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Os Annales e a história-problema – considerações

sobre a importância da noção de “história-problema”


para a identidade da Escola dos Annales
The Annales and problem-history – considerations about the importance of the notion of
“problem-history” to the identity of the Annales School
Los Annales y la historia problema – consideraciones sobre la importancia de la noción de
“historia problema” para la identidad de la Escuela de Annales
José D’Assunção Barros*

Introdução: os Annales e
Resumo
seu programa
Este artigo visa examinar o movimen-
to dos Annales atentando para um dos O movimento de historiadores fran-
seus principais itens programáticos: a ceses que ficou conhecido como “Escola dos
história-problema. As críticas dos his- Annales” e que desde 1929 conheceu três
toriadores do movimento dos Annales ou quatro gerações ou fases na sua trajetó-
contra a história factual, a história ria foi um dos mais importantes movimen-
política tradicional e a história narra- tos historiográficos do século XX, como
tiva são examinadas em autores como bem se sabe nos meios historiográficos eu-
Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand
ropeus e americanos e particularmente no
Braudel, Jacques Le Goff e outros.
Brasil, país no qual os annalistas exerce-
Ao lado da oposição entre história-
-problema e história factual também
é discutida a oposição entre história-
-problema e história-conjectura. *
Professor Adjunto da UFRRJ, Doutor em Histó-
ria pela UFF.
Palavras-chave: Annales. História-
-problema. Historiografia. Recebido em: maio 2012 - Aprovado em: jul. 2012
http://dx.doi.org/10.5335/hdt. v.12-n.2, 2420

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ram bastante influência desde as suas pri- Bloch e Braudel, mas que muitos apontam
meiras gerações de historiadores. Embora como um ponto de ruptura dessas duas
alguns autores contestem a utilização da gerações em relação à terceira geração do
expressão “Escola dos Annales” como de- movimento, que se afirma após o ano de
signativa para o movimento, a expressão 1969 com mudanças na administração e
tornou-se usual. É defensável, inclusive, a estrutura das instituições ligadas ao gru-
designação de “escola” para o movimento po dos Annales.
dos Annales, se considerarmos que existe A evocação de uma “história-proble-
certo programa historiográfico que traz al- ma” como signo identitário importante
guma unidade aos historiadores ligados às para o movimento dos Annales é o item
sucessivas gerações de historiadores fran- programático que discutiremos em maior
ceses que fundaram ou reivindicaram a he- detalhe neste artigo. Essa noção tornou-se
rança do movimento. São muito evocados, de longe o instrumento mais combativo e
para definir os caminhos trilhados pelo reluzente do programa dos Annales, pois
movimento, alguns itens programáticos permitia afrontar, através de um novo con-
fundamentais, como a prática e estímulo ceito e de uma nova definição para uma
da Interdisciplinaridade, a ampliação de história que se queria nova, o frágil uni-
temáticas historiográficas, a gradual ex- verso dos modelos de historiografia que
pansão de tipos de fontes históricas mo- se limitavam a narrar os fatos ou a expor
tivada pelos historiadores do movimento, informações, de maneira meramente des-
e uma crítica mais ou menos veemente à critiva. A bandeira da “história-problema”,
história política tradicional na época dos uma novidade necessária nos inícios da ati-
fundadores do movimento, sobretudo nas vidade dos historiadores dos Annales, em
duas primeiras gerações de Annalistas. 1929, tinha cores bem vivas e transluzia à
Outro item programático de grande impor- distância – se pudermos utilizar essa me-
tância para o movimento dos Annales foi táfora – sobretudo quando era bem agita-
a conclamação a novos usos e experimen- da nos manifestos da Escola dos Annales.
tações relacionadas ao conceito de “tempo É impressionante constatar como, durante
histórico”; os trabalhos na faixa da “longa todo um século que abarca a pré-história
duração”, por exemplo, tornaram-se bas- e a história desta escola, perdura com a
tante típicos de alguns historiadores liga- mesma intensidade aquela velha crítica
dos a cada uma das três ou quatro gerações dos Annales à “história factual”, através
de historiadores annalistas. Uma atenção da oposição de uma história-problema –
à incorporação do Espaço como instância interpretativa, problematizada, apoiada
fundamental para o trabalho historiográ- em hipóteses, capaz de recortar o aconte-
fico também pode ser evocada como item cimento através de novas tábuas de leitu-
programático importante. Já nem falare- ra, e, na verdade, capaz de problematizar
mos da proposta de uma “história total” este próprio gesto de recortar um acon-
– item fundamental para as gerações de tecimento. Essa história problematizada

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é hoje, no século XXI, lugar comum para bre a história factual no Historik (1858),
qualquer historiador formado historiador, e mesmo Jacques Le Goff, em 1978, no
e já era lugar quase comum na ocasião da seu prefácio para A nova história (2011,
retomada dessa tremulante bandeira por p. 145-152), reconheceria um significativo
Lucien Febvre em 1946, ou pelo menos em grupo de precursores que havia precedido
1953, assim como o fora pelo menos para Bloch e Febvre na crítica contra a história
um setor importante da historiografia do factual política, citando nomes como o de
século XIX anterior à própria pré-história Voltaire, Chateaubriand, Guizot, Michelet
dos Annales. e Simiand. Desse modo, a ideia de que a
As posições contra a história factual história era meramente factual ou narra-
não foram criadas pelos Annales e a crítica tiva até ser subitamente problematizada
ao factual já aparece em grupos diversos pelos Annales e outros historiadores do
de historiadores ao longo da história da século XX é puro exagero. Por outro lado,
historiografia. Voltaire já se pronunciava é verdade que um historiador que se pro-
contra a história que apenas acumulava pusesse meramente a narrar e descrever
informações sobre acontecimentos políti- os fatos – e alguns fizeram isso – não pre-
cos, já clamava por um futuro historiográ- cisaria no século XIX temer ser estigma-
fico no qual seria possível conhecer “a ver- tizado. No século XX, passadas as quatro
dadeira história dos homens, ao invés de primeiras décadas, passa a ser a mais tí-
se conhecer apenas uma ínfima parte da pica ofensa trocada entre historiadores a
história dos reis e das cortes” (EHRARD; palavra “positivista” – empregada com o
PALMADE, 1964, p. 161-163). Na primei- sentido de “historiador factual”, sentido
ra geração de historiadores franceses que que foi propagado pelos textos de Febvre e
se projeta após a Restauração, com nomes que na verdade trai o significado filosófico
como o de Guizot e Thierry, já aparece a da palavra, já que o positivismo deve ser
simultânea recusa de “uma escrita históri- mais corretamente associado a um para-
ca puramente factual, desprovida de senti- digma historiográfico.
do, à maneira dos eruditos ultra-realistas, De todo modo, pode-se dizer não ape-
e a escrita de um sentido da história sem nas que a luta contra a história factual era
fatos, à maneira da história filosófica das já relativamente antiga nos tempos de Lu-
Luzes” (DOSSE, 2001, p. 12-13). Esses cien Febvre e Marc Bloch, como também o
historiadores já começam a problematizar eram as próprias vitórias contra a história
a história como lugar de uma luta social factual. Por outro lado, mesmo quando a
implacável e Marx os considerava os intro- “história factual” já estaria longe de ser
dutores da perspectiva de “luta de classes” dominante, percebe-se a força desse con-
na história. Na verdade, esse conceito já ceito-de-guerra, o mais comovente de todos
aparece em John Millar (1735-1801). O os instrumentos programáticos empunha-
historiador alemão Johann Gustav Droy- dos pelos annalistas das duas primeiras
sen também discorreria criticamente so- gerações. No mesmo texto-manifesto que

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atrás citamos, escrito dezessete anos de- tor da historiografia que se comprazia em
pois do lançamento do primeiro número “julgar a história”, uma crítica que, aliás,
da Revista dos Annales e republicado sete também fará Marc Bloch em sua Apologia
anos mais tarde na coletânea Combates da história (1943). Também queria dizer
pela história, continuamos a ver o velho que não pretendia utilizar a história como
Febvre esbravejar sarcasticamente contra “mestra da vida”, como tinham feito his-
os historiadores factuais: toriadores como Maquiavel, entregando-
Muitos historiadores, e dos bens for- -se à ambição de utilizar a história para
mados e conscientes, o que é pior, “instruir o futuro”. Seu dito também era
muitos historiadores se deixam ain- uma declaração de humildade historio-
da perder pelas próprias lições dos gráfica, a humildade do historiador diante
vencidos de 1870*. Ah, eles traba-
lham muito bem! Eles fazem histó- da história, de sua complexidade, de seus
ria do mesmo modo que suas avós se desígnios (pois a postura de Ranke diante
dedicavam à tapeçaria. Pontinho por da história era profundamente religiosa,
pontinho. Eles são aplicados. Mas embora Deus não entrasse em sua histó-
quando lhes perguntamos por que
ria). Por fim, “contar os fatos como aconte-
este trabalho todo, a melhor resposta
que conseguem dar, com um sorriso ceram” era também chamar atenção para
de criança, é a palavra cândida do seu distanciamento em relação aos roman-
velho Ranke: “Para saber exatamen- cistas históricos: não pretendia florear a
te como é que as coisas aconteceram”.
história, não ambicionava, em uma pala-
Com todos os detalhes, naturalmen-
te (Lucien Febvre, Contra o vento: vra, láureas literárias, e estaria sempre
manifesto dos novos Annales, 1946) alerta para que a arte literária não ocul-
(FEBVRE, 2011, p. 82). tasse a história, não lhe roubasse a cena.
A menção ao famoso dito de Ranke No texto original de Ranke, dialogando
merece alguns comentários, antes de pros- com outras de suas partes, a célebre frase
seguirmos na análise das críticas de Feb- de Ranke complementava esses sentidos.
vre à história factual, nesse pequeno tre- Contudo, recortado com impiedade ou ve-
cho. Quando se quer, uma frase extraída neração do texto dentro do qual esse dito
do seu texto e do seu contexto, desconecta- apresentava outras possibilidades de sen-
da de suas intertextualidades ou desligada tido, e exposto isoladamente, como aforis-
da sua intencionalidade, pode passar a sig- mo, essa frase facilmente se transformava
nificar muita coisa. Isso já havia ocorrido no principal refrão de um hino da história
há algumas décadas com o velho dito de factual1. O “dito de Ranke” adquiriu, com o
Ranke, que adquirira existência em sepa- tempo, esse duplo sentido de resignação à
rado do próprio texto no qual inicialmente factualidade e de que o historiador poderia
estava inscrito, o que acabou lhe conferin- almejar absoluta neutralidade na elabora-
do outro sentido. Na verdade, ao dizer que ção do conhecimento histórico. Foi utiliza-
pretendia “contar os fatos tal como acon- do com esse sentido tanto por críticos da
teceram”, Ranke estava criticando um se- história factual, como por seus cultuadores

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tardios. Com isso, claro, ganhou vida pró- dores. De todo modo, ao menos com refe-
pria para além do que pensaria ou poderia rência aos manuais, é possível ainda falar
ter desejado Ranke. É como um pequeno em uma factualidade dominante para o
vitral que espelha as ambições da “história “século da história”.5 Todavia, adentrando
historizante” que este dito reaparece men- o século XX e avançando no decorrer da
cionado no texto de Lucien Febvre.2 Com significativa renovação historiográfica que
relação ao seu autor, Leopold von Ranke, gradualmente domina este novo século –
sempre muito depreciado por Marc Bloch do Mar do Norte ao Mediterrâneo e do Ca-
e Lucien Febvre, curiosamente o historia- nadá à Argentina –, seria já difícil encon-
dor alemão já parece se beneficiar de uma trar muitos historiadores profissionais (e
imagem menos estigmatizada nos escritos conscientes) que insistissem no “fato pelo
de Fernando Braudel, que pelo menos uma fato” e que estranhassem a ideia de que “o
vez o reconhece como um dos poucos “gran- fato é construção do historiador”. Braudel,
des espíritos” do século XIX – ao lado de em 1958, para continuar agitando veemen-
Michelet, Burckhardt e Fustel de Coulan- temente a bandeira da história-problema
ges – que ainda possuem visões de longo contra os “ingênuos operários” da história
alcance e que resistem ao estreito modelo factual, teria de se esmerar para achar al-
de história acontecimental que meramente guma agulha no palheiro, mas só acabou
reproduz o nível dos documentos (BRAU- mesmo encontrando uma frase já um pou-
DEL, 2011, p. 92). co antiga, mas suficientemente infeliz, em
Vamos nos deter agora na menção um manual de 1946 assinado por Louis
à prática historiográfica que Febvre evo- Halphen (1880-1950) – uma frase que, ao
ca através da imagem dos “trabalhadores ser evocada depreciativamente pelo maior
tapeceiros”, que fazem a “história ponto a historiador annalista de sua época,6 ter-
ponto”, da maneira análoga às práticas de minaria por eternizar Halphen como um
costura “de suas avós”. Febvre dá a enten- factualista tardio, ou como o chefe dos úl-
der que um número significativo de his- timos “tapeceiros ingênuos”. De fato, nesse
toriadores profissionais (“bem formados e dito, ainda mais adequado que o de Ranke
conscientes”) ainda se entregaria a essa para expor a ingenuidade dos historiado-
prática factual. Quase chegados os anos res factuais, Halphen parece afirmar que
1950,3 podemos dizer que isso configura as fontes podem falar por si mesmas ao
em certo exagero útil. É verdade que, no historiador:
século XIX, encontraremos historiadores Basta deixar-se de algum modo levar pe-
factuais em bom número e o filósofo Frie- los documentos, lidos um após o outro, tal
drich Nietzsche já contra eles desfechara como se nos oferecem, para ver a corrente
dos fatos se reconstituir quase automati-
a sua sarcástica crítica utilizando a mes-
camente (HALPHEN, 1946, p. 50).7
ma metáfora da “historiografia de tapeça-
ria” (1873).4 Mas já existia desde aquela Essa frase, que quase poderia ser es-
mesma época historiadores problematiza- colhida como um bom epitáfio para a histo-

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riografia factual, é antípoda de outra que Febvre, precisamente a pretexto de um es-
faria fortuna como aforismo da história crito sobre “A história historizante” (1947)
nova. Referimo-nos à frase em que Marc – a sentença ganhou mais tarde vida pró-
Bloch, em sua famosa Apologia da história pria10. Hoje conhecemos mais a Louis Hal-
(1941-1942), diz-nos que “os documentos e phen por causa dessa frase e das críticas
os testemunhos só falam quando sabemos que lhe moveram Febvre e Braudel do que
interrogá-los” (FEBVRE, 2011, p. 82).8 por suas já esquecidas obras sobre história
São frases antípodas porque a sentença medieval.11 O que teria desejado dizer Louis
proferida por Louis Halphen jaz bem en- Halphen com essa frase? Que sentidos
terrada no cemitério dos ditos factuais; poderiam lhe ser acrescentados? Poderia
enquanto a de Marc Bloch, no outro he- ser tomada como uma metáfora sobre o
misfério teórico-metodológico, hoje habita entusiasmo de um historiador diante das
o seio de toda nova historiografia. A ideia possibilidades do seu ofício, ou talvez como
halpheniana de que “os fatos por si mes- um convite para que os historiadores em
mos falam”, a partir do que apresentam formação se empenhassem em enxergar as
os documentos, é de fato o oposto da ideia sociedades e a vida humana pulsando atra-
blochiana de que “os documentos só dizem vés dos documentos? Hoje isso não importa
algo quando sabemos interrogá-los (isto é, muito. Uma frase como essa, nas mãos de
quando os constituímos a partir de proble- perspicazes historiadores preocupados em
mas)”. Uma frase e outra foram criadas chamar atenção para a eterna atualidade
sem mútuo reconhecimento. Bloch não leu de uma acirrada luta em favor da “história
o manual de Halphen, que ainda não ha- problema”, só poderia mesmo se tornar um
via sido escrito quando ele mesmo escre- útil aforismo a ser incorporado ao longo
veu o seu pequeno ensaio sobre “o ofício do hino da história factual.
historiador” e Halphen já havia editado o Convenhamos, todavia, que uma
seu singelo manual quando o livro de Marc frase como essa já não podia representar,
Bloch, tardia e postumamente, foi publica- bem passados os meados do século XX, o
do.9 Apesar de não terem sido concebidas pensamento de um setor significativo da
uma em relação à outra, as duas frases historiografia profissional (formada em
parecem se opor admiravelmente. São tão universidades, a partir de estudos específi-
antagônicas como o são a velha e popular cos de historiografia). No entanto, Braudel
frase de Seignobos – “sem documento não continuaria a bradar o grito de guerra con-
há história” – e a réplica de Lucien Febvre, tra a ameaça factual, como também o fize-
“sem problema não há história”, ela sim ra Febvre no seu texto-manifesto (“Contra
escrita, neste caso, em provocação direta o Vento”), escrito naquele mesmo ano de
contra o velho historiador metódico. 1946. Por que essa insistência em entoar
Voltando à frase de Louis Halphen – tão alto, e com ares de novidade, o mesmo
um historiador que também já havia sido hino antifactual que já havia sido muito
tomado como exemplo negativo por Lucien bem incorporado pela comunidade dos his-

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toriadores? Porque isso é um “programa”. – e mesmo hoje – a “história factual”. De-
O programa é constituído de coisas que são vemos entender duas coisas. Em primeiro
verdadeiras cartas de intenção, demandas lugar, os gêneros históricos não são apenas
novas e urgentes, mas também de coisas escritos por historiadores de formação.
úteis. A “história-problema”, uma canção Os autodidatas, os diletantes, os antiquá-
nova no alvorecer do século XX, continuou rios, os estudiosos com formações diversas
a ser uma canção útil em meados deste também os escrevem. Em segundo lugar,
mesmo século, e mesmo além. Era ainda os ‘historiadores de formação’ que não são
útil até mesmo evocar o velho inimigo, os “historiadores factuais” podem escrever
“velhos metódicos” – os historiadores his- perfeitamente “história factual”, quando se
torizantes que dominavam o universo ins- dirigem a públicos diversos. Existem obras
titucional francês em 1870 – e que no tex- de divulgação, voltadas para o grande pú-
to-manifesto de Febvre aparecem referidos blico, cujo objetivo maior é fornecer infor-
na passagem sobre “as lições dos vencidos mações, expor curiosidades históricas, ou
de 1870” (atrás assinalado com um asteris- mesmo contar uma boa história. Existem
co). Um programa, é preciso sempre lem- empresas, sindicatos e partidos políticos
brar, contém não apenas planos de ação que contratam historiadores profissionais
e objetivos atuais, mas também elemen- para escrever uma história institucional:
tos tradicionais a serem evocados, velhas de resto, factual. Escrever história factual,
canções às quais as vozes dos membros ou contar uma boa história, pode ser uma
da escola já estão mais confortavelmente tarefa legítima a cargo de um “historiador
acostumadas, e às quais o público também não factual”. O que não pode ocorrer, nas
se habituou a aplaudir ou vaiar. Um pro- épocas em que a história problematizada
grama é feito do presente, do futuro e do já passou à matriz disciplinar da história,
passado de uma escola. A identidade en- é que um historiador de formação escreva
volve memória. “história factual” visando um público for-
Um pequeno parêntese é oportuno. mado por outros historiadores. Um artigo
Quando afirmamos que, passados os me- factual, nos dias de hoje, não seria aceito
ados do século XX, seria razoavelmente em uma revista histórica acadêmica, mas
difícil encontrar “historiadores factuais” artigos como esse são perfeitamente acei-
entre os historiadores profissionais – isto tos para as revistas de divulgação que são
é, entre os historiadores de formação uni- vendidas nas bancas de jornal. Tudo está
versitária em história, esses mesmos que, em se pensar no público ou nos objetivos
tendo por mestres outros historiadores de que se tem em vista ao se escrever um
formação, aprendem na sua versão mais texto. De igual maneira, uma dissertação
moderna este ofício e também a lidar cien- de mestrado ou tese de doutorado que não
tificamente com esse campo de saber – seja problematizada (que seja meramente
isso não quer dizer, em absoluto, que seria factual) não seria aceita pela academia.
igualmente difícil encontrar nessa época Nos dias de hoje, e já há muitas décadas, a

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primeira lição que se aprende em um curso Peço aos historiadores, quando vão ao
de graduação em História é que não é mais trabalho, que não o façam como se fos-
sem de encontro a Magendie: Magendie,
possível, do ponto de vista da historiogra-
mestre de Claude Bernard, precursor da
fia científica, escrever “história factual”, fisiologia, que sentia tanto prazer em de-
ou, pelo menos, que não é mais possível ambular, com as mãos nos bolsos, atra-
sustentar a história factual como um mo- vés de fatos raros e curiosos e, como o
trapeiro – assim dizia ele –, através dos
delo de excelência. Essa tarefa – escrever
objetos. Eu lhes peço para ir ao trabalho
obras de história factual – não está proi- como Claude Bernard, com uma boa hi-
bida fora dos muros das universidades, pótese em mente. E que jamais se com-
dos congressos científicos e das prateleiras portem alegremente como colecionadores
realmente especializadas. Dependendo do de fatos, como antes, quando bancavam
os caçadores de fatos às margens do
seu objetivo e do público a que se dirige, a Sena. Que nos dêem uma História, não
“história factual”, e também a história me- uma Historia automática, mas, sim, pro-
ramente narrativa, no sentido tradicional, blemática (Lucien Febvre, Contra o ven-
é aceitável. O que não é aceitável é o “his- to: manifesto dos novos Annales, 1946)
(FEBVRE, 2011, p. 84).13
toriador factual” que se forme “historiador
factual”. Esse historiador já está em extin- Nessa passagem, como em outras, Fe-
ção desde meados do século XX, se não an- bvre afronta mais uma vez um modo muito
tes. Seria correto dizer o seguinte: hoje em específico escrever a história: o da organi-
dia existem ainda muitas histórias factu- zação do caos de eventos em uma trama da
ais, mesmo escritas por bons historiadores qual, antes mesmo da pesquisa, o historia-
(não factuais). Mas não existe mais uma dor já conhece o seu fim. Esta narrativa li-
‘concepção factual da História.12 near, esta “história automática” – que tem
Fechado o parênteses, voltemos ago- como um de seus modelos fundamentais a
ra ao programa dos Annales, no ponto pre- biografia unilinear e falsamente coerente,
ciso em que havíamos interrompido a nos- com seus tão previsíveis início e fim – cor-
sa exposição sobre os itens programáticos respondeu desde sempre a um dos princi-
do movimento. Nos tempos mais maduros pais pontos de ataque dos primeiros anna-
de Febvre, em fins da primeira metade do listas, e de Lucien Febvre em particular.
século XX, a figura do “historiador factual” Este tipo de “história narrativa” – coirmã e
já era uma página praticamente virada talvez gêmea siamesa daquilo que Febvre
na história da historiografia. Mas, como chamou de “história factual” – é a segunda
dissemos, o passado também faz parte de entidade da tríade visada pelo historiador
um programa de escola, e as velhas lições francês nos seus combates pela história: a
precisam ser repetidas de vez em quando. “história factual”, a “história narrativa”, a
No texto-manifesto sobre os novos Annales “história [da] política”. Neste trio temos,
(“Contra o vento”), Lucien Febvre pratica- senão o “eixo do mal” combatido por Lu-
mente encerra com este belo parágrafo a cien Febvre, pelo menos o “eixo banal” a
questão da história-problema: ser por ele vilipendiado. Eis aqui, segundo

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a ótica dos Annales e da nova historiogra- combate – e a conservação do mesmo “dia-
fia, a tríade maldita, que não deixa de ser bo útil” – tem-nos algo a dizer. Em 1931,
também um “diabo útil” para o discurso da conjurar a história política tradicional era
renovação radical: certo modo de pesquisa decerto necessário. Em 1946, era apenas
(a história factual), uma determinada for- algo útil. A historiografia como um todo –
ma de reflexão e exposição (a história nar- na Europa e nas Américas – já havia se re-
rativa), e um campo temático específico de novado com a emergência de novos campos
escolhas sobre o que estudar (a história po- históricos e de novos interesses temáticos.
lítica tradicional – essa que, rigorosamen- O materialismo histórico também já come-
te falando, é apenas uma pequena fração çara a contribuir sistematicamente com
da história política possível).14 No caso da todo um filão de novas produções historio-
história narrativa visada por Febvre, esta gráficas. A história econômica já era uma
corresponderia ao modo de reflexão e ex- realidade em quase todos os países. A his-
posição historiográfica que se compraz em tória social – uma designação manifesta-
extrair dos documentos os fatos (geralmen- mente vaga – já abrigava uma diversidade
te políticos) para depois ordená-los crono- de campos temáticos que logo delineariam
logicamente em uma linha banal e superfi- a sua própria identidade sob a forma de
cialmente compreensível, frequentemente novos campos históricos. Em países como
ancorada em cadeias causais, outras vezes os Estados Unidos, a Inglaterra e a Sué-
acumulativa de informações nem sempre cia afirmava-se com especial projeção uma
necessárias (os eruditos “tapeceiros histo- rica história das idéias. Uma história da
riográficos”, atrás mencionados). cultura, abrigando diferentes perspecti-
O terceiro elemento do “eixo banal”– vas, já se esboçara como identidade mais
a história política tradicional – tampouco definida e não tardaria a permitir que se
deixou de ser um dos alvos preferidos de pudesse falar com maior propriedade no
Lucien Febvre ao longo de toda a sua car- campo da história cultural – que, de resto,
reira de polemista. Jacques Le Goff, em já vinha se afirmando discretamente desde
uma das visões de conjunto que integra a segunda metade do século XIX, a ponto
seu prefácio-manifesto para a coletânea de provocar na Alemanha do final daquele
História nova (1978) (LE GOFF, 2011, mesmo século uma acirrada querela entre
p. 136-137), lembra que em 1931 Lucien a ampla maioria de historiadores políticos
Febvre já atacava veementemente o mode- e uma pequena minoria de historiadores
lo de história política que subjazia em cer- culturais.15 Já havia em 1946 um impulso
ta História diplomática da Europa publi- significativo para a constituição de muitos
cada por aquela época, e que, 15 anos mais outros campos históricos além dos que já
tarde, ele voltaria à mesma tônica com iam se fortalecendo, e mesmo a história
uma resenha crítica ao livro A paz armada política – ainda hoje um campo histórico
(1871-1914) (ROUBAUD, 1946; FEBVRE, legítimo, como sempre será – já começara a
1946). Essa persistência de um mesmo se diversificar mais com vistas a constituir

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uma história política de tipo novo, pronta totalmente essa bandeira de crítica a uma
a estudar o poder em todos os seus níveis história política tradicional que, a rigor, já
possíveis e para além dos estreitos limites tinha sido há muito destronada. No prefá-
do poder estatal, da diplomacia, da histó- cio-manifesto para a coletânea A história
ria das guerras, e das narrativas sobre a dos Annales (1978), assim ele se expressa,
história dos grandes homens da política de maneira sintomática:
tradicional. Desse modo, os ataques à es- Destronar a história política, esse foi o
treiteza da história política nos anos 1930, objetivo número um dos Annales, e per-
então necessários, passaram à categoria manece como uma preocupação de pri-
meira ordem para a história nova, ainda
da utilidade quando nos aproximamos dos
que, como direi mais adiante, uma nova
meados do século. Talvez não fossem mais história política, ou melhor, uma histó-
necessários, mas ainda eram úteis. Con- ria com uma nova concepção do político,
tinuavam a constituir um bom item para deva se instaurar no domínio da história
um programa. Um programa, conforme in- nova (LE GOFF, manifesto-prefácio para
A nova história, 1978) (LE GOFF, 2011,
sistimos, faz-se de demandas necessárias
p. 136-137).
e mesmo vitais, e também de simbolismos
úteis – muitas vezes sob a forma de es- De fato, parágrafos mais adiante,
tandartes e de espantalhos. Com alguma Jacques Le Goff irá corrigir essa primeira
frequência, um programa também precisa proposição, reconhecendo que, no mundo
dos seus diabos. Quando um diabo morre, dos saberes sociais, já havia ocorrido desde
por vezes é preciso ressuscitá-lo, mesmo os primeiros Annales uma inegável expan-
que através de aparelhos artificiais. são da noção de “política” – diríamos que,
Na época dos terceiros Annales, uma na verdade, da própria noção de “poder”,
insistência muito exagerada na história que é na verdade o que funda o político.
política como um “diabo útil” não será Com essas palavras, Le Goff reconhece que
mais possível, pois já existe bem consoli- a história política dos seus dias, a mesma
dada uma moderna história política e nos história política de hoje, já não tinha as
anos 1980 falar-se-á mesmo em um “re- mesmas limitações da tradicional história
torno do político”.16 O próprio Jacques Le política do século XIX e das primeiras dé-
Goff, que é autor de prefácios que apresen- cadas do século XX:
tam a produção coletiva da Nova História A fobia da história política não é mais
(com destaque para o prefácio-manifesto um artigo de fé, pois a noção de ‘política’
evoluiu, e as problemáticas do poder se
de 1978), escreveu, ele mesmo, um arti-
impuseram à história nova. Igualmente
go no qual traça um panorama das novas o acontecimento, como demonstrou Pier-
possibilidades da história política: “Será re Nora, está em vias de ser reabilitado,
ainda a política a ossatura da História?” sob novas bases (LE GOFF, manifesto-
(1972, p. 335-337). Todavia, é impressio- -prefácio para A nova história, 1978) (LE
GOFF, 2011, p. 166-167).17
nante a preocupação deste líder da nova
geração dos Annales em não abandonar

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Um aspecto da história política tradi- 1930 em associação a outros setores his-
cional, contra a qual os Annales dirigiram toriográficos que também criticaram o tra-
o seu programa, é a forma específica de dicional fazer biográfico – chegou a inibir
tratamento das “Biografias” que transpa- um pouco, entre historiadores, a produção
rece nos historiadores do século XIX que de obras relacionadas a esse gênero histo-
se empenharam em elaborar uma “histó- riográfico. A tarefa de escrever biografias,
ria dos grandes homens”. Thomas Carlyle que sempre foi um gênero muito popular
foi um dos mais brilhantes cultores deste e procurado por leitores de todos os tipos,
gênero historiográfico, que em suas obras deslocou-se mesmo dos historiadores da
aparece iluminado pela sua grande habi- primeira metade do século XX para inte-
lidade narrativa e seu grande talento li- lectuais de outras áreas, como os literatos
terário. O que era fazer uma “história dos e os jornalistas. Os anos 1980, já à época
grandes homens” na época de predomínio dos terceiros Annales, assistiriam ao fenô-
da história política tradicional? Em pri- meno que muitos chamaram de “retorno
meiro lugar, era investir na ideia de que da biografia”. As novas biografias escritas
os indivíduos fazem a história, e de que pelos historiadores, contudo, seriam de
eles são o grande centro das ações – e não um novo tipo. Para começar, os escolhidos
os grupos sociais e as forças estruturais e para serem biografados não precisavam
coletivas. Em segundo lugar, esse mode- mais, necessariamente, corresponder a
lo historiográfico de biografia nos leva de indivíduos que tivessem sido elevados à
imediato a perguntar: mas quem eram os notoriedade pela história. Poderiam sê-lo,
biografados? Não é difícil constatar que os mas também surgiu um campo de estudos
biografados da “história dos grandes ho- que buscava, através das histórias de vida
mens” eram sempre figuras típicas da his- de pessoas comuns, iluminar questões que
tória política. Tínhamos os reis, os gene- diziam respeito à cultura, à economia, às
rais, os papas, e os indivíduos que faziam mentalidades ou a política, agora em sen-
parte da política tradicional – isso é, dos tido ampliado (estudo dos poderes e mi-
grandes circuitos do poder oficial. Essas cropoderes de todos os tipos, e não apenas
figuras políticas – que eram personagens os ligados aos círculos estatais e institu-
da história política através do governo, cionais). Também os personagens que a
das guerras, da diplomacia e das institui- história conduziu a posições de destaque
ções políticas – eram os elos que ligavam poderiam continuar a serem biografados,
indissociavelmente a história dos grandes mas agora necessariamente de uma nova
homens e a história política tradicional. O maneira. Dá-nos exemplo a biografia sobre
modelo, em muitos casos, era acrescido da Guilherme Marechal (1984) produzida por
tradicional maneira narrativa. Georges Duby (1919-1996), historiador li-
A implacável crítica dos Annales aos gado à terceira geração dos Annales, ou a
tradicionais modelos de biografia – ao se obra sobre São Luís (1996), do próprio Jac-
tornar bem sucedida a partir dos anos ques Le Goff. Trata-se de utilizar o biogra-

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fado não para contar meramente uma his- Fiel à concepção de história-problema
tória pessoal, mas para iluminar questões da Escola dos Annales, minha primeira
dificuldade consistiu em definir uma pro-
sociais mais amplas. Foi também o que fez
blemática que me permitisse apreender
o historiador Christopher Hill (1912-2003) o indivíduo São Luís em interação com a
– este já ligado à Escola Inglesa do Mar- sociedade do século XIII, evitando o que
xismo – ao estudar “Cromwell, o Eleito de o sociólogo Pierre Bourdieu chamou de a
“ilusão biográfica”, que pretende que se
Deus” (1970). A maneira de biografar, isto
considere a vida de um grande homem
é, de conduzir a narrativa biográfica, tam- como alguém com um destino já traça-
bém mereceria contribuições notáveis após do, excluindo as eventualidades da vida.
este retorno da biografia. Um clássico para Eu, ao contrário, limitei-me a mostrar
essa discussão é o artigo “Ilusão biográfi- as hesitações, as decisões e os momentos
cruciais da vida de São Luís, a partir da
ca” de Bourdieu (1986), um sociólogo fran- sua infância de rei. Porque se o homem
cês que trabalhou em forte sintonia com os constrói sua vida, ele também é construí-
terceiros e quartos Annales. do por ela (LE GOFF, entrevista, 1996).
Com relação ao estilo, as novas bio-
Colocar-se em guarda contra a ten-
grafias clamam por novos modos de narrar
dência em enxergar o grande indivíduo
e por novas possibilidades de perceber a
de maneira teleológica – isto é, como um
natureza humana. Pierre Bourdieu chama
caminho que aponta já para um fim que
atenção para o fato de que, para além do
está previamente inscrito na cabeça do
mero empobrecimento de possibilidades
historiador, antes mesmo que ele comece a
que apresentam na escolha de seus biogra-
biografar – é, portanto, um alerta que deve
fados, as biografias que ainda seguem o
acompanhar o historiador-biógrafo, pelo
modelo da historiografia tradicional costu-
menos se este pretende efetivamente rea-
mam descrever a vida individual ainda de
lizar uma biografia múltipla e verdadeira
maneira demasiado linear, como um sim-
– e que, por assim o ser, pode ou mesmo
plificado caminho teleológico que comporta
deve ser, de certo modo, tão contraditória
“um começo (uma estreia na vida), etapas
como a própria vida. Da “ilusão biográfi-
e um fim, no duplo sentido de termo e de
ca”, ademais, o historiador deve passar
objetivo” (BOURDIEU, 1986, p. 62-63). Ul-
ao enfrentamento da “ilusão das fontes”
trapassar esse modelo é ainda uma tarefa
– porque também elas impõem a sua te-
que se coloca à história nova, em sentido
leologia, sobrepondo-a à teleologia que o
amplo, e mesmo os terceiros e quartos An-
historiador pode trazer espontaneamente
nales apenas começaram a enfrentar essas
antes de iniciar o seu trabalho.
novas possibilidades, conjuntamente com
Foram as fontes, na verdade, que repre-
os micro-historiadores e os novos marxis-
sentaram as principais dificuldades de
mos. Uma entrevista de Jacques Le Goff meu trabalho de historiador, e isso por
em torno de sua biografia sobre São Luís causa de sua própria natureza. De fato,
mostra-nos esse esforço: uma grande parte dos documentos dis-
poníveis sobre São Luís é de caráter ha-
giográfico ou normativo. Através de São

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História: Debates e Tendências – v. 12, n. 2, jul./dez. 2012, p. 305-325
Luís pinta-se mais o retrato do rei que (e por vezes repetitivo) combate contra um
ele deveria ter sido do que o que foi real- modelo historiográfico fundado sob a trí-
mente, como em Les Miroirs des Princes,
plice égide da factualidade, da narrativi-
textos que nos informam mais sobre a
concepção do soberano ideal do que sobre dade linear e da restrição temática impos-
a verdadeira personalidade dos reis. As ta pela história política tradicional. Essa
qualidades e os fatos atribuídos a São configuração tradicional, aliás, correspon-
Luís – freqüentar os pobres e os leprosos,
deria de resto ao mesmo modelo que pos-
oferecer numerosas esmolas, etc. – são
assim atribuídos a outros reis. No entan- tulava “reconstituir” o passado, ao passo
to, eu tive algumas vezes a impressão de que a história-problema dos Annales pro-
cair em detalhes suficientemente con- põe, ao contrário, “reconstruir” o passado
cretos de sua vida cotidiana para dizer: – e reconstruí-lo em cada presente. Essa e
é ele finalmente. Mas mesmo aí eu tive
surpresas desagradáveis (LE GOFF, En-
aquela palavra – “reconstituir” ou “recons-
trevista, 1996) truir” – não são gratuitas, nem isentas de
implicações. O “problema” e é essa a ideia
Existe, podemos concordar com Le
que está por trás dessa última expres-
Goff, um perigo que espreita o biógrafo dos
são, é precisamente o elemento em torno
personagens ilustres, e que já não afeta o
do qual se dá a reconstrução. Trata-se de
biógrafo dos personagens anônimos. O in-
reconstruir o vivido através de problemas
divíduo célebre – um rei, um líder, um san-
e motivações da época do próprio historia-
to – tem despejada sobre a sua memória,
dor. Para além disso, trabalhar com um
que vai se construindo já no seu próprio
“problema” pressupõe o gesto de reconhe-
tempo, uma espécie de luz falsa (ou um fei-
cer e explicitar para os leitores os concei-
xe de luzes falsas). O indivíduo que nasce
tos e fundamentos que estão por trás do
na notoriedade, ou que a adquire em fun-
problema e das escolhas historiográficas e
ção de alguma situação-limite, começa a
não esconder esses conceitos dos olhos do
ser construído coletivamente em paralelo
leitor, de modo a forjar o mito da neutrali-
à sua existência física e concreta. As fontes
dade. Tudo na história-problema deve ser
nos dão os sinais precisos dessa constru-
explícito: também as fontes, os métodos,
ção, da qual elas são a parte mais. Estu-
e mesmo o lugar de onde o historiador se
dar essa construção e não apenas uma rea-
pronuncia. Além disso, na historiografia
lidade historiográfica que seria aquela que
da “história-problema”, também as hipó-
envolve o próprio biografado, seria uma
teses adquirem uma especial importância
tarefa importante para uma historiografia
e é por isso que, no texto atrás transcrito,
nova que ainda vai se construindo.
Febvre recomenda aos seus que partam
Podemos retomar aqui as considera-
para o trabalho “com uma boa hipótese em
ções sobre o Programa dos Annales. Con-
mente”.
forme pudemos ver, a história-problema
Ato contínuo à instituição de uma
associa-se, sobretudo quando a surpreen-
história-problema, conforme vimos ao
demos nos textos fundadores e refundado-
discorrer sobre a sua oposição à história
res da Escola dos Annales, ao incansável

317
História: Debates e Tendências – v. 12, n. 2, jul./dez. 2012, p. 305-325
factual, é a necessidade de instituir uma todo fato histórico passa a ser consequen-
nova noção de “fato histórico”, por oposição temente uma construção do historiador.
à noção do fato histórico como uma espécie O que pode instituir como fato histórico
de “átomo da história”.18 No historicismo essa ou aquela informação, aquele dado
mais tradicional (o historicismo dos piores ou este outro aspecto da realidade vivida
rankeanos e de alguns dos manuais de fins que encontrou registro em fontes diversas,
do século XIX) o fato histórico parece exis- é o problema proposto pelo historiador, o
tir externamente à ação do historiador e recorte histórico por ele construído, para
dá ares de se encontrar objetivamente ins- não falar do horizonte teórico constituído.
talado no documento histórico. Essa noção Jacques Le Goff, no prefácio para Nouvelle
do fato como um dado a ser buscado, ao in- histoire (1978), evoca mais uma vez Bloch
vés de ser construído, aparece implícita ou e Febvre, para retomar a ideia de que o
explicitamente em manuais como o de Ber- fato histórico é construção do historiador.
nheim (1889) ou o de Seignobos e Langlois Não há realidade histórica que funcio-
(1898), e ainda aparecerá no tardio manu- ne como um chavão e que se proponha
al de Louis Halphen (1946), atrás citado, e ao historiador por si mesma. Como todo
homem de ciência, o historiador deve, se-
que foi duramente criticado por Febvre em
gundo as palavras de Marc Bloch, “dian-
uma resenha e por Fernando Braudel em te da imensa e confusa realidade”, fazer
seu artigo sobre a “Longa duração” (1958). “sua escolha” – o que, evidentemente,
De acordo com alguns dos metódicos e sob não significa nem a arbitrariedade nem a
o prisma o setor mais retrógrado do histo- simples colheita, mas a construção cien-
tífica do documento [...]. [O fato histórico]
ricismo, a dupla crítica documental – ex-
é [agora segundo Febvre] “algo inventado
terna para assegurar a autenticidade do e fabricado, com a ajuda de hipóteses e
documento, e interna para confirmar a de conjunturas, por um trabalho delicado
autenticidade da informação – seria sufi- e apaixonante” (LE GOFF, Prefácio para
a Nova história, 1978) (LE GOFF, 2011,
ciente para recuperar esse fato histórico
p. 138).20
projetado na documentação. A partir daí,
bastaria encaminhar uma operação de or- Os Annales e os historiadores da Nou-
denamento cronológico, e os fatos pratica- velle histoire, assim como a quase totalida-
mente falariam por si mesmos, bastando de dos historiadores contemporâneos que
ao historiador cumprir esse papel de me- participaram da grande renovação histo-
diação – de operador técnico que a partir riográfica do século XX, empenharam-se a
de operações muito precisas permite que enxergar o fato histórico de uma nova ma-
se reconstitua o processo histórico.19 neira. Em primeiro lugar como construção
Se a operação historiográfica é regi- do próprio historiador – aspecto incontor-
da por um problema colocado pelo próprio nável – em segundo lugar, buscando con-
historiador, a partir das motivações de sua ceber a partir de novos ângulos esse fato
própria época e dos novos horizontes de construído, assim como também se cons-
apreensão da história por ela liberados, cientizavam de que era preciso olhar de

318
História: Debates e Tendências – v. 12, n. 2, jul./dez. 2012, p. 305-325
novas maneiras para os grandes aconteci- resume a posição de Febvre com relação a
mentos que, por razões a serem analisadas Toynbee, por ocasião do seu prefácio-mani-
e problematizadas, produziram grandes festo à História nova (1978):
ressonâncias nas sociedades que deixaram [Para Toynbee] existem, desde o início
seus registros. Conforme assinala Pierre da humanidade, 21 civilizações, as quais
Nora, encarregado de discorrer sobre “O passam por três fases sucessivas de gêne-
se, maturidade e declínio, segundo uma
retorno do acontecimento” na coletânea dos
lei de challenge et response, capacidade
novos Annales intitulada Faire d l’histoire de responder aos estímulos interiores e
(1974), “o acontecimento testemunha me- exteriores. Vocabulário e pensamentos
nos pelo que traduz pelo que revela, menos vagos que assimilam abusivamente “so-
pelo que é do que pelo que provoca; ele não ciedade” (nem todas, claro, pois Toynbee
conta 650 sociedades primitivas que,
é senão um eco, um espelho da sociedade,
para ele, não conseguiram chegar ao ní-
uma abertura” (NORA, 1988, p. 188). A vel de “civilização”) e “civilização”, uso
eleição desse tema para participar da pri- indiscriminado de um método compara-
meira grande coletânea dos novos histo- tivo grosseiro, fundado em numerosos
anacronismos, no recurso a metáforas e
riadores dos Annales (a segunda ocorreria
a um pensamento “vitalista”, que data
em 1978, com A nova história) mostra que “de ontem, quando não de anteontem”,
a questão do “fato histórico”, incluindo os na arbitrariedade do recorte das civiliza-
fatos políticos, já produzia novas deman- ções em numerus clausus e, por fim, duas
das na época dos terceiros Annales. Já não críticas capitais: por um lado, uma histó-
ria ilusionista, de prestidigitador, que faz
era possível apenas rechaçar o “fato” como com que as civilizações desfilem “como
algo menor, “mera espuma das ondas que quadros de um melodrama”, e, por outro,
se elevam sobre as correntes profundas”, uma filosofia da história, e não uma his-
ou como “mero piscar de vagalumes na noi- tória científica (LE GOFF, prefácio para
A nova história, 1978) (LE GOFF, 2011,
te escura”, conforme as famosas metáforas
p. 139-140).22
de Fernando Braudel.21
É preciso frisar ainda que, para além A história-problema, portanto, colo-
da oposição da história-problema dos An- ca-se também em oposição a uma “histó-
nales à velha tríade siamesa do factual, ria-conjectura”. Além de ser problemática,
da narrativa e da política tradicional, os ela deve seguir sendo uma história cientí-
historiadores annalistas também se em- fica. Retornemos, ainda, à questão da opo-
penharam em distanciar a sua história sição entre história-problema e história
problema dos “falsos problemas”. O anti- política, uma vez que a demonização da
-ídolo, aqui, foi o historiador inglês Arnold história política tradicional pela história-
Toynbee, que na década de 1930 começara -problema traz ainda uma importante im-
a fazer bastante sucesso com a sua Histó- plicação, uma vez que os fatos históricos
ria das civilizações. Para Febvre, Toynbee agora não mais se restringem ao mundo
discorria sobre falsos problemas. Jacques político, uma vez que as problematizações
Le Goff, incorporando essas críticas, assim propostas pelo historiador dizem também

319
História: Debates e Tendências – v. 12, n. 2, jul./dez. 2012, p. 305-325
respeito à cultura, à economia, aos modos Resumen
de pensar e de sentir, aos movimentos de-
mográficos. Um célebre dito de Karl Marx, Este artículo visa examinar el mo-
que afirmara que “tudo é história” – no vimiento de los Annales observando
sentido de que nada escapava ao movi- uno de sus elementos programáticos
mento da história – era agora reapropria- principales: la Historia-Problema.
do, pelos Annales e por outras correntes Las críticas de los historiadores del
movimiento de los Annales en contra
da moderna historiografia, para significar
la historia factual, la historia política
que tudo era legítimo de ser estudado pelo
tradicional y la historia narrativa son
historiador e não apenas aquele pequeno
examinadas en autores como Lucien
setor da dimensão política de uma socieda- Febvre, Marc Bloch y otros. Al lado de
de que correspondia à história da política la oposición entre historia-problema e
tradicional, da guerra, da diplomacia e das historia factual, también es discutida
elites políticas, universo ao qual se restrin- la oposición entre historia-problema e
giam muitos dos historiadores ligados ao historia-conjetura.
historicismo mais tradicional.
Palabras clave: Annales. Historia-pro-
blema. Historiografía.
Abstract
This article aims to examine the An- Notas
nales Movement attempting to one of
1
him principal’s programmatic items: Na Apologia da história (1941-1942), Marc
Bloch parece reconhecer o convívio entre estes
the Problem-History. The critics of vários sentidos na “fórmula do velho Ranke”,
the historians of the Annales Move- como ele a chama: “Como muitas máximas, esta
ment against the factual history, the talvez deva a sua fortuna apenas à ambigüida-
traditional political history, and the de. Podemos ler aí, modestamente, um conselho
de probidade: este era, não se pode duvidar o
narrative history are examined in au- sentido de Ranke. Mas também um conselho de
thors as Lucien Febvre, Marc Bloch, passividade” (BLOCH, 2001, p. 125).
2
Fernand Braudel, Jacques Le Goff and Michelet, autor que foi definido pela terceira
geração dos Annales como um dos principais
others. Besides the opposition between
precursores dos velhos Annales, é autor de
Problem-History and factual history, um trecho que aparece transcrito e comentado
it is also discussed the opposition be- no prefácio-manifesto de Jacques Le Goff para
tween problem-history and conjecture- a coletânea A nova história (1978). Neste pre-
fácio, Le Goff mostra que Michelet já era uma
-history. espécie de precursor da perspectiva da história
total, e também um crítico da tradicional histó-
Keywords: Annales. Historiography. ria política. Eis o trecho de autoria de Miche-
Problem-history. let: “[Antes dele, o próprio Michelet] [a França]
possuía anais, e de modo algum uma história.
Homens eminentes a tinham estudado, sobre-
tudo do ponto de vista político. Ninguém havia
penetrado nos infinitos detalhes dos diversos
desenvolvimentos de sua atividade (religiosa,

320
História: Debates e Tendências – v. 12, n. 2, jul./dez. 2012, p. 305-325
econômica, artística, etc.). Ninguém a havia então o século XIX foi chamado pelos seus pró-
ainda abarcado na unidade viva dos elementos prios contemporâneos de “século da história”. A
naturais e geográficos que a constituíram. Fui expressão já aparece referida em Thierry, um
eu o primeiro a vê-la como uma alma e uma pes- dos principais historiadores franceses da época.
soa...” (MICHELET, Histoire de France, 1833- E Nietzsche já criticava, de sua parte, o “excesso
1867). A metáfora da França como uma pessoa, de história” daquele século (1873).
6
obviamente, é apenas uma imagem que preten- A essa altura, Febvre já morrera, e Braudel rei-
de chamar atenção para a necessidade de apre- nava quase absoluto, talvez ao longe secundado
endê-la como uma unidade viva, atravessada pela forte influência de Ernst Labrousse, no pe-
por uma “vida integral” (palavra utilizada por ríodo que é considerado o da segunda geração
Michelet na sequência deste mesmo texto). No dos Annales.
7
entanto, não seria difícil alguém isolar a frase Esse trecho do manual de Louis Halphen é re-
(“Fui eu o primeiro a ver a França como uma produzido por Fernando Braudel em seu artigo
alma e uma pessoa”) para dizer que ela seria “A longa duração”, publicado na revista dos An-
um bom exemplo das metáforas organicistas ao nales em 1958, e mais tarde incluído na cole-
gosto dos sociólogos positivistas do século XIX. tânea A escrita da história (BRAUDEL, 1978,
Mas este não é o caso de Le Goff, que separa p. 46; BRAUDEL, 2011, p. 92).
8
Michelet, e alguns outros poucos historiadores Na mesma sequência, Marc Bloch prossegue
oitocentistas, daquela historiografia factual e acrescentando que “toda investigação histórica
conservadora que logo seria rechaçada pelos pressupõe, desde seus primeiros passos, que a
primeiros Annales. Michelet fora convocado investigação já tenha uma direção”.
9
neste prefácio de Le Goff para compor o seleto A Apologia da história, de Marc Bloch, foi escri-
grupo dos precursores dos Annales, e por isso ta entre 1941 e 1942, quando o historiador fran-
a sua frase era colocada no seu correto sentido cês militava clandestino em favor da resistência
metafórico. contra a ocupação nazista em seu país; mas te-
3
Este texto de Febvre é publicado pela primeira ria de esperar sete anos para ser publicada, em
vez em 1946, e republicado em 1953 para fazer 1949, cinco anos depois da morte de seu autor.
parte dos Combates pela história. Enquanto isso, Louis Halphen escrevera e pu-
4
Em outra passagem desta mesma obra, Niet- blicara em 1946 o seu pequeno manual, objeto
zsche utiliza para os historiadores factuais, do sarcasmo de Febvre e do posterior desprezo
recolhedores de fatos, a imagem do “operário”: de Braudel. No ano seguinte à publicação tardia
“Porém, não se deve desprezar de todo os ope- da Apologia da história, de Marc Bloch (1949),
rários que carregam, acumulam e selecionam Louis Halphen faleceu.
10
os materiais da história, até porque eles jamais Logo na abertura de sua resenha sobre o livro
se tornarão grandes historiadores; não se deve Introdução à história, de Louis Halphen (1946)
também confundi-los com estes últimos, mas – uma resenha que foi publicada por Febvre em
vê-los como auxiliares e operários necessários 1947 e depois incorporada aos Combates pela
a serviço dos mestres de obras. Foi nesse es- história (1953) – Lucien Febvre dá a entender
pírito, por exemplo, que os franceses costuma- que Halphen, já àquela altura um historiador
vam falar, com uma ingenuidade que não seria de 66 anos, nada havia mudado desde os 46
possível entre os alemães, dos ‘historiadores anos de sua formação: “Assim como o encontra-
do senhor Thiers’. Foi dito que estes operários mos em seu posto de honra, assim estava ele ao
poderiam chegar a ser grandes eruditos, mas sair da École des Chartes: o paladino convenci-
por isso mesmo jamais poderiam chegar a ser do dessa forma de história que Henri Berr bati-
mestres. Um grande erudito e um idiota, estes zou de modo feliz de história historizante. A ela
são personagens que podem ser facilmente en- Louis Halphen consagrou a sua vida” (FEBVRE,
contrados sob um mesmo teto” (NIETZSCHE, 1978, p. 103). Os últimos historiadores histori-
2005, p. 127). zantes, nos meados do século XX, eram homens
5
Dado o enorme sucesso da História como cam- como Halphen: historiadores idosos que não ha-
po disciplinar aceito nas universidades desde o viam conseguido se adaptar a um padrão que
início do século XIX, e em função da projeção de já era perfeitamente dominante. Dificilmente
historiadores em boa parte dos governos nacio- poderia ser encontrado por aquela mesma época
nais europeus, além do extraordinário sucesso um historiador das novas gerações que já não
das obras de história entre os leitores, desde fizesse uma história problematizada. No século

321
História: Debates e Tendências – v. 12, n. 2, jul./dez. 2012, p. 305-325
XIX, também iremos encontrar muitos histo- ceram, descobrir a verdade definitiva sobre os
riadores problematizadores. Mas certamente acontecimentos (sendo que só pode haver, neste
encontraremos uma boa mão de historiadores caso, uma única verdade histórica sobre proces-
factuais que não sofriam maiores admoestações. sos históricos como a Revolução Francesa ou o
11
Halphen, ao que parece, já era tomado como Nazismo).
13
diabo útil para a Nova história e para as novas A associação da história-problema como uma
ciências sociais desde 1911, pois Febvre cita em história que se constrói através de hipóteses
seu texto uma passagem na qual Henri Berr já também aparece na Apologia da história, de
evocava Halphen como exemplo de “historiador Marc Bloch. Nesta, a história é entretecida com
historizante” (FEBVRE. 1978, p. 104). hipóteses porque é uma ciência. Para esta ques-
12
Um estudante de história, nos dias de hoje, pode tão, Marc Bloch evoca o livro A ciência e a hipó-
até não ter sucesso em desenvolver uma boa his- tese, de Poincaré (1902).
14
tória problematizada, em função de menor ta- Neste artigo, sempre falaremos em uma “his-
lento para propor questões e hipóteses, levantar tória política tradicional” para nos referirmos
os devidos debates historiográficos ou trazer ao a uma visão historiográfica mais estreita deste
seu trabalho uma adequada base teórica. Futu- complexo campo histórico que é o da história po-
ramente, este ou qualquer outro aluno poderá lítica, este mesmo que segue nos dias de hoje (na
mesmo aceitar encomendas de historiografia verdade sem nunca ter se interrompido) como
factual, o que não é raro na comunidade histo- uma modalidade historiográfica importante. A
riográfica. Mas talvez não encontremos um só questão é que, no século XIX, as atenções temá-
aluno que termine o seu curso de graduação em ticas se voltavam para uma faixa muito estreita
história acreditando que o historiador factual dos objetos possíveis a uma história política ple-
pode ser um dos modelos defensáveis para a sua na. O poder institucional e estatal, muitas ve-
carreira. Questões como a da problematização zes trabalhado descritivamente, as lutas entre
em história, da imperiosidade de evitar anacro- nações e o movimento da diplomacia, a história
nismos, da construção do fato histórico, ou da dos grandes políticos como “grandes homens”
contextualização dos documentos, entre outras, – a história política tradicional muitas vezes
estão por demais entronizadas na comunida- se limitava a estas zonas temáticas. Menos do
de historiográfica, no ensino de história, e na que uma “história política” no sentido pleno, era
matriz disciplinar deste campo de saber. Não muito mais uma “história [da] política” – isso
é possível ignorar essas questões, não assumi- é, uma história da política oficial, ou dos pró-
-las como um historiador contemporâneo. Difi- prios políticos “importantes”. No século XX a
cilmente encontraremos alguém que, tendo se história política amplia de maneira extraordi-
formado em História, bata nos peitos afirman- nária o universo de seus interesses temáticos,
do ser um “historiador factual”, ou que declare particularmente após as grandes guerras. Deste
que a função da história é só contar os fatos tais modo, não é a uma história política como esta
como aconteceram. Em uma palavra, com muita que os Annales se referem, e nem aquela contra
dificuldade encontraremos ainda algum histo- a qual apontam o seu programa. Diversos his-
riador profissional que professe uma “concepção toriadores dos Annales iriam escrever, oportu-
factual da História”. A figura do historiador fac- namente, uma nova história política, adaptada
tual foi banida para a periferia atmosférica dos aos novos tempos. Marc Bloch chega mesmo a
fantasmas que rondam nosso campo de saber, considerar seus Reis taumaturgos (1922) como
sem a possibilidade de entrar, pelo menos nesta uma história política deste novo tipo.
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Era Historiográfica. Em contrapartida, é inte- Este debate ficou conhecido, na Alemanha de
ressante observar que predomina precisamente fins da década de 1880, como polêmica “Schäfer
uma “concepção factual da História” na maior contra Gothein”.
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parte das pessoas comuns – isto é, as pessoas André Burguière, o historiador da terceira ge-
que não estudaram História como um campo de ração dos Annales que foi mais autocrítico em
saber, nas universidades, ou que não se apro- relação à sua e às gerações anteriores do movi-
ximaram das obras teórico-metodológicas dos mento, condena a “lacuna lamentável” que fora
historiadores profissionais. O homem não in- produzida pela rejeição dogmática do político.
formado ou formado em História tende a ima- Em seu verbete sobre a “Escola dos Annales” do
ginar que o trabalho dos historiadores é mesmo Dicionário das ciências históricas (1986), discor-
recolher os fatos, narrar as coisas como aconte- re sobre esta ausência do político na historiogra-

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fia dos Annales, que “fazia com que se corresse simplesmente desenterrar, limpar e apresentar
o risco de fortalecer uma visão hipermateria- à luz do dia aos nossos contemporâneos?” (FE-
lista ou resignada da história, na qual a ação BVRE, 1978-1, p. 105). Mais adiante, Febvre
dos homens, sua capacidade de dar sentido aos afirma: “Um historiador que se recusa a pensar
conflitos, à mudança, seriam invariavelmente sobre o fato humano, um historiador que pro-
anuladas pela força das coisas” (BURGUIÈRE, fessa a submissão pura e simples a esses fatos,
1993, p. 53). Na verdade, uma análise da histo- como se não fossem de sua fabricação, como se
riografia do movimento permite observar como não tivessem sido escolhidos previamente, em
um grupo significativo de historiadores políticos todos os sentidos da palavra ‘escolhido’ (e eles
começa a se afirmar de modo especialmente re- não podem deixar de ser escolhidos por ele) – é
levante com a terceira geração dos Annales. uma ajuda técnica. Que pode, aliás, ser excelen-
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O texto de Pierre Nora ao qual Le Goff se refe- te. Mas não é um historiador” (FEBVRE, 1978a,
re é “O retorno do fato”, publicado no volume p. 106). Essa ideia, aliás, é muito próxima de
“Novos problemas” da obra coletiva da Nouvelle uma passagem da IIª Consideração Intempesti-
Histoire em 1974: Faire de l’histoire. No Brasil, va de Nietzsche: “Os operários que acumulam e
esta coletânea foi publicada com o título Histó- selecionam os materiais da história [...] jamais
ria – novos problemas, novas abordagens, novos se tornarão grandes historiadores; não se deve
objetos (1988, v. III, p. 179-183). também confundi-los com esses últimos, mas
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Febvre utiliza essa imagem para criticar a ideia vê-los como auxiliares e operários necessários a
do fato como “um pretenso átomo da história”, serviço do mestre de obras (NIETZSCHE, 2005,
em um dos artigos de seus Combates pela histó- p. 127).
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ria (1953, p. 6). Podemos ainda lembrar que ou- As críticas de Febvre contra Toynbee e Spengler
tras críticas à definição de “fato histórico” foram foram feitas em um texto publicado em 1936
encaminhadas antes dos Annales. Guizot, his- com o título “Contra duas filosofias oportunis-
toriador da primeira metade do século XIX, que tas da história: Spengler e Toynbee”. Mais tar-
é lembrado por Le Goff no prefácio para a His- de, esse texto foi incorporado aos Combates pela
tória Nova (1978), criticara a restrição temática história (FEBVRE, 1978b, p. 130-155).
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dessa noção em muitos dos historiadores de sua O texto de Pierre Nora sobre “o retorno do fato”
época: “Há algum tempo, fala-se muito, e com revela as dificuldades de um historiador forma-
razão, da necessidade de encerrar a história nos do na rigorosa crítica à factualidade, a cargo do
fatos, da necessidade de contar; nada de mais mestre Braudel, diante das novas demandas de
verdadeiro. Mas há muito mais fatos a contar, considerar o papel do acontecimento na história.
e fatos bem mais diversos do que podemos ficar Pierre Nora não foi, entre os historiadores dos
tentados a crer à primeira vista: há fatos ma- Novos Annales, um dos que revelou mais poten-
teriais, visíveis, como as batalhas, as guerras, cial de renovação. Aqui, ele luta para adaptar a
os atos oficiais dos governos; há fatos morais, sua tarefa de discorrer sobre o acontecimento,
ocultos, que nem por isso são menos reais; há demanda desses novos tempos que iria se inten-
fatos individuais que têm um nome próprio; há sificar ainda mais nos anos 1980, com as velhas
fatos gerais, sem nome, aos quais é impossível lições que marcaram a sua formação. Empenha-
atribuir uma data precisa, que é impossível con- -se ao máximo em ajustar suas reflexões sobre
ter em limites rigorosos, e que nem por isso dei- “o retorno do fato” com os modelos da história
xam de ser fatos como os outros fatos históricos, estrutural e da história quantitativa: “Pois que,
que não podem ser excluídos da história sem independente do que possa parecer, o desdo-
causar mutilações [...]” (GUIZOT, primeira aula bramento de um acontecimento não tem nada
do Curso de história moderna, apud LE GOFF, de arbitrário. Se não é seu aparecimento, pelo
2011, p. 148-149). Sobre Guizot e seu momento, menos seu surgimento, seu volume, seu ritmo,
ver ROSANVALLON, 1985. seus encadeamentos, seu lugar relativo, suas
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Febvre assim se refere, sarcasticamente, a essa sequelas e seus saltos obedecem a regularida-
ideia de “fato histórico”: “Porque, enfim, os fatos des que dão aos fenômenos aparentemente mais
[...]. E a que denominam você fatos? Que colo- longínquos um certo parentesco e uma morna
cam vocês atrás desta pequena palavra, “fato”? identidade” (NORA, 1988, p. 190).
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Pensam acaso que eles são dados à história como Fernando Braudel, em um texto intermediário
realidades substanciais, que o tempo escondeu entre o de Lucien Febvre (1936) e o de Le Goff
de modo mais ou menos profundo, e que se deve (1978), também criticou Toynbee, em um arti-

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go sobre autores que abordaram “A história das FEBVRE, L. (1946). Sur le livre La Paix
civilizações” (1978, p. 252-262). Apesar das crí- Armée de Roubaud. Annales ESC, v. 1, n. 3.
ticas, que continuam frontais, admite algumas
p. 282-284, Paris.
qualidades na monumental obra de Toynbee,
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