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Série

as cadeias produtivas
do artesanato de Alcântara

Raquel Noronha (org.)

São Luís, 2011


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Eu não faço na máquina,


eu aprendi foi com a minha mãe,
que me ensinou foi assim, aprendi
tudo manual. Tudo da gente é
valorizado porque é manual.
Agora que eles querem tirar a gente
das comunidades daqui, fica difícil...
Eles não podem tirar por que a
gente tá aqui trabalhando na
terra da gente, e isso faz a gente
permanecer no nosso lugar.
Roberta, de Brito
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Os elos das cadeias...

A etapa Identidade é valor, ação desenvolvida no âmbito do projeto Icono-


grafias do Maranhão, não seria o que é sem a participação dos moradores de Bri-
to, Santa Maria e Itamatatiua. A dedicação de tempo e atenção destas mulheres que
se dispuseram a nos mostrar os seus fazeres e saberes foi fundamental para que pu-
déssemos mergulhar no universo que é cada uma de suas práticas artesanais. Desta
forma, somo-lhes muito gratos, e é impossívei deixar de citar seus nomes:
Roberta, Cilene, Maria José, Vicenza, Luciene, Francimar, de Brito;
Eloísa, Neide, Dos Anjos, Dos Santos, Ceci, Nazaré, Canuta, Irene, Domingas,
De Lourdes, Angela, Denise, Eduarda, Carliane, de Itamatatiua;
Celeste, Suely, Marinalva, Eudialite, Rosa Maria, Maria José, Deusimar, Ana
Maria, Adriana, Luzia, Raquel, de Santa Maria.

Imensa foi a dedicação dos alunos do curso de Design da UFMA,


o apoio da Pró-reitoria de Extensão e a colaboração da Profa. Dra. Patrícia
Azevedo, do DEDET. Fundamental a parceria de nossos patrocinadores,
o BNB e o BNDES, por meio do edital do Programa BNB de Cultura 2010
e a impecável gestão da FSADU, lembrando especialmente da
Profa. Sônia, gestora de nosso projeto.
Gostaríamos de manifestar nossos sinceros agradecimentos às pessoas
que colaboraram com nossos esforços em tangibilizar os processos produtivos do
artesanato de Alcântara, contribuindo para a divulgação do nosso patrimônio:
Cláudio Farias, Dante Maia, Danilo Janúncio, Lia Krucken, Marilda Mascarenhas,
Kelly, D. Pedra, Luciana Caracas, Pelado, Flávia Moura, Cristina Tavares,
Hamilton Oliveira e Thiago Guará.
Agradecimento especial a Rosangela de Souza Gomes,
pela atenta revisão e interlocução crítica para a conclusão de mais esta etapa.

A todos, nosso MUITO OBRIGADO!


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Sumário
07 Prefácio
Identidade é valor
Lia Krucken

11 Apresentação
Raquel Noronha

15 Introdução
Raquel Noronha

19 Capítulo 1
Localizando pessoas, lugares e produtos
Raquel Noronha, Imaíra Portela e Milena Alves

45 Capítulo 2
O mapeamento das cadeias produtivas
Raquel Noronha, Franklin Veiga Neto, Imaíra Portela,
Marcella Abreu e Milena Alves

77 Capítulo 3
Reflexões sobre as cadeias produtivas
do artesanato de Alcântara
Raquel Noronha

111 Capítulo 4
Estratégias ambientais para o desenvolvimento
de produtos artesanais sustentáveis
Patrícia Silva de Azevedo e Marcella Abreu

121 Capítulo 5
Identificando valores e valorizando identidades
Raquel Noronha

129 Sobre os autores


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Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara
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Prefácio: Identidade é valor


Lia Krucken

O Brasil é frequentemente associado à sua ri- é empregada para definir um território caracteriza-

Prefácio
queza em termos de diversidade cultural e de recur- do pela interação com o homem ao longo dos anos,
sos biológicos. Este patrimônio, que caracteriza nos- cujos recursos e produtos são fortemente determi-
so país como megabiodiverso, nos traz uma grande nados pelas condições do solo, do clima e culturais.
responsabilidade. A todo momento nos confronta- No Brasil, uma importante referência para as
mos com a necessidade de desenvolver estratégias pesquisas que abarcam o conceito de território é o
para proteger e valorizar os conhecimentos plurais e extenso trabalho de Milton Santos. O território, em
os recursos naturais, buscando alternativas de trans- suas palavras, “é a base do trabalho, da residência,
formação e renovação do território e das tradições. das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os
A valorização de identidades e produtos locais quais ele influi”.
é um tema central nesta discussão. Neste sentido, Considerar os produtos locais como elementos
este livro organizado por Raquel Noronha repre- do território nos conduz a uma visão ampla de proje-
senta uma significante contribuição, trazendo o tes- to. Neste sentido, o processo de valorização de pro-
temunho de uma experiência prática de design, em dutos locais depende de muitos fatores que vão além
curso, nos territórios maranhenses. Tão importante da qualidade dos recursos e dos artefatos em si mes-
como promover ações é registrá-las, possibilitando mo. É necessário alargar o foco de análise: partindo
refletir sobre os possíveis desdobramentos e pro- do contexto local para compreender as relações que

Identidade é valor
mover novas interações. se formam em torno do território, da produção e do
Três conceitos são essenciais para fundamentar consumo dos produtos. A perspectiva do design vem
a reflexão sobre a valorização de produtos locais: ter- justamente ajudar nesta complexa tarefa de mediar
ritório, sociobiodiversidade e inovação colaborativa. tradição e inovação, tendo como ponto central as tro-
Os produtos locais são manifestações culturais, cas que se estabelecem em torno dos artefatos, atri-
fortemente relacionadas ao território e à comuni- buindo-lhes diferentes significados.
dade que os produziu. Estes produtos representam Ao pensarmos os produtos locais como resul-
os resultados de uma rede, tecida ao longo do tem- tados de práticas e saberes tradicionais, que sedi-
po, que envolve recursos da biodiversidade, modos mentam-se em um território e carregam múltiplos
de fazer tradicionais, costumes e também hábitos de significados, é oportuno introduzir o conceito de
consumo. Esta condição de produto ligado ao terri- “produtos da sociobiodiversidade”. Esta expressão
tório e à sociedade que o produz é representada no inclui bens e serviços (produtos finais, matérias-pri-
conceito de terroir. Esta palavra, original do francês, mas ou benefícios) gerados a partir de recursos da
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biodiversidade, voltados à formação de cadeias pro- desenvolvida. Sensibilidade na escuta aos detentores
dutivas de interesse dos povos e comunidades tra- do conhecimento local, que são os protagonistas do
dicionais e de agricultores familiares – segundo de- processo e os guardiães do patrimônio cultural ma-
finição construída coletivamente por comunidades nifestado no saber-fazer. Sensibilidade na interação
com o suporte do Ministério do Meio Ambiente em com diferentes atores e na percepção dos valores e
2008. Os “produtos da sociobiodiversidade” estão significados associados às tradições e modos de vida.
também relacionados à manutenção e à valorização Sensibilidade na facilitação de processos de inovação,
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

de práticas e saberes das comunidades, além da qua- abertos aos acontecimentos que se cruzam. Sensibi-
lidade de vida e do ambiente. lidade para apreender, sistematizar e combinar co-
As intervenções do designer, neste sentido, vi- nhecimentos que possam contribuir para desenvol-
sam a contribuir para o desenvolvimento de formas ver novas reflexões e ferramentas.
de inovação colaborativa, que respondam às deman- Na obra organizada por Raquel Noronha, pode-
das das próprias comunidades e que possibilitem re- mos perceber a importância destas questões, sobre-
novação, transformação e valorização da sua identi- tudo da capacidade de escuta na condução de projetos
dade e do seu conhecimento. E, de fato, podemos colaborativos. Um dos fatores que torna este livro es-
ver que o papel do designer como facilitador e pro- pecial é justamente o fato de relatar um conhecimen-
motor de uma participação social ativa na busca de to em construção – resultado de uma pesquisa-ação
soluções colaborativas e sustentáveis vêm se fortale- conduzida no Maranhão – que envolve comunidades e
cendo nos últimos anos. Podemos dizer que o prin- pesquisadores de diversas áreas. É um prazer acom-
cipal desafio do design é, justamente, suportar o de- panhar esta iniciativa inovadora e ler o relato escri-
senvolvimento de soluções a questões de alta com- to por múltiplas mãos, que representa uma preciosa
plexidade, integrando-se com diversos atores. Im- contribuição para a discussão relacionada às práticas
portantes autores que abordam o tema são Ézio de valorização de produtos da sociobiodiversidade.
Manzini e John Thackara.
Na prática, trabalhar em projetos que visam
a valorizar produtos locais constituem oportuni-
dades únicas de aprendizado, nas quais me parece Lia Krucken
que a sensibilidade é uma qualidade essencial a ser Milão, 28 de maio de 2011.

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Prefácio
Identidade é valor
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Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Clichê de identificação da cerâmica de Itamatatiua


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Apresentação
Raquel Noronha

Apresentação
Este é um livro escrito por muitas mãos – mais Os que apresentamos aqui é o resultado da eta-
de sessenta – em um processo coletivo, permeado pa que intitulamos Identidade é valor, na qual bus-
por seminários, visitas, entrevistas e conversas infor- camos mapear as cadeias produtivas do artesanato de
mais. Aqui, relatamos nosso contato com saberes e povoados de Alcântara com a finalidade de sistematizar
fazeres tradicionais de três comunidades do municí- os processos produtivos, para que possamos identificar
pio de Alcântara, Maranhão. É uma mistura de rela- – comunidades e pesquisadores – os valores do arte-
to de experiência e de inventário. sanato a partir do ponto de vista dos produtores e su-
A experiência de um grupo de pessoas que se as representações sobre o consumo de seus produtos,
propôs inventariar as cadeias de produtivas do arte- quando estão em contato com os consumidores ou os
sanato de Brito, Santa Maria e Itamatatiua, durante mediadores da cadeia produtiva.
um período de apenas oito meses sendo, portanto, O projeto Iconografias do Maranhão reali-
ainda um conhecimento em andamento. Pela nature- za desde 2008 mapeamentos iconográficos nos bair-
za reflexiva de nossa ação, este livro também explo- ros da Praia Grande e do Desterro; entre grupos de
ra de forma analítica a metodologia que articula co- tambor de crioula, bumba-meu-boi, blocos-afros e
nhecimentos para a construção da relação com os casas religiosas de matriz africana; entre os operá-
nossos outros, e sempre que necessário, não hesita- rios navais tradicionais da área Itaqui-Bacanga, com
remos em analisar o nosso próprio lugar de fala, nos- o apoio da FAPEMA e inicia, nesta etapa, suas ati-
sa posição no contexto da pesquisa. vidades entre as comunidades artesãs do município
Esta iniciativa está inserida nas ações do projeto de Alcântara, com patrocínio do Programa BNB de
Iconografias do Maranhão, conjunto de ações de Cultura/BNDES.
extensão e de pesquisa, promovidas pelo Departamen- Para nós, professores e alunos do curso de De-
to de Desenho e Tecnologia da Universidade Federal do sign da UFMA, iconografia se transforma em ação, re-
Maranhão, cujo objetivo principal é promover mapea- presentada pelo verbo iconografar, que caracteriza o
mentos iconográficos da cultura, em seus diferentes as- processo de identificação, descrição, classificação e
pectos – a cultura popular e suas dimensões patrimo- interpretação dos significados simbólicos dos fazeres,
niais, a relação das pessoas com seus saberes e fazeres dos saberes e das histórias de determinado grupo ou
tradicionais, a cultura material, os lugares e as formas de cultura e, ainda, as formas tangíveis destes significados
expressão que caracterizam a nossa diversidade cultural – seus produtos, seus objetos e suas imagens, ou seja,
– os quais estamos muito acostumados a referenciar, a sua cultura material. Este processo é construído co-
mas ainda são poucas as iniciativas que buscam dar-lhes letivamente pelos pesquisadores e pelas comunidades
visibilidade, no sentido stricto desta palavra. que produzem cultura no Maranhão.
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O que inicialmente pode parecer uma estratégia


de afirmação de identidades, na verdade, é uma es-
tratégia de desconstrução de discursos e de práticas
concebida sobre a produção e o consumo da cultura.
Partimos da hipótese de que o processo coletivo de
construção de imagens, entre pesquisadores e sujei-
tos da pesquisa, pode reforçar ou negar determinadas
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

relações, discursos e práticas sociais.


As comunidades participantes do projeto foram
capazes de refletir sobre a própria identidade cultu-
ral, a partir do reconhecimento ou negação de tais
imagens. Isto se maximiza quando o universo da análi-
se atinge um escopo maior e quando disponibilizamos
os ícones desenvolvidos em formato digital no site do
projeto (www.iconografias.ufma.br), e qualquer pes-
soa, de qualquer lugar, pode acessá-los e utilizá-los do
jeito que quiser.
Além de proporcionar um sentimento de co-au-
toria entre as comunidades participantes do projeto,
o mapeamento das cadeias produtivas apresenta-se

Roberta, botando a rede no tear.

Celeste, batendo o jogo americano.

como uma metodologia que dá visibilidade à cultura


de um lugar, promovendo a comunicação do patrimô-
nio imaterial. Ainda de uma forma preliminar, este ma-
peamento nos possibilita reunir o conhecimento ne-
cessário para agir propositivamente em projetos fu-
turos promovendo, assim, inovação na cadeia produ-
tiva da cultura, do artesanato e do turismo, alavan-
cando projetos de qualificação e comercialização do
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artesanato, com a intervenção do Design nos proces-


sos e produtos, qualificando e potencializando valo-
res para todos os envolvidos na produção e consu-
mo da cultura.

Apresentação
Com o trânsito das imagens – polifônicas, pela na-
tureza compartilhada de sua construção – expressam-
-se traços da identidade cultural, despertam-se senti-
mentos de autoestima e orgulho, além de promover a
discussão sobre quais valores são importantes para tais
identidades com o processo de tomada de consciên-
cia sobre a existência de um patrimônio que, com este
projeto, torna-se tangível e acessível a todos.

Neide, fazendo o acabamento do pote.

Participantes do Identidade é valor, no encerramento do


primeiro seminário, em Alcântara

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Participantes na dinâmica realizada no seminário em


Alcântara, em dezembro de 2010.
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Introdução
Raquel Noronha

Introdução
Por cadeia produtiva entendemos o conjun- renda, a preservação da tradição, a manutenção do
to de procedimentos, etapas, agentes, processos e território, entre outros que pudemos identificar
produtos envolvidos em alguma atividade cujo re- durante a ação.
sultado seja um produto, desde a sua pré-produção Como estratégia, priorizamos a pesquisa de
até o seu consumo final (KRUCKEN, 2009). Na ca- campo como instrumento privilegiado de enten-
deia produtiva estão envolvidas as pessoas que pro- dimento das realidades locais e a realização de se-
duzem e as que consomem o produto. minários de trabalho como forma de agregar e de
Neste projeto, o intuito é investigar o univer- compartilhar experiências locais no âmbito coleti-
so da produção do artesanato de Alcântara, vo. Para isto, realizamos duas visitas às comunida-
entender o modo como estes artefatos são produ- des, além de um seminário com representantes de
zidos e conduzidos à venda; como os sujeitos que os todas elas. Permanecemos uma curta temporada em
produzem percebem e atribuem valor a este artesa- cada um dos povoados. Este livro será lançado tam-
nato e também sua percepção sobre a atividade ar- bém em um seminário, concretizando a metodolo-
tesanal como geradora de trabalho e renda, os en- gia proposta.
traves e as dificuldades sobre a sua produção. Nossa abordagem enfatiza o entendimento dos
Para tal, analisaremos discursos e práticas, na processos e do mapeamento das cadeias produti-
medida em que os sujeitos, nos momentos de sua vas a partir da observação e da troca de experiên-
fala, transitam por diversos posicionamentos acer- cias entre os pesquisadores e os sujeitos da pesqui-
ca da sua identidade, nos discursos sobre a tradi- sa, garantindo resultado rico e representativo, em
ção do seu saber, as motivações que os fazem per- um processo dialógico de trabalho, possibilitando o
manecer na atividade artesanal e a produção ligada compartilhamento de saberes. Nestas oportunida-
ao território. des de convivência foi possível identificar discursos
Baseamo-nos no princípio de que os valores que se fortalecem e discursos que se opõem. Para
que identificamos e analisamos são inerentes às atingir o objetivo de relatar e sistematizar a experi-
próprias cadeias produtivas e que só os agentes di- ência e analisar os resultados, organizamos este livro
retamente ligados a elas podem identificá-los, hie- em cinco capítulos.
rarquizá-los e classificá-los. Estes valores podem ser O primeiro, inicia-se com as informações sobre
de diversas naturezas: a valorização da identidade, a pesquisa, com um breve histórico sobre o municí-
a valorização da cultura, a geração de trabalho e pio de Alcântara. Continuamos com uma pequena 15
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caracterização dos povoados sobre os quais a ação


incide. As artesãs que participam do projeto tam-
bém são caracterizadas e o capítulo encerra-se com
aspectos metodológicos da pesquisa, trazendo à
baila as condições nas quais ela aconteceu, numa
abordagem mais do ponto de vista dos pesquisado-
res, justificando opções e clareando as abordagens
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

teórico-metodológicas.
O segundo capítulo aborda o mapeamento das
cadeias produtivas, trazendo a descrição de cada
uma das suas etapas.
No terceiro capítulo temos a oportunidade
de refletir sobre o que conversamos e observamos
no cotidiano das artesãs durante o seminário e as O buriti, fruto da palmeira da qual se extrai a fibra, para
visitas realizadas. Este capítulo aponta discursos e o artesnato do linho.

Equipe do projeto no buritizal, em Santa Maria.

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práticas sobre diversos aspectos das suas produções inicia uma discussão que não se encerra aqui, sobre
artesanais e assim evidenciamos o imaginário das ar- a existência de um artesanato ligado ao território de
tesãs, sobre as várias atividades realizadas nas ca- Alcântara e a introdução da lógica do mercado na
deias produtivas. produção artesanal. Finalizamos o livro com algumas
O quarto capítulo traz uma abordagem sobre reflexões sobre o papel do designer como mediador

Introdução
sustentabilidade, caracterizando um dos grandes en- e agente deste processo, de forma que se insira de
traves que enfrentam nossas informantes, propondo forma estratégica nas cadeias produtivas.
uma análise das cadeias produtivas perante os requisi-
tos para uma produção artesanal sustentável. Referência
O quinto capítulo, à guisa de um fechamento KRUCKEN, Lia. Design e território: valorização de identi-
momentâneo e não de um ponto final para o assunto, dades e produtos locais. São Paulo: Studio Nobel, 2009.

Equipe do projeto no campo, de onde se retira o barro,


em Itamatatiua.

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Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara
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Capítulo 1
Localizando pessoas, lugares e produtos
Raquel Noronha, Imaíra Portela e Milena Alves

Capítulo 1
Percorremos agora um caminho metodológico final. Assim, identificamos algumas possibilidades de
que descreve as etapas da ação, os desafios, as sur- produtos, de comunidades ou de grupos que produ-
presas e as descobertas que ajudam a delinear os ziam para esta finalidade. Eram elas: o doce de es-
nossos sujeitos de pesquisa e as condições nas quais pécie e os altares e os adereços da festa do Divino;
ela aconteceu. as embarcações tradicionais de São João de Côrtes;

Localizando pessoas, lugares e produtos


Iniciamos identificando na literatura os lugares os azeites de babaçu e a mamona de Mamuna; a ce-
e as comunidades que produzem artesanalmente râmica de Itamatatiua; as redes de dormir de Bri-
em Alcântara como uma atividade comercial. Diver- to; a tecelagem com fibra de buriti em Santa Maria. 5
sas comunidades se valem da confecção artesanal O período do ano em que trabalhamos nos im-
de doces, licores, cofos1, abanos e meaçabas2 , assim pediria de acompanhar os preparativos da festa do Di-
como se utilizam das técnicas construtivas da tai- vino e pela complexidade das atividades e rituais li-
pa3 e do adobe4 e o teto de palha de buriti, babaçu, gados a ela, preferimos deixar esta análise para uma
entre outras. Porém, nossa busca não era por este oportunidade futura. Assim, com base em nossos
artesanato de subsistência, para o próprio consu- cronograma e orçamento, definimos trabalhar com
mo, mas o que visasse à comercialização do produto as comunidades do interior do município. Durante o

1. “Cofo é o nome dado, no Maranhão, à cestaria de natureza utili- 4. O adobe é uma técnica tradicional executada em terra cura. O
tária, confeccionada manualmente com as folhas de palmeiras nati- processo de fabricação do tijolo de adobe consiste em amassar
vas. No dia a dia do maranhense, o cofo é um instrumento já ‘tra- o barro, deixá-lo descansar por alguns dias e, ainda úmido, colo-
dicional’ e mesmo indispensável.” (GONÇALVES et ali, 2009, p.11) cá-lo em fôrmas (geralmente de madeira de formato retangular),
2. Meaçaba é um tipo de esteira trançada, confeccionada com a deixando-o secar ao sol. Disponível em http://e-groups.unb.br/
palha de palmeiras regionais. fau/pos_graduacao/paranoa/edicao2005/adobe.pdf
3. A taipa é uma técnica herdada das culturas árabes e berberes. 5. Na primeira visita em São João de Côrtes, o artesão com o qual
Constitui-se de paredes feitas de barro amassado e calcado, por conversamos não demonstrou interesse em participar do projeto,
vezes misturado com cal para controlar a acidez da mistura que alegando que estava parando com as atividades, e que não eram lu-
vem a ser comprimida entre taipais de madeira desmontáveis, re- crativas. Em Mamuna, retornamos para a reunião, mas as artesãs
movidas logo após estar completamente seca, formando assim não puderam, naquele momento, nos mostrar as etapas do pro-
uma parede de um material incombustível e isotérmico natural e cesso produtivo. Como não compareceram ao seminário, momen-
particularmente barato. Disponível em (http://www.arq.ufsc.br/ to fundamental para a continuidade da ação, ficamos impossibilita-
arq5661/trabalhos_2004-1/arq_terra/taipadepilao.htm) dos de dar continuidade ao projeto nesse povoado.
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São João de Côrtes


Brito
Santa Maria
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Mamuna

Alcântara

Cujupe

Itamatatiua

Localização dos povoados participantes do projeto

Sede do município
Localidades pesquisadas
Localidades visitadas
Porto do ferry-boat
Área do CLA em sobreposição às Terras das
Comunidades Remanescentes de Quilombo
Terras de Preto: Terra das Comunidades
Remanescentes de Quilombo
Desenhado a partir do mapa do fascículo 10 da Nova Cartografia So-
cial da Amazônia - Quilombolas atingidos pela Base Espacial - Alcântara
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percurso, houve contratempos e dificuldades de aces-


so, tanto aos povoados como às pessoas, que nos le-
varam a fechar o escopo do projeto em três comuni-
dades – Santa Maria, Brito e Itamatatiua – que carac-
terizaremos melhor a seguir.

Capítulo 1
Para entendermos as peculiaridades deste mape-
amento é importante contextualizar melhor o muni-
cípio no qual atuamos. Alcântara tem sua dinâmica es-
pacial comprometida pelos entrecruzamentos de di-
versos discursos – os oficiais, os acadêmicos e os do
senso comum – envolvendo as relações de territoria-
lidade e a identidade local de sua população, caracte- Ruínas da Igreja de São Mathias (acima) e detalhe da Igreja do

Localizando pessoas, lugares e produtos


rizados pelo embate entre a expansão do Centro de Carmo e ruínas (abaixo), Alcântara, MA.
Lançamento de Alcântara (CLA) e a titulação de ter-
ritórios quilombolas lá existentes. Perante tal situação
é preciso caracterizar o município.

1.1 Alcântara: de celeiro à decadência

Situada a uma hora de lancha de São Luís, lo-


calizada na mesorregião norte do Maranhão, nos li-
mites da Amazônia Legal, Alcântara é um município
com história bastante peculiar. O município ocupa
uma área de, aproximadamente, 120.000 hectares
(IPHAN, 2009) e é uma das duas cidades históricas
brasileiras a ostentar a condição de monumento na-
cional, ao lado de Ouro Preto. É o único município
no Brasil a ter reconhecido num mesmo perímetro
um extenso território étnico, formado por 157 co-
munidades camponesas, pleiteando a titulação de re-
manescentes de quilombos (op.cit).
Alcântara já foi considerada o celeiro do Mara-
nhão (VIVEIROS, 1954), no século XVII; vivenciou um
processo de decadência (ALMEIDA, 1983) com a ca-
racterística específica do deslocamento da sua bur-
guesia, os comerciantes, para a cidade de São Luís, 21
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com o consequente abandono das fazendas nas mãos título definitivo – Oficinas de Consulta – Al-
de prepostos, geralmente escravos de confiança, o cântara, Maranhão, como guia para percorrer as
que gerou o estabelecimento velado e consentido de estradas de piçarra do interior do município, o que
quilombos praticamente dentro das fazendas produ- foi de fundamental importância para identificarmos as
toras de algodão e engenhos de açúcar, principalmen- comunidades que visitamos.
te com o final do sistema escravagista (SOUZA FI- Segundo o diagnóstico participativo do muni-
LHO, 2009). No século XX é considerada pelo Esta- cípio de Alcântara, realizado em 2003, utilizando as
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

do como “o melhor lugar do planeta para o lançamen- estratégias metodológicas do Programa Comunida-
to de foguetes” (op.cit) e a instalação de um centro de de Ativa e o PNUD (PROJETO AEB/PNUD BRA
lançamentos de artefatos espaciais já que, além das 01/003, 2003), o município de Alcântara é o segundo
condições metereológicas favoráveis, a suposta deca- mais antigo do litoral ocidental do Maranhão, e sua
dência da lavoura teria gerado um imenso vazio demo- fundação data de 22 de dezembro de 1648, quando
gráfico (ALMEIDA, 2002) no lugar. foi elevado à categoria de Vila, com o nome de Santo
Em seu Laudo Antropológico de Identifica- Antônio de Alcântara e, já nesta época, era conside-
ção das Comunidades Remanescentes de Qui- rada o celeiro do Maranhão, em razão de sua gran-
lombo em Alcântara, Almeida aponta para a con- de produtividade de arroz, milho, algodão, farinha de
solidação de territorialidades das comunidades rema- mandioca, cana de açúcar, criação de gado.
nescentes de quilombo, afirmando que o espaço é sim Com o passar dos anos e o declínio das expor-
ocupado, não representando o chamado vazio demo- tações de algodão, surgiram os primeiros engenhos
gráfico. Como estratégia para dar visibilidade a este de açúcar e a vila foi se destacando na produção açu-
conflito entre outros da Amazônia Legal, desenvol- careira e de aguardente e, em 1650, fica registrado
ve o projeto Nova Cartografia Social da Ama- o primeiro embarque de excedentes para São Luís,
zônia que, entre outros objetivos, consiste em cons- já que a produção excedia a sua subsistência (VIVEI-
truir mapas coletivamente com as comunidades cujos ROS, 1954). A criação da Companhia de Comércio
territórios são ameaçados pelos grandes empreendi- do Grão-Pará e Maranhão, associada ao potencial da
mentos que representam o grande capital. terra, transformou Alcântara num importante pro-
Nesta pesquisa, utilizamos os fascículos6 de nú- dutor de algodão e açúcar.
meros 10 e 25, intitulados, respectivamente, Qui- Após a saída dos grandes proprietários rurais
lombolas atingidos pela Base Espacial – Alcân- de Alcântara, não só as fazendas como a própria se-
tara, Maranhão e Luta dos quilombolas pelo de do município foram relegadas ao abandono e ao

6. “As publicações do projeto Nova Cartografia Social da Amazô- sujeitos e os objetos de pesquisa se dissolvem. Professores e alu-
nia traduzem a diversidade cultural e social da região. Aqui, você nos de graduação e de pós-graduação apóiam o processo no qual
pode ter acesso gratuito ao acervo do projeto, pesquisando seus membros de um determinado grupo registram quem são, onde e
fascículos, artigos e livros. Os fascículos são resultado de ofici- como vivem.” Trecho extraído do site do projeto (http://www.
nas de mapeamento participativo, nas quais as fronteiras entre os novacartografiasocial.com/ publicacoes.asp), em 21/04/2011.
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esquecimento. Almeida observa que, muitas vezes, custo de lançamento por sua proximidade do equa-
a preservação de grandes complexos de arquitetu- dor terrestre, suas boas condições meteorológicas,
ra colonial no Maranhão foi atribuída à suposta deca- que são regulares e satisfatórias condições de segu-
dência, o que impossibilitou os grandes investimen- rança. Hoje o município convive com as trágicas con-
tos na modernização destes lugares. Ao serem dei- sequências provocados pela instalação do CLA. Entre

Capítulo 1
xadas para trás, nestas antigas fazendas, as comuni- elas podemos destacar o deslocamento das comuni-
dades rurais formadas por escravos se reestrutura- dades para longe de seus territórios tradicionais e sua
ram e, baseadas no uso comum da terra e no extra- instalação em agrovilas longe dos recursos naturais,
tivismo construíram, a partir daí, a sua territorialida- colocando-os em situação de risco alimentar e social
de, processo que o autor denomina modificação da fi- (PAULA ANDRADE; SOUZA FILHO, 2006), impos-
sionomia étnica (ALMEIDA, 2002). sibilitando-os de continuarem realizando suas práticas
Tombada pelo IPHAN em 22 de dezembro de ligadas à sua identidade étnica e pela iminência de ex-

Localizando pessoas, lugares e produtos


1948, ocasião do tricentenário da cidade, Alcântara pansão da base, representada pela implantação do Al-
busca na memória dos tempos áureos as referências cântara Cyclone Space (ACS). O lugar é dito favorável
de sua identidade e convive com a novidade, que já por, equivocadamente, ser considerado um vazio de-
tem quase trinta anos, da instalação do CLA. Alcânta- mográfico, nos quais não se encontra nenhuma cidade
ra foi escolhida para receber o CLA em razão de sua ou povoado, como é geralmente alegado pelos gran-
privilegiada posição geográfica, permitindo um baixo des projetos de desenvolvimento.

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1.2 Uma breve descrição dos povoados exclusivamente pelas mulheres e entre as peças mais
produzidas por elas estão os potes, as bilhas, as traves-
Nosso objetivo aqui é situar o leitor, fornecendo sas, as panelas, as moringas, as cuias e as bonecas. Elas
algumas referências sobre os lugares onde incide a pes- utilizam uma técnica muito antiga, que consiste em en-
quisa e aproveitamos para traçar um panorama geral de rolar o barro com as palmas das mãos sobre uma su-
cada povoado. Em todas as comunidades é possível falar perfície, a fim de ter as chamadas serpentinas7 de barro,
em celulares de uma única operadora. Normalmente, os as quais são superpostas em espiral para formar o pote.
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

orelhões estão danificados. O acesso a Brito e a Mamu- Esta comunidade localiza-se bem perto da estra-
na, no período do chamado inverno, só é possível em mo- da e esta proximidade influencia o cotidiano local, a
tocicletas e em veículos com tração, pois são estradas de visualidade e a tipologia das casas – muitas são de al-
areia ou em terrenos alagados. Um percurso de, aproxi- venaria. Observamos também o fluxo intenso de ve-
madamente, 20Km, da sede do município de Alcântara ículos, o que facilita a movimentação dos moradores
até Santa Maria demora cerca de uma hora e meia, devi- que vão até a sede do município ou mesmo a São Lu-
do aos enormes buracos na estrada de piçarra. Itamata- ís. Além da atividade da cerâmica, também trabalham
tiua é a localidade que tem o melhor acesso, pois locali- com roça, basicamente cultura de mandioca, milho,
za-se às margens da rodovia MA-106, a 8Km da estação arroz, feijão e batata. Há também caça e pesca para
de ferry-boat que vem de São Luís, localizada no Cujupe. subsistência. O comércio é intenso, e acontece tan-
to em armazéns do povoado, quanto nos carros que
1.2.1 Itamatatiua chegam com produtos vindos da Baixada Maranhense,
de São Luís ou da sede do município. Mas da água que
Cercada por vastos campos e colinas, Itamata- bebem eles não abrem mão: ela vem do Chora, poço
tiua é uma comunidade remanescente de quilombo, considerado um lugar encantado8 e que secularmente
localizada no município de Alcântara. Um traço for- abastece o povoado de água potável.
te de sua identidade é o seu artesanato em cerâmica. Em seu calendário festivo estão as festas reli-
Não se sabe desde quando esta prática existe, mas sa- giosas de Santa Teresa D’Ávilla, cujos preparativos
be-se que ela já atravessa gerações. Os mais velhos di- iniciam-se em maio, e a festa, que dura praticamen-
zem que seus bisavós já praticavam a arte de mode- te uma semana, acontece nas primeiras semanas de
lar o barro. Há depoimentos que falam em duzentos outubro; a festa de São Sebastião, acontece nos dias
anos de tradição. 19 e 20 de janeiro quando há ladainhas e orquestras.
Hoje, o trabalho com o barro, como as arte- Há também outras manifestações como a dança do
sãs definem sua prática, é uma atividade executada negro e o tambor de crioula.

7. Esta técnica também é conhecida como acordelado. tendo água encanada em casa, buscava água no Chora, pois é en-
8. Em conversa com Irene, em Itamatatiua, a artesã conta sobre cantada. Disse ainda que quem bebia a água do poço não vai em-
a presença de uma sapa, guardiã do poço. Eloísa, durante almo- bora de Itamatatiua: “quem bebe do Chora, não vai embora”. Ver
ço em sua casa, nos ofereceu a água do poço, e disse que mesmo mais em IPHAN, 2009.
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Capítulo 1
Localizando pessoas, lugares e produtos
Em sentido horário: o pote, que in-
dica a entrada do povoado; Igreja
de Santa Tereza D’Ávila; casas e rua
principal do povoado.

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1.2.2 Santa Maria sua preocupação com a qualidade e o acabamento


dos produtos, sempre muito bem finalizados.
Santa Maria, segundo os moradores, sempre te- Em Santa Maria há poucas casas de alvenaria.
ve este nome. Eles não sabem dizer ao certo desde A maioria é de adobe ou taipa, cobertas com buriti
quando as famílias começaram a se estabelecer na- ou babaçu. O comércio acontece quando os carros
quele território, mas pelo que ouviam dos pais e avós, trazem mercadorias, mas não há uma frequência, e
calculam que isso aconteceu há mais de cem anos. em dois estabelecimentos comerciais do povoado.
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Sua principal atividade artesanal é a tecelagem Há uma linha de ônibus diária para a sede do muni-
com a fibra do buriti, com a parte mais delgada da cípio, que passa por Santa Maria às três horas, e re-
palha, que eles chamam de linho. Por linho também torna ao povoado por volta das treze horas. É fre-
designam, metonimicamente, a própria atividade. quente a ida das pessoas à sede, para compras, as-
São confeccionadas sacolas, esteiras, redes, pastas, suntos burocráticos ou relativos à saúde.
bolsas, jogos americanos, porta-copos, tapetes e ca- Além da atividade artesanal, há intensa pro-
pas para agendas. dução de mandioca e cultivo de melancia. Há uma
Segundo Walmir, o presidente da Associação casa de forno, comunitária, na qual produzem fari-
de Agricultores Familiares, a atividade com a fibra nha para subsistência e também para vender. Plan-
do buriti começou em agosto de 1973, quando al- tam, ainda, alface, pepino, quiabo, couve, maxixe e
gumas moradoras começaram a produzir sacolas e feijão. Há também a pesca, nos igarapés mais pró-
redes, cada uma em sua casa e assim continuou. ximos de Brito.
Mais tarde, formaram o grupo e então começa-
ram a produzir tapetes. Esta produção artesanal é
uma herança de Barrerinhas, Tutóia, Humberto de
Campos e Urbano Santos, e chegou a Santa Maria
com um intenso fluxo migratório destas regiões na
década de setenta.
Segundo as informantes, embora as referências
de Santa Maria surjam de outras localidades da re-
gião da baixada oriental, seu artesanato se difere no
tipo do material que utilizam, porque em Santa Ma-
ria só se usa a parte mais fina e macia da palha, o li-
nho. É diferente também a sua forma de bater, que
forma uma trama mais fechada diferente do que se
faz nas outras localidades. A variedade de cores e
seus tons muito vivos também são traço marcante
do linho de Santa Maria. Seu produto, segundo eles,
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fica mais resistente e mais durável. Outra marca é a
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Capítulo 1
Localizando pessoas, lugares e produtos
Em sentido horário: ruas e caminhos
de Santa Maria; casa de farinha; açu-
de do povoado.

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1.2.3 Brito vinte minutos, chega-se até uma alameda de mangue-


zal, uma espécie de portal para a praia de mar aber-
Este é o menor de todos os povoados visitados. to de um lado, e para um igarapé, de outro. A praia
Estimam que Brito já tenha mais de dois séculos de abriga uma diversidade de paisagens, campos verdes,
existência. Tem como maior produção artesanal as igarapé, falésias com pedras vulcânicas, uma floresta
redes de dormir, e consideram seu produto resisten- nativa de mangue e perto da costa, um farol que caiu
te e muito bem acabado. Há ainda o artesanato de em função da erosão das falésias. Ao longe, no lito-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

subsistência, de cofos, abanos e meaçabas. ral, é possível avistar de um lado a Pedra de Itaco-
Seu grupo de produção é o único ainda não lomy9, lugar considerado encantado, e do outro, par-
regularizado. Conta, atualmente, com a participa- te da ilha do Maranhão, com a visão dos prédios de
ção de cinco pessoas, mas já chegou a ter oito par- São Luís e do Farol do Araçagy.
ticipantes. Esta atividade começou há dezoito anos, Além da produção artesanal, Brito produz man-
quando Roberta, tendo aprendido a fazer redes em dioca, abóbora, milho, melancia, outras culturas de
São Luís, ensinou o processo a outras pessoas. Ela e subsistência e também praticam a caça. Há poucas
uma sobrinha ainda são as únicas a saberem botar a construções de alvenaria, entre elas a igreja do po-
rede no tear. voado. As outras construções são de taipa ou adobe.
A pesca é uma atividade intensa no povoado. Há uma casa de farinha, de propriedade particular,
Além de pescarem para subsistência, pescam tam- mas utilizada por toda a comunidade. No período do
bém para comercializar com comunidades da vizi- inverno, o fluxo de motocicletas é intenso, pela im-
nhança. Caminhando por uma trilha, por cerca de possibilidade de acesso por outros tipos de veículos.

9. Em conversa durante um passeio na praia de Brito, Silene doce, a permissão para a pesca, enfatizando a importância sim-
nos mostrou a Pedra e contou sobre a presença de encantados bólica da Pedra de Itacolomy para os moradores. Ver mais em
no lugar, e sobre a relação de permissões para o uso da água IPHAN, 2009.
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Capítulo 1
Localizando pessoas, lugares e produtos
Em sentido horário: casas de Brito; praia de Brito: falésia, embarcações e
manguezal. Página ao lado: ruínas do farol, derrubado pela erosão.

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1.3 Artesanato é serviço de mulher! Porém, em Santa Maria, a prática contraria o


discurso. Os homens ajudam a tirar o olho do Buri-
Para identificar os sujeitos, partimos do objeti- ti, ajudam a emendar o linho, ajudam a botar o linho,
vo principal do projeto: mapear as cadeias produti- ajudam a fazer o acabamento, enfim, ajudam bastan-
vas do artesanato. Nosso ponto de partida, ao che- te. Além da ajuda com o artesanato, substituem-nas
garmos às comunidades, era identificar os artesãos. também nas atividades domésticas:
A participação dos sujeitos na pesquisa foi constru-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

ída ao longo das duas reuniões iniciais em cada po- Luzia, de Santa Maria: Quando tem encomen-
voado, durante o seminário que realizamos na sede da, a casa fica sem varrer, o comer sem fazer... E
de Alcântara e, finalmente, na nossa terceira visita, meu marido me ajuda, né? Eu fico aqui atrás no
na qual pudemos compartilhar do cotidiano da pro- tear, e nem chego em casa. Ele que varre, que
dução artesanal destes sujeitos – aliás, destas mulhe- cozinha, cuida das crianças. Quando tem enco-
res. Nossas informantes são em torno de trinta mu- menda é assim...
lheres que vivem, além da pesca e da roça de sub- Celeste, de Santa Maria: O meu marido tira o
sistência, do artesanato que produzem e comercia- olho, ajuda no riscamento e no emendamento. É
lizam de forma ainda pouco sistematizada. No inte- uma boa ter um marido assim...
rior de Alcântara, artesanato é serviço de mulher!
Com raras exceções, a atividade artesanal pro-
Roberta, de Brito: Lá tem pouca mulher mes- priamente dita é feita pelas mulheres dos povoados.
mo... o resto tudo é só homem, e disseram que Em Santa Maria, há a participação masculina, mas na
não queriam fazer porque não é serviço de ho- forma denominada pelas artesãs como ajuda. A orga-
mem, é de mulher, aí só têm nós, até quando nização da produção, a responsabilidade é sempre das
nós puder. mulheres. A participação dos homens aparece sempre
Dos Anjos, de Itamatatiua: Aqui só tem viúva... como uma ajuda, nos momentos da extração da ma-
não dependemos de homem pra nada. O traba- téria-prima ou quando há alguma encomenda ou pro-
lho é todo feito por nós. A maioria criou os fi- blema de saúde. Retomaremos essa categoria enco-
lhos sozinha. menda, no terceiro capítulo, pois caracteriza tanto o
Neide, de Itamatatiua: De vez em quando meu ponto de partida da produção, o seu “estopim”, quan-
filho ajuda, mas é muito difícil. Tinha um ho- to um ponto de estrangulamento da comercialização,
mem que participava, mas ele montou uma ola- quando o trinômio prazo x clima x matéria-prima se
ria e saiu... O artesanato daqui quem faz é mu- relaciona com uma encomenda.
lher... Difícil não ter uma aqui que não tenha Na primeira visita que fizemos às comunidades,
criado os filhos com os potes... para estabelecer um contato inicial, chegávamos aos

Artesãs dos três povoados: Brito, Santa Maria e Itamatatiua.


30
Capítulo 1
31

Localizando pessoas, lugares e produtos


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povoados, buscando as pessoas que faziam artesa- Desta forma, a participação das artesãs variou
nato. Nas cinco comunidades que visitamos, inicial- entre as que se engajaram nas atividades nos povo-
mente, fomos direcionados diretamente às presiden- ados e as que foram ao primeiro seminário em Al-
tes das associações ou aos líderes do grupo, geral- cântara. De uma forma geral, são mães, donas de ca-
mente às pessoas de maior conhecimento técnico sa, esposas ou viúvas, que têm, na maioria das ve-
ou que praticam a atividade há muito tempo. Nes- zes, grande parte da renda advinda do artesanato
ta ocasião, agendamos uma segunda visita, e solicita- que produzem. As que têm filhos pequenos também
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

mos que estivesse presentes o maior número de ar- contam com o bolsa-família e as mais idosas, às ve-
tesãos possível. zes, possuem aposentadoria. Dividem-se entre as
O terceiro encontro com as artesãs foi no se- atividades do lar e também da roça, da casa de fari-
minário preparatório desta pesquisa, realizado no nha e do artesanato.
Museu Casa Histórica de Alcântara, na sede do mu- Como problemas advindos do trabalho, rela-
nicípio, nos dias 10 e 11 de dezembro de 2010. Nas cionam as dores no corpo e as adequações de suas
reuniões anteriores, nós apresentamos o projeto e produções às encomendas. Causadas pelos movimen-
como seria o seminário. Convidamos sete represen- tos repetitivos, as dores são sentidas nos punhos,
tantes de cada grupo para participar. Ao seminário, nos braços e nas costas e também nos olhos, entre
compareceram sete artesãs de Santa Maria, seis de as tecelãs. A dificuldade de produzir em uma escala
Brito e sete de Itamatatiua. As artesãs de Mamuna um pouco maior, para atender às encomendas, é um
não compareceram porque houve um problema com desafio que enfrentam todos os grupos e também a
o transporte. adequação da produção a alguma regra do cliente,
No quarto encontro, realizado entre os dias 2 e como fazer um pote da altura exata de uma embala-
9 de abril de 2011, ficamos entre dois e três dias em gem, ou tingir quantidade suficiente de fibra, no mes-
cada comunidade, convivendo e presenciando as eta- mo tom e de uma só vez, para dar conta de uma en-
pas da produção artesanal. Visitamos as residências comenda de sacolas com cor específica.
das artesãs de Santa Maria, pois trabalham cada uma Mas nenhum destes problemas supera a quei-
na sua casa. Em Itamatatiua, as atividades se concen- xa sobre o descompasso entre a dureza do trabalho
tram na sede da Associação. Em Brito, como não braçal ligada ao artesanato e o pouco que recebem
há formalidade na organização do grupo, o trabalho pela sua venda.
acontece num galpão na casa da líder do grupo. Com este breve panorama das informantes,
Para o lançamento do livro, convidamos nova- aprofundaremos agora as condições de nossa inser-
mente sete representantes de cada grupo, para dis- ção no campo, explicitando e descrevendo as etapas
cutirmos as propostas apresentadas no livro, em um da pesquisa, os sujeitos envolvidos no processo, e al-
seminário de encerramento, nos dias 20 e 21 de ju- gumas referências teórico-metodológicas.
nho de 2011 em Alcântara (MCHA) e no dia 22 em
São Luís, na UFMA.
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1.4 Etapas da pesquisa: 1.4.2 A segunda visita: conhecendo as


uma abordagem metodológica pessoas e mapeando as cadeias de valor

1.4.1 A primeira inserção no campo: A segunda visita aconteceu entre os dias 15 e


identificando lugares e pessoas 19 de novembro de 2011. Desta vez, fomos eu, a co-

Capítulo 1
ordenadora do projeto, e mais quatro alunos par-
A primeira inserção no campo foi um reco- ticipantes. Nosso objetivo era apresentar aos arte-
nhecimento preliminar. Baseando-me na pesquisa sãos os objetivos da pesquisa, identificar as princi-
bibliográfica e nos mapas dos fascículos da Nova pais etapas das cadeias produtivas e preencher um
Cartografia Social da Amazônia, que se refe- formulário para cada artesão, contendo dados pes-
rem ao território étnico de Alcântara, percorri em soais e informações sobre a produção.
quatro dias as cinco comunidades do interior de Al- Nesta ocasião foi possível fotografar algumas

Localizando pessoas, lugares e produtos


cântara, buscando identificar as pessoas envolvidas etapas do processo produtivo, já que as pessoas fize-
na produção artesanal. ram demonstrações de alguns procedimentos. Co-
O contato inicial foi bastante proveitoso e ape- meçamos a nos familiarizar com os nomes das eta-
nas em São João de Côrtes houve resistência. Naque- pas, das ferramentas e com a sequência da produção.
la oportunidade, apresentei a etapa anterior do projeto Fomos de ferry-boat, levando todo o material
Iconografias do Maranhão, entreguei livros e fôlde- para apresentação como fôlderes do projeto, mapas,
res explicativos às pessoas com quem conversei. Meu apresentação e projetor.
objetivo neste primeiro contato foi apresentar o proje-
to, identificar quem e quantas eram as pessoas envolvi-
das nas atividades, trocar contatos e agendar uma visi-
ta – desta vez com os alunos participantes do projeto –
para ver in acto a produção artesanal.
Marquei com cada comunidade um retorno
para dali a duas semanas. Combinamos que eu vol-
taria com os alunos para mapearmos as etapas das
cadeias produtivas e seria necessário que algumas
pessoas nos mostrassem o trabalho, desde a retira-
da e/ou tratamento da matéria-prima até o acaba-
mento final e, se fosse possível, demonstrar a ati-
vidade, para que pudéssemos fotografar cada passo
das cadeias produtivas.

Alunos participantes do projeto, junto ao carro que


utilizamos durante a pesquisa. 33
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A primeira comunidade na qual chegamos foi No dia seguinte, partimos para Santa Maria. Lá,
Itamatatiua. A apresentação aconteceu na sede da nos esperavam na escola da comunidade. A conver-
associação e passamos uma tarde no local. As arte- sa envolveu muitos participantes da comunidade e,
sãs Neide e Canuta nos levaram para ver o campo de além das artesãs, estavam também presentes os ges-
onde é retirado o barro. Elas nos levaram também tores dos projetos de agricultura familiar de Santa
na olaria do povoado e, de volta à sede, mostraram Maria. Após os mesmos procedimentos executados
as ferramentas e os procedimentos envolvidos no em Itamatatiua, fomos ao buritizal acompanhados de
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

artesanato da cerâmica. De lá, partimos para a sede Celeste, a líder do grupo, e seu marido, Loro, que
do município, onde pernoitamos. subiu no buriti para extrair o seu olho, matéria-prima
do artesanato local.
Deram-nos informações sobre o manejo da ex-
tração do olho do buriti e, em seguida, em frente a
sua casa, Celeste demonstrou as etapas iniciais, de
preparação da fibra para o processo da tecelagem.
Neste dia, almoçamos o que havíamos levado conos-
co, na casa de Celeste.

Apresentação do projeto (acima) e entrevistas


individuais (abaixo), em Itamatatiua.

Entrevistas em Santa Maria.

À tarde, seguiríamos para Brito. Porém, na ho-


ra do almoço houve um imprevisto. Fomos conhe-
cer um povoado próximo e andando por uma tri-
lha, fui mordida, no pé, por uma cobra. Tivemos de
voltar rapidamente à sede, para os procedimentos
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necessários mas, felizmente, a cobra não era vene- Caminhando com as artesãs, estas nos levaram
nosa e as toxinas apenas causaram leve paralisia e in- à escola onde estão guardados os equipamentos que
chaço locais. foram conseguidos pela comunidade por meio de
No dia seguinte, estava tudo bem e partimos outros projetos de capacitação. Muitas ações estão
para Brito, para dar continuidade à pesquisa. Chega- sendo implantadas por outros projetos, e penso que

Capítulo 1
mos no meio da manhã e estávamos sendo espera- talvez estejam envolvidas em muitas atividades, pa-
dos na igreja do lugar, pelas artesãs e alguns mora- ra se engajarem em mais um projeto. Ainda assim, as
dores. Iniciamos o procedimento de apresentação e pessoas foram muito solícitas.
depois as artesãs nos levaram ao galpão, no qual tra-
balham e nos mostraram algumas etapas da produ-
ção das redes de dormir.

Localizando pessoas, lugares e produtos


Apresentação do projeto em Brito.

Entrevista individual com as artesãs de Mamuna.

Artesã demonstrando o processo de quebra do babaçu.

Partimos para Mamuna, onde as pessoas não


estavam muito preparadas para nossa chegada, mes-
mo confirmando que iríamos. Demorou bastante até
que as artesãs se agrupassem e finalmente pudésse-
mos apresentar o projeto coletivamente, na igreja
da comunidade. Infelizmente, também não consegui-
mos observar etapas importantes da produção, mas
a artesã Esterlina nos levou a sua casa e mostrou-
-nos os utensílios utilizados na produção do azeite
de babaçu.
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Em todas as comunidades, tratamos do semi- De acordo com a programação do evento, eram


nário de trabalho e convidamos sete representan- prevista a acomodação e as refeições de todos em um
tes de cada comunidade para participar. Neste even- único lugar, para facilitar a aproximação e a imersão,
to, que aconteceria na sede do município, nos dias estabelecer laços de convivência e confiança entre os
10 e 11 de dezembro, apresentaríamos o mapeamen- participantes do projeto. O lugar escolhido para estas
to preliminar das cadeias produtivas, debateríamos atividades foi a Praia do Barco11, um sítio na sede do
os problemas, identificaríamos coletivamente as po- município de Alcântara, o que proporcionou momen-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

tencialidades das cadeias produtivas, além de estrei- tos de importantes trocas entre as pessoas.
tar os laços com as informantes, para que fosse pos- À noite, após o jantar, sentados nas mesas sob
sível um maior entendimento sobre os valores identi- as mangueiras do terreno, histórias, lendas e curiosi-
ficados pelas artesãs nas suas produções artesanais. dades sobre os povoados foram contadas pelas arte-
De volta a São Luís, nosso esforço foi sistema- sãs, e isso serviu tanto para aumentar o nosso imagi-
tizar a informação, transcrever e classificar as entre- nário sobre cada lugar quanto para conhecê-las me-
vistas, tabular as informações dos formulários e ini- lhor e sermos conhecidos por elas.
ciar os desenhos das cadeias produtivas, para apre-
sentá-los no seminário. Na Praia do Barco, a conversa sobre os povoados.

1.4.3 Primeiro seminário de Alcântara:


estabelecendo laços e identificando valores

O seminário aconteceu nos dias 10 e 11 de de-


zembro de 2010, no auditório do Museu Casa Histó-
rica de Alcântara. O primeiro dia tinha como objetivo
apresentar conceitos e abordagens para as artesãs e
iniciar a discussão sobre as etapas das cadeias produ-
tivas. O segundo dia consistia em trabalhos de grupos,
utilizando-se a metodologia do World Cafe10, com ro-
dadas de discussão sobre as cadeias, sobre a identi-
dade da produção, a territorialidade e a sustentabili-
dade dos processos e produtos. Compareceram ao
seminário vinte representantes dos grupos produ-
11. O Sítio Praia do Barco é uma área de preservação ambien-
tores, duas professoras do Departamento de De- tal situada no centro histórico de Alcântara, onde funcionou du-
senho e Tecnologia da UFMA, seis alunos de De- rante séculos o seu antigo porto. A área vem sendo revitalizada
sign, um professor do IFMA, de Comunicação. através da proposta de construção de um Sítio-Escola, com ativi-
dades de lazer educativo e produtivo, envolvendo o papel recicla-
10. Para saber mais sobre a metodologia, ver www.worldcafe.com. do artesanal, as plantas medicinais e trilhas históricas e naturais.
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No dia 10, durante a manhã, as artesãs chega- estava vendo lá dentro. Foi uma estratégia para se fa-
ram à sede do município e as fomos encaminhando lar sobre o valor de cada uma de nós – todas mulheres
para a Praia do Barco, para que descansassem, pois que vivem do seu trabalho – perante a nossa imagem,
os transportes que as trouxeram saíram durante a fruto de uma identidade. Ao ver o próprio rosto, mui-
madrugada dos interiores. tas ficaram tímidas, sem saber o que dizer. Mas, em sín-

Capítulo 1
Após o almoço, iniciaram-se as atividades do tese, palavras como alegria, trabalho, amizade, confian-
seminário. A distribuição dos crachás e das camise- ça foram constantes. O objetivo era falar de autoesti-
tas já iniciou o processo de integração. Por serem ma, orgulho pelo que se faz, além de uma forma de nos
coloridas, as camisetas chamaram a atenção e as ar- conhecermos e criarmos laços mais profundos para ini-
tesãs queriam escolher, estabelecendo a primeira ciarmos o trabalho propriamente dito.
iniciativa delas para com o projeto. Após esta etapa, retornamos ao auditório e a
Começamos então com uma dinâmica, entre coordenadora do projeto apresentou o projeto e os

Localizando pessoas, lugares e produtos


as pesquisadoras, as artesãs e as alunas. Os três seus objetivos foram expostos, assim como toda a
alunos ficaram de fora da roda, registrando o mo- programação dos dois dias de trabalho. Depois, um
mento, e esta foi uma decisão simbólica, pois nas grupo de alunos apresentou as cadeias de valor em
conversas anteriores tinha ficado muito claro o seu desenho inicial e, imediatamente, as artesãs ma-
caráter feminino da produção artesanal, e o pou- nifestaram-se sobre as etapas, complementando as
co ou nenhum envolvimento dos homens nas ati- informações, dirimindo as dúvidas na ordem das eta-
vidades produtivas. pas e sobre os procedimentos.
Realizada em um círculo, no qual um cesto com Outro grupo de alunos apresentou casos simila-
um espelho no fundo passava de mão em mão, a dinâ- res, projetos iconográficos de valorização de identi-
mica consistia em olhar para o cesto e dizer o que se dades locais e o desenvolvimento de produtos. Entre

Momentos do seminário de Alcântara.

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eles, podemos ressaltar o projeto ñandeva12, um pro- Já no início da noite, retornamos para a Praia
jeto trinacional que aconteceu na região de frontei- do Barco, onde foi servido o jantar, e todos se aco-
ras entre o Brasil, a Argentina e o Paraguai; e a Icono- modaram em redes para uma noite de descanso.
grafia Pantaneira13 que trabalhou com o Arranjo Pro-
Café da manhã na Praia do Barco
dutivo Local de Rio Verde no Mato Grosso do Sul. A
etapa anterior do projeto Iconografias do Maranhão14
também foi referenciada.
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Na sequência, o aluno representando o proje-


to de Biojóias com cerâmica apresentou às artesãs a
experiência, coordenada pela Profa. Luciana Caracas,
com a comunidade da Vila Embratel, em São Luís. O
projeto serviu também como referência para a utiliza-
ção das metodologias de design para valorização do ar-
tesanato. Após esta etapa, a Profa. Patrícia Azevedo pa-
lestrou sobre os requisitos de sustentabilidade em cada
uma das etapas da produção. Construiu com as artesãs
uma conceituação intuitiva e baseada na experiência de Na manhã do dia 11, iniciamos as atividades, após
cada uma delas. O resultado de tal discussão foi siste- o café. A primeira etapa consistiu na organização de
matizado no capítulo quatro deste livro. três grupos, cada um formado por artesãs de cada lo-
calidade isoladamente – Brito, Santa Maria e Itamata-
tiua –, um facilitador – os professores – e um aluno. O
procedimento era que a cada meia hora os facilitado-
res rodassem em cada grupo. A discussão conduzida
pela Profa. Patrícia foi sobre sustentabilidade nas ca-
deias, a da Profa. Raquel sobre identidade e a do Prof.
Hamilton sobre comercialização de produtos. Duran-
te todo o processo, um aluno ficou responsável por
cada grupo, sempre gravando as discussões e apuran-
do o desenho da cadeia produtiva, baseando-se no
que era debatido na roda de discussão.
Após quase duas horas de atividade, uma nova
Palestra da professora Patrícia Azevedo. organização de grupos foi proposta. Permaneciam os
três grupos, agora com integrantes mistos de cada co-
12. Para saber mais sobre o projeto ñandeva, ver www.nandeva.org
13. Para saber mais sobre o projeto de Iconografia Pantaneira, munidade, um facilitador e um aluno. A proposta ago-
ver www.ccb.org.br/inovacao/artigos/DESIGN.pdf ra era de uma simulação de “venda” do que produ-
14. Ver mais em www.iconografias.ufma.br ziam para os outros integrantes do grupo, isto é, uma
38
Capítulo 1
39

Localizando pessoas, lugares e produtos


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forma de comunicar as qualidades e os atributos dos Cada artesã se encaminhou ao transporte que as
produtos. Tinham que ressaltar as qualidades, valori- levaria de volta a seus povoados. A equipe da UFMA
zar o que é importante, relativizar as fragilidades, e retornou de lancha para São Luís, com o objetivo de,
responder as perguntas dos representantes de outras mais uma vez, refinar o desenho das cadeias e a des-
comunidades, facilitadores e alunos. Cada artesã de- crição das etapas, iniciar o desenvolvimento da icono-
fendia sua atividade e seu produto em cada momen- grafia, transcrever os debates dos grupos de trabalho,
to – a rede, o linho, a cerâmica – e depois atuava co- classificar as transcrições e iniciar as análises sobre os
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

mo consumidor, querendo saber das características processos produtivos.


e vantagens dos produtos das outras representantes.
No final desta rodada, o facilitador de cada gru- 1.4.4 O retorno aos povoados:
po indagava o que era identidade para cada uma delas, vivenciando o cotidiano das artesãs,
e diversos debates surgiram sobre o que é ser rema- analisando os discursos e as práticas
nescente de quilombo, suas implicações subjetivas e
objetivas, na manutenção do território perante a ex- Após as reflexões técnicas e teóricas sobre tudo
pansão dos empreendimentos relacionados ao CLA. o que foi discutido no seminário, era chegada a hora de
Após o almoço, aconteceu uma rodada final de retornamos ao campo, agora com maior entendimento
sistematização das cadeias, como forma de encerra- sobre os processos produtivos e dúvidas mais embasa-
mento do seminário. Cada participante recebeu o das no conhecimento prévio dos processos. Era o mo-
certificado, e ficou combinado um novo encontro, mento de observar e perceber na prática o que nos fo-
agora com a permanência dos pesquisadores e alu- ra apresentado na forma de discurso.
nos nos povoados, para observação in loco dos pro- Fizemos contato com cada grupo, marcamos
cessos produtivos de cada cadeia. nossa ida para o período de 2 a 9 de abril de 2011
e, em cada lugar no qual chegamos, fomos muito
Artesãs recebendo o certificado do seminário. bem recebidas. Fomos eu, coordenadora do proje-
to, e as duas alunas bolsistas. Passamos de dois a
três dias em cada povoado. Iniciamos nosso percur-
so por Santa Maria, onde Celeste nos acomodou em
uma casa, de uma moradora que estava viajando. Lá,
foi possível observar o trabalho com o linho em cada
uma das casas das artesãs, já que não possuem uma
sede em condições de uso. Esperavam a chuva pas-
sar para terminarem o telhado.
De lá, fomos de motocicleta até Brito, onde ob-
servamos o trabalho no galpão, onde estão os tea-
res, na casa de Roberta. Retornando a Santa Maria,
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de onde partimos para Itamatatiua. Ficamos, então,
Capítulo 1
41

Localizando pessoas, lugares e produtos


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hospedados na sede da associação de artesãs, onde


pudemos observar e acompanhar o trabalho da pro-
dução de cerâmica. Foram sete dias de intensa con-
vivência, observação e diálogos, a fim de sintetizar-
mos os nossos questionamentos e ver na prática os
entraves e as soluções implementadas – empirica-
mente ou com a intervenção do SEBRAE – nas ca-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

deias produtivas de cada povoado.


Nas conversas informais, nos passeios que fize-
mos para conhecer os povoados nas horas vagas, foi
possível identificar nos discursos do senso comum,
as palavras não ditas, as representações e as experi-
ências que são acionadas de forma inconsciente para
falar de sua produção, formação de preços, o custo
do trabalho, as dores no corpo, as dificuldades oca-
sionadas pela chuva e o tempo frio.
Na casa de cada artesã de Brito e de Santa Maria
foi possível observar os lugares de trabalho, a relação
do tempo dedicado ao artesanato e às outras ativida-
des desempenhadas, como a roça e os afazeres do-
mésticos, as relações de solidariedade, a organicida-
de da produção perante os imprevistos do cotidiano.
Em Itamatatiua, na sede da associação de arte-
sãs, foi possível ver uma intensa e organizada produ-
ção, pautada na dinâmica do talento individual, com
base na coletividade dos processos produtivos.
Após uma experiência intensa de convívio foi
possível compreender e respeitar ainda mais os limi-
tes de cada cadeia produtiva, considerando o com-
plexo encadeamento de etapas, características dos
lugares e das matérias-primas, das relações sociais
estabelecidas entre os sujeitos de nossa pesquisa.

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Referências Obras consultadas


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nhão 1612-1895. Vol. 2. São Luís: Associação Comercial do Maranhão no novo milênio. São Luís: EDUFMA, 2009.
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grama de Pós Graduação em Antropologia Social. Universida-
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Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara
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Capítulo 2
O mapeamento das cadeias produtivas
Raquel Noronha, Franklin Veiga Neto, Imaíra Portela, Marcella Abreu e Milena Alves

Capítulo 2
Neste capítulo, apresentaremos o mapeamento intermediários) até o produto final, a distribuição e a
das cadeias produtivas dos artesanatos produzidos em comercialização. (KRUCKEN, 2009, p.120). Como dis-
Brito, Santa Maria e Itamatatiua. Este foi o resultado semos anteriormente, nossa análise estará delimitada
de um trabalho compartilhado e coletivo, entre arte- às etapas referentes à produção dos artefatos artesa-
sãs, professores e alunos que durante toda a pesqui- nais inventariados, e às representações dos agentes li-
sa se disponibilizaram a entender o processo produti- gados a estas etapas: as artesãs. Desta forma, a iden-

O mapeamento das cadeias produtivas


vo como uma cadeia, em que cada etapa e cada agente tificação de valores que posteriormente apresentare-
têm relação direta com o todo e com o resultado final, mos está também associada à visão destes sujeitos e
que é a transformação da matéria-prima em artefato. suas percepções e suas opiniões sobre quem compra
Partimos da definição de Krucken de que uma ca- o que produzem.
deia produtiva se constitui a partir do conjunto de ati- Inicialmente apresentamos as etapas de cada uma
vidades econômicas que se articulam progressivamen- das cadeias produtivas pesquisadas, a fim de oferecer
te desde o início da elaboração de um produto (inclui uma visão geral e comparativa das etapas, para que
matérias-primas, máquinas e equipamentos, produtos possamos observar semelhanças e diferenças entre ca-
da uma delas.
Nos itens que se seguem, neste capítulo, apresen-
taremos de forma detalhada as etapas das cadeias pro-
dutivas da rede de Brito, do linho de Santa Maria e da
cerâmica de Itamatatiua e, na medida do possível, apre-
sentando o registro fotográfico de cada uma delas.

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Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Etapas da Etapas da
cadeia produtiva de Brito cadeia produtiva de Santa Maria

ENCOMENDA INÍCIO DA PRODUÇÃO / ENCOMENDA


COMPRA DA MATÉRIA-PRIMA IDENTIFICAÇÃO DAS PALMEIRAS
COLOCAR NO MEADOR EXTRAÇÃO DO OLHO
TINTURA RISCAMENTO
GOMAR PUXAMENTO
SECAGEM COZIMENTO / TINGIMENTO
TORCER O FIO SECAMENTO
COLOCAR O FIO NO ROLADOR RASGAMENTO
BOTAMENTO EMENDAMENTO
ENLIÇAMENTO NOVELO
ENCHIMENTO DO PAU COM FIO BOTAMENTO
BATIMENTO ENLIÇAMENTO
ENROLAR O FIO BATIMENTO
ENROLAR AS CABECINHAS ACABAMENTO
COLOCAÇÃO DO CARIÉ SELEÇÃO
ACABAMENTOS ENTREGA/COMERCIALIZAÇÃO
ENTREGA

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Capítulo 2
Etapas da
cadeia produtiva de Itamatatiua

O mapeamento das cadeias produtivas


INÍCIO DA PRODUÇÃO / ENCOMENDA
TIRAR O BARRO
TRANSPORTE
MOLHAR O BARRO
AMASSAMENTO
MAROMBA
AMASSAMENTO
MODELAGEM
ACABAMENTO
SECAGEM
RASPAGEM
SECAGEM
ACABAMENTO FINAL
QUEIMA
ACABAMENTOS PÓS-QUEIMA
SELEÇÃO
EXPOSIÇÃO
ENTREGA
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2.1 Cadeia produtiva de Brito

1) ENCOMENDA 2) COMPRA DA MATÉRIA-PRIMA


Quase que exclusivamente, a encomenda é re- A compra dos fios de algodão e do tintol (co-
cebida quando os compradores vão a Brito. A rante) é feita em São Luís, pois o preço é menor.
exceção é quando alguém de Brito está em São Enquanto elas pagam R$12,00 por quilo na ca-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Luís e recebe a encomenda. No ato da encomen- pital, na sede de Alcântara este preço sobe pa-
da são definidas as características da rede, co- ra R$15,00. Esta compra é realizada geralmente
mo tamanho, cor, tipo de fio, quantidade de pelo marido de Roberta, que já faz esta viagem
exemplares e preços. Geralmente é dado um com frequência, independente da compra. As-
sinal de 50% do preço total da rede. sim, o dinheiro gasto com o transporte não é re-
tirado do lucro das redes. Ele tem contatos com
um vendedor do Mercado Central, que lhe ofe-
rece alguns descontos na compra dos fios, que já
são comprados em quantidades que excedem as
necessárias para as encomendas feitas, gerando
um pequeno estoque. O fio adquirido é cru, sen-
do tingido durante o processo.

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3) COLOCAR NO MEADOR 4) TINTURA


O meador é uma ferramenta que prepara o fio Depois de ser tirado do meador, o fio é colo-

Capítulo 2
para ser tingido. Nele, o fio é desenrolado do cado para tingir nas panelas com tintol, da cor
novelo para formar uma espécie de cordão, de especificada pelo comprador. Primeiro, elas co-
uns 40cm de diâmetro, para facilitar o tingi- locam a tinta e a água nas panelas, esperam a
mento. A artesã sempre dá uma laçada no final água ferver para colocar os fios. São, em média,
do processo para o fio não embolar. oito novelos, já desenrolados, por panela. Para
esta atividade são necessárias duas artesãs, en-
quanto uma coloca os fios, a outra vai batendo
e apertando o fio para a cor ficar uniforme. Es-

O mapeamento das cadeias produtivas


te processo demora cerca de quinze minutos.
Elas continuam mexendo o fio até que a tinta
seja toda absorvida e a água fique “branca”. O
forno usado é à lenha.

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5) GOMAR
O fio é transportado para uma bacia e, ainda
molhado, começam a abri-lo para passar a go-
ma, mexendo-o até que o fio absorva toda a go-
ma. Em seguida, ele é torcido para que seja reti-
rado o excesso e é exposto ao sol para secar. A
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

goma é passada para firmar o fio, facilitando os


processos de enliçamento e batimento.

6) SECAGEM
A secagem do fio é feita ao sol. Este proces-
so, no verão, dura aproximadamente um dia e
meio; no inverno, pode demorar até três dias.

7) TORCER O FIO
Em Brito, elas confeccionam dois tipos de rede,
a de fio torcido e a de fio singelo. Quando a esco-
lha da encomenda é por uma rede de fio torcido,
é necessário torcer este fio. Para isso, elas uti-
lizam uma ferramenta chamada fuso. Enrolam a
ponta do fio no fuso e penduram o fio em um
gancho nos caibros do telhado do barracão on-
de trabalham. Impulsionam o fuso para que ele
gire. O fuso fica em um movimento de sobe-
-e-desce, e o fio vai sendo, então, torcido. Es-
ta rede tem a característica de ser mais pesada,
porém é mais durável e resistente.

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8) COLOCA O FIO NO ROLADOR 9) BOTAMENTO


O rolador serve para arrumar o fio e fazer um Esta etapa é a de colocar os fios no tear, que é
novo novelo. No começo do processo, o fio de formado por duas madeiras na vertical, parale-
fábrica é desfeito para receber o tingimento. As las que se distanciam na horizontal. Essa distân-

Capítulo 2
artesãs precisam criar um novelo manual para cia é que determina o comprimento da rede.
colocar o fio no tear. Depois de seco, o fio fica Na horizontal, também há um par de madeiras
aberto em forma de cordão. As artesãs o colo- paralelas, separadas por uma distância vertical,
ca no rolador e puxam a ponta, enrolando - o que é a largura da rede. É colocado um primei-
com as mãos. ro pedaço de madeira na parte inferior para se-
gurar a rede. É deixado um palmo e meio so-
brando nessa parte inferior para depois bater o
carié, que são os acabamentos laterais da rede

O mapeamento das cadeias produtivas


os quais dão origem ao punho. Já no final do ba-
timento, também deixam um sobra de um pal-
mo e meio para bater o outro carié. Sempre uti-
lizam dois novelos para cada cor que vão colo-
car no tear.

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10) ENLIÇAMENTO
O enliçamento é o processo em que se inicia a
formação das tramas e desenhos da rede. Colo-
cam dois instrumentos: a régua, uma vareta fi-

Capítulo 2
na, com uns dois centímetros de largura e com
o comprimento horizontal da rede e o liço, as-
semelhado a um palito de madeira, tão compri-
do quanto a rede. O fio do liço se enrola nele e
vai passando por entre os outros fios dispostos
no tear. O liço pega o fio de fora do tear e a ré-
gua pega o fio de dentro.

11) ENCHIMENTO DO PAU COM FIO

O mapeamento das cadeias produtivas


Antes de bater, conforme o número de cores da
rede, as artesãs cobrem os paus com fio trans-
formando-os em novelos compridos. Os chama-
dos paus são bastões de aproximadamente 30cm
de comprimento e 1cm de diâmetro. São utiliza-
dos tantos paus quantas forem as cores da rede.
Estes bastões servem para serem passados entre
as artesãs em cada lateral da rede, na etapa do
batimento. Com este movimento, vão se desen-
rolando e deixando o fio transversal do batimen-
to em todo o comprimento da rede.

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12) BATIMENTO 14) ENROLAR AS CABECINHAS


Nesta etapa, começamos a “ver” a rede surgin- Nesta etapa, as artesãs tiram a primeira madei-
do no tear. O processo consiste em passar um ra que prende a rede, então ela folga. Os fios
fio transversalmente (com a ajuda do pau co- que ficaram soltos são enrolados, juntados de
berto com fio) entre os fios já dispostos no te- quatro em quatro, formando o que elas cha-
ar, e bater com o facão, instrumento de madei- mam de cabecinhas, pequenos artefatos de ma-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

ra, bem delgado, também passado transversal- deira, assemelhados a pregos. Com os fios en-
mente à peça. Como a rede é comprida, é ne- rolados elas botam o carié no tear.
cessário que fique uma artesã em cada lateral,
para movimentar o facão, e para passar de um
lado para outro, o pau com o fio. Depois do ba-
timento, o liço é puxado, para trazer à tona uma
outra camada de fios disposta no tear, e o pro-
cesso se repete, com outro fio transversal sen-
do passado no tear. O processo dura até que a
peça se complete.

13) ENROLAR O FIO


Nesta etapa, as artesãs enrolam o fio que sobra
do processo no enrolador.

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15) COLOCAÇÃO DO CARIÉ 16) ACABAMENTOS


O carié é a parte de cima da rede. Ele que tem Esta última etapa é a de acabamento, quando
que ser muito bem batido e bem compactado são feitas as varandas (franjas), na própria rede,
para que a rede fique bem firme. Ele é batido se- e os punhos. O punho é colocado nas cabeci-

Capítulo 2
parado da rede. Não é preciso colocar a madei- nhas que sobraram do batimento e da colocação
ra que separa a rede. Ele é colocado diretamen- do carié. O armador é feito com quatro pernas
te no tear. Depois de colocado é que as arte- de fio que são torcidas e bem apertadas.
sãs escolhem o fio e puxam dois liços, um para
o fio de fora e outro para o fio de dentro do te-
ar. O tamanho é determinado por elas. Na hora
de bater, utilizam o facão. Este tem que ser mais
pesado para a batida ficar mais apertada, e asse-

O mapeamento das cadeias produtivas


gurar que as cabecinhas não escapulam.

17) ENTREGA
Quando a rede fica pronta, o comprador re-
cebe um contato telefônico, quando é chama-
do para retirar o produto, ou o produto é leva-
do por um portador até o cliente. O restante
do pagamento devido é pago em espécie. Algu-
mas vezes, as artesãs dividem o pagamento em
algumas parcelas. O dinheiro recebido é repar-
tido entre as artesãs que participaram da exe-
cução de cada peça.
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2.2 Cadeia produtiva de Santa Maria

1) INÍCIO DA PRODUÇÃO/ENCOMENDA 2) IDENTIFICAÇÃO DAS PALMEIRAS


As artesãs enviam sua produção, independen- A colheita do olho do buriti é feita alternando-
temente de encomenda, para a loja de artesana- -se as palmeiras. Em um mês, retira-se o olho de
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

to da sede do município, localizada na Ladeira uma palmeira. No próximo mês, esta palmeira
do Jacaré. Quando há uma encomenda, esta ge- não será utilizada. O próximo olho só será re-
ralmente chega por um telefonema. São ONG, tirado quando um segundo já estiver brotando.
empresas com viés em responsabilidade social, A palmeira fica pronta para extração em cin-
ou lojas de produtos para o lar ou moda. As co anos; se cultivada, o prazo diminui para três
artesãs têm um e-mail, que é constantemente anos. Elas retiram entre cinco e sete olhos por
acessado pela consultora do SEBRAE, Socorro dia, mas podem perder esta retirada se o olho
Abreu, e caso haja uma encomenda, ela avisa por já estiver aberto. Quando retirado, ele deve ser
telefone as artesãs. utilizado logo, pois após três ou quatro dias a
Quando fazem uma encomenda, acontece uma palha seca e fica perdida. A cada dois olhos são
reunião, na qual as atividades são divididas, de gerados dois sacos de linho.
acordo com a capacidade de produção de ca-
da uma. Após esta decisão, cada uma vai para
sua casa iniciar a produção. Caso haja uma es-
pecificação de cor, o processo de tingimento é
realizado coletivamente, para garantir a homo-
geneidade do tom. Geralmente, cobram um si-
nal, que deve ser depositado na conta de uma
das artesãs.

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3) EXTRAÇÃO DO OLHO
A extração do olho exige muita habilidade. Esta

Capítulo 2
é uma etapa realizada por homens e mulheres.
Eles colocam os pés em uma amarração de cor-
das, depois começam a subir na palmeira, com
auxílio de um tronco e já com o facão na boca.
Quando chegam às palmeiras, começam a esca-
lá-las com as mãos. Chegando ao alto, analisam
se aquele olho está pronto para ser extraído;
se está, cortam-no, jogam o facão e o olho no

O mapeamento das cadeias produtivas


chão e descem, da mesma forma que subiram.
Cada uma faz seu trabalho individual, mas quan-
do uma retira muitos olhos, chamam as outras
artesãs para ajudarem a tratar o linho. Funcio-
na como um sistema de troca, quem foi ajuda-
do da primeira vez ajudará outra artesã quando
esta necessitar.

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4) RISCAMENTO 5) PUXAMENTO
Nesta etapa, já com o olho retirado, o linho, par- Com a fibra já separada, o linho é puxado, até
te delgada e fibrosa, é separado da parte ex- ser completamente separado da borra.
terna da palha. Com o auxílio de uma faca, dá- Durante esta etapa, os filhos e maridos das ar-
-se um talho, riscando o começo da fibra pa- tesãs são convocados a ajudar, para agilizar o
ra poder separá-lo da borra, que pode ser uti- processo produtivo.
lizada para a cobertura dos telhados das casas,
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

confecção de vassouras e outros utensílios, pa-


ra uso da comunidade.

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6) COZIMENTO / TINGIMENTO
Estas duas etapas acontecem em separado. O
cozimento, quando se necessita de um linho cru,
da cor natural. Já o tingimento, quando o pro-
duto exige linhos coloridos. Os pigmentos uti-

Capítulo 2
lizados podem ser naturais ou artificiais. Elas
afirmam que o colorido de seus produtos os di-
ferem muito daqueles produzidos pelas demais
comunidades.
Esta referência para utilizar novas cores foi fei-
ta pelo SEBRAE, que também envia informa-
ções sobre as cores mais usadas no período. A
vendedora da loja também informa os pedidos

O mapeamento das cadeias produtivas


de cores feitos pelos clientes.
Como corantes naturais, utilizam o açafrão,
que gera o amarelo; o salsão cozido, o verde;
cinzas de queima e o mangue, o pigmento mar-
rom; e o urucum, o pigmento laranja. Já as ani-
linas geram as cores artificiais: vermelho, roxo,
rosa, azul, verde e amarelo. A cinza e o mangue
enfraquecem o fio. A anilina pode ser colocada
antes ou depois do cozimento. Ela é colocada
no fogo junto com a água. Quando esta já es-
tiver quente, coloca-se o linho, que estará pre-
viamente molhado. O tempo de cozimento de-
pende da tonalidade que se deseja atingir, quan-
to mais viva a cor, mais tempo na água.

Salsão e urucum

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5) SECAMENTO 7) EMENDAMENTO
Nesta etapa, o linho vai para a secagem. O fio Durante este processo é dado um nó “cego” na
natural seca ao sol ou à sombra, quanto mais junção das duas fibras e as pontas são devida-
exposto ao sol, mais branco fica. O fio tingido mente cortadas.
deve secar apenas à sombra, ou a cor pode so-
frer alteração.
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

6) RASGAMENTO 8) NOVELO
Durante o rasgamento, o linho é desfiado em São formados novelos manuais com o fio já
partes mais finas. Elas procuram fios de largu- emendado.
ras parecidas para não ficar feio. Todos da famí-
lia auxiliam nesta fase.

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9) BOTAMENTO
Neste processo, o linho é disposto no tear, que
é composto por duas madeiras paralelas que se
distanciam na horizontal, e duas madeiras parale-
las que se distanciam na vertical, de acordo com

Capítulo 2
o comprimento da peça que será executada. Es-
ta altura é regulada com cunhas, que fixam as ma-
deiras na altura certa do tear. O processo consis-
te em ir passando o fio entre as duas madeiras pa-
ralelas e horizontais, dando laçadas entre as duas
varetas que são afixadas sobre a madeira superior.
O movimento executado é realizado com a ar-
tesã em pé ou sentada, de acordo com o tama-

O mapeamento das cadeias produtivas


nho da peça, e consiste em levar o fio para bai-
xo e para cima, movimentando o dorso. A lar-
gura da peça é determinada pela quantidade de
fios de linho. À medida que vão dispondo o li-
nho no tear, medem-no com a régua, pois os
padrões de cor são matematicamente construí-
dos, com o objetivo de se obter simetria nas lis-
tras da peça. Também são executadas peças de
listras assimétricas, embora a preferência delas
seja pela simetria.

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10) ENLIÇAMENTO 11) BATIMENTO


O enliçamento é o processo em que se inicia Esta etapa consiste no batimento dos fios, de
a formação das tramas e desenhos do produ- forma que eles fiquem bem prensados e com-
to. Nele, se utilizam dois instrumentos: a régua, pactados. Durante este processo, já se con-
uma vareta fina, com uns dois centímetros de segue ver como a peça ficará quando pronta.
largura e com o comprimento horizontal da re- O processo consiste em passar um fio trans-
de; e o liço, assemelhado a um palito de madei- versalmente entre os fios já dispostos no te-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

ra, tão comprido quanto a peça que foi coloca- ar, e bater com o facão, instrumento de madei-
da no tear. O fio do liço nele se enrola e vai pas- ra, bem delgado, também passado transversal-
sando por entre os outros fios dispostos no te- mente à peça. Depois do batimento, o liço é pu-
ar. O liço pega o fio de fora do tear e a régua pe- xado, para trazer à tona outra camada de fios
ga o fio de dentro. disposta no tear, e o processo se repete, com
outro fio transversal sendo passado no tear. O
processo perdura até que a peça se complete.
A cor do fio transversal geralmente combina
com o arranjo cromático do produto. No ca-
so do jogo americano, todas as peças são fei-
tas de uma única cor, e um espaço de 10 cm é
dado entre cada peça, para originar a franja do
acabamento. As dimensões da peça são confe-
ridas com a régua, e o processo de batimento se
encerra quando o tamanho desejado é atingido.

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Capítulo 2
63

O mapeamento das cadeias produtivas


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12) ACABAMENTO
O acabamento diferencia-se de acordo com o
produto. Há opções para sacolas, redes, estei-
ras etc. Por exemplo, nos jogos americanos, o
acabamento consiste em cortar e separar as
quatro peças que compõem o jogo; dar nós en-
tre cada fio das franjas resultante do corte. Nas
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

sacolas, consiste em torcer os fios para formar


fios mais grossos, e depois agrupar os fios gros-
sos e enrolá-los com um fio de cor complemen-
tar, para fazer as alças. O processo encerra-se
com a costura à máquina das laterais da sacola.

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13) SELEÇÃO
As artesãs fazem um controle de qualidade, ain-
da que informalmente. Observam a produção
e solicitam ajustes no acabamento, quando jul-
gam necessário. Discutem o uso e as combina-

Capítulo 2
ções de cores.

14) ENTREGA/COMERCIALIZAÇÃO
Uma integrante do grupo leva a encomenda aos
Correios e posta para o destinatário com o cus-
to a cobrar. As peças produzidas destinadas ao
varejo são enviadas para a loja no dia 10 de cada
mês. As peças são anotadas pela líder do grupo,

O mapeamento das cadeias produtivas


e devidamente identificadas com o nome de ca-
da artesã, além do preço. As peças são transpor-
tadas pelo ônibus que faz a linha que liga o inte-
rior à sede de Alcântara. É cobrada uma taxa de
R$5,00 para conduzirem as sacolas até a loja. As
peças são colocadas à venda em consignação, e
a loja coloca um valor de lucro sobre o valor co-
brado pelas artesãs. Quando a venda com nota
fiscal é necessária, em alguma encomenda, o va-
lor cobrado pelas artesãs é igualado ao valor da
loja, para que esta emita a nota fiscal.
Todo mês, uma lista com as vendas da loja é en-
viada à associação, bem como o dinheiro refe-
rente às vendas, que é entregue às autoras das
peças vendidas. Uma taxa de R$1,00 por peça
vendida fica para o custeio da associação, que
atualmente está investindo na recuperação do
telhado da sede.

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2.3 Cadeia produtiva de Itamatatiua

1) INÍCIO DA PRODUÇÃO/ENCOMENDA 2) TIRAR O BARRO


A produção da cerâmica pode ser iniciada de Esta é a primeira etapa. Quando vão a um cam-
duas formas: espontaneamente, a partir de um po, cavam os buracos e extraem o barro. A ex-
desejo voluntário de produzir determinadas pe-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

tração acontece preferencialmente nos meses


ças que, à medida que vão ficando prontas in- de outubro a dezembro, pois o campo está se-
tegram o estoque da loja que as artesãs man- co. Neste período, extraem barro para o ano
têm na sede da associação. Lá, ficam expostas inteiro. Eventualmente, o barro pode ser tira-
até serem compradas por algum visitante. Ou- do em agosto ou setembro, caso a matéria-pri-
tra forma de iniciar a produção é por uma enco- ma do ano anterior esteja acabando e haja algu-
menda. Quando recebem uma encomenda, por ma encomenda.
telefone ou por meio de visita do solicitante, O campo é muito extenso e rico em matéria-
dividem entre elas as peças que serão executa- -prima. Retiram a vegetação existente e cavam
das, param a produção espontânea e iniciam a um buraco, para alcançar um barro mais limpo,
produção encomendada. Há algumas peças, co- cuja profundidade, segundo as artesãs, pode va-
mo os potes grandes, que são executados ape- riar do ‘joelho ao peito’, ou seja, entre 50cm a
nas por algumas artesãs. No caso de uma enco- 1,20m, aproximadamente. Elas relatam também
menda deste tipo, apenas aquelas que detêm o perceber que o buraco que foi cavado, após a
conhecimento participam da produção. Não há época do inverno, se reconstitui.
contrato formal ou pagamento de sinal. O rece-
bimento se dá na contraentrega da encomenda.

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5) AMASSAMENTO
Para colocar o barro na maromba é necessário
amassar o barro, misturando-o com a areia. O
processo consiste em molhar o barro no tan-
que e retirar com a mão uma grande bola de

Capítulo 2
barro que é colocada sobre uma mesa. A ar-
tesã vai retirando porções de barro manual-
mente e amassando, faz bolos alongados de
barro com a adição de areia.

3)

O mapeamento das cadeias produtivas


TRANSPORTE
Eles colocam o barro em um cofo e este é trans-
portado por um animal ou um carro. Geralmen-
te, pagam um homem para fazer o transporte.

4) MOLHAR O BARRO
Quando o barro chega à sede da associação
é colocado num tanque, onde é molhado por
meio de uma mangueira. É neste tanque que o
barro fica armazenado, e aguardando ser bene-
ficiado para, então, ser modelado.

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demanda. Quando há encomenda, preparam lo-


go todo o barro necessário, e vão se alternan-
do entre a atividade de colocar o barro na ma-
romba e pilá-lo.
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6) MAROMBA
Os bolos de barro amassados com areia são co-
locados na maromba. Antes de adquirirem a ma-
romba, a tradição era amassar o barro com os
pés. Segundo as artesãs, esta era a parte mais
cansativa e demorada do processo. Hoje, o pro-
cesso é realizado por duas artesãs: uma coloca
os bolos de barro no orifício e a outra, com um
pilão de madeira, vai amassando e empurrando
o barro que, depois de processado pela máqui-
na, sai extrudado em uma seção circular, sendo
recolhido em uma grande bacia de plástico. De-
pois de amassado, o ideal é que o barro descan-
se durante cinco dias, para só então ser modela-
do. As artesãs, geralmente, encurtam o proces-
so, partindo para a modelagem logo em seguida
ao processamento na maromba.
A quantidade de barro que é passada na ma-
romba é variável. Uma artesã se associa a outra,
e ambas passam barro em quantidade suficiente
para as duas, que pode ser apenas para um dia
de trabalho ou para a semana, dependendo da
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7) AMASSAMENTO vão dando a dimensão vertical do produto, subin-


Mesmo depois da etapa de preparação do bar- do o pote. Já neste processo, a artesã vai modelan-
ro na maromba, ainda é necessário que ele se- do a peça com as mãos, dando à boca do pote a
ja um pouco mais amassado para a modelagem. forma, aberta ou fechada, de acordo com o tipo
Elas molham o barro sobre a mesa e depois o de peça que está sendo modelada.

Capítulo 2
amassam com areia até que ele fique no ponto As peças maiores são modeladas no chão. A ar-
correto para ser modelado. tesã senta-se no chão com as pernas abertas, e
entre elas, posiciona a base do pote. Vai subindo
a peça com as serpentinas, e procedendo manu-
almente à modelagem, para dar forma ao pote.
As bonecas, os animais e outras peças não si-
métricas são modelados a partir de uma bola de
barro, que vai adquirindo o aspecto que a arte-

O mapeamento das cadeias produtivas


sã manualmente informa.

8) MODELAGEM
Nesta fase do processo é que elas dão forma à
peça. Fazem isto de pé, com o barro em cima
de uma bancada de pedra, quando as peças são
pequenas. No caso de potes ou alguidares, fa-
zem uma pequena cama de areia para poderem
montar a base em cima daquela. A areia, segun-
do elas, serve para fazer o pote rodar.
Para a execução da base, fazem uma bola de
barro e a amassam com a mão até ficar com um
círculo de uns dois centímetros de espessura.
Para constituir o pote propriamente dito, normal-
mente, são feitas serpentinas, enrolando-se o bar-
ro em longas tiras. Sobre a base de barro, estas ser-
pentinas são enroladas, em espiral, e superpostas,
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9) ACABAMENTO
Com a peça em pé, as artesãs vão utilizando
alguns instrumentos, tais quais colheres, facas,
estiletes e cuipéuas (espátula formada por um
pedaço de cabaça) para nivelar as superfícies in-

Capítulo 2
terna e externa do pote, para tirar-lhes o ex-
cesso de barro, afinando-lhe a espessura das
paredes. O procedimento consiste em ir pas-
sando a ferramenta e rodando o pote, traba-
lhando a forma sobre um eixo de rotação.
O processo é o mesmo para vasos grandes e pe-
quenos. Nesta etapa são adicionados os detalhes
da peça, como as orelhas (alças), as texturas, enfim,

O mapeamento das cadeias produtivas


tudo que ajuda a compor a visualidade da peça. Pa-
ra adicionar outras partes ao corpo da peça, usa-
-se a barbotina, uma espécie de pasta de barro flui-
da, feita dos restos de barro raspado, que é penei-
rado, resultando em uma cola de espessura bem fi-
na. Para colocar uma orelha, por exemplo, as par-
tes que serão acopladas são inicialmente raspadas,
para que a barbotina entranhe nas duas peças. As
partes a serem adicionadas são posicionadas e cola-
das sob pressão. A colagem se estabelece após um
descanso de, aproximadamente, 48 horas.

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9) SECAGEM 10) RASPAGEM


Depois de modeladas, as peças são colocadas Depois de secas, as peças passam pelo proces-
para secar ao vento. Durante o tempo sem chu- so de raspagem. Nesta etapa, utilizam outros
vas, este processo dura em torno de doze ho- instrumentos. A faquinha é usada para bater e
ras, e quando o tempo está chuvoso pode de- cortar o barro em excesso, o que também po-
morar até sete dias. de ser feito pelos desbastadores. A cuipéua é
utilizada para raspar a peça. Em seguida, é pas-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

sada uma esponja. Estas etapas têm como fina-


lidade deixar a superfície uniforme.

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11) SECAGEM 12) ACABAMENTO FINAL


Depois de raspada a peça, ela retorna à seca- Nesta etapa, as peças são lixadas com uma li-
gem. Quando estão esperando acumular peças xa fina e depois com uma pedra de rio. Por fim
para colocar no forno, guardam-nas em caixas é passado um escovão para dar brilho à peça.
d’água, a fim de retardar a secagem. Existem alguns outros tipos de acabamento,

Capítulo 2
como utilização de um cano de PVC para fu-
rar a peça, entre muitos outros. Para identifi-
car a origem da produção, elas carimbam a pe-
ça com um clichê de metal, no qual está escri-
to Cerâmica de Itamatatiua, Alcântara – MA.
As peças menores, às vezes, recebem na base
o nome de quem as executou.

O mapeamento das cadeias produtivas


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13) QUEIMA 14) ACABAMENTOS PÓS-QUEIMA


Após receberem todos os acabamentos, a pe- Existem casos, principalmente as bonecas, em
ça cerâmica é levada ao forno. Para colocar as que as peças são pintadas com tinta acrílica ou
peças no forno, amontoam-se os potes, embor- tinta para tecido, a chamada pintura a frio.
cados. Os potes maiores por baixo, os meno-
res por cima, até chegar ao topo do forno, que
tem sua boca fechada com cacos de potes que-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

brados. No forno grande, podem caber até 500


peças e no menor, 300 peças. Fazem em média
uma queima por mês. O processo de queima
da cerâmica dura aproximadamente cinco dias.
A queima propriamente dita dura um dia intei-
ro. Depois, as peças descansam por uma noi-
te, com as brasas. Na manhã seguinte, apagam-
-se as cinzas, molhando-as. As peças descansam
por mais um dia e meio, para esfriar. Depois o
forno é aberto, retirando-se os cacos de cerâ-
mica que estavam fechando a sua boca. 15) SELEÇÃO
As peças queimadas passam por uma verifica-
ção, para separação das peças que racharam
durante o processo de queima. As peças danifi-
cadas são descartadas.

16) EXPOSIÇÃO
As peças que foram confeccionadas sem enco-
menda vão para a loja. Cada artesã conhece a
peça que fez, mesmo sem o seu nome na ba-
se. Em cada peça é colocada uma etiqueta com
o preço e o nome da artesã que a executou.
Quando uma peça é vendida, o valor é destina-
do à autora da peça. Mensalmente, os custos de
manutenção da sede são rateados entre as ar-
tesãs, não havendo um valor fixo de contribui-
ção ou taxa.
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17) ENTREGA Referência


Quando a peça é comprada na loja, no ato de KRUCKEN, Lia. Design e território: valorização de identi-
venda, cada uma é embalada em jornal, e entre- dades e produtos locais. São Paulo: Studio Nobel, 2009.
gue ao comprador. Quando a produção é fruto
de uma encomenda, no prazo acertado no mo- Obras consultadas

Capítulo 2
mento da contratação, o comprador retorna pa- DE MORAES, Dijon; KRUCKEN, Lia; REYES, Paulo (orgs.)
ra retirar a produção, quando paga em espécie o Cadernos de estudos avançados em design. Identidade.
preço acordado. As peças maiores não são em- Barbacena: EdUEMG, 2010.
baladas e as menores são enroladas em jornal. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia
do design e da comunicação. Rafael Cardoso (org.). São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
MAFRA, Luiz Antonio Staub. Gestão do patrimônio imaterial:
reflexões sobre os direitos de propriedade nas indicações ge-

O mapeamento das cadeias produtivas


ográficas. In: Revista Pós-Ciências Sociais, n.13, vol.7. PPG-
CSoc/EDUFMA, 2010.
MILLS, C. Wright. Sobre o artesanato intelectual e ou-
tros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara
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Capítulo 3
Reflexões sobre as cadeias produtivas
do artesanato de Alcântara

Capítulo 3
Raquel Noronha

Aqui apresentaremos nossas reflexões sobre as a partir da categoria territorialidade. Contudo, a


representações e as práticas das artesãs sobre seus possibilidade de haver esse fio condutor – este nor-
fazeres cotidianos. Identificar estes indícios na produ- te de pensamento – não indica uma visão única sobre
ção artesanal das comunidades de Alcântara implica os valores associados às praticas artesanais, e tam-
perceber o que estas artesãs reconhecem como atri- pouco nos leva a pensar em uma identidade fixa, ins-

Reflexões sobre as cadeias produtivas


butos da sua própria produção. Como um a priori me- crita em uma tradição única, como poderíamos pen-
todológico, temos o entendimento de que esta iden- sar pelo fato de que todas estas comunidades encon-
tificação de valores deve partir dos sujeitos da pesqui- tram-se no território étnico de Alcântara.
sa, e de que nós, pesquisadores, devemos estar aten-
tos para perceber as dispersões e as reiterações dos
discursos, apreender suas vozes e seus lugares de fala, 3.1 O começo do processo: a encomenda
com o olhar filtrado pela teoria.
Entendemos também que este mapeamento 3.1.1 A natureza da encomenda: o estopim
não se encerra na análise que ora apresentamos, pois
a construção da relação entre os sujeitos e os artefa- A encomenda é uma importante categoria entre
tos é dinâmica, e encontra-se em constante atualiza- as artesãs, pois representa o fator externo à comu-
ção, além de ser marcada pela constante reposição nidade que dispara a produção. A encomenda não é
entre as dinâmicas externas à comunidade e a forma necessariamente um papel, um ato formal, mas um
como os agentes locais reagem e respondem a elas. contrato moral, uma palavra, estabelecida entre as
Desta forma, propomos uma análise sincrônica, re- duas partes envolvidas e que garante a entrega dos
ferente ao curto período de tempo em que pude- dois fatores envolvidos na encomenda: o produto e o
mos acompanhar a produção artesanal destes locais. seu pagamento em dinheiro.
Neste capítulo, apresentaremos nossa análise A encomenda pode chegar ao grupo de arte-
de como o processo produtivo do artesanato é re- sãs de várias formas: por um telefonema, pela visi-
presentado pelas artesãs, que tiram o seu susten- ta do comprador ao povoado, por meio de uma via-
to destas práticas, e veem nele o prolongamento de gem que alguma artesã faça e receba a encomenda di-
sua ligação com o lugar em que vivem – o que nos retamente do comprador; por um e-mail que che-
aponta para uma síntese sobre a existência de carac- gue às artesãs por intermédio de algum conhecido.
terísticas que identificam o artesanato de Alcântara O que é importante ressaltar é o caráter exógeno à 77
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comunidade. É a certeza, para as artesãs, de que a pra um prazo bem curto, agora mesmo a gen-
produção já tem um consumidor garantido. te perdeu uma encomenda, porque o prazo que
As artesãs já têm o costume de receber gran- eles deram pra gente era muito curto, a gente
des encomendas. Itamatatiua já teve como cliente a não tinha o material já pronto.
CAIXA e diversos decoradores de ambientes de São
Luís; Santa Maria tem como cliente a Natura, bouti- Durante nossa estada no povoado de Santa Ma-
ques em São Paulo e até no exterior. Brito já teve en- ria, visitamos a residência de sete artesãs e todas es-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

comendas até de Brasília, mas sempre encomendas de tavam trabalhando na produção dos produtos que
uma rede, não mais que duas. iriam para a loja em poucos dias. Trabalhavam prati-
A encomenda não é a única forma de start da pro- camente o dia inteiro, mas diziam que aquilo era só
dução, mas é a que mais mobiliza as artesãs: o retorno na semana em que iriam encaminhar a produção. Já
do trabalho é garantido. Quando recebem uma enco- nas semanas anteriores, trabalhavam menos. As ati-
menda, estabelecem-se e reativam-se os laços de soli- vidades domésticas ficam a cargo dos outros mem-
dariedade na produção que, às vezes, ficam adormeci- bros da família – filhas, filhos e marido. Todas as ar-
dos durante os períodos em que não há encomenda, e tesãs de Santa Maria são casadas e os maridos de-
prevalece a produção para as lojas, no caso de Itama- sempenham papel de importância – eles tiram o olho
tatiua e Santa Maria. Neste caso, a produção depende do buriti – o que as artesãs consideram uma ajuda.
de um esforço pessoal, uma força individual moven- Na fala da artesã observamos a diferença de ritmo
do a artesã para um trabalho que não será retribuído de produção:
tão rapidamente. À incerteza do que produzem para Rosa, de Santa Maria: Sei que essa última enco-
as lojas, preferem a segurança da encomenda. Em Bri- menda que teve agora, a louça ficava lá, minha fi-
to, só há produção perante uma encomenda. Por ou- lha vai lavar essa louça, pera aí mamãe, eu já vou.
tro lado, o trabalho que vai para a loja permite um rit- Aí depois que a gente tá só mandando pra loja aí
mo mais lento da produção. Há um prazo pré-estabe- a gente faz mais devagar, dá mais uma pausazinha.
lecido na produção que vai para a loja, enquanto na
encomenda, o prazo é sempre reduzido: As artesãs consideram chata a fase do acaba-
Suely, de Santa Maria: Não tem ninguém baten- mento porque é mais demorada e, por isso, produ-
do pro rumo daí? zem primeiro o pano da sacola ou do jogo america-
Pesquisadora: A Celeste tá batendo. no, acumulam e depois, apenas nas vésperas da en-
Suely: É? É pra mandar agora sexta-feira, pra loja. trega, se mobilizam para esta atividade, convocando
Pesquisadora: Vocês mandam de quanto em a ajuda dos familiares.
quanto tempo? Em Itamatatiua, seja para a loja que mantêm na
Suely: Todo mês, dia 10 a gente manda o que associação ou para alguma encomenda, o trabalho é
produziu no mês. todo realizado pelas artesãs, exceto na etapa de ex-
Deuzimar, de Santa Maria: É que às vezes quan- tração e transporte da matéria-prima que pode ficar
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do surge uma encomenda, eles querem assim a cargo de algum homem contratado para este fim. A
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divisão de uma encomenda acontece de acordo com a com esta listagem que o controle do pagamento é fei-
capacidade de cada artesã para produzi-la. to: cada uma recebe pelo número de peças que pro-
duziu. Ganha mais, quem trabalhou mais e não quem
3.1.2 Solidariedade: trabalhou melhor. Na loja, por outro lado, vale o gos-
a ajuda e o trabalho familiar to do freguês e o gênio da artesã, que soube combinar

Capítulo 3
melhor as cores, ou modelou o barro de uma forma
A encomenda é o ponto de mobilização social mais interessante, com melhor acabamento.
em cada um dos povoados. Quando há encomenda, é Em Itamatatiua, quando acontece uma encomen-
hora de convocar a família para o trabalho. Conver- da, algumas etapas da cadeia produtiva que aconte-
sando com Suely sobre a atuação do marido e das fi- cem individualmente são realizadas coletivamente.
lhas dela na produção, ela também nos indica a soli- As etapas de amassar o barro e colocar na marom-
dariedade entre artesãs, que surge no momento em ba são realizadas para produzir barro para que to-
que a individualidade e a solidão das artesãs perante das as artesãs envolvidas na produção possam traba-

Reflexões sobre as cadeias produtivas


o tear é quebrada pela participação da família: lhar ao mesmo tempo, acelerando a produção. Po-
Pesquisadora: Ah, então ele [o marido] partici- rém, a divisão da encomenda entre as artesãs depen-
pa... Ele participa de alguma outra etapa? de da experiência de execução do tipo de pote soli-
Suely, de Santa Maria: Ajuda, quando vem en- citado na encomenda:
comenda a gente dá esse nozinho aqui, elas du- Pesquisadora: Todo mundo participa de uma
as aqui já sabe dar [fala das filhas] o nozinho do encomenda assim, de peças grandes?
acabamento do jogo... Uma vez nós tava aper- Neide, de Itamatatiua: Não, por que essas pe-
riada aí com uma encomenda que veio, aí eu dis- ças aqui, elas lá não sabem fazer. Só eu e Domin-
se assim: Ah, é pra entregar amanhã, nós tem ga, só que ela não faz desse tipo, ela faz menor.
que dar conta, aí eu botei ele [o marido] pra Pesquisadora: Então dessas grandes, só a
cortar com a tesoura, nós botamo a mesa aqui, senhora?
aí nós passou o dia todinho de domingo cor- Neide: É... A Maria dos Santos... Mas ela não tá
tando, ajeitando, quem fazia acabamento, fazia, bem treinada. Canuta também não tá bem trei-
quem cortava, cortava, quem emendava o linho, nada. Eu tava ensinando elas... Mas elas ainda
emendava, pra dar conta... Aí eu terminei, ai não sabem direito assim.
eu fui ajudar as outras quando terminei. Deixei Pesquisadora: Aí em uma peça assim grande,
eles aqui em casa terminando e fui ajudar as ou- com duas pessoas trabalhando, quando vende,
tras... Que aí, uma tá aperriada, aí a gente vai divide como o dinheiro?
ajudar as outras. Neide: Uma fica com R$25,00 e a outra com
R$25,00.
No período da encomenda, quando os produtos
estão prontos, a líder do grupo faz uma lista com o no- Este diálogo aconteceu enquanto Neide e De-
me e quantidade de peças que cada artesã produziu. É nise modelavam e davam acabamento em potes 79
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grandes. Neide ficava com a parte da modelagem e pra botar no sol, botar na goma, aí a gente faz
Denise com o acabamento. Aos nossos olhos, o tra- essa parte, e ela vai botar no tear [se referindo
balho de Neide é, proporcionalmente ao de Denise, a Roberta].
mais demorado e mais desgastante pela posição de
trabalho (sentada no chão, de pernas abertas, mode- Em Brito, a divisão das atividades é pautada por
lando o pote entre as pernas). Porém, a forma como um conhecimento específico que divide as artesãs
dividem o pagamento demonstra uma lógica que é re- em três grupos: as que sabem botar a rede no tear; as
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

corrente entre as artesãs de Itamatatiua: independen- que sabem bater a rede; e as que fazem as outras ati-
te do trabalho que é realizado por cada artesã na pe- vidades de preparação do fio e o acabamento.
ça, o lucro é dividido igualmente entre aquelas que Botar a rede no tear é uma atividade que repre-
participaram da sua execução. senta um certo status dentro do grupo, e só é rea-
Em Brito, acontece da mesma forma: lizada por duas artesãs: Roberta, a líder do grupo, e
Pesquisadora: Como vocês dividem esses sua sobrinha, Luciene. Bater a rede é uma tarefa con-
R$130,00 que vocês recebem pela rede? siderada pesada e é realizada pelas mais jovens do
Maria José, de Brito: A gente divide por igual, grupo. As atividades de preparação do fio e o aca-
entre cada qual que trabalhou... bamento são geralmente realizadas pelas outras ar-
Pesquisadora: Mas é a mesma coisa, quem bo- tesãs que não botam e nem batem a rede. A produ-
ta ganha a mesma coisa de quem fez a varanda? ção das redes é realizada por grupos de três a qua-
Maria José: É, a gente sempre divide entre as tro mulheres que formam uma espécie de linha de
três ou as quatro que trabalharam... se traba- produção artesanal. Uma primeira etapa, que englo-
lhou cinco, a gente divide entre as cinco... ba mear, tinturar, gomar, torcer, e novamente me-
ar o fio, que podemos chamar de preparação do fio,
Em Brito, no mínimo três mulheres trabalham é realizada por uma ou duas artesãs; a segunda eta-
ao mesmo tempo em uma só rede, o que a torna um pa, o botamento da rede é realizado por outra arte-
produto de uma coletividade: sã. Quando finaliza um botamento, esta artesã pode
Pesquisadora: Quantas redes vocês fazem por utilizar-se do outro tear e botar outra rede, otimi-
mês ou semana, todo o grupo junto? zando, assim, a produção. A terceira etapa consiste
Silene, de Brito: Depende da encomenda, duas no acabamento, em bater o carié, colocar o punho e
redes na semana a gente dá conta prontinho. E a varanda, que é tecida separadamente.
por mês, vai mais de 10 redes. Vai bater a rede. Em Santa Maria, os procedimentos são bem
O grupo todo, todos os participantes. A rede é mais individualizados, conforme nos explica a artesã
feita por etapa agora, a gente ta fazendo assim como acontece a distribuição da encomenda:
porque eu, Roberta, Xuxuta e Tica, a gente ba- Pesquisadora: Mas aí como vocês fazem, por
te, né? Aí, pra tinturar, ficou essa Maria, Sebas- exemplo: se vocês recebem uma encomenda de
tiana, e Vicenza, [que também ] ficaram na par- 20 bolsas, vocês primeiro batem todas elas pra
80
te do rolamento, tintura, aí torna mear de novo depois fazer o acabamento ou bate uma faz o
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acabamento em uma, bate outra, faz o acaba- Uma outra artesã confirma esta estratégia:
mento em outra? Pesquisadora: Vocês se organizam, por exem-
Celeste, de Santa Maria: É por exemplo, quan- plo: uma diz hoje eu vou fazer tal cor, aí vo-
do a gente pega encomenda de 20 ,30, 50 peças cês combinam pra só aquela pessoa fazer aque-
aí eu faço o quê? Eu reúno elas, por que me jo- le colorido verde?

Capítulo 3
garam essa carga em cima de mim, então reúno Celeste, de Santa Maria: Assim, quando é en-
elas e digo que nós temos a encomenda de tan- comenda só de uma cor, a gente se reúne todo
tas peças, então quais são as cores? Cor amare- mundo pra fazer só de uma cor. Mas se não, ca-
la, preta, vermelha, são várias cores, aí a gente da uma faz a sua cor.
divide, três faz de uma cor, pra não ficar mistu- Pesquisadora: Mas assim não é demorado?
rado tanta cor, quatro faz de outra, cinco faz de Celeste: Não, é tranquilo, até por que tem que
outra... Aí eu vou dividindo, faz tanto produto pintar junto, se é encomenda, tem que pintar tu-
desse, daquele, tudinho. Aí cada qual vai tirar o do junto para o mangue ficar de uma só cor.

Reflexões sobre as cadeias produtivas


seu olho, o linho, vai pintar daquela cor, vai tra-
zer o material pronto. Ainda que haja a divisão das atividades, pode-
mos identificar nas falas das artesãs indicações de
A divisão da encomenda obedece ao critério da colaboração entre elas. No momento em que tiram
cor das peças, o que aponta para uma racionaliza- vários olhos, mais uma vez a categoria ajuda aparece
ção do processo produtivo: se cada artesã vai tra- como materialização da solidariedade:
balhar com um universo restrito de cores, ela pre- Pesquisadora: Então cada uma faz seu trabalho
cisa ocupar-se apenas com o tingimento destas co- individual, né?
res específicas, ganhando tempo e aumentando a Celeste, de Santa Maria: É cada qual faz o seu,
produtividade. mas na hora de mandar pra loja, aí sim... Aí re-
Quando a encomenda é para alguma empresa úne todo o material em um só local, pra fazer a
que solicita que os produtos sejam da mesma cor, o notazinha pra poder mandar pra loja.
processo do tingimento é realizado de uma só vez, Eudialite, de Santa Maria: Então às vezes que
para garantir a igualdade da cor: a gente tira bastante olho aí a gente convida as
Pesquisadora: Porque vocês não deixam logo o colegas.
linho todo tingido, um monte de novelo pronto? Celeste: Exato. Aí a gente fala: olha, tu me
Suely, de Santa Maria: A gente deixa um pou- ajuda que quando tu tiver aperriada eu tam-
co, mas tem que ter do natural [sem tingimen- bém te ajudo.
to] seco. Porque se chegar uma encomenda: ah,
tem que ser tudo laranja! Aí a gente junta o na- A solidariedade também pode ser identificada
tural e tinge de uma vez, pra ficar a igualdade da quando alguma artesã tem um problema pessoal e
cor... Se a gente faz o tingimento separado, fica é substituída na execução de suas tarefas. Em nos-
cada qual de um jeito. sa estada em Santa Maria foi possível observar estes 81
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aspectos de solidariedade a partir de um incidente: acabamento e sugeria melhorias, como sempre, pre-
uma das artesãs encontrava-se com a filha interna- ocupada com a qualidade do produto.
da em São Luís, prestes a ser submetida a uma cirur-
gia. Faltavam apenas alguns poucos dias para o en-
vio da produção mensal das artesãs para a loja de
Alcântara. Segundo as artesãs, esta é uma fonte de
renda bastante importante. Tirando as encomendas,
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

muitas vezes, o que é vendido na loja é o único di-


nheiro que elas “olham” durante todo um mês. Daí
a importância do envio dos produtos. Aquela artesã
precisou viajar às pressas, para ver a filha internada,
e foi conversar com Celeste, que prontamente pediu
a ela que levasse a sua casa as sacolas batidas, para
ela terminar de fazer o acabamento. Após observar
o acontecido, iniciamos uma conversa com Celeste:
Pesquisadora: Você vai terminar as peças dela?
Celeste, de Santa Maria: Vou sim. Hoje a filha
dela que tá doente, amanhã pode ser a minha.
Por isso que a gente tem a associação. Quan- 3.1.3 A adptação da produção
do tem encomenda, a gente distribui entre to- às necessidades do outro
das, e quando vem o dinheiro, a gente distribui
entre quem trabalhou na encomenda. E quan- Como já dissemos, as artesãs estão acostuma-
do alguém tá doente, ou com problema, a gen- das a receber encomendas que ativam a sua produção
te se ajuda. e, no caso de Brito, é a única forma de iniciá-la. Co-
Pesquisadora: E para quem vai o pagamento das mo a encomenda é uma força exógena ao povoado,
sacolas? Vocês vão dividir? traz consigo uma série de prerrogativas que interfe-
Celeste: Não, vai ser dela, ela que fez, eu só rem e influenciam no resultado do trabalho. Foi pos-
vou ajudar. sível observar nos discursos e práticas das artesãs
como o processo que conhecemos como customi-
Também foi possível observar numa tarde, em zação incide sobre o seu trabalho: na escolha da cor,
que as artesãs sentaram-se na porta da casa de uma no tamanho das peças, no prazo de entrega.
delas, Deuzimar, e aquele momento de reunião era Esta possibilidade de customização é
um momento de solidariedade na produção. Ma- uma característica do trabalho artesanal por-
rinalva ajudava Deuzimar a torcer o fio do acaba- que a sua cadeia produtiva permite a aproximação
mento da sacola. Outras artesãs comentavam so- entre os dois polos, o inicial e o final, o produtor e
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bre as combinações de cores. Celeste observava o o consumidor. E também pela pouca rigidez no seu
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portfólio de produtos, que podem ser facilmente Durante nossa estada em Itamatatiua, Neide
adaptados à demanda de quem os encomenda. estava trabalhando com Denise em uma encomenda
Vejamos como as artesãs de Itamatatiua rea- de potes grandes, que também eram feitos na metra-
gem às solicitações de adaptação de tamanho: gem. A régua, a fita métrica são instrumentos utiliza-
Pesquisadora: Qual foi a encomenda mais difícil dos para garantir que as peças fiquem com um mes-

Capítulo 3
que vocês já fizeram? mo tamanho. A queixa sobre a confecção de peças
Eloísa, de Itamatatiua: A da Caixa, a das cuias. na metragem acontece pela própria natureza do ma-
É porque fazer peças assim de metragem... terial: o barro é elástico. Isso quer dizer que ele re-
Neide, de Itamatatiua: É porque a gente se duz quando perde água no processo da queima. En-
atrapalhou muito. tão para que atinja um tamanho específico após a
Pesquisadora: Como é peça de metragem? queima, deve ser confeccionado em um ponto maior.
Eloísa: É assim, medindo com uma fita [mé- Elas têm idéia sobre esta margem de variação de ta-
trica]. Isso aí a gente não tá acostumado fazer manho, mas depende de fatores como a quantidade

Reflexões sobre as cadeias produtivas


não. E o barro daqui é muito complicado. Muito de água e areia que fora colocada no amassamento
elástico assim. Deu muito trabalho essas peças. do barro, a temperatura do forno, fatores sobre os
Pesquisadora: Tem que fazer maior pra ela en- quais elas não têm controle.
colher certo no tamanho, né? E era de quanto Perguntamos se elas sabiam em quantos graus a
essa encomenda? cerâmica era queimada no forno e disseram que não
Eloísa: Acho que era umas mil e pouca, né?! sabiam, e não tinham termômetro para medir. Em
Eles queriam só num tamanho só. Só que não uma conversa, Eloísa contou sobre sua intenção de
deu, certinho, certinho.
Pesquisadora: Vocês conseguiram entregar?
Eloísa: Só a metade. Porque quando vem a em-
balagem né, tem que ser certinha.
Pesquisadora: Ah, tinha que caber na
embalagem!
Eloísa: Eles queriam as cuias pra ficar dentro
da embalagem. Pra não ficar nem grande, nem
pequena.
Neide: Ficar do tamanho mesmo da embala-
gem. Aí foi um sacrifício.
Eloísa: Porque o barro daqui, ele é um pouco
complicado.

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aprender a vitrificar as peças, mas sabia que isso de- quando a mulher deu a quantia [o tamanho da
pendia do controle da temperatura do forno e que, peça] tava muito, e aí ela não quis, mas aí a gen-
então, isto era um impedimento para a introdução te já tinha feito, ficou uns grandes lá na loja.
da técnica na associação. Uns jogo americano, eu nem lembro a metra-
gem, mas ele só faz por encomenda.
Suely: Ele é de 44[cm] de largura com 48[cm]
de altura. Ele é mais largo e é mais alto.
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Pesquisadora: Pra fazer esse grande tu contas


os fios, quantas vezes vai botar de cada um?
Suely: Conto. Aqui muita das vezes a gente
mede pela régua assim ó, mas aí eu já sei a quan-
tidade de faixa de cada cor, medi ainda agora de
manhã, aí agora eu to só voltando.

A utilização de instrumentos de medição e cálcu-


los matemáticos para a confecção das peças também é
recorrente em Santa Maria e Brito. No primeiro, pude-
mos observar durante as visitas a utilização destes ins-
trumentos enquanto botavam o jogo no tear. Durante
uma conversa com Eudialite e Suely, observamos a for-
ma como as artesãs percebem a metragem:
Pesquisadora: Quanto custa o jogo americano?
Eudialite, de Santa Maria: É R$20,00 pra gente.
Pesquisadora: Vinte, né? Na loja é vinte e oito,
aí ficam oito lá?
Eudialite: Mas eu acho que esse de vinte e oi-
to era aquele grande que a gente fez, né, Suely?
Não, é porque tinha uns grande lá...
Suely, de Santa Maria: É que ele é 35[cm], mas
tem uns de 45[cm]...
84 Eudialite: A gente fez por encomenda, mas aí
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A régua e a fita métrica são instrumentos que compra ou é alguém que revende, que leva os
simbolizam as restrições impostas pela encomenda. potes pra vocês?
Quando perguntei sobre porque utilizavam estes Eloísa: É o consumidor que compra. Algumas
instrumentos, falam que foi para ficar tudo igual, e vezes, né, que chegou [...] de Alcântara e leva al-
que foi o pessoal do SEBRAE que “disse” para elas gumas peças aí pra revender. Mas é menos.

Capítulo 3
utilizarem, e revelam a presença de uma consciên-
cia sobre o motivo de atenderem a estas demandas: A voz institucional do SEBRAE surge com a in-
Pesquisadora: Então, da onde que surgiu a idéia trodução das noções de mercado e de consumo, ins-
de colorir? tâncias até então não mencionadas pelas artesãs. O
Celeste, de Santa Maria: A isso aí vem de cur- diálogo que mantêm com estas instâncias, ainda que
so do pessoal do SEBRAE, pra usar o colorido, de forma mediada pelo SEBRAE, interfere nas esco-
por que é assim, tem etapa, por exemplo, o ve- lhas das artesãs sobre a sua produção. A utilização
rão, pede um colorido bem forte, aí tem perí- do padrão de posicionamento de cores e suas com-

Reflexões sobre as cadeias produtivas


odo que eles pedem mais fraco, é conforme o binações padronizam a produção das artesãs, che-
mercado. gando a alguns tipos de combinações estéticas, aos
Suely: O Dedé [André, consultor do SEBRAE] quais podemos perceber nas imagens a seguir:
diz pra gente fazer as repetições de faixa da
mesma largura, a cor do meio repete nas beira.
E aí a cor entre cada uma a gente varia, vai do
nosso gosto. A gente usa a régua pra ver a me-
dida, tem que ter 25[cm] e a altura a gente vai
contando os fios...
Pesquisadora: Aí você vai contando as voltas?
Deuzimar, de Santa Maria: É, que num pode fi-
car diferente, se a gente quiser deixar bem cer-
to, as listras assim tudo de um tamanho só, tem
que contar.

Na fala de uma artesã, observamos uma das


possibilidades de chegada da encomenda no povoado,
a partir da noção de consumidor:
Pesquisadora: Como vocês vendem isso?
Eloísa, de Itamatatiua: As pessoas vem até
aqui. Às vezes a gente vai, leva pra Alcântara
pra vender também.
Pesquisadora: mas quem vem aqui já é quem 85
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vou desmanchar... Aí vou acrescentar, no lugar


desse azul, eu acrescento esse mangue, aí vou
bater, aí vai dar certinho aqui de novo.
Pesquisadora: Mas porque que deu erro?
Suely: Porque é assim, ó [mostra uma peça
pronta]. Cada faixa de cor tem que ter uma me-
dida. E a gente dobra [espelha] pro outro lado.
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Assim, se eu começo com uma cor, tem ter ela


no meio e no final. E tem que ter essa cor no
batimento também...
Pesquisadora: Mas você só bota assim?
Suely: Eu boto também de outro jeito também,
com as faixas diferentes, cada qual de uma cor...
Mas o pessoal aí de fora gosta é das faixinhas
dobradas... Aí a gente conta, usa a régua, e fi-
ca certo...
Pesquisadora: E agora, o que você vai fazer?
Suely: Vou tirar... Tirar dá mais trabalho que bo-
tar... Acho que agora vou fazer certo. É ruim
quando a gente vê que está errado e já está ba-
tendo... Assim tá só botado, não tá batido... Aí
tem que tirar tudo...

A partir da noção de mercado materializa-se


a produção para um outro – um outro muitas ve-
zes intangível – mas para quem as artesãs dirigem
Há espaço para a manifestação do gosto das ar- a sua produção, inserindo as suas peças num sis-
tesãs, mas dentro do esquema proposto de repeti- tema de trocas simbólicas. A noção de erro e de
ção e de reprodução das faixas de cor. A existência acerto está relacionada à existência desse interlo-
de um padrão implica necessariamente o não cutor distante, para quem elas produzem. Pode-
atendimento a este padrão. A percepção disto mos identificar no depoimento acima que o rigor
se dá na forma da noção de erro: do uso da régua, o uso de um padrão cromático, a
Pesquisadora: Você tá fazendo o que aí? contagem dos fios estão relacionados ao que é cer-
Suely, de Santa Maria: Um jogo americano, eu to – para este comprador.
botei, aí agora eu vi que não ia dar certo, deu Durante a tarde em que acompanhamos o traba-
86 erro, eu ia pegar esse daqui no final, aí agora eu lho na casa de Suely, observamos que ao botar um jogo
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americano no tear e perceber que errou na sequência e tradicional e o quilombo surge a partir do que o ou-
na largura de faixas de cor, ela inicia o processo de tirar tro valoriza em sua produção. Mais adiante falaremos
os fios do tear e depois reinicia o botamento, aumentan- mais aprofundadamente sobre o valor do tradicional na
do em praticamente 30% o tempo de produção do jo- produção artesanal.
go americano. Perguntei se ela sempre erra e ela disse Em Brito, a cadeia produtiva da rede não recebeu

Capítulo 3
que sim, porque se distrai e se esquece de contar os fios. nenhuma influência do SEBRAE, mas isso faz parte de
A influência do SEBRAE também chegou a Ita-
matatiua. A técnica de pintura a frio foi introduzi-
da pela instituição como uma forma de diferenciar
o produto. A pintura a frio consiste em pintar a pe-
ça com tinta de tecido após terem sido queimadas.
Aplicam-na principalmente nas bonecas e se dividem
quanto à utilização deste acabamento:

Reflexões sobre as cadeias produtivas


Eloísa, de Itamatatiua: Aí, depois que o SEBRAE
veio a gente não fazia assim em grupo; a gente fa-
zia nas casa de gente. Aí depois que o SEBRAE
veio organizar a gente e a gente ganhou essa se-
de... O SEBRAE que disse pra gente pintar as pe-
ças pra ficar melhor, que os turistas gostam...
Dos Anjos, de Itamatatiua: Mas tem turista
que não gosta não, que dizem que gostam mais um desejo das artesãs, que lamentam ainda não ter
da queimada, e das manchadas do fogo mesmo, uma associação formalizada, para poderem receber
porque são tradicional daqui de Itamatatiua... projetos de qualificação da produção artesanal.
Eloísa: É, varia, cada qual gosta de um jeito. É Lá, a encomenda é sempre personalizada. A re-
bom a gente ter na loja de todo tipo, mas os tu- de é considerada um objeto pessoal pelas artesãs. É
ristas às vezes gostam da boneca pintada, mas feita sob medida, na cor e no tamanho que o cliente
também gostam da tradicional do quilombo... desejar. O cliente também tem a opção de ter uma
rede de fio singelo ou de fio torcido. As artesãs inte-
As artesãs de Itamatatiua demonstram em su- ragem com o cliente no ato da encomenda e, com is-
as falas que percebem o valor atribuído à identidade so, também têm a possibilidade de perceber as pre-
do produto pelos consumidores. Observam as pre- ferências e gostos do outro. Elas nos apresentam as
ferências de consumo porque elas próprias têm a opções do seu produto:
sua loja e com isso entram em contato direto com Pesquisadora: Vocês não fazem sem encomenda?
o comprador de seus produtos. O outro para quem Roberta, de Brito: Olha a gente faz do tama-
produzem está mais próximo, podem conversar com nho e da cor que a pessoa quer: eu queria era
ele e saber de suas preferências. O discurso sobre o tal cor assim, é mais quando eles vêm que eles 87
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digo a cor, a cor certa, que pelo menos que tá a garantia de que o produto já tem uma destinação e
mais saindo agora é preta e branca, que quem o retorno é garantido para as artesãs, por outro lado,
é vascaíno, quem é, Botafogo, é Botafogo e tão implica uma atitude mais passiva das artesãs que espe-
pedindo mais preto e branco. ram a encomenda – pela própria garantia do retorno –
Pesquisadora: Então quem compra mais é o sem deixar que as experiências e testes com os mate-
pessoal das comunidades de perto? riais surjam, pois na encomenda quem diz o que é para
Roberta: Agora vem um pessoal de São Luís, ser feito é o cliente e não a artesã.
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

com esses projetos [projetos relacionados ao A descoberta, o teste com os corantes, o de-
CLA e ao ACL], vão olhando, gostando e vão senvolvimento de novos produtos ficam desestimu-
encomendando. Tem até de Brasília porque o lados porque as artesãs deixam, em parte, de serem
rapaz que trabalha lá veio comprar lá. agentes criativas do saber que elas próprias domi-
Pesquisadora: Mas a oportunidade de mostrar é nam. Revelam, por exemplo, que a introdução de co-
só porque o cliente vai falando? rantes artificiais na produção do linho foi para aten-
Roberta: Aí tem os que vão lá, olham na casa der às demandas do mercado:
das pessoas que trabalham comigo, às vezes se Pesquisadora: O que vocês acham que é dife-
agradam, aí encomenda e a gente vai fazendo. Já rente no artesanato de vocês?
saiu muita rede da gente pra fora, pra São Luís... Celeste, de Santa Maria: É o colorido e o li-
Pesquisadora: O que mais que o pessoal pode nho... A gente trabalha com o linho e elas [de
escolher? Barreirinhas] trabalha com a borra...
Roberta: Aí tem que ver o tamanho também, Pesquisadora: Então, da onde que surgiu a ideia
se é de 3Kg ou de 4Kg, tem até de 4,5Kg... Re- de colorir?
de grande, pesada... Pode ser de fio torcido, ou Celeste: É porque como a gente tem a menina
de fio singelo... Dura pra vida toda! que trabalha na loja, ela vê o que o turista diz
As artesãs de Brito aguardam a solicitação do aí o pessoal do SEBRAE pesquisam na internet
cliente para botar a rede, e dizem que raramente bo- também, por que a gente ainda não tem acesso
tam uma rede sem ter a encomenda, porque fica difícil à internet. Aí pesquisa: olha, esse ano o forte é
de alguém querer comprar, porque pode não estar do o colorido, é o forte é o bem vermelho... Aí a
agrado do comprador, na cor ou no tamanho errados. gente vai fazer da forma que tá.
Mais uma vez, o padrão de produção está condiciona- Pesquisadora: E de usar os corantes artificiais...
do ao desejo do consumidor, que dentro das opções E os corantes, como vocês escolhem?
oferecidas pelas artesãs, customiza o seu produto em Celeste: Antes a gente só usava os naturais...
um exercício de participação na produção. Mas depois o SEBRAE trouxe a anilina... Aí fi-
Esta possibilidade de interferência do consumi- cou bem colorido... Mas tem encomenda que só
dor no processo produtivo implica algumas reflexões. pode usar os naturais... Tem gente que gosta só
Se por um lado, a influência do consumidor no pro- de mangue e natural... O pessoal gosta muito só
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cesso produtivo, adequando-o às suas necessidades é de natural...
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natural (sem tingimento)

mangue com cinza

Capítulo 3
urucum
açafrão

salsão

Reflexões sobre as cadeias produtivas


Aqui percebemos como a introdução de um 3.2 A sazonalidade:
novo elemento, o uso de corantes, interfere dire- matéria-prima e produção
tamente na produção, tornando-se até uma de su-
as principais características de diferenciação peran- Por sazonalidade entendemos a ação do clima e
te o artesanato de outras localidades. Observamos das estações do ano sobre as cadeias produtivas que
também a percepção das artesãs sobre o gosto dos ora analisamos. Isto é referenciado de muitas formas
clientes em preferir o tingimento natural e identifi- pelas artesãs: o tempo bom, o tempo ruim, o verão e
cam-no como um valor, chegando a falar em ter um o inverno, e estas categorias nativas se articulam fun-
preço diferente para produtos naturais. damentalmente com todas as etapas da produção e
Esta assimetria entre produtores e consumido- também no consumo dos artefatos produzidos. Na
res revela as forças que interferem na produção arte- relação das artesãs com a natureza, encontramos di-
sanal de Alcântara e, cada vez mais, é possível projetar versas alusões ao clima e às épocas do ano e como
um cenário no qual o tempo da produção artesanal vai as suas variações interferem na produção:
deixando de existir. Se pensarmos a atividade artesanal Pesquisadora: Tem uma época que compram mais?
como a forma de expressão de um saber-fazer específi- Roberta, de Brito: No inverno, quando tá cho-
co e que o valor do tradicional é importante na medida vendo não pode bater ela. Porque custa mais
em que deixa as artesãs livres para expressarem o que enxugar e a gente também custa mais bater por-
pensam sobre si e sobre o seu lugar, o tempo da en- que o fio fica frio. No verão tanto é mais fácil pra
comenda aliena esta possibilidade da vida destas arte- vender, quanto pra bater.
sãs, dando lugar a outras formas de sociabilidades, mais
pautadas no desejo e no tempo de um outro.
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No trecho acima observamos como a sazonali- campo continua alagado e o acesso a Brito continua
dade influencia tanto no processo de produção co- difícil mesmo após meses do início da estiagem.
mo no de consumo – no bater e no vender. Quando Maria José, de Brito: No dia que chove, na ho-
estivemos em Brito, durante o período do chama- ra de botar a rede no tear, ele [o fio] vai ficando
do inverno, observamos a dificuldade em se trabalhar assim frio, aí não tem como ele ceder, abrir pra
com o fio frio, pois ele não corre [desliza] na madei- gente jogar a canela de fibra na madeira. Aí tem
ra do tear. A produção das redes cai, então, brusca- que tá um tempo bom, que nem agora, ele vai
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

mente, obrigando as artesãs a buscarem outras for- secar, daqui pra tarde, vai dá pra bater.
mas de sustento. Por outro lado, a grande distância Celeste, de Santa Maria: No inverno trabalha
entre Brito e São Luís, ou mesmo da sede do muni- pouco por causa da chuva... Agora, no verão não,
cípio, amplia-se no período das chuvas, devido à di- né, trabalha bastante... Agora no inverno, a chuva
ficuldade do acesso ao povoado, que fica completa- atrapalha muito, porque não tendo linho, aí tem
mente alagado, dificultando que os compradores em que tirar na chuva, aí o linho não enxuga direito,
potencial cheguem até a comunidade, corroborando aí pra bater chovendo, não bate, só assim no sol
para a diminuição do consumo. quente, mas no inverno é o período dela [da chu-
Quando perguntamos o que elas fazem no in- va], aí tem que se virar, fazer o possível.
verno, o trabalho na roça foi indicado como a ativida-
de principal. Porém, quando a necessidade financeira O clima está também associado à duração da
fica aguda, a ida para São Luís é inevitável, todavia a produção, pois o tempo frio causa profundas mudan-
subsistência está ligada ao lugar de origem: ças na matéria-prima. As artesãs mencionam que o fio
Silene, de Brito: É, no inverno é difícil a gente e o linho ficam frios, e no trabalho com o barro há um
pegar algum dinheiro com rede, não dá resulta- aumento no tempo de secagem das peças. Porém, o
do... Eu fui pra São Luís, trabalhar em casa de fa- aumento do tempo da produção não está associado a
mília, mas ela queria que eu não comesse... Pra um período de ócio entre as artesãs de Brito e Santa
fazer dieta lá, né? É melhor ficar aqui, cuidan- Maria, que são muito afetadas pela sazonalidade:
do da minha roça, que pelo menos fome a gen- Pesquisadora: E agora, no inverno, vocês fazem
te não passa... Tem sempre o peixe e a farinha. o quê?
Silene, de Brito: Agora é o tempo de ir pra ro-
O tempo difícil é associado ao chamado inver- ça. Todo dia de manhã. Meu marido trabalha
no e faz referência ao período das chuvas no Mara- com horta, tem uns porcos... Eu mesma agora a
nhão, que acontece entre os meses de janeiro a ju- umas semanas, tava com umas contas, aí fui pra
lho. Em contraposição, o tempo bom é associado ao São Luís, trabalhar em casa de família, mas fo-
verão, que representa o tempo da estiagem, de agos- ram só dois meses, aí voltei...
to a dezembro. Porém, os efeitos da chuva na vi-
da dos povoados fazem-se sentir para além do perí- O período da chuva afeta bastante a produção
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odo em que efetivamente chove. Em Itamatatiua, o e, muitas vezes, o grupo se dissolve neste período.
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Algumas artesãs vão trabalhar na roça, pois é o pe- terminou, né, Maria?
ríodo do plantio de diversas lavouras e o retorno fi- Maria: Já, já.
nanceiro aparece mais rapidamente. Daí a dispersão Pesquisadora: Aí vocês tornam a mandar tirar?
do grupo durante o período do inverno. Eloísa: Sim, torna a tirar... Quando o campo se-
Em Itamatatiua, as condições climáticas influen- car, por que agora o campo tá cheio como o quê.

Capítulo 3
ciam tanto na extração da matéria-prima como nos Vixe, quem entra lá não tem condição de sair...
processos de modelagem e secagem dos potes. A
época em que buscam o barro no campo geralmen- Com o passar do tempo e a organização do
te acontece em agosto, logo que o campo começa a trabalho na associação de Itamatatiua, a retirada do
secar, para reposição do barro que sempre está aca- barro passou a ser sazonal, tirando-se proveito das
bando neste momento, pois a última retirada sem- estações do ano e da teceirização do trabalho pesa-
pre é realizada no mês de dezembro do ano anterior. do de carregar o barro. As artesãs comentaram mui-
Retornam em dezembro do ano em questão, perío- to sobre a dificuldade da tarefa, sobre as dores cau-

Reflexões sobre as cadeias produtivas


do ideal, quando tiram barro suficiente para ficarem sadas por este transporte do barro do campo à sede
durante todo o inverno (de janeiro a julho), fazendo da associação, com o cofo na cabeça, principalmente
uma espécie de estoque para o período em que os nos dias atuais, em que já estão mais idosas.
campos alagam. Neide, de Itamatatiua: Antigamente, a gente tira-
Pesquisadora: Tem um período melhor pra ti- va barro o ano inteiro, mesmo com o campo ala-
rar o barro? gado. A gente ia com o cofo, tirava o barro, e co-
Neide, de Itamatatiua: Novembro a dezembro. locavam na cabeça... Vinha com o cofo pesado,
Porque tá seco, né. Até outubro, conforme a chu- pingando barro na cabeça... Hoje, a gente tira o
va. Se até outubro já tiver seco, aí é bom de tirar, barro praticamente duas ou três vezes por ano, e
né?! Mas se o campo tiver cheio, aí não. Aí começa contrata um carro para buscar no campo e levar
a chover, aí a gente não tira mais. Mas é conforme até a sede da associação. Para este serviço a gente
o campo. A gente tira até com água. Mas o perío- paga uns R$ 60,00 [três diárias masculinas1].
do pra gente não se atolar é outubro, novembro,
até dezembro quando não chove. O problema que o campo chuvoso causa em
Pesquisadora: Aí esse vai dá pra usar até quando? Itamatatiua pode ser contornado com a estratégia
Eloísa, de Itamatatiua: Até no verão... de se estocar a matéria-prima durante o período em
Dos Santos, de Itamatatiua: Aí quando chegar que o campo está seco, permitindo o acesso. Outro
novembro, dezembro... Aí de novo tem que tirar. empecilho se coloca com a umidade do clima, que é
Eloísa: Mas se tiver bastante encomenda de a secagem dos potes. O período de produção prati-
novo, eu acredito que até em junho, julho, já camente dobra como observamos na fala da artesã:

1. O valor da diária masculina e feminina é diferente em Ita- aumentando sempre que há algum reajuste. Hoje, a diária femi-
matatiua. São definidas a partir do valor do quilo da carne, nina é R$15,00 e a masculina, R$20,00.
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Pesquisadora: E quanto tempo vocês dão conta sob a bandeira da responsabilidade socioambiental,
de uma encomenda dessas? não foi possível chegar a um acordo e conciliar o
Neide, de Itamatatiua: No inverno? No inverno tempo da produção com o tempo da encomenda.
é dois meses. No verão é um mês porque seca Para superar este desafio é preciso comunicar
rápido, a gente faz a peça em um dia, no outro a realidade das artesãs, e assumir a sazonalida-
dia a gente já tá fazendo acabamento. No inver- de como uma característica da própria cadeia
no não... Agora até tá secando depressa por que produtiva. Isso não quer dizer que a produção te-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

não tá chovendo muito. Daí eu fiz esses anteon- nha que parar – porque ela efetivamente não pára –
tem, e já tô dando o acabamento, mas quando tá mas é bastante desacelerada no período chuvoso. O
chovendo é oito dias pra fazer esse acabamento. planejamento da produção é uma estratégia que di-
minuiria a frustração pela perda de uma encomenda
A sazonalidade da produção é um fato que está pelas questões climáticas.
em consonância com as outras atividades das artesãs,
como a roça, o artesanato de subsistência que reali- 3.3 Produtividade: reflexos nas relações
zam, a ajuda na criação de animais que prestam aos sociais das artesãs e nos seus corpos
maridos, além das atividades domésticas. Porém, quan-
do mais uma vez a demanda externa surge, na forma da Durante a pesquisa, identificamos como uma
encomenda, o embate entre o tempo da encomenda preocupação das artesãs o incremento da produção:
e o tempo do artesanato torna-se explícito. seja com o aumento na quantidade de equipamen-
Em Santa Maria também é possível verificar tos; seja com o aprendizado da execução do maior
uma queda na produtividade quando o período das número de etapas pelo maior número de artesãs; se-
chuvas chega: ja com a introdução de novos produtos no portfólio.
Celeste, de Brito: Ô, nós acabamos de per- Observaremos agora as causas e os reflexos
der uma encomenda... Queriam 50 sacolas em desta necessidade de manter ou aumentar a produ-
10 dias. Mas não deu. Eu chorei no telefone de ção, com vistas ao atendimento das encomendas. As
um lado, elas choraram de outro, mas não deu. quantidades de produtos solicitadas nas encomendas
E era pra Natura... Nós já tinha dado conta de extrapolam as condições normais de produção, obri-
fazer 60 em 15 dias, mas o linho já tava tingido. gando as artesãs a passarem horas a fio na frente
Com esse tempo frio, é ruim, o linho não seca. E dos teares ou sentadas no chão modelando o barro,
é muito ruim bater com linho úmido. a fim de que não percam a encomenda, e com isso os
reflexos desta demanda no corpo são sentidos a to-
Vemos no trecho acima uma situação que rela- do instante, por conta dos movimentos repetitivos e
ciona o mercado às condições climáticas que influen- da má postura, principalmente.
ciam na produção. A encomenda e o prazo estipula- As condições climáticas desfavoráveis, co-
dos pela empresa Natura não estão em consonância mo relatamos anteriormente, também contri-
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com o tempo das artesãs e do artesanato. Mesmo buem para o alongamento do prazo de produção e,
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consequentemente, para o atraso na entrega, fazen- extremidade do tear, batendo o facão. No momen-
do com que os momentos finais da produção sejam to de esvaziamento da produção, por não haverem
cansativos e estressantes. muitas artesãs envolvidas na atividade, Maria José,
uma das mais idosas do grupo, considera a possibili-
3.3.1 Domínio da técnica dade de aprender a bater, mas ponderando que este

Capítulo 3
e as novas gerações processo é algo penoso, que requer coragem. Maria
José nos conta um trecho de uma conversa que te-
Em Brito, Roberta nos apresenta sua visão so- ve com Roberta:
bre o aumento da produtividade. Ela considera ne- Maria José, de Brito: “Cumadi, eu tô dizendo,
cessário que as outras artesãs aprendam a realizar vou ter que contar com a senhora, só tem a se-
etapas que hoje são concentradas nas mãos de pou- nhora pra fazer esse trabalho, pra bater a rede,
cas artesãs, como a etapa do botamento pelas outras que senão nós vamo parar.” [foi o que Rober-
artesãs, associado à aquisição de dois teares: ta disse] Nem a Luciene tava indo mais, a Silene

Reflexões sobre as cadeias produtivas


Roberta, de Brito: Quem dera elas aprendes- não tava mais indo, não tava mais indo ninguém,
sem a botar... Nós tamos com coisa de ganhar aí a gente parou o trabalho. Aí ficamo só fazen-
mais dois teares. Vai ser bom poder deixar uns do essas coisa aqui. [mostra o tapete e o jogo
dois pra fazer os tapetes. Aí quer dizer que com americano] “Por que só eu não posso bater, en-
dois tear, vamos ver se elas vão querer apren- tão a senhora vai ter que procurar aprender,
der pra ser mais rápido, porque enquanto nós ter coragem, pra senhora sentar pra nós bater,
tamos batendo os dois, já tem mais dois pra ba- que senão nós vai parar de fazer rede.” [conti-
ter carié. Tô a fim de quem me descanse mais. nua contando sua conversa com Roberta]. Por
Pesquisadora: As outras não querem aprender? que esse aqui [o tapete] ela [Roberta] bate ela
Silene, de Brito: Tem que ser bem devagar e só. E eu fiquei trabalhando nesses aqui [acaba-
eu tenho muita preguiça, tem que ser bem de- mento do jogo americano].
vagarzinho que é bem comprido.
As artesãs também estão desenvolvendo novos
Ao mesmo tempo em que se queixa da sobre- produtos, menores e, portanto, mais baratos, pa-
carga por serem apenas ela e a sobrinha a saberem ra atender a um público que consideram maior. Es-
botar a rede, Roberta mantém a produção direciona- ta possibilidade foi cogitada durante nosso primeiro
da aos seus interesses e o comando do grupo. seminário, realizado na sede de Alcântara e, em nos-
Aqui, observamos a necessidade de qualifi- so retorno, foi possível observar os produtos já sen-
cação de artesãs ligada à possibilidade de aumento do desenvolvidos. São tapetes e jogos americanos.
dos meios de produção. Não adianta haver mais te- Maria José já considera a possibilidade de fazer
ares se não há artesãs qualificadas para botar a re- bolsas. Na opinião das artesãs, esta seria uma forma
de, e mesmo para batê-la. O processo do batimento de ter produtos prontos, sem encomendas, pois o in-
é sempre realizado por duas mulheres, uma em cada vestimento de tempo em trabalho e matéria-prima 93
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seria menor. Com o esvaziamento da produção, a A gente tá sabendo pra onde vai, pra onde não
solução encontrada foi reduzir o tamanho dos pro- vai, né? Perto da gente.
dutos, para diminuir a quantidade de artesãs envol- Pesquisadora: Mas a Denise [filha de Neide]
vidas no processo. trabalha aqui com você?
É importante ressaltarmos que estão vivencian- Neide: Aham, Denise, tem Eduarda, tem 25
do um período em que houve uma redução drástica anos... Denise, Karliane, Angela... Essas são as
no número de artesãs que estão ativamente no pro- mais novas... Estão todas trabalhando aqui com
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

cesso. A saída das artesãs está relacionada principal- a gente...


mente à dificuldade em se ter um retorno financeiro
constante, o que leva as artesãs a priorizarem outras Em Santa Maria, a preocupação com os estu-
atividades como a roça, o trabalho como emprega- dos dos filhos também os afasta da produção artesa-
da doméstica na capital e as contingências familiares. nal. As artesãs se valem da ajuda dos filhos e dos ma-
Itamatatiua é o único lugar em que o número de ridos, mas quando os filhos crescem são direciona-
artesãs vem crescendo nos últimos anos. Foi possí- dos à cidade, para darem continuidade aos estudos:
vel observar três gerações de mulheres trabalhando Celeste, de Santa Maria: É porque assim, os
ao mesmo tempo e em número equilibrado na sede meus eu ensinei, até o menino já puxava li-
da associação. nho mesmo, puxava direitinho, quando eu ta-
No depoimento de Neide, vemos o que falam va muito aperriada aí ele puxava mesmo, mas
sobre a saída das jovens para a cidade: aí tem que sair porque não pode ficar aqui né,
Pesquisadora: Como as pessoas daqui veem o porque é até a oitava série, então terminou a
trabalho de vocês? oitava série os jovens daqui têm que sair (...)
Neide, de Itamatatiua: Defende, porque já é vai sair tudinho por causa que não tem o se-
uma tradição daqui. gundo grau, a minha filha caçula, tem o que,
Pesquisadora: Vocês acham que as meninas da- tem 15 anos, tá no segundo ano já, tá estudan-
qui querem aprender ou o interesse é pouco? do em São Luís, e os outros dois já teve que
Neide: eu acho que o interesse é pouco. Eu sair também, pra procurar trabalhar, estudar,
acho assim, e mesmo elas, o estudo, né? Elas alguma coisa assim. Tenho um irmão em Brasí-
tem que sair pra estudar, em São Luís ou em Al- lia e mandei os dois pra lá.
cântara e lugar pra terminar os estudo. Quando
elas tão querendo aprender, elas vão embora. Em Brito, a situação é mais delicada, pois as ar-
Pesquisadora: mas vocês queriam que elas con- tesãs são poucas, e nem todas dominam todas as
tinuassem esse trabalho de vocês? etapas das cadeias produtivas. Em conversa com as
Neide: Eu queria era que elas continuassem artesãs, identificamos sua preocupação com traba-
perto de mim, senhora! Porque, já pensou, os lho, para que este não morra:
filho da gente, longe da gente. A cabeça da gen- Pesquisadora: E suas filhas?
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te fica zonzinha. Tem, empecilho nenhum não. Silene, de Brito: Eu tenho filha, a dela mora
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aqui em Alcântara, eu tenho filhas, tenho três Depois, começou o plástico, e todo mundo só
em São Luis, não vão se interessar em bater, a queria balde. A água encanada também... Aí caiu
que mora comigo, tá pequena, tá com 10 anos, mais o pote. Aí a gente resolveu fazer travessa,
não tem condição de bater. panela, copo...
Pesquisadora : Tem até que série aqui? Neide, de Itamatatiua: Por que dantes, assim, a

Capítulo 3
Roberta, de Brito: Só tem até a quarta, na quin- gente não trabalhava assim... cada qual fazia em
ta já tem que mudar pra outro lugar. É porque era suas próprias casas, aí a gente trazia pra infor-
pros jovens a partir de 16 a gente ir botando pra nar no forno, e quando a gente tirava as louça
aprender, pra não morrer o trabalho... Lá tem pou- do forno, o comprador já tava ali pra comprar.
ca mulher mesmo, que as meninas vão crescendo Assim era. Ele garrava, comprava tudinho, paga-
e vem estudar, sai, eu mesmo só tenho a que mora va e comprava tudinho, eu criei meus filhos foi
em Alcântara, o resto tudo é só homem... só com isso aqui. Louça... Vendia praí tudo, pra
Bequimão, pra Pinheiro... O pote saía era quen-

Reflexões sobre as cadeias produtivas


O resultado, a longo prazo, deste esvaziamen- te pro carro...
to da produção pela falta de artesãs qualificadas para
atender às demandas é a morte do trabalho iniciada há Hoje a produção foi retomada, pela interferên-
algum tempo no caso de Brito ou de Santa Maria ou cia e mediação do SEBRAE, conforme nos relataram
de uma tradição secular de produção cerâmica em as artesãs. Foi possível observar como a diminuição
Itamatatiua. Porém é possível identificar ao longo da na produção foi causada por fatores internos e ex-
conversa com as artesãs de Itamatatiua um cenário ternos à comunidade, naquele momento.
inconstante de demanda ao longo dos anos que in- Pelo que foi relatado pelas artesãs mais ido-
terfere na produção, que também decai. sas, o sustento das famílias provinha destas vendas
Na conversa abaixo, o tema era sobre a déca- de cerâmica. Afirmam que criaram seus filhos com
da de 70, quando houve uma drástica diminuição nas o dinheiro da louça. Na verdade, a cerâmica pos-
vendas de potes: suía um caráter utilitário relacionado ao armazena-
Pesquisadora: O que vocês faziam mais nesse mento de água. Quando não havia mais a necessida-
tempo mais antigo? de de se ir ao poço e que o pote pôde ser substitu-
Dos Anjos, de Itamatatiua: A gente fazia mais ído pelo leve balde de plástico, consequentemente,
era pote, né? a cerâmica perdeu seu status. A geração que assistiu
Pesquisadora: Porque vocês faziam pote? a esta decadência na produção não percebe a possi-
Dos Anjos: Porque pote é o que dá, né?! bilidade de garantir seu sustento a partir de tal ati-
Pesquisadora: E vocês usavam isso no cotidiano vidade. A esta situação alia-se a indisponibilidade de
de vocês também? escolas de séries mais avançadas no interior – uma
Dos Anjos: Usa. Até hoje. Porque o pote, a realidade em inúmeros municípios – e a consequen-
gente viu que tinha muita saída, né?! Porque a te saída dos filhos das artesãs para buscarem estu-
gente era todo mundo, levava pra tirar água. do, trabalho e renda. 95
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3.3.2 A produção da dor Pesquisadora: A senhora senta na cadeira algu-


ma hora?
Em diversos momentos da pesquisa foi possí- Neide: Não, só no chão...
vel observar e escutar as reclamações de dores no
corpo, fruto das posições em que costumam traba- Queixas sobre dores nos ombros, nos bra-
lhar e também causadas pela repetição à exaustão ços, na coluna são recorrentes, além de reclama-
de certos movimentos. A atividade artesanal está re- ções sobre ardência nos olhos, causadas pelo traba-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

lacionada a pequenas séries produzidas em espaços lho noturno de acabamento, principalmente em San-
de tempo que condizem com o esforço realizado. ta Maria.
Quando a produção aumenta e o tempo de execu- Eloísa, de Itamatatiua: Aí eu também não con-
ção diminui, os corpos das artesãs padecem. sigo mais fazer aqueles vasos compridos, assim,
Observamos nos ambientes de produção a pos- por que a gente tem que ir rodando, por que
tura das artesãs para a realização de tarefas e obser- dói demais, às vezes eu boto um mocho pra po-
vamos alguns constrangimentos ergonômicos nas po- der ajeitar.
sições de trabalho. De tempos em tempos, as artesãs
mudam a altura do tear, para variar a posição em que se
sentam e mesmo levantam o tear para baterem em pé.
Em Itamatatiua, alternam-se entre o trabalho de mo-
delagem realizado no chão, onde trabalham sentadas,
com as pernas abertas ou em pé, apoiando o barro na
bancada de pedra. Esta posição está associada à produ-
ção de vasos grandes, conforme nos relata Neide:
Neide, de Itamatatiua: Hum... Eu tenho uma
dor de coluna que às vezes eu tenho que me es-
corar na parede. Ah, dói muito a coluna da gen-
te. Aí pra levantar é só com a gurizada [ajudan-
do a levantar] a gente tem que se encostar de
vez em quando pra não doer a coluna.
Pesquisadora: E todo mundo sente?
Neide: Tem umas que sente menos, têm ou-
tras que sente mais...
Pesquisadora: Esses jarros grandes, não dá pra
fazer na mesa, não?
Neide: Não, esses assim não dá pra fazer... Se
a gente fizer na mesa, tem que passar pro chão
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pra armar.
Capítulo 3
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Reflexões sobre as cadeias produtivas
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Eudialite, de Santa Maria: O jeito que tá do- Também podemos observar as estratégias que
endo minhas costas... problema de coluna, dói as artesãs utilizam para aliviar a dor e continuar na
demais as costas, demais. produção:
Pesquisadora: Só dói as costas? Pesquisadora: E esse banquinho do pé?
Eudialite: Não, só as costas mesmo, às vezes Luzia, de Santa Maria: Ah, isso aqui é pra aliviar...
dói mesmo, dói, dói. Pesquisadora: Quem foi que teve essa ideia?
Celeste, de Santa Maria: Eu de vez em quando Luzia: É eu mesmo, eu boto aqui, as vezes tá
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

amanheço o dia com isso aqui doído [falando do doendo, eu tenho que trocar de posição...
braço], tem umas também que, já duas, a minha Rosa, de Santa Maria: Eu trabalhava com o tear
irmã e uma artesã lá de cima, sentem uma dor em baixo e agora eu botei ele assim, nessa posição
aqui assim [pulso], não conseguem mais bater. [mais para cima], eu sento na cadeira. Fica melhor
porque em baixo a gente se curva muito...
Deuzimar, de Santa Maria: É trabalho muito,
a gente trabalha porque precisa né, mas que dá
trabalho, dá...
Pesquisadora: Dá, né? A senhora sente dor?
Deuzimar: E muito, nas pernas, dor na costa,
e a gente leva a maior parte do tempo é senta-
da. Só ainda não parei por causa que as menina
tão pouca, nós tamo pouca no grupo, é que te-
ve algumas que foram embora, algumas que não
puderam trabalhar por causa da vista...

Em Brito, onde o tear da rede é alto, as arte-


sãs ficam alternando as posições na hora de botar a
rede: ficam em pé para alcançar a madeira superior
e abaixam-se, para alcançar o inferior. O resultado
deste movimento é encontrado na fala de Luciene:
Pesquisadora: Luciene, tu sempre fica assim, le-
vantando e agachando quando vai botar a rede? Celeste, de Santa Maria: É por que é um trabalho
Luciene, de Brito: É... Quando tô de short eu que tem que trabalhar sentado, e é difícil a gente
fico é de acoco [acocorada]... Só quando a gen- ficar assim certinho o tempo todo, não tem co-
te bota a rede mesmo que é daqui até lá... Aí mo. E às vezes o jogo americano, como ele é al-
sente muita dor nos quarto [colocando as mãos to, a gente bate parte sentado e depois bate em
na altura dos rins], na hora de botar. Na hora de pé. Pra não ficar demais em pé. Minhas pernas fi-
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bater eu não sinto nadinha não. cam gordinhas quando dá de tarde, toda inchada.
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As dores provocadas pelo esforço da repetição 3.4.1 Preço e valor:


são identificadas em todas as comunidades. Quando a carne mais barata do mercado
perguntamos o que fazem para melhorar, falam so-
bre o uso de antiinflamatórios sem prescrição mé- Durante a pesquisa, abordamos o assunto da
dica, interrupções temporárias na produção e alter- atribuição de preço aos produtos, e em cada gru-

Capítulo 3
nância na posição de trabalho para diminuir os efei- po havia uma forma diferente de atribuição de pre-
tos traumáticos. Quando questiono se pensam em ço. Em Santa Maria, com a intervenção do SEBRAE,
parar de trabalhar por causa das dores, dizem unani- foi desenvolvido um portfólio de produtos. Em uma
memente que não, que esta é muitas vezes sua úni- pasta estão organizadas as fichas técnicas dos produ-
ca forma de renda, como veremos no próximo item. tos que as artesãs desenvolvem, contendo a foto, a
descrição detalhada do produto, as dimensões, uma
3.4 O valor do artesanato: estimativa de tempo utilizado para sua confecção e o
as relações de troca preço de custo e o preço de venda de cada produto.

Reflexões sobre as cadeias produtivas


Pesquisadora: Como é que vocês botam preço?
Pensamos a categoria valor como uma instân- Celeste, de Santa Maria: Olha, nesse negócio de
cia inerente ao artefato, que o substitui nos momen- preço, a gente teve curso com o pessoal do SE-
tos de troca, econômicas ou simbólicas. Assim, o va- BRAE, com a Socorro. Eles ajudam a gente a con-
lor existe quando há a possibilidade da permutabi- seguir os preços, por que como o rapaz [um con-
lidade, em que o artefato é imbuído por represen- sumidor] tava falando pra ele: “Não, mais é caro!”
tações, de quem o produz e de quem o consome. Eu digo não, sabe por quê? Por que o preço que
Desta forma, entendemos o valor a partir da re- a gente cobra no produto ainda não tá o tempo
lação das artesãs com seus produtos, com os agen- que a gente se dedica nele. Por que fazer os pro-
tes que mediam as vendam, suas representações so- cesso todinho pra depois o produto pronto, en-
bre custos de produção e manutenção dos espaços tão o preço que a gente pede no produto, nunca
de trabalho e sobre o que identificam como qualida- que paga o trabalho que a gente tem. Aí ela aju-
des e atributos do seu artesanato. da a gente a fazer os preços, ela levou a gente pra
Neste último item, discutiremos os dois prin- São Luís pra ver o preço como é lá, mas nunca vão
cipais processos de atribuição de valor aos artesana- pagar o preço do que a gente fez...
tos produzidos: de um lado o preço atribuído às pe-
ças produzidas, simbolizando o potencial econômico As artesãs relatam que o preço foi atribuído
atribuído ao artefato e por outro, o imaginário das com a ajuda do SEBRAE, utilizando-se uma tabela,
artesãs em relação ao artesanato, caracterizando o com a consultoria da gestora Socorro Abreu. Na
valor simbólico da sua produção, sua ligação com a fala, mostram a percepção sobre a relação preço-
natureza e o pertencimento a um sistema de conhe- -tempo-trabalho, e mostram consciência sobre
cimento local. a não valorização do produto, com o exemplo do
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rapaz, um consumidor, que achou o artesanato ca- precisão sobre o preço da matéria-prima utilizada
ro. A atribuição de um juízo – artesanato é caro e estabelecem um preço que lhes parece suficiente,
– provoca uma reação de desconstrução do discur- mas sem nenhum parâmetro específico.
so do consumidor pela a artesã, que não vê no preço Maria José nos fala sobre o investimento na
pelo qual vende o seu produto, um valor condizente compra de um pequeno estoque de fio, goma e tin-
com o tempo e o trabalho investido para executá-lo. tol, mas não soube dizem quanto de material era uti-
O preço a que chegaram com a planilha feita lizado exatamente para uma rede.
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

com o SEBRAE é considerado alto e o preço execu- Maria José, de Brito: Não por que um exem-
tado pelas artesãs, na prática, é mais baixo que o es- plo, a tintura, ela comprou outro dia, nem sei
timado, pois na relação de troca o seu produto não pra que foi... Porque os R$300,00, saiu pra tin-
atinge o mesmo nível de valoração que é percebido tura, pra comprar esse saco de fio e saiu pra
pelo consumidor. comprar o tintol, aí não sei quanto foi essa con-
Ao preço praticado pelas artesãs, adicionam-se ta, falta ela [Roberta] mostrar pra ver o quan-
um custo de R$1,00 destinado à Associação, a co- to saiu. A rede saia de R$130,00 se for com-
missão de venda da loja de artesanato na sede de Al- prar o fio, é R$15,00 o fio, uma rede de 3kg são
cântara e o preço do transporte de Santa Maria até R$45,00, que sai ano passado, esse ano a gente
Alcântara. O valor que é gerado pelo trabalho das ar- não sabe ainda, mas o tintol, aí tem a goma que
tesãs vai sendo dividido entre os diversos agentes da nós compramos também... Aí não sei o quanto
cadeia produtiva. que tá o quilo da goma...
Deuzimar, de Santa Maria: Teve uma vez que Pesquisadora: Usa quantos quilos de goma pra
ganhei R$320,00, eu fiz 21 peças de jogo ameri- uma rede?
cano, aí eu fiz de novo as sacolas, e ganhei 180 Maria José: Ah, pra uma rede eu acho que sai um
em 13 sacolas médias. quilo dá pra duas ou três redes, ainda não obser-
Pesquisadora: E quanto vocês ganham por saco- vei bem mesmo. Aí a gente ainda não fez a análise.
la na encomenda?
Celeste, de Santa Maria: Na encomenda a Roberta, de Brito: Porque a gente faz a rede, a de
gente faz desconto, mas na loja a gente ganha 2,5kg, eu vendo de R$100,00, a de 3kg, R$110,00
R$25,00 na sacola grande [40x38cm] e R$20,00 mas só que o nosso preço é esse, mas já teve pes-
na sacola média [35x33cm]. A gente manda o soas que como o material é bom, o valor da rede,
produto no preço, aí a loja coloca em cima, mas já deu até mais. Uma de 3kg, uma rapaz de Bra-
o preço do artesão vai “X”. Alguém fala que sília, ele perguntou qual era o valor da rede, aí eu
eles incluem no preço o valor da passagem pra disse que era R$110,00, aí ele deu R$130,00.
levar, pra não ter prejuízo.
A artesã nos mostra que os diversos tamanhos
Em Brito, o preço é atribuído pelas próprias de rede têm preços diferentes, em função da quanti-
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artesãs. Elas fazem um cálculo estimado, ainda sem dade da matéria-prima utilizada. Observamos também
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a diferenciação estabelecida entre preço e valor. O pri- o caráter da pessoa, a gente até entrega assim
meiro é atribuído a um parâmetro racional, estabe- fiado, aí a pessoa já vai, eu tenho tanto pra dar,
lecido entre o peso da rede e a utilização de maté- a gente recebe e marca o mês, tal mês eu ve-
ria-prima, ainda que elas não saibam explicitar como nho pagar o restante. O que a gente já sabe que
chegam a este preço. O segundo, o valor, relaciona- é enrolado, aí não, a gente só entrega a rede

Capítulo 3
-se a um juízo, uma percepção que as artesãs explici- com a metade. A gente ainda não tem uma con-
tam na forma de uma qualidade – “o material é bom”. ta pra mandar a pessoa botar na conta, só di-
No depoimento da artesã ela identifica também nheiro vivo.
uma percepção do consumidor, que ao identificar este
valor – a rede é boa – é capaz de convertê-lo em va- Neste depoimento é possível identificar um va-
lor de troca, atribuindo um preço maior à rede. Impor- lor importante para as artesãs – o caráter – que é
tante ressaltar que não realizamos uma pesquisa com a garantia para aceitarem uma encomenda sem o pa-
os consumidores, portanto, essa conversão de valor em gamento de uma entrada, ou o parcelamento da dí-

Reflexões sobre as cadeias produtivas


preço foi uma apreensão no discurso da artesã. vida, e a negociação do valor das parcelas, de acordo
As redes de Brito são os únicos produtos que com a possibilidade do consumidor, entendido como
pesquisamos que podem ser comercializados com o pessoa2 . Esta característica, assim como a informali-
parcelamento da compra: dade da encomenda que pudemos observar no item
Silene, de Brito: A rede é cara. Quando a pes- 3.1, aponta para um modelo de produção baseado na
soa acha cara, a gente oferece para parcelar. Dá uma palavra e não em papéis.
parte quando encomenda, e depois quando recebe, e Durante o seminário que realizamos em Al-
também pode dar depois... cântara, em uma discussão nos grupos de trabalho,
uma artesã de Itamatatiua questiona o preço da re-
A partir da emissão de juízo – a rede é cara de, considerando-o caro. Observemos a conversa,
– as artesãs estabelecem o parcelamento como uma considerando-a uma consumidora.
estratégia para a concretização da venda. Mas tam- Roberta, de Brito: O valor de 100 reais é pra
bém compartilham a emissão de juízos com o outro, rede de 2,5 kg por que vale, por que as redes
e incorporam estes juízos como um valor do produ- são boas, elas valem aquele preço. O fio tor-
to. Oferecem a possibilidade de parcelamento quan- cido a rede fica mais pesada e mais durativa. E
do “a pessoa acha cara”. Continuamos escutando so- o singelo a rede fica mais leve, mas dura mui-
bre o parcelamento: to também.
Pesquisadora: Como é que paga a prestação? Canuta, de Itamatatiua: Não acha que tá mui-
Silene. de Brito: A gente conhecendo a pessoa, to caro?

2. Durante a pesquisa, foi possível observar os diversos momen- tal investigação e optamos por deixar esta análise para a nossa
tos em que as artesãs referem-se às pessoas, aos compradores, pesquisa de doutorado, em curso, cujo tema e objetos têm re-
aos consumidores. Sabemos da importância e complexidade de lação com conteúdo deste livro.
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Roberta: A gente não bota o preço, quem bo- passar essa lixa, depois da lixa eu tenho que
ta o preço é o produto. O cliente acha que vale passar uma pedra, dessa pedra, eu tenho que
aquele preço por que é bom o produto. passar um escovão, pra poder ir pro forno...
R$50,00 não dá, né? Por que um dia aqui, a gen-
A relação entre o produto e o preço é deter- te trabalhando cedo é R$15,00
minante para a artesã, que qualifica o seu produto Pesquisadora: O dia de trabalho? Como é que
pela durabilidade. Se é um produto durável, é válido vocês chegaram nesse preço?
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

o preço que se paga por ele. Esta conversa entre as Neide: Aqui em Itamatatiua é conforme, por
artesãs nos elucida uma importante representação exemplo, quando a carne sobe, se a carne sobe,
da artesã sobre a função da rede como um artefato, aí sobe o preço da diária... A diária de homem é
tendo uma existência autônoma e ativa nas re- R$20,00 e a de mulher é R$15,00... (...) pra fa-
lações de troca. zer cerca, pra roça, pra qualquer tipo de serviço.
Em Itamatatiua, a atribuição do preço também Pesquisadora: E quanto tempo vocês dão conta
é feita por uma estimativa arbitrária das artesãs, de uma encomenda dessas?
conforme nos relata Eloísa: Neide: No inverno? No inverno é dois meses.
Pesquisadora: E o preço das peças? Como vo- No verão é um mês por que seca rápido, a gen-
cês fazem? te faz a peça em um dia, no outro dia a gente já
Eloísa, de Itamatatiua: A gente que escolhe tá fazendo acabamento. No inverno não ... Ago-
o valor mesmo. Aí tem peça de tudo quanto é ra até tá secando depressa por que não tá cho-
preço, né? De R$1,00 a R$50,00, a R$60,00. vendo muito. Daí eu fiz esses anteontem e já tô
Pesquisadora: E quando é encomenda? dando o acabamento, mas quando tá chovendo
Eloísa: Quando compra em quantidade, aí o é oito dias pra fazer esse acabamento. Aí a se-
preço é diferente. Aí a gente baixa um pouqui- nhora vê que não dá R$50,00...
nho, assim quando compra em quantidade.
Na fala da artesã, observamos suas representa-
Em outra conversa com Neide, durante o tra- ções sobre a discrepância entre o tempo de exe-
balho de uma encomenda de 20 potes grandes, ob- cução da tarefa e o preço pelo qual a peça é ven-
servamos sua percepção sobre a discrepância entre dida. Quando a artesã nos mostra o preço da peça e
o preço da venda das peças e o tempo que leva pa- a quantidade de trabalho e tempo, reflete – com ba-
ra a sua execução, e o valor do trabalho, utilizando- se no preço da diária, relacionado ao preço da carne
-se um parâmetro local de troca para a definição do – que há uma lacuna entre o número de dias trabalha-
valor das diárias pagas em Itamatatiua. dos e o que receberia pelo pote, resultando em um
Pesquisadora: Aí em uma peça grande assim, com valor de diária muito mais baixo do que é praticado no
duas pessoas trabalhando, por quando vende? mercado local, os quinze reais da diária feminina.
Neide, de Itamatatiua: é o mesmo R$50,00. E A percepção sobre a desvalorização do traba-
102
agora, eu vou raspar, depois de raspar, eu vou lho se estabelece com a permutabilidade, quando é
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convertido em diárias, que por sua vez é convertido em Pesquisadora: Você só ganha dinheiro com o
valor de troca pela carne em Itamatatiua. Observamos, trabalho com linho?
ainda, a diferenciação do valor da diária feminina em re- Suely: Não. Eu tenho duas rendas assim, que
lação à masculina, relegando a um último patamar de tem essa renda aqui [do linho] e tem a do bol-
valorização a produção do artesanato, considerado em sa-família, né? Também tem a roça também. Aí

Capítulo 3
Itamatatiua uma atividade essencialmente de mulher. quando é pra fazer farinha eu vou ajudar ele
[o marido], tira a puba, que ele bota dentro
3.4.2 Artesanato é trabalho, d’água e a gente vai ajudar a tirar a puba, pe-
tempo é dinheiro! neirar, aí tem vez que a gente vende o panei-
ro de farinha, vende os quilos, mais é mais pra
Durante nossa estada nos povoados foi possível comer. Pra vir o dinheiro mesmo é do linho e
identificar a importância do artesanato na vida das ar- da bolsa-família.
tesãs. O dinheiro advindo da produção é fundamental

Reflexões sobre as cadeias produtivas


para a renda das famílias, complementando outras fon- No depoimento de outras artesãs, observa-
tes da renda familiar. Trata-se de um importante valor. mos as representações sobre o artesanato como
Em Santa Maria, escutamos um depoimento trabalho e emprego, associando essas noções a
que retrata esta realidade: uma regularidade na geração de renda, e não a uma
Rosa, de Santa Maria: O meu marido é daquele iniciativa de empreendedorismo, como a produção
que ajuda, mas na hora [quando tem encomen- artesanal é vista tradicionalmente pelos órgãos de
da] ele fala, ele fica falando [reclamando]. gestão e capacitação:
Pesquisadora: O que vocês ganham é importan- Celeste, de Santa Maria: É um pouco compli-
te na renda familiar? cado, às vezes a gente bota na loja 10, 12 peça,
Rosa: Eu, graças a Deus, não é assim muitão, vai receber, vai prestar conta por mês, às vezes
mas dá pra quebrar o galho da gente. Eu tenho num vende nada, às vezes desanima, às vezes
32 anos e tive 8 filhos, hoje 6 são vivos. A gente dá vontade da gente parar de trabalhar. Por is-
ganha, mais assim, quando tem encomenda, aí a so tem muito esposo às vezes que não deixa as-
gente ganha mais, mas de qualquer forma é uma sim, as esposas trabalhar com o linho...
ajuda grande. Deuzimar, de Santa Maria: É muito trabalhoso
Celeste, de Brito: Rosa criou os filhos dela tu- e às vezes a gente bota, porque assim se a gen-
dinho com isso [linho]. te tivesse quem comprasse assim na hora, com-
prasse, pagasse, num ficasse material empaca-
Na fala da artesã, observamos um contrapon- do, sabe? Era bom, mas às vezes a gente manda
to da ajuda do marido. Ele ajuda, mas reclama quan- pra loja, leva é dias, a gente fez uma encomenda,
do há uma intensa produção durante uma encomen- já vai fazer é mês, até agora a gente ainda não
da. Outra artesã nos relata a importância do artesa- recebeu, quer dizer, que é uma situação assim,
nato na renda familiar: que as vezes já desagrada a gente até pra gente 103
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continuar trabalhando porque quem mora no as contas e sustentar a família. O mercado agora res-
interior, não tem emprego, o emprego da gente ponde lentamente, com o parcelamento, com a devo-
é esse aqui, tem que viver disso né? lução lenta do dinheiro das vendas na loja, com a baixa
venda dos produtos nos períodos de pouca procura.
Observamos durante todo o capítulo, nas falas O tempo é ele próprio convertido em valor e cai
das artesãs, suas representações sobre o artesanato na lógica da troca. Produto caro, negociado entre o
como uma atividade trabalhosa. O cansaço das arte- mercado e as artesãs; antes, era curto, tirando-lhes
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

sãs advindo do trabalho que, como vimos anterior- a possibilidade de realizar sua atividade com um rit-
mente, é doloroso fisicamente, também é desgastan- mo condizente às etapas necessárias para a produção;
te emocionalmente, quando tratado como um empre- agora é longo, dificultando o retorno do valor dos ar-
go, um trabalho e uma fonte de renda, pois o retorno tesanatos às comunidades, em forma de dinheiro.
da venda – o dinheiro – é instável, não é rápido e não
supre as necessidades cotidianas, mas ocupa um gran- 3.4.3 Valores simbólicos do artesanato
de espaço na vida das artesãs e de sua família. Por is-
so é grande a expectativa quanto ao retorno financei- Agora observaremos as representações das ar-
ro. O artesanato é um trabalho que demora a ser re- tesãs sobre valores simbólicos do artesanato que pro-
tribuído em forma de pagamento. duzem. Considerando o que foi dito no início des-
Na voz de Maria José observamos uma aborda- te item, que a produção do valor acontece na condi-
gem de se investir no trabalho para que haja um re- ção da permutabilidade, questionamos constan-
sultado futuro e a crítica ao imediatismo das artesãs temente as artesãs, durante a pesquisa, sobre suas
mais jovens: opiniões, pensamentos e gostos sobre a sua própria
Maria José, de Brito: (...) E aí ficamos, porque a produção, a fim de que qualificassem o seu artesa-
Silene arranjou de se empregar, por que ela ta- nato, identificando qualidades – positivas ou negati-
va com uma conta pra pagar... Nesse outro se- vas – sobre como elas se relacionam simbolicamen-
minário, parece que nós já tava em nove, aí saiu, te com os artefatos e percebem na relação entre os
eu não sei, vendo assim acho que só tem eu e consumidores e seus produtos.
Roberta. O negócio é o seguinte, elas querem Para sistematizar a análise, iremos lançar mão
trabalhar em uma coisa que receba logo. Mas das categorias analíticas propostas por Krucken pa-
nem todo trabalho hoje tem a condição da pes- ra a construção esquemática da estrela de valor
soa começar e ter logo o resultado imediato... (KRUCKEN, 2009, p.29), identificando nos discur-
sos e nas práticas as representações que se relacio-
Nos depoimentos acima, mais um a vez perce- nam com cada um dos valores das seis pontas da es-
bemos o tempo como um parâmetro fundamental na trela: funcional, ambiental, emocional, simbólico-cul-
percepção das artesãs sobre a sua produção. Agora, o tural, o social e o econômico. Nos aprofundaremos
tempo das artesãs é mais rápido que o do mer- nos aspectos emocionais, sociais e simbólico-cultu-
104 cado, é o tempo da necessidade, o tempo de pagar rais e, mais superficialmente, no valor ambiental que
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será mais amplamente discutido no capítulo 4. Os Percebemos na fala acima referências sobre a li-
valores econômicos e funcionais já foram visitados nos gação dos seus produtos com a natureza. Observa-
itens anteriores deste capítulo 3. mos a importância do mangue para o trabalho da
Em Brito, as dificuldades enfrentadas pelas ar- Natura. Durante nossa estada em Santa Maria, con-
tesãs em organizar a sua produção são superadas pe- versamos sobre o uso de corantes naturais e artifi-

Capítulo 3
lo surgimento de outro tipo valor atribuído pelas ciais, e as artesãs mostraram ter consciência sobre
artesãs ao próprio trabalho: os diferentes valores que são atribuídos aos dois ti-
Maria José, de Brito: (...) Com três, quatro dias a pos de tingimento, o valor ambiental do corante natu-
rede fica pronta. Aí outro dia pra ajeitar, pra fa- ral, expresso conceitualmente na sustentabilidade
zer a varanda... Por que o meu trabalho de pu- e no valor de mercado; e no uso do corante artificial
nho é quando elas tiram a rede do tear. Já tão para acompanhar as tendências da moda.
com o fio torcido, a varanda e o punho já ta só A preocupação com a qualidade e acabamento
pra botar. (...) Sempre quem fica indo direto lá é das peças produzidas em Santa Maria está presente

Reflexões sobre as cadeias produtivas


eu, eu peguei uma mania de ir lá, por que sei lá, como um valor simbólico e cultural importante, por-
a gente tem uma responsabilidade e a gente pega que além de garantir que o comprador fique satisfei-
um amor por aquilo que a gente tá fazendo, e eu to, é um fator de diferenciação perante o artesanato
todo dia eu terminava de almoçar e ia pra lá. (...) de fibra de buriti de outras localidades:
O valor emocional é expresso na forma de amor Pesquisadora: Por que você acha que alguém
pelo fazer, que também pode ser visto através das escolhe o teu produto na loja?
categorias gosto e beleza quando atribuem a escolha Maria José, de Santa Maria: Porque o material
de um produto por um cliente a partir de tal noção: é bom, é da fibra do buriti, então no meu pon-
Pesquisadora: Porque vocês acham que a Na- to de vista ele tem mais valor que o da borra.
tura ou o restaurante lá de São Paulo encomen- Pesquisadora: Mas por que o valor da fibra é
dam os produtos de vocês? maior?
Celeste, de Santa Maria: Olha, o porquê eu Maria José: Por que o da borra fica mais gros-
não sei, mas o seguinte, o pessoal da Natura so e o nosso fica o pano mais fino, o tecido fica
viu um produto da gente, e daquelas cores ti- batido mais fino.
nham o mangue, e a cor do mangue, o produ- Pesquisadora: Tem algum problema eu escolher
to do mangue era muito importante para o tra- o grosso e o seu não ser?
balho que eles iam fazer, viram nosso produto, Maria José: No meu ponto de vista, o meu é
acharam bonito, gostaram, mas tinha que ter o melhor, porque que nem eu disse, de longe vo-
mangue, a cor escura. O pessoal de São Paulo cê vê o material batido e o grosso tem umas fa-
achou bonito, olhou e gostou. lhas no meio.

105
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Pesquisadora: Por que você acha seu produto artificial, é o bem colorido, bem acabado, tam-
bom? bém somos uma associação, somos remanes-
Marinalva, de Santa Maria: Por que o acaba- centes de quilombo, nossa comunidade tam-
mento é mais caprichado, é mais apertadinho, bém tem uma história e o nosso produto é úni-
não tem nada folgado, os nós não são tão gran- co e não tem outra comunidade que faz a tra-
des, às vezes as cores do meu tá mais forte do ma do mesmo jeito que faz, a associação de San-
que da outra comunidade. As pessoas preferem ta Maria.
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

os mais fortes.
O orgulho sobre o trabalho é percebido pelo
Identificamos nas falas acima as percepções po- entusiasmo com o qual essas palavras foram ditas,
sitivas das artesãs sobre seus produtos. Diferenciam a cor viva como um gosto, apesar de haver uma
seus produtos a partir da qualidade, expressa no ca- forma certa de se combinar, mediante a encomen-
pricho, na trama apertada, o que são resultados de um da. O caráter institucional da produção, ser feita por
pano bem batido. A cor forte do produto também uma associação, também é ressaltado pela líder do
é considerada diacrítica, percebido pelas artesãs co- grupo, que busca num discurso sobre tradição legi-
mo um fator de escolha do produto pelo consumi- timar a história do seu produto. A identidade étnica
dor. O fato de trabalharem com o linho, a parte mais surge como um valor a ser comunicado.
delgada da fibra e não com a borra, ocasionando um Observamos o entrecruzamento de diversos
tecido mais fino, também é destacado pelas artesãs. discursos oficiais, institucionais e do senso comum,
Nesta coleção de falas, quando perguntamos o dos consumidores e dos mediadores da cadeia pro-
que diriam para venderem seus produtos, observa- dutiva que se materializam nas falas das artesãs. Para
mos um discurso coletivo, que se repete a cada vez qualificar a produção, tornando o seu artesanato um
que perguntamos, baseado em valores emocionais, produto único, as artesãs utilizam todos estes discur-
simbólicos e culturais: sos, politicamente, para ressaltar os traços que as di-
Eudialite, de Santa Maria: Como o nosso tra- ferenciam de outras artesãs.
balho é com a fibra que é mais macio, sempre o Ao ressaltarem qualidades como a história, a
nosso acabamento vai ficar mais bonito. Gosto alusão à identidade étnica, refletem o discurso da
de trabalhar com cores fortes, chama a atenção, tradição no artesanato.
muitos gostam. Eu que faço a junção das cores. Em Itamatatiua, também identificamos a re-
Suely, de Santa Maria: De cor, cores fortes, di- missão a um passado que legitima a qualidade do
ferentes de umas, cores bem lindas, mas que dê artesanato:
certo: uma cor viva e uma cor fraca. Quando Canuta, de Itamatatiua: A cerâmica de lá é
não é encomenda eu mesmo uso minha imagina- muito boa, Itamatatiua é manual e Rosário é na
ção. Eu gosto de cor bem viva. forma. A gente tem que vender, por que é des-
Celeste, de Santa Maria: O meu produto, tra- se que a gente tira o sustento, que a gente tirou
106
balhamos com a fibra pura, tingimento natural e para criar os nossos filhos, se não vender, fica
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difícil de comprar qualquer coisa. Nossa mãe tamanho e de cor, faz da cor que a pessoa pede.
que ensinou, nossa avó, é uma herança e nunca Tem de 2kg, de 2,5kg até de 4 kg.
tem que terminar, é uma herança muito boa e
todo mundo gosta das peças da gente. A intensa negociação com o outro, no momen-
to do conceder um desconto ou um parcelamento,

Capítulo 3
O gostar das peças é associado à herança, ao a combinação de prazos, reforçam nossa afirmação
saber que é passado de geração em geração. No de- inicial de que o valor é uma categoria que se realiza
poimento de Nazaré, a recorrência do discurso so- na possibilidade da troca, da permutabilidade do
bre o caráter geracional da produção e o orgulho do artesanato. O espaço de negociação com o outro,
trabalho e do sustento da família fazendo louça: frequentemente referenciado pelas artesãs, quando
Nazaré, de Itamatatiua: Aprendi a cerâmica relatam a construção do preço e das condições de
com minha mãe, quando eu tava com 11 anos pagamento pela atribuição de valores percebidos pe-
a minha mãe era viva. Quando eu tava com los consumidores reflete esta tese defendida.

Reflexões sobre as cadeias produtivas


12 anos a minha mãe morreu, aí eu já sabia fa- Quando perguntamos às artesãs se elas gostavam
zer várias coisas, já sabia fazer o pote, o jarro. dos seus produtos, elas sempre afirmam que gostam,
Quando eu tinha 18 anos meu pai faleceu, mas se orgulham, que acham bonito. Mas quando pergun-
como eu já era dona da minha venta, já me res- tamos se elas usam o próprio artesanato, observamos
ponsabilizava por minhas despesas. Aí depois um movimento contrário. Reconhecem um produto
arranjei filho e maridos, comecei a fazer louça, como uma herança, um traço da sua identidade, mas
vendia, adquiria dinheiro e comprava as coisas não usam. Vejamos as falas das artesãs:
do meu filho. Por isso tenho maior orgulho e Pesquisadora: Você usa em casa as coisas que faz?
nunca largo de fazer, por que foi uma coisa mui- Neide, de Itamatatiua: Não... Não dizem que
to importante pra mim, criei meus filhos foi fa- em casa de ferreiro usa espeto de pau? Não é?
zendo louça. Por isso que gosto e nunca deixo Não tem esse dizer? Não uso nadinha... nem
de fazer, só depois de morrer. É uma coisa mui- pra enfeitar. Pra não dizer que não tenho nada,
to importante. eu tenho uma farinheira...
Pesquisadora: Mas por que não usa?
Em Brito, percebemos uma abordagem funcio- Neide: É por que assim, quando agente fala que
nal aliada aos valores emocionais da redes: vai fazer um conjunto lá pra casa, aí chega outra
Roberta, de Brito: É um material bom, fica pessoa e compra, aí todo tempo faz, faz... faz
uma rede forte, durativa, fica boa de cor, de ta- mas vende. Mas eu gosto... Eu tinha uma tige-
manho, não fica aquelas roupas que o pé tá de la que eu comia... Mas no tempo dos meus pais
fora. Então é um produto bom. Tem pessoas que trabalhavam em roça, eles usavam só coisa
que pede torcido, tem pessoas que pedem sin- de barro, era fogareiro de barro, caldeirão de
gelo, então a gente prepara bem, faz ela bem barro pra fazer arroz, era tudo... Aí tinha pra-
organizada. Fica forte, uma rede boa, bonita de to de barro, esse copo de barro, tigela de barro 107
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que a gente levava pra roça. E aí agora que nin- Observamos na conversa com as artesãs que as
guém quer, ninguém usa... Só usam agora coisas qualidades percebidas no produto, como vimos an-
de louça... Tem que comprar... É por isso que as teriormente, não são atribuídas quando elas se colo-
coisas tão caras. A gente sabe fazer as coisas, cam na posição de usuárias. Assim, é possível perce-
né? Mas vai comprar na loja... bermos a visão das artesãs de que o que produzem
é para o outro e não para o próprio uso.
Observamos que o pote de barro caiu no Ao deslocarem-se da posição de produtoras
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

desuso, e uma das causas, como vimos anterior- para consumidoras, a forma como qualificam o ar-
mente foi a introdução do balde de plástico. As ar- tefato é modificada, pois a relação que estabe-
tesãs perderam o hábito, presente entre os antigos, lecem no ato da troca modificou-se. Nem to-
mas ausente do cotidiano das artesãs. Uma outra das as artesãs possuem esta visão e afirmam que uti-
forma de falarem sobre a não utilização do artesana- lizam os produtos. Em todos os povoados, porém, a
to é atribuir a sua utilização ao outro: prioridade é atribuída à venda, e as artesãs relatam
Eudialite, de Santa Maria: Todas chique né, que se produzem alguma coisa para o próprio uso e
Suely, aí elas bota uma sacola de linho, chega, sai alguém chega a casa delas querendo comprar, elas
“toda”... Parece assim que vai... Aí nós fica só vendem sem hesitar, afirmando que o artesanato é
olhando, pra gente? A gente tem até vergonha... feito para ser vendido.
Pesquisadora: Mas por que tem vergonha? Podemos dizer que as identidades do artesana-
Eudialite: Sei lá, acho que é porque a gente to são construídas pela articulação destes valores, em
é acostumado com elas... Eu acho, porque ve- uma negociação entre as diversas representações dos
jo assim as artesãs, eu acho difícil ver uma que agentes envolvidos no processo de troca e estabele-
tem uma sacola... Mas uma sacola dessa eu du- ce-se como, nas palavras de Stuart Hall, “uma ‘produ-
vido que ela agarre assim, igual que a gente vê lá ção’ que nunca se completa, que está sempre em pro-
em Alcântara, as mulherers chegam vão que... cesso e é sempre constituída interna e não externa-
Suely: Eu acho. E as pessoas dão muito mais mente à representação.” (HALL, 1996, p.68).
valor, né. Quem compra. Ao enfatizarem a sua relação com o outro, no pro-
Eudialite: E num é isso que eu to dizendo? Eu cesso de construção dos valores dos produtos,
acho que sim, porque a gente só produz assim as artesãs assumem a possibilidade de trânsito de su-
porque sabe que essa é a renda da gente, sa- as identidades, considerando aspectos internos e ex-
be? Mas geralmente quando a gente vê o tra- ternos a elas, considerando as representações do outro
balho dos outro assim, a gente tem uma vonta- – consumidores e mediadores das cadeias produtivas.
de, e a gente não, acho que a gente já se acos- As identidades se tangibilizam nos atributos
tumou, só bater e mandar pra loja pra vender, materiais e imateriais dos artefatos e estes estabe-
mas não tem aquela vontade, que quer né, pra lecem-se como códigos dos sistemas sêmicos, com-
ter pra gente. partilhados entres todos os agentes envolvidos nas
108 cadeias produtivas – os valores percebidos.
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A relação destes produtos com o lugar no qual Referências


são produzidos são valores construídos e comu- HALL, Stuart. Diáspora e identidade cultural. In: Revista do
nicados nestes processos de trânsito intercultural, Patrimônio. Cidadania. No 24. Brasília, DF: IPHAN, 1996.
ampliando cada vez mais a percepção e os discursos KRUCKEN, Lia. Design e território: valorização de identi-
em fluxos – representações sobre representações dades e produtos locais. São Paulo: Studio Nobel, 2009.

Capítulo 3
– da própria territorialidade enquanto categoria
fundamental para a conceituação destes artefatos. Obras consultadas
APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as merca-
dorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da UFF,
2008.
BENJAMIN, Walter. O narrador. / A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e Técnica, Arte e
Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Reflexões sobre as cadeias produtivas


BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Edi-
tora da UFMG, 2006.
FOUCAULT, Michael. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
_______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2002.
HALL, Stuart (org). Representation: cultural representa-
tions and signifying practices. London: SAGE Publications/ The
Open University, 2009.
MARX, Karl. A mercadoria. In: O capital. Crítica da econo-
mia política. Livro Primeiro. 23ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2006.

109
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

110
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Capítulo 4
Estratégias ambientais para o desenvolvimento de
produtos artesanais sustentáveis

Capítulo 4
Patrícia Silva de Azevedo e Marcella Abreu

4.1 Introdução incorpora dentro das fases mencionadas anterior-


mente requisitos ambientais específicos que obriga-
Os produtos artesanais representam a identi- toriamente devem ser atendidos.

Estratégias ambientais para produtos artesanais


dade cultural de uma determinada comunidade, por Os requisitos ambientais considerados no pro-
meio de técnicas que são transmitidas por gerações jeto atendem critérios desde a obtenção de matéria-
entre seus descendentes, caracterizada pelo traba- -prima, passando pelos sistemas de produção, distri-
lho em equipe, com divisões de tarefas específicas. buição, implantação, uso, manutenção e demolição
Contudo, nem sempre essas técnicas são aprimora- ou descarte do artefato. Portanto, cada decisão to-
das, ou atendem às exigências do mercado quanto mada no processo de desenvolvimento do produto,
à qualidade dos produtos, quantidade de peças de- reflete nas etapas do seu ciclo de vida e consequen-
mandadas ou usabilidade. Havendo a necessidade de temente em maior ou menor impacto ao meio am-
uma organização quanto aos aspectos gerenciais e biente (MANZINI e VEZZOLI, 2005).
metodológico dos processos. Primeiramente os requisitos ambientais con-
O processo de desenvolvimento de produtos – sideram os tipos de recursos a serem empregados
PDP compreende as fases de pré-desenvolvimento, no projeto, os primários ou renováveis (cultivados,
desenvolvimento e pós-desenvolvimento, sendo que manejados) ou não-renováveis (extraídos) e os se-
na fase de pré-desenvolvimento tem-se como prin- cundários ou reciclados (provenientes de refugos); o
cipal atividade a elaboração do plano estratégico de deslocamento entre a extração à produção e a sua
negócios e de produtos; na fase de desenvolvimen- transformação em sub-produtos ou beneficiamento
to encontram-se as etapas de projeto informacio- de peças e componentes, avaliando os gastos ener-
nal, projeto conceitual, projeto detalhado, prepara- géticos e as emissões.
ção da produção e o lançamento do produto; e no Na produção ou desenvolvimento dos produ-
pós-desenvolvimento as atividades de acompanhar e tos os requisitos ambientais orientam as três prin-
descontinuar os produtos (AMARAL et al., 2006). cipais atividades: a transformação dos materiais, a
A metodologia de desenvolvimento de pro- montagem e o acabamento. Nesta etapa são consi-
dutos abrange etapas definidas e controladas para derados a eficiência do maquinário, a quantidade de
que haja um baixo nível de riscos econômicos e pro- processamentos para a confecção das peças, que de-
cessuais. Quando se direciona tal metodologia pa- corre do tipo de planejamento de projeto, a redu-
ra o desenvolvimento de produtos sustentáveis, se ção ou reutilização de peças, o sistema de controle 111
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e avaliação das atividades, do treinamento e capaci- ambientais, assim como a antecipação de novas leis e
dade dos funcionários, do tipo de energia emprega- padrões, apresentando uma política ambiental defini-
da e da verificação dos resíduos gerados (MANZINI da; (ii) escapistas, que atendem às regulamentações
e VEZZOLI, 2005). ambientais, mas não planejam uma antecipação à nor-
Na fase da distribuição há três etapas fundamen- mas e/ ou padrões e, poucas apresentam uma política
tais: a embalagem, o transporte e a armazenagem, fa- ambiental explícita e buscam abandonar a produção
zendo parte destas, a energia para o transporte, o uso atual para explorar novos mercados; (iii) as inativas
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

dos recursos para a produção dos próprios meios e ou indiferentes, que apresentam baixo risco ambiental
as estruturas para a estocagem ou armazenamento. e pequeno potencial de mercado para bens ambien-
O descarte caracteriza-se com a fase da elimi- tais, têm uma política explícita, mas não parecem fa-
nação do produto, abrindo uma série de opções so- zer uso dela; (iv) as ativistas, semelhantes às defenso-
bre o seu destino final. ras de portfólio, que contudo, dão maior importância
Pensar em uma produção industrial sustentável em explorar novos mercados.
é considerar uma gestão de negócio e projeto estru- Outra forma de classificação, proposta por
turada com todas as avaliações das etapas e seus ris- Sharma et al. (1999), divide as estratégias em reati-
cos. Entretanto, quando se direciona o foco a uma vas e proativas. As reativas são aquelas nas quais as
cadeia produtiva artesanal, muitos dos cuidados não ações ambientais só serão tomadas mediante uma
são considerados, gerando um maior número de er- imposição legal ou normativa, visando apenas a man-
ros e consequentemente baixa qualidade das peças e ter a conformidade com as regulamentações ambien-
maior desperdício. tais. Já as estratégias proativas visam a obter vanta-
Na produção artesanal do município de Alcân- gem competitiva, com a melhoria da imagem, iden-
tara – MA, observa-se que muitos dos requisitos am- tidade, reputação organizacional, diferenciação de
bientais não são praticados, mas algumas estratégias produtos, além da redução de custos, melhoria na
de sustentabilidade são consideradas, tanto pelo la- produtividade e inovação através da reengenharia de
do do impacto que a atividade pode causar ao meio, vários processos operacionais.
como é o caso da consciência pela preservação das O greening corporativo é outra forma de tipifi-
fontes de matérias-primas em decorrência da neces- cação das estratégias ambientais, que as classifica em
sidade pela perpetuação da atividade, como pelo lado quatro tipos: reativo deliberado, não realizado, ati-
econômico, como é o caso do reaproveitamento das vo emergente e proativo deliberado. No reativo de-
peças danificadas que alguns processos como o da ce- liberado há um fraco envolvimento por parte da ad-
râmica podem ser triturados e moldados novamente. ministração do negócio às práticas ambientais, con-
Souza (2002) propõe uma classificação por tipo- sideradas como exigências de normas e legislações,
logia quanto as estratégias ambientais adotadas em sis- sendo realizadas apenas para adequações e/ou cum-
temas produtivos: (i) defensoras de portfólio, que cor- primento das regulamentações, assemelhando-se aos
respondem geralmente aos maiores negócios do se- conceitos de modelo de conformidade. No greening
112 tor, que priorizam o atendimento às regulamentações não realizado há o conhecimento dos conceitos de
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gestão ambiental, há uma atenção a estes conceitos, 4.2.1. Estudo de caso:


mas na prática o negócio prioriza o processo tradi-
cional para atender as metas de produtividade, pois Neste estudo foi utilizado o método estudo de
são corporações de alto grau de competitividade e os caso descritivo, recomendado para pesquisas nas si-
custos das ações ambientais não devem ser repassa- tuações em que o fenômeno é abrangente e comple-

Capítulo 4
dos para o produto. O ativo emergente é constituí- xo, e que deve ser estudado dentro do seu contex-
do de práticas proativas dentro do processo de pro- to, por meio de observações de atividades e/ou gru-
dução visando inovações ambientais para os produ- pos de indivíduos (YIN, 1994).
tos. No greening proativo deliberado a administra- Para a coleta de dados foram realizadas en-
ção do negócio valoriza e aplica as práticas ambien- trevistas através de roteiros semiestruturados com

Estratégias ambientais para produtos artesanais


tais não apenas como estratégia mercadológica, mas perguntas abertas e fechadas e observações in loco
como compromisso e responsabilidade socioambien- nas comunidades artesãs.
tal. Todas as práticas internas e externas são avalia- Através do PDP (Processo de Desenvolvimen-
das, considerando a melhoria contínua da produção to de Produtos – AMARAL et al., 2006) listaram-
e a inovação das ações ambientais que poderão servir -se as principais atividades de cada etapa do desen-
como futuras normas ou regulamentações (WINN e volvimento de produtos, relacionando-as às ações
ANGELL, 2000). ambientais baseadas em conceitos e referências
Este estudo trata da avaliação das estratégias
ambientais adotadas pelas comunidades artesãs que
exploram e fabricam seus produtos, tendo como ba-
se de análise o uso das etapas do PDP.

4.2 Material e métodos

Para o desenvolvimento deste trabalho reali-


zaram-se visitas as comunidades artesãs de Itama-
taiua, Brito e Santa Maria, localizadas no município
de Alcântara-MA.

113
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bibliográficas (FIGURA 1), para auxiliar na análise das Winn e Angell, (2000), Sharma et al., (1999) e Sou-
práticas sustentáveis. za (2002), que a partir da análise do conjunto de da-
Para a medição utilizaram-se graus de aplicação dos, estes foram tabulados e representados por ta-
dos requisitos ambientais, de acordo com a seguinte belas e gráficos.
escala: 0 (zero) não aplica os requisitos; 1 (um) apli-
ca de maneira insuficiente; 2 (dois) aplica eventual- 4.3 Resultados e discussão
mente; 3 (três) aplica regularmente ; 4 (quatro) aplica
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

satisfatoriamente e 5 (cinco) aplica completamente. Nas tabelas a seguir apresentam-se as atividades


Posteriormente, foram classificadas quanto às artesanais pesquisadas no município de Alcântara e os
tipologias de estratégias ambientais propostas por requisitos ambientais praticados pelas comunidades.

Figura 1 – Interação entre as etapas do PDP e estratégias ambientais


PDP
Estratégias ambientais
Processo de desenvolvimento de produtos
Aquisição de matéria-prima
Pré-desenvolvimento Planejamento estratégico Planejamento do processo
Planejamento da vida útil
Alternativas de novos materiais
Projeto Informacional Mercados para prod. Sustentáveis
Previsão de impactos de produtos
Requisitos ambientais
Projeto Conceitual
Alternativas de redesign
Prolongamento da vida útil
Desenvolvimento Projeto Detalhado
Processamento com menos impacto
Protótipos com materiais ecológicos
Preparação para a produção Avaliação dos impactos existentes
Alternativas para processo
Marketing ecológico
Lançamento do produto
Orientações para uso e pós-uso
Desempenho dos produtos
Acompanhar os processos
Reaproveitamento dos sistemas
Sistema de interação com mercado
Pós-desenvolvimento
Reuso de peças e componentes
Remontagem
Descontinuar o produto
Reciclagem
Condicionamento adequado
114
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4.3.1 Itamatatiua – Cerâmica Por se tratar do material argila, e ser extraído


manualmente, essa extração está vinculada as con-
A comunidade de Itamatatiua é caracterizada pe- dições climáticas locais e a sua disponibilidade. No
lo trabalho com argila, extraída e beneficiada pela po- decorrer de um ano, apenas nos meses de outubro
pulação quilombola, que constitui essa comunidade e a dezembro, esta pode ser realizada, fornecendo a

Capítulo 4
expressa em seus produtos aspectos da sua cultura. matéria-prima para o ano inteiro. É nesse período
Contudo, a qualidade destes associadas ao PDP, assim que o terreno encontra-se seco, não oferecendo ris-
como a percepção quanto aos aspectos ambientais, cos às artesãs.
ainda são pouco considerados (TABELA 1). Por se utilizarem de recursos naturais existen-
Da etapa do planejamento estratégico, somen- tes em abundância como argila e madeira, esta úl-

Estratégias ambientais para produtos artesanais


te o planejamento do processo recebe especial aten- tima utilizada no processo de queima das peças, as
ção quanto aos aspectos ambientais, pois da sua exe- artesãs acreditam, assim, que a quantidade extraída
cução depende a produção anual da comunidade. não gera nenhum tipo de impacto.

Tabela 1 – Quadro do processo de desenvolvimento de produtos da comunidade de Itamatatiua


PDP
Processo de desenvolvimento Estratégias ambientais 0 1 2 3 4 5
de produtos
Aquisição de matéria-prima x
Planejamento
Pré-desenvolvimento Planejamento do processo x
estratégico
Planejamento da vida útil x
Alternativas de novos materiais x
Projeto
Mercados para prod. Sustentáveis x
Informacional
Previsão de impactos de produtos x
Requisitos ambientais x
Projeto Conceitual
Alternativas de redesign x
Prolongamento da vida útil x
Desenvolvimento Projeto Detalhado
Processamento com menos impacto x
Protótipos com materiais ecológicos x
Preparação para a
Avaliação dos impactos existentes x
produção
Alternativas para processo x
Lançamento do Marketing ecológico x
produto Orientações para uso e pós-uso x
Acompanhar Desempenho dos produtos x
os processos Reaproveitamento dos sistemas x
Pós-desenvolvimento Sistema de interação com mercado x
Reuso de peças e componentes x
Descontinuar o
Reciclagem x
produto
Condicionamento adequado x
115
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Em relação às orientações para uso e pós-uso, orgânica, sem uma pré-definição de onde uma começa
atividades encontradas na fase de acompanhamen- e a outra termina, de maneira que alguns requisitos do
to do desempenho do produto, estes não acontecem PDP acabam não fazendo parte de seu processo produ-
de forma contínua, como algo intrínseco ao processo, tivo, nem as estratégias ambientais.
mas ocorrem no sentido inverso, partindo, primeira-
mente do consumidor para o produtor – as artesãs. 4.3.2 Brito – Redes de dormir
Na etapa do planejamento do processo, a maior
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

preocupação da comunidade artesã de Itamatatiua, es- A comunidade de Brito produz redes de dormir
tá em preservar o fazer tradicional, para que o conhe- por meio de fibras de algodão compradas em forma de
cimento adquirido através de gerações não se extinga e novelos nos mercados de São Luís, a capital do Esta-
em mostrar a sua riqueza cultural, através do seus pro- do. Os fios são trançados e tingindos em um processo
dutos: potes, bonecas que retratam seu cotidiano, en- artesanal que representa desenvolvimento econômico
fim, de sua cerâmica. Nesse processo, o planejamen- para essa comunidade. A tabela 2 apresenta as relações
to é tímido e as etapas acabam se realizando de forma processuais e ambientais aplicadas pela comunidade.

Tabela 2 – Quadro do processo de desenvolvimento de produtos da comunidade de Brito


PDP
Estratégias ambientais 0 1 2 3 4 5
Processo de des. de produtos
Aquisição de matéria-prima x
Planejamento
Pré-desenvolvimento Planejamento do processo x x
estratégico
Planejamento da vida útil x
Alternativas de novos materiais x
Projeto
Mercados para prod. Sustentáveis x
Informacional
Previsão de impactos de produtos x
Requisitos ambientais x
Projeto Conceitual
Alternativas de redesign x
Prolongamento da vida útil x
Desenvolvimento Projeto Detalhado
Processamento com menos impacto x
Protótipos com materiais ecológicos x
Preparação para a
Avaliação dos impactos existentes x
produção
Alternativas para processo x
Lançamento do Marketing ecológico x
produto Orientações para uso e pós-uso x
Acompanhar Desempenho dos produtos x
os processos Reaproveitamento dos sistemas x
Pós-desenvolvimento Sistema de interação com mercado x
Reuso de peças e componentes x
Descontinuar o
Reciclagem x
produto
Condicionamento adequado x
116
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Em Brito, observa-se que as etapas da produção Das três comunidades observadas, Santa Maria é
são pré-definidas, determinadas pela aquisição da maté- a que mais demonstra a preocupação em produzir de
ria-prima, o que ocorre somente quando há uma solici- maneira sustentável, pela própria percepção de que
tação de encomenda. Como as redes são confecciona- a matéria-prima usada para o seu trabalho e da qual
das a partir de fios de algodão e em Alcântara este insu- tiram seu sustento possa se extinguir. A partir des-

Capítulo 4
mo é mais caro, os novelos são comprados em São Luís, sa observação passaram a se posicionar de forma di-
o que obriga as artesãs a repassarem o valor de todas as ferente em relação à extração da palmeira do buriti.
despesas para o produto acabado. Desta forma, a preo- A partir do nascimento da palmeira, se espera
cupação quanto à matéria-prima, se refere principalmen- de 3 à 5 anos para poder retirar o “olho” - parte uti-
te a fatores econômicos e não a ambientais. lizada na produção das peças, e daí em diante, fazem

Estratégias ambientais para produtos artesanais


Outro aspecto identificado foi na etapa de lan- essa extração a cada dois meses, demarcando as es-
çamento do produto, em que há orientações pelo pécies e sempre retirando um “olho”, por palmeira,
uso e pós-uso do produto, garantindo sua maior du- permitindo que outro se desenvolva e a planta não
rabilidade, por meio de informações quanto à lava- se torne estéril. Além disso, preocupam-se em rea-
gem, quantidade de usuários etc. Além de garantias proveitar tudo que não é utilizado em sua produção,
para seus componentes, como os punhos. como é o caso da palha, usada para cobrir as casas e
O requisito ambiental de desempenho dos pro- para fazer o “cofo” – utensílio utilizado para embala-
dutos na etapa de acompanhar processo, favorece o gem e transportes de frutas e pescados.
aumento do ciclo de vida, aplicado pela comunidade Tanto para a aquisição da matéria-prima como
na forma do trançado das fibras, que apresentam uma para o planejamento do processo que ocorre na eta-
alta qualidade de amarração, podendo sustentar du- pa de planejamento estratégico, as considerações
as pessoas juntas, confortavelmente. A qualidade dos ambientais são evidentes. Nas etapas de projeto in-
produtos é de reconhecimento local e regional. formacional, o mercado acaba influenciando nessa
Os requisitos ambientais aplicados na comuni- decisão, o que gera uma incorporação desses requi-
dade de Brito ainda são acanhados, mas a consciên- sitos no projeto, uma preocupação com o aumento
cia de práticas mais sustentáveis é notória, mas os fa- do ciclo de vida e de procedimentos menos impac-
tores econômicos ainda se sobressaem. tantes, sendo possível uma avalição, menos tímida do
resultado da produção.
4.3.3 Santa Maria – Fibra do buriti Na comunidade de Santa Maria o processo pro-
dutivo adota métodos que garantem a qualidade e a du-
A comunidade de Santa Maria produz artigos pa- rabilidade do artesanato produzido, além de considerar
ra decoração e uso pessoal como: jogos americanos, requisitos ambientais que são percebidos pelo merca-
centros de mesa, bolsas, chapéus, entre outros, pro- do. Este pode influenciar e promover melhorias nos sis-
venientes da extração das palhas da palmeira de buriti. temas produtivos, principalmente no artesanato, onde
Tais produtos já apresentam considerações processuais o artesão, em sua maioria, tem um contato mais próxi-
e ambientais como mostra a tabela 3 (página seguinte). mo com o consumidor em relação a outros negócios. 117
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Tabela 3 – Quadro do processo de desenvolvimento de produtos da comunidade de Santa Maria


PDP
Estratégias ambientais 0 1 2 3 4 5
Processo de des. de produtos
Aquisição de matéria-prima x x
Planejamento
Pré-desenvolvimento Planejamento do processo x
estratégico
Planejamento da vida útil x x
Alternativas de novos materiais x x
Projeto
Mercados para prod. Sustentáveis x
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Informacional
Previsão de impactos de produtos x
Requisitos ambientais x
Projeto Conceitual
Alternativas de redesign x
Prolongamento da vida útil x
Desenvolvimento Projeto Detalhado
Processamento com menos impacto x
Protótipos com materiais ecológicos x
Preparação para a
Avaliação dos impactos existentes x
produção
Alternativas para processo x
Lançamento do Marketing ecológico x
produto Orientações para uso e pós-uso x
Acompanhar Desempenho dos produtos x
os processos Reaproveitamento dos sistemas x
Pós-desenvolvimento Sistema de interação com mercado x
Reuso de peças e componentes x
Descontinuar o
Reciclagem x
produto
Condicionamento adequado x

As comunidades apresentaram estratégias am- Figura 2 – Tipo de estratégias ambientais


bientais classificadas em sua maioria como indiferen- aplicadas pelas comunidade artesãs
tes, sendo que não havia nenhuma avaliação das ações
adotadas. Apenas uma apresenta um cenário escapis- 3
tas e com greening reativo deliberativo (FIGURA 2).
Para as comunidades artesãs do município de 70%
Alcântara – MA, as práticas ambientais podem pro- 2
mover a melhoria do processo e consequentemen-
30%
te da imagem dos seus produtos diante do merca- 1
do. Contudo, aplicar essas estratégias é considerado
dispendioso e moroso, causando desconfiança quan- 0
to ao argumento de redução de custos e otimização green. reativo greening não greening ativo green. proativo
do processo. Assim, pode-se estimar que 30% das deliberado/ realizado/inativas emergente/ deliberado/
escapista ou indiferentes ativistas defensoras de
comunidade ainda agem de forma reativa, ou seja, só portfólio
118 altera o processo quando pressionado por políticas
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públicas ou pelo mercado, e 70% são inativas ou in- Referências


diferentes às estratégias ambientais, havendo o des- AMARAL, D.C. et al. (2006). Gestão de desenvolvimento
compromisso com a questão ambiental, podendo a de produtos: uma referência para a melhoria do processo. 1
ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
qualquer momento parar ou mudar de ramo quando
se sentirem pressionadas. ASKIN, R. G., STANDRIDGE, C. R. (1993). Modeling and

Capítulo 4
analysis of manufacturing systems. New York: John Wi-
ley & Sons, 1993.
4.4 Considerações finais
MALAGUTI, C. (2005). Requisitos ambientais para o de-
senvolvimento de produtos: manual técnico. São Paulo:
O cenário da produção e das estratégias am- CSPD - Centro São Paulo Design, 2005.
bientais predominante nas comunidades artesãs do MANZINI. E.; VEZOLLI, C. (2005). O desenvolvimento de

Estratégias ambientais para produtos artesanais


município de Alcântara - MA é de greening não reali- produtos sustentáveis: os requisitos ambientais dos produ-
zado ou indiferente ou inativo, baseado na adoção de tos industriais. São Paulo: Edusp/1ed, 2005.
poucas práticas ambientais e quando existentes, de SHARMA, et al. (1999). Corporate environmental responsive-
caráter reativo e pontual, visando somente a aten- ness strategies: the importance of issue interpretation and or-
der às demandas do mercado e exigências econômi- ganizational context. The Journal of Aplied Behavioral
Science. v.35, Mar 87-108, 1999.
cas inerentes ao processo pouco eficiente.
O processo de desenvolvimento de produto SOUZA, R. S. (2002). Evolução e condicionantes da gestão
ambiental nas empresas. REAd. Revista eletrônica de ad-
adotado é resultado das características do tipo de se-
ministração, v. 8. Dez 51-70. Porto Alegre: 2002.
tor, com baixa capacidade de investimento, mão de
WINN, M. ANGELL, L.C. Towards a process model of cor-
obra pouco capacitada, baixo nível tecnológico, o que porate greening. In: Organizational Studies. Nov, 2000.
corrobora a baixa inserção de decisões ambientais. Disponível em: <http://oss.sagepub.com/cgi/content/abs-
Quando adotadas, as estratégias ambientais tract/21/6/1119>, consulta realizada no dia 20/12/2010.
não são monitoradas e avaliadas, não gerando indi- YIN, R. K. (1994). Case study research – design and metho-
cadores para avaliação de eficiência e estabelecimen- ds. 2. ed. London: Sage. 1994.
to de novas metas.
O consumidor pode ser um importante agen-
te para uma maior valorização do aspecto ambien-
tal na produção, pois sendo um modelo de produção
artesanal, é responsável por grande parte das deci-
sões de produto.
Há necessidade de uma melhor estruturação do
modelo administrativo das comunidades, para que se
possa efetivamente implementar requisitos ambien-
tais e se atingir uma maior sustentabilidade na pro-
dução, como a criação de arranjos produtivos e coo-
perativas com gestão administrativa estruturada. 119
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

120
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Capítulo 5
Identificando valores e valorizando identidades
Raquel Noronha

Capítulo 5
Ao final deste breve percurso, buscamos ago- pela própria identidade com a categoria território e
ra apontar algumas sínteses e, a partir deste mapea- a conotação simbólica nela contida, assumindo as-
mento, identificar possibilidades de continuidade pa- sim uma dimensão mais ampla, contemplando os as-
ra este processo de identificação de valores, a fim de pectos sociais, as relações com a biodiversidade do

Identificando valores e valorizando identidades


ampliar a comunicação da identidade do artesanato território, e as dimensões culturais, relacionadas aos
dos povoados de Brito, Santa Maria e Itamatatiua. saberes e fazeres tradicionais, constituindo-se como
Segundo Krucken (2009, p.29), [...] “Ao avaliar um patrimônio (KRUCKEN, 2009).
um produto, o consumidor procura informações que Durante todo o processo de inventário das ca-
possam atuar como ‘garantias’ ou ‘pistas’: a identifi- deias produtivas, pensávamos se haveria um traço
cação dos produtores, os elementos da história do cultural que identificasse a produção do artesanato
produto, os marcadores de identidade e os indicado- dos povoados como uma produção do território ét-
res de qualidade socioambiental do processo de pro- nico de Alcântara.
dução.” A partir destas indicações, iremos iniciar al- Nossa proposta é apontar discursos e práti-
gumas sínteses. cas que corroborem para a construção de um cená-
Durante o percurso foi possível identificar re- rio sobre as identidades e os valores do artesanato
presentações que relacionam o produto ao territó- de Alcântara, e não para a confirmação de uma hipó-
rio, às tradições do lugar e às práticas sociais estabe- tese pré-concebida. A questão da identidade étnica
lecidas perante os ciclos da natureza. como amálgama da produção artesanal parecia-nos
Trabalhamos na perspectiva de que os saberes um fio condutor, um traço comum entre todos os
e fazeres que mapeamos estão ligados ao território grupos. Assim, pensando conforme Almeida (2002,
no qual eles são produzidos. Desta forma, mais do p.12), que etnicidade abrange também uma interação
que uma prática artesanal, é uma manifestação da com uma certa maneira de produzir e de se relacio-
territorialidade, ou seja, uma materialização – na for- nar com a natureza, é possível afirmar que o artesa-
ma de artefatos – da identidade local. Define-se es- nato da rede, do linho e do barro tem uma ancoragem
ta manifestação a partir da categoria terroir – como no território no qual são produzidos e, desta forma,
o capital territorial – importante valor a ser comuni- associam-se à categoria territorialidade.
cado aos consumidores dos produtos. Podemos tra- Observamos que há a incidência de práticas ar-
duzir a categoria terroir como produto com identida- tesanais dos mesmos produtos em outras regiões
de local, mas manteremos o uso da forma francesa, do Maranhão, o que inicialmente poderia parecer
121
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contraditório com o que acabamos de afirmar, po- Walmir, de Santa Maria: A Santa Maria é uma
rém a designação da origem da produção é um fa- comunidade de imigrante, ela não é uma comuni-
tor diacrítico quando as artesãs identificam os valo- dade assim de pessoas nativa aqui da cidade de Al-
res dos seus produtos, de forma a positivar ou mes- cântara, né?! É uma das comunidades de Alcânta-
mo desqualificar a sua produção. ra que é de imigrante. Há pessoas de Barreirinha.
Quando convidamos as artesãs a simularem Que, na verdade, quem trouxe o artesanato pra
uma venda de seus produtos, em atividade realizada cá foi o pessoal de Barreirinha e da Tutóia, Mor-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

no seminário de trabalho, uma das estratégias de va- ros, Humberto de Campos, Urbano Santos.
lorização dos produtos foi a comparação com outras
comunidades produtoras: Mesmo que a origem do artesanato tenha si-
do em outro lugar, como observamos no trecho aci-
Irene, de Itamatatiua: A nossa cerâmica é mais ma, há uma diferenciação em relação a este outro,
escura, porque o nosso barro é preto. Fica em um processo dinâmico, no qual a territorialidade
bem mais bonito do que as de outros lugares. aflora na expressão das diferenças, nas bordas e nos
A cerâmica de Itamatatiua é conhecida por ser limites da identidade local:
mais escura. Pesquisadora: O que caracteriza o artesanato
A mesma referência ao lugar também é obser- de vocês?
vada quando são apontados alguns problemas dos Celeste, de Santa Maria: O trabalho com o li-
produtos: nho é o mesmo. O linho é o mesmo deles lá tam-
bém, mas chegando lá, eles não chamam de bor-
Pesquisadora: Porque que vocês colocam areia ra, eles chamam de fibra. Só que a fibra pra gen-
no barro? te aqui é uma coisa, e pra eles lá é outra. Porque
Angela, de Itamatatiua: Porque a nossa cerâ- a fibra ela é mais resistente. A fibra, ela é macia;
mica quebra muito, quando queima. A de Rosá- ela não estraga com facilidade, e essa borra, ela
rio não quebra assim não. estraga com facilidade. Aí eles lá trabalham com
Pesquisadora: E quem disse pra vocês que tem a borra. Aí eles misturam e nós não. A gente só
que colocar areia? Assim quebra menos? trabalha com a fibra mesmo. Por isso que o linho
Angela: Ah, isso foi a avó da minha avó que dis- de Santa Maria é melhor... Dá pra você ver, como
se. Os antigos... A cerâmica de Itamatatiua que- naquele produto que tava pronto, é fino o teci-
bra porque tem pouca areia no barro, por isso do. Já o deles é a parte mais grossa...
que a gente coloca... Porque senão, a gente abre Eudialite, de Santa Maria: E o bater deles [de
o forno e perde o trabalho, tá tudo rachado... Barreirinhas] lá não é como o daqui. O bater, eles
não une. É falta de não querer bater pra economi-
Em outro depoimento, a referência da constru- zar fibra. Não unir, economiza fibra e faz o traba-
ção da identidade do artesanato também se constrói lho mais rápido. Economiza mão-de-obra. Com o
122
em relação ao outro: tempo ele quebra, porque a palha quebra.
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Desta forma, é possível compreender a cons- forma de exercício de poder, como se as necessidades
trução da identidade do artesanato destas comu- fossem as mesmas em ambos os modos de produção.
nidades a partir de sua relação com o lugar onde A partir das reflexões das artesãs sobre a va-
são produzidos. Ainda nos referenciando em Almei- riação da produção em relação às estações do ano,
da (2002), o território étnico de Alcântara é cons- nossa principal síntese reside no fato que a produ-

Capítulo 5
truído a partir das múltiplas e específicas formas de ção está intimamente relacionada ao clima e ao tem-
apropriação e uso da natureza. po demandado para esta produção nas duas princi-
Uma outra característica importante na constru- pais estações aludidas: o verão e o inverno, o período
ção desta identidade é a interferência do clima sobre a seco e o período das chuvas, respectivamente.
produção, como foi possível observarmos no item 3.2 A lógica da produção está associada a estas va-
do capítulo 3, quando tratamos da sazonalidade da pro- riações climáticas, assim como a uma série de ou-

Identificando valores e valorizando identidades


dução. A lógica da demanda não considera os limites e tras atividades desempenhadas pelas artesãs, além
o tempo da produção artesanal, causando uma profun- da própria produção artesanal, como o cultivo da
da frustração nas artesãs pelo sentimento da perda da horta, as atividades domésticas, e o próprio artesa-
encomenda. A baixa na produtividade nestes períodos nato de subsistência. Uma das principais caracterís-
de chuva obriga as artesãs a buscarem novas formas de ticas do que é chamado artesanato reside exatamen-
sustento, o mesmo acontece também de forma geral te nesse tempo de espera, de reclusão, de respeito
com as novas gerações, que não se interessam pela ati- às condições naturais que normatizam a produção.
vidade artesanal, pois não percebem o retorno finan- O caráter terroir de um produto está justamente re-
ceiro. As jovens deixam suas comunidades para ir em lacionado a este modus operandi, esta forma específi-
busca de emprego na capital. ca de produção ritualizada que só quem conhece as
Identificamos dois tipos de valores que são dinâmicas do lugar tem condições de observar e res-
acionados quase em um par dicotômico: o dinhei- peitar, pois sabem que é uma condição sine-qua-non
ro e a subsistência. Um e outro não são interde- para sua realização.
pendentes, se tratados a partir da perspectiva do lo- A frustração das artesãs quando perdem uma en-
cal. Contudo, em uma abordagem externa ao povo- comenda pela falta de prazo, ou quando são obrigadas
ado, a lógica da escassez de recursos prevalece, e a a deixar o povoado, ou veem uma de suas filhas fazen-
subsistência passa a ser significado de pobreza, mais do o mesmo, para buscar trabalho e renda fora de Al-
uma vez inserindo as artesãs na lógica de outro tipo cântara, está ligada ao processo de inserção desta pro-
de produção, que não o artesanal. dução artesanal em sistemas assimétricos de produção,
Processo análogo nos é apresentado por Sahlins cujas demandas são provenientes do mercado. O valor
(2007), quando analisa o modo de produção dos po- é atribuído ao resultado do artesanato, ao arte-
vos caçadores e coletores, considerando-os como fato propriamente dito, mas não ao seu proces-
uma verdadeira sociedade afluente. A noção de far- so produtivo, que muitas vezes é ignorado.
tura ou escassez é uma construção de uma visão Não estamos, com isso, defendendo um isola-
sobre a forma de produção do outro e, portanto, uma mento da produção artesanal perante as exigências 123
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do mercado, em busca de uma suposta pureza e pre- O que ressaltamos aqui é que são concepções
servação da tradição. Estamos sim, problematizan- diferentes de tempo – o tempo do artesanato e o
do a forma como estas artesãs e seus artefatos inse- tempo da encomenda. Para as artesãs de Alcân-
rem-se num sistema maior e mais poderoso, com um tara, o tempo do artesanato é um, que varia de acor-
tempo diverso do seu. do com a disponibilidade da matéria-prima, os tem-
Ainda nos referenciando em Sahlins, cremos pos de secagem, e como o material se comporta em
que este processo de frustração das artesãs peran- relação à umidade do ar. Estes parâmetros são vari-
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

te um tempo que não conseguem acompanhar é ca- áveis e oscilam de acordo com o período do ano. As
racterístico de uma tomada de consciência sobre no- encomendas, ainda que poucas, chegam a toda épo-
vas necessidades e aspirações, que não são mais sa- ca, sem que a ação do clima seja considerada e, por-
tisfeitas no âmbito dos povoados, nem na economia tanto, sem atentar-se para a própria característica
de subsistência. do produto terroir – a sua ligação com o meio am-
Ao propormos o mapeamento de suas cadeias biente, com os costumes e as tradições associados
produtivas, estamos abrindo a “caixa-preta” da pro- aos processos produtivos.
dução artesanal, e com isso, mostrando que o tem- No processo de comunicação das identidades
po – muitas vezes considerado longo, aos olhos lei- de produtos locais é importante ressaltar e identi-
gos, está em consonância com a multiplicidade de ficar este valor, o da temporalidade dos proces-
microprocessos envolvidos em cada uma das cadeias sos. Valorizar uma identidade local consiste em ad-
produtivas. Comunicar valores consiste em compar- mitir que o valor daquele produto esteja principal-
tilhar os códigos dos agentes envolvidos nas cadeias: mente nos aspectos simbólicos relacionados a um
os que produzem, os que consomem e os que me- saber local, uma forma específica de relação com a
diam. Os códigos compartilhados entre as artesãs natureza. Uma demanda de mercado que abstraia o
diferem dos códigos compartilhados pelas pessoas fator temporalidade de uma produção artesanal
que fazem as encomendas. está negando o próprio cerne do artesanato: o tem-
Como forma de sistematizar este tempo do ar- po da espera, o tempo da narrativa, o tempo que es-
tesanato de Alcântara, propomos a construção de ta tradição precisa para ser contada.
um calendário (próxima página), considerando a ex- Ao inventariarmos as cadeias produtivas do ar-
tração da matéria-prima e a etapa da produção, no tesanato de Alcântara, pelo ponto de vista da produ-
seu sentido mais amplo. ção, temos alguns indícios de que há alguns importan-
Uma postura etnocêntrica pode identificar este tes valores que precisam ser comunicados. Porém,
tempo maior de produção como uma falta de inte- pouco sabemos sobre as suas condições de consu-
resse em produzir, em “não saber ganhar dinheiro”, mo. Quais são os valores identificados nos produtos
que traduz uma falta de habilidade em lidar com a co- pelos seus consumidores? O que faz alguém comprar
mercialização da produção, ou mesmo coíra [pregui- a rede, o linho ou a louça, provenientes de cada um
ça], como uma das artesãs nos relatou. dos povoados pesquisados? Esta é uma resposta que
124
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Capítulo 5
Identificando valores e valorizando identidades
legenda
produção extração/aquisição
de matéria prima
contínua
frequente
ocasional
rara
125
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ainda temos de buscar, de modo que esta pesquisa anteriormente, baseados na linguagem do saber lo-
– felizmente – não se encerra aqui. Porém, convida- cal e na da teoria, posicionamo-nos em lugar estra-
mo-los, à guisa de uma breve conclusão, e não de um tégico no processo de comunicação destes valores
ponto final sobre o assunto, à reflexão sobre o papel apreendidos e na tangibilização dessas identidades.
dos agentes mediadores destas comunicações de va- Ao discorrer sobre o papel do designer em seu
lores – os designers. ensaio O homem no centro: o designer, C. Wri-
Ao penetrar no sistema simbólico dos valores ght Mills aponta para a existência de uma experiência
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

associados ao artesanato de Brito, Santa Maria e Ita- de segunda mão que é vivenciada por cada um de nós,
matatiua, para melhor entendê-lo, estamos nós, de- e esta é uma regra para compreendermos a condição
signers, em um patamar diferenciado de conheci- humana. Percorrendo o ensaio, nos deparamos com
mento sobre tais fazeres e saberes territoriais. uma descrição das atividades do designer na socieda-
Coube-nos, durante todo o procedimento de de norte-americana, das formas de atuação do desig-
inventário, o processo de tradução destes valores, ner como profissional que media a construção de um
hierarquizando, sistematizando e codificando a ex- mundo artificial e totalmente voltado para “as armadi-
periência do fazer do outro. lhas dos maníacos da produção e distribuição”.
Indicar o que deva se comunicado, identificar Não é sem razão que o título original do en-
potencialidades e fragilidades, com o objetivo de de- saio, de 1954 – Forças sociais e as frustrações
senhar as cadeias produtivas é uma tarefa delicada. do designer – pareça-nos extremamente contem-
Colocamos em ordem as suas etapas e, muitas ve- porâneo, visto que muitos problemas que observa-
zes, demos nomes a elas. Nomear significa dar exis- mos nas nossas práticas profissionais de hoje este-
tência, dar um lugar no mundo. jam associadas a esta posição central e parcial que o
Este trabalho foi realizado em co-autoria com designer assume na tangibilização de sistemas sêmi-
as artesãs, porém a redação final deste livro nos per- cos, ou melhor, atuando como mediador dos siste-
tence, e assim, aumenta nossa responsabilidade co- mas de produção e de consumo em nossa sociedade.
mo comunicadores destas informações. O exercício Trabalhar com as comunidades artesãs de Al-
do poder está intimamente ligado ao conhecimento cântara nos mostrou empiricamente o que Mills
que se tem sobre determinado conteúdo/realidade e (2009) nos apresentou no seu ensaio, e nos mostra
à possibilidade de comunicá-los, construindo uma in- o quão estratégico é o papel do designer na hierar-
terpretação – próxima ou distante – do que se su- quização destes discursos que mapeamos. Ao dese-
põe que seja a experiência da produção do artesa- nharmos as cadeias produtivas, estávamos sistema-
nato em povoados de Alcântara, no caso deste pro- tizando um conjunto de práticas sociais construídas
jeto. Mas é importante indagar: quem supõe? Com entre diversos atores, e nos inserimos neste territó-
que finalidade? rio, a partir da nossa ação, naquele determinado es-
Ao adotarmos uma postura de traduto- paço e tempo.
res de valores apreendidos in loco, durante o pro- Entendendo territorialidade como a apro-
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cesso estabelecido durante este projeto e descrito priação do espaço pelos atores que nele atuam, e
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estabelecem relações de poder entre si, é possí- como uma estratégia de melhor nos alfabetizarmos
vel dizer que nos tornamos, portanto, também ato- na linguagem do outro, mediando assim o léxico es-
res nestes espaços e a partir daí somos capazes de pecífico daquelas comunidades, do mercado e o re-
construir sistemas sêmicos – ou seja, imagens – pertório teórico do nosso campo de atuação.
desta realidade.

Capítulo 5
É nosso metiér construir imagens/artefatos ela-
borados a partir do domínio de uma linguagem es- O designer no centro O designer no meio
pecífica e direcionados a determinadas condições de
usos e experiências.
A possibilidade de nos aproximarmos de nos-
sos sujeitos de pesquisa e construir coletivamente

Identificando valores e valorizando identidades


a identificação de valores é um processo em análi-
se, sincrônico, e comprometido com o que conside-
ramos o lugar do designer/pesquisador no processo
de comunicação. Esta posição, à qual nos propuse-
mos ocupar, torna o desafio duplamente multiplica-
do, pois o próprio sistema sêmico do designer/pes-
quisador é influenciado pela convivência e sua atua-
ção sob a territorialidade do outro.
Neste processo, somos atores e sujeitos, nos
cabendo um papel hierarquicamente mais próximo
ao dos nossos sujeitos de pesquisa. A nossa percep-
ção sobre a alteridade é exponencialmente sensibi- Referências
lizada, pois nos damos conta dos limites, das fragili- BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7a ed.
dades, das nossas próprias potencialidades e das dos São Paulo: Brasiliense, 1994.
outros, construindo uma relação sincrônica e relati- FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia
vística, de contínuo aprendizado na elaboração dos do design e da comunicação. Rafael Cardoso (org.). São Paulo:
nossos sistemas de informação. Cosac Naify, 2007.
Desta forma, talvez seja possível nos posicio- KRUCKEN, Lia. Design e território: valorização de identi-
narmos de uma forma estratégica no sistema de pro- dades e produtos locais. São Paulo: Studio Nobel, 2009.
dução imposto como um padrão, possibilitando que MILLS, C. Wright. Sobre o artesanato intelectual e ou-
tenhamos, nas nossas atividades profissionais e aca- tros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
dêmicas, uma postura de tradutores efetivos e não RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São
de reprodutores de linguagem. Propomos, com is- Paulo: Ática, 1993.
to, um deslocamento, do centro dos processos para SAHLINS, Marshall. Cultura na prática. Rio de Janeiro: Edi-
o meio deles, entre os artesãos e os consumidores, tora UFRJ, 2007.
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Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

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Sobre os autores

Franklin Veiga Neto é graduando em Design pe- em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Es-
la Universidade Federal do Maranhão. É voluntário tadual do Maranhão. É bolsista CNPq do projeto
no projeto Iconografias do Maranhão. Tem como in- Iconografias do Maranhão na sua quarta etapa, pre-
teresse de estudo o processo de ressignificação da tende atuar na área de gestão em design, com ênfa-
cultura através de ícones e a valorização da identi- se em sutentabilidade.
dade local.
Patrícia Silva de Azevedo possui graduação em
Imaíra Portela de Araujo Medeiros é graduan- Desenho Industrial pela Universidade Federal do Ma-
da em Desenho Industrial pela Universidade Federal ranhão, Mestrado em Ciência e Tecnologia de Madei-
do Maranhão. Participou como voluntária do proje- ras [Esalq] pela Universidade de São Paulo e Douto-
to Iconografias do Maranhão em sua primeira etapa rado pelo Programa de PG em Recursos Florestais da
e agora atua como bolsista CNPq. Pelo segundo ano ESALQ/USP. Exerce o cargo de professor adjunto pe-
consecutivo faz parte da COL - Comissão Organiza- la Universidade Federal do Maranhão. Tem experiên-
dora da LUDO (Semana Acadêmica de Design); inte- cia na área de Desenvolvimento de projeto de produ-
ressa-se pela pesquisa em comunidades artesãs e pre- tos e Engenharia Florestal, com ênfase em tecnologia
tende atuar na área de Design de Jóias, com ênfase no e utilização de produtos florestais, atuando principal-
uso de materiais naturais e pedras brasileiras. mente nos seguintes temas: estratégias e requisitos

Sobre os autores
ambientais, métodos de desenvolvimento de produ-
Marcella Abreu é graduanda em Design pela Uni- tos sustentáveis e produção industrial moveleira.
versidade Federal do Maranhão. Turismóloga (Cen-
tro Universitário do Maranhão - UniCEUMA). Pelo Raquel Gomes Noronha é doutoranda em Ciên-
segundo ano consecutivo faz parte da COL - Comis- cias Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Ja-
são Organizadora da LUDO (Semana Acadêmica de neiro. É designer (ESDI-UERJ), mestre em Ciências
Design); interessa-se por ilustração e pretende atuar Sociais (PPGCSoc-UFMA). Tem como interesses de
no área de concept art e criação de personagens para pesquisa o patrimônio, sua apreensão como um sig-
animações, cinema e games. no de identidade local e suas condições de difusão. É
professora assistente do Departamento de Desenho
Milena Carneiro Alves é graduanda em Desenho e Tecnologia da Universidade Federal do Maranhão,
Industrial pela Universidade Federal do Maranhão e onde coordena o projeto Iconografias do Maranhão.
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Projeto
Iconografias do Maranhão Universidade Federal do Maranhão

Etapa Reitor
Identidade é valor Prof. Dr. Natalino Salgado Filho

Concepção e coordenação Vice-reitor


Prof. Dr. Antonio José Silva Oliveira
Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara

Profª Ms. Raquel Noronha


(DEDET-UFMA)
Pró-reitor de Extensão
Prof. Dr. Antonio Luiz Amaral Pereira
Pesquisadora
Profª. Dra. Patrícia Azevedo Centro de ciências tecnológicas
(DEDET-UFMA)
Diretor de centro
Bolsistas Prof. Dr. Ridvan Nunes Fernandes
Imaíra Portela e Milena Alves
Chefe do Departamento de Desenho e Tecnologia
Prof. Paulo Sérgio Lago de Carvalho
Voluntários
Franklin Veiga e Marcella Abreu EDUFMA

Desenvolvimento de ícones Diretor


Adriano Erick Pinheiro Prof. Dr. Sanatiel de Jesus Pereira
Fábio Santana
Franklin Veiga
Josenilson Mourão Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato em
Juan Carlos Soares Alcântara. Raquel Gomes Noronha, Organizadora. — São
Raiama Portela Luís: EDUFMA, 2011.

Colaboração
Caio Oliveira, Christian Moreira, 130p.
Hamilton Oliveira e Thiago Guará Série Iconografias do Maranhão
ISBN: 978-85-7862-074-5
Edição e projeto gráfico 1. Artesanato - Alcântara Maranhão 2. Artesanato -
Raquel Noronha Alcântara - MA - Cadeias produtivas 3. Cultura popular -
Alcântara - MA I. Noronha, Raquel Gomes
Revisão
Rosangela de Souza Gomes
CDD 745. 594 812 1
CDU 745 (812.1)
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