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Experiéncia e Narrativa —o “pés-abolicdo” como problema histérico Ana Lugo Rios e Hebe Mattos Tzaquiel Inacio tinha 72 anos 4 época da entrevista concedida a Ana Lugio Rios, em 1995, Nasccu na Fazenda do Sossego, em Paratba do Sul, estado do Rio de Janciro, onde —segundo seu depoimento — foi escravo o seu avd, “por parte de pai", chamado Telemos Indcio (que falava uma lingua estranha sem- pre que ndo queria ser entendido). Também seu pai, “jd nas- cido livre", teria morado na Fazenda do Sossego antes ¢ depois do fim do cativeiro. Sua avé paterna chamava-se Glacina Telemos Indcio. Izaquiel foi lavrador em Paraiba do Sul por toda sua vida. Um de seus irmios, de 90 anos a época da en- trevista, vivia como operiric aposentado da Light, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Ainda segundo o depoimento, seu Izaquicl mantinha contato também com os netos € bisne- tos do primeiro casamento do seu pai, realizado ainda no tem- po do cativeiro, moradores na cidade do Rio de Janeiro. José Veloso Sobrinho nasceu em 1916, na cidade de Cunha, SP Diz-se neto de avé escrava com avé portugués, por parte de mae ¢ de pai. Segundo seu depoimento, a avd pater- na cra africana do Congo. Seu pai, filho de uma cativa brasi- Icira com um jornalista portugués de nome Veloso, no teria a3 EXPERIENCIA E MARRATIVA chegado a ser escravo, “tinha papel”. Seu pai foi tropeiro e depois lavrador em terras préprias. Cresceu “tocande lavou- ra" com seus dez irmios nas terras do pai. Tem o primeiro grau completo, A época da entrevista concedida ao projeto Memoria da Escravidio em Familias Negras de Sdo Paulo (1988), ainda tocava lavoura com os filhos € era dono de uma pastelaria na cidade, Quatro dos seus 12 filhos cursaram fa- culdade ¢ 0s outros terminaram pelo menos 0 primeiro grau. Paulo Vicente Machado nasceu em 1910, filho cagula de Vicente Machado, ex-cative na Fazenda da Presa, em Alegre, no Espirito Santo. Cresceu “tocando lavoura” com seus pais € irmios, em regime de parceria, na mesma fazenda em que o pai havia sido escravo. A mie mio chegou a ser cativa, pois, segundo seu depoimento a Robson Martins, nascera “de ven- tre livre”, Seu pai se tornou, posteriormente, pequeno proprie- tirio de um sitio de café em Vala de Souza, também no Espirito Santo. Apés casamentocom a filha de um sitiante vizinho, Paulo Vicente Machado se tornou operario na Estrada de Ferro Leo- poldina. Como operario da Leopoldina marou em varias cida- des de Minas Gerais, até — jd aposentado — fixar-se em So Gongala, no Rio de Janeiro, onde vivia 4 épaca da entrevista. Esses so pequenas resumes dos depoimentos de trés ho- mens que se identificam como negros e descendentes de es- cravos, que viveram (pelo menos) a infincia tocando lavoura com a familia em antigas dreas cafeeiras do Centro-Sul do Bra- sil. Seus depoimentos rememoram com nitidez pai ¢ mae, avd ¢ avé, bem como tragam com facilidade suas genealogias até 14 MEMORIAS BO CATIVEIRO © cativeiro. Tomados em conjunto, produziram determinadas representagdes comuns sobre escravidao ¢ liberdade referidas A trajetériae & tradigio familiar. Esses mesmos depoimentos foram entretanto fruto de experiéncias de pesquisa diferenciadas. Dais deles (Paulo Vicente ¢ Izaquiel Inicio) sio resumos de entrevistas depositadas no acervo Memdrias do Cativeiro do Laboratério de Histaria Oral ¢ Imagem do Departamento de Historia da Universidade Federal Fluminense (doravante Labhoi-UFF).' Esse acervo se constituiu fundamentalmente a partir do desenvolvimento de um projeto integrado de pro- dugio de documentagio oral, intitulado Memérias do Cati- veiro, que envolveu a produgSo de entrevistas para a pesquisa de Robson Lufs Machado Martins (doutorado — Unicamp), desenvolvida em uma comunidade rural do Estado do Espiri- to Santo (municipio de Alegre), formada por descendentes de antigos escravos da regiio; para a tese de Ana Lugio Rios (University of Minnesota— Ph.D., 2001), sobre a histéria da experiéncia familiar dos descendentes de libertos nas antigas dreas cafeciras do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, apds a Aboli¢io, cujo texto deu origem a boa parte deste livro;? além da produgio de entrevistas diretamente pela equipe do Labhoi, sob a coordenagao de Hebe Mattos." 10 catilogo do acervo oral Memdrias do Catlveiro pode ser acessato vin Internet, através do site de Labboi, no enderego wwwhistoria.ullbelabhal. FRtios, Ana Lugo, “My Mosher was a Slave, Not Me. Black Peasantry and Local Politics in Southeast Brazil, <. 1870-c, 1940" (University of Minnesota, 2001). 'Participaram da equipe da Projet Memériat do Cativeira do Labhoi, com bolsa de iniciagdo centlfica do CNP, Karina Canha Baptista, Pablo Macha- ado de Azeredo, Carlos Eduardo Costa, Fernanda Thomas ¢ Carolina Peixoto, EXPERIEWCIA E WARBATIVA Esta ndo foi uma experiéncia pioneira. Maria de Lourdes Janoti ¢ Sueli Robles de Queiroz coordenaram projeto seme- Ihante em So Paulo, em 1988, intitulado Memdria da Escra- viddo em Familias Negras de Sao Paulo. Teanscrigdes das entrevistas realizadas, analisadas em mais de uma dissertagio de mestrado, encontram-se arquivadas no Centro de Apoio & Pesquisa em Historia Sérgio Buarque de Holanda (FFLCH- USP), caixas 1a 16.* Sio ao todo 44 familias entrevistadas. As entrevistas, em geral, foram feitas com trés pessoas de di- ferentes geragdes de cada uma das familias. Retomando 0 acervo oral assim formado, foram lidas ¢ fichadas, para os ensaios deste livro, as transcrigdes das entrevistas relativas & Primeira geragio das familias entrevistadas, quando residen- tes 4 época da infancia nas dreas rurais do estado de S40 Pau- lo, num total de 32 entrevistas. Entre clas, a de José Veloso Sobrinho, resumida anteriormente. A partir de iniciativas como essas, tardiamente comega- ram a se constituir, no Brasil, acervos potencialmente capa- zes de basear uma abordagem histérica sobre a insergie social dos tiltimos libertos apés a aboligao da escravidio no pals, em 1888. Este esforgo se fez de forma paralela a uma intensifica- 30 dos estudos comparados sobre sociedades pés-emanci- pagio nas Américas, em nivel internacional, que estimulou a “"Bnure 06 trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores do projero destacam- s2, entre outros, Claudia Regina Callari, “Idemtidade e cultura popular: Pls drias de vida de familias negras*, dimertagio de mescrado em Histéria, Universidade de Sto Palo, 1993; Maria de Lourdes Jano ¢ Zita de Paula ‘Rou, “Memory of Slavery an Black Families of Sao Paulo, Brazil” in: Daniel ‘Bereaune Pan! Thompson (args), Retween Generations. Frenily Models, Myths, ‘and Memorier, Oxford University Press, 1993, MewOalat DO CaTivEIRG formulagio do problema pela pesquisa histérica no Brasil.’ O presente livro surgiu desse context e se construiu, basicamen- te, a partir da andlise do conjunto de depoimentos orais ante- riormente descrito. A CONSTRUSAO DO POS-ABOLIGAD COMO PROBLEMA Buscar compreender as relagies entre o proceso de eman- cipagio dos escravos nas Américas ¢ seu destino nas antigas sociedades escravistas é atitude relativamente recente entre os historiadores. Isso nao significa dizer que a preocupagio: com o perioda pos-aboligio, especialmente no que se refere ao estudo das relagdes raciais, seja recente. Pelo contririo, é uma questdo bastante antiga. No entanto durante muitos anos considerou-se mais ou menosa mesma coisa estudar as relagGes raciais no pés-aboligao ou o destino das populagoes: libertas, considerando ambas as situagées uma heranga do perfodo escravista. Mesmo a preocupagio sistematica com a escraviddo em si se descnvolveu, em grande parte, como uma fungio da preocupagao sobre as relagdes raciais, que eram percebidas de forma quase naturalizada come heranga direta da escravidio moderna, muitas vezes chamada de es- cravidio racial. Até aproximadamente meados da década de 1970, boa parte dos cientistas sociais concordava que a situagia dos “negros” no pds-abolicdo, principalmente nos Estados Uni- Sc02t, Rebecca {editor}, Societies after Stiwery: A Selected Bibliography of Printed Sousces on she Britis West Indies, Brivis Colonial Africa, Sash Africa, Cuba, Brazil, Ann Arbor, University of Michigan Presa, 2001. W EXPERIENCIA € NARRATIVA dos ¢ no Brasil, era de forma mais ou menos direta resulta- do da heranga da escravidao, ainda que nem sempre con- cordassem quanto 4 natureza dessa heranga. Os principais autores a fornecer os pardmetros do debate nesses termos foram Gilberto Freyre e Frank Tannenbaum, ainda nos anos 1930. Apesar da complexidade e inegivel riqueza da obra de Gilberto Freyre, que constantemente gera novas e diferentes abordagens e interpretagées,* foi a énfase no cardter pater- nalista ¢ de acomodagio de conflitos da escraviddo brasileira que se tornow o traco mais difundido do seu pensamento. Casa-grande t+ senzala (1933), sua obra mais famosa, enfatiza 08 espagos de convivéncia entre brancos colonizadores, ne- Bros escravos ¢, em menor escala, a populagio indigena no Brasil colonial. Para Freyre, tais espagos, cxistentes principal- mente no ambite familiar da casa-grande, sob o dominio do patriarca, teriam sido decisivos para uma convivéncia racial, se nio harménica, pelo menos acomodada. Isso teria permi- tido o intercémbio de culturas além, é claro, da mesticagem. ‘A tese de Freyre, da qual se infere uma visio de certa forma harmoniosa das relagdes raciais no Brasil dos anos 1930 como heranga da escravidio, foi decisiva para influenciar a percep- ‘io académica sobre a situagao dos descendentes de escravos no Brasil. SCL, enere outros, Aratjo, Ricardo B., Guerns paz: Cass grande & senzala e 2 abmarde Gilberta Freyre was anos 1930, Rio de Jancira; Ed. 34, 1994; ¢ Fal- ‘clio, Joaquim e Aradja, Rosa Maria B. (args.), O imperadar das idéias, Gilber- to: Freyre em questa, Min de Janeiro, Eds. Calégio do Brasil, UniverCidade, Fundagio Roberto Mariaho ¢ Top Books, 2001. MEMORIAS DO CATIVEIRG Frank Tannenbaum, em um pioneiro esforgo em histé- ria comparativa, seguiu a mesma trilha. Em seu livro Slave and Citizen apontava as diferengas que percebia na escravi- dao em paises catélicos ¢ protestantes, como determinante no devir das populagdes negras e mestigas. Para esse autor, fato de os paises de tradigao catélica (principalmente Portugal ¢ Espanha, ocupando a Franga uma escala interme- diaria) j4 estarem familiarizados com a escravidao ¢ terem herdado, com adaptagées, a jurisprudéncia romana sobre o assunto teria propiciado uma melhor aceitagdo ¢ integragio social das populagées libertas, facilitando sua ascensio eco- némica ¢ social. Tannenbaum iniciow o que seria uma das caracteristicas metodolégicas mais marcantes dos estudos pasteriores so- bre a escravidio: a preocupagdo com a comparagio. De fata, os trabalhos posteriores sobre o assunto passaram a apre- sentar, implicita ou explicitamente, referéncias a outros pai- ses. Foi pioneiro também ao enfatizar o papel do direito ¢ da cidadania como quest6es centrais para a anilise das rela- Ges raciais nas sociedades pds-emancipagio. De todo modo, como no caso de Freyre, foi a relagdo estructural, entre siste- ma juridico no tempo da escravidio ¢ relag6es raciais pés- emancipagio, que se consolidou como leitura predominante de sua obra.” Juntos, Freyre ¢ Tannenbaum inauguraram posig6es que seriam quase paradigmiticas na academia pelo seu consen- 80 nos anos 1930, 1940 ¢ 1950. Nos anos 1950-70, a dis- "Frank Tannenbaum, Stave get Citizen, Boston, Beacon Press, 1992 (primei- ra edigio 1946), EXPERIENCIA E NARRATIVA ‘cussio académica se encarregaria de questionar seriamen- te a maioria dessas posturas, menos aquela que foi a mais duradoura ¢ consensual das posigdes dos autores: a de que as relag6es raciais e a situagio do “negro” no pés-escravi- dio eram fruto, mais ou menos direta, da heranga da es- cravidio, Nos anos 1950 a academia brasileira comegou a publi- car as obras daquele que seria o mais importante critico das posturas de Gilberto Freyre e o principal estudioso brasileiro da insergio dos “negros” na sociedade brasileira pés-eman- cipagio: Florestan Fernandes, Fernandes, em colaboragio com Roger Bastide, publicou Brancos e megros em Sdo Fau- fo, em 1955, mas foi A imtegragdo do negro na sociedade de classes (1964) sua obra mais completa. Nela, o autor langa- ria os termos do debate subseqiiente no Brasil. De fato, 0 estudose detém no ambiente urbano de Sao Paulo, ainda que em varias oportunidades generalize suas conclusées para 0 meio rural. Para Fernandes, a heranga deformadora da escravidio seria apenas um dos fatores a explicar a desorganizagia social que ele percebia como caracteristica das populag6es negras. Essa desorganizagio social se traduziria na aus8ncia de ligagdes familiares sdlidas, de iniciativa e disciplina de trabalho, de solidariedade de raga ou de classe, levando a um tipo de com- portamento por vezes patolégico (desregramento sexual, al- coolismo, inclinagdo para o crime, prostituigao etc.). Para a explicagdo dessa situago de patologia social, teriam contri- bufdo elementos conjunturais ¢ psicolégicos, e ndo apenas a heranga da escravidio. Assim, as expectativas frustradas dos 20 MEMORIAS DO CATIVEIRD libertos coma liberdade, o rapido desenvolvimento da cida- de em moldes capitalistas e competitivos e a introdugdo dos imigrantes europeus em larga escala teriam contribuido tam- bém para a desorganizagio social do “negro”. Mesmo intro- duzindo elementos conjunturais ¢ dindmicos em sua anilise, Fernandes sugere, basicamente, que a ordem racial herdada da escravidio foi um dado estrutural que persistin, sobrevi- vendo ao pés-aboligio.' Desse modo, a resposta para questGes levantadas sobre a insergao social do liberto apds a aboligdo esteve, durante mui- ‘tos anos, necessariamente ligada ao aprofundamento dos ¢s- tudos sobre a escravidio, Nessa perspectiva, mesmo em trabalhos como & de Florestan Fernandes ¢, especialmente, nos de seus muitos discipulos, em si mesma a aboligio se apre- sentaria quase como um nao-fenémeno, incapaz de gerar mudangas. Assim, ao longo dos anos 1960, operou-se na academia brasileira uma primeira revisio das teorias interpretativas sobre a escravidao brasileira. A dendncia do racismo existen- te e a continuada filiagio de relagio causal estabelecida ante- riormente (situagao do negro como decorréncia da escraviddo) forgaram a releitura desra dlrima. Afinal de contas, persistin- do a relacdo causal inaugurada nos anos 1930, se existia ra- "Fernandes, F.,A integragta do megra na sociedade de classes, Sho Paulo, Anica, 1978 (primeiraedigis 1964), vol, 1, especialmente pp. 43-60, 137-245 € 269- 2270, George Reid Andrews observa que, apesar das diferengas entre Freyre e ‘Fernandes, ambos concordavam que 23 relages racials no Brasil cram heran- ga.da escrasidio, em Blacks and Whites im Sia Paulo, Bracil, 1888-1988, Madison, The University of Wisconsin Press, 1991, pp. 8-9. ay EXPERVEMCIA E MARRATIVA cismo, a escravidio nao poderia ter sido tio suave assim. A escravidio no Brasil passa entio a ser percebida, por cientis- tas sociais ¢ historiadores, como produto de uma sociedade completamente desprovida de espagos de convivéncia entre livres e cativos, para além das relagies de violéncia © traba- lho, na qual o eseravo teria sido realmente transformado em simples mercadoria. Sem oportunidades, ou descjo, de cons- tituir familia, viver em comunidade, apropriar-se de alguma parcela de seu trabalho ou negociar com seu proprictario, as opgdes dos homens ¢ mulheres cativos se restringiam 4. com- pleta submissio ou 4 fuga, ac suicidio ¢ ao crime, tinicas pos- sibilidades de resisténcia 4 despersonalizagio decorrente da sondigdo cativa. Com o mito da democracia racial sob ataque na academia brasileira nos anos 1960, ndo é de estranhar que o livre de Stanley Elkins, Slavery, a Problem in American Institutional and Intellectual Life (1959), que viria suscitar polémica nos EWA, tenha sido reccbido com certa fricza no Brasil. Elkins repetia em seu trabalho a ansilise de Freyre/Tannenbaum so- bre a suave escravidio da América Latina, em oposi¢io A cruel- dade da escravidio norte-americana, em um momento em que essa suavidade estava sob profundo questionamento no Bra- sil. No entanto as conclusdes de Elkins sobre a deformagio da personalidade escrava nos EUA encentravam claros para- lelos na produgio brasileira do perioda, que passava a ver no escravo a mesma caracteristica patolégica ¢ a olhar a escravi- dao no Brasil como um sistema cruel ¢ deformador. Ainda que no utilizando o conceito de Elkins sobre as instituigdes to- tais ¢ sua analogia aos campos de concentragio, a andlise da MEMORIAS DO CATIVEIRO deformidade da personalidade da pessoa submetida a escra- vidio foi semelhante.* Enquanto, no Brasil, a escraviddo quase idflica de Freyre se transformaya em um sistema cruel e deformador, os his- toriadores norte-americanos, impulsionados pelo polémi- co trabalho de Elkins ¢ pelo crescimento do movimento negro eda luta por direitas civis naquele pals, iniciaram uma ten- déncia que, como uma bola de neve, acabou por rever qua- s¢ todos os postulados anteriores, existentes deste os anos 1930, ampliando-os ¢ acrescentando- gagoes. Desde entio a construgao de uma personalidade patolé- gica do escravo e do liberto como heranga da escravidio, tal como descrita por Fernandes ¢ Elkins, passow a sofrer severas eriticas. Um dos pilares da andlise da personalidade andmica ¢ parolégica do liberto era a presumida auséncia de vida familiar e culrural dos eseravos. Em 1972, John Blassingame inaugura o interesse sistematico pela vida familiar e comuni- ‘tdria dos escravos, a que logo se seguiriam trabalhos de maior "Seanley Elkins, Slavery, A Problems in American Institutional and Intellectual Life, Nova York, The Universal Library, 1959. Uma anilise comparada das posighes de Lkins eda producSo brasileira sobre o terna das relagtes racials pode ser scompanhsda em Emilia Viorti da Costa, Da monanguia 3 replica, Momentos decisivos, Sho Paulo, Livraria ¢ Editora Citncias Humanas, 1979, cap. VL Mais recentemente, 0 paralelo enire as pasigoes de Elkins, Jacob ‘Gorender (O earraviemo colonial, Sho Prulo, Arica Editora, 1998 — primeira edigio 1978) e da chamada “escola paulista*, especificamente Fernanda H. ‘Cardoso (Capitaliome ¢ escravidda ro Brasil meridional: O megro ra sovieda= «de eseravaceats de Ria Grande do Sul Rio de Janeiro, Pax e Terra, 1977 — primeira ediglo 1962), relativamente A despersomalizaci e & coisificapio do escrave @ apontade por Sidney Chalhou em Vistes da fiberdade, Una bistd- via das dima décadas da exeravidita mr Corte, Sto Paulo, Cis das Letras, 1990, pp. 35-43 « 249-250. aa EXPERIENCIA E NARRATIVA félego. No agora jd clissico da historiografia, em ambos os hemisférios, Gutman mostrou, em seu The Black Family in Slavery and Freedom (1976), que 0s escravos americanas no apenas conheceram a familia, como esta era a principal in- fluéncia em suas vidas," Outro ponto-chave ainda nos primérdios desse processo de revisio foi a redefinigdo do conceito de paternalismo. Em 1969 Genovese argumentava que o paternalismo niio era tra- g0 tinico da escravidio ibérica, antes cumpria um papel espe- cifico em todos os sistemas escravistas, dependendo mais de varidveis como o absentefsmo ou nfo da classe proprietéria e da existéncia ow ndo do trifico megreiro do que propriamen- te da religido dos senhores ou da legislagio vigente nos varios patses escravistas. O paternalismo, no Sul dos BUA ou no Nor- deste brasileiro, faria parte da visdo de mundo de uma classe senhorial.' Mais tarde, em Roll Jordan Roll, publicado no Brasil como A terra prometida. O mundo que os escravos eriaram, Genovese inverteria a tica tradicional de andlise do paternalismo, incorporando a habilidade dos escravos em usar essa ideologia a seu favor. Entre os argumentos mais podero- sos em defesa da sinceridade com que os senhores sulistas acreditavam em sua visio paternalista da escravidao estio as paginas de A terra prometida mostrando a surpresa e a amar- Joh Blassingame, The Slave Comnunizy, London, Oxford University Press, 1972, Herbert G. Guumsn, The Mack Family in Slavery and Freedom, 1750- 1925, Nova York, Pantheon Books, 1976. “Eugene D. Genovese, “The Treatment of Slaves in Different Countries: Problems in the Application ofthe Comparative Method”, in in Red and Blick, Marsian Explorationsiin Souther and Afro-American History, Kavoxville, The University of Tennessee Press, 1984 (primeira edigdo 1363), pp.158-172. aa MEMORIAS 00 CATIVEIRG gura dos ex-senhores com o que chamavam de ingratiddo de seus ex-cativos.!? Também os espagos autonomos de produgio dos escravos ¢ suas possibilidades de negociagio vieram a integrar 0 uni- verso de preocupagio dos historiadores. As evidéncias sobre uma economia auténoma dos escravos, inicialmente no Caribe inglés, rornaram o tema, em pouco tempo, abjeto privilegiado de pesquisa em diversas partes das Américas. As descobertas sobre a importincia das rogas dos escravos ¢ sobre as familias escravas passaram a ter grande influéncia na explicagio da estabilidade do préprio sistema escravista, bem como nos comportamentos de resisténcia passiva ou de revolta aberta apresentados pelos escravos. A literatura em torno das ativi- dades aurénomas dos escravos, além de contribuir para 0 aprofundamento dos estudos sobre resisténcia ¢ revolta, ques- tionou a tese sobre a alienagio do trabalho presente na escra- vidio ¢ da inabilidade dos libertos em lidar com a economia de mercado." ‘Teoricamente, a incorporagio do conceito do escravo co- mo agente foi talvez o que tenha permitido a rica revisio historiografica que a literatura sobre o tema tem apresenta- do. Desde os anos 1970 o rompimento com os diversos CE, Eugene D, Genovese, A ternr prometida, © mundo que os escruwas cria~ ram (titulo criginal em inglés! Roll Jordan Rol...), wradugto de Maria Inés Rolim, Donaldson Magalhirs Garschagen, Rio de Janeiro, Pare Terra/ Braslia, CNP a, 1988, pp. 132-150. 'Suiney Miner, Caribbean Transformations, Chicago, Aldine Publishing Cou, 1974, caps. 6 © 7, especialmente pp. 189, 191 © 195, Uma compilagio de trabalhos sobre aividades autiqomas dos escravos no Caribe, BUA e Suriname cath em fra Beeline Philip D, Morgan, eds, The Slaves Economy. Independent Production by Slaves in the Aamericas, London and Portland, Frank Cass 8 Co. Lid., 1994, EXPERDENCIA © NARRATIVE paradigmas estruturalistas até entio predominantes havia rransferido a énfase das pesquisas para o papel social dos pré- prios escravos. Principalmente nos anos 1980, essa tendéncia s¢ instalou com forga também no Brasil. © ponto culminante foi o ano das comemoragées do centendrio da aboligio, 1988, quandc dezenas de trabalhos sobre o tema apareceram," O incremento da pesquisa sobre a histdria social da escra- vidio, a partir da segunda metade dos anos 1970, geraria as- sim uma massa crescente de conhecimento acumulado sabre os diversos aspectos da escravidio moderna nas Américas que forgaria uma revisio historiografica ¢ uma formulagio dife- renciada também do problema do pds-aboligio. Esta mudanga de perspectiva implicou uma abordagem das sociedades pds- emancipagao mais centrada na experiéncia dos libertos, no estudo de suas aspiragdes e de suas atitudes em face do pro- cesso emancipacionista ¢ dos novos contextas sociais por ele produzidos. Afinal, o escravo que emergia da nova histéria social da escraviddo era cada vez mais capaz de agio histari- ca. Tinha adquirido familia, vida culrural ¢ comunitiria, ne- gociava € muitas vezes atuava no mercado produzindo ¢ vendendo bens servigos por conta propria. Desta perspecti- va, também as atitudes dos libertos passaram a ser analisadas como iniciativas que respondiam a projetos préprios, que ne- cessariamente teriam interferido nos processes de reconfi- guracio de relagGes sociais e de poder que se seguiram a aboligio do cativeiro. "Para umn balango desta produsio, cf, "A historiogratia recente da escraviddo Deasleira”, in, Stuart Schwarts, Roceiva, excravose rebefdes, BaurwsSP, Edusc, 20 16 MEMORIAS DO CATIVEIRO ‘De fato, uma preecupagio sistemdtica com o pés-eman- cipagio no Caribe vem de fins da década de 1950. Alia dis- cussio foi inicialmente dominada por temas eminentemente econdmicos. Buscava-se uma explicagio para a crise da indiis- tria. agucareira em algumas das colénias britinicas, notadamen- te a Jamaica, foco do maior nimero de estudos. Em meados dos anos 1970, a preocupagdo dos estudiosos ji havia se am- pliado, passando a incluir como eixo central da discussio do pés-emancipagio a formagao de campesinato negro. Foi a his- toriografia sobre o periodo pdés-emancipagao no Caribe que primeiro explorou alguns dos aspectos que mais tarde se mos- trariam comuns a varios processos de emancipacio, num en- foque que privilegiava a ago dos libertos, especialmente a resistencia ao trabalho coletive (in gangs), a busca de recons- tituigio da vida familiar com a retirada de mulheres ¢ crian- gas. do trabalho na plantation ¢ a busca de maior controle sobre @ tempo ¢ o ritmo de trabalho."* Com a introdug3o de tematicas de forte cunhe antro- polégico, relacionadas & formagao do campesinato (como a familia, 0 parentesco, a produgio doméstica, a ocupagia © transmissio de terra, a heranga cultural africana), a andlise do pés-aboligio caribenho produziu uma abordagem mais enti- Para um resumo das tendéncias historiogrificas scbre o péwemancipagio ‘na Caribe, ver Kevin D, Smith, “A Fragmented Freedam: The Historiography of Emancipation and its Aftermath in the Brisish West Indies", in Slavery Abolition, 16{1}, abril 1995, pp. 101-130. Um resama dos resultados em on- ‘mum dos processos pés-emancipayio nas Américas, em uma perspectiva cca nbmica, esti em Herbert Klein ¢ Stanley Engerman, “The Transition from Slaves to Free Labor; Notes on a Comparstive Economic Model”, i Manuel Moreno Fraginals, Prank Moya Ponds ¢ Stanley L. Engerman (eds), Betseven Slavery and Free Labar: The Spanish Speaking Caribbean in the Nineteenth Century, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1985, pp. 255-265. a? EXPERIENCIA E NARRATIVE, quecida e interdisciplinar que influenciou fortemente os es= tudos posteriores. Atualmente, a luta dos libertos pelo que entendiam como o significado da liberdade esta na base das interpretagées da politica ¢ das iniciativas dos antigos estados escravistas no pés-abolicéo. Nos Estados Unidos, em Cuba ou no Brasil, politicas voltadas 4 repressdo da vadiagem, a cria- Gio de legislagSes restritivas sobre a ocupagdo de terras, bem como impastos e taxas sobre pequenas propriedades e vilas podem ser mais bem compreendidas a luz das aspiragdes e agGes dos libertos. Se, a principio, a formagio do campesinato negro era analisada basicamente como uma fungao da exis- téncia de uma fronteita agrdria aberta e da relagdo terra/tra- balho a ela subjacente, as andlises passaram a enfatizar cada vez mais a dimensio politica do fendmeno. No tocante ao Caribe, o trabalho de Thomas Holt sobre a Jamaica foi para- digmtico nesse sentido, permitindo desvendar o quanto a luta dos libertos para construire viver sua liberdade influenciou a definigio ¢ o contetido do termo em si, seus significados e sontradicées."* Os desenvolvimentos dos estudos sobre o pés-emancipagiio, ndo apenas no Caribe, permitiram reavaliar também os estudos histéricos sobre relagdes raciais e a idéia de “heranga da escravi- dio”, Para tanto, o ponto de partida foi a percepgio de que a “Cf. Thomas C. Holt, The Prablem af Freedom. Race, Labor and Politics it Jamaica and Britain, 1832-1938, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1992, especialmente préloga ¢ cap. 1. Algumas das sbordagens mais recentes sobre © péi-emancipagho de uma perspectiva comparada podem ser scompanbadas em Frank McGlynn e Seymour Drescher (eds.), The Mearing of Freedam, Economics, Politics, and Culture Ajter Slavery, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1992, ¢ Frederick Cooper, Thomas Holt Rebecca Scott, Heyand Slavery. Explanations of nice, lator, amd citicenship im pastemancipation societies. The University of North Carolina Press, 2000. 28 MEMORIAS DO CATIVEIRO construgio das identidades raciais negras nas Américas ndo se fez como contrapartida direta da violéncia intrinseca & ordem escravista. Trata-se de reconhecer que o proceso de destruigio da escravictio modema esteve visceralmente imbricado com 0 processo de definigao ¢ extensic dos direitos de cidadania nos novos pafses que surgiam das antigas coldnias escravistas. E que, por sua vez, a definigao e o alcance desses direitos estiveram di- retamente relacionados com uma continua produgao social de identidades, hierarquias e categorias raciais. Nesse sentido, a historicidade das identidades ¢ classificagdes raciais tarnou-se questio central para o entendimento dos processos de eman- cipagio escrava e das formas como as populacgdes afrodescen- dentes e as sociedades pais-emancipagio lidaram culturalmente com 0s significados da meméria do cativeiro. O proceso de emancipagio cumpriu, assim, um ciclo com- pleto ¢, de fenémeno no relevante para o estudo das relages raciais, passou a ser o mais relevante. Desse modo, os recen- tes estudos sobre o pés-emancipagio tém contribuido para questionar o mais duradouro dos postulados Freyre/Tannen- baum, o de que a situagio do “negro” € resultado, pura e sim- plesmente, da heranga da escravidao. De fato, procura-se recuperar a historicidade dos diferen- tes processos de desestruturagio da ordem escravista ¢ seus desdobramentos, seja no que se refere as relagdes de traba- lho, as condigdes de acesso aos novos direitos civis e politicos para as populagées libertas, bem como As formas de racializa- cio das novas relagdes econdmicas, politicas ou saciais. Ou seja, procura-se desnaturalizar a nogao de raga, pereebendo as categorias e identidades raciais como construgées sociais, historicamente determinadas. ae EXPERIEMCIA E MARRATIVA AS FONTES ORAIS EO POS-EMANCIPACAD NO BRASIL. Este livro ¢ fruto do encontro de duas experiéncias de pes- quisa, que s¢ fizeram de forma paralela porém integrada, a partir de um conjunto de fontes comum. Desde 1994, 0 pro- feto Memérias do Cativeiro reuniu no Labhoi diversos pes quisadores, num esforgo de documentagio ¢ pesquisa, que buscava produzir fontes de memoria capazes de embasar uma abordagem histérica da insergao social do liberto apés.a abo- ligdo da escravidao. Para bem trabalhar o material assim pro- duzido, foi necess4rio, entretanto, primeiramente enfrentar as dificuldades normalmente colocadas pelo uso de fontes de memdria, especialmente quando soba forma de registro oral. A primeira pergunta que se impunha era por que este tipo de trabalho sé comegotsa ser desenvolvido nos dltimos vinte anos. ‘Come foi possivel que perdéssemos a oportunidade de regis- tar para a posteridade a fala e a memoria de milhares de ex- escravos brasileiros ainda vivos ¢ hicidos durante toda a primeira metade do século XX? Nao foi por falta de historia- dores, antropdélogos ou folcloristas interessados no tema. Muito se produziu nesses campos sobre o “negro no Brasil”, especialmente desde a década de 1930, mas pouco sobre os ltimos escravas ¢ a experiéncia da escravidio e da liberta- gio. As mais expressivas publicagdes de entrevistas com ex- escraves brasileiros se fizeram na década de 1980, jd proximo: de se completar um século da aboligio da escravidio.” De certa forma, foi preciso desnaturalizar a nogio de raga ea prd- | CE. especialmente, Miia José Maestri Filho, Depoinmemtas de escravos bra- ailetros, Sto Paulo, loane, 1988. MEMORIAS DO CATIVEIRG pria categoria “negro” para valorizar as evidéncias de que a ampla maioria da populagio afrodescendente do pats era nas- cida livre havia pelo menos mais de uma geragio no momen- toda aboligio do cativeiro. Desse modo, foi possfvel também separar analiticamente a questio histérica da inser¢So social dos diltimas libertos e os processos de racializagdo e discrimi- nagio racial no pats. A partir dessa perspectiva, foi a experiéncia ea meméria coletiva produzida pelos dltimos libertos, especialmente no antigo Sudeste cafeciro onde majoritariamente se concentra- vam, que este livro buscou abordar, Assim como os ex-senho- res, esses filtimos escravos apresentaram estratégias variadas para enfrentar os primeiros anos de liberdade. Algumas de suas escolhas ainda marcam a paisagem rural brasileira, na qual persiste, até hoje, um ntimero expressiva de comunidades negras, a maioria delas formadas nos dltimos anos da escravi- dio ¢ nas primeiras décadas da liberdade, portadoras de uma memoria coletiva dos tempos do cativeiro ¢ da aboligio da escravidao, além de um forte senso de identidade émica. Nossa pesquisa buscou conhecer um pouco sobre a vida desses Gltimos cativos, de seus filhos ¢ netos, nestes anos cruciais, sobre sua forma de produzir, morar, viver em famf- lia, suas regras de comportamento e suas possibilidades de realizar a vida em liberdade. Buscamos também explorar as condigées de produgio ¢ difusdo de uma determinada meméria coletiva sobre o tempo do cativeiro que transmiticam, de forma surpreendentemen- te regular, a seus filhos ¢ netos, bem como as formas como essa meméria foi apropriada e re-significada por seus descen- dentes ao longo do conturbado século XX. a EXPERIENCIA © NARRATIVA Aexploragio sistemitica de reminiscéncias do trabalho na infancia, a construgio de genealogias ¢ a exploragao de coin- cidéncias narrativas sobre o “tempo do cativeiro” foram as ‘bases comuns para © tratamento metodoldgico do conjunto de depoimentos orais reunidos neste trabalho. Especialmente o.uso de gencalogias permitiu acompanhar verdadeiras sagas familiares que remontavam ao inicio do século XIX ¢ desdo- bravam-se até as dltimas décadas do século XX. Come as entrevistas aqui reunidas foram produzidas por diferentes pes- quisadores, preocupados com diferentes questées, o trabalho de identificar coincidéncias narrativas ¢ organizd-las tema- ticamente, bem como de reconstruir trajetdrias individuais ow genealdgicas, implicou um enorme esforgo coletivo de fami- liarizagao ¢ critica da documentagio. ‘Os resultados assim alcangados, associades como conhe- cimento acumulado através da andlise de fontes demograficas, cartorarias ¢ judiciais, nos permitiram abordar aspectos do processo de insergio social dos dltimos libertos apés o fim do cativeiro que as abordagens exclusivamente baseadas em fon tes escritas, até entio, no haviam conseguido explorar. Per- mitiram ainda evidenciar a construgio de uma determinada meméria coletiva sobre o processo de aboligao e sobre o tem- po do cativeiro, prdpria as familias camponesas formadas a partir da diltima geragao de libertos; bem como acompanhar os mecanismos de enquadramento e redefinigio desta cons- trusio discursiva, em fungio das diferentes situagGes histéri- cas ¢ sociais vividas pelos narradores. Desse modo, ¢ livro se estrutura em duas partes. A pri- meira, desenvolvida pela equipe do projeto Memsrias da Ca- tiveiro do Labhoi-UFF, sob a coordenagio de Hebe Maria 32 MEMOREAS DO CaTIVEIRO ‘Mattos, procura evidenciar ¢ssa meméria coletiva a partir das falas dos préprios depoentes, transcritas e editadas a partir das coincidéncias narrativas identificadas, precedidas por uma introdugdo analitica. Buscou-se produzir uma narrativa his- toriografica significativa sobre a historia da construgio dessa meméria; bem como de suas transformagées ¢ re-significagdes ao longo do século XX. Na segunda parte, procuramos acompanhar a experién- cia histérica do campesinato negro que produziu aquelas nar- rativas. Nos 3 primeiras capitulos — baseados na tese de doutorado de Ana Lugio Rios—, sio analisadas as trajetérias de diferenciagio social da diltima geragio de libertos ¢ as for- mas como essa diferenciagao afetou as condigdes de forma- gio de um campesinato negro, no Sudeste cafeeiro, apés a Aboligéo. Com base nos relatos orais, as trajetérias de filhos enetos de libertos sio entio abordadas, bem como seus em- bates em torno de condigées de vida, trabalho e moradia eos desdobramentos desses embates na politica local nas primeiras décadas do século pasado. No quarto capitulo, concluindo 0 livro, um estudo de caso sobre a comunidade negra rural de Sio José da Serra (Valenga — Rio de Janeiro) —desenvolvido: inicialmente com vistas & produgao do laudo antropoldgico de reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo pela Fundago Palmares (redigido por Hebe Mattos e Lidia Meirelles) — permite discutir as condigées de repro- dugio social desse campesinato negro, que emerge da aboli- gio do cativeiro, ao longo do século XX. Apesar do desenvolvimento paralelo de ambas as pesqui- sas ¢ da redago individual da primeira versio da maioria dos textos que vieram a compor o livra, 0 proceso coletivo de EMPERIENCIA E WARRATIVA trabalho ao longo de dez anos de desenvolvimento do proje- to Memdrias do Cativeiro empresta um cardter fortemente integrado ao resultado final, que esperamos venha contribuir para ajudar a sublinhar a especificidade ¢ a importincia de se abordar as reconfiguragées de relag6es sociais ¢ identitdrias, no pés-Aboligio, como problema histérico.

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