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Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE

FRIEDRICH NIETZSCHE E A CONTEMPORANEIDADE:


ESCOLA, CULTURA, CORPO E SUBJETIVIDADE

José de Assis Moraes Júnior*

Resumo: O presente artigo trata dos


O presente artigo advém das in-
problemas da composição das subje-
tividades e suas interconexões com a quietações provenientes da imersão
Escola, com a Cultura e com o Cor-
no ensino. A incerteza da fluidez, fun-
po. Fazer ouvir, no campo da pesqui-
sa em Educação, os conceitos nietzs- damento primeiro da contemporanei-
chianos da transvaloração dos valo-
dade, e a habitualidade com o incô-
res, do übermensche e da fortitute são
nossas propostas. A questão central modo da transitoriedade são as sen-
que se coloca como objeto é: que
sações que ratificam a escolha pela
tipo-homem, que subjetividades, tem
forjado nossas instituições de ensino? temática da relação entre os conceitos
Palavras-chave: Friedrich Nietzsche,
de valor e educação. A questão da
Educação, corpo, cultura, subjetivi-
dade. * composição das subjetividades-
adolescentes nos atravessa diariamen-
Resumen: El presente artículo se ocu-
pa de problemas de la composición te. Um inconfessável fastio, fruto da
de las subjetividades y de sus interco-
experiência docente e, ainda, um in-
necciones con El Colegio, con la Cul-
tura y con El Cuerpo. Hace oír, en el digesto mal-estar, ante a composição
campo de la investigación de la Edu-
do modelo atual do processo educa-
cación, los conceptos nietzschianos de
la transvaloración de los valores, del cional, constituem o germe da presen-
übermensche y de la fortitute son
te escrita. A experiência professor, na
nuestras propuestas. La cuestión cen-
tral que se plantea como objetivo es: sua imanência, atravessada pelo des-
¿qué clase de hombre, qué subjetivi-
gosto com relação às investidas no
dades, han causado nuestras institu-
ciones de enseñanza? enfraquecimento das potências e das
Palabras claves: Friedrich Nietzsche,
sensações humanas, radica nossas
Educación, cuerpo, cultura, subjetivi-
dad. questões, profundamente filosóficas,
no campo, também, da Educação. A
máxima nietzschiana da transvalora-

*
ção de todos os valores e do além-do-
Departamento de Metodologia de Ensino,
Universidade Federal de São Carlos. mora- homem, o übermensche, como projé-
es_moncaio@yahoo.com.br.

MORAES JÚNIOR, José de Assis. Friedrich Nietzsche e a contemporaneidade: Escola,


cultura, corpo e subjetividade. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número
21: nov/2013-abr/2014, p. 17-32.
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til de uma humanidade da fortitute, postas do ensino e, sobretudo, do
impetrou, no núcleo das questões ensino da Filosofia?
aqui pretendidas, um irremediável A experiência professor, aqui,
desassossego, um desconforto intran- parece concorrer para a intuição de
qüilo. uma dualidade: de um lado, o mergu-
lho na condição docente nos afeta, na
Sobre a gênese da inquietação medida em que nos lança dentro de
A leitura do Assim Falava Zara- um campo significativo e arrebatador;
tustra, do filósofo alemão Friedrich e, por outro lado, a experiência didá-
Nietzsche, impõe-nos uma questão tico-burocrática com o sistema educa-
severíssima. Eis a advertência nietzs- cional nos impõe a sensação de uma
chiana: “o homem é algo que deve educação desanimada, desabitada e
ser superado. Vós que haveis feito incapaz de contaminar educador e
para o superar?” (NIETZSCHE, 1998, educando. Nessa perspectiva, o sis-
p.12). Como vislumbrar o übermens- tema educacional contemporâneo,
che, projeto nietzschiano de humani- envolto no fastio e no desgosto, pare-
dade, e, concomitantemente, alocar- ce arregimentar, nos termos nietzschi-
se ante o projeto político de homem anos, um imenso rebanho, cujo fun-
levado a termo por meio de nossas damento consiste numa espécie de
instituições escolar? moral do ressentimento com a vida.
Nesse sentido, a questão nietzs- Estamos, no entanto, diante do
chiana do além-do-homem, quando confronto com a experiência educaci-
deslocada para o campo da experiên- onal do Ensino Médio e, portanto,
cia educacional, parece nos provocar com a experiência da adolescência.
em direção a um projeto de escrita Por isso, nossa questão substancial se
inevitável. Para tanto, retomemos o reapresenta nos seguintes termos: em
pensamento inicial: que tipo-homem, que momento do processo educacio-
que subjetividades, tem forjado nos- nal, percorrido pelos adolescentes,
sas instituições de ensino? E quais instalou-se um agressivo sintoma de
configurações de valor estão presen- cansaço?
tes nas linhas e entrelinhas das pro-

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A constatação cotidiana com- isso, não perde sua potência questio-
prova, sobretudo na infância, um sen- nadora: por meio de que mecanismos
timento alegre, nos pequeninos, a educação petrificou os infantis espí-
quando de sua entrada no processo ritos bailantes? Nossa pergunta, por-
educacional. Em inúmeras oportuni- tanto, parece ainda mais irrecusável:
dades deparamo-nos com o sorriso em que momento, e por meio de que
infantil que, orgulhoso e radiante, dispositivos, o frescor de estar na es-
anuncia: “vou à escolinha!”. É a rela- cola se esvai? Sabemos que tais ques-
ção dançante com a primeira experi- tões não nos permitirão um diagnósti-
ência escolar. Escola e corpo, aqui, co esquadrinhado de uma suposta
encontram correlações potencializa- crise educacional. O que, no entanto,
das e potencializadoras. A novidade, não nos desvencilha da importância
encarada com entusiasmo, com fres- da questão central: por meio de que
cor, traduz-se pelo elemento vivo da mecanismos-dispositivos? Nossa hipó-
afirmação do caráter orgulhosamente tese, contudo, intui que a sensação de
estudantil. A condição discente, ou cansaço com o processo educacional
seja, o ir “à escolinha”, nesse mo- resulta de uma contínua experiência
mento, significa e, ademais, re- de sujeição moral a que os educandos
significa a própria experiência com a são submetidos no desenrolar de sua
vida. A escola constitui um elemento vida acadêmica.
da vida. A celebração presente na Por isso, encarar o ensino,
exultação “vou à escolinha!” demons- sobretudo o ensino da Filosofia,
tra mais do que uma inexperiência como objeto de análise, implica a
pueril perante uma realidade que, nós suposição de que, nas relações que se
adultos, ouvimos ultrapassada, tola e entrecruzam no espaço escolar, a
infantil. Decerto, a imagem arquetípi- composição das subjetividades e dos
ca da instituição escolar, produzida processos de subjetivação tornou-se
nas crianças, e a escola mesma, como elemento profundamente
dado da realidade, são fatos absolu- problemático.
tamente distintos. Isso é evidente. No Nessa esteira, outra questão
entanto, nosso problema central, com fundamental surge: quais as

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configurações de valor que estão em nossa exposição, permite uma
jogo no espaço da escola e por que empreitada a partir de um recorte
tais configurações resultam numa profundamente específico, que é a
espécie de revolta/fastio em relação à história do pensamento
própria prática do ensino escolar? E contemporâneo pós-68.
ainda: como compreender o ensino O corpo foi, desde sempre,
da Filosofia, lançado revestido de esquemas e modelos
desprevenidamente nas redes valorativos. O filósofo francês Michel
burocráticas do sistema educacional Foucault analisa a problemática do
sob o caráter da obrigatoriedade, corpo em Vigiar e Punir, escrito em
como um instrumento para pensar a 1970. Segundo Foucault, o século
tríplice relação cultura/escola/corpo? XVIII, em seus dispositivos, instaura
E, finalmente, relendo Nietzsche: que uma “descoberta do corpo como
tipo-homem – ou seja, que modelos objeto e alvo de poder” (1987,
de subjetivação? – são continuamente p.117). Foucault, mais adiante, repõe
forjados em nossas instituições de a referência a uma “arte do corpo
ensino, sobretudo no e a partir do humano” (1987, p.119) e ao
ensino da Filosofia? surgimento de uma nova “anatomia
Para começar a pensar tais política” do corpo (1987, p.119). E,
questões, lancemos uma visada ainda, continua: “em qualquer
específica ao tema da relação sociedade, o corpo está preso no
corpo/valor, ancorados pela leitura do interior de poderes muito apertados”
Assim Falava Zaratustra, de Friedrich (FOUCAULT, 1987, p.118). E ainda:
Nietzsche.
O grande livro do Homem-
máquina foi escrito
Da relação corpo/valor simultaneamente em dois
Para compreendermos a relação registros: no anátomo-metafísico
(...); o outro, técnico-político,
corpo/valor, façamos um lacônico constituído por um conjunto de
regulamentos militares,
apanhado da leitura contemporânea escolares, hospitalares e por
do tema. Lembramos, contudo, que o processos empíricos e refletidos
para controlar ou corrigir as
caráter ligeiro e propedêutico de operações do corpo

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(FOUCAULT, 1987, p. 117- educacional. Desde os séculos XVIII e
118).
XIX, o corpo tornou-se alvo de uma

Na esteira do pensamento fou- economia política e micropolítica do

caultiano, os autores Félix Guattari e campo do valor.

Suely Rolnik denunciam a respeito da O jogo educação/corpo, travado

urgência de uma reflexão do conceito no espaço escolar, portanto, se efetiva

de corpo, sobremaneira do corpo re- no campo da valoração, como

presentado nas sociedades industriais resultado dos discursos valorativos

desenvolvidas. Eles afirmam: “Exis- dominantes ou, na melhor hipótese,

tem outros sistemas antropológicos em contrapartida, como resultado das

onde essa noção de corpo individua- possibilidades de resistência.

do não funciona do mesmo modo” Segundo Foucault, o conjunto

(GUATTARI & ROLNIK, 2005, das estratégias políticas para a

p.336). Os autores apresentam, desse administração dos corpos funciona,

modo, uma noção de corpo como finalmente, como elemento

produção do sistema de fluxos capita- constitutivo do poder numa sociedade

lísticos. Corpo e valores subjetivos disciplinar. O autor, ainda, denuncia

entram, aqui, num jogo incessante. como tais dispositivos se traduzem em

Nos termos de Guattari e Rolnik, técnicas especificas no campo escolar.


Com a noção de estratégia,

O corpo, o rosto, a maneira de Foucault esclarece a dimensão


se comportar em cada detalhe política do corpo como espaço de
dos movimentos de inserção so-
cial é sempre algo que tem a ver conquista e dominação. O corpo,
com o modo de inserção na
subjetividade dominante (2005, para o filósofo francês, investido de
p.336). uma “mecânica do poder”, determina
um campo onde se pode ter domínio
Portanto, agora, toda uma
sobre os outros (FOUCAULT, 1987,
economia do corpo, uma economia
p.119). Michael Hardt e Antonio
do valor-corpo como imposição de
Negri apontam, exemplarmente, a
um modelo de subjetivação
importância do pensamento de
dominante, está presente nos diversos
Foucault nos seguintes termos:
discursos e, inclusive, no discurso
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refere a uma situação na qual o que
Em primeiro lugar, a obra de está diretamente em jogo no poder é
Foucault nos permite
reconhecer uma transição a produção e a reprodução da
histórica, de época, nas formas própria vida” (2004, p.43). A inserção
sociais da sociedade disciplinar
para a sociedade de controle. de todo o corpo social no campo do
Sociedade disciplinar é aquela
na qual o comando social é poder rompe com o antigo
construído mediante uma rede paradigma, onde a disciplina atuava
difusa de dispositivos ou
aparelhos que produzem e como uma biopolítica parcial
regulam os costumes, os hábitos
(HARDT & NEGRI, 2004, p.43), na
e as práticas produtivas.
Consegue-se pôr para funcionar medida em que exercia apenas um
essa sociedade, e assegurar
obediência a suas regras e poder corroborado por “lógicas
mecanismos de inclusão e/ou
relativamente fechadas, geométricas e
exclusão, por meio de
instituições disciplinares (...) que quantitativas” (HARDT & NEGRI,
estruturam o terreno social e
fornecem explicações 2004, p.43). O controle agora eclode
adequadas para a razão da para todos os campos, maximiza sua
disciplina (HARTD & NEGRI,
2004, p.42, grifo do autor). eficácia, ocupa os espaços deixados
vazios pela disciplina. Essa
A sociedade disciplinar descrita
intensificação do controle, portanto,
em Foucault, no entanto, como
exige, para atualizarmos a sua
paradigma do poder de toda a
resistência, uma experiência radical
primeira fase da acumulação
com a vida, uma percepção mais fina
capitalista (HARDT & NEGRI, 2004,
de seu caráter, de seu caráter de
p.42), é substituída, mais tarde, pela
indeterminação e de abertura. Nessa
produção biopolítica, da sociedade de
perspectiva, a diferença da análise
controle.
proposta, aqui, circunscreve essa
Para Hardt e Negri, biopoder é
radicalidade, onde imanência e
uma forma de regulação da “vida
transcendência podem ser avaliadas a
social por dentro, acompanhando-a,
partir do aspecto tensional.
interpretando-a, absorvendo-a e a
Ancorados por uma leitura
rearticulando” (2004, p.43). Os
deleuziana, Hardt e Negri falam do
mesmos autores, mais tarde,
aprofundamento e da passagem da
reafirmam: “O biopoder, portanto, se
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relação corpo/disciplinarização para milímetro de seus gestos. Uma
corpo/controle, que resulta num tipo dominação que se realiza no campo
diferente de sociedade. Deleuze, por simbólico do discurso e, mais
sua vez, já havia diagnosticado esse efetivamente, no campo da vida.
processo de transição. Ele previa: Pensar a escola – no sentido de
“são as sociedades de controle que sua extensão e de sua intensidade –
estão substituindo as sociedades implica, também, pensarmos seu
disciplinares” (DELEUZE, 1992, papel num tempo absolutamente
p.220). outro. A contemporaneidade implica
a convivência tempestuosa de
Da relação escola/corpo questões distintas daquelas que se
Compreendemos que alocar a arregimentavam quando da
temática do corpo no centro das proposição dos modelos escolares
preocupações com os problemas tradicionais. Afinal, outros são os
educacionais correlativos ao ensino e, tempos. Zygmunt Bauman expõe, nos
particularmente, ao ensino da seguintes termos, a questão:
Filosofia, parece uma urgência. O que
se diagnostica no cotidiano da escola Em geral, o mundo em que os
homens e as mulheres pós-
aponta para uma espécie de modernos precisam viver e
estremecimento em relação à moldar suas estratégias de vida
põe a prêmio (...) um tipo de
sujeição, à disciplinarização e ao aprendizado que nossas
instituições educacionais
controle exercido sobre o educando e herdadas, nascidas e
sobre seu corpo, tanto no espaço amadurecidas no moderno
alvoroço da ordem estão
escolar quanto, em alguns casos malpreparadas para oferecer, no
qual a teoria educacional,
absurdos, no espaço não-escolar. Há
desenvolvida como uma
um controle intenso da vida, um reflexão sobre as ambições
modernas e suas concretizações
policiamento da vida, exercido pela educacionais, só pode ver, com
uma mistura de perplexidade e
autoridade imediata, um assoberbar
horror (2008, p.163-164).
da autoridade sobre os limites da
existência do outro, do corpo do Resgatemos a pergunta que
outro, de seus movimentos, do circunscreve nosso interesse central:

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como compreender a composição do novo modo de leitura da realidade,
corpo/valor que se constrói nas um modo que se encontra para além
entrelinhas da relação das identidades seguras dos discursos
educador/educando, a partir da educacionais contemporâneos e, por-
compreensão da problemática tanto, para além da urgência dos sis-
contemporânea? temas de disciplinarização e controle.
Para Bauman, preparar o edu- Não nos parece apropriado, aqui,
cando para a vida “deve significar, atuar a partir de um movimento de
primeiro e sobretudo, cultivar a capa- resistência, dado que resistir implica,
cidade de conviver em paz com a necessariamente, no embate entre
incerteza e a ambivalência”, próprias duas forças opositoras e não na trans-
da pós-modernidade (2008, p.176). valoração das forças.
Bauman, ainda, descreve o potencial Deste modo, diante da imensa
da “incerteza” pós-moderna: “o sen- profusão semiótica da
timento dominante, agora, é a sensa- contemporaneidade, cuja habitação
ção de um novo tipo de incerteza” demanda um trato com o incerto, o
(1998, p.32). Hardt e Negri, por sua instável, com a diferença e com o
vez, afirmarão que “os processos de devir, a escola, nos parece, sofre uma
modernização e industrialização trans- fragilidade significativa. A
formaram e redefiniram todos os ele- contemporaneidade exige uma
mentos do plano social” (2004, experiência com a existência que a
p.305) e que “os processos para nos escola não aprendeu a fomentar. E,
tornamos humanos, e a própria natu- segundo nossa tese, o ensino da
reza do humano, foram fundamen- Filosofia, nas escolas de Ensino
talmente transformados na passagem Médio, ocupa esse espaço vazio e
definida pela modernização” (HARDT referencial da lida com a existência.
& NEGRI, 2004, p.306). Então, para além dos discursos
A proposição do tema da trans- da disciplina de Filosofia e de seus
valoração nietzschiana, portanto, se conteúdos programáticos oficiais, o
justifica, aqui, na medida em que a tema do corpo/valor, sob a égide
relação com a incerteza instaura um existencial, emerge com uma potência

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irresistível e significativa no que se pensar, nesse sentido, a contribuição
refere à construção das subjetividades do ensino da Filosofia para a
contemporâneas que se compõem no confecção das tramas e urdiduras que
jogo do ensino. Compreender, comporão o novo como linha de
portanto, os esquemas de corpo/valor fuga, como escape das subjetividades
imanentes a esse espaço da relação, enlatadas, feitas nas linhas de
do cruzamento de linhas, forças e produção do capitalismo. Hannah
vetores existenciais que se trava entre Arendt define a sensação da crise e
educador/educando, é um problema seus resultados nos seguintes termos:
próprio da pesquisa filosófica em
educação. E a pertinência de um Uma crise nos obriga a voltar às
questões mesmas e exige
estudo a respeito dos sistemas de respostas novas ou velhas, mas
valor e sua relação com a educação e de qualquer modo julgamentos
diretos. Uma crise só se torna
com o corpo perpassa, inclusive, o desastre quando respondemos a
ela com juízos pré-formados,
tema da crise – e da crise da isto é, com preconceitos. Uma
Educação, anunciado por Hannah atitude dessas não apenas
aguça a crise como nos priva da
Arendt, por exemplo – como experiência da realidade e da
oportunidade por ela
elemento fundante da problemática
proporcionada à reflexão (1972,
da moralidade. p. 223).

No entanto, crise, aqui, não se


Assim, a urgência de
configura como aquele sentimento
demarcações específicas em relação
fantasmagórico de desespero diante
aos temas da cultura/escola e da
da aparente demolição das antigas
cultura/educação, no âmbito mesmo
respostas aos sempre-problemas
da contemporaneidade enquanto
humanos. Ao contrário, o espaço
espaço de risco-crise, se evidencia.
mesmo de uma crise, “que dilacera
Michel de Certeau, problematizando a
fachadas e oblitera preconceitos”
respeito da relação entre escola,
(ARENDT, 1972, p.223), implica um
currículo e cultura, expõe, em seus
movimento criativo, implica a criação
termos, as questões aqui
de outras e novas respostas para a
apresentadas:
contemporaneidade. Podemos

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Dezenas de milhares de educação responde às exigências das
estudantes partilham hoje desse
sentimento [o de compreender a novas problemáticas no campo
cultura como um bem proibido educacional? Vejamos algumas
por um interdito]. Submetidos a
grades intelectuais que não lhes indicações propostas por Silvio Gallo:
parecem organizadas nem em
função de suas questões, nem
em função do seu futuro, não Parece-me que vivemos hoje,
percebem mais, no ensino que na pesquisa em educação no
lhes é “dado”, seu valor de Brasil, a tensão entre um estilo
instrumentalidade cultural e “clássico” de pesquisa,
social. Muitas vezes resta-lhes articulado com uma perspectiva
apenas um muro a transpor, um positiva, disciplinar,
obstáculo a superar, uma universalizante, e um estilo
condição imposta, para chegar “transversal” que investe na
às profissões que se encontram errância da curiosidade,
do outro lado (1995, p. 104, apostando na emergência de
grifo do autor). possibilidades distintas,
articulado com uma lógica da
diferença, não universalizante
A relevância – não mais utilitária
(...) uma “pesquisa nômade ou
– da educação para o educando, menor”, que escapa, vaza,
passa pelas grades disciplinares,
desde que este encontre no exercício proliferando saberes menores,
distintos, inusitados (...)
educacional referenciais de sentido
produzido mesmo como desejo
para a vida, é uma questão de suma de fuga, ciente do risco de
perecer, de ser apagado,
importância para o estudo das negado, vilipendiado (GALLO,
relações cultura/escola. 2006, p. 562, grifo do autor).

Parece, portanto, haver um


É nesse caminho que
papel fundamental para o ensino da
procuramos as referências de uma
Filosofia. Em que proporções o
filosofia da moral para pensar a
estudo está colado à vida e
temática da educação, do valor e da
fornecendo elementos para sua
cultura. E, ainda, no cerne de tais
significação? Mais especificamente: de
referências, a obra do filósofo alemão
que modo o ensino da Filosofia está
Friedrich Nietzsche.
atrelado à vida, subvertendo e, até
A escolha pelo filósofo de Sils
mesmo, negando as exigências
Maria se justifica pela relevância com
burocráticas do ensino quantificado
que seu pensamento não-sistemático
para fins de políticas meritocráticas?
responde às questões cernes dos
Ademais, como a pesquisa em
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temas tratados no campo educacional para pensarmos o campo
contemporâneo. educacional, sobretudo o tema do
ensino da Filosofia.
Nietzsche e a Educação A crueldade com que se tem
Embora o tema específico da educado as crianças, afirmaria Nietzs-
educação pouco tenha sido o centro che, se avistasse os esquemas de en-
das preocupações filosóficas de sino atuais, deve necessariamente
Friedrich Nietzsche, são inúmeras as ocupar nossas questões filosóficas.
indicações que encontramos em seus Com que barbárie se tem pesquisado
escritos a respeito das questões o tema da educação, sempre à esprei-
pedagógicas. Rosa Maria Dias, em ta de soluções tecnocráticas, burocrá-
Nietzsche educador, afirma que, “em ticas e disciplinares. E, ainda, com
seus primeiros anos como professor que frialdade são forjadas as subjeti-
no Pedägogium e na Universidade da vidades no âmbito escolar, a partir
Basiléia”, Nietzsche se debruçara dos agenciamentos de enunciações
“sobre os problemas concretos do dominantes que ali circulam.
ensino secundário e superior” (2003, No que se refere à imposição da
p.16). Filósofo das imagens, do moral, Nietzsche, descortina um as-
conceito-estética, da escrita aforística pecto que parece ser crucial:
tempestuosa, bailando em meio às
tramas da filosofia sistemática e Colocar em evidência a partie
honteuse [o lado vergonhoso]
troçando de sua seriedade senil, de nosso mundo interior, e pro-
Friedrich Nietzsche, um andarilho, um curar o elemento operante,
normativo, decisivo para o de-
caminhante, se permite a luxúria da senvolvimento justamente ali
onde o nosso orgulho intelectual
incerteza, do móvel, do menos desejaria encontrá-lo
conhecimento-devir. Filósofo, (NIETZSCHE, 1998, p.17, grifo
do autor).
também, da virtù, da potência, do
martelo, da dureza-consigo-mesmo, Nietzsche descreve, com maes-
da re-interpretação do corpo e de seu tria, aquilo que parece ser a tarefa
lugar no pensamento, atua, aqui, essencial de uma educação escolar
como possibilidade epistemológica pautada no apequenamento moral e

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na anulação estética do corpo. Eis a propostas curriculares, inclusive as
funcionalidade da educação contem- que se referem ao ensino da Filosofia.
porânea: produzir sempre uma incon- A preocupação com a normati-
veniência do corpo como fenômeno zação moral das crianças, gênese do
estético na produção das subjetivida- fastio escolar adolescente, ainda que
des. Nessa perspectiva, o corpo escamoteada na transversalidade dos
abandona, com uma postura submis- discursos e do discurso, dito filosófico,
sa, o exercício livre e reflexivo do da “cidadania”, cada vez penetra a
pensamento e assume o caráter en- raiz das posturas mais procuradas nos
curvado do assujeitamento. profissionais dedicados ao ensino. Eis
Sem dúvida, a escola é um es- o diagnóstico nietzschiano:
paço privilegiado para a formação
dos indivíduos e de seus espíritos e, É quase logo no berço que nos

como pretenderia Nietzsche em ques- dão como dote graves palavras

tões educacionais, espíritos livres. Na e valores: “bem” e “mal”, assim


se chama esse dote. Em virtude
escola, os indivíduos opor-se-iam ao
dele, é-nos perdoado que
pronto, ao comum e ao medíocre que
vivamos.
as sociedades, a indústria cultural, as
E manda-se vir a si as
mídias e a moralidade identitária in-
criancinhas, para as impedir a
sistem em fomentar, criando subjeti-
tempo de se amarem a si
vidades estanques e/ou pílulas de sub- próprias (NIETZSCHE, 1998,
jetividade. p.225, grifo do autor).
No entanto, a escola parece,
gradativamente, reivindicar para si a Um leitor atento, portanto,
égide do adestramento, onde os indi- perceberia nos escritos de Nietzsche
víduos, por exemplo, aprendem a certo mal-estar com relação aos
louvar em alta e sonora voz o hino problemas da educação e da infância.
pátrio, debaixo da agressiva ameaça Portanto, desse modo, a possibilidade
de advertência e da severidade da do deslocamento nos permite alocar
punição. Essa disciplinarização per- os conceitos nietzschianos no interior
passa as linhas e as entrelinhas das de um plano conceitual educacional.

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E, ainda, nos permite compreender a destino lhe faz, e quando desse
modo tiverem surgido a dor e a
crítica férrea que Nietzsche dirige a carência, pode também, nos
um tipo de moralismo, herdeiro de lugares feridos, ser inoculado
algo novo e nobre. Sua natureza
Sócrates e do Cristianismo, sob o inteira o acolherá em si e mais
tarde, em seus frutos, fará sentir
prisma de uma formação cultural o enobrecimento (NIETZSCHE,
entendida como fundadora do 1983, p.107).

corpo/subjetividade na escola.
A retomada do exercício da
Um viés pedagógico do projeto
leitura de Friedrich Nietzsche e o
filosófico de Nietzsche, o projeto do
deslocamento conceitual para o
übermensche, do além-do-homem,
campo da educação demonstram-se,
como resultado de um processo de
como dissemos, uma urgência. A
educação para a intuição artística,
configuração das paisagens
afigura-se, portanto, como um destino
existenciais, sua multiplicidade
irrecusável. Arte, educação e corpo
inerente, requer daqueles que se
assumem, aqui, um papel
aventuram na pesquisa em educação
importantíssimo.
um olhar fino para as questões
Para além de educar para a
nietzschianas.
liberdade, sempre ficcional e
Sobre o desafio nietzschiano aos
falaciosa, é preciso reformular o
“homens de conhecimento”, as
conjunto dos valores sobre os quais
palavras de Silvio Gallo parecem
repousa a mentalidade do homem
esclarecer profundamente: “é o
contemporâneo. É preciso reconstruir
desafio da multiplicidade [...] a
o sentido mesmo das vivências no
multiplicidade de olhares, a
ambiente social. Nos termos de
multiplicidade de afetos sobre um
Nietzsche.
mesmo objeto” (GALLO, 2006, p.
561).
Quanto ao homem singular, a
tarefa da educação é a seguinte: O tema do ensino de Filosofia,
torna-lo tão firme e seguro que
sobretudo quando imerso no espaço
ele como um todo não possa
mais ser desviado de sua rota. da obrigatoriedade curricular, exige
Em seguida, porém, o educador
deve causar-lhe ferimentos, ou um caráter múltiplo e multifocal,
utilizar os ferimentos que o
alicerçado na capacidade de adotar,
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no trajeto, muitas perspectivas. Alojar intranquilo, com o incerto. Vislumbrar
essa temática sem correlacioná-la a questão da subjetividade e do cor-
com a urgência do corpo como po, a partir de Nietzsche, pressupõe
instrumento do pensamento é travar uma inquietude própria.
com a Filosofia um debate desonesto A experiência com as institui-
e infrutífero. O ensino da Filosofia ções de ensino nos tem conduzido a
deve proporcionar o cultivo do determinados pontos de interrogação.
espírito livre e os questionamentos Apregoar estabilidades, oriundas de
advindos de seu caráter mais íntimo. um excessivo racionalismo com a vi-
da, repatriadas na educação moral
Nietzsche, subjetividade e ensino de para o trabalho, profundamente con-
filosofia temporânea, como elemento constitu-
Compreender os processos de tivo, deve ser necessariamente a ênfa-
subjetivação que circulam na escola, se da educação dos sujeitos? Que
a partir da filosofia de Friedrich Ni- modelos existenciais são aqui consi-
etzsche, implica a audácia de sua derados? Da fortitute? Da decadence?
questão mais dura: a partir da ótica Da potência? Da miséria? Essas são
do valor, que tipo-homem tem produ- as questões dos escritos nietzschianos.
zido nossas instituições de ensino? Para um leitor atento, as inquie-
No Assim Falava Zaratustra, de tações diante das linhas de Nietzsche
1886, Nietzsche parece vivenciar a serão pequenos demônios. Nietzsche
potência de um fastio diante do ho- é o filósofo do “martelo” (NIETZS-
mem, da “caricatura de homem” CHE, 2006, p.8), das “perguntas fei-
(2006, p.50). tas com o martelo” (NIETZSCHE,
Neste sentido, adotar o referen- 2006, p.7). O martelo, entendido co-
cial de Friedrich Nietzsche nos remete mo o doloroso exercício do questio-
à ousadia da dureza do questiona- namento, faz-se então necessário. A
mento. Scarlett Marton adverte sobre filosofia nietzschiana, neste sentido, é
a urgência de “abandonar comodida- um estado permanente de
des, renunciar a segurança” (2008, [r]evolução. A atitude filosófica, em
p.18). É preciso habilidade com o Nietzsche, portanto, é a atitude bélica,

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que dista, em muito, dos discursos Neste sentido, é a partir da es-
atuais que advogam por uma escola trutura de pensamento e da estilística
pacífica, de paz, e por uma cultura de argumentação nietzschianas, que
identitária. tentamos provocar o pensamento no
Dado a impossibilidade de man- sentido de compreender como o sis-
ter-se incontaminado, um leitor seve- tema educacional desabilita os sujei-
ro, diante da eloquência de Friedrich tos para a incerteza, quando propõe a
Nietzsche, vê-se tomado como que imponência da identidade.
por um demônio, por um excesso de O que se espera compreender é
força. Para Nietzsche, a transvalora- como Nietzsche escapa a uma filoso-
ção de todos os valores, “esse ponto fia da identidade, a partir da noção
de interrogação tão negro” (NIETZS- de devir e, ao mesmo tempo, a uma
CHE, 2006, p.7), mergulha em som- filosofia da representação, a partir da
bras àqueles que têm a ousadia de noção da diferença.
colocá-lo. E, finalmente, retomar a pers-
Para tanto é que Nietzsche, tes- pectiva estética de sua filosofia da arte
temunhando a respeito de si, nos ad- apolínea e dionisíaca como reconsti-
verte: “quem sabe respirar o ar de tuição da habilidade ao incerto, cará-
meus escritos sabe que é um ar das ter constitutivo do mundo contempo-
alturas, um ar forte. É preciso ser feito râneo, isto é, como processo eminen-
para ele, senão há o perigo nada pe- temente educacional.
queno de se resfriar” (NIETZSCHE,
1995, p.18).

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Recebido em 27/02/2013
Aprovado em 17/10/2013

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