro daquele cemitério (o “cruzeiro”, como
denominam). Mas, como fazê-lo se tantas solicitações são para que seja “tirado um Terço das
66

Almas” em covas específicas, conforme desejos ou promessas. Eis um impasse e há quem não
queira abrir mão da sua solicitação? Alguns dos Penitentes liderados por Deca Pinheiro
sugerem que o grupo divida-se em pelo menos dois subgrupos para que ninguém fique sem o
devido atendimento das suas solicitações. A questão é como isso pode ocorrer se geralmente
uma única mulher está disponível para dar início e “puxar o Terço” (cantar a estrofe a
primeira vez) para que os Penitentes apenas “respondam”. Selecionada e convidada
previamente por Deca Pinheiro ou outro Penitente, a mulher com essa responsabilidade tem
também outras obrigações para aquela noite e precisa dividir-se entre elas para atender o
maior número possível de demandas. Em 2013, diferentemente do ano anterior, foi uma das
irmãs de “Seu” Luizinho e “Seu” Joaquim Camilo quem abraçou essa função. A solução
apresentada que aponta para uma subdivisão do grupo esbarra também no número
considerado pequeno de membros da Irmandade e consequentemente insuficiente para que a
divisão do grupo em primeira e segunda voz para os cânticos seja mantida em cada subgrupo.
A cada ano os Penitentes do Genezaré revivem essa tensão até o momento sem
solução definitiva. Ainda que iniciando os rituais daquela data por volta das dezenove horas e
estendendo-os até ultrapassar o limite das vinte e duas horas sempre há quem fique sem ter as
suas solicitações atendidas. Entretanto, há túmulos que não deixam de ser visitados
anualmente, a cada dois de novembro, pelos rituais dos Penitentes do Genezaré. Entre esses,
deve ser contado o do velho decurião Camilo Duarte. Entretanto, outro merece ser destacado.
D. Regina é uma viúva que há algumas décadas deixou o seu município de
origem, o anteriormente mencionado Lavras da Mangabeira, para fixar residência juntamente
com seu esposo no Genezaré. Após a morte do seu cônjuge, a viúva enlutada comprometeu-se
a cada Dia de Finados ofertar aos Penitentes do Genezaré uma breve refeição composta de
bolo, bolachas, refrigerantes e sucos logo que fossem encerrados os rituais da Irmandade no
cemitério local. O túmulo do seu marido é de visita indispensável naquela data e a alma do
seu morto beneficiada com as intercessões dos Penitentes liderados por Deca Pinheiro. Nesses
atos, d. Regina, na medida em que trabalha no processo de intercessão pela alma do seu
defunto, opera na construção da memória do seu ente saudoso. Ele era um penitente e sua
identidade como tal permanece em construção mesmo após a sua morte, nesse processo no
qual vivos falam pelos mortos. Seria isso um processo de vivificação ou mesmo de ficção da
vitória humana sobre o seu implacável destino? De qualquer forma, vivos e mortos
permanecem em diálogo incessante fruto dessa relação entre seres e mundos com
“equipamentos” distintos para citar, mais uma vez, uma feliz expressão de Deca Pinheiro.
67

E, os vivos não cessam de colocar palavras na boca dos seus mortos, falam em
nome deles e por eles. Como bem afirma Jöel Candau (2011, p. 143), a relação dos vivos com
os seus mortos são caracterizadas por elaborações de prosopopeias memoriais. De acordo
com sua definição,

A prosopopéia memorial apresenta várias características de


Exemplum, idealização, personagens-modelos nos quais são mascarados os defeitos
e enaltecidas as qualidades, seleção de traços de caráter julgados dignos de imitação,
“lendas de vida” post mortem que podem fabricar deuses – não se fala hoje ainda em
dia da “ressurreição de Che? –, transcendendo as qualidades pessoais do defunto
“através de um modelo que combina arquétipos e estereótipos” etc.

Os Penitentes do Genezaré, segundo a fórmula de Candau (2011), têm construído


suas identidades individuais e coletivas a partir desses encontros repletos de estranhamentos e
acordos com o outro. Não existe uma obrigatoriedade que esse outro seja um vivo, antes vivos
e mortos têm suas identidades construídas de forma contínua no seio das relações
estabelecidas entre ambos.
A morte, portanto, não põe termo á construção dos indivíduos, eles permanecem
inacabados na sua qualidade de produto de dizeres e rituais dos vivos. Dessa forma, os rituais
e as narrativas orais dos Penitentes do Genezaré põem em vidência (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2007)18 essas elaborações humanas forjadas nas curvas e retas do tempo e do espaço
e nos passos descritos pelas trajetórias de vida de cada um, no jogo das identidades
(CANDAU, 2011) produzidas nos diálogos do si com o outro, quer sejam vivos, quer mortos.
São, portanto, rituais e narrativas orais que trazem consigo a perturbadora
presença da morte. Quaisquer tentativas de fugir desse encontro são sempre por demais
ineficazes. Os Penitentes do Genezaré refletem nos seus caminhos e repousos, ditos e
cânticos, feitos e posturas esses encontros de vivos e mortos, de vida e de morte, conforme
tenho tentado demonstrar. Seus rituais comemoram a morte do Filho de Deus, seu sacrifício
(padecer e glória), Paixão e ressurreição em favor da salvação dos homens. Os rituais do Dia
de Finados e os Terços atendendo a convites em favor da alma de algum falecido reafirmam
os diálogos e interferências mútuas, fronteiras móveis entre o mundo dos vivos e o mundo dos
mortos. Parte significativa dos espaços destinados a tais rituais são marcados por sinais de

18
De acordo com o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2007, p. 25) “A evidência é produto de uma
certa vidência, é construção de uma forma de ver, de uma visibilidade e de uma dizibilidade social e
historicamente localizada. É o próprio conceito, é o discurso lançado sobre a empiria que a transforma em
evidência. Nada é evidente antes de ser evidenciado, ressaltado por alguma forma de nomeação, conceituação ou
relato. Os documentos são formas de enunciação e, portanto, de construção de evidências ou de realidades. A
realidade não é uma pura materialidade que carregaria em si mesma um sentido a ser revelado ou descoberto, a
realidade além da empírica é simbólica, é produto da dotação de sentido trazida pelas várias formas de
representação. A realidade não é antes de um conceito, é um conceito”.
68

morte, penhores das cruzes, cenários de saudades e memórias reconstruídas, destinos


adequados à reinvenção das identidades dos mortos e dos vivos. Nesse processo, conteúdos
do catolicismo mais ortodoxo são confrontados por elaborações menos estáticas, surgindo um
amálgama de crenças e práticas que toma os dogmas católicos como referência, mas extrapola
os limites sugeridos pela hierarquia eclesiástica (CARVALHO, 2011). Mortos e vivos dão as
mãos, vida e morte compõem um par quando os Penitentes narram e ritualizam.
Os rituais dos Penitentes do Genezaré na sua relação com a morte e os mortos
falam dessa experiência reconhecidamente complexa de escolhas que, inscritas no corpo e
pelo corpo, promovem resultados que impactam os sentidos dos praticantes e da assistência,
rituais dotados de uma intensa carga performática, gestos e posturas que compreendem uma
experiência estética no seu sentido mais amplo.
Resta talvez apenas refletir sobre como a morte e os mortos ocupam espaços
consideráveis nas narrativas orais dos Penitentes do Genezaré. Parte significativa das suas
narrativas orais faz referências ao passado e aos seus sujeitos, acontecimentos e lugares
considerados pelos seus narradores irremediavelmente sepultados pelo tempo, são ações
humanas inscritas nas trajetórias de homens únicos, incapazes, portanto, de serem revividas.
Dessa forma, para os Penitentes do Genezaré muito das suas experiências jamais
poderão encontrar significativas semelhanças no presente, nem seus sonhos de penitentes
podem ser plenamente realizados nas circunstâncias que os dias atuais permitem, parece
mesmo que “hoje os penitentes fazem apenas uma representação” daquilo que eram ou
realizavam, segundo as palavras de “Seu” Joaquim. Narrando, os Penitentes do Genezaré
inevitavelmente encontram a morte de outros membros de irmandades que são tidos por
exemplos jamais atingidos pelos mais novos. O outro morre. Resta aos vivos o exemplo
daqueles que partiram de forma irremediável, permanece a possibilidade de inúmeras e
seguidas reinvenções dos mortos e de suas trajetórias, verdadeira trabalho da memória.
Quais as contribuições que os velhos e velhas, trabalhadores e trabalhadoras, de
Ecléa Bosi (1994) podem trazer para essa discussão?
Se as narrativas orais de D. Alice, Sr. Amadeu, Sr. Ariosto, Sr. Abel, Sr. Antônio,
D. Jovina, D. Brites e D. Risoleta possuem temas ou fatos comuns, com certeza a presença da
morte nas suas histórias de vida é inquestionável.
Temas globais, locais e familiares são rememorados e interpretados assumindo
perspectivas individuais e coletivas, subjetivas e objetivas. Relatos sensíveis que falam da II
Guerra Mundial, de revoluções e de embates políticos armados de proporções bélicas mais
reduzidas, não obstante, mais dramáticos para os narradores entrevistados por Bosi; De
69

Getúlio Vargas, que ocupa a prioridade entre os políticos rememorados; De canções, gostos,
visões e odores que no passado estimularam os sentidos dos velhos e velhas de hoje; De
percursos e espaços urbanos da São Paulo de décadas anteriores; Do mito do bandido que
rouba dos ricos para doar aos pobres sem nunca ser capturado pela polícia; Dos dramas
familiares enfim. Há sempre algo a mais nas histórias de vidas do que trajetórias individuais
(BOSI, 1994).
A morte preenche grandes espaços nas histórias de vida registradas por Ecléa Bosi
(1994). Narrar a própria trajetória também sugere um encontro inevitável com a morte.
Morrem os combatentes; Desaparecem os políticos e outros personagens cotidianos que
ocuparam as ruas e/ou as páginas midiáticas; Já não existem os amigos e muitos dos
familiares – entes queridos que deixam saudades insuperáveis; Morre-se por epidemias e,
poucas vezes, a morte aparece tranquilamente nas narrativas (BOSI, 1994).
Em algumas ocasiões a morte surge como metáfora do sofrimento. “Uma
lembrança triste daquele tempo que eu presenciava como muita amargura: eu via meu pai
bater em minha mãe. Aquilo me mortificava, para mim era morte”, diz o Sr. Antônio (BOSI,
1994, p. 224). Em outros pontos, é a cidade dos tempos da infância que “morre” para que
surja um espaço incompreensível aos velhos.
Não deve ser esquecido que rememorar é também um encontro com a
degeneração do próprio corpo. “A mão trêmula é incapaz/ de ensinar o aprendido”, Sr. Abel
escreve em um poema (BOSI, 1994, p. 217); “Gostaria de viajar, mas não tenho meios. Fico
aí em casa, não posso me locomover com rapidez por causa das coronárias”, informa Sr.
Antônio (BOSI, 1994, p. 259).
Por outro lado, narrar é reconhecer uma vida que mesmo com a proximidade da
morte pode ganhar aspectos, ainda que superficiais, de rejuvenescimento. “Veja, hoje a minha
voz está mais forte que ontem, já não me canso a todo instante. Parece que estou
rejuvenescendo enquanto recordo”, testemunha o Sr. Ariosto (BOSI, 1994, p. 158).
Padre Cícero e São Francisco, ambos morreram. Jesus morreu! Se a falência das
funções vitais de cada um deles não serve de ponto final para as construções mnemônicas que
sugerem a relação dos três com os rituais da Irmandade de Penitentes do Genezaré, é
recorrente a lembrança dos narradores que eles morreram, como todos morrem.
A hagiografia que Deca Pinheiro e seus liderados divulgam através dos benditos
entoados pelo grupo faz questão de afirma o tipo de morte que cada santo cantado sofreu.
“Padim Ciço” foi aquele “que deixou o Juazeiro”, São Francisco morreu humildemente como
tantos outros pobres e Jesus ainda tem suas últimas horas de vida narrada através do “Bendito
70

da Quinta-Feira Maior” através do qual conta-se em detalhes minuciosos a sua agonia diante
da certeza que sua morte estava cada vez mais próxima. Tudo conforme crença defendida e
divulgada pela Irmandade.
Mas, poderia haver santidade e salvação sem que a morte agisse sobre homens e
mulheres capazes de superar o esquecimento que ela pode produzir em poucas gerações?
Decerto, para os Penitentes do Genezaré a missão do cristão, à semelhança e memória do
Filho de Deus, prevê uma vida de sacrifícios que comemoram os padecimentos e mortes de
todos aquelas e aquelas que têm no Cristo das dores o seu sumo exemplo. Outros sacrifícios e
sofrimentos também podem ou devem ser comemorados a partir das sugestões
contemporâneas como, por exemplo, as dores experimentadas por negros escravizados
durante um longo tempo da história dos domínios portugueses na América e do Brasil. A
missa celebrada a cada 20 de novembro, nos últimos anos, no terreiro da casa-grande do
Infincado traz essa mensagem abraçada pelo decurião dos Penitentes do Genezaré, conforme
páginas adiante. E assim, aqueles narradores permanecem estabelecendo vínculos entre a
morte e os mortos e os seus rituais.
Entretanto, a morte e os mortos que ocupam espaço privilegiado nas narrativas
orais dos Penitentes do Genezaré não são apenas aqueles de maior repercussão para a
cristandade ou, de forma mais restrita, o catolicismo. Alguns dos mais antigos penitentes com
os quais os atuais Penitentes do Genezaré conviveram ou deles tiveram notícia têm suas
trajetórias religiosas postas em diálogo com os rituais da Irmandade conforme executados
atualmente. Se por um lado a morte dos velhos é considerada pelos narradores como uma
impossibilidade para que o autoflagelo seja executado de acordo com o que eles pensam ser o
mais adequado, por outro lado a ausência de Camilo e Quinco Duarte, entre tantos penitentes
já falecidos, contribue para que aqueles que permanecem em atividade na Irmandade
reconheçam e divulguem que também sofrem degenerescência. Abdicar de alguns antigos
rituais como, por exemplo, longas peregrinações ou autoflagelos mais frequentes e exaustivos
é um dos argumentos recorrentes para adequações das práticas religiosas dos Penitentes do
Genezaré. Assim, a morte já ceifou os mais velhos e os atuais membros da Irmandade
reafirmam através das suas narrativas orais a consciência que o mesmo caminho aguarda a
todos.
Dessa forma, resta em todos um propagado receio de que os Penitentes do
Genezaré deixem de existir enquanto Irmandade. São atormentados com a possibilidade de
não haver quem possa manter através dos seus corpos os rituais que têm marcado a trajetória
do grupo. Temem aquilo que consideram o mais provável, que a morte colha também os mais
71

velhos Penitentes da atualidade sem que haja quem possa substituí-los em um futuro tido por
certo e quem sabe breve. Se todos morrem, poderá também morrer a Irmandade. Nas palavras
de Deca Pinheiro, “Cê sabe! Hoje em dia se deixar o véio... o mais véio morrer e os fio não
acompanhar... quer dizer que se acaba, né?...”
E a morte, que tem alimentado ou rituais dos Penitentes do Genezaré, sem
maiores reservas, também ameaça a sua continuidade. A morte do grupo.
72

NO ESPAÇO:
OS RITUAIS DOS PENITENTES DO GENEZARÉ EM NARRATIVAS
SENSÍVEIS SOBRE POSSIBILIDADES E INTERDIÇÕES

“Um espaço é um reticulado de


ações, de deslocamentos, de trajetórias, é uma
rede de relações de toda ordem, é uma trama
de sentidos, é a projeção de imagens, sonhos,
desejos, projetos, utopias.”

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008a, p. 108)

Neste capítulo, os rituais dos Penitentes do Genezaré são pensados a partir das
narrativas orais que apontam para a relação entre os ofícios religiosos do grupo e os espaços a
eles destinados ou interditados. Levando em consideração que os espaços podem ser
compreendidos como constructos naturais, sociais e discursivos, optei por refletir acerca das
interpretações que os narradores ofertam à natureza e às espacialidades engendradas ao longo
da trajetória de mais de 60 anos contados a partir da chegada da família Duarte ao município
de Assaré.
Através das falas dos narradores, o Genezaré é representado inicialmente como
um espaço que ao longo dos anos 1950 e início dos anos 1960 impunha obstáculos à
organização de irmandades de penitentes e, por consequência, à execução dos seus rituais.
Tomando como referência os anos seguintes, as narrativas dos mais antigos membros da
Irmandade liderada por Deca Pinheiro falam do crescimento populacional da localidade e
reafirmam as dificuldades de estabelecer crenças e práticas penitenciais, naquele momento,
em um espaço cuja população, segundo as falas dos narradores, não compreendia bem o
sentido das irmandades e seus ofícios religiosos. Não obstante, ao longo das duas primeiras
décadas da segunda metade do século XX, três irmandades autoflagelantes foram organizadas
nas comunidades rurais que compõem o Genezaré e com o incipiente crescimento
populacional, os penitentes puderam ampliar os espaços destinados à execução dos seus
rituais, descrevendo trajetórias mais longas, principalmente nas peregrinações realizadas
durante as Semanas Santas e, fazendo parte desse processo, alguns poucos espaços privados
eram marcados pelo sangue dos autoflagelantes.
73

Ampliando as possibilidades de realização dos seus rituais, aqueles penitentes


gestaram novas espacialidades com suas possibilidades e interdições. Nesse sentido,
mudanças na infraestrutura da localidade como, por exemplo, a construção da capela
consagrada a São Francisco, não garantiram que os espaços sagrados oficiais do catolicismo
estariam com suas portas abertas às irmandades autoflagelantes com suas crenças e práticas.
Antes, precisou que transcorressem algumas décadas para que ocorressem sensíveis
aproximações entre os Penitentes do Genezaré e as lideranças católicas no município de
Assaré. De fato, para os narradores, a construção do cemitério da localidade foi talvez a
mudança infraestrutural de maior impacto para os penitentes e seus rituais, recebendo-os nos
Dias de Finados a cada ano.
Ainda pensando nas apropriações de espaços e construção de espacialidades pelas
narrativas, os Penitentes do Genezaré falam acerca da inserção do grupo em atividades
promovidas pelo poder público municipal de Assaré principalmente através da Secretaria da
Cultura do Município e, menos frequentemente, de instituições socioeducativas. A partir
desses diálogos, espaços antes impensáveis ou mesmo improváveis para os Penitentes e suas
performances religiosas passam a recebê-los. Trata-se de relações cuja historicidade as fontes
sugerem, encontros importantes para a produção de novos espaços, experiências sensíveis,
descrição de trajetórias, saberes eróticos e fundações poéticas19.
Em consequência desses deslocamentos, possibilidades e interdições, os rituais
vão sendo adequados às novas sugestões ou exigências que os espaços indicam. Os rituais dos
Penitentes do Genezaré pela sua relação com os espaços nos quais são executados sugerem a
sua dimensão estética, não podem ser classificados apenas como uma prática anacrônica que
invade o presente que a rejeita nem, igualmente, como uma inscrição no tempo presente
desvinculada das crenças, saberes e práticas tidas por tradicionais que as irmandades de
penitentes encerram.

19
De acordo com as elaborações de Michel de Certeau (2007) e Gaston Bachelard (2008), as experiências
humanas com os espaços que constroem tornam-se eróticas na medida em que o caminhante observa e ao mesmo
é observado como objeto e produtor de uma elaboração prazerosa com características assemelhadas ao
voyeurismo (CERTEAU, 2007, p. 169-172). Em outro aspecto, contemplando os espaços, inventando-os pelo
olhar, os observantes e caminhantes alimentam a sua imaginação poética. A partir do que contemplam, eles
constroem imagens novas ainda que o contemplado seja justamente aquilo do seu convívio cotidiano, como uma
gaveta, por exemplo (BACHELARD, 2008).
74

3.1 – QUANDO AS VOZES (RE)ENCONTRAM OS PASSOS

Quase cinco horas da manhã. Os últimos que ainda há pouco dormiam já estavam
acordados e de pé. O fogão à lenha e algumas lamparinas auxiliavam a luz do sol nascente na
iluminação do ambiente. Entre um choro de criança e uma vasilha que caia ao chão, um novo
dia surgia e com ele a rotina cansativa do trabalho na agricultura era retomada. O aroma do
café que ocupava o ambiente indicava que ele estava pronto e deveria ser tomado com
brevidade. Enquanto isso, as enxadas eram preparadas para o seu ofício, os sons das suas
batidas contra alguma pedra no terreiro era o sinal que os mais atrasados naquele início de
jornada precisavam tornar seus movimentos mais ágeis. O sol em um ponto mais alto do céu
sentenciava: nenhum minuto a mais poderia ser perdido. Chapéus à cabeça, cabaças com água
penduradas por cordas, assobios marcando o ritmo das passadas. Enfim, a marcha. Os pés dos
caminhantes fugindo das irregularidades do trajeto marcavam o chão. Um dia aparentemente
comum naquele início dos anos 1950 no Sítio Picada, município de Lavras da Mangabeira,
Estado do Ceará.
Entretanto, entre uma canção e outra, em meio aos preparativos para a peleja
diária, o rádio anunciara que existia uma quantidade razoável de terras agricultáveis expostas
à venda no município de Assaré, localizado mais ao sul cearense. Aquela notícia ocupou
consideravelmente os pensamentos do agricultor e pai de família Camilo Duarte.
O senhor Camilo decidiu, depois de não poucas ponderações, visitar Assaré e
avaliar as condições da propriedade anunciada. O preço informado pelo vendedor era
sobremaneira atraente para aquela quantidade de terras, não obstante as grandes dificuldades
que os compradores teriam para estabelecer uma produtividade satisfatória naquelas paragens.
O retorno à Lavras da Mangabeira serviu para que Camilo torna-se público o desejo de vender
suas antigas terras naquele município. Propostas não demoraram a aparecer e a venda foi
efetuada talvez antes do previsto por ele. O dinheiro conseguido com a venda da propriedade
familiar em Lavras da Mangabeira foi suficiente para a aquisição das terras anteriormente
visitadas em Assaré. Para aquela família era de grande importância a conquista de maiores
faixas de terra agricultáveis para o sustento de todos os seus membros20.

20
Relato construído a partir das entrevistas concedidas por Luiz de Holanda Duarte, agricultor aposentado, 76
anos de idade, conhecido como Luiz Camilo ou Luizinho Camilo, residente e domiciliado no Bairro Canto
Alegre, na cidade de Assaré (março de 2010, junho e julho de 2012) e por Joaquim de Holanda Duarte,
agricultor aposentado, 64 anos de idade, conhecido como Joaquim Camilo, residente e domiciliado no Sítio
Cacimba do Mel, município de Assaré (abril e maio de 2010).
75

Em outra localidade rural do município de Lavras da Mangabeira, mais


precisamente na comunidade rural denominada Arrojado, no ano de 1956, um senhor de nome
João Gonçalves solicitara do esposo da sua irmã, o senhor Miguel, que este colocasse à sua
disposição alguns dos filhos do casal para que viajassem em sua companhia para outro
município cearense com o propósito de estabelecerem plantações agrícolas em uma
propriedade que ele, João, recentemente havia adquirido.
De acordo com José Pinheiro de Morais, conhecido como Deca Pinheiro, “Lá em
casa nóis era oito irmão. Papai tirava quatro pra trabalhar pra fora e quatro para trabalhar pra
dentro de casa mais ele [pai]” (Grifo meu). Naquele mesmo ano Deca Pinheiro integrou a
comitiva que deixou o Arrojado. As terras adquiridas por João Gonçalves eram, da mesma
forma que aquelas compradas por Camilo Duarte, pertencentes ao município de Assaré já
referido e faziam parte de um mesmo e antigo latifúndio que no século XIX era integrante do
conjunto de bens imóveis do político cearense Gonçalo Batista Vieira (1819-1896), titulado
pelo imperador Pedro II, Barão de Aquiraz21. Tratava-se das terras do Infincado localizadas a
24 km a oeste da sede do município de Assaré.
A comitiva a qual Deca Pinheiro integrava era composta por quase duas dezenas
de rapazes. De acordo com seu relato, apenas ele e um dos seus irmãos optaram por
permanecer em terras assareenses, “Os outro foro tudo simbora porque o divertimento aqui
era pouco”.
As trajetórias dos Duarte e de Deca Pinheiro, portanto, assemelham-se em alguns
pontos que desde já podem ser delineados. Eram agricultores do município de Lavras da
Mangabeira que nos anos 1950 migraram para Assaré com o propósito de garantir a
subsistência pessoal e de suas respectivas famílias. Contudo, isso ainda diz pouco. Interessa
agora, sobretudo, o fato de Camilo Duarte e seu irmão Quinco Duarte, que também decidiu
adquirir terras no Infincado, bem como Deca Pinheiro serem membros de irmandades de
penitentes desde o tempo em que residiam em Lavras da Mangabeira e enfrentarem as
dificuldades para a manutenção daquelas crenças e práticas religiosas em uma realidade
bastante distinta daquela costumeira no seu município de origem.
As narrativas de Deca Pinheiro e Luiz Camilo, ambos hoje com 76 anos de idade,
revelam alguns aspectos dos cenários e do cotidiano daqueles primeiros tempos vivenciados
no Infincado.

21
De acordo com o Barão de Studart (2012, p. 345), o Barão de Aquiraz era um “Chefe político de grande
reconhecimento e merecido prestígio (sic) foi o director do partido chamado na Província de miúdo, e quando se
consumou a queda do throno recolheu-se à vida privada, vivendo para seus negócios e para a família, que com
razão o venerava”.
76

De fato, a paisagem não era das mais aprazíveis aos olhos. As estatísticas dos que
permaneciam na localidade depois de visitá-la não revelavam percentuais elevados, conforme
mencionado anteriormente. Braúnas, juazeiros, oiticicas cujas idades os grossos troncos
denunciavam ganhavam destaque em face da vegetação densa. A presença constante “da
cobra, da onça, do guaxinim” percebida pelos sons característicos que cada animal produz
indicava que o medo da morte era companheiro e vagava diuturnamente nos mesmos trajetos
de homens, mulheres e crianças. As casas eram raras e distantes umas das outras, apenas três
ou quatro para trinta ou quarenta habitantes em uma vasta extensão de terras. Fazia-se
necessário a construção de barracões para os trabalhadores que chegavam com a missão de
desbravar as matas insólitas daquelas paragens. No geral, aquelas rústicas habitações eram
feitas a partir do cruzamento de varas, dispostas de maneira quase perpendicular, amarradas
umas às outras com cipós, formando espaços quadriláteros que deveriam ser preenchidos com
folhas de oiticica as quais serviam também para a cobertura dos barracões. Moradia de tijolos
e telhas somente para as mulheres responsáveis pelo preparo do alimento diário. Dormia-se
em redes.
Os labores diários exigiam que os trabalhadores estivessem despertos antes do
raiar do sol. O difícil trabalho de derrubadas das matas era feito essencialmente com o uso de
machados cujo som dos ferimentos contra os troncos podia ser ouvido a longas distâncias.
Empregava-se mais tempo partindo as velhas árvores em toras menores e providenciando as
remoções do que nas suas derrubadas. E assim, passavam-se os dias e as paisagens ganhavam
novas cores com a remoção das camadas vegetais de mais longa duração que protegiam o solo
do Infincado.
Ao final da tarde, aqueles trabalhadores deveriam ainda enfrentar veredas
compridas e sinuosas que ligavam a população local às fontes de água boa para o consumo
cotidiano. Os últimos poços de água que restavam do rio intermitente de toda
circunvizinhança serviam ainda para o banho que abrandava momentaneamente o calor
intenso dos corpos exaustos. Não é difícil aceitar que o percurso de volta ao acampamento
devolvia àqueles homens parte da sujeira e calor ainda havia pouco amenizados. Armazenada
a água para as necessidades do dia seguinte, chegava a hora da refeição à base de produtos
derivados de milho, alguma carne de animais caçados nas proximidades e rapadura vinda das
feiras semanais na sede do município.
As noites, é preciso que se diga, não eram reservadas apenas ao descanso. O barro
de terrenos nas proximidades era adequado à fabricação de telhas e tijolos essenciais ao
surgimento de novas habitações mais confortáveis e seguras. Não demorou muito a surgir
77

pequenas olarias organizadas pelos mais experientes na modelagem e queima daquela


matéria-prima. A sociabilidade no entorno das olarias resultava em alguma diversão.
Geralmente rodas de bate-papo dividiam a atenção com as músicas executadas em uma velha
harmônica de oito baixos, conhecida na região como “pé-de-bode”, e em uma ou duas violas
que diziam canções com sua capacidade de alimentar a elaboração de recordações de outros
tempos, sujeitos e lugares. Juntava-se assim às difíceis exigências da empresa a saudade como
elemento capaz de abreviar a estada de alguns jovens que decidiram, em algum momento,
pela aventura em terras do Infincado.
Algo, porém, parecia destoar daquele ambiente noturno com suas sonoridades
características: era a reunião de alguns penitentes ainda não organizados em irmandades que
entoavam à distância seus benditos guardados pelas sombras de alguma árvore que acentuava
a escuridão da noite. Naqueles instantes, os penitentes imaginavam que as dificuldades do
trabalho de transformar as matas da localidade em terras próprias ao plantio de gêneros
alimentícios não eram as únicas que enfrentariam, perguntavam-se como fariam para
organizar ao menos uma irmandade e de que forma seus rituais seriam executados naquela
região praticamente desabitada.
Se não havia casas nas quais pudessem ser “tiradas” as esmolas, era mínimo o
número de pessoas para que fosse solicitado dos penitentes Terços e pagamento de promessas.
Outros espaços frequentes aos rituais dos penitentes como, por exemplo, igrejas e cemitérios
também não existiam em um raio de algumas dezenas de quilômetros. Tudo isso era pensado
por aqueles homens que tinham seus rituais comprometidos por questões demográficas ou
estruturais do Infincado22.
As narrativas dos mais antigos Penitentes do Genezaré ainda em atividade
apontam para representações espaciais construídas a partir das relações entre rituais e espaços
para a sua execução. De acordo com suas falas, os espaços podem ser compreendidos como
um “[...] feito de natureza, de sociedade e de discurso [...]”, como sugere o professor Durval
Muniz (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008a, p. 108). O processo de representação de espaços
pela sociedade e pelos discursos dá-se através de uma efetiva apropriação que para Roger
Chartier (2002a, p. 26) está vinculado a distintas formas de interpretação as quais os dados

22
Relato construído a partir das entrevistas concedidas por Luiz de Holanda Duarte, agricultor aposentado, 76
anos de idade, conhecido como Luiz Camilo ou Luizinho Camilo, residente e domiciliado no Bairro Canto
Alegre, na cidade de Assaré (março de 2010, junho e julho de 2012), por Joaquim de Holanda Duarte, agricultor
aposentado, 64 anos de idade, conhecido como Joaquim Camilo, residente e domiciliado no Sítio Cacimba do
Mel, município de Assaré (abril e maio de 2010) e por José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos
de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré.
Entrevistas concedidas em dezembro de 2011, janeiro e outubro de 2012.
78

estão sujeitos. Assim, a exuberância das matas do Infincado e sua baixa densidade
demográfica são interpretadas pelos Penitentes como obstáculos à mobilidade exigida pelos
seus rituais.
De fato, pensando nas falas dos Penitentes pode ser observado que eles referem-se
ao Infincado inicialmente como um dado da natureza no qual o esforço humano através do
trabalho dá novas características. Finalmente, suas narrativas interpretam o espaço onde
atuam, transformando paisagens naturais ou sociais, em paisagens construídas pelos sentidos.
Para o professor Durval Muniz Albuquerque Júnior (2008a, p. 113), “A apreensão da
natureza, do mundo se faz através daquilo que parece, à primeira vista, ser também um dado
da natureza em nós, nossos sentidos”. Sob essa perspectiva, os Penitentes expressam nas suas
narrativas como o gosto dos alimentos sugere os tempos escassos do Infincado naqueles anos,
como o odor de alguns animais alertava-os dos perigos que rondavam seus caminhos – é
comum ouvir-lhes falar do “cheiro da onça” –, como os sons também podiam anunciar os
perigos ou contribuir para a localização de um companheiro que trabalhava fora do alcance do
campo visual dos demais, como o toque específico de alguns vegetais nos percursos tornavam
o caminho algo familiar, como a visão indicava os vazios demográficos na região que
dificultavam a execução dos seus rituais. Nesse sentido, para Yi-Fu Tuan (1983) os sentidos
proporcionam um mundo espacialmente organizado.
Para Deca Pinheiro, Luizinho Camilo e Joaquim Camilo os rituais dos penitentes
exigem espaços para seus movimentos. Por vezes, é sugerido que integrar uma irmandade é
“andar” com um determinado decurião. Deca Pinheiro relata da seguinte maneira seu ingresso
na primeira irmandade de penitentes da qual fez parte:

Quando eu entrei para a irmandade eu tava com doze anos de idade. Mas é assim,
porque meu pai era penitente. Aí meu pai, ele já adoentado não podia mais assumir o
cargo dele porque não podia mais viajar. Aí ele tinha vontade de... prá não se acabar
a irmandade, sabe? ‘Cê sabe! Hoje em dia se deixar o véio... o mais véio morrer e os
fio não acompanhar... quer dizer que se acaba, né? Aí eu sempre tinha tido aquela
vontade de andar na turma dele, do meu tio, mas eu com medo de meu pai não achar
bom porque de primeiro os pais não queria, nem quem soubesse quem era da famía
quem era um penitente. Aí eu comecei a assistir Terço, porque sabe a pessoa quando
tem vontade numa coisa, ele todo tempo acompanha aquele que tem vontade, né? Aí
Mané Carlo começou a tirar Terço e eu comecei a andar mais ele e fui me
agradando... Aí quando eu tava na base de onze anos aí Mané Carlo foi e disse: “ –
Meu fio, tu tem vontade de ser penitente? Porque tu não deixa o meu pé, todo tempo
onde eu tô tu tá mais eu”. “ – Mané Carlo, eu tenho muita vontade mas tenho medo
de papai brigar”. “ – Não. Briga não meu fio”. Eu entrei mais ele. Passei um ano.
Com uns treze ano [idade do entrevistado] foi que meu pai veio saber que eu era
penitente. Andava assim mais eles, sabe. Eu recebi o meu equipamento com
quatorze ano. Quando deu quatorze ano aí Tio Manuel Carlo disse: “ – Agora cê vai
receber sua opa, vai receber seu cacho e vai cumprir sua missão”. Aí assim eu fiquei;
mas sem pai saber. Andei, andei, andei, aí quando foi um tempo, assim mais um
outro ano a frente, aí nós fomos tirar umas esmola, um jejum, na Semana Santa – aí
79

o cabra quando vai tirar as esmolas o cabra [penitente] sai à boca do noite e chega
quatro hora da madrugada [risos] – aí eu sei que pai sentiu falta, sabe, deu, e
começou sentindo falta, toda noite sentindo falta, nas três ele disse assim: “ – José
onde é que tu tá que tu só chega à boca da noite?” “ – Não pai nós tava lá pelo
Arrojado, pelas festinhas, nos toquezim, nóis toca violão e só posso chegar essa
hora”. Aí ele disse: “ – Não.” Aí foi melhor eu dizer: “ – Não. Pai, eu tô indo mais
Tio Manel Carlo, lá na irmandade de Tio Manel Carlo” . Aí ele disse: “ – Tá meu
fio?” “ – Tô”. Ele disse: “ – Tudo bem. Porque eu não aguento mais. Eu já não falei
pra vocêis porque vocêis não tem idade. É muito novo, né?” Eu disse: “ – Pois é.
Mas já tô com quatorze ano. Ele já me entregou todo o equipamento, agora eu...
[riso] eu vou cumprir minha missão agora” (Relato de José Pinheiro de Morais,
agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011).

Deca Pinheiro conviveu desde sua infância com os penitentes da circunvizinhança


do sítio Arrojado, município de Lavras da Mangabeira, onde nasceu. Através das suas falas
pode ser conhecido que alguns dos seus familiares com quem mantinha contatos mais
próximos eram integrantes ou mesmo decuriões de irmandades de penitentes daquela
localidade. Ainda criança sentia o desejo de ingressar no grupo liderado por seu tio de nome
Manoel Carlos, do qual seu pai também era membro. Na sua fala, ele expressa tal desejo
fazendo uso da expressão “andar na turma dele [do seu tio]” (Grifos meus). Antes mesmo de
ter sua entrada na irmandade aprovada, Deca Pinheiro “andava mais eles”. Finalmente, foi
pelas suas errâncias costumeiras que o seu pai percebeu as ausências do filho em casa no
período noturno, levando o adolescente José a assumir sua condição de penitente.
Dessa forma, pode ser identificada a importância que as peregrinações assumem
nos rituais de algumas irmandades de penitentes. E, peregrinações carecem de espaços
adequados à sua realização. Essa dimensão errante dos penitentes é abordada também por
Câmara Cascudo (2001, p. 510) quando afirma que o penitente “é uma pessoa que cumpre
promessa feita ao santo de sua devoção, geralmente com sacrifício pessoal, pela distância e
dificuldade de locomoção. Caminha pelas estradas carregando objetos pesados [...]” (Grifos
meus). Além do aspecto do sacrifício destacado, outros fatores podem ser relacionados às
andanças na sua qualidade de elemento constituinte dos rituais de irmandades de penitentes.
Na sequência, destaco alguns deles de acordo com as narrativas de Deca Pinheiro e Luizinho
Camilo. Antes, devo observar a esclarecedora análise de Roberta Bivar Carneiro Campos
(2008).
Para a antropóloga imediatamente acima citada, “A simples definição de
deslocamento/peregrinação traz consigo todo um debate da teoria sócio-antropológica
contemporânea” (CAMPOS, 2008, p. 147). A autora no seu estudo em questão destaca a
existência de três formas de compreensão das noções de deslocamento ou peregrinação. No
80

primeiro caso, os deslocamentos são associados aos processos de “desterritorialização, fluidez


e hibridação”. Representado uma segunda perspectiva, encontramos Marshall Sahlins
sugerindo as noções de fixação e territorialização através de mecanismo de reciprocidade com
raízes locais. Finalmente, alguns autores denunciam a impossibilidade de tradição dissociada
de espaço. A partir das distintas possibilidades elencadas, Roberta Bivar (2008, p. 148)
entende ‘[...] que os processos envolvidos no deslocamento podem ser sempre estudados em
sua dupla dimensão, ou seja, incorporando mais que excluindo suas oposições (localismo e
deslocamento, junção e disjunção, territorialização e desterritorialização”.
Por essa perspectiva, é pela peregrinação (deslocamento) que os Penitentes do
Genezaré empreendem tentativas de fixar (territorialização das) suas crenças e práticas na
localidade onde residem, fenômeno semelhante àqueles patrocinados pelos primeiros
penitentes que contribuíram para o estabelecimento de um ethos pautado na piedade e na
misericórdia na cidade de Juazeiro do Norte (CE.), ainda de acordo com a pesquisadora.
Assim, o penitente ao realizar suas peregrinações revela os diálogos que os seus
rituais mantêm com a população dos lugares nos quais suas ações rituais são executadas. Uma
das partes destacadas pelos entrevistados acerca dos rituais que executam é justamente o “tirar
esmolas” nas vizinhanças de onde residem.
Durante os dois ou três dias que antecediam a Sexta-Feira da Paixão, a cada ano,
os penitentes ao anoitecer deviam reunir-se em um lugar previamente determinado pelo
decurião e sair em peregrinação pelas redondezas da comunidade em que moravam, cantando
os seus benditos pelas estradas e pedindo esmolas em cada casa que encontrassem pelo
caminho.
Ao longo de todo o ritual os membros da irmandade deveriam estar trajados com
as vestes que ainda hoje caracterizam alguns grupos de penitentes, a saber: calça geralmente
de cor branca; Uma camisa na maioria dos casos também branca; A opa: uma espécie de
colete com cruzes brancas costuradas à frente e atrás daquela parte da indumentária disposta
sobre a camisa, sendo que, de acordo com a irmandade, as opas podem variar de cores com
maiores ocorrências da preta e azul; Prendendo a opa à altura da cintura um cordão branco,
denominado cordão de São Francisco23; O barrete, que é o capuz com o qual os penitentes
devem cobrir o rosto durante os rituais, com exceção do decurião cujas faces estão sempre à

23
Esse cordão de cor branca está associado à memória e devoção a São Francisco de Assis. Assim, manifestou a
sua interpretação acerca do referido cordão, com seus sete nós, um dos “Ave de Jesus” entrevistado pela
socióloga Anna Christina Farias de Carvalho (2011, p. 93-94): “Cada nó representa um dos sete sacramentos da
divina eucaristia”. Dessa forma, para a autora, “Em suas representações de fé e da história religiosa, [...], os
penitentes sistematizam crenças que se afirmam enquanto aspectos identitários do grupo, exteriorizados através
de um código simbólico inteligível apenas naquele campo religioso”.
81

vista; Finalmente, à mão, o “cacho” da disciplina. O decurião além de portar a sua disciplina
levava sempre consigo uma cruz de madeira capaz de ser erguida e transportada apenas com
uma das mãos. No caso dos Penitentes do Genezaré suas opas são de cor azul e as cruzes
nelas costuradas são da cor branca. De acordo com Deca Pinheiro, a escolha das cores da
atual vestimenta da Irmandade foi procedida pela Secretaria Municipal da Cultura que sugeriu
vínculos entre a Irmandade e a padroeira de Assaré, Nossa Senhora das Dores, associada ao
azul e ao branco. Todos os elementos acima referidos podem ser considerados como
instrumentos para o enquadramento psicológico no seu duplo potencial de evocar a
ficcionalização e não permitir que a ficção seja assim percebida por seus praticantes
(VALERI, 1994).
Ao aproximarem-se das residências, os penitentes paravam e o decurião
continuava a caminhar até uma distância que pudesse ser identificado visualmente pelo dono
das casas quando as suas portas fossem abertas. As esmolas recolhidas eram geralmente
compostas por gêneros alimentícios produzidos na localidade: milho, arroz, feijão, jerimum,
melancias. Os alimentos arrecadados serviriam para o “jejum” da Sexta-Feira da Paixão, ou
seja, naquele dia de grande importância no calendário litúrgico cristão, os penitentes faziam
suas refeições a partir das doações das famílias visitadas. Era possível, também, que as
esmolas recebidas fossem repassadas para alguns que, com suas despensas vazias, nada
podiam ofertar aos penitentes, conforme relato do Sr. Luizinho Camilo.
É o mesmo senhor Luizinho Camilo quem narra como a irmandade de penitentes
liderada por seu pai Camilo Duarte atuava no momento de pedir esmolas:

Quando a gente chegava de noite nas casas para tirar as esmolas, o decurião se
aproximava e falava com o proprietário. A gente ficava com o rosto coberto, só o
decurião não cobria, e até quando chamavam a gente prá tirar um Terço se algum de
nóis quisesse água avisava ao decurião que pedia ao dono da casa. Às veiz ofereciam
janta quando a irmandade ia tirar um Terço: saía todo mundo da sala prá que a gente
pudesse tirar o barrete e jantar, mas o dono da casa às veiz ficava. (Relato de Luiz de
Holanda Duarte, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Luiz
Camilo ou Luizinho Camilo, residente e domiciliado no Bairro Canto Alegre, na
cidade de Assaré Entrevista concedida em março de 2010).

A preocupação com a preservação das identidades que alguns penitentes


conservavam até bem pouco tempo foi igualmente registrada por Francisco Freire Alemão.
Em 03 de dezembro de 1859 membros da Comissão Científica de Exploração das Províncias
do Norte, cujos percursos foram parcialmente registrados nos Diários de Viagem do seu
presidente, mantiveram algum diálogo com um penitente da Vila de Lavras, Província do
Ceará, o qual respondeu a algumas questões que lhe foram apresentadas. Entretanto, quando
82

os cientistas desejaram informações precisas acerca da identidade daquele flagelante, ele


respondeu tão somente: “Sou um pobre penitente” (ALEMÃO, 2006, p. 218).
Ainda sobre a preocupação com a preservação das identidades que alguns
penitentes faziam questão de conservar, em pesquisa recente já referida cujo tema é
irmandades de penitentes dos municípios baianos de Juazeiro e Xique-Xique, Roberto Lima
(2006, p. 108) considera que

Havia algo muito estranho: é claro que em um universo tão reduzido


de pessoas, todos se reconhecem, mesmo com rostos tampados, pelo modo de
mover-se e, se não pode cair em uma ilusão que o reconhecimento implica
conhecimento da intimidade e/ou compreensão mútua, o consocialismo dessas
pessoas não parecia indicar uma postura tão próxima à esquizofrenia nas relações
entre as partes.

A noção de consócio ou consocialismo utilizada por Roberto Lima (2006) vem


das análises de Clifford Geertz (1989). Para Geertz, consócios são pessoas que mantêm
encontros umas com as outras em um lugar não necessariamente determinado ao longo de
suas trajetórias de vida. Portanto, compartilhando tempo e espaço os indivíduos envolvem-se
na construção das biografias uns dos outros ainda que de forma superficial ou mínima. Dessa
forma, é bastante provável que os penitentes durante os seus rituais fossem reconhecidos
pelos seus consócios que mantinham o silêncio acerca das identidades reconhecidas sob os
barretes.
A relação entre os rituais dos penitentes e as comunidades nas quais as
irmandades atuavam é possível ser percebida igualmente pela mudança na entonação a sugerir
saudades bem como pela expressão de satisfação no rosto por um tempo no qual os penitentes
tinham suas intervenções solicitadas pela comunidade, Deca Pinheiro e Luizinho Camilo
falam das muitas promessas feitas por moradores dos sítios onde também residiam ainda no
município de Lavras da Mangabeira as quais os penitentes eram convidados a pagar. Os
acordos entre prometentes e santos de devoção geralmente eram cumpridos mediante Terços
rezados por aquelas irmandades entregues aos seus rituais.
A crença que os santos oficiais do catolicismo ou aqueles santificados pela
devoção popular24 podem interferir no cotidiano da humanidade alimenta a certeza de que os
mais variados problemas sendo apresentados em forma de promessa aos santos de devoção

24
Refletindo sobre a categoria “santo popular”, Anna Christina Farias de Carvalho (2011, p. 179) defende que a
santificação popular depende substancialmente de “[...] algumas condições e virtudes que determinam a elevação
de um agente à esta condição”. Tais condições e virtudes são escolhidas pelos devotos a partir de construções
sócio-históricas relacionadas aos indivíduos e espaços das suas atuações.
83

serão solucionados. Nesse sentido, a fala de Deca Pinheiro é esclarecedora e aponta para
outras questões até aqui não exploradas nesta narrativa:

Eu mermo já paguei promessa de falecido. Três promessa. A pessoa morre... Às


veiz é o seguinte: a pessoa faiz uma promessa. Bom, se você se acha numa crise
muito ruim. Ai você... aflição... e você tem um santo de sua devoção – todos nóis
têm um santo de devoção, né? Aí você se pega com aquele santo e se ele for servido
de ficar bom, quando ele ficar bom manda rezar, chama a irmandade prá tirar um
Terço daquele santo. Aí dêxa. A primeira foi em cinquenta e dois... ela... cinquenta e
oito [o entrevistado corrige o ano da promessa] – eu já morava aqui. Aí na Cacimba
do Mel [também pertencente à antiga propriedade denominada Infincado] tinha... um
rapaz tinha chegado de viagem, ele morava pro lado do Recife, o pai dele tinha um
terrenozim. Aí ele chegou, casou aí no mermo ano que era cinquenta e oito – ele
botava uma roça aqui embaxo [apontando com a mão esquerda para o lado norte da
sua residência] – ele tinha um terrenim aí em baxo – compraro um terrenozim aí em
baxo, morava ali em cima [apontando com a mão esquerda para o lado sul da sua
residência] e o terreno era aqui em baxo [apontando com a mão esquerda para o lado
norte da sua residência]. Ai ele botou uma roça, aí quando o inverno chegou eles
plantaro a roça. Mas em cinquenta e oito foi um inverno muito escasso. Aí ele vendo
a hora perder a roça, a muié – ele não, mas a muié tinha muito amor à roça. Aí o
verãozão bateu, bateu e os legume tudo mucho, aí ela foi lá e pegou-se com um
santo prá se fosse valida, se segurasse a roça, ela mandar rezar um Terço no camin
da roça – Terço de penitente. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011).

Na primeira parte dessa fala de Deca Pinheiro, ele apresenta o problema, ou seja, a
probabilidade de todo o trabalho do agricultor ter sido em vão e seus investimentos
financeiros no trato e plantio da roça não obterem retorno. O fato de ter acabado de chegar de
uma grande cidade naquele ano e haver adquirido rapidamente um terreno, sugere que ele
poderia já não dispor de tantos recursos financeiros para um ano inteiro de espera pela nova
quadra chuvosa e, ainda, que ele não possuía um estoque de alimentos suficiente para o
mesmo período.
A solução vislumbrada pela esposa do agricultor naquele tempo de chuvas
escassas foi apegar-se ao santo de sua devoção. Ela amava a sua terra e desejava não
abandoná-la. Poderia imaginar que os prejuízos com a lavoura serviriam de estímulo para o
seu marido voltar à cidade, visto que “ele não tinha muito amor à roça”. Sendo atendida no
seu clamor, a esposa amorosa convidaria os penitentes a rezarem um Terço no caminho da
roça. Dessa forma, ficam claras a necessidade e a promessa expostas ao santo de devoção.
O desenrolar do relato indica que:

Aí foi indo, foi indo... chegou a chuva, o legume segurou e ela foi e morreu. Antes
de... de... Depois bem com um ano ou mais ou meno – ela não rezou o Terço. Aí
foi... foi... ela morreu [...] Ele foi e mandou tirar o Terço na casa dele. Ela antes de
84

morrer tinha essa promessa a pagar, mas ela foi e faleceu e o marido mandou tirar o
Terço. aí pensou que o Terço... que a promessa tava paga. Ai demorou, demorou,
demorou. Quando foi na base de uns dois meis, ele comprando fumo numa lagoa
aqui em baxo [apontando com a mão esquerda para o lado norte da sua residência],
ela [a falecida] apareceu a vizinha [de quem o viúvo comprava o fumo] pedindo que
o Terço, a promessa não tinha sido valida, não tava paga, porque o Terço era no
camin da roça (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de
idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011).

A narrativa, portanto, neste ponto adquire contornos ainda mais dramáticos: a


morte da prometente chegou sem dispensá-la da dívida.
Sabedor do compromisso, o viúvo convoca os penitentes para rezar o Terço na sua
residência julgando cumprir a promessa feita pela esposa. Contudo, a transferência do local do
Terço (do “caminho da roça” para a “residência”) invalidou o ato. Não restou, portanto, outra
opção a alma devedora da falecida senão voltar ao mundo dos vivos, incorporar em uma das
suas vizinhas e exigir que o pagamento da promessa obedecesse aos critérios acordados entre
ela prometente e o santo que prontamente atendeu a sua necessidade.
Finalmente, os penitentes foram informados da situação e

Aí nóis chegamo de tardizinha. Vicente Cazeca – inda foi Vicente Cazeca nesse
tempo – era o decurião. Aí nóis chegamo e o povo se reuniu todo, ajeitaro o santo lá
na mesa. Ai Vicente Cazeca [ininteligível] assim perto de nóis foi tirar... começou a
fazer o nome do pai e a vizinha [a quem a alma da falecida havia aparecido] caiu no
chão. Aí pegaro, butaro numa rede, aí ela chegou [a falecida] e baxou nela [vizinha]
e ela [vizinha] foi e desmaiou, né? Aí ela [vizinha] ficou dentro de uma rede e nóis
tirando o Terço e ela [vizinha] como morta, sem tomar forgo, nem se bulia nem
nada. O marido dela [vizinha] aperriado, pensando que ela [vizinha] tinha era
morrido – era o marido dela [vizinha]. Aí quando nóis terminamo de tirar o Terço aí
ela [vizinha] se levantou-se – saiu de dentro da rede. Ela foi, a merma mulher que
tava deitada pediu pra nóis cantar o bendito de São Miguel treis veiz ao redor da
casa, sabe? Cantemo o bendito, arrudiemo a casa treis veiz aí a promessa foi paga.
(Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade,
conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município
de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011). (Grifos meus).

Os três trechos transcritos acima, integrantes dos relatos de Deca Pinheiro, são
bastante significativos por diversos motivos, inclusive naquilo em que faz referência aos
elementos presentes em uma promessa, a saber: o reconhecimento que algumas situações
independem da capacidade humana de resolução, a crença que um santo de devoção pode
interferir nas adversidades do cotidiano, a certeza que os santos de devoção são suscetíveis a
atender os clamores dos seus devotos mediante promessas e a convicção que a promessa
somente será considerada paga se todos os critérios proclamados no momento do acordo com
o santo forem, ao menos inicialmente, cumpridos na sua integralidade.
85

Interessa, porém, nesse ponto perceber ainda aquilo que anteriormente havia sido
anunciado, ou seja, os penitentes mantêm vínculo com as populações das comunidades onde
atuam pelas promessas feitas por terceiros na certeza da disponibilidade dos penitentes em
cumpri-las. Por outro lado, os espaços construídos pela mobilidade dos penitentes dependem
do teor das promessas feitas. Assim, “tiraram o Terço na residência” conforme a exigência do
viúvo, retornaram para cumprir a promessa de acordo com o desejo da falecida, “no caminho
da roça”, finalmente, deram três voltas ao redor da casa cantando o bendito de São Miguel 25 –
exigência não contida no acordo entre a prometente e seu santo de devoção.
Dito isto, é fácil admitir que o crescimento populacional do Infincado aponta
outras possibilidades diante das dificuldades iniciais enfrentadas pelos penitentes para a
execução dos seus rituais:

Quando nóis chegamo aqui [1956] já tinha penitente [referência à família Duarte que
havia chegado em 1951]. Pouco. Não fazia muita saída porque o povo era pouco
demais e espaiado. Aí [os penitentes] achavam ruim – gente não tinha aqui. Era
muito pouco gente. Era somente as casinhas ali em baxo [apontando com a mão
esquerda para o lado sul da sua residência], as nossa ali [apontando com a mão
esquerda para o lado norte da sua residência]. Nóis moremo em casa aqui
[apontando com a mão esquerda para o lado norte da sua residência]. Tinha uma
base de umas trinta pessoa mais ou meno. Trinta a quarenta pessoa mais ou meno.
Depois foi vindo gente de Várzea Alegre, de São Francisco, de Lavras e foi
chegando gente e foro amuntuando o povo aqui, aí fizero um grupozim de gente
mais ou meno. Aí ficou melhó prá nóis porque tinha para onde a gente andar, para
onde a gente sair (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos
de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011).
.
Mais uma vez o tema da mobilidade e sua relação com o espaço ocupa dimensão
considerável nas narrativas de Deca Pinheiro que, por sua vez, estão de acordo com o
pensamento de Luizinho Camilo.
A chegada de novas levas populacionais, certamente, permitiu maior mobilidade
dos penitentes, mas não garantiu que suas intervenções fossem solicitadas em quantidade que
pudesse estar à altura daquelas ocorridas no município de Lavras da Mangabeira. As
comparações, portanto, até hoje são inevitáveis:

25
Estudando a “trajetória histórica da iconografia e do culto ao Arcanjo Miguel e às Almas do Purgatório”, a
professora Adalgisa Arantes Campos (2004) confirma uma estreita ligação inicial entre as imagens de São
Miguel e as almas de cristãos no seu pós-morte. Caberia àquele arcanjo pesar a cada uma das referidas almas
nessa relação de proximidade. Com o avançar dos anos, a iconografia do santo passa por transformações e a
balança e almas somem das imagens e São Miguel ganha ares de guerreiro. Contudo, a antiga veneração a São
Miguel e às Almas do Purgatório permanece em voga e unidas ao longo dos anos pela atuação de irmandades
que reúnem a mesma devoção. Penso ser bastante significativo que para cumprir a promessa feita pela falecida,
de acordo com o relato de Deca Pinheiro, o bendito de São Miguel precisou ser entoado logo após o Terço das
Almas, exigência não contida inicialmente no acordo entre a prometente e o arcanjo, mas que reflete a crença
dos Penitentes nessa relação entre o Santo e as almas por ele pesadas.
86

Lá aonde nóis tava, no Arrojado era quase tudo de penitente, era que nem em Várzea
Alegre – a terra que dá mais penitente é Várzea Alegre. O povo acreditava demais,
nóis tirava muito Terço. Era difícil passar uma semana prá nóis não tirar treis ou
quatro Terço por semana porque todo mundo achava bonito, achava bom, apreciava.
Aqui não, tanto fazia o povo ver um penitente como ver uma pessoa acolá. Ficava
dentro da igreja aí quando terminava o Terço que nóis começava a cantar, aí pronto:
ficava só nóis dentro da igreja. O povo não dá valor. Prá nóis tirar Terço aqui... há
um Terço quando eu faço uma promessa ou quando eu falo: “ – Fulano, vamo tirar
um Terço assim, prum falecido”. Num cruzeiro, numa cruz que tiver, mas pra
convite não (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de
idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011).

Talvez possa ser sugerido que as narrativas de Deca Pinheiro sejam contraditórias.
Anteriormente foi transcrito trecho onde ele menciona pagar a promessa que uma devota não
conseguiu cumprir em vida e na citação imediatamente acima ele reclama da completa
ausência de convites da população local para a irmandade tirar Terços. Penso que o problema
da aparente contradição pode ser resolvido se for percebido as distintas temporalidades que
ele emprega na construção dos seus relatos. Em primeiro lugar, Deca Pinheiro fala da época
em que residia no sítio Arrojado, em Lavras da Mangabeira, onde a frequência dos Terços
mediante convite era, em média, segundo ele, de três vezes por semana. Em um segundo
momento, ele menciona os dias nos quais o Infincado já havia experimentado um relativo
crescimento populacional e já possuía até mesmo igreja (essa fase será discutida no próximo
tópico). Finalmente, Deca Pinheiro realiza um salto para os dias atuais nos quais os convites
para Terço praticamente desapareceram. Portanto, a promessa paga em nome da falecida e
acima mencionada pode ser encaixada em um dos lapsos presentes nesse último trecho
transcrito.
De qualquer forma, penso serem bastante significativas as suas impressões por
dois motivos, quer seja pela construção de lugares de memória com ênfase não apenas nos
aspectos considerados dignos de elogios, quer seja pela necessidade que os participantes de
um ritual têm de concordar, em certo sentido, com o significado do que está sendo executado
(CONNERTON, 1999, p. 51). Ora, esta última afirmação considera que a assistência dos
rituais dos penitentes não é uma parte alheia ao que presenciam. Dessa forma, para o narrador
aqueles que abandonam a igreja durante os rituais dos penitentes sugerem que talvez não
concordam com aquelas práticas e a presença dos seus praticantes naquele espaço sagrado.
Os obstáculos à mobilidade que os penitentes encontraram no Infincado sugerem
ainda que algumas experiências que o “ter para onde andar” permitiam estariam
comprometidas. Andando o penitente relacionava-se com a comunidade e vivenciava as
87

manifestações do sagrado. Chamo à atenção para mais um relato de Deca Pinheiro que traz
um evento ocorrido nos seus tempos de penitente em Lavras da Mangabeira.

Lá foi o seguinte: lá era um morro muito grande, que nem esse morro que tem aqui
na Baxa Queimada [localidade entre a sede do município de Assaré e o Genezaré], lá
tinha os menino e era um baxão. Lá era um serrote, lá tinha uns menino que foram
tirar... caçar umas maravaia [varetas utilizadas como lenha]... era dois meninozim
assim [estende a mão a uma altura de pouco mais de um metro do chão]. Aí viram
um vultuzim, vulto de uma mulher. Aí quando chegaram em casa: “ – Pai, acolá tem
uma mulher debaxo de um pé... debaxo de uma moita, na sombra de uma moita”. Aí
o véio disse: “ – Conversa é essa?” “ – É pai!” “ – Pois vamo lá me mostrar”. E foro
e nada, né? Aí ficou as criança vendo. Aí o pai deles, o pai das criança foi e chamou
o finado Manel Carlos [decurião de penitentes e tio do entrevistado] para nóis ir tirar
esse Terço lá. Aí o vulto pelo sinal que ele dizia era uma santa, sabe? O jeito da
roupa tudim... era uma santa. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011).

Os penitentes liderados por Manoel Carlos, primeira irmandade a qual Deca


Pinheiro integrou, experienciavam naqueles dias um espaço de caráter sagrado, segundo a
perspectiva de Mircea Eliade (2010, p. 30). De acordo com esse autor, para o homem
religioso existem qualidades que comprovam a existência de espaços distintos e a distinção
entre o sagrado e o profano dá-se pela hierofania, entendida por ele como “uma irrupção do
sagrado”, como uma revelação de “algo de sagrado”. É a partir dessa distinção entre espaços
de manifestação do sagrado e os demais que o homem religioso elabora sua reflexão sobre o
mundo. Contudo, ainda afirma Eliade (2010) que por vezes uma hierofania ou mesmo uma
epifania26 podem ser dispensadas na sacralização de um espaço, bastando que ocorra um
entendimento humano que a vontade divina através de um “sinal” indica o ponto de “rotura”
entre os dois níveis espaciais indicados. Finalmente, não existindo as condições acima
elencadas para a constituição de um espaço sagrado, o homem pode exigir sua fundação
através de evocações “das formas ou figuras sagradas”. Ainda em Eliade (2010) pode ser
encontrada, a partir das inspirações de Rudolf Otto, a noção que o sagrado, o numinoso, ao
dá-se a conhecer, afinal “O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta
como algo absolutamente diferente do profano” (Grifos meus), ele provoca naqueles que

26
Em O Sagrado e o Profano, Mircea Eliade (2010) sugere que existem revelações mais amplas e repentinas do
sagrado (hierofanias) e a possibilidade do próprio Deus (ou deuses) colocarem-se diante dos homens revelando
suas características e desígnios. Outra forma do sagrado revelar-se na história é através de intervenções
salvadoras em favor dos seus protegidos. Assim, o termo epifania (do grego epiphaino) pode adquirir um uso
militar (“o aparecimento repentino de um inimigo”) ou a intervenção salvadora do Deus cristão através da
aparição do Seu filho. Na liturgia católica a epifania é também uma festa comemorado aos 06 de janeiro, data
considerada como da visitação dos “Reis Magos” ao menino Jesus (EPIFANIA. In: Dicionário Teológico
Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003. p. 235-236).
88

percebem a revelação sensações que os aproxima da nulidade, o “senão cinza e pó de Abraão”


(ELIADE, 2010, p. 16)
Dessa forma, as noções de Mircea Eliade apontam para uma clara distinção entre
sagrado e profano, perspectiva também defendida por Émile Durkheim (1989), e sugerem que
a passagem de um a outro estágio dá-se por um salto qualitativo.
Contudo, as distinções entre sagrado e profano não são as únicas possíveis quando
espaços são tomados como referência para análise de rituais religiosos. Para Sérgio da Mata
(2010), com o crescimento em número de pesquisas acerca das crenças e práticas religiosas na
contemporaneidade e a emergência de novos procedimentos metodológicos tornou-se possível
ver surgir novas noções mais adequadas a casos específicos de análises. Portanto, a oposição
categórica entre sagrado e profano passou a conviver com outras ferramentas analíticas
conceituais como, por exemplo, o par puro/impuro presente em Mary Douglas (1976) e em
obras de Louis Dumont e Jean-Pierre Vernant.
Ora, se outras noções e distinções vêm ofertar novas possibilidades em face da
inadequação da oposição sagrado/profano, em alguns casos a própria oposição categórica
entre ambos precisa ser repensada. Ainda para Sérgio da Mata (2010, p. 134), “A estreita
separação entre os dois domínios foi um produto do desenvolvimento do pensamento
teológico – ou seja, da crescente intelectualização da relação com o religioso” que, para o
autor, envolve “interesses próprios das camadas sacerdotais”. Finalmente,

Qualquer esforço de reflexão cuidadosa mostra, de pronto, que, ao


pensarmos sagrado e profano como antípodas, destituímos o último termo de
qualquer operacionalidade (ele permanece ontologicamente vazio). Onde
normalmente se vê oposição, deveríamos ver um continuum. Uma contraposição
clara entre sacrum e profanum não constitui regra geral. Ela corresponde a uma
rigidificação tipicamente cristã, ou, mais especificamente, a uma rigidificação típica
do cristianismo das elites eclesiásticas, dos teólogos ou das classes letradas. Eis
porque nos parece mais adequado definir o sagrado como uma sobrecarga
semântica. Uma coisa pode se tornar “sagrada” tão logo o significado com o que é
investida ultrapassa um determinado patamar. É o que torna possível transformar um
objeto comum em relíquia, a viagem em peregrinação, a rotina em rito (MATA,
2010, p. 134).

Em relação aos Penitentes do Genezaré, pode ser notado que em alguns momentos
para eles a distinção entre sagrado e profano é bastante fluida ou mesmo insustentável como é
comum entre grupos religiosos que celebram as festas de uma vertente do catolicismo
genericamente denominado “popular”. Em outros momentos, acentua-se a percepção das
noções de puro e de impuro quando em alguns momentos evitam frequentar bares e ambientes
89

congêneres. Em determinadas ocasiões a relação entre espaços sagrados e espaços profanos


pode ser mais facilmente verificada como no caso relatado acima e na sequência.
Retomando o relato de Deca Pinheiro imediatamente acima, até bem pouco tempo
para aquelas crianças, para o pai delas e para os penitentes de Manoel Carlos aquela era uma
terra qualquer, a vegetação não diferia das outras, a moita era uma entre milhares de outras.
Acontece que um dia o sagrado veio a dar-se conhecido naquele espaço e acrescentou a ele
características que fizeram ele qualitativamente diferentes dos outros. Aquele espaço sagrado
passa a ser frequentado, de acordo com Deca Pinheiro, todos os sábados. Os penitentes
atribuem a ele qualidades diferenciadas se postas em comparação com outros espaços.
É sugestivo o fato do dono das terras onde o sagrado decidiu manifestar-se
convidar os penitentes para realizarem os seus rituais justamente naquele espaço diferenciado.
A meu ver, Deca Pinheiro com essa afirmação estabelece o nível de reconhecimento público
que os penitentes gozavam naquela comunidade em comparação com o tratamento que as
irmandades recebiam no Infincado. Sua fala continua nestes termos:

Tinha... o serrote era muito alto e o véio brocou uma vareda, arrancou umas pedras
até chegar em cima. Quando chegou em cima ele fez um campo, alimpou, sentou
uma cruz27 onde tinha um pé-de-pau mocó dessa grossurinha assim mais ou menos
[com as duas mãos apontado as pontas dos dedos de uma mão para outras sugere
uma circunferência de aproximadamente trinta centímetros de diâmetro] – uma
moitinha bonita, aí o véio cortou o pé-de-pau mocó prá poder assentar uma cruz. A
santa pediu aos menino que dissesse o pai deles que não era prá ter cortado o
pezinho-de-pau que era a sombra dela, sabe? Aí o véio foi e enfiou, cavou o buraco
e enfiou... pediu a ele para cavar um buraquinho e enfiar o pé-de-pau de novo. Aí o
véio furou o buraco e pegou o pé-de-pau mocó e ele ficou lá. Pronto. Ele nunca caiu
e foi... Nóis chegava e tirava o Terço. O cabra tirava o Terço doze hora do dia –
Terço, missa doze hora do dia. O cabra se ajoelhava na terra e não sentia terra
quente, só aquele ventim frio, sabe? (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011).
.

A partir das relações que os penitentes de Manoel Carlos mantinham com a


comunidade rural do Arrojado, em Lavras da Mangabeira, foi a eles permitido usufruir das
qualidades que aquele espaço sagrado disponibilizava aos seus frequentadores. Nem ao menos
o calor de um sol do meio-dia atingia aos penitentes entregues aos seus rituais por causa da
sombra e vento fresco patrocinados pela “árvore” propriedade da santa. Uma hierofania,
portanto, também sugere aos penitentes espaços adequados à execução dos seus rituais.

27
Lembro nesse instante das constatações de Riolando Azzi (1978) mencionadas em outras páginas dste
trabalho..
90

De volta ao Infincado, O incipiente crescimento populacional experimentado pela


localidade naqueles dias imediatamente posteriores à chegada daqueles penitentes senão
garantiu entre os moradores da localidade legitimidade imediata de atuação às irmandades e
seus rituais, pelo menos permitiu que três grupos de penitentes fossem organizados nas duas
primeiras décadas da segunda metade do século XX. Entre os novos sujeitos que chegaram ao
Infincado, encontravam-se alguns penitentes que migraram para o município de Assaré
principalmente de Lavras da Mangabeira e Várzea Alegre. Organizados em irmandades,
aqueles primeiros penitentes venceram a solidão dos primeiros dias. Com isso, as vozes, antes
entoadas timidamente na obscuridade noturna que a sombra das oiticicas projetava, rompiam
o silêncio em um perímetro cada vez mais amplo à medida que os penitentes descreviam
trajetórias que ultrapassavam, em uma só noite, às vezes, mais de uma dezena de quilômetros.
As Semanas Santas era o tempo propício para essa prática que, conforme já
mencionado, poderia durar uma noite inteira. Deve ser dito ainda que a cada noite daqueles
dias que antecediam à Sexta-Feira da Paixão, os penitentes tomavam uma direção diferente
por onde seguiam retirando suas esmolas e cantando seus benditos. O encontro entre as três
irmandades estabelecidas no Infincado podia ocorrer eventualmente pelas estradas naquele
período, mas, de qualquer forma, devido às distâncias que separam entre si a Cacimba do Mel,
o Sítio Lama e a Serra dos Carlos era comum que os percursos preferidos por cada irmandade
não coincidissem com aqueles já costumeiros às outras. As vozes também anunciavam a
presença dos penitentes em um determinado percurso, podendo sugerir que as irmandades
desviassem seus caminhos preestabelecidos evitando encontros entre grupos, visto que os
decuriões não combinavam entre eles os trajetos que tomariam a cada noite.
Sobre as peregrinações Deca Pinheiro é quem afirma que depois de organizadas as
irmandades no Infincado elas atuavam da seguinte maneira:

Nóis andava de péis, porque animal aqui era difícil, as estrada era tudo dentro das
roça – era mei difícil andar aqui a cavalo. Era tudo de péis. Nóis tirava daqui pro
São Domingo, do Limoeiro prá riba bem treis légua [município de Antonina do
Norte que faz fronteira com o município de Assaré a oeste]. Nóis ia de péis. Saia
daqui por uma hora dessa [pouco depois das dezesseis horas] quando era sete da
noite nóis tava lá. Saia de lá quando terminava o Terço, negoço de oito hora da noite
prá nove. Quando terminava o Terço metia o pé na estrada de lá pra cá, quando o dia
amanhecia tava em casa. Sem ter estrada, por vareda e nos escuro. E assim... ia aqui
pros Palácio [estendendo a mão direita para o lado do nascente], pro lado de Santa
Maria [apontando para o lado sul da sua residência], em cima da Serra dos Palácio
[referindo-se à propriedade de uma família nas circunvizinhanças do Genezaré].
Nesse tempo aqui as casa era difícil, era longe uma das otra. Tinha umas
barraquinha aqui no beiço do rio [Rio da Barriguda, único que passa nas
proximidades da Vila do Genezaré]. No Genezaré não tinha casa de jeito nenhum.
Tinha uma casa no Sítio Currais, tinha otra lá no Charcão [sítio]. Sendo uma ribeira
91

que nem era a nossa de muita casa lá em baxo no Cedro28, na ribeira, o cabra
[penitente] não andava pelas estrada, era só dentro dos mato. (Relato de José
Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca
Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista
concedida em dezembro de 2011).

Ele retoma na sua fala a descrição do Infincado nos anos imediatamente


posteriores à sua chegada: localidade de poucas casas e sem estradas. Portanto, os penitentes
precisavam andar por longas distâncias para tirar suas esmolas sempre por veredas e na
escuridão que as noites encerravam. Por outro sentido, seu relato sugere que “andar por dentro
dos mato” não era tão somente uma imposição da falta de estradas na localidade. Com isso,
vem à tona o tema recorrente em parte das narrativas que compõem o corpo de fontes desta
pesquisa dos espaços interditados aos penitentes.
A preservação da identidade sugerida anteriormente ocupou durante muito tempo
as preocupações dos penitentes. Acima já foi referido o exemplo de um flagelante que
respondeu algumas das perguntas de membros da Comissão Científica de Exploração das
Províncias do Norte recusando-se, porém, a revelar a sua identidade.
Segundo os mais antigos Penitentes do Genezaré ainda em atividade, outra forma
escolhida para que a identidade dos penitentes fosse preservada era a mudança de voz até
mesmo quando os benditos eram cantados. Logicamente, em uma comunidade de população
reduzida onde todos conhecem uns aos outros a voz é um fator que permite a identificação
dos sujeitos.
A escolha dos locais de encontro também contribuía, segundo eles, para que os
penitentes não fossem reconhecidos pela população das comunidades onde as irmandades
atuavam:

Quando era prá ser um Terço, o Manel Carlo [decurião] dizia: “ – Ô meu fio! Tal dia
tem um Terço”. Ele... Nóis se reunisse... se fosse numa casa ali mei distante nóis se
reunia tudim ali de tardizinha e saía e ele saía com nóis trocendo camin prá não
passar de frente às casas, por dentro dos mato, saía na estrada e assim ia seguindo.
Quando era pra Terço da Coresma29, já tinha o ponto certo: era um tabuleiro grande
que tinha, numa casa véia que tinha caído, era perto da casa dele [decurião]. Aí ele
planiou, tirou os torrão tudim, ajeitou, aí butava o cruzeiro lá. Levava uma mezinha
aí butava o cruzero lá encostado na mesa. Aí nosso ponto era assim: duma grota que
tinha assim como um fumo branco. Aí ele [decurião] disse: “ – Bom. O ponto de
vocêis é aquele ali. Vão prá lá. Aí quando for prá começar o Terço eu vem aqui e

28
O sítio Arrojado a qual faz referência Deca Pinheiro, não obstante distar apenas seis quilômetros do município
do Cedro, é pertencente ao município de Lavras da Mangabeira, de onde decorre a referência a Cedro.
29
Segundo as falas de Deca Pinheiro, Luizinho Camilo e Joaquim Camilo os rituais das irmandades de
penitentes sustentam vínculos muito estreitos com o período da Quaresma. Iniciado na denominada Quarta-Feira
de Cinzas, primeiro dia após a terça-feira “gorda” do Carnaval, “[...] esses 40 dias de penitência e de jejum que,
desde sua difusão no século IV, preparam e precedem a festa da Páscoa, estendendo-se depois ao Natal e ao
Pentecostes”, na verdade, período que atinge o seu ponto mais alto com as comemorações da Paixão, morte e
ressurreição de Jesus (LE GOFF; TRUONG, 2011. p. 58).
92

levo vocêis”. Ai começava... um ia prá lá... lá de minha casa lá pro ponto era pertim:
era como daqui ali naquela casa ali [apontando para uma casa ao sul da sua
residência]. Ai eu ia logo prá lá. Seis hora eu ia logo prá lá pro ponto. Aí começava
a encostar. Um começava a assobiar, um dava um assobio no canto 30, outro dava
noutro, outro dava noutro, outro ia assobiando aí ia se ajuntando tudim. (Relato de
José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como
Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré.
Entrevista concedida em dezembro de 2011). (Grifos meus).

A vegetação associada à escuridão das noites sem lua era, portanto, outro
elemento constituinte do espaço adequado para a reunião dos penitentes antes dos seus rituais.
Era preciso, como foi dito, que um sinal sonoro fosse produzido indicando onde cada um
estava por entre as árvores que serviam de abrigo.
Com frequência aparece nas narrativas dos penitentes que nem ao menos os
familiares sabiam quem daqueles que habitavam sob o mesmo teto fazia parte de alguma
irmandade. Os penitentes afirmam que saiam de casa com todo o “equipamento” escondido
dentro de um saco que não permitia a identificação do seu conteúdo e somente vestiam sua
indumentária para os rituais quando distante de olhos curiosos. Interrogando Deca Pinheiro
sobre como as roupas eram fabricadas sendo que nem ao menos os familiares sabiam que
tinham penitentes na sua família, ele me respondeu: “Tinha uma costureira que fazia prá nóis.
Ela sabia”.
Ainda sobre esse tema, as narrativas dos penitentes sugerem que manter distância
dos terreiros das residências era uma autoimposição dos penitentes com vistas à preservação
da identidade. Eles andavam

Só nas vareda mermo. Metia no rumo da mata e ia simbora. Não podia andar pelas
estrada. O cabra ia e pegava a estrada, mas assim, quando chegava bem acolá
[apontando para seu lado direito] nóis já num ia passar na frente dela [casa]. Quando
chegava assim faltando umas deiz braça ou quinze, nóis entrava por dentro dos
mato, arrudiava pelo oitão da casa ou pelo quintal da cozinha saía na estrada de novo
e ia simbora (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de
idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011).

Entretanto, esses interditos não são resultantes apenas da autoimposição que


favorecia a preservação da identidade. Nesse sentido, a sugestão de Maria Isaura Pereira de
Queiroz (1973, p. 172-173) pode ser esclarecedora:

Porque não é bom ver os penitentes. Não há mais, formulado, um


castigo expresso contra que por acaso os vislumbra; [entretanto] o encontro é

30
O mesmo recurso utilizado nesses encontros foi também constatado por Roberto Lima (2006) entre os
penitentes do Médio e Baixo São Francisco, no Estado da Bahia.
93

agoureiro, a pessoa pode adoecer, não se sabe ao certo o que acontecerá. E isto não
devido aos penitentes propriamente, e sim porque além dos vivos, andam também os
mortos na penitência, e ninguém pode se arriscar a ver uma alma penada.

Essa é uma questão ainda não aprofundada nesse trabalho. De qualquer forma,
Deca Pinheiro deixa bastante nítido que, andando, o penitente encontrava espaços que eram
interditados às irmandades.
Dessa forma, provocado por Michel de Certeau (2007) e pelas reflexões do
professor Durval Muniz Albuquerque Júnior (2008a) o espaço pode ser igualmente
compreendido como o produto de ações, movimentos humanos, que jogam com os lugares,
com a ordem estabelecida “seja ela qual for” (CERTEAU, 2007, p. 201). Na relação entre as
irmandades de penitentes do Genezaré e a população local existiam elementos capazes de
configurar uma determinada estabilidade na coexistência entre os envolvidos, lugares
possíveis e interditados. Portanto, quebrar algumas regras implicaria situações indesejáveis.
Contudo, os Penitentes ao descreverem seus trajetos em peregrinações indicam sua
capacidade de forjar espaços, essas “unidade(s) polivalente(s) de programas conflituais ou de
proximidades contratuais” (CERTEAU, 2007, p. 202).
Se lugar é ordem, “A ordem efetiva das coisas é justamente aquilo que as táticas
“populares” desviam para fins próprios [...]” (CERTEAU, 2007, p. 88). Pelos seus trajetos em
peregrinações integrantes dos seus rituais, os Penitentes do Genezaré

[...] se, de um lado, [...] tornam efetivas algumas somente das possibilidades fixadas
pela ordem construída (vai somente por aqui, mas não por lá), do outro aumenta o
número dos possíveis (por exemplo, criando atalhos ou desvios) e dos interditos (por
exemplo, ele(s) se proíbe(m) de ir por caminhos considerados lícitos ou obrigatórios.
Seleciona portanto. (CERTEAU, 2007, p. 178).

Nesse sentido, o espaço gestado pelas ações dá-se a experiência dos indivíduos,
torna-se experenciável. De acordo, com Yi-Fu Tuan (1983) os espaços evocam sensações, não
estão pois limitados a operações de cálculo e mapeamento, e nesse processo de experenciar os
espaços os indivíduos conhecem e reconstroem realidades a partir das emoções vinculadas a
um ou outro espaço que experienciam. Experiência, portanto, vincula-se a capacidade de
aprender, experienciar “significa atuar sobre o dado e criar a partir dele” (TUAN, 1983, p.
10).
Os Penitentes do Genezaré através das suas falas fazem referência aos vínculos
emocionais que mantêm com os espaços que têm construído ao longo da trajetória de mais de
60 anos desde que a família Duarte chegou ao município de Assaré. A complexidade dos seus
94

sentimentos vão reconstruindo o espaço, verdadeiro processo de apropriação, de interpretação,


segundo a noção de Roger Chartier (2002a).
Com isso, chegou até mim uma representação do Infincado como um espaço de
paisagens que colocavam obstáculos às ações rituais dos penitentes e, com o crescimento
populacional, de um grupo de pessoas que não compreendiam bem a atuação dos penitentes,
logo não costumava solicitar a atuação das irmandades, preferiam manter-se à distância dos
penitentes e seus rituais.
Tomando o escrito de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973) citado parcialmente
acima ou os relatos de Irineu Pinheiro (2010a) mencionados adiante nos quais constam
encontros de seus autores com irmandades de penitentes em distintos lugares do território
nacional, pode ser percebido que alguns julgavam ser melhor ver os penitentes somente entre
as frestas das portas ou por buracos de fechaduras. Igualmente agradável era que os penitentes
permanecessem longe das frentes das casas. Deca Pinheiro menciona ainda nas suas narrativas
que “o povo tinha medo quando saía os penitentes”.

3.2 – QUANDO O SOL BRILHA SOBRE OS PENITENTES

Já eram distantes os dias nos quais o Infincado contava com três irmandades de
penitentes quando mantive os primeiros contatos com os Penitentes do Genezaré em 2009.
Muitos dos mais antigos membros daquelas irmandades haviam morrido, como era o caso do
velho Camilo Duarte e seu irmão Quinco Duarte, alguns deixaram a localidade e fixaram
residência em outros municípios do Ceará ou, ainda, em outros Estados da Federação.
Com o número reduzido de penitentes, Joaquim Camilo entra em acordo com os
demais remanescentes da irmandade do sítio Cacimba do Mel e convida Deca Pinheiro, o
último dos autoflagelantes do Sítio Lama ainda residindo na localidade, para liderar aquele
grupo, hoje formado por 08 integrantes, a saber:

 José Pinheiro de Morais, o decurião Deca Pinheiro, agricultor


aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama;
 Luiz de Holanda Duarte, agricultor aposentado, 76 anos de
idade, conhecido como Luiz Camilo ou Luizinho Camilo, residente e
domiciliado no Bairro Canto Alegre na cidade de Assaré;
95

 Joaquim de Holanda Duarte, agricultor aposentado, 64 anos de


idade, conhecido como Joaquim Camilo, residente e domiciliado no Sítio
Cacimba do Mel;
 Antônio Duarte de Almeida, agricultor aposentado, 61 anos de
idade, conhecido como Antônio de Quinco, residente e domiciliado no Sítio
Cacimba do Mel;
 Antônio Duarte de Holanda, agricultor, 50 anos de idade,
conhecido como Fortunato, residente e domiciliado na Vila de Genezaré;
 Luiz Duarte de Almeida, agricultor, 45 anos de idade, conhecido
como Luizeto, residente e domiciliado no Sítio Cacimba do Mel;
 Antônio Rodrigues Duarte, agricultor, 42 anos de idade,
conhecido como Antônio de Dôra, residente e domiciliado no Sítio Cacimba do
Mel;
 Antônio Ferreira de Oliveira, agricultor, 48 anos de idade,
conhecido como Bacum, residente e domiciliado na Vila de Genezaré; todos no
município de Assaré.

Dessa forma, a Irmandade de Nossa Senhora, maneira menos usual pela qual é
conhecida os Penitentes do Genezaré, agrega os últimos penitentes daquela localidade. Os que
contam com mais de 60 anos de idade nasceram no município de Lavras da Mangabeira,
portanto, fazem parte dos grupos migrantes que chegaram à Assaré nos anos 1950. Fortunato,
Luizeto e Antônio de Dôra fazem parte da família Duarte, mas são nascidos no Genezaré,
logo, ingressaram em irmandades de penitentes quando estas já contavam com uma trajetória
de algumas décadas na localidade. Finalmente, Bacum é o único que não confirmou em
nossos primeiros diálogos a presença de penitentes entre os seus familiares. Segundo ele, “Me
lembro dos penitentes mais antigos. Tinha ‘Seu’ Quinco Duarte e ‘Seu’ Camilo Duarte que
vieram prá cá antes mesmo d’eu ter nascido” e confirma da seguinte maneira o despertar do
seu interesse com vistas ao ingresso em irmandades de penitentes: “Eles [os Duarte] e os
penitentes tiravam esmolas e cantavam os benditos. Me lembro deles nesses serviços. Sempre
tive vontade de ser penitente” (Grifos meus).
A população da localidade havia crescido de forma inquestionável e a sua
infraestrutura revelava melhorias consideráveis quando os seus penitentes precisaram adequar
seus rituais aos novos espaços frequentados pela Irmandade. Logicamente, nem todas as
96

interdições impostas aos penitentes tiveram fim com o passar dos anos. De qualquer forma,
algumas residências passaram a ter suas portas abertas para que as irmandades executassem os
seus rituais com a aprovação das famílias que solicitavam dos penitentes o pagamento de
promessas após graças alcançadas ou como forma de intercessão pelos mortos. A narrativa de
Deca Pinheiro confirma algumas informações do Sr. Luizinho Camilo, referidas
anteriormente, e revela quando os espaços internos das residências tornaram-se também um
espaço para os rituais dos penitentes:

Era assim, né? De primeiro os cabra [penitentes] não se avistava com todo mundo,
quando chegava a hora da Semana Santa que era a hora de tirar as esmolas, a gente
ficava aqui naqueles acero de terrero [apontando para a frente da sua residência], a
gente ficava lá, o otro só vinha o decurião. O fregueis [dono da residência] abria a
porta, o cabra [penitente] vinha e pedia as esmolas, ele [dono da residência] e [o
decurião] pegava as esmola, o cabra [decurião] ia e botava lá no saco, lá mesmo a
gente oferecia e de lá mermo a gente ia simbora. Ninguém conhecia. Hoje tá tudo
diferente. Depois... até na turma de Vicente Cazeca era assim também, mas depois
que entrou Chico de Carlo, entrou o Fernando, sendo decurião, aí eles começaro a
querer entrar dentro de casa. O povo chegava: “ – Homi, vamo entrar aqui dentro de
casa. Nóis vamo tirar um Terço dentro de casa, tirar um bendito enquanto eu faço
um café”. Ai a muié fazendo um café ia prá dentro e nóis dentro de casa, cantando
bendito dentro de casa. Aí chegava aquele povão ali que era vizim, era os fio, era o
véio dono da casa. Aí nóis... eles começaro a descobrir o rosto, né? Aí foi mudando,
aí ficou tudo diferente. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado,
76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio
Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011). (Grifos
meus).

Para o decurião dos Penitentes do Genezaré esse deslocamento, a possibilidade


das irmandades utilizarem os espaços internos das residências para os seus rituais, ocorreu
somente

Depois que começaro a se acostumar nóis [penitentes] com o povo e o povo com
nóis [risos]. Aí começaro a tirar Terço dentro da casa do povo. Eles chega, o povo
chega e convida a gente prá dentro de casa, aí quando era a hora do café ou da janta,
o cabra [penitente] tira aqueles pano tudim, se senta na mesa ali, aí todo mundo fica
sabendo quem é. Todo mundo tá conhecendo. Pronto! Famia com famia. Primo com
primo. Era tio com tio. E tudo vai mudando . (Relato de José Pinheiro de Morais,
agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011). (Grifos meus).
97

Figura 3 - Os Penitentes do Genezaré em visita


à residência localizada no Sítio Cacimba do
Mel - Assaré - Ceará - 2011. (Foto: Cícero da
Silva Oliveira)

Paradoxalmente, adentrado os espaços privados, os penitentes davam publicidade


às suas identidades. Os rostos cobertos perdiam parte da sua obrigatoriedade. Dessa forma, os
rituais perderam consideravelmente sua aura de mistério, de segredo. População local e
penitentes experimentavam algo novo que dialogava com formas mais invariantes dos rituais,
reafirmava-se mais uma vez a dimensão estética dos rituais dos Penitentes do Genezaré. Já
não era considerado necessário que os anfitriões deixassem a sala de refeições para que os
penitentes pudessem tomar o seu alimento, conforme referido em outro ponto de acordo com
a fala de “Seu” Luizinho Camilo. Se por um lado, os convites às irmandades para Terços nos
espaços privados das residências implicavam um reconhecimento que as práticas religiosas
dos penitentes eram tidas por legitimas nas comunidades onde atuavam, em outro sentido tal
proximidade tornou públicas as identidades dos membros das irmandades.
Paralelamente ao processo de abertura dos lares aos penitentes, o Infincado
ganhava aspectos de uma pequena vila com uma capela, uma praça à sua frente e algumas
ruelas próximas àquele templo. Naqueles dias, de acordo com as falas de Deca Pinheiro,
98

meados dos anos 1960, por sugestão do padre Agamenom de Matos Coelho31, parte do antigo
latifúndio do Barão de Aquiraz, denominado até aqueles dias Infincado, passa a ser chamado
Genezaré.
A construção da capela de São Francisco ocorreu quando era pároco em Assaré o
citado padre Agamenom. De acordo com as falas de Deca Pinheiro e, principalmente, de
Luizinho Camilo, até o fim do ministério daquele vigário as irmandades de penitentes
enfrentaram algumas dificuldades de acesso ao interior dos templos católicos no município.
Por duas vezes, conta o Sr. Luizinho Camilo, a Irmandade de Penitentes da Cacimba do Mel
venceu em peregrinações os mais de 24 km de distância que separa aquela comunidade da
sede do município de Assaré com o objetivo de pagar promessas após graças alcançadas na
Matriz de Nossa Senhora das Dores, padroeira municipal, e precisou enfrentar as resistências
daquele pároco. Somente depois de muita insistência em meio a um diálogo tenso, o padre
ordenou ao sacristão que abrisse as portas do templo aos rituais dos penitentes. As palavras do
decurião Camilo Duarte ao pároco, naquele instante, não foram amenas: “Nóis fizemos nossa
parte. Nóis volta sem pagar a promessa, mas o pecado não é nosso”.
Nesse sentido, Deca Pinheiro sugere que a mudança ocorrida na infraestrutura do
Genezaré que, de fato, permitiu aos seus penitentes um espaço adequado e com restrições de
acesso reduzidas foi a construção do cemitério na localidade.
Não há concordância entre os Penitentes entrevistados quando exatamente a
participação das irmandades em cerimônias do catolicismo oficial tornou-se efetiva. Para
Deca Pinheiro, o padre Manoel Alves Feitosa, após assumir a vaga de vigário deixada pela
morte do padre Agamenom no ano de 1980, formalizou inúmeros convites para que os
penitentes “participassem das missas” que eram celebradas com frequência irregular na capela
que ele mesmo, padre Manoel, havia mandado erigir na Serra dos Carlos, localidade onde
anteriormente residiram penitentes integrantes de uma irmandade que atuava naquelas
paragens.
Para o senhor Luizinho Camilo o papel pioneiro que Deca Pinheiro atribui ao
padre Manoel Feitosa deveria ser aplicado ao padre Vileci Basílio Vidal que foi pároco em
Assaré muito recentemente, no período de outubro de 2008 a agosto de 2010. Contudo, a
discordância dá-se somente em relação a quem abriu prioritariamente as portas do catolicismo
oficial aos penitentes. Para ambos, Deca Pinheiro e Luizinho Camilo, e indistintamente para

31
Pároco de Assaré desde 15 de maio de 1938 (conforme Ata de Posse lavrada no Livro de Tombo nº. II da
Paróquia de Nossa Senhora das Dores, às fls. 26-27) até a sua morte em 1980.
99

todos os Penitentes do Genezaré, o padre Vileci Vidal foi indispensável para que a Irmandade
adquirisse legitimidade entre os moradores da localidade.
Assim narra Deca Pinheiro acerca da atuação do padre Vileci Vidal no processo
que levou ao reconhecimento local dos valores histórico-culturais que as irmandades de
penitentes encerram:

Padre Vileci também começou a explicar, também aí o povo tão tudo chegando. Já
tem movimento aí na igreja, esse mermo movimento pras escolas, pras prova tudim.
Todo dia os aluno vem aqui em casa, viero fazer intrevista aqui comigo, viero
filmar, né? Gravar. Que nem aqueles minino que chegaro treis aqui em casa pras
prova deles. Pediro o livro32 e eu mandei pra tirar as prova dele. (Relato de José
Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca
Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista
concedida em dezembro de 2011).

De acordo com o relato imediatamente acima havia certa ignorância da população


local, mesmo depois de quase 60 anos de existência de irmandades na localidade, em relação
aos penitentes e seus rituais. O padre Vileci, conhecedor da trajetória das irmandades no
Cariri cearense, incentivou a valorização dos penitentes e “explicou” aos seus paroquianos o
que as irmandades representavam tanto no campo religioso como para a “sociedade capitalista
contemporânea”. De acordo com a interpretação do pároco “[...] os penitentes representam
uma resistência contra as distâncias construídas entre a instituição religiosa oficial e as
práticas “populares” [...]” além das irmandades constituírem “[...] pelo seu caráter fraternal
uma defesa do campesinato contra as investidas do capitalismo [...]”33. De acordo com a
mesma interpretação, a noção de irmandade relacionada aos grupos de penitentes sugere que
entre eles as práticas de exploração características do modo de produção capitalista não
surtem os seus feitos costumeiros. Antes, entre os penitentes é comum, de acordo com a
noção fraternal anteriormente referida, práticas coletivas de produção e distribuição dos
produtos que se assemelham a um modo igualitário de vida em sociedade, da qual a
comunidade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (Crato-CE), no início do século XX, foi
um exemplo digno de atenção juntamente com a sua Ordem de Penitentes34.
A eleição pelos Penitentes do padre Vileci Vidal como “aquele que começou a
explicar o povo o que era um penitente” desperta um aparente problema. Ora, como resolver
essa possível contradição na narrativa que revela os Penitentes anteriormente visitando os

32
Referência à publicação do projeto Os Penitentes do Genezaré: fé, cotidiano e tradição (OLIVEIRA, 2011).
33
Relato de Vileci Basílio Vidal, pároco de Assaré entre outubro de 2008 e dezembro de 2010. Depoimento
concedido por escrito em maio de 2012.
34
Sobre a Comunidade do Caldeirão e a Ordem dos Penitentes ali instaurada no início do século XX, um dos
livros do professor Régis Lopes traz significativas contribuições (RAMOS, 2011)
100

espaços privados das residências e nesse instante lamentando que a comunidade do Genezaré
não “sabia o que era penitente”? É possível sugerir pelo menos duas respostas para esse
problema. Em primeiro lugar, o reconhecimento anteriormente mencionado não era unânime,
as casas abertas aos penitentes não correspondiam à totalidade das habitações do Genezaré.
Em segundo lugar, para muitas pessoas que compõem as novas gerações da localidade os
penitentes e seus rituais constituíam algo ou verdadeiramente desconhecido, ou imaginado
parcamente mediante as narrativas esporádicas dos mais antigos. Havia, portanto, a
necessidade, segundo os Penitentes, de alguém para assumir o papel educativo que foi
exercido pelo padre Vileci Vidal durante o período no qual esteve à frente da Paróquia de
Nossa Senhora das Dores em Assaré.
Para Deca Pinheiro, o conhecimento que o padre Vileci possui acerca das
irmandades de penitentes está ligado à sua naturalidade, afinal “... esse aí [padre Vileci] você
sabe como é também, é da região do Cariri, terra de penitente” (Grifo meu). Anteriormente, o
decurião dos Penitentes do Genezaré igualmente indicou que com a “explicação” do padre
Vileci outras entidades começaram a sentir interesse pela história de vida dos Penitentes, tal é
o caso da Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental Joaquim Neco da Costa, do
Genezaré, que tornou as trajetórias individuais dos Penitentes e coletivas das irmandades um
conteúdo didático cobrado em avaliações de desempenho discente daquele estabelecimento de
ensino. Deca Pinheiro afirma ter fornecido inclusive material para as pesquisas dos alunos.
Com isso, a residência do decurião recebe novos visitantes de forma mais frequente e a sua
irmandade é convidada a comparecer em eventos naquela escola. Entretanto, a comunidade
escolar recebe os rituais dos Penitentes do Genezaré nas suas adequações ao ambiente
socioeducativo com alguns benditos e nenhum sangue.
A proximidade dos Penitentes do Genezaré com o catolicismo oficial no
município de Assaré durante o período em que foi pároco naquele município o padre Vileci é
confirmada pelo sacerdote da seguinte maneira:

[...] logo na primeira missa que celebrei lá [no Genezaré] em 02 de novembro de


2008, exatamente um dia reservado em que o grupo faz o seu ofício religioso [...]
convidei o grupo para conduzir os cânticos da caminhada dos fiéis até o cemitério
onde dei a bênção dos túmulos e rezamos pelos mortos. (Relato de Vileci Basílio
Vidal, pároco de Assaré entre outubro de 2008 e dezembro de 2010. Depoimento
concedido por escrito em maio de 2012).
101

Figura 4 – Os Penitentes do Genezaré entoam os seus benditos


durante a Semana Santa – Vila do Genezaré – Assaré – Ceará –
2011. (Foto Cícero da Silva Oliveira)

De fato, a narrativa do pároco vem confirmar o que já haviam dito alguns dos
Penitentes: o padre Vileci possui algum conhecimento sobre os penitentes e seus rituais e com
sua liderança a Irmandade pode participar de eventos organizados pelo catolicismo oficial na
comunidade.
O momento referido, porém, não foi o único no qual o padre Vileci Vidal
organizou eventos cuja participação dos Penitentes foi requisitada. Ainda hoje existe na
propriedade Infincado, a antiga casa-grande sede da fazenda do Barão de Aquiraz, construída
em meados do século XIX, local onde desde ano de 2009 o terreiro é ocupado em um dia do
mês de novembro para a comemoração do Dia da Consciência Negra com uma missa dita pelo
mesmo padre Vileci, ainda que não esteja mais à frente da paróquia de Nossa Senhora das
Dores de Assaré. Na celebração ocorrem apresentações de grupos culturais de diversos
municípios caririenses e os Penitentes do Genezaré são convidados na qualidade de
representantes da localidade juntamente com os discentes e docentes da Escola de Educação
Infantil e Ensino Fundamental Joaquim Neco da Costa do Genezaré35.
Contudo, a participação dos Penitentes no evento, segundo Deca Pinheiro, tem
sido restrita ao seu comparecimento:

É tanto que nessas missa que há aí na casa-grande já convidei os menino mais de


duas veiz: “ – Menino nóis vamo fazê a representação sobre os negro escravo. Os
escravo também sofria do mesmo jeito [referência aos sofrimentos de Jesus]. Eles
apanhava. Eles era sempre muito judiado. Aí é fazê uma representação comparando

35
“Projeto de memória” inscrito nas exigências do presente, conforme, análise de Jöel Candau (2011)
mencionada páginas adiante.
102

também os sofrimento deles. Só que no fim fiquei eu sozim. (Relato de José


Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca
Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista
concedida em dezembro de 2011). (Grifos meus).
,
Deca Pinheiro vê naquela celebração uma oportunidade de lembrar coletivamente
não somente os sofrimentos dos escravos que foram martirizados em diversos latifúndios
semelhantes ao que pertenceu ao Barão de Aquiraz. Para ele o próprio sofrimento físico de
Jesus pode ser trazido à lembrança naqueles instantes no terreiro da casa-grande e, por isso,
convoca os seus penitentes à participação. Entretanto, sua narrativa indica que todos os
demais integrantes da Irmandade não concorrem àquela celebração coletiva e polifônica – ele
é a exceção.
Visto que o evento ocorre durante o dia, geralmente pela manhã, surgem duas
explicações possíveis e não excludentes uma à outra para que os Penitentes deixem seu
decurião ir “sozinho” à celebração: as lidas diárias de agricultores que não podem ser adiadas
ou, ainda, os Penitentes que não comparecem à comemoração o fazem usando como
argumento não concordarem que os Penitentes realizem seus rituais à luz do dia como sugere
outro episódio narrado por Deca Pinheiro:

Que nem agora dia de sábado [no final de 2011], na Crisma, eu até reclamei com
eles que era um dia próprio prá vim. Nóis somo representante da comunidade do
Genezaré, nóis somo obrigado a tá... o que houver dentro do Genezaré nóis estamos
representando o povo. Mas eles num viero nenhum, aí eu fui obrigado a reclamar a
eles... “ – É porque nóis num quer se apresentar de dia, porque nóis acha ruim”
[Responderam seus penitentes à reclamação]. (Relato de José Pinheiro de Morais,
agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011). (Grifos meus).

Em outro ponto, mas ainda sobre o mesmo tema, ele continua:

Hoje eles [os demais Penitentes da Irmandade] não anda de dia, anda eu porque sou
decurião. Toda missa eu tô ali encostado no padre. Já tem gente que fala porque eu
ando com minha cruz prá riba e prá baxo. “ – Não. É a minha devoção!” Quem
quiser ser do jeito que eu sou, bem. Quem não quiser. Mas eu tô. Toda missa eu tô
com o meu cachozim, com meu cruzerim na mão. E graças a Deus inté agora não
recebi reclamação de padre nem nada. Eu acho que até o bispo (D. Fernando Panico,
bispo da diocese do Crato) achou muito interessante, me deu um grande apoio, disse
que eu podia assumir minha missão num caminho certo que nem eu tava. “ – Pois é,
bispo, eu tô nessa fé”. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76
anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio
Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011). (Grifos
meus).
103

O evento referido por último era uma cerimônia do sacramento da crisma


realizada na capela de São Francisco em Genezaré no final de 2011. Deca Pinheiro, como de
costume, convoca os seus Penitentes para a celebração que seria realizada por volta das
quinze horas. Não foi a primeira vez que a sua convocação foi ignorada porque os seus
Penitentes alegarem “achar ruim” participar de eventos à luz do dia. Assim, pode ser
percebido que em alguns momentos os sujeitos vencem as normas, para usar uma constatação
de Valerio Valeri (1994) já mencionada, não aceitando a autoridade do decurião os demais
Penitentes do Genezaré revelam a existência de prováveis tensões no grupo que são notadas
pela execução solitária dos rituais por um decurião decepcionado pela liderança questionada.
O rigor imposto pelos decuriões das irmandades estudadas pela socióloga Anna Christina
Farias de Carvalho (2011), portanto, não encontra ressonância entre os Penitentes do
Genezaré. Entretanto, outras informações podem colocar essa justificativa sob reflexão.
Primeiro dia do evento Patativa do Assaré em Arte e Cultura, festival realizado
com regularidade desde o ano de 2005 e que homenageia no seu título e programação o poeta
assareense Antônio Gonçalves da Silva36. A Escola de Educação Infantil e Ensino
Fundamental Maria Izabel na sede do município, ainda no início da tarde, começa a receber
grupos culturais de diversos municípios do Ceará, com ênfase para aqueles localizados no
Cariri cearense. Grupos de reisados, caretas, maneiro-pau, quadrilhas juninas, grupos de

36
Nascido no Sítio Serra de Santana localizada a 18 km da sede do município de Assaré aos 05 de março de
1909 e falecido aos 08 de julho de 2002 na sua cidade natal. O epíteto Patativa foi uma outorga conferida a
Antônio pelo cratense José Carvalho de Brito em alusão a um pássaro típico do Cariri cearense de canto forte e
melódico, “do Assaré” diferenciava aquele Patativa de outros tantos poetas com o mesmo apelido que surgiram
naqueles dias em distintos pontos dos sertões nordestinos. Além de inúmeros cordéis, Patativa do Assaré tem
publicado os seguintes livros: Inspiração Nordestina (1956); Inspiração Nordestina: Cantos do Patativa (1967);
Cante Lá que Eu Canto Cá (1978); Ispinho e Fulô (1988); Cordéis (1993); Aqui Tem Coisa (1994); Biblioteca
de Cordel: Patativa do Assaré (2000). Entre tantas parcerias desenvolvidas pelo poeta, merece destaque seus
diálogos poéticos com Geraldo Gonçalves de Alencar, ainda em plena produtividade, presentes nos livros
Balceiro. Patativa e Outros Poetas de Assaré (1991), Balceiro 2. Patativa e outros poetas do Assaré (2001) e Ao
pé da mesa (2001). Suas poesias foram musicadas por artistas locais (Cícero do Assaré e Gildário do Assaré,
como exemplo) e por cantores e compositores cujas carreiras artísticas possuem maior abrangência, podendo
citar Luiz Gonzaga e Raimundo Fagner. Sua vida e obra receberam reconhecimento público nacionalmente e
inúmeros foram os prêmios por ele recebidos, merecendo destaque os títulos de Doutor Honoris Causa
(Universidade Regional do Cariri – URCA, 1989; Universidade Estadual do Ceará – Uece, 1999; Universidade
Federal do Ceará – UFC, 1999; Universidade Tiradentes – Sergipe, 2000), o prêmio na categoria Culturas
Populares ofertado pelo Ministério da Cultura (MinC) e, finalmente, o ano 2009 (centenário do seu nascimento)
marcou a promulgação da Lei nº 12.132 de 17 de dezembro, publicada no Diário Oficial da União (D.O.U.) do
dia 18 de dezembro (Seção 01, pág. 01) estabelecendo aquele ano como o Ano Nacional Patativa do Assaré.
Vários são os interesses despertados ao longo das últimas décadas de distintos pesquisadores sobre sua trajetória
de vida e produção poética, dentre os quais destaco Gilmar de Carvalho (Universidade Federal do Ceará – UFC),
Raymond Cantel da Universidade de Sorbonne (1914-1986), Luiz Tadeu Feitosa (Universidade Federal do Ceará
– UFC) e, mais recentemente, Rafael Hofmeister de Aguiar (Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS) (CARVALHO, 2002; 2008; 2009; 2011. FEITOSA, 2001; 2003. AGUIAR, 2013).
104

capoeiristas, danças afro-brasileiras, bandas de músicas municipais, bandas cabaçais,


representantes dos projetos culturais patrocinados pelo poder público municipal são
organizados em um cortejo que desfila pelas principais ruas da cidade até ao local onde
encontra-se montado o palco principal do evento. À frente do desfile, os Mestres dos Saberes
e Fazeres da Cultura Popular Assarense, homenageados a cada ano pelos “relevantes
serviços prestados à cultura do município”, e algumas autoridades políticas municipais e do
Ceará. Entre tantos sons, cores e performances distintas, os Penitentes do Genezaré e outras
irmandades semelhantes de municípios cearenses entoam seus benditos e realizam uma
procissão diferente daquelas com as quais estão mais habituados. O cortejo que inaugura
anualmente o Festival é sempre acompanhado por parte significativa da população local que
observa atentamente o desfile das calçadas da cidade.
Chegando à praça pública no início da noite, os grupos que participam do cortejo
fazem suas apresentações para os presentes que aguardam a chegada do desfile. Entre uma
apresentação de reisado, uma roda de capoeira e performances de bandas de músicas com seus
instrumentos de sopro e percussivos, os Penitentes sobem ao palco principal e entoam alguns
benditos para o público bastante eclético presente naqueles instantes. Fazendo uso de
aparelhagem sonora semelhante àquela que será utilizada nas horas seguintes daquela noite
por grupos musicais responsáveis pela “grande festa popular” – leia-se, principalmente bandas
do gênero musical denominado “forró eletrônico” – anunciada pelo jornal os Penitentes do
Genezaré levam seus benditos a espaços há algumas décadas impensáveis para irmandades
semelhantes.
Tanto o festival Patativa do Assaré em Arte e Cultura quanto a ação de
reconhecimento Mestres dos Saberes e Fazeres da Cultura Popular Assareense, título
outorgado pelo governo municipal, ainda que sem nenhuma obrigação de repasses
financeiros, a sujeitos de ambos os sexos “pelos relevantes serviços prestados à cultura local”,
sugerem que o município de Assaré pratica modelos de políticas culturais semelhantes
àqueles adotados pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará bem como pelo Ministério da
Cultura. Para a historiadora Patrícia Bezerra (2010) esses diálogos entre as políticas públicas
culturais contemporâneas acontecem em círculos ainda mais amplos .
De fato, o programa de valorização cultural Tesouros humanos vivos,
desenvolvido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) nos anos 1990, pode ter inspirado as políticas públicas culturais do Ceará no
período 2003-2005, quando esteve à frente da Secretaria de Estado da Cultura a gestora
Cláudia Leitão. Assim, para Patrícia Bezerra (2010, p. 132):
105

Tendo como base um contexto de redefinições em termos nacionais, o


Estado do Ceará foi pioneiro no processo de criação de uma política pública voltada
especificamente para a “valorização” de determinados indivíduos, considerados
então detentores de conhecimentos e práticas imprescindíveis para continuidade
histórica da cultura cearense. Divididos geograficamente entre as diversas regiões do
Estado, tais sujeitos se inseriam genericamente num contexto de diversidade de
saberes, fazeres e representações que iam desde práticas religiosas como a
penitência, até expressões mais “coloridas e profanas” como o reisado de congo, por
exemplo (Grifo meu).

Entre os Tesouros Vivos da Cultura Cearense foi escolhido no ano de 2004 o


decurião dos penitentes da Irmandade da Cruz do Sítio Cabeceiras, município de Barbalha,
Joaquim Mulato de Souza, fazendo jus a uma pensão vitalícia ofertada pelo Governo do
Estado do Ceará no valor de um salário mínimo por mês. Após a sua morte em 2009, um
segundo penitente, o senhor Severino Antônio Uchoa, também da Irmandade da Cruz foi
agraciado com o mesmo título e benefícios37.
Portanto, as políticas culturais do município de Assaré possuem visíveis
semelhanças com as políticas praticadas pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará ou
mesmo do Ministério da Cultura.
O alinhamento das políticas públicas municipais de cultura com os modelos
sugeridos pelas instâncias estaduais e federais, portanto, pode ser evidenciado através de
projetos e ações com um núcleo de parâmetros comuns.
Logicamente, os municípios carentes de maiores recursos para a execução de
projetos culturais buscam patrocínios da Secretaria de Estado da Cultura, do Ministério da
Cultura e de outros órgãos dos governos, Ministérios ou Secretarias, com as quais
desenvolvem parcerias. Não raro, empresas e organizações civis não-governamentais ou
privadas também encabeçam a lista de parceiros das prefeituras municipais. Contudo, essas
parcerias levam os municípios a cumprirem uma série de regras contidas nos contratos de
patrocínio, dentre as quais podem ser citadas: a divulgação da marca dos patrocinadores em
todas as peças publicitárias relacionadas ao evento ou ação; Contrapartida financeira dos
municípios beneficiados com os recursos; Adequação das estruturas do evento a determinados
padrões técnicos exigidos pelos patrocinadores; Contratação de artistas vinculados aos
patrocinadores etc. Portanto, nesse sentido, uma complexa teia de diálogos, que por si só
merece uma análise com maior profundidade, é estabelecida na relação entre municípios
candidatos aos benefícios das parcerias e patrocínios e seus pretensos patrocinadores.
37
Em 2006, o assareense Joaquim Pereira Lima (Joaquim de Cota – 1924-2012), artesão em couro, e em 2009, o
seu conterrâneo Francisco Paes de Castro (1925 - ), Chico Paes, compositor e instrumentista em harmônica de
oito baixos, foram também agraciados com o prêmio Tesouros Vivos da Cultura Cearense garantindo o mesmo
direito usufruído pelos mestres penitentes barbalhenses outorgados pelo governo estadual.
106

Nesse cenário, com Assaré não poderia ser diferente. Interessa aqui perceber que
os projetos e ações culturais desenvolvidos pelo poder público municipal afetam diretamente
os indivíduos e grupos que desenvolvem atividades culturais dentro dos limites territoriais do
município. Assim, os Penitentes que “acham ruim se apresentar de dia” concedem que na
abertura oficial do festival Patativa do Assaré em Arte e Cultura estejam presentes no cortejo
que ainda sob a luz do sol começa seus movimentos pelas ruas da cidade. A partir dessas
constatações algumas questões devem ser apontadas.
Seria precipitado, logo indevido, julgar que os Penitentes sentem-se simplesmente
coagidos para garantir sua participação nos eventos organizados pela administração pública
municipal. A meu ver, de acordo com as falas dos Penitentes do Genezaré, outras perspectivas
podem ser vislumbradas conforme aponto adiante.
De qualquer forma, trata-se de elaborações mnemônicas ainda em construção nas
quais a trajetória dos Penitentes vincula-se a outros projetos memoriais contemporâneos e
conforme Jöel Candau (2011, p. 149), “A atividade de memória que não se inscreve em um
projeto de presente não tem carga identitária, e, com mais frequência, equivale a nada
recordar”.
Em primeiro lugar, o decurião Deca Pinheiro indica que a participação dos
Penitentes no evento pode garantir a visibilidade que a Irmandade por ele liderada carece para
dar continuidade às suas atividades e adquirir legitimidade na comunidade do Genezaré e no
município em que atua. Ele analisa as questões postas imediatamente acima da seguinte
maneira:

A irmandade hoje também participa das Festa de Patativa. Já tá com treis ano que
nóis estamo participando dela. Porque é que nem eu falei com o padre Vileci [à
época pároco em Assaré]... ele começou um sermão e falou que a irmandade não
pode andar se apresentado assim em mei de praça. Nesse assunto que ele tocou eu
achei que tocava a nóis também. Mas aí eu disse a ele que nóis tava entrosado dentro
da cultura, porque quem descobriro os penitente foi a cultura, aí entonce prá nóis
aumentar o nosso nome, entonce quer dizer que nóis fomo obrigado a entrar dentro
da cultura também. Tamo dentro da cultura. É uma irmandade de evangelização, é
visto, mas somo da cultura também. Aí ele achou bom... bem feito. A irmandade...
nossa devoção é uma e a cultura é ôtra. Uma nóis faiz lá na igreja e outra nóis faiz lá
no mei do tempo, lá na cultura. Acho que não tem diferença de uma prá ôtra de
mudança de devoção. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76
anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio
Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em janeiro de 2012).

Dessa forma, para Deca Pinheiro, distintos espaços sugerem a adequação das
performances dos Penitentes. Trata-se, de fato, de uma escolha de posturas, expressões,
movimentos, entonações, mediante os diálogos estabelecidos entre os Penitentes e os
107

promotores dos eventos. E, com isso, mais uma vez os rituais dos Penitentes do Genezaré
afirmam a sua perspectiva estética, escolhas cujos resultados são agradáveis aos sentidos dos
praticantes.
Em um dos vários momentos na trajetória dos Penitentes em Genezaré nos quais a
igreja católica local manteve distância em relação às irmandades, o então Secretário
Municipal de Educação, Cultura, Turismo e Desporto38, o Sr. Francisco Eugênio Costa
Oliveira, tomou conhecimento da existência de penitentes no município e decidiu propor
aproximações entre a gestão pública municipal e a única irmandade que restava das três
anteriormente presentes no Infincado. A partir daquele momento ficou acordado que o
município estabeleceria tentativas de reconstrução da trajetória dos penitentes naquela parte
do município, o governo municipal passou a financiar as indumentárias do grupo e dois dos
seus membros (Deca Pinheiro e posteriormente Joaquim Camilo) foram contemplados com o
título de Mestres dos Saberes e Fazeres da Cultura Popular Assareense. A gestão pública
municipal da cultura a partir do início dos anos 2000 começou a requisitar a presença dos
Penitentes em seus eventos regulares, sendo que o de maior visibilidade é o Patativa do
Assaré em Arte e Cultura já referido.
Para Deca Pinheiro e alguns dos seus Penitentes, esse “reconhecimento” e
visibilidade experimentados pelo grupo são interpretados como uma “descoberta” da
Irmandade que permanecia com o campo de atuação restrito a uma parte específica da zona
rural do município, raramente saíam das imediações do Genezaré. A Irmandade, portanto,
sugere que a permanência das atividades do grupo poderia ganhar um novo impulso a partir
da relação dos Penitentes com o poder público municipal principalmente atendendo aos
convites para participações eventuais nas atividades que a “cultura” promovia. Com isso,
surgem novas formas de diálogo entre a tradição e as exigências do presente, entre antigos e
novos saberes, entre as sensibilidades sedimentadas na trajetória dos Penitentes e aquelas que
surgem a partir das relações que o grupo mantém com outros níveis de organização da vida
social.
Aquela resposta dada ao padre Vileci Vidal, a partir da sua interpelação, indica
que a Irmandade havia aceitado os argumentos em favor da ampliação das suas atividades
para além dos limites essencialmente religiosos. Ou seja, o grupo poderia desenvolver
atividades segundo as exigências da gestão pública municipal sem perder seu “caráter

38
Criada pela Lei Complementar nº. 003/2005. A Secretaria Municipal da Cultura, Turismo, Desporto, Lazer e
Recreação foi instituída apenas no ano de 2006 através da Lei Municipal 015/2006, até aquele momento existia
apenas uma Divisão de Cultura, Turismo e Desporto ligada à Secretaria Municipal da Educação.
108

evangelizador”. A Irmandade, para Deca Pinheiro, assumindo essa nova função não teria sua
fé comprometida, afinal o que se fazia na igreja, para ele, não era o mesmo mostrado em
praça pública. Portanto, a atuação dos Penitentes em novos espaços não anula a eficácia dos
seus rituais.
A participação dos Penitentes do Genezaré nos eventos organizados pelo poder
público municipal, é preciso que se diga, não significa que todas as exigências dos
organizadores serão aceitas. Em algumas negociações, a Irmandade impõe suas decisões. A
ordem dos grupos durante o cortejo de abertura do Patativa do Assaré em Arte e Cultura, por
exemplo, não foi aceita algumas vezes pelos Penitentes, conforme narra Deca Pinheiro:

A gente ia naquele grupo. Tem o primeiro grupo, tem o segundo grupo... a gente
andava tudo um bolo, tudo misturado. Quando foi prá essa derradera, prá festa de
Patativa [Patativa do Assaré em Arte e Cultura], nóis fizemo o seguinte: eu convidei
um companheiro que é Joaquim [Camilo] que é a primeira pessoa [depois dele,
decurião], “ – Nóis vamo ficar apartado. Nóis vamo dêxar esses grupo de mateu
[referência aos caretas], de reisado, de capoeira, essas coisa nóis vamo dêxar prá
frente e nóis vamo ficar prá trás mais a banda [de música municipal Manoel de
Benta]”. Aí ficou assim. Mas que pelo comum nóis é prá ir primeiramente, na frente
encostado na procissão, mas a banda [de música Manoel de Benta do município de
Assaré] ficou lá atrás, a derradera de toda. Aí nóis prá não ficar no meio daquele
chamego – cê sabe – que o grupo de reisado, de mateu, de careta é diferente do
nosso aí eu achei que não dava certo. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em janeiro de
2012). (Grifos meus).

Ainda que um pouco contrariado por o grupo não ocupar a prioridade no cortejo,
Deca Pinheiro impõe sua vontade de não ter a Irmandade na proximidade desconfortável dos
grupos que ele considera “diferentes” dos Penitentes. Portanto, a Irmandade abandona o lugar
pré-determinado pela organização do evento e vai se refugiar nos últimos lugares do cortejo,
próximo das bandas de música com seus uniformes mais sóbrios e movimentos menos largos
se comparados, por exemplo, às performances dos grupos de reisado.
Pelo exposto, o consentimento dos Penitentes do Genezaré em fazer parte dos
diversos grupos que integram os eventos culturais organizados pelo poder público municipal
não sugere, em nenhum momento, posturas passivas em troca de novos espaços para sua
execução dos seus rituais. A presença da Irmandade nas programações referidas tem revelado
a indisposição do grupo para aceitar todas as normas impostas pela organização, tema
retomado no último capítulo deste trabalho.
Último dia do Patativa do Assaré em Arte e Cultura. O ano era 2010. Cinco de
março, data anunciada pelo jornal do Diário do Nordeste na qual os Penitentes do Genezaré
realizam a visita ao túmulo do poeta morto em 2002 e lá rezam o “Terço das Almas”, também
109

conhecido como Terço do Repouso Eterno. De fato, o encerramento do evento dá-se com a
Missa de Ação de Graças e a programação impressa e distribuída por diversos meios
midiáticos informa a participação dos Penitentes tal qual divulgado na matéria jornalística
mencionada anteriormente.
Entretanto, os Penitentes logo descobriram que a agenda de um evento é
suscetível de inumeráveis contratempos. Algumas das atividades divulgadas e dadas como
certas de acontecer podem mesmo não serem realizadas. Dirigindo-se ao Cemitério São João
Batista no centro da cidade, qual não foi a surpresa dos Penitentes:

Nóis fomo fazê visita de cova [no túmulo de Patativa], mas chegamo lá o cemitéro
tava fechado. Aí não deu certo a gente fazê. Foi naquele dia que a gente foi lá prá
igreja de São Francisco [capela localizada na sede do município]. O cemitéro tava
fechado, aí não deu certo a gente fazê. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em janeiro de
2012).

Assim lamentou Deca Pinheiro enquanto fazia planos para o ano de 2012 que era
iniciado.
Neste ponto, deve ser dito que a participação de irmandades de penitentes do
Cariri cearense em ações culturais organizadas pelas diversas instâncias dos poderes públicos
não está restrita a atuação dos Penitentes do Genezaré. A Irmandade da Cruz, já referida,
desde os anos 1970 tem presença regular, por exemplo, na Festa do Pau da Bandeira de Santo
Antônio de Barbalha e o seu antigo decurião, o Mestre da Cultura Sr. Joaquim Mulato de
Souza desfilou em carro alegórico da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira no
carnaval da cidade do Rio de Janeiro (SOUZA, 2000; BEZERRA, 2010). Com acesso a essas
informações e pela experiência recente, assim o Sr. Luizinho Camilo classifica o atual
momento das irmandades de penitentes do Cariri cearense em geral, e a fase vivenciada pelos
penitentes do Genezaré especificamente: “Até parece que hoje a gente faiz só uma pequena
representação do que era na época do meu pai”.
Já foi mencionado que o crescimento populacional do Infincado e a emergência
do Genezaré não garantiram que todas as portas estavam abertas aos penitentes. Igualmente, a
construção e inauguração da Capela de São Francisco em Genezaré não significou que os
penitentes tivessem acesso ao seu interior de acordo com o que julgavam ser mais
conveniente. Finalmente, a sua inserção nas atividades culturais do município não indica que
todas as atividades que incluem sua participação serão igualmente cumpridas.
110

Diante do exposto ao longo deste capítulo, a dimensão estética dos rituais cujos
espaços para sua execução sugerem pode ser percebida pela permissão e/ou interdição de
alguns elementos presentes nas ações rituais dos Penitentes do Genezaré. Assim, não é
aconselhável que nos palcos, no interior dos templos católicos, em presença de crianças, o
autoflagelo seja praticado. É preciso por vezes que o autoflagelante procure um lugar ermo
para entregar-se ao sacrifício. Nesse aspecto, ganham relevância, em detrimento do
autoflagelo interditado, os benditos, mais aceitáveis por parte da assistência dos rituais e que
possuem igualmente caráter performativo.
Ainda sobre o mesmo tema, participar de cortejo ao lado de grupos ditos de
“cultura popular” na abertura do Festival Patativa do Assaré em Arte e Cultura indica a
capacidade dos Penitentes do Genezaré de estabelecer aproximações e distâncias de coletivos
considerados mais assemelhados e de outros excessivamente distintos de si. Por vezes, no
trajeto as tentativas de manter seu canto audível é inútil, ele é abafado por instrumentos
percussivos e de sopro que preenchem mais fortemente o percurso, e resta-lhes os passos
carregados de significados e re-significações pelas ruas da cidade.
Em algumas ocasiões é preciso que os Penitentes do Genezaré improvisem um
trajeto, troquem o quase certo pelo possível quando algumas portas cerram-se aos seus rituais,
saiam da segurança do espaço anteriormente mapeado (o cemitério, por exemplo) para
incerteza dos encontros (em frente a uma capela, em outro ponto da cidade, por exemplo)
distantes do que fora anunciado e planejado pela organização de um evento cuidadosamente
elaborado.
111

NO CORPO:
PERFORMANCE E SACRÍFICIO, MEMÓRIA E LIMITE AOS
RITUAIS DOS PENITENTES DO GENEZARÉ

“O corpo foi esquecido pela


história e pelos historiadores.
Ora, ele foi e continua a ser o ator
de um drama”.

(LE GOFF; TRUONG, 2011, p.15)

O corpo ocupa, de maneira geral, papel de destaque em todo e qualquer ritual.


Seus movimentos e repousos, suas expressões e os cheiros exalados, as vestimentas que o
envolve ou a nudez que o expõe, a direção do olhar ou o impacto que o corpo sofre em face de
uma interferência sonora, o prazer ou o desconforto que alguns alimentos provocam, os gestos
que indicam comemoração e sacrifício, as marcas que o corpo traz e os vestígios diversos que
o mesmo impõe ao espaço por ele construído, o clamor incontido ou o bailar desenfreado,
toques suaves ou extravagantes encontros de homens entre si, de homens com mulheres ou
delas entre si, de ambos com a indiferença ou a quentura de algum objeto, os diálogos com a
assistência, compõem exemplos de um repertório de improvável quantificação quando o tema
é o corpo entregue ao ritual. Para além dos rituais, como afirma David Le Breton (2012, p. 7),
“Antes de qualquer coisa, a existência é corporal”.
Para o mesmo autor, a humanidade declara a sua existência através de
movimentos capazes de transformar o meio por intermédio de escolhas eficazes e de
atribuições de sentido ao construído. Em outro aspecto, declarar a existência é desenvolver
relações com o ambiente através de experiências inscritas nos sentidos e pelos sentidos,
transmitir mensagens através dos corpos entregues aos rituais a fim de provocar e fortalecer
adesões às ideias comunicadas. E assim, tornar o mundo uma extensão das experiências
humanas e inserir indivíduos nos espaços sociais e culturais (LE BRETON, 2012).
Um estudo criterioso dos rituais da Irmandade de Penitentes do Genezaré exige
que se dê atenção especial ao corpo em algumas de suas dimensões fundamentais. Vários
intérpretes dos rituais de grupos autoflagelantes foram impactados pela proximidade
desconfortante com indivíduos entregues aos seus sacrifícios costumeiros. Sem contrariar os
seus lugares sociais de fala (CERTEAU, 2011), os autores posteriormente mencionados ao
112

longo deste capítulo divulgaram suas experiências e interpretações acerca do que


presenciaram e dos seus praticantes, legando ao tempo documentos de grande valor para
compreensão de visões correntes em uma determinada época sobre irmandades
autoflagelantes e suas práticas penitenciais, verdadeiras elaborações mnemônicas sobre
crenças e práticas penitenciais (BEZERRA, 2010). Apenas recentemente, alguns escritos e
opiniões produzidos entre meados do século XIX e a primeira metade do século XX puderam
ser contrabalançados por outros vieses interpretativos que colocaram as produções anteriores
sob análise. Com isso, a categoria analítica “penitente” tem sofrido considerável alargamento
desde a segunda metade do século passado, igualmente, novos grupos e os espaços por eles
frequentados nos seus ofícios religiosos coletivos, seus corpos e memórias, puderam ser
pensados como elementos que caracterizam e distinguem entre si diversas irmandades
autodenominadas “de penitentes” (CARVALHO, 2011).
Em outro sentido, dar atenção ao corpo do penitente entregue ao ritual é
encontrar-se com a sua carga performática (ZUMTHOR, 2007) e seu caráter comemorativo
(CONNERTON, 1999). Neste ponto, igualmente, as especificidades das irmandades
autoflagelantes ganham destaque e a maneira pela qual os indivíduos interpretam seus rituais
revelam como interpretações e práticas estão vinculadas ao tempo e ao espaço, assumem a sua
historicidade. Os Penitentes do Genezaré não negam essa afirmação.
Finalmente, se é no corpo e pelo corpo que as irmandades autoflagelantes
executam os seus rituais, é também por ele e nele que alguns limites são encontrados para o
pleno exercício do seu ofício nos moldes considerados idiossincráticos de cada grupo. A
senilidade ou a meninice, a doença ou a falta de autocontrole em relação aos vícios, citados
como exemplos, tornam-se obstáculos ao ingresso ou a permanência de indivíduos em
irmandades desse tipo ou exigem que rituais sejam reestruturados de acordo com as
exigências de um corpo distante daquilo que pode ser considerado o seu pleno vigor.
Diante disso, deve ser reiterado que rituais revelam a indissociabilidade do
considerado tradicional com as novas exigências, do indivíduo com o grupo por ele formado,
no jogo constante entre normas a serem obedecidas e interpretações que sugerem sujeitos com
alguma liberdade, e dos grupos com a sociedade de forma geral, em uma escalada de rejeição
de práticas e invenção do tradicional e sua consequente defesa, numa polifonia que quase
ensurdece, inebria e encanta porque inevitável.
O estudo dos rituais da Irmandade de Penitentes do Genezaré vem confirmar tal
afirmação.
113

4.1 – O CORPO DO PENITENTE ENTREGUE AO RITUAL: PERFORMANCES E


IMPRESSÕES

Neste tópico, intento destacar o caráter performático dos rituais das irmandades de
penitentes de uma maneira geral. De forma específica, voltando a atenção para os rituais dos
Penitentes do Genezaré e na centralidade do corpo nas suas execuções ganha destaque as
reações da assistência em face dos estímulos sensíveis que recebem quando presenciam
aquela Irmandade em orações, cânticos e sacrifícios.
Fazendo uso da noção de performance, o historiador e antropólogo Kélson
Chaves (2011) empreendeu estudo acerca “da experiência mágico-religiosa em terreiros de
Umbanda” da cidade de Limoeiro do Norte, no Estado do Ceará. Inspirado por Paul Zumthor
(2007), Chaves (2011, p. 34) observa que “a performance que acontece nos terreiros não
somente salta do corpo aos olhos como também incide sobre todos os sentidos de quem está
presente”. Experiência, portanto, que envolve a um só tempo corpos e sentidos de praticantes
e assistentes, todos de forma ativa, conforme também pode ser constatado durante os rituais
dos Penitentes do Genezaré.
Se, por um lado, a performance possui a conotação antropológica mencionada por
Paul Zumthor (2007) anteriormente referida, deve ser admitido que, em outro sentido, as
diversas reações sensíveis possíveis em um contexto performático são multifatoriais e estão
escritas em determinadas circunstâncias socioculturais e/ou de acordo com algumas
características dos sujeitos envolvidos em uma determinada performance – a faixa etária, por
exemplo, pode ser um dentre os referidos fatores. Assim, as reações de Freire Alemão e seus
companheiros durante a empreitada científica da Comissão Científica de Exploração das
Províncias do Norte, datada do início da segunda metade do século XIX, podem diferir
substancialmente da experiência performática vivenciada pelo médico e historiador caririense
Irineu Pinheiro na sua infância e mencionada adiante e ambas podem manter pontos
divergentes com as sensações que alguns indivíduos experienciam ao contemplar rituais de
autoflagelo de alguns dos Penitentes do Genezaré.
Sobre algumas performances de grupos autoflagelantes, os membros mais antigos
da Irmandade de Penitentes do Genezaré afirmam que as reações da assistência podem variar
dos desmaios ao horror, do medo estanque à desabalada carreira em sentido contrário ao local
onde os rituais são executados, da curiosidade ao descrédito. Assim, narrou o Sr. Luizinho
Camilo sobre um dos rituais executados pelos penitentes liderados por seu pai, o antigo
decurião Camilo Duarte:
114

Naquela época os penitente se açoitava. Tinha camarada que fazia rastro de sangue
no chão por onde andava, o sangue descia e tinha camarada que fazia rastro. Uma
veiz nóis fumo pro São Domingo, lá perto de Campos Sale [município limítrofe à
Assaré], fomo tirar um Terço lá e o povo lá num sabia não, num conhecia o que era
penitente... aí nos fomo. Aí a minha sogra faleceu e meu sogro disse que ia butar
uma grade de ferro lá no cemitéro, na cova dela. Ele comprou a grade, eu andei lá e
ele já tinha feito e eu falei com ele: “ – Olha! Pois quando o senhor for sentar essa
grade na cova dela o senhor me avise que eu chamo uma turma de penitente de lá de
nóis e papai vem com ela, com a turma de penitente, o senhor me avise o tempo”.
Ele disse: “ – Tá bom. Quando eu for levar ela (a grade) lá pro cemitéro e sentar ela
eu aviso”. Ele foi e tratou o dia de levar pra sentar lá. “ – Apôis nesse dia papai vem
com a turma de penitente pra tirar um Terço pra ela”. Aí fiquemo... nóis fomo. Aí
nóis fomo a turma e quando cheguemo lá, porque chegamo já de noite, era uma
légua da casa dele pra nossa, nóis fomo foi cedo, tudo a cavalo ninguém sabia por
onde era que ia e cheguemo lá seis hora na casa dele. Deixemo os animal tudo
amarrado e de lá fomo de pé pro cemitéro e lá os cabra se açoitaro. Agora, teve
gente lá que num teve corage de ver, teve muié que feiz foi esmorecer, desmaiar,
quando viu deu pilora... Ave Maria (risos) (Grifos meus) (Relato de Luiz de Holanda
Duarte, agricultor aposentado, 73 anos de idade, conhecido como Luizinho Camilo,
residente e domiciliado no Bairro Canto Alegre, cidade de Assaré. Entrevista
concedida em 21 de abril de 2013).

O relato do Sr. Luizinho Camilo não é o único a abordar tais tipos de reações
entre aqueles que presenciaram os rituais de autoflagelo das irmandades de penitentes que
grassaram nas terras que um dia pertenceram ao Barão de Aquiraz nem, tão pouco, os
desmaios ou a repulsa em face do encontro das lâminas cortantes com o corpo em sacrifício
parcialmente nus dos penitentes são exclusividades da assistência feminina, conforme
destacado na fala do penitente acima mencionada. Não menos significativo é o narrador fazer
questão de enfatizar uma diferença entre o tempo no qual “os penitentes se açoitava” e os dias
atuais marcados por tornaram-se cada vez mais raros os autoflagelos. O decurião Deca
Pinheiro faz questão ainda de conservar a prática não obstante os impactos que ela pode
causar em quem presencia o ritual, conforme relato que segue.
Dois de março de 2006. O jornal Diário do Nordeste anunciava que naquela data
teriam início as festividades alusivas aos noventa e sete anos de nascimento do poeta Antônio
Gonçalves da Silva – o Patativa do Assaré – na sua terra natal. A “diversificada programação”
contaria com “oficinas de teatro, cordéis, literatura popular, canto, desenho, pintura,
artesanato e gastronomia”. A matéria enfatizava ainda que “O ponto alto das comemorações
ocorrerá no dia cinco, começando às cinco horas, com alvorada festiva tocada pela banda de
música Mané de Benta”. O restante daquele dia, de acordo com a reportagem, contaria ainda
com “Café da manhã para os familiares de Patativa e convidados na residência do poeta,
missa de Ação de Graças, encontro dos grupos folclóricos, programas de rádio [...]”
115

Finalmente, “visita dos penitentes do Genezaré ao túmulo de Patativa [...]”, além de


“lançamento de livros, espetáculo e grande festa popular” (VICELMO, 2006).
Assim Deca Pinheiro relata um dos momentos de participação dos Penitentes do
Genezaré naquele evento:

O Eugênio [então Secretário de Municipal da Cultura] disse: “ – Vocêis vão agora lá


pro pé-do-palco. Quando chegar a veiz de vocêis, vocêis sobe, ai vocêis vão fazer a
representação de vocêis”. Ai nóis fizemo. Foi a primêra vez. Subimo no palco, cada
qual pegou seu microfone. Ai eu não quis. “ – Eu vou pro meu trabalho”. Aí eu fui e
falei pro Eugênio: “ – Eugênio, cê vai me dá licença prá eu fazer minha
representação. Porque a minha representação é representar o povo o que é o meu
trabalho. Porque eu não tenho uma sanfona, eu não tenho um violão, eu não tenho
uma guitarra, meu negoço é um cacho [disciplina] e trabaiá. Aí ele disse: “ – É, mais
tenha cuidado aí prá não fazer sangue e melá o tapete”. “ – Não. Eu vou fazê só um
sinalzim, poquim”. Ai de certo que os meninos começaro a cantar os bendito e eu
comecei a me cortar [autoflagelar]. Aí eu senti aquela quentura aqui na buchecha da
bunda. Aí o sangue começou a descer e começou a pingar assim no tapete. Aí ele
[Eugênio] chegou... mandou... o reporte chegou... aí terminaro o bendito, aí eu fiquei
encostado do reporte, tava entrevistando eles, aí me entrevistou. Aí ele [repórter] vei
logo prá onde eu tava e foi logo falando: “ – Sua nota é deiz”. Aí eu disse: “ –
Muito obrigado!” “ – [Repórter] Porque feiz uma representação bunita, bem feita”. “
– [Deca Pinheiro] Minha representação é essa. É mostrar o que eu sei fazer”. Aí ele
[repórter] feiz a entrevista, descemo lá da escada prá baxo, o povo queria me levar
logo pro hospital, prá fazê logo um curativo [risos]. Aí eu disse: “ – Não, Eugênio.
Quem cura aqui é Deus. É a fé que a gente tem”. “ – [Eugênio] Nada. Mas se
amanhecer muito inflamado?”. “ – [Deca Pinheiro] Não. Inflama não. Eu tenho fé
em Deus que não inflama não”. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em janeiro de
2012). (Grifos meus).

Último dia do Festival, cinco de março. Palco principal do Patativa do Assaré em


Arte e Cultura montado em frente à Matriz de Nossa Senhora das Dores no centro da cidade.
Os relógios ainda não haviam marcado vinte e duas horas. Após cortejo pelas principais ruas
da cidade ao lado de outros grupos responsáveis pela abertura daquele evento, Deca Pinheiro
sobe a escada que dava acesso ao tablado das apresentações com os seus Penitentes, organiza
os seus liderados em dois semicírculos de acordo com as primeiras e segundas vozes
utilizadas na execução dos benditos. Cada um dos Penitentes recebe o seu microfone e Deca
Pinheiro recusa aquele recurso; Ele não é um artista, é um penitente e suas habilidades
performáticas são investidas em outra atividade. Dessa forma, uma tensão inicial foi
estabelecida. Era a primeira participação dos Penitentes naquele evento. Alguma desconfiança
surgiu. Poucos imaginavam o que viria na sequência. O decurião indicou que seu instrumento
era o cacho da disciplina e sua utilização ocorreria em breve. A permissão adquirida foi
apenas parcial: o tapete, provavelmente adquirido por empréstimo pela produção do evento,
não poderia ser maculado pelo sangue do Penitente. A desobediência foi imediata e o público
116

presenciou uma cena capaz de provocar preocupações, admiração e repulsa em muitos


integrantes da assistência. Era a primeira vez que a maioria dos presentes assistia a um ritual
de autoflagelo. A tensão chega ao seu ápice: para a plateia atônita, o quadro era grave e
carecia de cuidados médicos, para o Penitente crédulo, a fé em Deus dispensava o cuidado dos
homens.
Repulsa, horror e medo parecem mesmo abraçar a assistência que tem presenciado
os rituais de irmandades de penitentes ao longo do tempo, segundo os relatos dos Penitentes
do Genezaré.
É ainda Deca Pinheiro que fez questão de abordar o medo da população gerado
pelo desconhecimento que conservava em relação aos penitentes e seus rituais, chegando a
confundir irmandades com outras personagens presentes no cotidiano das Semanas Santas no
Cariri cearense: os caretas39:

O povo tinha medo quando saia os penitente porque é o seguinte: o povo de primero
tudo era assombrado assim porque tinha esse movimento de careta... cê sabe... tinha
esse movimento de careta o povo já tinha medo, os que já sabia o que era careta,
mateu – que era mateu de primero – já sabia não se incomodava, mas essa frangada
nova quando via uma turma de mateu dava trabai os pais porque eles entrava no mei
do mundo, faltava se perder. Mas depois começaro a ver os mateu, conhecer quem
era depois perdero o medo. Eu mermo dei uma carrera mei dia por dentro dum
baixio de carrapicho que dexei minha opa lá no carrapicho porque não aguentei sair
com ela. Porque os mateu de primero fazia medo a gente assim - porque sabe,
menino é bicho besta – as históra deles é diferente daquelas que vem pras Festa de
Patativa. Porque tem o reis congo, tem os careta e tem os mateu. Os careta as
mascara dele é que nem um funilzão, desse comprimento, ali é enfeitado de fita de
cima até em baxo e espéio. Todo canto tem espéio. E umas espadona na mão. Aí
quando eles via um rebanho de menino dizia: “Vamo capá!” Aí o caba pegava o
meio do mundo. Aí o povo confundia os penitente com os mateu. Aí perguntava: “ –
De onde vem esses careta?” Mas não era. As veiz quando os penitente ia tirar um
promessa passava a noite todinha andano. Nóis só andava de pé – não tinha
transporte nesse tempo – tirava tudo a pé. Por exemplo na Aratama. Na Aratama era
um povo que não sabe o que é penitente ainda. Que nem lá no Assaré tem uma muié
que morava lá na Serra de Santana... na... ali da Altaneira pra lá um pouco, quem vai
pra Bonita, naquela chapadona que tem. Era morava no Assaré e o pai dela faliceu.
Aí: “ – Deca, vamo tirar um Terço lá em casa pra papai?” “ – Vamo. Tá certo!” “ –
Lá em casa e no cemitéro”. Aí nois fumo, Cirito foi mais nóis. Levou nóis nesse
tempo. Cheguemo lá negoço de seis hora se arrenchemo na casa dela, quando deu
seis e mea mais ou meno peguemo o carro e viema cá pro cemitéro. Chegamo lá já
tava tarde... já era sete hora. Chegamo no cemitéro tava cheio de gente. Aí quando
nóis descemo do carro tudo trajado... menino, aí de um rebanho de gente nesses mei
de mato, por dento das capoeira, chega estrondava, rapaiz. Lá no cemitéro da
Altaneira. Aí o povo correro tudo. Assombrado. Achando que era uma visage. Aí foi
que dissero que era os penitente. Tiremo o Terço, se cortemo muito. Era tarde, nóis
fumo oito penitente. Tiremo cinco por corte e os treis foro cantar. Mas nois achemo
graça nessa noite. Tinha muié... Tinha dois penitente que se cortou tanto que o

39
Com suas máscaras, fantasias, chocalhos e pedidos de esmolas, os Caretas atuam desde o Domingo de Ramos
até o denominado Sábado de Aleluia, anualmente, ao longo das Semanas Santas. No último dia, realizam a
malhação do Judas, conhecida na região também como “Festa dos Caretas”, que pode contar com afluência da
população das comunidades onde são realizadas as suas festas e performances (ULISSES, 2007).
117

sangue pingava no chão. Tinha uma véia que dismaiou e a ôta pedindo, chorando pra
nóis não se cortar. Bestera! Quanto mais pedia, mais chorava, mais o cacho nóis
castigava. Porque ali é o seguinte: depois que nóis começa a se cortar pode pedi,
pode chorar, pode cair, que nossa obrigação é tirar o Terço todo se cortando. (Relato
de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido
como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré.
Entrevista concedida em janeiro de 2012).

Com seus sentidos impactados pelas performances dos penitentes caririenses em


distintos momentos da trajetória de práticas penitenciais no sul cearense, intelectuais
vinculados a projetos políticos de invenções dos espaços local e nacional imprimiram em
alguns dos seus escritos suas análises acerca dos rituais por eles presenciados e dos seus
praticantes. Destacando espaços, vestimentas, dias e horários, instrumentos de autoflagelo,
sons e odores, interdições e possibilidades, marcas, sensações e gestos presentes nos rituais
por eles presenciados, Francisco Freire Alemão (1797-1874), Irineu Pinheiro (1881-1954) e J.
de Figueiredo Filho (1904-1973) descreveram nos seus textos performances de indivíduos
autoflagelantes e não omitiram as respostas sensíveis que apresentaram diante do visto e
ouvido. Seus escritos são, portanto, documentos fundamentais para o conhecimento das
irmandades autoflagelantes caririenses e seus integrantes, na mesma medida em que revelam
análises e sensações baseadas nas performances rituais pensadas a partir do lugar social
(CERTEAU, 2011) de fala dos analistas.
Partindo da Vila de Lavras em 03 de dezembro de 1859, às quatro e meia, os
membros da Comissão Científica de Exploração das Províncias do Norte40, chegaram à
povoação de Venda em poucas horas de viagem. Na localidade pousaram por volta das oito e
meia, mediante pagamento de aluguel, em uma casa próxima da igreja. Rapidamente aquela
residência foi preenchida por muitos homens e algumas crianças não menos curiosas que os
adultos. Em meio à troca de olhares atentos, palavras em forma de perguntas e respostas
cruzavam a sala para atender as necessidades dos nativos e cientistas. Era comum aos
moradores das vilas e povoações visitadas apresentarem seus problemas de saúde aos
estrangeiros recebendo o atendimento ansiado. Em alguns casos, era possível que o socorro
fosse prestado nas residências dos que sofriam. Naquele dia, entretanto, aqueles homens a
serviço da ciência e de um projeto político nacionalista muito provavelmente não
imaginassem que depois da meia-noite, madrugada de sábado para o domingo, presenciariam

40
Acerca da trajetória da Comissão Científica de Exploração, nomeada em outros pontos deste trabalho,
simplesmente Comissão, foram consultados a dissertação de Mestrado em História de Paulo César dos Santos
(2011) e um artigo da historiadora Francisca Hisllya Bandeira Cavalcante (2011) além dos Diários de Viagem de
Francisco Freire Alemão (2006; 2007) que compõem o corpo de fontes da pesquisa cujos resultados ora seguem.
118

um espetáculo digno de registro nos diários de viagem de Francisco Freire Alemão, o


presidente daquela Comissão, que inspiram parte desta narrativa (ALEMÃO, 2006).
Se há não muitos minutos atrás, membros da Comissão identificavam de forma
intermitente alguns dos sons produzidos pelos penitentes, aquela madrugada ímpar da
primeira semana de dezembro de 1859 ainda reservava experiências que talvez evitassem,
mesmo que excitados pela curiosidade.
Não seria preciso que eles, os cientistas, penetrassem no espaço sagrado da igreja
anteriormente identificado para ter diante de si os penitentes executando parte significativa
dos seus rituais. Um dos flagelantes estava agora às suas portas, clamando por esmolas e
padre-nossos em meio aos benditos incessantes. De acordo com Freire Alemão,

Levantaram e saíram a vê-lo e darem-lhe alguma esmola o Lagos, o


Reis e Manoel. O quadro era medonho no escuro da noite. Viram um homem pardo,
de constituição atlética, nu, tendo só a ceroula e esta arregaçada até o alto das coxas,
com uma grande pedra na cabeça e na mão um tijolo com que batia nos peitos com
tanta força, que a mim, que estava na minha rede, parecia que batia no chão e ao
mesmo tempo continuava suas lamentações medonhas, às vezes acompanhadas de
grande pranto. Deram-lhe a esmola e fizeram algumas questões a que respondia; mas
se perguntavam quem era, dizia: “Sou um pobre penitente”.
Havia já se disciplinado muito e clamava que já não podiam com a
disciplina (ALEMÃO, 2006, p. 218).

Não há informações no relato até aqui explorado sobre as horas seguintes antes do
raiar do sol. Talvez também jamais se conheça as perguntas elaboradas e as respostas
ofertadas naquele diálogo entre os curiosos cientistas e “um pobre penitente” caririense.
Perdas são sempre inevitáveis nos relatos.
Contudo, sob a luz da manhã fazia-se urgente para aqueles cientistas adentrar ao
templo de onde ouviram os primeiros sons que, inclementes, tiram-lhes o sono na noite
anterior. Manchas de sangue coloriam irregularmente as paredes da igreja ainda sem teto,
porque em construção, e no chão algumas poças não haviam sido absorvidas pela terra do
espaço sagrado.
Os rituais dos penitentes conforme descritos eram executados no interior do
templo ou pelas ruas, chegando a uma aproximação razoável das residências. Os flagelantes
podiam usar para açoitar seus corpos tanto disciplinas, como outros instrumentos
contundentes ou cortantes – acima aparece referência a tijolos e pedras. Se na Vila de Lavras
usavam casacos ou lençóis para cobrir os corpos seminus, na povoação de Venda as ceroulas
erguidas até as coxas puderam ser notadas.
119

O primeiro registro de Freire Alemão sobre o tema, datado de 25 de novembro de


1859, indica os rituais sendo executados em uma sexta-feira, mas ocorre também no seu texto
que eles poderiam ser realizados aos sábados, tal é o caso do dia 03 dezembro do mês ano,
conforme mencionado. Mais invariantes, permanecem os cânticos e os sacrifícios dos corpos
parcialmente desnudados para os rituais, deixando marcas visíveis no espaço e ampliando
consideravelmente o número de atingidos pela cena, tornando mais abrangente a experiência
daqueles instantes.
O relato de 03 de dezembro daquele ano ocupa mais espaço no diário de Freire
Alemão. Retomo agora a transcrição das anotações daquela data apenas parcialmente citadas
acima:
Este modo de penitência foi aqui introduzido, creio que há dois ou três
anos por um padre Agostinho, fanático religioso que o deixamos na capital. Quando
ele pregou por estes sertões, se exaltou de tal modo o sentimento religioso do povo,
que não se via senão penitência por toda a parte: nos templos, nas casas, pelos
matos; parece que algumas mulheres morreram em conseqüência da abstinência e
dos jejuns. Os penitentes reuniam-se nas praças (não cabiam nas igrejas), aí se
disciplinavam horrivelmente. Faziam procissões rezando e disciplinando-se
(ALEMÂO, 2006, p. 218-219).

A interpretação de Freire Alemão sobre os penitentes e suas práticas tem


continuidade ainda afirmando que

Muitos escarnecem dessa gente e os têm por facínoras, hipócritas,


ladrões etc. etc. Asseguram que na noite de penitência há sempre algum roubo de
cabras e galinhas etc. etc, que voltando da igreja vão para a casa de suas amásias,
que lhes lavam os cortes etc. etc.
É isso possível e creio que muitos são levados a isso por remorsos de
grandes crimes; mas é também possível que a exaltação e fanatismo religioso
imperem sobre muitos; seja como for o negócio não deixa de ser muito grave
(ALEMÂO, 2006, p. 219-220) (Grifos meus).

Portanto, os Diários do presidente daquela Comissão, registram encontros,


sensações e pensamentos do seu autor acerca dos penitentes do Cariri cearense em meados do
século XIX. Os sentimentos ou sensações vão do religioso ao horror e as estes foi acrescido
“mais horror ainda” quando um dos penitentes estava à sua porta – a distância sempre
existente era naquele instante demasiado pequena e desconfortável. Suas análises
classificatórias incluem os flagelantes entre os representantes de uma religiosidade à beira do
irracional (“são fanáticos”) e sem rigidez nos valores morais, afinal é possível que as muitas
vozes que “escarnecem dessa gente e os têm por facínoras, hipócritas, ladrões, etc. etc.” e
atribuem a ela intimidades com “amásias” tenham razão, segundo os seus escritos. Assim, tais
práticas só poderiam ter sido introduzidas na região (ele não está certo quanto ao tempo
120

preciso daquela recente emergência) por um líder fanático, um certo padre Agostinho. Ainda
para Freire Alemão, as práticas penitenciais eram estimuladas ou por remorsos, ou por
exacerbação indevida dos sentimentos religiosos que nele, cientista, obedecia a moderação
sugestiva da racionalidade.
São encontros mediados quase na sua totalidade pela audição. De forma explícita,
os Diários não indicam que seu autor havia mantido contato visual ou travado diálogos com
os penitentes; Ele apenas “ouvia” os cânticos, os lamentos, tentava identificar com clareza os
sons das disciplinas, nem sempre obtendo sucesso. Seus registros dependeram
consideravelmente das informações que outros membros da Comissão e das localidades
visitadas podiam fornecer.
Os contatos entre os membros da Comissão Científica de Exploração das
Províncias do Norte e penitentes do Cariri cearense, entretanto, sugerem outras dimensões. Se
nos seus relatos Freire Alemão aponta semelhanças entre a Província do Ceará e o Rio de
Janeiro (ALEMÃO, 2006, p. 84), o encontro com os penitentes é estar muito próximo com o
estranho, o in-usual. Trata-se do embate entre os recursos da Coroa a serviço do projeto de
construção da nação e as mãos vazias dos pedintes; O choque entre as sensibilidades educadas
e adequadas às exigências do processo civilizador e a exposição imoderada dos sentimentos;
O tenso diálogo entre o desejo de saber que alimenta a escrita e as respostas que se perdem no
tempo e no espaço; A oposição entre o movimento patrocinado pela ciência e a circulação
obrigatória de quem experimenta os interditos; Disputas entre a lógica da mão hábil à pena e
aquelas experientes no manuseio das disciplinas; A manutenção da distância entre o corpo
abandonado à rede de dormir e aquele entregue à exaustão dos sacrifícios noturnos – este
último seminu, parcialmente visível e sempre dizível.
Avanço abrupto no tempo e o Cariri cearense e os seus penitentes ainda estão sob
observação. “Na sala de visitas, cujas luzes se haviam apagado, alguns dos presentes
procuravam ver por entre as fasquias das rótulas o préstito que passava na rua cheia do tinir
dos ferros das disciplinas e do clamor angustioso dos devotos” (PINHEIRO, 2010a, p. 230).
O historiador do Cariri e caririense Irineu Pinheiro (1881-1954) narra no texto
parcialmente transcrito acima de O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes, cuja
primeira edição data de 1950, um encontro que manteve na sua infância com uma procissão
de penitentes que desfilava suas angústias e disciplinas nas ruas da cidade do Crato.
O homem que escreveu suas memórias acerca das suas sensações infantis diante
de uma procissão de penitentes nas ruas da sua cidade natal era integrante de um grupo que
re-inventou o Cariri em meados do século passado (CORTEZ, 2000). Era um intelectual que
121

manuseava vários recursos pertencentes ao universo daqueles que dominam a escrita. Esse era
o seu lugar social.
Irineu Pinheiro informa em um dos seus escritos citados preliminarmente que
“Por me ter referido a procissão de penitentes, mui comuns antigamente no sul do Estado,
relembro uma a que assisti no Crato, de noite, dentro de casa, as rótulas fechadas, um frio de
terror a coar-me a alma de menino”. Algumas horas depois da procissão, “No dia imediato
viam-se grossos pingos de sangue nas lágeas das calçadas, no patamar, no piso e nas paredes
da Matriz. Em uma dessas paredes desenhava-se, nitidamente, a mancha vermelha das costas
de um dos flagelados” (PINHEIRO, 2010a, p. 230).
O que significava para ele “assistir” aquela procissão? Ouvir os clamores
angustiados dos penitentes? Identificar o tinir das disciplinas? Ver com alguns adultos por
entre “as fasquias das rótulas”? Não é possível para mim através do seu texto responder a
essas questões. Da mesma forma que é difícil atribuir significado único ao “assisti” por ele
proferido, torna-se complicado não ponderar mais de uma possibilidade quando Irineu
Pinheiro afirma: “viam-se”. Uma coisa certa: para quem costuma registrar nos seus escritos
“vi”, “li”, “ouvi”, “conversei”, “tive nas mãos” sempre de forma enfática, “viam-se” ao invés
de “vi” justifica alguma dificuldade de interpretação.
Ouvidos certamente, vistos talvez, aqueles penitentes executando seus rituais nas
escuras ruas do Crato inventavam espacialidades. As sólidas paredes não conseguiam deter os
sons e o que era externo estabelecia insegurança para quem declarava a casa ambiente
inviolável. Não é preciso que os olhos vissem para que a alma sentisse terror. O corpo
também sofria aquela experiência, o alargamento do espaço que a procissão dos penitentes
provocava. A alma e o corpo do dicotômico, Dr. Irineu Pinheiro, responderam, portanto, à
fluidez das fronteiras pelo caráter performático daquele ritual.
Mas, afinal o que faz em meio aos elementos escolhidos em prol da “valorização
do Cariri”, objetivo dos escritos daqueles especialistas, a presença aterrorizante dos
penitentes? Como relatar a persistente presença do “atraso” no seio da modernidade? Há
solução para essa aporia? É preciso justificá-la. Da história vem a resposta.
O historiador Irineu Pinheiro afirmara que “Sempre houve no Cariri, inda hoje
existem em alguns municípios, companhias de penitentes, que se fustigam com disciplinas de
ferro, às horas mortas da noite”. Contudo, a ocorrência de irmandades de penitentes no Cariri
cearense não é emblema de uma exclusividade negativa visto ser “Muito longínquo, no Brasil,
o hábito dos homens se disciplinarem por penitência” (PINHEIRO, 2010a, p. 230). O Cariri,
portanto, não é o único que sofria o horror daquela presença, o fardo daquelas performances.
122

A temporalidade por ele adotada indica que a modernidade tratava aos poucos de
extirpar daquele presente aqueles indivíduos, seus rituais e performances: o “antigamente” das
“mui comuns procissões de penitentes do sul do Estado” estava sendo superado “pela
presença atual de companhia de penitentes apenas em alguns municípios”.
Dessa forma, se a presença de irmandades autoflagelantes não tornava o Cariri um
lugar qualitativamente inferior aos demais, ainda era possível afirmar que sua filiação ao
moderno podia ser comprovada pela superação das antigas formas de vivenciar a
religiosidade. Em outras palavras, para Irineu Pinheiro, os penitentes estavam em vias de
extinção dentro dos limites geográficos do Cariri cearense.
Em O folclore no Cariri (1960), J. de Figueiredo Filho, outro “especialista da
produção cultural” (CORTEZ, 2000), contemporâneo de Irineu Pinheiro, afirma “Depois de
passarmos revista em atraente motivo folclórico [Dança do pau-de-fita], dos mais bonitos, por
sua variedade, com jovens a dançarem, fitas de côres e orquestras, iremos entrar em terreno
bem sinistro”. O tema abordado por ele na sequência “Só o nome faz arrepiar os cabelos da
gente” (sic). Contudo, naqueles dias “graças a Deus, estão praticamente extinto do panorama
caririense”. Ele falava dos penitentes, “... fruto do falso misticismo, exacerbado por religião
mal compreendida. Em Crato mesmo, cabeça pensante da região, já medrou irmandade de
penitentes”, porém, ele continua, “Presentemente, êsses castigadores de si mesmo, por
motivos de misticismo exagerado, refugiam-se em Jardim e tendem a desaparecer”
(FIGUEIREDO FILHO, 1960, p. 94).
Em Figueiredo Filho (1960), portanto, havia oposição indiscutível entre as cores e
sons, a juventude e a dança, presentes no pau-de-fita e o aspecto “sinistro e horripilante” dos
penitentes em seus rituais, tratando-se, portanto, de performances distintas e de formas
variadas de interpretações de tais performances. Os penitentes, conforme sua visão, eram de
todo ignorantes (não compreendiam os verdadeiros princípios religiosos) e incapazes de
controlar seus sentimentos (neles tudo era exacerbação e exagero). A sentença decretada pelos
“especialistas da produção cultural”, responsáveis pela (re)invenção do Cariri, nesse caso, só
poderia ser uma: os penitentes são refugiados do passado naqueles dias e lugares, seu
desaparecimento é uma tendência e, por isso, Deus deveria ser louvado. A modernidade e o
Cariri não mais suportavam aquela presença, aqueles “castigadores de si” experimentavam os
limites de ambos, tempo e espaço. Jardim (última fronteira caririense) era também seu último
estágio antes do desaparecimento completo.
Posto assim, a sentença de extinção proferida contra os penitentes por aqueles
“especialistas da produção cultural”, ecoa as palavras de Freire Alemão (2006. p. 219) ditas
123

pouco mais, pouco menos de um século atrásantes quando afirmava já em 1859 que em
alguns pontos do Cariri a penitência já havia “acalmado muito” e em outros “cessado de
todo”.
Se em nenhuma parte dos seus escritos os intelectuais cratenses falam da presença
de irmandades autoflagelantes no município de Barbalha, como bem destacou Patrícia
Bezerra (2010), também não há nenhuma referência nos seus textos a tais presenças nem em
Lavras da Mangabeira, nem em Assaré, municípios que trazem na sua trajetória as marcas dos
rituais dos penitentes. Igualmente, as décadas seguintes não confirmaram a sentença de
extinção proferida por aqueles intelectuais e, dessa forma, novos olhares sobre as irmandades
de penitentes do Cariri cearense surgiram e grupos autoflagelantes até recentemente
conhecidos apenas em reduzidos espaços geográficos adquiriram visibilidade em círculos
mais amplos.
Entretanto e em oposição ao horror, medo e repulsa, não deve ser descartado ainda
que existam pessoas que vejam beleza nos rituais dos penitentes, nos benditos que a muitos
sugerem melancolia, no sangue a escorrer pelos corpos e roupas até atingir o chão deixando
sua marca que não se apaga facilmente, como bem afirma o Penitente, desde os quinze anos
de idade, conhecido como Fortunato que durante muito tempo praticou os rituais de
autoflagelo, muito embora tenha abdicado de tal prática há alguns anos. Para ele, o desejo de
ingresso na irmandade de penitentes liderado por seus familiares mais antigos passou pela
atração que as performances dos autoflagelantes provocavam em si. Sons, cheiros e cores
estimularam os seus sentidos e contribuíram para sua escolha, conforme seu relato.
Performances eficientes capazes de estimular indivíduos ingressarem em
irmandades, conforme mencionado por Fortunato. Por outro lado, Antônio de Quinco traz à
superfície dos diálogos a desconfiança que parte da assistência mantém quando presenciam o
sangue a jorrar e escorrer pelo corpo do penitente entregue ao sacrifício. Para aquele narrador,
os rituais dos penitentes expostos em transmissões televisivas, possibilidade forjada a partir
de interesses e relações contemporâneos, sugerem que os telespectadores acreditem que os
resultados daquelas performances sejam substancialmente recursos imagéticos, efeitos
especiais, não raros em produções audiovisuais. Dessa forma, pode ser sugerido que existe
uma relação entre as formas de contato da assistência com os rituais dos penitentes e as
sensações e interpretações divulgadas sobre as práticas penitenciais e seus praticantes.
Adjetivados de acordo com suas performances e em consonância com os lugares
sociais de homens letrados – e por homens letrados – filiados a projetos políticos de invenção
de espacialidades regionais e nacionais através dos seus discursos, restava a tais sujeitos e
124

suas práticas autoflagelantes uma definição-síntese com fundamentos científicos e, talvez,


capaz de referenciar reflexões sobre o Ceará e sua religiosidade não necessariamente
empreendidas por cearenses. Com Abelardo Fernando Montenegro (1912-2010) essa carência
foi parcialmente suprida. Para esse autor, a compreensão do “misticismo cearense” não
poderia ser plena sem o claro entendimento do que seriam os penitentes.
Escrito em meados dos anos 1950, o seu História do Fanatismo Religioso no
Ceará, posteriormente incluído na obra Fanáticos e Cangaceiros (MONTENEGRO, 2011)
propõe compreender o misticismo religioso que caracterizava as populações, segundo a sua
visão, que habitavam os mais distantes rincões do país. Para ele, “As populações sertanejas
são profundamente místicas. Sentem-se insopitavelmente (sic) atraídas pelo maravilhoso, pelo
sobrenatural, por tudo aquilo que, inexplicável para elas, significa a manifestação da vontade
divina, ou disposição de potência que não é deste mundo” (MONTENEGRO, 2011, p. 127).
De forma mais específica, Montenegro (2011, p. 140) elege três tipos
fundamentais do misticismo cearense, a saber: o penitente, o beato e o fanático “que, embora
tendo um fundo comum de credulidade e destemor, se diversificam na prática”, afirmando
ainda que

O penitente é aquele que, às horas tardias da noite, se reúne a outros


junto aos cruzeiros, ao pé das cruzes das estradas, diante de capelas e à porta dos
cemitérios, e aí sob a chefia do “decurião” ou do “ajudante”, reza, canta e se flagela
com as costas desnudadas, por meio de “disciplinas”, durante certo tempo.

E, “Alguns deles ciliciavam-se de tal forma que o decurião se via forçado a


arrancar das mãos do penitente as disciplinas” (MONTENEGRO, 2011, p. 140) A
performance dos penitentes precede, portanto, no seu texto e ocupa maior destaque que a
análise sociológica e a investigação histórica que o autor afirmava propor. Apenas
pontualmente, ele faz breve referência a origem social dos penitentes (“provinham geralmente
das camadas mais baixas da população em geral, principalmente dos trabalhadores rurais”) e a
emergência histórica de tais irmandades no Ceará. O autor afirma ser o Cariri cearense
historicamente o cenário privilegiado no qual tais grupos atuavam desde meados do século
XIX sob a influência de alguns missionários sacerdotes católicos, dentre eles o padre
Agostinho Ferreira Afonso, também mencionado por Freire Alemão (2006) e o padre Manuel
Félix de Moura “notável por se ter mais de uma vez açoitado com disciplinas, no Cariri, à
frente de penitentes, ao som dos Pequei, Senhor! Misericórdia!” (PINHEIRO, 2010a, p. 229).
125

Até este momento os argumentos encaminhados sugerem que as performances dos


penitentes alimentam experiências sensíveis na assistência dos seus rituais e que tais
performances associadas aos lugares sociais daqueles que refletem sobre os penitentes e suas
práticas autoflagelantes estruturaram as definições dos intelectuais que escreveram acerca do
tema entre meados do século XIX e início da segunda metade do século XX. Em outro
sentido, a ideia foi deixar claro que tanto as reações da assistência ao presenciar os penitentes
entregues aos seus rituais podem variar no tanto no tempo, quanto no espaço, e assim a
experiência antropológica da performance pode ser destacado também o seu aspecto histórico.
Ao encerrar esse tópico, é preciso deixar claro que um estudo cuidadoso da bibliografia que
tematiza sobre os penitentes e seus rituais indica que formas de compreensão deste instigante
objeto de estudo também estão sujeitas às vicissitudes históricas e às novas possibilidades
teórico-metodológicas que as disciplinas acadêmicas dispõem.
Assim, se as caracterizações anteriores e definições foram baseadas no corpo do
penitente entregue às suas performances, outras surgiram a partir de novos procedimentos
metodológicos e de novas maneiras de compreender a religiosidade praticada por tais
irmandades. Neste sentido, o trabalho da socióloga Anna Christina Farias de Carvalho (2011)
traz contribuição significativa justamente por propor novas possibilidades definidoras em face
de conceituações que restringem a noção de “penitente” exclusivamente aos praticantes de
rituais autoflagelantes.
A autora, aproximando-se de distintas irmandades religiosas compostas por leigos
e leigas, constata que muitos dos seus membros autodenominam-se “penitentes”. Dessa forma
a socióloga afirma que,

Partindo das falas dos sujeitos que se autodenominam Penitentes,


pudemos inferir o seguinte: penitente são integrantes de Irmandades (de leigos não
oficializadas) que se penitenciam com vistas à salvação individual e coletiva,
autoinflingindo castigos corporais e/ou psicológicos (autoflagelação através de
chicotadas, dança votiva, mendicância itinerante, longas caminhadas acompanhadas
de orações e benditos, provações materiais, entre outras práticas rituais). Obedecem
a um líder espiritual (Mestre, Decurião); praticam um catolicismo devocional e são
agentes de um campo religioso que professa uma determinada visão de mundo – a
salvação pela mortificação corporal e/ou espiritual (CARVALHO, 2011, p. 14).

Através desse “alargamento” conceitual a autora insere nos seus estudos a


Irmandade da Dança de São Gonçalo (Juazeiro do Norte – CE.), a Irmandade dos Penitentes
Peregrinos Públicos – também conhecidos como “Ave de Jesus” (Juazeiro do Norte – CE.), as
Irmandades de Penitentes da Cruz (Sítio Cabeceiras – Barbalha – CE.) e Irmandade de
Penitentes do Sítio Lagoa (Barbalha – CE.). Danças sagradas, mendicância e peregrinação
126

públicas e rituais de autoflagelo, respectivamente, portanto, encontram-se representados nas


suas pesquisas. Seus procedimentos metodológicos unem a observação dos rituais a
entrevistas realizadas com os penitentes com análise de textos citados pelos entrevistados
visando atingir “as estruturas religiosas” desses grupos, tidas pela autora como “homólogas”,
o que resultou na elaboração da sua definição acima mencionada.
Finalmente, o “alargamento” conceitual o interesse pelas cosmologias das
Irmandades de Penitentes desenvolvidos por Anna Christina Farias de Carvalho (2011) não
excluem do seu texto a presença dos corpos em performances. Antes, são admitidos novos
sujeitos, novas irmandades ao conceito, cujos corpos dançam, peregrinam, impõem castigos a
si mesmo, limitam-se enfim, em prol da salvação das suas almas e daqueles por quem
intercedem. Corpos entregues aos seus rituais religiosos e que provocam na assistência
sensações e questionamentos diversos, explicações, mas nunca a indiferença como é próprio
das performances, presenças que contrariam as sentenças de extinção anteriormente
mencionadas
Estudar, portanto, os rituais da Irmandade de Penitentes do Genezaré é dedicar-se
a apenas uma das muitas formas de organização de irmandades leigas nos moldes propostos
por Anna Christina Farias de Carvalho (2011); É ter contato com tão somente algumas
práticas performáticas características de grupos de penitentes; É refletir sobre o produto
daqueles corpos e o que neles se efetiva; É entender que os Penitentes do Genezaré atribuem
características ao corpo que deve ser entregue ao sacrifício – para eles o corpo é mais que um
conjunto biológico. As páginas que seguem refletem sobre algumas das questões aqui
sugeridas. Nelas intento responder de que corpo tem se falado até o momento e como tal
corpo responde e produz as exigências do tempo e do espaço forjando a ruptura, gestando a
identidade da Irmandade de Penitentes do Genezaré.

4.2 - “PENITENTE É COISA FINA, É PESADO”: SACRIFÍCIO E MEMÓRIA NO CORPO

Sem divagações, os corpos dos membros da Irmandade de Penitentes do Genezaré


podem ser pensados a partir de alguns dos seus adjetivos e das implicações que decorrem de
tais características, sem dispensar, logicamente, as interpretações daqueles Penitentes e de
acordo com algumas reflexões de autores que sugerem percursos a esta proposta de análise.
Para ingressar e permanecer naquela Irmandade é necessário um corpo masculino que goze do
máximo de vigor físico possível, não pode ser extremamente jovem nem, tão pouco, senil ao
ponto de impedir determinadas atividades. Deve ser um corpo livre dos vícios e de excessos
127

julgados indignos pelo grupo (portanto, corpo capaz de ser controlado e autocontrolável) e,
exigência igualmente essencial, ser um corpo de um cristão católico, um corpo disposto ao
sacrifício.
Entretanto, mesmo observando tais características a Irmandade dos Penitentes do
Genezaré mantém suas idiossincrasias entre grupos semelhantes e entre os seus membros
formas de pensar e agir também não são homogêneas. Sobretudo, com o passar dos anos esse
corpo que ocupa espaço privilegiado na execução dos rituais adapta-se a novas exigências,
algumas performances são aos poucos abandonadas porque reinterpretadas e outras surgem
como demandas históricas. Com isso, a velhice que impõe obstáculo a realização de certos
rituais não implica a exclusão de um membro da Irmandade. De forma contrária, os mais
antigos Penitentes, na sua longevidade, são valorizados pela capacidade de reter e transmitir
conhecimentos tidos por essenciais à continuidade das atividades do grupo.
Permanece, portanto, a trajetória e o desejo de sacrifício inscrito no corpo e pelo
corpo do penitente cristão.
O corpo tem história, não obstante a constatação estarrecida e inquietante de
Jacques Le Goff e Nicolas Truong (2011). E o cristianismo é, de fato, uma religião na qual o
corpo ocupa centralidade. É pela “anunciação-encarnação, que Deus deu aos humanos uma
chance de salvar-se, corpo e alma” (GÉLIS, 2010, p. 19). Pelo sacrifício do próprio Deus
encarnado a história adquire um sentido e a humanidade um destino, Céu e Inferno como
únicas possibilidades eternas.
Desde os seus primórdios o cristianismo dotou o corpo que sofre ou as dores que
afligem a carne de uma conotação espiritual. Saber conviver com o desgosto que o corpo
encerra tem sido uma exigência nunca desprezada no difícil caminho de comunhão com o
Deus da encarnação. É preciso, portanto, refletir acerca dos sofrimentos do Cristo inscritos no
seu corpo entregue sem reservas pela salvação eterna da humanidade.
No campo do aparato simbólico relacionado ao corpo do Salvador, de acordo com
Jacques Gélis (2010, p. 27), desde o Medievo, “Os instrumentos da Paixão simbolizam o
percurso doloroso do Redentor e cada um deles, por sua materialidade, um momento de
aviltamento do seu corpo”. Por essa capacidade de atuar na produção de memórias acerca do
sofrimento vicário do Cristo das dores, os instrumentos da paixão começam a ser venerados e
atingem o ponto máximo do seu culto ao final do século XV e início do século seguinte. Estar
diante de representações da coroa de espinhos, dos pregos e/ou da lança é, de certa forma,
manter contato com o corpo aviltado do Salvador, com o seu sangue e sacrifício, com as suas
imensas dores e solidão. Entretanto, outras formas de devoção vinculadas ao corpo do
128

“Homem de Dores” surgem e se expandem e suas chagas, coração e sangue tornam-se objetos
de veneração e símbolos, a um só tempo, de dor e redenção, de aflição e cura para os males da
alma e também dos corpos dos cristãos. Buscava-se até mesmo sentir os seus sofrimentos
ocultos. Em outro sentido, a Igreja fortalece a centralidade do corpo de Cristo na história
através do dogma da transubstanciação. Alimentar-se do corpo divino é uma esperança que
produz a certeza da salvação (GÉLIS, 2010, p. 43).
Que graça indizível para um cristão era, além da possibilidade, de comungar do
corpo do Salvador, poder sentir na sua própria carne dores semelhantes ao padecer do seu
Senhor! Não foram poucos os que sentiram o prazer que essas virtudes proporcionavam. A
hagiografia de alguns bons cristãos encerra essa certeza; Desejava-se mesmo o “martírio
contínuo” durante toda a existência terrena (GÉLIS, 2010, p. 53).
Não são poucas as restrições alimentares, não raros os banhos em águas com
temperaturas muito baixas, comuns o uso perene dos cilícios e o dormir em condições de
desconforto ou submeter-se a poucas horas de sono, precisas as errâncias e como privilégio de
alguns eleitos e eleitas de Deus, surgem corpos que recebem inscrições divinas, os estigmas
da Paixão, ou uma doença quase sempre duradoura como sinal de eleição. Tais atitudes ou
marcas podiam vir como fruto de um desejo ardoroso ou súplica insistente do cristão, como
uma resposta divina, ou como um desígnio soberano do Deus todo-poderoso a fim de agraciar
ou admoestar seus filhos e filhas.
Alimentar-se de forma comedida e apenas do que arrecadam de esmolas durante
as Semanas Santas, como forma de comemorar o sofrimento de Jesus, foi até recentemente
uma prática recorrente entre os Penitentes do Genezaré.
Dessa forma, a trajetória do cristianismo pode ser pensada através dos corpos que
almejam assemelharem-se ao corpo do Cristo das dores, mas que mesmo assim resiste à
entrega, às exigências institucionais, cria suas formas de aproximação com o Salvador,
elabora seus mecanismos de relação com a própria carne, escolhe suas formas de
autocontrole. Portanto, trata-se de corpos que se percebem cercados de construções de
sentidos atribuídos a si. Corpos que, por vezes, tentam negar sua natureza e apoiam-se nas
elaborações culturais do seu tempo. Esses mesmos corpos convivem e creem em noções como
pecado, salvação, Céu, Inferno e Purgatório, castigo e medo, eternidade e fim do mundo, o
Cristo das dores no centro da história.
Nessa trajetória inscrita na longa duração, emergem e ganham destaque
irmandades de leigos caracterizados por formas bastante específicas de domar o próprio
corpo, de conviver com o temor da danação eterna para si e para os outros, do receio do fim
129

dos dias, da repulsa ao próprio pecado, de assemelhar-se ao corpo de Cristo, de devotar-se ao


Deus encarnado e martirizado. A princípio com o apoio institucional e posteriormente
resistindo às tentativas de controle da Igreja, irmandades de autoflagelantes desfilam seus
cânticos, dores, sentimentos e autopunição por distintos percursos e tempos desde a Europa
medieval. Em tempos de “grande mortandade” (KELLY, 2011), emergiam “crises de
autoflagelação”, com exacerbação dos sentimentos religiosos e da punições ao próprio
corpo41.
Ainda que colocado em posição ignóbil se comparados a outras formas de
autoimposições corporais ou mesmo associados a práticas sadomasoquistas e violência
anticlericais e antissemitas (LE GOFF; TRUONG, 2011), os rituais de autoflagelação e as
irmandades a eles associados nos moldes já referidos cruzaram o Atlântico e encontraram
guarida na América portuguesa sob influência de parte dos missionários católicos que
chegaram ao território hoje denominado Brasil.
Vinculados ao projeto colonial português, aqueles missionários foram
grandemente responsáveis pela emergência de um catolicismo bastante peculiar que
paulatinamente foi adequando-se às múltiplas condições e relações presentes no processo de
formação dos domínios portugueses no Novo Continente. Fala-se mesmo de um

[...] catolicismo penitencial [que] foi a transplantação européia do catolicismo


medieval tardio. Pois foi esse tipo de catolicismo que os portugueses nos trouxeram
da Europa. No entanto, é de lembrar que o aspecto “penitencial” do cristianismo
remonta às origens mesmas da igreja. Uma consciência profunda do pecado e o
temor do julgamento levavam os que traíam seu compromisso com a fé cristã a
rigorosas penitências públicas, a maneira de expressar o arrependimento tinha a
forma de rigorismo acentuado, sua religiosidade trazendo um profundo senso de
pecado, apesar de seus grandes crimes, e dentro de sua índole peculiar procurava
expressar seu arrependimento através de rigorosíssimas penitências (FRAGOSO
apud NOBRE, 2011b, p. 2).

“Consciência de pecado”, “temor do julgamento” divino, autopunições, penitência


e expressões públicas de arrependimento todos envolvidos pela exacerbação são, portanto,
algumas características do denominado “catolicismo penitencial” tão marcante na trajetória
colonial portuguesa na América. Por outro, essa forma de catolicismo não dispensa os
elementos lúdicos, “o lado do espetáculo, com ênfase no visual, foi introduzido tanto no
espaço religioso – a exuberância das procissões comemorativas dos dias-santos e dos enterros,
como no campo político” (GONÇALVES apud NOBRE, 2011b, p. 2).
41
Os eventos narrados por John Kelly (2011, p. 301-302) encontram semelhanças com cenas representadas na
narrativa cinematográfica O sétimo selo de Ingmar Bergman de 1957. A produção em questão daquele diretor
belga tem como cenário justamente a Europa acometida pela Peste Negra na qual o protagonista do filme
enfrenta em um jogo de xadrez com a morte que tantas vítimas havia feito naqueles dias.
130

Penitência e espetáculo unem-se nem sempre de forma harmoniosa na trajetória


do “catolicismo penitencial” em possessões portuguesas na América. De qualquer forma, são
marcas indeléveis do cristianismo implantando e adaptado aos domínios portugueses
americanos.
Integrando ou não irmandades, os leigos e leigas adeptos do autoflagelo, naqueles
dias conservavam a noção do pecado a corroer-lhes e pôr em risco a salvação das suas almas.
Eram tempos nos quais o corpo e o sofrimento de Jesus já haviam deixado de ser exemplos
exclusivos; Os santos e santas leigos da América portuguesa tinham como parâmetro os
santos europeus, verdadeiros mártires que gozavam do reconhecimento ofertado pela Igreja
Católica Apostólica Romana.
Missionários que adentravam aos pontos mais distantes da Colônia contribuíam,
através das suas pregações e ensinamentos, para que a hagiografia oficial fosse divulgada e,
igualmente, para acentuar a consciência individual do pecado, o temor da danação eterna e a
necessidade de práticas penitenciais. O corpo ainda era o instrumento e o obstáculo da plena
purgação do cristão. Essas são marcas das pregações dos padre Ibiapina e Cícero nos sertões
nordestinos. Mensagens que deixavam seus resultados inscritos nos corpos de muitos
daqueles ouvintes e seguidores daqueles missionários e sacerdotes.
Em meados do século XVIII penetravam no Cariri cearense Capuchinhos
italianos42 que, segundo Lígia Bellini, almejavam a “restauração da pobreza, humildade,
penitência e elevação mística, características do começo do franciscanismo, desde os
primeiros anos do século XVI”, fundando aldeamentos e pregando o fim dos tempos
(BELLINI apud NOBRE, 2011b, p. 11). Associadas às mensagens apocalípticas, as demais
ênfases do mencionado “catolicismo devocional” com destaque para os rituais executados
pela coletividade cristã.

42
Surgidos através da separação da Ordem Franciscana em Frades Menores Conventuais e Observantes no ano
de 1517, por força da Bula Ite vos do papa Leão X, os Capuchinhos optaram por um modelo Observante mais
próximo daquilo que consideravam a origem das prioridades franciscanas. Luís da Câmara Cascudo assim
caracterizou os Capuchinhos que atuaram no Brasil: “As sandálias, a barba longa, o hábito rústico, a coragem
diária, o hábito das missões sem conforto (andavam a pé e não carregados em redes por escravos como era
corrente entre outros missionários) e sem fim deram aos capuchinhos, em trezentos anos de campanha, a glória
no coração do povo” (CASCUDO apud HOORNAERT, 1990, p. 51) (grifos meus). Ao longo do século XX,
mereceu destaque nos sertões nordestinos do Brasil a atuação do Frei Damião de Bozzano (1898 – 1997) que
desembarcou no Brasil em 1931 e contribuiu para evangelização, segundo os moldes católicos, sobretudo,
através das denominadas Santas Missões que liderou ao lado de outros capuchinhos. Encontra-se em processo de
elaboração a noção de santidade do Frei, que ao lado do padre Cícero Romão Batista e do padre Ibiapina, ganha
especial atenção dos penitentes caririenses nas elaborações mnemônicas de/sobre as irmandades as quais
integram.
131

Mesmo com a construção de algumas capelas naquela região sul-cearense ao


longo do século XVIII (PINHEIRO, 2010b), a população local mantinha certa distância da
Igreja na sua oficialidade, concorrendo para a manutenção e aprofundamento dessa situação o
reduzido número de padres à disposição daquela crescente comunidade de fiéis. Nesse
cenário, as missões lideradas pelos referidos Capuchinhos ganhavam relevância e tornavam-se
eventos religiosos bastante concorridos, oportunidades quase únicas para celebração de alguns
sacramentos impostos pela Igreja aos seus membros.
Já no século XIX tornavam-se célebres na região as missões lideradas por José
Maria Pereira Ibiapina (1806-1883), ou simplesmente padre-mestre Ibiapina. À medida que
construía suas famosas Casas de Caridade, açudes, cemitérios e capelas no Cariri cearense,
sempre com a colaboração dos habitantes locais, durante os anos em que ali esteve como parte
de seu ministério nos sertões nordestinos (HOORNAERT, 2006), o padre Ibiapina não
descuidou de liderar missões que incentivavam o fervor devocional dos fiéis católicos e o
arrependimento e conversão dos pecadores sob rigorosa penitência (RIBEIRO, 2003). Não
sem razão de ser, o padre-mestre Ibiapina é citado pelos penitentes do Sítio Cabeceiras
(Barbalha-CE) como o fundador das irmandades de autoflagelantes do Cariri cearense
(BEZERRA, 2010). De acordo com as concepções daquele sacerdote, era preciso que provas
materiais da disposição interior do (re)encontro com o Salvador fossem publicamente
expostas em cerimônias nas quais a devoção particular tornava-se uma celebração coletiva,
pecados e arrependimentos ganhavam publicidade, medo e perdão eram visíveis entre os
devotos que participavam dos rituais que compunham as missões do padre-mestre Ibiapina
(NOBRE, 2011b)
O corpo, portanto, sofria as tentativas de controle institucionais sem que o mesmo
fosse preservado da autopunição e de um rígido domínio individual do cristão devoto que
almejava o reino dos céus naquele prenúncio de final dos tempos no qual o Cariri era
vitimado por uma indizível epidemia de cólera morbus entre os anos de 1855 e 1864
(ALEXANDRE, 2010).
Nesse contexto de homens e situações exemplares em potencial e de forte apelo
para que o exemplo de ambos, homens e situações, não fosse desprezado, não causa maior
espanto que muitos daqueles indivíduos com seus sonhos e discursos, práticas e percursos
venham tornar-se presença certa nas elaborações mnemônicas de e sobre as atuais irmandades
de penitentes do Cariri cearense (BEZERRA, 2010). Entretanto, é preciso que se diga, esta
memória ainda em construção não está limitada ao campo das narrativas orais dos penitentes
caririenses, ela permanece sendo escrita nos seus corpos. Pelas suas mãos e por outras tantas,
132

cada corpo torna-se espaço privilegiado de uma produção simbólica acerca do individuo e das
suas crenças, do seu grupo e das tentativas de dominação que o corpo sofre, da capacidade
corporal de resistir e de inventar em face dos interditos que o cerca, das trajetórias no tempo e
aventuras no espaço. Trajetórias de vida e memórias coletivas, rituais e crenças re-
apropriados e re-significados de acordo com a inscrição daqueles que delas fazem uso nas
exigências e relações presentes, no encontro negociado entre sugestões e resistências, entre
destituições e invenção de tradições.
De fato, a trajetória das atuais irmandades de penitentes do Cariri cearense, dentre
as quais a Irmandade de Penitentes do Genezaré pode ser contada, tem sido marcada pelo
signo da re-apropriação e re-elaboração dos elementos mencionados anteriormente. Nesse
ponto, pode-se afirmar mesmo que o “catolicismo penitencial” tantas vezes já referido dialoga
muito proximamente com a noção de “catolicismo diferenciado”, conforme elaboração de
Anna Christina Farias de Carvalho (2011). Para a autora, as irmandades de penitentes do
Cariri cearense não seguem as crenças e práticas mais ortodoxas do catolicismo, antes operam
seguidas re-apropriações dos dogmas sem negá-los na sua totalidade e efetuam re-elaborações
capazes de proporcionar um universo religioso marcado por experiências místicas entre os
devotos e os seus deuses.
Pelo exposto, as crenças e os rituais das irmandades de penitentes do Cariri
cearense possuem vínculos dinâmicos com a instituição que fornece os dogmas sobre os quais
aqueles grupos leigos atuam no processo continuo de re-apropriação e re-elaboração dos bens
simbólicos de salvação. Ainda pode ser visto que mudanças paradigmáticas na Igreja podem
exigir adaptações das irmandades de acordo com as disputas sempre presentes entre tentativas
de controle, de um lado, e resistência, do outro. O processo de romanização, nesse sentido, foi
emblemático, segundo os argumentos de Anna Christina Farias de Carvalho (2011).
De fato, o processo de Romanização (ou Ultramontanismo), segundo a professora
Edilece Souza Couto (2010, p. 73-74), foi um conjunto de ações no qual “reformas na
formação intelectual e atuação do clero” operavam na tentativa de fortalecer a supremacia
clerical sobre o laicado, a ascendência de Roma sobre o tradicionalismo. Em suma, “(1)
restaurar o prestígio da igreja e a ortodoxia da sua fé e (2) remodelar o clero tornando-o
exemplar e virtuoso [...]” (DELLA CAVA, 1976, p. 32),
Não sem altos custos, as irmandades de penitentes resistiram àquelas tentativas de
controle e ao longo do século XX experimentaram outros resultados na sua relação com a
Igreja e com o Poder Público. As irmandades de penitentes do Cariri cearense e de outras
133

partes do território nacional são reinventadas como uma tradição cultural digna de valorização
e políticas de preservação, memória ainda em gestação.
Se por um lado, as relações das irmandades de penitentes com a hierarquia
católica têm contribuído substancialmente para a fabricação das identidades de tais
associações de leigos – fórmula sociológica desenvolvida por Anna Christina Farias de
Carvalho (2011) –, em outro sentido, esses diálogos entre leigos e hierarquia são inscritos na
sinuosidade das temporalidades difusas, nas rupturas imprecisas que marcam as trajetórias. Se
as identidades das irmandades de penitentes do Cariri cearense são resultados de re-
apropriações e re-elaborações do instituído, cujo produto é a mística, as mesmas irmandades,
cada uma ao seu modo, nos domínios de Cronos reinventam as suas próprias trajetórias,
encontram os seus limites, produzem novos argumentos simbólicos, convivem com novas
exigências, estabelecem novas relações, adaptam suas práticas, ajustam as suas crenças, mas
não são apenas o novo, não recusam os seus rastros e as marcas que trazem no corpo.
Elaboram e executam seus rituais do/no encontro indissolúvel do efêmero e do tempo remoto
e ainda assim memorável, do único com as multiplicidades, do “está escrito” com o que se
oculta. E o corpo, na sua qualidade de instrumento simbólico, alimenta e resulta dessas
experiências efetivamente dinâmicas e delineadas nos/pelos constructos históricos.
Os Penitentes do Genezaré, de fato, têm revelado nos nossos muitos diálogos
experimentados nesses mais de cinco anos de profícuos contatos serem dotados de sensível
consciência da inscrição dos seus rituais no tempo e no espaço e das exigências e resistências
impostas e resolvidas pelo corpo. Em boa parte das suas narrativas, eles afirmam, reiteram e
compartilham suas impressões acerca da trajetória dos rituais penitenciais dos quais a maioria
são adeptos desde o início da sua juventude. Para eles, sem exceção, muitas coisas têm
mudado com o avançar dos anos e permanecerá em continua transformação e o corpo é
evidência e promotor dessa dinâmica.
Os mais velhos não titubeiam em afirmar que “se cortar” – a forma como eles
fazem referência ao autoflagelo – sempre foi uma “obrigação” para todo e qualquer penitente,
com exceção do decurião que zelava apenas pela organização dos rituais e instrução moral
dos seus liderados. Em alguns casos, o líder de uma irmandade poderia punir aplicando
chicotadas a um penitente que, por algum motivo, se omitia da sua “obrigação” de ao findar
dos rituais haver produzido as marcas da penitência na carne. Deca Pinheiro afirma que, ainda
nos dias presentes, “[...] o penitente voltar pra casa, depois de sua obrigação, com o cacho
limpo e sem ter um sinal no corpo é um pecado dos mais graves para um penitente”. Com
base, nessa elaboração, Deca Pinheiro, ainda que exercendo a função de decurião, é o único
134

que ainda conserva a prática do autoflagelo durante alguns dos rituais da Irmandade que
lidera. Acerca da hesitação dos outros penitentes em manter ou iniciar-se em tais práticas, os
seus argumentos variam consideravelmente de um para outro.
Entre eles existem os que durante certo tempo infligiram a si a “disciplina” e que
hoje não mais conservam essa forma de ritual e há também os mais jovens do grupo que
nunca feriram seus corpos como parte dos rituais que executam. Entre os últimos, ocorre a
atribuição de circunstâncias alheias às suas vontades como obstáculo a iniciação na prática.
Para Bacum, um dos mais novos integrantes da Irmandade, o autoflagelo ainda
não foi realizado porque nos dias atuais o ritual deixou de ser uma exigência do decurião.
Antônio de Dôra afirma que nunca “se cortou” porque “hoje os tempos são outros”, os
penitentes não sofrem mais sobre a obrigação de impor a si tão pesado castigo. Por vezes, a
pressão daqueles que organizam eventos também é mencionada como fator para que os rituais
de autoflagelo não aconteçam. Diante de câmeras televisivas, em alguns casos, as
demonstrações de como se processa o ritual de autoflagelo ocorrem apenas com algumas
chicotadas no braço, conforme presenciei, evitando-se os excessos que poderiam causar
repulsa na audiência. Quando as matérias são vinculadas por mídia escrita impressa ou virtual,
algumas imagens descrevem os penitentes com marcas de açoite e sangue. Entretanto, trata-se
de uma imagem congelada de um ritual que pode ter sido executado ou não de acordo com os
padrões pertinentes ao grupo. Não é estranho aos penitentes na atualidade realizarem algumas
performances para provocar algum efeito esperado por aqueles órgãos de imprensa que em
determinada época do ano (principalmente na Semana Santa) vão à sua procura43. Contudo,
nem sempre as recomendações daqueles que elaboram convites para a “apresentação” dos
penitentes são efetivamente aceitas.
Em páginas anteriores, foram relatadas as tensões de um momento no qual a
Secretaria Municipal da Cultura de Assaré, organizando um evento, solicitou a participação
dos Penitentes do Genezaré. A recomendação do secretário era clara: não derramar sangue
visto que poderia manchar o tapete colocado no palco para o desfile das atrações (musicais e

43
Tenho acompanhado desde o ano de 2010 as matérias do jornal Diário do Nordeste que tratam da “abertura da
Semana Santa” no município cearense de Várzea Alegre e fazem menção à Procissão do Fogaréu com
participação de irmandades de penitentes do Cariri e Centro-Sul do Ceará. Ilustrando as matérias, imagens de
penitentes com suas vestimentas e equipamentos característicos. A Procissão do Fogaréu acima referida ainda
não contou com a participação dos Penitentes do Genezaré. Em 2010, Deca Pinheiro e seus liderados
aguardaram sem sucesso pelo veículo responsável pelo transporte do grupo do Genezaré até Assaré de onde
seguiram até Várzea Alegre. Como já havia ocorrido em outras ocasiões, o veículo contratado pela Prefeitura
Municipal de Assaré não cumpriu o acordado com a contratante e, mais uma vez, as expectativas dos Penitentes
do Genezaré foram frustradas. Naquele ano pude presenciar as expressões de decepção dos membros da
Irmandade em face de não realizar o desejo de participar daquela Procissão.
135

políticas) daquela noite. A resposta também consta anteriormente. Deca Pinheiro contraria as
expectativas dos organizadores e de boa parte do público. Não foram necessários muitos
açoites para que o seu sangue descesse das suas costas parcialmente desnudadas, passasse por
suas pernas avermelhando o branco da sua vestimenta e chegasse até o tapete desprotegido e a
partir daqueles instantes maculado pelo sangue do Penitente. Em outras situações, o grupo
afasta-se do público em busca da proteção de lugares ermos e na penumbra para que seus
rituais sejam completados conforme julgam ser o mais acertado para a Irmandade. Pode
ocorrer também de apenas o decurião afastar-se e praticar o autoflagelo distante dos olhos dos
outros membros do grupo e da assistência, em um ritual que intercala momentos públicos com
a solidão das “disciplinas” a ferir o corpo entregue de Deca Pinheiro. Para ele, sua
“obrigação” não carece de público, é algo da sua devoção particular, afinal, ele é único da
Irmandade que solitariamente ainda conserva essa prática. De qualquer forma, vê-se um corpo
a resistir às tentativas de controle e a carne que torna o seu policiamento um fracasso parcial
das instituições que, sob outra ótica, quer dizer aos Penitentes como seus rituais devem ser
executados, dar-lhes outra direção, imprimir-lhes novos sentidos que, ao menos, inicialmente
são rejeitados.
Os mais experientes nas práticas penitenciais sugerem que a reticência dos mais
novos diante da possibilidade de praticar o autoflagelo flutua entre as mudanças nos
significados atribuídos às irmandades na atualidade ou, mais simplesmente, a “falta de
coragem” dos atuais penitentes. As suas análises propõem uma comparação constante entre os
que as irmandades eram ontem e o que são hoje, entre o que se pensava delas na “época dos
seus pais” e o que se diz delas no presente e, não menos importante, quem eram os penitentes
dos tempos idos e quem são aqueles que integram as irmandades contemporâneas. Entretanto,
aqueles que durante algum tempo praticaram o autoflagelo para depois abandoná-lo quando
questionados acerca da dispensa da antiga prática penitencial, reafirmam que “os tempos são
outros” e justificam sua opção atual por causa das condições que o seu corpo impõem. Na
visão dos narradores, portanto, velhice comprometedora e saúde debilitada vêm tornar o corpo
do penitente um obstáculo dito intransponível à plena execução dos seus rituais.
O corpo com o passar dos anos já não suporta o peso dos flagelos, omite-se por
debilidade das longas jornadas, a voz já não diz os seus benditos como antes e empreende-se
muito maior esforço na tentativa de recuperar narrativas em forma de cânticos ou diálogos.
Tudo, na visão deles, parece mais penoso com o avançar do calendário. “Seu” Luiz Camilo
afirma que um dos seus parentes mais próximos manifestou o desejo não considerado novo de
136

ingressar na Irmandade. Agindo contra essa decisão encontra-se um corpo extenuado pela
idade e não favorecido por seguidos problemas de saúde.
E assim, já se vão alguns anos nos quais os Penitentes do Genezaré não
peregrinam durante as noites das Semanas Santas em busca de esmolas para os seus jejuns da
Sexta-Feira da Paixão. É possível encontrá-los anualmente em pequenas vias-sacras nas
imediações do Genezaré, sempre no início da noite, mediante convites e em companhia das
lideranças católicas e outros leigos da comunidade. Há, portanto, uma historicidade sendo
gestada pelo protagonismo do corpo que conserva em si as marcas do que produz no tempo e
no espaço.

Figura 5 - Os Penitentes do Genezaré em


visita à Capela de São Francisco na Semana
Santa – Genezaré – Assaré - Ceará - 2011
(Foto: Cícero da Silva Oliveira)

Por outro lado, esses mesmos Penitentes que contam com mais de sessenta anos
de idade falam das suas primeiras tentativas de ingresso nas antigas irmandades lideradas por
seus familiares mais velhos como algo questionável por conta da pouca idade que contavam à
época. Diziam os mais antigos que “penitente é coisa fina, é trabalho pesado”, um fardo
igualmente difícil de carregar para aqueles jovens demais e para os que têm o corpo não
dispensado da atuação do tempo e isento das debilidades que algumas doenças podem causar.
E ainda, extrapolando os limites dos rituais, os penitentes carecem ter uma vida livre de
vícios, um corpo autocontrolável.
137

O tema das debilidades por causa de doenças marca de outra forma as narrativas
dos Penitentes do Genezaré: eles já foram objetos de alguma promessa ou entraram em acordo
com os seus santos de devoção em favor da saúde abalada de algum conhecido, familiar ou
mesmo um desconhecido. O acordo com um santo de devoção, ou uma promessa, implica que
a divindade ao atender a solicitação de devoto terá justa retribuição conforme o acordado e
não necessariamente a solicitação é feita por aquele ou aquela que carece da graça. Assim, o
senhor Joaquim Camilo usou durante algum tempo um hábito que fazia referência à memória
de São Francisco, Antônio de Dora ainda acompanha todo o trajeto da procissão em honra ao
padroeiro do Genezaré (o mesmo São Francisco) realizada anualmente descalço e Deca
Pinheiro a cada dia 20 mensal veste-se de preto para celebrar a atuação do padre Cícero no
seu corpo de penitente, livrando-o de um vício e devolvendo-lhe a saúde abalada por um
problema que causou para ele bastante embaraço. Segue o relato.
Deca Pinheiro foi fumante crônico durante boa parte da sua vida. A prática, para
ele considerada um vício, teve início ainda durante a sua adolescência e prolongou-se até um
dia de agonia extrema e posteriormente de libertação. Acometido por fortes dores intestinais e
ainda assim, o atual decurião da Irmandade de Penitentes do Genezaré empreendeu mais uma
jornada entre a sua residência e a lavoura que cultivava em um início de manhã, como ainda
hoje é de costume. Entretanto, as dores sofriam agravos e o corpo daquele homem penava
mais ainda sob o sol intenso de um dia sertanejo. Não demorou muito para que aquela
situação provocasse em Deca Pinheiro uma crise de diarreia, segundo ele, nunca antes nem
depois experimentada por seu corpo.
Em decorrência, dessa situação inicial ocorreu um inesperado desmaio e quando
aquele homem solitário e constrangido com a situação voltou aos sentidos percebeu as roupas
ensanguentadas e sujas igualmente pelo resultado daquela crise. Sua interpretação
rapidamente atribuiu a responsabilidade do abalo da sua saúde ao fumo. E, ainda mais
significativo, a forma que ele julgou mais pertinente para ter sua saúde restaurada foi solicitar
a intervenção do padre Cícero para a sua cura breve e em um futuro não muito distante a
libertação do seu corpo do vicio do fumo desde aquele instante interpretado como doentio. A
parte que caberia ao prometente seria todos os dias vinte, a cada mês, usar roupas pretas como
ato memorial ao padre que operara aquele milagre em sua vida e, ao mesmo tempo, Deca
Pinheiro deixaria de realizar tarefas laborais no mesmo dia.
Nesse sentido, o corpo é ao mesmo tempo objeto carente de livramento,
instrumento de culto a uma divindade e suporte de propagação da memória dos deuses que
produzem libertações e curas. Corpo liberto e entregue a algum sacrifício. Tem-se, portanto, o
138

corpo em destaque na relação do homem com seus protetores celestes. O corpo que a cada
mês esconde-se atrás de uma veste de luto e reserva-se de suas obrigações cotidianas a fim de
que somente o santo da sua devoção e libertação seja comemorado naquele dia, através dessa
mensagem propagada a todos pelo corpo liberto do prometente. Não obstante, no catolicismo
diferenciado (CARVALHO, 2011), pautado em uma relação mística de proximidade entre os
fiéis e os seres da sua devoção, há espaço para que alguns dos acordos sejam reformulados,
prazos para início ou término, duração ou formas alternativas para pagamento de promessas
podem surgir a partir de novas demandas. Deca Pinheiro, por exemplo, atualmente já não
conserva a sua escusa em realizar atividades laborais nos dias vinte de cada mês e acredita
que o seu santo protetor entende como normal esse rearranjo no acordo inicial entre ambos.
As mudanças que o tempo impõe servem de mecanismo para que o santo protetor, em alguns
casos, flexibilize suas exigências com o prometente e assim o corpo experimente maior
liberdade nas suas obrigações.
Admite-se, porém, que tal flexibilidade não ocorrerá em todos os casos, não seja,
portanto, uma regra. No capítulo anterior, for mencionado que em uma circunstância muito
específica um pagamento de promessa foi invalidado porque realizado contrariamente à forma
inicialmente acordada. O ritual precisou ser executado mais uma vez de acordo com a
exigência do santo que agraciara a prometente, nos dias do pagamento da promessa já
falecida, não obstante mais algumas exigências que deveriam ser cumpridas através de mais
esforço corporal dos penitentes. O anúncio que a divida da prometente ainda estava em aberto
mobilizou naquela situação recursos de comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos, o
diálogo fez-se notar através das reações do corpo daquela que recebera a mensagem da dívida
da falecida. O corpo da vizinha que manteve contato com a mulher morta, revelou o objeto da
aparição e permaneceu estático até que a promessa fosse efetivamente cumprida segundo as
exigências do santo que atendera a demanda da prometente.
O episódio narrado com maiores detalhes no capítulo anterior e referido apenas
pontualmente no parágrafo acima contribui ainda para a compreensão de que corpos que
padecem sob algum mal ou ameaça podem exigir uma intervenção dos penitentes capaz de
aliviar aquele corpo ameaçado e padecente das suas angústias e dores. Afinal, não seria esta
uma das funções do corpo do cristão: escrever no próprio corpo pelos sacrifícios a história de
libertação dos seus semelhantes do sofrimento presente e vindouro? Assim, não são poucos os
relatos dos membros da Irmandade de Penitentes do Genezaré que tornam conhecidos os
rituais nos quais intercedem pela amenização ou cura permanente de corpos padecentes.
139

O corpo do penitente, portanto, reveste-se desse significado, experiencia a crença


na possibilidade de sua eficiente intercessão em favor dos que sofrem males físicos.
Recentemente, Deca Pinheiro garantiu a um dos seus irmãos que a saúde deste, debilitada
também pela ação inexorável do tempo, seria restaurada pela intercessão daquele decurião
junto ao seu santo de devoção e, consequentemente, o corpo do prometente seria mais uma
vez entregue em sacrifício como forma de declaração que mais uma graça foi alcançada. O
corpo do Penitente declara, portanto, a atuação do sagrado na trajetória dos homens. No início
de 2014, a promessa aguardava o momento oportuno para ser paga conforme acordo entre
santo e o devoto endividado.
Não somente nesses, mas em todos os rituais da Irmandade de Penitentes do
Genezaré que tenho presenciado, o corpo, elemento que goza de centralidade nas práticas
religiosas coletivas dos Penitentes, precisa estar sempre envolto pela vestimenta que
caracteriza o grupo e não coloca diferenças substanciais nesse quesito entre aquela irmandade
e outras tantas ordens semelhantes. Assim, os rituais são sempre precedidos pelo ato do vestir
cada peça antes da peregrinação coletiva e dos demais momentos rituais. A relevância
simbólica das vestes fica igualmente evidente quando os Penitentes do Genezaré expressam
que o ingresso definitivo de um novo membro na Irmandade dá-se pelo recebimento do
“equipamento”, leia-se vestes e disciplina. Em oposição, quando um membro da Irmandade
deixa de fazer parte do grupo, compete ao decurião solicitar que todo o equipamento seja
devolvido fazendo com que aquela vestimenta permaneça reservada até que algum novo
membro ingresse na irmandade e seja considerado digno de usá-la.
Em outro sentido não menos significativo, em 02 de novembro de 2013 quando
os Penitentes do Genezaré, reunidos no início da noite na casa de Fortunato, antes de
começarmos a breve peregrinação (cerca de vinte minutos) até o cemitério da Vila do
Genezaré onde os seus rituais específicos para aquela data seriam executados, percebi que
pelo menos dois dos filhos de “Seu” Joaquim Camilo receberam as vestimentas características
do grupo a fim de participarem daqueles rituais. O fato chamou a minha atenção por ser
reincidente. Em outras ocasiões percebi a mesma concessão feita aos filhos de “Seu” Joaquim.
A interpretação que o grupo faz de tal consentimento, a um não penitente ser permitido usar
as vestes rituais da Irmandade, indica que para eles a noção de beleza aplicada às irmandades
está vinculada a um grupo com muitos penitentes entoando harmonicamente os seus benditos.
Em muitas das narrativas dos membros mais velhos dos Penitentes do Genezaré as vozes
projetam ares de saudade de um tempo no qual as irmandades de penitentes das quais eram
integrantes contavam com um maior número de adeptos. Assim, permitir a presença dos filhos
140

de um membro dos mais respeitados do grupo em alguns dos seus rituais é, de certa forma,
reconstruir a beleza de outros tempos, dias idos, marcas que a memória investiga e reelabora,
é também dizer aos assistentes que aqueles jovens podem ser a garantia da permanência em
atividade daquela irmandade e desejar crer, construir ainda que desesperadamente, (n)esse
futuro.
Ao longo deste capítulo tem sido afirmado o caráter performático dos rituais da
Irmandade de Penitentes do Genezaré e de outros grupos semelhantes, ou seja, os seus rituais
provocam impactos sensíveis na assistência e tais impactos quando exercidos sobre
intelectuais vinculados a projetos de construções identitárias nacionais e locais alimentaram
impressões e análises que acabaram por se tornar textos de referência para quem deseja
conhecer a trajetória das práticas penitenciais de leigos organizados em irmandades na
América portuguesa e posteriormente no Brasil. Dar atenção a essas leituras é adquirir
informações não somente sobre penitentes e suas performances; é também perceber como
intelectuais interpretavam a partir do seu lugar social os grupos em questão e seus rituais.
Em outro sentido, fiz questão de estabelecer vínculos entre os rituais da
Irmandade de Penitentes do Genezaré e aspectos da tradição cristã inscritos em uma longa
duração na qual o corpo, na sua qualidade de elemento simbólico, ocupa espaço privilegiado.
Referenciados pelo martírio do Salvador, os cristãos e cristãs medievais ansiavam por ter seus
corpos assemelhados com o corpo do Homem das Dores e, diante desse quadro de desejo e
busca, as limitações e castigos autoimpostos tornaram-se presença constante no cotidiano e
registros de algumas cidades europeias daquele período. Calamidades sociais de grandes
proporções tendem a agravar as “crises de flagelação”. Assim, a certeza do pecado humano e
da ira divina, a expectativa do fim dos tempos e o horror da condenação eterna eram
interpretados à luz dos acontecimentos que marcavam a vida da cristandade na Idade Média.
Ainda que sujeitas às vicissitudes históricas e envolvidas talvez por outras motivações mais
de acordo com as realidades sugeridas ou impostas pelo tempo e por características de cada
grupo social, as práticas penitenciais praticadas por grupos de leigos organizados em
irmandades, algumas delas autoflagelantes, cruzam o Atlântico junto com os conquistadores
ibéricos e descrevem uma trajetória bastante profícua e ainda não sepultada pelo tempo nos
antigos domínios portugueses na América.
A Irmandade de Penitentes do Genezaré tem seus rituais fortemente marcados por
essa noção de sacrifício e autoimposição de limites ao corpo. O corpo do penitente, de acordo
com a concepção da Irmandade em questão, precisa ser autocontrolável e capaz de suportar as
exigências que as longas caminhadas, o autoflagelo, os jejuns impõem. Igualmente, abster-se
141

de vícios e em praticamente todos os rituais negar-se sob as vestes que sugerem a


homogeneidade do grupo enquanto teimam em ocultar as identidades individuais sem muito
sucesso e deixam à vista símbolos e cores facilmente identificados com o cristianismo e os
seus santos.
Conforme mencionado em outros pontos, as relações que a Irmandade de
Penitentes do Genezaré mantém com o poder público municipal e com as lideranças da Igreja
Católica local possibilitam a experiência com novos espaços ou o sentimento de interdição de
outros tantos lugares vinculados à prática dos seus rituais. Contudo, não devo limitar a mútua
influência entre Penitentes e instituições somente quanto ao tema dos espaços possíveis ou
interditados aos rituais da Irmandade. Em outro sentido, as vestimentas passam por um
processo de re-significação que estabelece uma reinterpretação objetivando os vínculos entre
Penitentes, poder público e a Igreja Católica no município. Assim, o decurião Deca Pinheiro
informa que “qualquer cor para as opa são boas” e “que quem escolheu essas cor, azul e
branco, foi voceis prá lá”, em referência à equipe da Secretaria Municipal da Cultura que
patrocina as vestimentas da Irmandade desde meados da primeira década dos anos 2000. Por
outro lado, o sr. Francisco Eugênio Costa Oliveira, já referido, faz questão de enfatizar que o
azul e branco são referências à padroeira do município de Assaré, Nossa Senhora das Dores,
que compartilha nas suas vestes das mesmas cores e, com isso, é estabelecida um relação
simbólica entre a Irmandade e a tradição religiosa católica oficial.
Portanto, as cores das vestes que envolvem os corpos dos Penitentes nos seus
rituais dizem também do complexo de relações que atua na constituição de uma identidade
local com ênfase nos seus aspectos religiosos essencialmente ligados ao Catolicismo Romano
em detrimento de outras experiências com o sagrado que atuam no mesmo contexto e local.
Logicamente, a constituição de uma identidade assareense está sujeita e ela mesma forja
demandas históricas sendo passível, dessa forma, de inúmeros movimentos, vai-e-vens,
redescobertas e negações, passos apressados e defesa do tempo como um lento processo
histórico, quase imóvel, tentativas de rompimentos e reforços de vínculos.
De acordo com essa visão defendida, à medida que uma identidade local é
elaborada, os Penitentes do Genezaré fazem parte de uma tradição cuja datação do parto não é
possível precisar, mas que garante valor à cultura assareense pela sua inserção e/ou
conservação daquilo que dura no tempo e une distintos espaços em torno de uma experiência
comum. Não é estranho, dessa forma, manter contato com discursos que dizem que as vestes
dos Penitentes do Genezaré não têm apenas as cores das vestes de Nossa Senhora das Dores,
mas também os mesmos tons do manto da Padroeira do Brasil; os Penitentes do Genezaré
142

representam uma cultura local assareense vinculada aos saberes e fazeres do povo cearense
(reafirma-se a presença de irmandades de penitentes em outras partes do Ceará, especialmente
no Cariri), sem deixar de expor seu pertencimento à cultura nacional, tais são essas
elaborações em voga e em permanente reconstrução.
Antes de dar por encerrado este capítulo, desejo retomar uma fala recorrente de
alguns os Penitentes dos Genezaré, em especial algumas palavras do decurião Deca Pinheiro e
do penitente Fortunato. Para ambos, os rituais da Irmandade dos Penitentes do Genezaré têm
forte caráter memorialístico, servem para comemorar e divulgar os atos de Jesus em favor da
salvação da humanidade, entrega sem reservas inscrita no corpo e pelo corpo do Salvador e
comemorada pelos rituais dos Penitentes.
De fato, para Paul Connerton (1999), a memória dos grupos é conservada e
transmitida através de atividades performáticas com fortes conotações rituais, perspectiva não
contemplada nos estudos de Maurice Halbwachs (CONNERTON, 1999; HALBWACHS,
2006). O pensamento de Connerton (1999) aponta para o fato de que o trabalho da memória
social está presente e pode ser identificado em cerimônias comemorativas e em práticas
corporais. Nessa perspectiva, o corpo lembra e ajudar o lembrar dos grupos, contribui para um
recordar em conjunto.
Para dar consistência e poder de convencimento aos seus argumentos, Paul
Connerton (1999) mantém certa proximidade de Maurice Halbwachs (HALBWACHS, 2006)
ao afirmar que “As nossas memórias estão localizadas no interior de espaços materiais e
mentais do grupo” (CONNERTON, 1999, p. 42). Para um eficiente “recordar em conjunto”,
entretanto, faz-se necessário que além da capacidade de retenção das representações mentais
coletivas cada grupo tenha nos seus velhos, indivíduos ativos no compartilhamento das
referidas representações. As cerimônias comemorativas e as práticas corporais integram o
conjunto de atos de transmissão essenciais para a conservação da memória social. Os rituais, a
um só tempo, podem ser identificados com cerimônias comemorativas e exigir dos seus
praticantes um conjunto de posturas e gestos corporais específicos e decifráveis para o grupo,
além do mais quem executa um ritual declara certo tipo de concordância com aquilo que
executa. Ainda, pode ser afirmado que uma das características dos rituais é justamente sugerir
alguma continuidade entre o presente e o passado pelo conjunto de elementos invariantes que
dão a sua forma. A continuidade referida pode ser encontrada associada com comemorações
de acontecimentos inscritos na trajetória efetiva de um grupo ou na sua interpretação
mitológica da própria existência.
Em complemento a essa argumentação, para Paul Connerton (1999, p. 52)
143

Em nenhum outro domínio é esta pretensão, de comemorar uma série


anterior de acontecimentos fundadores sob a forma de um rito, mais amplamente
expressa do que nas grandes religiões mundiais. Um tal pretensão está nelas
constantemente presente.

Dando atenção ao cristianismo, para o mesmo autor, é dever do cristão


comemorar a intervenção divina na história pela encarnação, Paixão e Ressurreição do
Salvador. Seus rituais e calendário dizem desses acontecimentos inseridos no tempo histórico,
fazem referência, portanto, ao Cristo histórico. No corpo do cristão, nos seus gestos e
posturas, podem ser encontradas referências explícitas ou menos evidentes ao viver e ao
padecer do Homem das Dores.
Em síntese, individualmente o ser humano tem potencial para construir e
conservar determinadas visões ou versões em relação ao passado e agrupados, alimentando
um sonho de convivência duradoura, produzir atos e sensações que indiquem repetições e/ou
continuidade com um passado tido por significativo para o grupo. As cerimônias
comemorativas refletem e são produtos desse desejo coletivo e, na medida em que ocorrem,
os celebrantes dotam de sentido o acontecimento ou conjunto de acontecimentos celebrados.
A eficiência das cerimônias comemorativas depende substancialmente daquilo que o corpo
produz no ato da comemoração, do formalismo dos gestos e posturas e da capacidade
performativa empregada na execução ritualística (CONNERTON, 1999).
Cada gesto e postura obedecem à determinada formalidade e a performatividade
coloca os executantes e a assistência em diálogo, interpretando, exibindo concordância ou
negando sua aceitação em relação ao executado. Dessa forma, permanecem como sujeitos
ativos durante a execução dos rituais, o corpo experimenta o que está sendo executado através
de sensações físicas, emocionais e mentais e os executantes e a assistência que partilham dos
mesmos dizeres e fazeres comemoram os acontecimentos reescritos pelos rituais.
Há, entretanto, que se ter por certo o modo e a sequência de cada gesto e postura,
conhecendo os repertórios executados pelo corpo consegue-se predizer cada etapa a ser
cumprida pelo ritual em execução. Ainda para Paul Connerton (1999), o que poderia ser
identificado com a fragilidade dos rituais, ou seja, o seu repertório limitado de gestos e
posturas, nisso reside a sua força e eficácia. Os executantes entregues aos seus rituais sabem
(ou exige-se que saibam) exatamente de onde partem e o ápice a ser atingido. Os rituais,
assim dizem dessa verdadeira mnemônica do corpo. O corpo lembra cada gesto e postura que
transmitem suas lembranças, mas não apenas isso, atuam na construção da memória social
pela comemoração que, por sua vez, diz o quão passageira é a vida de um indivíduo se posta
144

em comparação com a permanência duradoura dos gestos e posturas compartilhadas. Quando


essas cerimônias comemorativas têm sua prática e eficácia questionadas há que se buscar
outras elaborações que atuem igualmente na estruturação da memória social. As narrativas
orais dos indivíduos construtores e gestados pela coletividade são exemplos dessas outras
elaborações às quais fiz referência.
Diante do dito, os rituais dos Penitentes do Genezaré são construções
mnemônicas, trajetórias inscritas no corpo e pelo corpo de cada membro da Irmandade. Cada
gesto e postura, as cruzes costuradas às roupas e aquela carregada pelo decurião, o cacho e o
vestir comemoram o sofrimento vicário de Jesus. O corpo entregue às errâncias no período
anual da Semana Santa diz das peregrinações do Homem das Dores, anunciando a salvação,
antes da sua Paixão; Cada cruz gestualizada em Nomes do Pai e Pelos Sinais indicam o santo
martírio; As opas erguidas e as disciplinas em movimentos semicirculares a ferir as costas
nuas dos Penitentes comemoram os açoites desferidos pelos carrascos ao longo da Via-Crúcis;
Cada abstinência corporal sugere as limitações autoimpostas pelo Salvador em favor da
humanidade.
Finalmente, por mais que cada gesto e postura comemore a intervenção divina na
história pela encarnação, Paixão e Ressurreição do Filho de Deus, tenho argumentado que se
essa comemoração realiza-se no corpo e pelo corpo dos Penitentes do Genezaré, nesse mesmo
corpo a comemoração encontra seus limites. O corpo elemento simbólico é passível de
reconstruções a partir de demandas históricas conforme tenho demonstrado. Em outro sentido,
no seu aspecto natural, o corpo dos velhos já não suporta o rigor de alguns sacrifícios. Assim,
os rituais dos Penitentes do Genezaré têm passado por reelaborações e ao elemento invariante
mencionado por Paul Connerton (1999) são somados reinterpretações, novos gestos e
posturas, o abandono de performances e a possibilidade de novas atuações em espaços
anteriormente interditados ou impensáveis aos Penitentes do Genezaré.
145

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“[...] É impossível exaurir a memória completa


de um único informante, dados extraídos da
cada entrevista são sempre o resultado de uma
seleção produzida pelo relacionamento mútuo.
Pesquisa histórica com fontes orais, por isso,
sempre tem a natureza inconclusa de um
trabalho em andamento [...]. O inconcluso das
fontes orais afeta todas as outras fontes. Dado
que nenhuma pesquisa (concernente ao tempo
histórico para o qual as memórias de vida são
válidas) é completa, a menos que se tenha
exaurido tanto as fontes orais quanto as
escritas, e as primeiras são inesgotáveis, a
meta ideal de ir através de ‘todas’ as fontes
possíveis se torna impossível. O trabalho
histórico que se utiliza de fontes orais é
infindável, dada a natureza das fontes; o
trabalho histórico que exclui fontes orais
(quando válidas) é incompleto por definição.”

(PORTELLI, 1997, p.36-37)

No princípio, era o desejo de compreender as formas através das quais os penitentes


que chegaram à antiga propriedade do Barão de Aquiraz, no Infincado, no município de
Assaré, no sul do Estado do Ceará, na microrregião denominada Cariri cearense, no início dos
anos 1950, contribuíram para o desenvolvimento da localidade, para o seu desbravamento e
crescimento populacional. Ansiava, sobretudo, refletir sobre a relação entre as práticas
penitenciais daqueles homens organizados em irmandades e os espaços construídos pelas suas
ações. Em contrapartida, investigar as concepções religiosas daqueles penitentes que
146

poderiam sugerir vínculos entre escolhas e práticas religiosas e trabalho e transformação da


natureza.
Após muitos diálogos e algumas precisas intervenções ainda no primeiro semestre em
que frequentei as aulas do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual
do Ceará, em nível de Mestrado (MAHIS-Uece), o meu interesse é conduzido para
compreensão dos rituais das irmandades de penitentes daquela localidade. Em verdade, de três
irmandades citadas pelos narradores como ali organizadas ao final da primeira metade do
século XX, nos nossos primeiros diálogos restava apenas uma formada por alguns
remanescentes daqueles grupos, alguns dos seus descendentes e um integrante que a princípio
mencionou não haver nenhum penitente na sua família antes dele. A localidade também já
havia mudado de nome e parte da propriedade que era conhecida mais comumente por
Infincado hoje atende pelo nome de Genezaré. A atual Irmandade de Penitentes do Genezaré é
formada por 08 homens moradores da Vila do Genezaré e de algumas comunidades rurais
localizadas nas suas adjacências.
Das contribuições fundamentais para que a pesquisa tomasse uma forma mais
encorpada e pudesse atingir os resultados apresentados nesse texto entregue para apreciação
dos leitores, devo destacar as intervenções da professora Dra. Sílvia Márcia Alves Siqueira,
responsável pela minha orientação nessa trajetória no MAHIS, e do professor Dr. Gérson
Augusto de Oliveira Júnior, interlocutor essencial.
Assim, o objetivo dessa pesquisa foi estudar os rituais da Irmandade Penitentes do
Genezaré na sua relação com a memória dos narradores que através dos recursos da oralidade
reinventam os seus rituais de acordo com as demandas do presente, com os espaços
destinados à sua execução e, finalmente, com o corpo dos seus executantes nos quais e através
dos quais os rituais são inscritos. Dessa forma, a atenção permaneceu mais concentrada nas
atribuições de sentido empreendidas pelos narradores que têm como foco os seus rituais,
verdadeiras operações intelectuais e sensíveis que reconstroem suas crenças e práticas
religiosas coletivas, inscritas no tempo e no espaço, de acordo com as exigências e sugestões
contemporâneas.
Desde os primeiros momentos da concepção da pesquisa, optei pela História Oral
como procedimento metodológico pela sua melhor adequação ao que havia inicialmente
proposto. Com uma quantidade razoável de entrevistas realizadas nos anos de 2010 e 2011 e
uma sensível mudança nos objetivos da pesquisa, fez-se necessário novos diálogos com os
Penitentes do Genezaré, gestores públicos da Secretaria Municipal da Cultura de Assaré e o
pároco local em atividade em Assaré de meados dos anos 2008 a meados de 2010.
147

Com o mesmo propósito, tive acesso aos Livros de Tombo da Paróquia de Nossa
Senhora das Dores de Assaré e a Leis Municipais que sugerem como as produções culturais
locais são influenciadas pelo poder público do município. Não menos significativos foram os
diálogos mantidos com parte da filmografia dos cineastas Rosemberg Cariry e Petrus Cariry
que contempla facetas dos rituais e cosmogonias de outras irmandades de penitentes que
atuam no Cariri cearense, mais precisamente nos municípios de Juazeiro do Norte e Barbalha.
Ao empreender as análises necessárias a uma melhor compreensão de rituais na sua
qualidade de categoria analítica, pude deparar-me com um vasto e polifônico acervo de
produções científicas que têm nos rituais o tema privilegiado de análise. Em meio a tantas
visões, por vezes conflituosas ou complementares, optei pela concepção adotada por Valerio
Valeri (1994) a qual interpretei como “concepção estética dos rituais”. Em sentido amplo, a
estética conforme pensado nesse trabalho indica que os praticantes de determinado ritual
empreendem escolhas e executam seus rituais que ao final resultam em experiências
consideradas agradáveis aos sentidos dos praticantes e impactantes à assistência.
Com base no mesmo suporte teórico, pode ser percebido que os rituais dos Penitentes
do Genezaré realizados anualmente a cada Semana Santa e no Dia de Finados e
eventualmente quando convites são elaborados por terceiros para que os Penitentes
intercedam em favor das almas de algum dos seus mortos, na mesma medida em que atendem
à alguma exigência ou sugestão do contemporâneo produzem elaborações que têm, por
objetivo reivindicar uma continuidade com o passado inscrito em uma longa duração marcada
pelas noções de sacrifício e salvação, tão caras ao cristianismo. Dessa forma, os rituais dos
Penitentes do Genezaré dão visibilidade aos diálogos entre passado e presente conjugados em
um todo coeso. Entretanto, o futuro para os membros da Irmandade encerra os sinais de uma
incógnita que amedronta por não garantir a certeza que o grupo permanecerá em atividade
após a morte dos mais antigos integrantes da Irmandade.
Ainda refletindo diálogos entre elementos aparentemente inconciliáveis, os rituais dos
Penitentes do Genezaré indicam que, além do passado e presente, o individuo e o coletivo,
normas e invenções, a vida e a morte, os vivos e os mortos são articulados de forma a integrar
um mesmo conjunto complexo de crenças e práticas passível de reinvenções. Verificou-se a
partir dessa constatação um amálgama no qual são alternadas prioridades entre um ou outro
elemento do diálogo. Assim, retomando as análises de Valério Valeri (1994), as escolhas dos
sujeitos em um ou outro momento podem superar as exigências coletivas, a criatividade do
individuo burlar algumas regras tidas por tradicionais e mais adequadas ao grupo e a
148

Irmandade diferenciar-se de outras tantas reconhecidas como suas semelhantes. Contribuindo


para tanto, peculiaridades das trajetórias coletivas e das interpretações e percursos individuais.
Retomando Alessandro Portelli (1997), devo admitir ao concluir pelo menos mais duas
características desse trabalho. A primeira delas aponta para a convicção que ele é produto de
diálogos no sentido mais amplo do termo. Desde o ano de 2009 em contatos com os
Penitentes do Genezaré, muitos dos nossos encontros foram, de fato, marcados por “entre-
vistas”, um verdadeiro partilhar de olhares. Dessa forma, os muitos diálogos produziram
resultados construídos por pesquisador e narradores, a um só tempo. As elaborações de cada
um dos Penitentes do Genezaré transmitidas através das suas narrativas orais, gestos e
posturas rituais passaram por um processo de análise balizado por concepções teóricas
indispensáveis a operação historiográfica, conforme definida por Michel de Certeau (2011),
razão de ser dessa pesquisa.
Finalmente, em outro sentido e ainda concordando sem ressalvas com Alessandro
Portelli (1997), a opção pela História Oral demarca um caminhar pelas trilhas de um trabalho
reconhecidamente inconcluso. De fato, a mesma variação que pode vitimar as narrativas orais
não isenta que o pesquisador também altere seus olhares interpretativos acerca do narrado. A
cada nova “entre-vista” detalhes podem ser acrescidos, informações anteriormente prestadas
negadas ou alteradas pelos narradores e, dessa forma, as opções analíticas estão seguidamente
sendo confrontadas e o pesquisador tem sua capacidade de atenção e reflexão desafiada nessa
relação mútua.
Se por um lado, a pesquisa com fontes orais oferta ao resultado historiográfico do
trabalho um caráter inconcluso, por outro lado nenhum empreendimento realizado por
historiadores deve ser considerado exaurido em todas as suas possibilidades. A inumerável
quantidade de fontes que mantém relação com um determinado tema garante essa
característica. O final da primeira e o início da segunda metade do século XX, por exemplo,
trouxe consigo algumas transformações no campo religioso do município de Assaré com a
chegada dos primeiros missionários evangélicos batistas de origem americana. Se existe
alguma relação dessa configuração com os rituais dos Penitentes do Genezaré, essa pesquisa
não pode confirmar. A Igreja Católica também sofreu alguns ajustes a partir das decisões do
Concílio Vaticano II (1962-1965) cujos reflexos atingiram de forma bastante peculiar o
catolicismo latino-americano. Se as visões eclesiásticas forjadas nas salas e discussões do
Vaticano, no início dos anos 1960, repercutiram durante as duas últimas décadas nas quais
padre Agamenom de Matos Coelho foi pároco em Assaré nas decisões e posturas das
lideranças católicas locais e se ainda essa contextura influenciou as visões daquele pároco em
149

relação aos Penitentes do Genezaré e seus rituais, também isso essa pesquisa não pode
constatar.
Estão postas, portanto, outras possibilidades de reflexão acerca dos rituais dos
Penitentes do Genezaré não contempladas nesse texto e que garantiriam uma contextualização
mais ampla e consistente não permitida pelo corpo de fontes construído paralelamente e de
acordo com os objetivos preliminarmente propostos. Confirma-se, assim, o caráter inconcluso
desse trabalho. Talvez o futuro reserve possibilidades de novas questões que carregam
consigo respostas plurais e o incremento do acervo de fontes permita estabelecer vínculos
mais amplos entre os rituais dos Penitentes do Genezaré e o campo religioso local não
redutível ao Catolicismo e as transformações que a Igreja Católica tem experimentado nos
últimas seis décadas.
De qualquer forma, julgo que a beleza desse trabalho é a própria virtude da História
Oral, qual seja: não reduzir sua narrativa a eventos, buscar os meandros das atribuições de
significados empreendidos pelos narradores. Sobretudo, dialogar com um elemento que em
nenhuma outra fonte o historiador pode encontrar em igual medida, como bem afirmou
Alessandro Portelli (1997), as subjetividades dos narradores.
O estudo dos rituais dos Penitentes do Genezaré proporcionou esse exercício
intelectual prazeroso.
150

FONTES

FONTES ORAIS:

Entrevistas com:

1. Antônio Duarte de Almeida, agricultor aposentado, 61 anos de idade, conhecido como


Antônio de Quinco, residente e domiciliado no Sítio Cacimba do Mel, município de Assaré.
Entrevistas concedidas no período compreendido entre março de 2011 e novembro de 2013.

2. Antônio Duarte de Holanda, agricultor, 50 anos de idade, conhecido como Fortunato,


residente e domiciliado na Vila de Genezaré, município de Assaré. Entrevistas concedidas no
período compreendido entre março de 2011 e novembro de 2013.

3. Antônio Ferreira de Oliveira, agricultor, 48 anos de idade, conhecido como Bacum,


residente e domiciliado na Vila de Genezaré, município de Assaré. Entrevistas concedidas no
período compreendido entre março de 2011 e novembro de 2013.

4. Antônio Rodrigues Duarte, agricultor, 42 anos de idade, conhecido como Antônio de


Dôra, residente e domiciliado no Sítio Cacimba do Mel, município de Assaré. Entrevistas
concedidas no período compreendido entre março de 2011 e novembro de 2013.

5. Francisco Eugênio Costa Oliveira, professor, 51 anos de idade, residente e domiciliado


à Avenida Perimetral, Bairro Pedra de Fogo, Assaré. Atual Secretário Municipal da Cultura
de Assaré, desde janeiro de 2012, cargo que também exerceu entre 2006 e 2008. Entrevista
concedida em maio de 2013.

6. Joaquim de Holanda Duarte, agricultor aposentado, 64 anos de idade, conhecido como


Joaquim Camilo, residente e domiciliado no Sítio Cacimba do Mel, município de Assaré.
Entrevistas concedidas no período compreendido entre março de 2011 e novembro de 2013.

7. José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como


Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevistas
concedidas no período compreendido entre março de 2011 e novembro de 2013.

8. Luiz de Holanda Duarte, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como


Luiz Camilo, residente e domiciliado no Bairro Canto Alegre na cidade de Assaré. Entrevistas
concedidas no período compreendido entre março de 2011 e novembro de 2013.

9. Luiz Duarte de Almeida, agricultor, 45 anos de idade, conhecido como Luizeto,


residente e domiciliado no Sítio Cacimba do Mel, município de Assaré. Entrevistas
concedidas no período compreendido entre março de 2011 e novembro de 2013.

10. Marcos Salmo Lima Barreto, servidor público municipal de Assaré, 28 anos de idade,
residente e domiciliado à Avenida Honório Vilanova, Bairro Vila Nildália, Assaré. Secretário
151

Municipal da Cultura de Assaré entre janeiro de 2009 e abril de 2012. Entrevista concedida
em setembro de 2012.

FONTES ESCRITAS:

Depoimento concedido por escrito

1. Vileci Basílio Vidal, pároco de Assaré entre outubro de 2008 e agosto de 2010.
Depoimento concedido em fevereiro de 2012.

Hemerográficas

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mar. 2010. Regional. Disponível na internet em
<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=754788> Acesso em 25 abr. 2012

2. LEOMAR, José. Festa para Patativa do Assaré. Diário do Nordeste. Fortaleza, 28 fev.
2009. Regional. Disponível na internet em
<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=618184> Acesso em 05 mar. 2012

3. VICELMO, Antonio. Recital abre o aniversário de Patativa. Diário do Nordeste.


Fortaleza, 02 mar. 2006. Cultura Popular. Disponível na internet em:
<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=229830> Acesso em 20 mar. 2011

Leis municipais que regem a gestão cultural de Assaré

1. Lei complementar nº. 003/2005 – Dispõe sobre a Estrutura Administrativa da


Prefeitura Municipal de Assaré e dá outras providências.

2. Lei Complementar nº. 023/2005 – Dispõe sobre a criação do Conselho Municipal de


Cultura e Turismo do Município de Assaré.

3. Lei Complementar nº. 015/2006 – Dispõe sobre a criação da Secretaria Municipal da


Cultura, Turismo, Desporto, Lazer e Recreação.

Literatura e historiografia local

ALEMÃO, Francisco Freire. Diários de Viagem de Francisco Freire Alemão: Fortaleza –


Crato, 1859. Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006.

______. Diários de Viagem de Francisco Freire Alemão: Crato – Rio de Janeiro,


1859/1860 – Volume 2. Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará,
2007.
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CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

FIGUEIREDO FILHO, J. O folclore no Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará,


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Manuscritas

Livro de Tombo nº. 01 da Paróquia de Nossa Senhora das Dores de Assaré (1894-2001)

Livro de Tombo nº. 02 da Paróquia de Nossa Senhora das Dores de Assaré (2001- )

FONTES AUDIOVISUAIS

A Ordem dos Penitentes. Dir.: Petrus Cariry. Brasil. Documentário. Cores. 17min.

Juazeiro: A Nova Jerusalém. Dir.: Rosemberg Cariry. Brasil. Documentário. Cores. 72min.

Mestres dos saberes e fazeres da cultura popular assareense. Dir.: Felipe Lira. Brasil.
Documentário. Cores. 60min.

O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. Dir.: Rosemberg Cariry. Brasil. Documentário.


Cores/Preto e branco. 78min.
153

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