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2015v15n24p113 113
AS POTÊNCIAS DO CINEMA
RESUMO: O cinema, segundo Jacques Rancière, é uma multiplicidade de conceitos que, sob o
mesmo nome, permite estabelecer um espaço de pensamento. A distância entre um conceito e outro
é o que separa, mas também o que propõe uma relação. Entre cinema e política há também
distâncias, intervalos, desvios, abordados pelo autor em As distâncias do cinema (Les écarts du
cinema). Walter Benjamin defendia certas potências progressivas do cinema, mas reconhecia seus
usos fascistas. Jacques Rancière reencontra nas distâncias uma possibilidade, não do cinema em
geral, mas de cada filme, ter ainda uma força política. Essa força, para ambos, está na tensão
dialética da imagem, ou seja, na sua capacidade de suspensão de discursos, de juízos, de síntese.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema. Política. Rancière.
CINEMA POTENCIES
ABSTRACT: Cinema, according to Jacques Rancière, is a multiplicity of concepts that, under the same
name, can establish a space of thought. The distance between one concept and another is what
separates, but also proposes a relation. Between cinema and politics there are distances, intervals,
detours, discussed by the author in Intervals of cinema (Les écarts du cinema). Walter Benjamin used
to defend some progressive potencies of cinema, but recognized its fascist uses. Jacques Rancière
rediscovers a possibility of the distances, not from cinema in general, but from each film, still having
a political force. This force, for both authors, is in the dialectic tension of image, in its ability to
suspend speeches, judgments, synthesis.
KEYWORDS: Cinema. Politics. Rancière.
AS POTÊNCIAS DO CINEMA
1
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165 e ss.
2
Idem, Charles Baudelaire. Un poeta lirico nell’età del capitalismo avanzato. A cura di Giorgio
Agamben, Barbara Chitussi, Clemens-Carl Härle. Vicenza: Neri Pozza, 2012.
3
RANCIÈRE, Jacques. As distâncias do cinema. Trad. Estela dos Santos Abreu. Org. Tadeu
Capistrano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 121.
4
Cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, op. cit., p. 166.
5
Ibidem, p. 170.
Ser aprovado nela significa para o ator conservar sua dignidade humana diante
do aparelho. O interesse desse desempenho é imenso. Porque é diante de um
aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua
humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho. À noite, as
mesmas massas enchem os cinemas para assistirem à vingança que o intérprete
executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do
aparelho sua humanidade (ou o que parece como tal aos olhos dos espectado-
res), como coloca esse aparelho a serviço do seu próprio triunfo. 7
6
Ibidem, p. 170.
7
Ibidem, p. 179.
Cada vez mais clara a posição dual em relação ao cinema: potência de re-
volução, potência de apropriação fascista. E esse caráter contrarrevolucioná-
rio estaria, por exemplo, no culto à estrela, ao atleta de ponta, ao político
profissional. O político, diante da possibilidade de se fazer ver e ouvir por um
número ilimitado de pessoas, utilizaria o cinema e o rádio (aparelhos de
reprodução técnica) para tornar mostráveis seus atos e criar na massa a ilusão
de que os controlam. É como se o aparelho, na especulação fascista de seu
uso, criasse uma seleção na qual “emergem, como vencedores, o campeão, o
astro e o ditador.” 9
Outro elogio que Benjamin faz ao cinema é a modificação que empreende
na relação entre as massas e a obra de arte. O filme, permitindo uma reação
individual, somada à reação coletiva, tornaria a arte receptível por qualquer
um e não apenas pelos críticos, especialistas ou proprietários, como ocorria na
pintura. Benjamin também passa pela teoria do inconsciente ótico, que trouxe
de seu ensaio sobre a fotografia, mas que depende de um olhar atento para
ser aplicada ao cinema. O olhar sobre a fotografia, liberado do trabalho da
consciência, revelaria um inconsciente ótico, já que o observador perscruta
nela (em seu espaço) o acaso, o aqui e agora. Mas no cinema, o ritmo da
montagem dificilmente concede esse tempo ao espectador, ao contrário, de-
manda uma visada rápida e funcional, de maneira a encadear a ação. O que se
chama raccord é a lembrança somente do indispensável para a continuidade
narrativa.
Talvez o capítulo mais importante nessa relação entre cinema e política
seja aquele que encerra o ensaio, intitulado Estética da guerra 10. É também
aquele em que Benjamin coloca a obra de arte na sua dialética própria. O ho-
mem contemporâneo (em 1936) estaria cada vez mais proletarizado e
massificado. O fascismo tentando controlar essas massas, organiza-as de
modo a manter as relações de propriedade e de produção. E isso se dá não
sem a ajuda do cinema que coloca na tela o próprio rosto do homem. “As mas-
8
Ibidem, p. 180.
9
Ibidem, p. 183.
10
Ibidem, p. 194.
11
Ibidem, p. 195.
12
Ibidem, p. 196.
13
Cf. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Un poeta lirico nell’età del capitalismo avanzato.
op. cit. p. 533.
14
CHITUSSI, Barbara. Aura e imagem onírica em Walter Benjamin. Trad. Vinícius Nicastro
Honesko. Texto lido em setembro de 2012, no III Colóquio do Núcleo Walter Benjamin da
UFMG, que teve como título “Nachleben: escrita e imagem em Walter Benjamin e Aby
Warburg.” Uma cópia da tradução foi entregue aos participantes do evento.
olhar que se devolve, especialmente quando a tensão entre as classes está ele-
vada. Benjamin ressalta também a eficácia do cinema em permitir que as clas-
ses dominadas ou oprimidas sejam vistas, estudadas, sem que as classes domi-
nantes e opressoras também sejam alvo do olhar oprimido, que pode ser
revolucionário.
DESENTENDIMENTO, DISTÂNCIA
15
Ibidem, p. 10.
16
MALLARMÉ, Stéphane. Divagações. Trad. e apresentação Fernando Scheibe. Florianópolis:
Editora da UFSC, 2010, p. 166.
gem, e da qual exclui a literatura: “Falar não concerne à realidade das coisas
senão comercialmente: em literatura, isso se contenta em fazer-lhe uma alu-
são ou em distrair sua qualidade que alguma ideia incorporará.”17 O que é
essencial na palavra é a separação de um sentido unívoco, bruto, comercial. É
sua capacidade de pedir, demandar, evocar sentidos, sensações. Dessa ma-
neira trabalham os textos de Jacques Rancière: escolher uma palavra que será
a chave de um conceito e fazê-la vibrar, ainda que trazendo sentidos opostos,
para que aquela palavra seja o motor e a sede do pensamento.
Em um livro sobre filosofia e política, publicado no Brasil em 1996, o autor
nos explica a escolha do título que condensa a escolha teórica:
17
Ibidem, p. 164.
18
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento – política e filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São
Paulo: Ed. 34, 1996, p. 11-13.
19
Idem, A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Neto. São Paulo: EXO
Experimental org., Ed. 34, 2005.
20
Idem. Políticas da escrita. São Paulo: Ed. 34, 1995, p. 7.
21
Idem. A partilha do sensível, op cit., p. 16.
22
Idem. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Org. Tadeu Capistrano. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2012.
23
Ibidem, p. 9.
24
Ibidem, p.14.
25
Ibidem, p.15.
26
RANCIÈRE, Jacques. As distâncias do cinema, op. cit.
27
Ibidem, p. 13.
28
Ibidem, p. 14.
uma visão estreita, pois a própria arte “só existe como fronteira instável que
precisa, para existir, ser constantemente atravessada.” 29
Para mim, escrever sobre cinema é assumir ao mesmo tempo duas posições apa-
rentemente contrárias. A primeira é que não há nenhum conceito que reúna to-
dos esses cinemas, nenhuma teoria que unifique todos os problemas que eles
suscitam. (...) há apenas uma relação de homonímia. Já a outra posição diz, ao
inverso, que toda homonímia instaura um espaço comum de pensamento, que o
pensamento do cinema é o que circula nesse espaço, pensa de dentro esses afas-
tamentos e se esforça para determinar este ou aquele vínculo entre dois cine-
mas ou dois “problemas do cinema”. 30
CINEMA E POLÍTICA
29
Ibidem, p. 15.
30
Ibidem, p. 16.
31
“écart nm 1. action de s’écarter, de se detourner de son chemin, d’une ligne de conduite,
d’une norme. 2. distance, intervalle, différence.” DICTIONNAIRE Mini Larousse. Paris:
Larousse, 2008.
32
Idem, A partilha do sensível: estética e política, op. cit.
33
Idem. Políticas da escrita, op. cit.
Existe portanto, na base da política, uma estética, que não tem nada a ver com a
“estetização da política” própria à “era das massas” de que fala Benjamin. Essa
estética não deve ser entendida no sentido de uma captura perversa da política
por uma vontade de arte, pelo pensamento do povo como obra de arte. (...) É
um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do
ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como
forma de experiência. a política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer so-
bre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das
propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. 34
34
Cf. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível, op. cit., p. 16-17.
35
Ibidem, p. 24.
36
Ibidem, p. 25.
37
Ibidem, p. 26.
uma estranheza apta a carregar de energia as forças para a ação. Por isso a
afirmação de Rancière: “Não existe política do cinema.” 38 O que existe são fil-
mes, aquilo que chama de “figuras singulares”, capazes de fazer conviver dois
significados de “política”: “aquilo de que trata um filme — a história de um
movimento ou conflito, a revelação de uma situação de sofrimento ou de
injustiça — e a política como estratégia própria de uma operação artística.” 39
Como ponto de referência, Rancière escolhe um filme de 1979, Dalla nube alla
resistenza, de Jean-Marie Straub e Danielle Huillet, e explica que a sua escolha
se deve ao uso do filme de um paradigma brechtiano, útil para pensar as rela-
ções entre arte e política e especialmente entre esta e o cinema:
38
Cf. Idem, As distâncias do cinema, op. cit., p. 121.
39
Ibidem, p. 121.
40
Ibidem, p. 122.
41
Ibidem, p. 122.
42
Ibidem, p. 123.