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O Hinduísmo

VANNINI, Marco. La mística delle grandi religioni – L’induismo.


Tradução José Antonio Mangoni (2014). Firenze: Le lettere, 2010,
pp. 67-110.

Os Vedas

A mais antiga das religiões presentes hoje no mundo e a primeira por importância do
ponto de vista místico não é propriamente uma religião no sentido hebraico, cristão ou
islâmico, a nós mais familiares. Ela não tem um profeta ou uma figura divina fundamental,
não tem uma Revelação única, nem dogmas defendidos por uma instituição eclesiástica
constituída com autoridade de decidir o que é ortodoxo e o que não é. De fato, o
Hinduísmo1 é uma mistura de religiões de diferentes origens, algo parecido com o
paganismo greco-romano, no qual foram assimilados e coexistiam cultos, ritos, mistérios de
diferentes origens, mediados por uma profunda reflexão filosófica.2
A coexistência harmônica de culturas e tradições diferentes é assegurada no
hinduísmo pelo fato que esse tem em comum uma visão de mundo e uma perspectiva de
salvação, ou melhor, de libertação. Libertação do fluir (samsara) doloroso e insignificante
das existências, que se sucedem da vida à morte e da morte à vida, no ciclo infinito das
reencarnações, nas quais o homem paga as conseqüências das ações realizadas na existência
precedente. A partir desse perfil percebe-se logo que a religião (as religiões) se apresentam
na Índia com o mesmo objetivo da especulação filosófica, que tem o mesmo objetivo: a
libertação (moksa). Isso tornou-se possível pelo fato de que aquilo que nos prende, que
obscurece a dor ser visto essencialmente como ignorância (a-vidya), portanto, o que pode
libertar, ‘salvar’, é evidentemente o conhecimento, e isso faz também que a mística seja, na
Índia, eminentemente especulativa, como diríamos em termos ocidentais.

1
O vocábulo hindhu é persa, e significa ‘rio’ (como no sânscrito sindhu), aludindo àquilo que é próprio da
região do Indo e dos ‘cinco rios’ (Panjab) que nele convergem. Paradoxalmente, porém, a palavra ‘hinduísmo’ é
de origem islâmica.
2
Por exemplo, no hinduísmo as três divindades Brahma, Vishnu e Shiva, originariamente são provenientes das
religiões distintas da população aborígene da Índia, e foram assumidas pela especulação filosófica do devir do
homem e do universo – geração, conservação e destruição – constituindo assim a assim chamada Trimurti
(literalmente, as três formas, murti = grego morfe), ou seja a ‘trindade’ que constitui a base do panteão
hinduísta.
O conhecimento (vidya) que salva é apenas um: o re-conhecimento que o próprio
espírito (atman corresponde ao termo alemão atmen, respirar, como se observa no termo
‘atmosfera’), ou o Si individual, não é outro que o Espírito divino, universal (Brahman, depois
personificado no termo masculino Brahmã). Obviamente, contrário a isso, a ignorância que
nos mantém presos com seus ligames é a ilusão de uma auto-subsistência individual
independente do Todo, e do princípio espiritual, divino, universal que mantém unido o Todo;
ou a ilusão de ser um Si indivíduo, distinto de um Deus, além de nós.
Sob este perfil fundamental a religião se apresenta na Índia de modo oposto àquele
usual no Ocidente, onde religião significa essencialmente reconhecer e venerar uma
divindade pensada como distinta do homem, rendendo-lhe culto e obedecendo aos seus
preceitos morais. No hinduísmo, ao invés, os elementos propriamente ‘religiosos’ – o culto,
o rito, a oração, a ascese, e tudo aquilo que o visitante ocidental vê, mas não compreende e
por isso rejeita muitas vezes como superstição – são concebidos apenas como instrumentos
para o despertar do conhecimento do divino que está em nós, do espírito que está
encarnado em cada ser. O fim da religião é, portanto, o retorno do homem no Todo, ou seja,
ao princípio espiritual do qual ele é derivado, e no qual ele estava antes ainda de seu tempo
mortal.
A religião permeia cada aspecto da vinda do indiano, assim cada ato humano é
potencialmente rico de valor religioso, e cada momento da existência pode servir para
despertar o divino que está no homem. De modo distinto, a religião é apenas superstição, ou
mais ainda, blasfêmia, por isso o preceito bramânico ressoa com justiça: “Quem não é
(ainda) um Deus, não venera um Deus.”3
No decurso de sua longa história o hinduísmo atravessou e atravessa múltiplas
formas, contudo, permanece seguramente ancorado nos documentos que constituem as
origens, ou seja, aos Vedas. O termo sânscrito indica o conhecimento, a visão (em latim
vídeo, em Greco oida, em alemão wissen), ou seja, um saber que implica na possibilidade de
uma identificação estática àquela da esfera da liberdade e da bem-aventurança que é
própria do divino.4 Trata-se de quatro coleções de hinos, denominados Rig-Veda (hinos de
louvor), Yajur-Veda (‘fórmulas litúrgicas’), Sama-Veda (‘melodias’, indicações de como
cantar as estrofes do Rig-Veda) e Atharva-Veda (‘Veda do sacerdote do fogo’). Foram

3
Cf. P. Filippani-Ronconi, L’induísmo, Newton Compton, Roma, 1994, p. 10.
4
Ibid., p. 13
transmitidos oralmente até uma época relativamente recente e os textos védicos foram
redigidos entre o II e I milênio a.C., mas suas origens voltam no tempo alguns milhares de
anos antes da era comum, ou seja num tempo que o Arianos – população branca, de língua
indo-europeia, próximos nos costumes aos antigos itálicos, gregos, eslavos, celtas,
germanos, iranianos – não haviam ainda penetrado nas planícies a noroeste da Índia, mas
residiam ainda na Ásia central.
Os hinos védicos contém elogios e invocações aos Deuses, lendas sobre a origem do
universo e seu desmembramento do Homem cósmico do qual surgiu o mundo com as
quatro castas que o povoam, admoestações e exorcismo de vários gêneros. O núcleo
central, em torno do qual tudo gira, é constituído da liturgia, do sacrifício, seja em nível
solene e coletivo, seja em nível familiar e doméstico: no sacrifício se re-confirma de fato a
união do homem com o Todo, se reafirma ou se restaura aquela ordem cósmica (Rta; no
latim ordo, ritus, artus, no grego aretè) que rege todo universo físico, do mais humilde fio de
erva ao sublime firmamento estrelado, mas do qual participa também o homem na sua vida
moral, no seu evento cotidiano.
É impossível trazer de volta o conteúdo dos Vedas a uma doutrina precisa teológico-
filosófica, e nem sequer a formas unívocas de normas religiosas ou éticas. Por um lado esses
se movem em âmbito polimorfo, no qual confluem diversas culturas e experiências
religiosas, que se refletem em um complexo politeísmo – um panteão não menos articulado
daquele helênico -; por outro lado – ainda como se diz na ‘mitologia’ clássica – mostram uma
notável perfeição formal e uma intensidade metafísica quanto aos termos do início ou do
fim, mesmo numa linguagem mítica. O que dizer do hino que ressoa dessa forma?
Então não existia o não-ser, não existia o ser. Não existia atmosfera, nem o céu que
está acima. O que se movia? Onde? Sob a proteção de quem? O que era a água
insondável, profunda?
Então não existia a morte, nem a imortalidade. Não existia a marca da noite e do dia.
Sem produzir vento, respirava por conta própria aquele Uno; além dele não existia
mais nada.
Escuridão revestida de escuridão era o princípio: todo universo era uma onda
corrente indistinta. O princípio vital que estava comprimido pelo vazio gerou a si
mesmo como o Uno, mediante a força do próprio calor.
O desejo lhe sobreveio, e foi a primeira semente da mente. Os sábios encontraram a
conexão do ser no não-ser, procurando a reflexão no próprio coração...5

5
Rig Veda X, 129. Cf. l’induismo, p. 30
Com relação ao assim chamado ‘politeísmo’, deve-se precisá-lo melhor6. Sem discutir
o quão corretas são as definições e sem entrar numa presumida superioridade do
monoteísmo, deve-se notar que os estudiosos cunharam para o mundo védico o termo
‘henoteísmo’. Nos Vedas cada Deus evocado, nos hinos a eles destinados, é visto como único
do panteão, pois se trata de despertar na alma do orante a presença mística do divino, por
isso o crente deve concentrar-se na divindade escolhida (istadevata), que assume assim a
função de uma espécie anjo da guarda, ou espírito que o guia, presente no coração de cada
ser humano.
Os vedas explicitamente afirmam que os vários Deuses são muitos nomes daquele
que é Uno:
Ele (o único)
sobe aos céus como Savitar
e manda para baixo a sua luz
permanecendo no dorso do firmamento.
Sob a aparência do grande Indra
ele retorna às nuvens
atraído pelos seus raios.
Ele é o criador, o ordenador, é Vayu
com as densas nuvens, ele é Aryaman, é Varuna,
é Rudra, é Mahadeva [o grande Deus].
É Agni, é Surya, é também Yama o grande...
É o único, o uno,
todos estes Deuses são um todo único nele.7

No a raiz, o homem não sabe quem é o Deus que deve honrar com seu sacrifício,
como recita o esplêndido hino do Rig-Veda:
É ele, o germe de ouro, fonte de todas as coisas; assim que nasceu tornou-se o único
senhor do que existe.
Ele dá o respiro, a força, o vigor dá a ordem que todos os Deuses seguem; a
imortalidade e a morte são sua sombra. Quem é este Deus que devemos honrar com
nossas oblações?
É ele que por sua grandeza domina e rege tudo que respira e fecha os olhos no
mund; que é o dono do bípede e do quadrúpede. Quem é este Deus que devemos
honrar com nossas oblações?
O seu braço se estende sobre as montanhas cobertas de neve, sobre o oceano e
sobre o rio, sobre o firmamento, sobre todo o céu. Quem é este Deus que devemos
honrar com nossas oblações?
É ele que dá luz aos espaços e firmeza à terra; - dele se estenderam os céus e o mais
vasto firmamento. Traça os confins das vastas regiões etéreas. Quem é este Deus
que devemos honrar com nossas oblações?

6
É quase senso comum que todas as religiões são na sua raiz monoteístas e os elementos politeístas estão
muito presentes naquelas assim chamadas monoteístas; é importante ler o que escreve Nietzsche em A gaia
ciência, 143: “A utilidade superior do politeísmo”
7
Atharva-Veda XIV, 4. Cf. Mariasusai Dhavamoni, La luce de Dio nell’induismo. Milão: Paulinas, 1987, p. 47
Quando foram as grandes águas levando em si tudo como germe, gerando Agni8, ali
surgiu o único espírito vital dos deuses. Quem é este Deus que devemos honrar com
nossas oblações?
Aquele que pela sua grandeza abraçou com o olhar as águas colocando nelas a
capacidade criativa, gerando o sacrifício, aquele que foi o unido Deus entre os
Deuses. Quem é este Deus que devemos honrar com nossas oblações?
Não nos faça mal aquele que foi o gerador da terra, aquele que gerou o céu, e no
qual os estatutos são verdadeiros, - ele que gerou as grandes águas espumantes.
Quem é este Deus que devemos honrar com nossas oblações?
Ó Prajapati, ninguém exceto tu abraçou todas as coisas geradas. As coisas das quais
somos ansiosos e sacrificamos a ti, são para nós. Torna-nos senhores da riqueza.9

Ao lado da especulação sobre a criação e sobre a relação Deus-mundo, nos Vedas é


dedicado muitas páginas para a reflexão religioso-ética sobre o pecado, entendido como
infração à ordem cósmica, infração que comporta sempre uma conseqüência negativa, uma
punição. Daqui as numerosas invocações aos Deuses para ser purificados do pecado e
libertados das conseqüências negativas:
Se fazemos algo de errado a um irmão,
um amigo, uma companheiro,
um vizinho, um conterrâneo
ou a um estrangeiro,
ou a quem nos aproximamos por um pacto,
ó Varuna, dissolve isto.
Se como fazem os trapaceiros no jogo,
temos enganado,
seja isto evidente
seja que ignoremos,
dissolve tudo isto, ó Deus Varuna,
de modo que possamos ser queridos a ti.10

O pecado é visto como ofensa pessoal ao Deus Varuna, que por isso está
encolerizado como pecador, no âmbito de uma relação pessoal Deus-homem, muito
semelhante ao apresentado na Bíblia:
Sábios são os descendentes
Daquele que fundou
os dois mundos separados,
jogando para cima os céus,
empurrando o grande astro
no duplo curso
e estendeu a terra.

8
O fogo (em latim ignis), importantíssimo porque consome e leva aos céus o sacrifício, realizando assim a
comunicação entre o céu e a terra, é celebrado nos Vedas como divindade suprema, e depois identificado com
Varuna, Mitra, Indra, Aryaman
9
Rig Veda X, 21. La luce... pp. 44-46
10
Rig Veda V, 85. Varuna (em grego ouranos, o céu) é a divindade tutora da lei cósmica e da verdade. É lei que
governa o universo, lei que age no rito e no sacrifício, a lei moral que regola de forma imparcial e constante a
conduta dos homens. O pecado é por isto infração à regra de Varuna, podendo ser um erro no rito ou na
ordem moral (cf. La luce... pp. 23-24)
Dentro de mim reflito:
quando estarei de novo em paz com Varuna?
irá querer, quando aplacado,
ter prazer em minha oblação?
Quando, com a mente em repouso,
Verei a sua misericórdia?
Medito sobre o meu pecado, ó Varuna,
desejando intuir
em que ele consiste.
Vou em busca dos sábios,
dotados de discernimento,
interrogando-os,
e todos os sábios
me respondem a mesma coisa:
Varuna está irritado contigo.11

É muito importante dar-se conta como nas entrelinhas dessa concepção de pecado,
que vê a relação homem-Deus ao nível de servo-patrão, aparece já a idéia que o pecado
verdadeiramente não é executado pelo indivíduo singular, pelo seu livre arbítrio, mas de
alguma coisa que é, no fundo, acidental e estranho à verdadeira essência do homem. O hino,
de fato, prossegue assim:

Que coisa é
este pecado principal, Varuna,
pelo qual tu quiseste matar
a mim, o amigo que te louva?
Fala-me tu,
soberano difícil de enganar.
Livre do pecado,
logo me aproximarei de ti
para prestar-te reverência.
Perdoa os pecados
cometidos por nossos pais,
perdoa também aqueles
que nós mesmos tenhamos cometido [...]
Esta transgressão
não é devida à nossa livre vontade;
(a cometeu) o vinho, a ira,
o jogo ou a desconsideração.
O mais idoso
paga a culpa do mais jovem
e nem sequer o sono
pode verificar a iniqüidade.12

Como na reflexão das tragédias gregas, diante da cegueira devido à ira ou a qualquer
outro fator acidental, é Átis a verdadeira responsável pelo fato lúgubre cometido, assim o
anônimo poeta védico intui que o pecado não provém da identidade mais profunda,

11
Rig Veda VII, 86. Cf. La luce... p. 25
12
Ibid.
substancial, do homem, que sob este perfil é inserido em uma cadeia determinista de
eventos da qual não é responsável, mas apenas instrumento passivo.
Já nos Vedas encontramos aqueles elementos especulativos que amadurecerão
posteriormente na meditação indiana, nas Upanishades, e alcançarão a perfeita síntese no
Bhagavad Gita.

As Upanishades

A elaboração especulativa dos Vedas, as Upanishades (literalmente ‘sessões’, com


evidente referência a uma práxis magisterial), representam o estágio final, a tal ponto que o
seu ensinamento é chamado de Vedanta, ou ‘conclusão dos Vedas’.
É também verdade que eles são o resultado de uma reação ao excessivo formalismo
e ritualismo do período védico: como sempre, a meditação mística tendo por base – não
contra, mas em relação a – uma Escritura, que interpreta e da qual também toma distância.
Considera-se em geral que as primeiras Upanishades aparecem num período que
prece o Budismo, por volta do VIII século a.C., mas continuam a serem usadas até a difusão
do Islamismo na Índia, cobrindo um grande arco de tempo e são bem distintas na sua
singularidade.
Chegam ao número de 108, entre antigas, m´deias e recentes, mas as mais
significativas para a história da mística são muito menos, e de maneira particular estão entre
as mais antigas e médias.
O ponto de partida é sempre a aspiração á salvação, à libertação, expressa com as
comoventes palavras:

Do não ser faz-me andar ao ser,


da escuridão faz-me andar à luz,
da morte faz-me andar à imortalidade.13

A salvação, a libertação é obtida pelo caminho do conhecimento, que é a


compreensão da unidade e da bondade do Todo. Porém, o caminho da libertação
caracteriza-se logo em conformidade com a estrada mestra da mística especulativa, como
recusa de pensar o mal, ou pensar mal, não compreender:

13
Brhad-aranyaka-upanishad I, 3,27. Cf. Upanishad antiche e medie, de P. Filippani-Ronconi. Torino:
Boringhieri, 1947, p. 47
O mal é tudo aquilo que é dito de não pertinente ao objeto. Este é o mal. [...]
O mal está de fato aqui embaixo, naquilo que se concebe de ruim. Este é o mal. 14
É por esta razão que aquele que assim conhece, sendo calmo, altivo, desapegado,
paciente, recolhido em si, vê a si mesmo no espírito e vê o espírito em cada coisa; o
mal não é está em vantagem, ele está sempre para além do mal; o mal não o queima,
ele ao invés faz arder cada mal; ele esta desvinculado do mal, da paixão, da dúvida.15

A identidade entre espírito encarnado no sujeito (atman), realidade essencial e


profunda do homem mesmo, e espírito divino, universal (brahman) é a verdade essencial, o
conhecimento que salva. Quem conhece a realidade de si mesmo conhece, portanto, toda a
realidade, e vice-versa: também para as Upanishades quem conhece a si mesmo conhece a
si mesmo e a Deus, tanto que o texto pronuncia uma palavra terrivelmente escandalosa para
o conhecimento religioso em sentido bíblico:

Aquele que venera uma divindade considerando que essa seja outra de si: ‘Outro é o
Deus, e outro sou eu’, este nada sabe. Para os Deuses ele é como um animal. 16

Tal palavra ‘blasfema’ corresponde exatamente àquelas tão escandalosas,


pronunciadas pelo Mestre Eckhart, como por exemplo:

Muita gente simples imagina Deus lá em cima e nós aqui embaixo> mas não é assim:
Deus e eu somos uma só coisa.17

O conhecimento essencial da identidade entre o espírito do homem e o espírito de


Deus é também profunda felicidade:

Na verdade este grande e incriado atman, sem velhice, sem morte, imortal, livre do
temor, é brahman. Na verdade brahman é felicidade e torna-se o próprio brahman,
que é felicidade, aquele o qual assim se conhece. 18

Em um passo crucial da mesma Upanishade, explica-se como é o profundo o si


mesmo, espiritual, que constitui o verdadeiro objeto de amor, ou aquilo a que se refere cada
modo de amor:
Não é, com certeza, por amor ao marido que o marido é amado; é pelo amor que
está em si mesmo [o atman] que é amado o marido. Não é com certeza por amor à
esposa que a esposa é amada: é pelo amor que está em si mesmo que a esposa é

14
Ibid., I, 3, 1-5p.40-41
15
Ibid, IV, 4, 23, pp. 144-145 (tomamos atman, etimologicamente ‘si mesmo’, com ‘espírito’, em conformidade
ao seu significado essencial)
16
Ibid I, 4, 10, p. 51
17
Sermão 6, Iusti vivent in aeterum, p. 135
18
Brhad-aranyaka... IV, 4, 25, op. cit. p. 145. Em Eckhart: “Quem tem o próprio ser em Deus, tem paz; que tem
fora não tem paz” (Sermão 7, p. 137)
amada. Não é certamente por amor aos filhos que os filhos são amados: é pelo amor
que está em si mesmo que os filhos são amados. Não é certamente por amor às
riquezas que as riquezas são amadas: é pelo amor que está em si mesmo que as
riquezas são amadas. Não é por amor a Brahman que se ama Brahman: é pelo amor
que está em si mesmo que se ama Brahman. Não é por amor ao poder que se ama o
poder: é pelo amor que está em si mesmo que se ama o poder. Não é por amor aos
mundos que os mundos são amados: é pelo amor que está em si mesmo que os
mundos são amados. Não é pelo amor dos Deuses que os Deuses são amados: é pelo
amor que está em si mesmo que os Deuses são amados. Não é por amor aos seres
que os seres são amados: é pelo amor que está em si mesmo que os seres são
amados. Não é por amor a cada coisa que cada coisa é amada: é pelo amor que está
em si mesmo que cada coisa é amada. É o si [atman] não verdadeiro que precisa
considerar, que precisa escutar, que precisa pensar, que precisa meditar. Conhece-se
tudo isto somente mediante a contemplação, a audição, a meditação, o
conhecimento de si [atman].19

Isto tem um duplo significado. Em primeiro lugar significa reconhecer o elemento


egoístico implícito em cada modo de amor – aí compreendido aquele para com os familiares
mais próximos, ou também para com os deuses, seja em sentido pessoal, seja em sentido
absolutamente espiritual (Brahman) – e neste modo erradicar todas as distinções
precedentes, bom-mau, em nível de impulso afetivo, com as consequentes pretensões de
mérito ou sentido de culpa. Em segundo lugar, e de forma mais relevante, significa
reconhecer que mais profundamente ao fundamental ‘egoísmo’, está o amor para com o si
profundo de nós mesmos, para com a realidade mais verdadeira, a qual não é diferente ou
contrária àquela dos outros seres – como ao invés ocorre no ego superficial. Em cada coisa,
em suma, o homem está procurando a si mesmo e Deus, em cada coisa está amando a si
mesmo e a Deus: o ponto central é exatamente este reconhecer que o essencial, o
verdadeiro, não é o objeto, que está sempre contraposto dualisticamente a um sujeito, que
é por vezes objeto para os outros, mas o espírito que conhece, que contempla, e no qual
cada dualismo sujeito-objeto desaparece:
Lá onde subsiste a dualidade (dvaita), aí um adora o outro, um vê o outro, um louva
o outro, um fala do outro, um pensa algo do outro (de si), um conhece o outro; mas
quando tudo se tornou o si [atman] de cada um, mediante que coisa, que odor, se
poderá perceber? Quem se poderá ver e mediante que imagem? Quem e mediante
que coisa se poderá ouvir? A quem e mediante que coisa se poderá falar?A quem e
mediante que coisa se poderá conhecer? Aquilo mediante o qual se conhece quando
existe, mediante que coisa poderá ser conhecido? O conhecedor, mediante que coisa
poderá ser conhecido?20

Aqui se percebe a utilização sutil do método dialético, com a individuação da das


aporias intransponíveis que vão contra a reflexão ingênua, objetivista, que será

19
Ibid. II, 4, 5, pp. 77-78
20
Ibid., II, 4, 14, p.80
característico nas escolas budistas, e que tem no Ocidente o seu melhor paralelo no
ascetismo antigo (cujas lições, não esqueçamos, foram acolhidas também pelos grandes
místicos cristãos a partir de Agostinho). Mas o que conta é dar-se conta da unidade do Todo,
a partir da superação de toda dualidade: se isso não ocorrer, se é rejeitado no mundo da
alteridade, da alienação, onde outros são os seres, outro é Deus. Em tal sentido o texto
upanishádico afirma:
O Brahman abandona aquele que reconhece o Brahnan como estando fora de atman
[de si mesmo]. O poder abandona aquele que reconhece o poder como estando fora
de atman; os mundos abandonam aqueles que reconhecem o mundo como estando
fora de atman; os Deuses abandonam aquele que reconhecem os Deuses como
estando fora de atman; as criaturas abandonam aqueles que reconhecem as
criaturas como estando fora de atman; todos os objetos que existem abandonam
aquele que os reconheça como estando fora de atman. Este Brahman, este poder,
estes mundos, estes Deuses, estas criaturas, todos estes objetos, tudo aquilo que
existe é atman. 21

No pensamento ilusório de um princípio espiritual fora do espírito humano, como


uma realidade ‘objetiva’, em qualquer nível, fora da alma – onde o ‘fora’ é obviamente
metafórico, a alma é tal não em sentido psicológico individualista, mas em sentido universal,
espiritual – o homem encontra-se absolutamente longe de Deus, longe do ser, na alienação
e na dor. Não por acaso a palavra ‘alienação’ tem, além do sentido metafísico, também um
sentido de patologia psíquica: o mal, e assim também a dor, é de fato essencialmente esse
distanciamento, alteridade, do ser, que está, além disso, implícita e conseqüência do
dualismo de fundo.
O mundo mais articulado, a realidade universal do princípio espiritual, que constitui o
cosmo e que é idêntico no Todo – aí compreendido o homem – é ensinada na célebre “sexta
leitura” da Chandogya-upanishad, onde Uddalaka repete sem meias palavras ao filho
Svetaketu como todo universo é constituído de uma essência sutil, que é a verdadeira
realidade, o atman, ‘e isto és tu’, tat tvam asi, ‘tu és isso’. Eis, em síntese, alguns trechos:

Para fazer o mel, meu querido, as abelhas recolhem os sucos das mais diversas
plantas e os levam à unidade de um único suco: os diversos sucos não se distinguem
mais, um como suco de tal planta, outro como suco de outra planta; igualmente, em
verdade, ó meu amigo, todas as criaturas, mesmo estando profundamente radicadas
no Ser, ignoram22 que elas estão radicadas no Ser.
Aqui, sobre a terra, que sejam tigre ou leão, lobo ou javali, verme ou borboleta,
mosca ou mosquito, todos eles são o que são.

21
Ibid, II, 4, 6, p. 78
22
De forma semelhante Meister Eckhart escreve: ‘Deus está próximo ao lenho e à pedra, mas eles não sabem.
Por isto o homem é mais feliz que a pedra e o lenho porque conhece a Deus e sabe que ele lhe está próximo’.
(Sermão 68, p. 147)
Ao invés, aquilo que se refere à essência sutil, percebe-se que todos são animados;
essa é a única realidade, é o atman, e tu mesmo Svetaketu sabes disso. Senhor, disse
o filho, instrui-me ainda. E o pai lhe respondeu: que seja assim, meu querido. 23
Traga-me um fruto daquela árvore, disse o pai. Eis aqui, responde o filho. Corta-o,
ordenou o pai. Ei-lo cortado, respondeu o filho. O que vês dentro? perguntou o pai.
Muitos grãos pequenos, respondeu o filho. Muito bem, quebra um destes grãos,
ordenou o pai. Eis um aqui quebrado, ó Senhor, respondeu o filho. O que vês dentro?
Nada, Senhor.
O pai então lhe disse: Esta sutil essência que foge à tua percepção, é graças a esta
sutil essência que esta árvore, por maior que seja , se alça ao céu.
Acredita-me, meu querido. Esta sutil essência anima todas as coisas; essa é a única
realidade, essa é atman. Tu mesmo, ó Svetaketu, és isso. Senhor, instrua-me ainda.
Que assim seja, disse o pai.24
Coloca este sal na água e volte a mim amanhã pela manhã. Svetaketu obedeceu ao
pai. Então o pai lhe disse: Traga-me agora aquele sal que ontem você jogou na água.
Sketaketu olhou na água e não mais o viu, havia-se dissolvido.
Experimenta um pouco de água que está na superfície, disse o pai. Como está? Está
salgada. Experimenta um pouco da água que está na metade do copo. Como está?
Está salgada. Experimenta mais uma vez e depois venha aqui. O filho obedeceu e
disse: está sempre igual. Então o pai disse a Svetaketu: Assim, ó meu filho, tu não
agarras o ser, mas ele está presente aí [onde tu estás].
Tudo quanto existe é animado desta essência sutil; essa é a única realidade, essa é
atman. E tu mesmo, ó Svetaketu, o sabes. Senhor instrua-me ainda, lhe disse o filho.
E o pai respondeu: assim seja, meu querido. 25

De uma maneira ainda mais significativa, não referindo-se apenas ao universo que
nós, na linguagem dualista ocidental, diríamos ‘físico’, o ensinamento do pai ao filho conclui-
se em relação à realidade ‘espiritual’. Com um exemplo trazido dos ‘juízos de Deus’, bem
presente no modo de pensar germânico – portanto do âmbito da justiça e da verdade –
Uddalaka diz de fato:

Imagina, meu caro, que levam um homem com as mãos amarradas, dizendo: ele
roubou, ele cometeu um furto, coloca o machado no fogo para que ele possa fazer a
prova. Se ele verdadeiramente cometeu o ato que nega, ele faz de si mesmo mentira
(an-rta = irrealidade); mediante a sua falsa afirmação ele se firma na mentira; agarra
o machado incandescente, se queima e é condenado.
Porém, se é inocente, então ele faz de si mesmo verdadeiro (satya = realidade);
mediante a sua afirmação ele de firma na verdade; agarra o machado incandescente,
não se queima e é posto em liberdade.
Da mesma maneira que este homem não se queima (graças à verdade na qual está
envolvido), desta mesma verdade [realidade] tudo está animado, esse é o solo
verdadeiro, esse é atman. E tu mesmo Svetaketu o sabes. Este é o ensinamento que
Svetaketu recebeu de seu pai.26

Exatamente a partir desse último texto impõem-se extraordinários paralelos com a


doutrina de Eckhart. O homem justo, que é o homem na verdade, no ser, é uno com a

23
Chandogya-upanishad, VI, 9, op. cit p. 304-305
24
Ibid VI, 12, p. 307
25
Ibid VI, 13, p. 307-308
26
Ibid VI, 16, p. 310
justiça, a verdade, o ser: o homem de fato é uma coisa só com Deus, que é ser, verdade e
justiça. Dizendo ‘homem’, entende-se obviamente a alma27, que é uma só coisa com Deus:
Se colocarmos na água um vaso, o vaso seria circundado pela água, mas a água não
penetraria no vaso, nem o vaso na água. A alma, ao invés, é absolutamente uma com
Deus, de maneira que não se pode conceber um sem o outro. Pode-se pensar o calor
sem o fago e a luz sem o sol, mas não se pode conceber Deus sem a alma e nem a
alma sem Deus, são uma coisa só.28

Não somente, aristotelicamente falando, a alma ‘é de alguma maneira todas as


coisas’, mas enquanto Deus é nela e ela em Deus – e Deus está em toda parte – ela está em
toda parte:
A quem me perguntasse onde está Deus, responderia: em toda parte. A quem me
perguntasse onde está a alma que está no amor, responderia: em toda parte, porque
Deus ama e a alma que está no amor está em Deus, e Deus nela e já que Deus está
em toda parte e ela em Deus, a alma não está metade em Deus e metade não. Dado
que Deus está nela, é necessário que a alma esteja em toda parte como aquele que
está nela está em toda parte.29

De fato, no amor a alma não está em oposição às coisas, como se fosse uma entre
elas, mas apreende todas na sua unidade e todas a levam em si mesma, tornando-se uma
com essa, exatamente como Deus:

Não existe separação entre Deus e as coisas, porque Deus está em todas as coisas:
ele está mais íntimo a elas do que elas estão a si mesmas. Portanto, Deus não está
separado de nada. Do mesmo modo, não deve existir separação entre o homem e as
coisas; o homem deve ser nada a si mesmo, completamente desapegado de si
mesmo: assim não há mais separação entre ele e as coisas e ele e todas as coisas.
Porém, na medida na qual não fores nada em ti mesmo, és tudo e não há separação
entre ti e as coisas. Por esse mesmo motivo, na medida na qual não estás separado
das coisas, és Deus e todas as coisas, pois a divindade está no fato que ele não está
separada de coisa alguma.30

O divino que está no todo e que é Tudo, mesmo por isso não é este nem aquele e,
por isso, não pode ser definido a não ser de forma negativa: ‘Não este, não este (neti, neti):
não há nada superior a este neti.31 Porém o homem que quer alcançar o ser divino deve
tornar-se nada:

27
Em latim anima e animus, como o grego anemos (sopro, vento) corresponde diretamente ao sânscrito
atman.
28
Sermão 59, p. 432
29
Sermão 63, p. 450
30
Sermão 77, p. 526
31
Brhad-aranyaka..., II, 3, 6
Assim como a natureza de Deus não é semelhante a ninguém, é necessário alcançar
esse nada, para estar na mesma condição de ser o que ele é. Se portanto eu ao ponto
de não representar-me em alguma imagem e não representar alguma imagem em
mim, e se me liberto de tudo aquilo que está em mim, então posso ser colocado no
puro ser divino, e este é o ser puro do Espírito.32

E aqui o mestre dominicano envia diretamente àquela purificação de todas as


‘imagens’, ou de todos os conteúdos, e isso tem uma nítida correspondência com a prática
meditativa yógica do ‘tornar-se vazio’, como se apresenta na Upanishade, mas que encontra
cuja completude na obra prima mística especulativa da Índia, ou seja, no Bhagavad Gita.

O Bhagavad Gita

Pequeno texto de cerca de 700 versos que está dentro do anônimo poema épico
sânscrito Maha-bharata (o poema dos ‘ grandes heróis’: maha = grego mega, bharat = latino
vir; Bharat é o nome que a Índia dá a si mesma), o Bhagavad Gita, ou ‘o canto do bem-
aventurado, foi escrito provavelmente no século II a.C., e constitui-se no ensinamento que o
Deus Krishna confere ao herói Arjuna no momento em que este está para enfrentar em uma
grande batalha os inimigos. O herói está desanimado diante da perspectiva de matar aqueles
que são seus parentes e grandes guerreiros que foram seus mestres no passado: não é o
medo da morte a segurá-lo, mas o sentido de vanidade das coisas humanas e a amargura
que uma eventual vitória traria.
Personificado como o cocheiro no carro de guerra, - aquele que tem as rédeas, que
guia: como no Fedro de Platão33, o princípio racional que rege a alma humana – o bem-
aventurado é aquele Deus que está junto, o Deus pessoal de cada homem, o Deus criador do
universo e, enfim, o Absoluto que transcende toda forma. Sob este último aspecto, será
aquela realidade última que as escolas budistas identificarão com sunya, o vazio, ou

32
Sermão 76, p. 521
33
Um paralelo impressionante com o mito da biga alada do Fedro de Platão (246-254) com a Katha-upanishad
III, 3-8: “Reconhece o atman com o dono do carro, o corpo como o carro, a psique como o cocheiro, a mente
como as rédeas. Os sábios denominam os sentidos como cavalos, os objetos dos sentidos como pistas, o atman
unido as sentidos e à mente ao usuário. Aquele que está privado do discernimento, porque não tem a mente
concentrada, tem os sentidos indisciplinados como um cocheiro com cavalos ruins. Aquele que por sua vez tem
discernimento, porque tem a mente concentrada, seus sentidos são como cavalos dóceis ao cocheiro. Aquele
que está privada de discernimento não tem a mente concentrada e é sempre impuro e não alcança a meta,
mas desce no ciclo dos nascimentos e mortes. Aquele que por sua vez é dotado de discernimento, tem a
mente concentrada e é sempre puro, alcança a meta, da qual não mais volta para nascer sobre a terra. (cf.
Upanishad antiche e medie... p. 501-502)
enquanto meta de ascese com nirvana, a extinção. O nome de Krishna significa
etimologicamente ‘o negro’ (como ciarna nas línguas eslava), o obscuro, ou o profundo, as
trevas do ‘raiz da alma’, que cada um de nós traz escondido na consciência, além da tríplice
condição da vigília, do sonho, do sono profundo, e que é a essência da alma individual, lá
onde a pessoa se identifica com a divindade universal ou com o espírito universal. Deus
transcendente e ao mesmo tempo imanente, Krishna nasceu de pais humanos e conheceu a
experiência da morte – uma morte violenta, pois foi abatido por uma flechada de um
caçador inconsciente, que ‘não sabe aquilo que faz’, e uma morte histórica, na qual a
tradição assinala uma data precisa, 13 de maio de 3.120 a.C., início do Kali-Yuga, ou idade da
obscuridade, idade da decadência, da reversão de todos os valores morais; avatar ou
‘encarnação, descida’ de Vishnu, que é o amor divino, o princípio solar que invade o universo
e ensina a substância da mística ou a realização da identidade entre o si ou espírito
individual, atman, e o espírito universal, brahman, e dentro desta sabedoria fundamental
fornece ao herói Arjuna (literalmente ‘o claro’, ‘o radiante’) uma regra fundamental de vida,
que é aquela do desapego na ação.
Sob esse aspecto fundamental, a ação, da qual o combate é o símbolo essencial – e
toda vida é uma batalha, mesmo que não apenas isso, e sempre sob o perfil estritamente
militar: militia est vita hominis super terram (a vida do home sobre a terra é uma luta
constante) – e é exatamente isso que permite ao homem o desapego, porque é exatamente
isso que torna clara a distinção entre a natureza inferior (Praktri, ‘fonte’), feita de paixões,
desejos, medos, e a essência superior (Purusa, ‘pessoa’), que na mesma ação adverte
perfeitamente à indiferença aos seus frutos – vitória ou derrota, mérito ou culpa, louvor ou
depreciação. Exatamente como ensina Eckhart, as obras são para o desapego, a essência do
desapego não está na inação, mas na obra. Ainda como na mística especulativa alemã, o
desapego é possível somente através do conhecimento (jnana), da reflexão, da meditação
(dhyana, que se torna ch’na em chinês e zen em japonês) e essa, por sua vez, é possível
quando todo espírito está voltado para Deus, na relação de fé, amor, devoção, que a Gita
chama de bhakti. Inteligência e amor, portanto, estão reunidos em uma mesma obra: são os
dois olhos da alma que, juntos, estabelecem um único olhar.
Os 18 discursos nos quais o canto do bem-aventurado se desenvolve, segundo os
vários ‘caminhos’ (marga) de libertação apresentam este ensinamento fundamental de uma
profunda experiência espiritual, que constitui uma síntese da Índia clássica: o Vedanta, ou a
doutrina da identidade metafísica entre a alma vivente individual e o espírito universal; o
Samkhya, com sua articulada descrição dos vários ‘estados’ (guna) e componentes da
psique, com as suas várias faculdades relacionadas aos elementos físicos; ou, enfim, a yoga
na qual a emancipação dos sentidos permite a concentração,a meditação até a unificação
(yoga = latim jugum, em alemão joch, isto é, que une) interior com Brahman.

******
1
Ao desconsolado Arjuna, Deus revela antes de tudo – no segundo discurso – a
eternidade de tudo o que é:34

Nunca houve um tempo que Eu não tenha existido, nem você, nem todos esses reis;
nem no futuro nem um de nós deixará de existir. 35
Aqueles que são videntes da verdade concluíram que não há continuidade para o
inexistente e que não há interrupção para o existente. Esses videntes chegaram a
esta conclusão estudando a natureza de ambos. 36
Saiba que o que penetra todo o corpo é indestrutível. Ninguém é capaz de destruir a
alma imperecível.37

Permanência de todas as coisas no ser, que é divino: quid-quid est, in deo est (O que
é, é em Deus), como ensinavam as Regulae de Alano de Lilla no cristianismo medieval. As
coisas enquanto são, são no ser, e não podem vir do não-ser ou se antecipar: este
ensinamento fundamental, familiar à filosofia ocidental do eleatas38, une-se aqui com o
princípio teológico, também fundamental e também familiar ao Ocidente com o platonismo,
ou seja, da presença eterna em Deus de toda realidade, sob o seu aspecto espiritual, de idéia
e de essência. No mundo cristão, com a doutrina joanina do Verbo no qual tudo foi feito,
este segundo princípio sustentou a intuição mística da unidade do Todo, que está em Deus e

34
As referências do Bhagavad-Gita serão extraídas de O Bhagavad-Gita como ele é. Tradução A. C.
Bhaktivedanta Swami Prabhupada. São Paulo: SPIGE, 1986. Será abreviado como ex. BG, II, 12 (leia-se
Bhagavad-Gita, livro II, verso 12). (Nota do Tradutor)
35
BG, II, 12
36
BG, II, 16
37
BG, II, 17
38
Há um poema de Parmênides que diz: “Há nele muitos sinais: é ente ingênito e imperecível, é completo,
imóvel e sem fim. Não terá sido nem será, pois é agora tudo de uma vez, uno contínuo. Pois que nascimento
lhe acharias? Como, de onde teria nascido? Nem do não-ente permitirei que digas ou penses. Porque não é
nem expressável e nem pensável que o é, seja como o não é. Que necessidade teria de nascer antes ou depois
se procedesse do nada. Assim é necessário que seja todo, ou nada.Tão pouco a força da verdade permitirá que
do não-ser nasça algo. Como poderia, aliás, o ente perecer? Como poderia nascer? Sem tem nascido, não é,
nem mesmo é se houver de ser alguma vez. Assim está extinto o nascimento e inacreditável a destruição. (DK B
8)
é divino e como tal eterno como o próprio Deus, o que comporta, evidentemente, o refutar
da concepção bíblica da criação ou a sua interpretação no sentido de criação contínua,
eterna, na produção temporal das coisas do mundo, o qual, bem entendido, não foi feito
fora de Deus, pois fora de Deus, que é o ser, não existe nada. Porém, também para o místico
cristão eu sempre existi e a morte nada mais é que um retorno de onde saímos, na primeira
origem de todas as coisas – antes, na realidade, nunca saímos, mas sempre permanecemos
dentro.
“Qualquer coisa que não tenha existido no princípio ou no fim, não pode existir nem
mesmo no presente”, afirma um comentário ao Upanishad: o rigor lógico do pensamento de
Parmênides une-se à honestidade teológica que recusa a supersticiosa noção de um Deus
caprichoso que cria um ser a partir de fora de si mesmo e depois, eventualmente, o destrói.
Essa teoria deixa claro que tem uma determinada noção de Deus, separado do mundo como
um agente separado das coisas, e tem sentido somente quando se fica no mundo das
aparências, na expressão de Agostinho régio dissimilitudinis (zona de dessemelhança), ou na
dimensão de distanciamento do ser, distanciamento de Deus.
É importante ler a propósito um trecho do sermão eckhartiano Nolite timere eos (Não
os temais):
Deus torna-se (wird) lá onde todas as criaturas manifestam Deus: lá torna-se Deus.
Quando estava ainda no campo, na raiz, na corrente e na fonte da Divindade, nem
ninguém me perguntava para onde queria andar ou o que estava fazendo: lá não
havia ninguém que pudesse me colocar dúvidas. Mas quando fui para fora, todas as
criaturas pronunciaram: ‘Deus’! Se me perguntassem: ‘Irmão Eckhart quando saíste
de casa?’, então seria correto dizer que havia estado dentro. Assim todas as criaturas
falam de Deus. E por que não falam da Divindade? Tudo aquilo que está na Divindade
é uno, e disto não se pode falar. Deus age, a Divindade não age, não tem nada para
fazer, não há nela obra alguma, nunca olhou para uma obra. Deus e a Divindade são
distintos do agir e não agir [...] Quando alcanço na raiz, no campo, na corrente e na
fonte da Divindade, ninguém me pergunta de onde eu venho ou onde estive. Lá
ninguém sentiu minha ausência, e lá Deus ‘destorna-se’ (entwird).39

Em um contexto extraordinariamente parecido a este do texto indiano que estamos


resumindo, Eckhart comenta o versículo bíblico (Mt 10,28: Não temais aqueles que matam o
corpo, mas não podem matar a alma) no qual a possibilidade de matar o corpo é oposta à
impossibilidade de matar a alma. O mestre dominicano contrapõe a noção de um Deus
relacional às criaturas, e, em quanto tal, dependente e finito, determinado nos ‘modos’ da
criação à noção de uma Divindade impessoal, na qual tudo é Uno, sem distinção, e por isso

39
Sermões, p. 624
sem possibilidade de determinação. O retorno do homem à ‘raiz’ da Divindade é por isso
‘ausência’ do Deus determinado; mas olhando bem não se trata de um retorno, mesmo
porque ninguém saiu daquela raiz, o elemento fontal e originário do ser.
Aquele que pensa que a entidade viva é a que mata ou é morte, não compreende.
Aquele que tem conhecimento sabe que o eu não mata nem é morto. 40
Para a alma nunca há nascimento nem morte. Nem, uma vez que exista, ela vai
deixar de existir. Ela é não nascida, eterna, sempre existente, imortal e primordial.
Ela não morre quando o corpo morre.41
Ó descendente de Bharata, aquele que habita no corpo é eterno e nunca pode ser
morto. Por isso você não precisa se lamentar por nenhuma criatura. 42

Como está claro nos textos, não se está aqui afirmando uma eternidade absurda das
coisas na sua transitoriedade física, mas a eternidade do princípio espiritual que a envolve:
esse é o ser, esse é Deus. As formas fenomênicas do mundo físico estão destinadas a perecer
– ou a desaparecer – pelos simples motivo que não são: de fato ‘aquilo que não existe, não
pode chegar a ser’, como foi dito acima, ou a sua existência é relativa, sempre relacional,
não absoluta. Sankara explica isso ao escrever:

Calor, frio e suas causas não tem existência absoluta. Elas são colhidas pelos órgãos
da percepção, mas não são reais em sentido absoluto, pois são efeitos ou
modificações, e toda modificação é efêmera. Por exemplo, nenhuma forma objetiva,
como um vaso de cerâmica que se apresenta ao conhecimento do olho, demonstra
ser real em sentido absoluto, pois não é percebido separadamente da argila. Assim,
cada efeito é ilusório, pois não pode manifestar-se sem sua causa; como um vaso,
cada efeito é ilusório porque não é percebido antes de sua produção e depois de sua
destruição. Do mesmo modo a causa, como a argila, é ilusória, porque não se
manifesta sem a sua causa.43

A afirmação da eternidade do ser não entende portanto negar de fato a


perecibilidade e mortalidade das coisas e dos entes, mas afirmar ao invés que seu evento
pertence a uma raiz imutável e é possível somente em relação a tal raiz. A destruição de um
ente singular, o seu desaparecimento fenomênico, não é evento capaz de aniquilar o ser na
sua totalidade: tal desaparecimento, de fato, não é cessação do ser, mas somente de uma
sua manifestação específica, ou um ‘modo’ do ser, ou de um ente.

40
BG, II, 19
41
BG, II, 20
42
BG, II, 30
43
As observações de Sankara estão afetadas pela sua polêmica com o budismo, por isso ele se preocupa logo
depois de refutar a tese que nada existe. Lembre-se de que Sankara é o grande teólogo ao qual se deve o
renascimento do Hinduísmo e a quase extinção do Budismo no continente indiano, isso por volta do século VIII
d.C.
O problema porém não se resolve com polêmicas discussões metafísicas sobre o ser,
mas a partir de uma impostação ético-religiosa fundamental. Trata-se de fato de colher a
realidade como unidade e totalidade mais do que multiplicidade infinita de entes por si
subsistentes, um dos quais poderia ser, eventualmente, Deus. Por sua vez, essa intuição
fundamental depende estreitamente do desapego realizado nos confrontos com o egoísmo,
com a afirmação do eu.
Não nos maravilhemos que esta experiência se apresente por excelência no âmbito
de uma cultura aristocrática-cavalheiresca, que é a base do Gita ou da idade média
germânica de Eckhart, no momento no qual no ápice está a vontade, quando o ‘amor nobre’,
envolvido na glória, no bem no seu sentido literal, descobre, exatamente por sua grandeza,
que seu ser é lançado ao ‘mais’ e não ao ‘menos’, à insuficiência do eu e de suas pretensões
auto-afirmativas e seu ligames. É nesse momento que cessa de pensar em termos de eu e de
ser múltiplo: o todo apareceu como uno e como divino no momento mesmo no qual não há
mais objeto de apropriação, mas do amor desapegado, da caridade que deixa ser o ser, não
violenta as coisas, colhendo a bondade do todo, também no seu perecer. Mesmo o perecer,
de fato, paradoxalmente aponta ao ser, sobre o fundamento somente isso é, enquanto
perecer: o mostrar-se do ser é o mostrar esta raiz, ou este fundo abissal, ab-grundliches
Grund (o Real básico, fundamental), que não pode colher-se como qualquer coisa de
determinada.
Todas as criaturas são um único ser – unum purum nihil, um absoluto nada, por um
lado; eternamente reais em Deus, por outro – e compreender Deus como Uno, não como
ente entre os entes, é compreendê-lo como Tudo. Deus, o qual somente ele pode dizer ‘eu’,
e poder usar o verbo ser. Assim Meister Eckhart44 exprime a doutrina que estamos
encontrando no Canto do bem-aventurado.

O sábio humilde, em virtude do conhecimento verdadeiro, vê com visão de igualdade


um brahman aprazível erudito, uma vaca, um elefante, um cachorro e um comedor
de cachorro (pária).45

44
“Eu digo: todas as criaturas são um único ser” (Sermão 8); “Todas as coisas são uma só coisa em Deus, e Deus
não é nada mais que seu ser” (Sermão 54b); Todas as criaturas estão em Deus, e são a sua Divindade, e isto
significa a plenitude” (Sermão 21); “Deus é Uno, negação da negação” (ibid.); “Mais Deus é reconhecido como
Uno, mas é reconhecido como Tudo” (Sermão 54a); “Ego, a palavra que significa ‘eu’, a ninguém pertence mais
exatamente que a Deus, na sua unidade” (Sermão 28), ou “ninguém pode tornar sua a palavra ‘eu’, senão o Pai
(Sermão 31).
45
BG, V, 18
Por isso Deus revela ao herói que quando obtiver o conhecimento não cairá mais em
confusão, mas
[...] saberá que todos os seres vivos são apenas parte de Mim – e que eles estão em
Mim, e são Meus.46

A profunda relação entre a visão metafísica e a atitude ético-religiosa a que


acenamos encontra-se explicitamente no discurso de Krishna. Deus, depois de ter exposto a
Arjuna a sabedoria racional (relativa ao Samhya) prossegue ensinando-o aquilo que tem
relação com o comportamento (Yoga).
É surpreendente notar como o texto indiano parte, da mesma forma que Eckhart,
com o supremo desapego: não apenas dos gozos (ou amarras) terrenos, mas daquele
supremo gozo (e suprema amarra) que é o Céu, e por isso – da mesma forma que na mística
alemã – faz imediatamente o convite de tomar distância das escrituras e da superstição que
esta geram:
Os homens de pouco conhecimento estão muito apegados às palavras floridas dos
Vedas, as quais recomendam diversas atividades fruitivas para elevação aos planetas
celestiais, que resultam em bom nascimento, poder e daí por diante. Desejosos de
gratificação dos sentidos e da vida opulenta, eles dizem que não há nada mais além
disto.47
Nas mentes daqueles que estão muito apegados ao gozo dos sentidos e à opulência
material, e que estão confundidos por tais coisas, a determinação resoluta do serviço
devocional ao Senhor Supremo não ocorre.48
Os Vedas tratam principalmente do tema dos três modos da natureza material.
Eleve-se acima destes, ó Arjuna. Seja transcendental a todos eles. Liberte-se de todas
as dualidades e de todas as ansiedades por ganho e segurança, e se estabeleça no
Eu.49

O não sábio permanece ligado à Escritura, que nutre a sua superstição e alimenta o
desejo que o constitui intimamente, que não é outro que a Eigenschaft (propriedade), o
desejo de poder e de felicidade. A Escritura enquanto tal, quando se apresenta como
revelação divina, sustenta intrinsecamente a alteridade de Deus, a distância do homem do
ser e, portanto, não pode mover-se senão em uma lógica de desejo, de mérito e de
recompensa. O renascimento, ou a vida eterna, exprime da maneira mais forte esse desejo,
exatamente na acepção etimológica de de-sejo, ou, distanciamento das estrelas (em latim
de-sidera), do céu, símbolo da verdade eterna, ao contrário de pensamento que é con-
sideração (con-sidera), que é estar vizinho às estrelas, ao céu. A lógica do desejo, ou do
46
BG, IV, 35.
47
BG, II, 42-43
48
BG II, 44
49
BG II, 45
distanciamento do ser, da alienação, é aquela do mérito e da recompensa (e, no inverso, da
culpa e da pena), pois nelas as ações não tem um fim em si mesmas, não são “sem porquê”,
mas apontam a um fim diferente da própria ação, e com isso testemunhamos a sua
intrínseca insuficiência. Como ensina ainda Eckhart, são obras vivas, divinas aquelas quem
tem em si o seu próprio fim, que agem por si mesmas; obras mortas, ao invés, são movidas
por outro, sem princípio em si mesmas.
O não sábio está portanto no mundo da alteridade, da divisão; a sua inteligência é
toda distinta, discriminante ou voltada para o juízo do bem e do mal, fruto da pretensão de
ser, embora ser determinado, com um pequeno ‘eu’ psicológico, que se nutre do confronto,
da oposição com os outros. Tal inteligência discriminativa, que faz cálculos – aquela que
Plotino chama de loghismòs, bem diferente do lògos – que não é capaz de alcançar o
conhecimento ou a concentração no Uno, pois é filha do desejo, na sua infinita inconstância,
fruto do incessante devir psicológico.
As Escrituras tem interesse no domínio psicológico – os guna são de fato os modos
essenciais da psique -, mas trata-se exatamente de libertar-se do psicológico e de sua lógica,
que é aquela do domínio, da aquisição e da possessão, da conservação, saindo do reino do
múltiplo e entrando naquele do Uno, daquela verdade suprema, lá onde não existem mais
opostos. Este é um dos pontos sobre o qual o Canto do bem-aventurado retorna com maior
insistência:
Aquele que se satisfaz com os ganhos que vem por si mesmo, que está livre da
dualidade e não inveja, que é estável tanto no êxito como no fracasso, nunca se
envolve, embora execute ações.50

Este é descrito como o sábio, diferente do ignorante:


Ó descendente de Bharata (Arjuna), ó conquistador do inimigo, todas as entidades
vivas nascem na ilusão, dominada pelas dualidades de desejo e ódio.51

A ilusão dos opostos, da multiplicidade, é causada pelas paixões:


A pessoa que não odeia nem deseja os frutos de suas atividades é conhecida como
sempre renunciada. Tal pessoa, liberada de todas as dualidades, supera facilmente o
cativeiro material e é completamente liberada, ó Arjuna de braços poderosos. 52

E ainda:
A pessoa que está livre da ilusão, do falso prestígio e d associação falsa, que
compreende o eterno, que acabou com a luxúria material e está livre da dualidade

50
BG IV, 22
51
BG VII, 27
52
BG V, 3
de felicidade e sofrimento, e que sabe como se render à Pessoa Suprema, alcança
este reino eterno.53

Ao sábio tudo aparece como Uno, porque ele é uno:


Diz-se que uma pessoa é ainda mais avançada quando ela considera todos – o bem-
querente honesto, amigos e inimigos, o invejoso, o piedoso, o pecador e aqueles que
são indiferentes e imparciais – com uma mente equânime.54

A igualdade (a Gleichheit de Eckhart) de ânimo, ou o desapego, produz a superação


do psicológico, com a sua contínua alternância, e o conhecimento estável do indivíduo, onde
ele é dono de si mesmo. Espírito significa antes de tudo luz da inteligência, lògos não
discriminante, que tudo compreende como Uno. Da mesma forma Eckhart escreve que:
A pureza da alma consiste no ser purificada da uma vida dividida e entrar numa vida
de unidade. Tudo o que está dividido nas coisas baixas une-se quando a alma se
ergue a uma vida onde não há contradições. Quando a alma alcança na luz da razão,
ela não sabe mais nada de contradição. O que é a contradição? Alegria e dor, branco
e preto estão em contradição, mas isso não tem nenhuma subsistência no ser. 55

A utilidade dos Vedas é, porém, para o homem do conhecimento, comparável a uma


cisterna em um lugar onde tudo está inundado pelas águas56, onde é clara a oposição não
somente entre a abundância das águas de um rio e a escassez daquela de uma cisterna, mas
também entre a correnteza viva do primeiro e a estagnação pútrida da segunda.
Portanto, é essencial – e esse é o ensinamento fundamental de Krishna – o desapego
dos frutos da ação:
Você tem o direito de executar seu dever prescrito, mas não tem direito aos frutos da ação.
Nunca se considere a causa dos resultados de suas atividades, e nunca se apegue a não fazer
seu dever. 57
É assim que o sábio se eleva a uma condição ética superior àquele da contradição, da
distinção, do dualismo do bem e do mal, mérito-demérito, que para ele desaparecem. Na luz
da razão tudo aparece luminoso, envolto em luz, mesmo o paradoxal, mas não por isso
menos verdadeira, conclui que:
Em toda obra, mesmo no mal, e no mal seja enquanto pena que enquanto culpa,
mostra-se e resplandece igualmente a glória de Deus, conforme está escrito: “A luz
resplandece na trevas” (Jo 1,5), e: “Luzes e trevas louvai o Senhor” (Dn 3,72); “Chama
as coisas que são como aquelas que não são” (Rom 4,17). Por isso, louva a Deus
também quem ofende alguém, na própria ofensa, ou no pecado da ofensa, e quanto

53
BG XV, 5
54
BG VI, 9
55
Sermões 8
56
Cf. BG II, 46
57
BG II, 47
mais ofende e gravemente peca, mais ainda louva a Deus, e mesmo blasfemando
Deus se o louva.58
Neste ser absolutamente desapegado, além dos opostos, além do bem e do mal,
consiste o conhecimento estável do espírito, e
A pessoa que não se perturba, apesar das três misérias, que não se exalta quando há
felicidade, e que está livre do apego, do medo e da ira, chama-se um sábio de mente
estável.59
Aquele que não tem apego, que não se regozija quando consegue o bem, nem se
lamenta quando obtém o mal, está firmemente fixo em conhecimento perfeito. 60

Ao contrário:
Contemplando os objetos dos sentidos, uma pessoa desenvolve apego por eles, e de
tal apego se desenvolve a luxúria, e da luxúria surge a ira. Da ira, surge a ilusão, e da
ilusão a confusão da memória. Quando a memória se confunde, se perde a
inteligência, e quando a inteligência se perde cai-se de novo no poço material.61

Por isso é necessário ser vigilantes nos confrontos com os sentidos, que correm o
risco de assumir o controle da inteligência, arrastando a inteligência, “assim com um vento
forte arrasta um barco nas águas”62.
O sábio faz uso dos sentidos, mas “a pessoa pode controlar seus sentidos pela prática
dos princípios regulados da liberdade”.63 Lá onde, ao invés, o sentidos dominam, a
meditação não encontra lugar, e sem meditação não há conhecimento de si, não há paz e
não há, portanto, felicidade.64
A oposição entre o ignorante, dominado pelos sentidos e forças psicológicas e a essas
preso, e o sábio, no qual predomina a inteligência, é descrita por Deus com uma imagem
esplêndida:
O que é noite para todos os seres é a hora de despertar para o auto-controlado; e a
hora de despertar para todos os seres é noite para o sábio introspectivo. 65

A verdadeira realidade, espiritual, é obscura, “noite”, para os ignorantes, que vivem a


vida dos sentidos, do desejo, conquistados pelos objetos exteriores que para eles constitui a
realidade. Ao contrário, essa se constitui como a noite da ignorância para o sábio, que

58
Eckhart, Commento al vangelo di Giovanni, p. 494. Estas proposições foram condenadas pela Bula In agro
dominico.
59
BG II, 56
60
BG II, 57
61
BG II, 62-63
62
BG II, 67
63
BG II, 64
64
Cf. BG II, 66
65
BG II, 69. Este texto corresponde ao de Eckhart: “Aquilo que é horror para os homens não livres, é alegria
profunda para os homens livres”. O contraste acordar e dormir é uma imagem de Heráclito.
conhece, “vê”, a realidade espiritual. Nessa, o múltiplo e a distinção entre conhecedor e
conhecido são vistas como ilusão, como um fruto de um sonho noturno.
O verdadeiro inimigo do homem é o desejo e a ira que desse procede quando é
contrariado:
O bem-aventurado Senhor disse: é unicamente a luxúria, Arjuna, que nasce do
contato com os modos materiais da paixão. Essa luxúria logo se transforma em ira, e
é o inimigo pecaminoso deste mundo que tudo devora.
Assim como o fogo está coberto pela fumaça, ou como um espelho está coberto pela
poeira, ou como o embrião está coberto pelo ventre, similarmente a entidade viva
está coberta por diferentes graus dessa luxúria. Assim, o conhecimento puro do ser
vivo está coberto por seu eterno inimigo na forma de luxúria, a qual nunca se satisfaz
e arde como o fogo.66

É necessário, pois que se restabeleça a correta hierarquia dos saberes.


Os sentidos funcionais são superiores à matéria inerte; a mente é superior aos
sentidos; a inteligência é ainda mais elevada que a mente; e a alma é mesmo mais
elevada que a inteligência.
Assim, sabendo-se transcendental aos sentidos, à mente e à inteligência materiais, a
pessoa deve controlar o eu inferior por meio do eu superior e assim – através da
força espiritual – conquistar esse inimigo insaciável chamado luxúria.67

Nesta hierarquia dos modos de conhecimento nota-se que o princípio espiritual


superior, além da inteligência, é apontado no texto com o masculino “ele”, com referência
evidente a uma realidade que é também pessoal na sua impessoalidade acima dos
contrários. É no seu Espírito que o homem deve encontrar forças, e somente assim estará
em condição de derrotar o desejo.68
Este segundo discurso de Deus conclui-se, porém descrevendo a condição de bem-
aventurança da qual goza, no presente, que domina o desejo e o apego:
Uma pessoa que não se perturba com o incessante fluxo dos desejos – que entram
como rios no oceano, o qual está sempre sendo enchido mas permanece sempre
estável – é a única que pode alcançar a paz, e não o home que luta para satisfazer
tais desejos.
Só uma pessoa que tenha renunciado a todos os desejos para gratificação dos
sentidos, que vive livre dos desejos, que renunciou a todo sentido de propriedade e
está desprovida do falso ego – pode alcançar a paz verdadeira.
Este é o caminho da vida espiritual e divina, depois de alcançar um homem não se
confunde. Estando assim situado, mesmo na hora da morte, a pessoa pode entrar no
reino de Deus.69

66
BG II, 37-39
67
BG II, 42-43
68
Acenamos à profunda semelhança que este texto tem com a “Ética” de Spinoza, além do mais é evidente a
relação com a mística cristã, seja na sua impostação geral, seja nos detalhes, onde se vê, por exemplo, na
conclusão da “Ética”, V, proposição 42. Os pontos de convergência entre o filósofo holandês e o Bhagavad Gita
não foram – que eu saiba – objeto de indagações específicas, mas pode ser igualmente interessante o
confronto com o Budismo.
69
BG II, 70-72
******
2
O problema da relação ação-inação, apego-desapego é percebido como central na
obra, e aparece muitas vezes no âmbito do diálogo Arjuna-Krishna e dos discursos onde o
Deus ensina o herói.
O terceiro discurso parte exatamente daqui:
Não é meramente se abstendo do trabalho que uma pessoa pode alcançar a
liberdade da reação, nem somente pela renúncia pode e alcançar a perfeição.
Todos os homens são forçados a agir desamparadamente de acordo com os impulsos
nascidos dos modos da natureza material; por isso, ninguém pode abster-se de fazer
algo, nem mesmo por um momento.70

O conhecimento das qualidades que surgem da natureza, às quais é dedicado um


amplo tratado, permite ao homem libertar-se da sua servidão, enquanto o homem cessa de
identificar-se com o corpo agregado e com os sentidos, reconhecendo ao invés a própria
realidade espiritual.
A alma espiritual confundida, sob a influência dos três modos da natureza material,
acha que é o executor das atividades que na realidade são levadas a cabo pela
natureza.
Aquele que tem conhecimento da Verdade Absoluta, ó Arjuna de braços poderosos,
não se ocupa nos sentidos, nem na gratificação deles, conhecendo bem a diferença
entre o trabalho em devoção e o trabalho para os resultados fruitivos. 71

Enquanto parte da natureza, o homem está sujeito ao determinismo natural, mas se


o princípio espiritual se perde, confundindo-se com o psicológico, então o homem atribui
erroneamente a si a responsabilidade do agir, atribuindo-se uma liberdade que na realidade
não possui. Sob o aspecto da natureza e deus “modos”, dos quais o homem é simplesmente
uma parte, deve-se falar mais em escravidão: o Reno da liberdade começa com o espírito ou
com o conhecimento.72
Portanto, sem se apegar aos frutos das atividades, deve-se agira por uma questão de
dever; pois trabalhando sem apego a pessoa alcança o Supremo.
Execute o seu dever prescrito, pois a ação é melhor que a inação. Sem trabalho, um
homem não pode nem mesmo manter seu corpo físico.73

70
BG III, 4-5
71
BG III, 27-28
72
Aqui também a doutrina indiana coincide com a de Spinoza.
73
BG III, 19 e 8
Como ensinam Margherita Porete e Eckhart, deve-se tranquilamente conceder à
natureza o que ela pede quanto ao sustento do corpo, sem exceder-se e em completo
desapego.
Não há possibilidade de uma pessoa tornar-se um yogi, ó Arjuna, se ela come em
demasia ou se come muito pouco, se dorme em demasia ou se não dorme o
suficiente.
Aquele que é moderado em seus hábitos de comer, dormir, trabalhar e recreação,
pode mitigar todas as dores materiais praticando o sistema de yoga.74

Por outro lado, é hipócrita aquele que controla os seus órgãos da ação, mas tem a
mente voltada ao sensível: este engana primeiramente a si mesmo, sempre vítima do
egoísmo.75 Escravos da hipocrisia e do egoísmo, animados pela libido e pelas paixões são
também aqueles que praticam a austeridade e penitências excessivas, enfraquecendo os
elementos do corpo e também o princípio espiritual enquanto mora no corpo: tais homens
são considerados demoníacos.76
Fundamental é o conhecimento de si e do verdadeiro Si, que não é o eu psicológico,
mas o princípio espiritual eterno:
Um homem deve se elevar com sua própria mente,e não se degradar. A mente é o
amigo da alma condicionada, e seu inimigo também.
Para aquele que conquistou a mente, ela é o melhor dos amigos; mas para a pessoa
que fracassou em fazê-lo, sua mente será seu pior inimigo.77

O homem desapegado de todas as qualidades que nascem da natureza e do


determinismo natural – volição, paixão, etc. – está harmonizado ao elemento espiritual, que
controla sem esforço, no e com o desapego, em um equilíbrio perfeito que ninguém pode
perturbar: nem desventura nem prosperidade, nem honra nem desonra, nem frio nem calor.
Nesse sentido a natureza é boa e é bom que os homens sigam sua própria natureza: mesmo
o homem do conhecimento age segundo a própria natureza e não pode ser de outra forma.
O ensinamento de Deus é aqui absolutamente idêntico àquele de Eckhart, como por
exemplo nas Instruções espirituais, seja por quanto concerne à impostação geral, seja por
quanto relaciona as respostas aos problemas particulares, salvaguardando obviamente as
diferenças dos contextos culturais.

74
BG VI, 16-17
75
Cf. BG III, 6
76
Cf. BG, XVII, 5-6
77
BG VI, 5-6
O homem desapegado não se preocupa de fato com o que é natureza e com o que é
graça, a partir do momento que ambas são de Deus e em Deus, e por isso combate a sua
batalha:
Portanto, ó Arjuna, rendendo todos os seus trabalhos a Mim, com a mente absorta
em Mim e sem desejo de ganho, livre do egoísmo e da letargia, lute.78

A ação do homem desapegado é de certa maneira não-ação, mas superior à inação,


semelhante ao agir de marta e melhor daquele de Maria – como Eckhart sustenta no
extraordinário sermão que vira do avesso toda exegese tradicional e o próprio texto do
evangelho – a partir do momento que é um agir fruto do conhecimento, rico de
contemplação madura plena.79
Nenhum homem, na vida presente, pode eximir-se de agir, mas o verdadeiro
desapego é o que renuncia ao fruto das ações;80 nem nos devemos preocupar com as
imperfeições das obras, pois a pessoa não deve abandonar o trabalho que nasce de sua
natureza, mesmo que tal trabalho esteja cheio de defeitos, pois todas as obras estão
envolvidas em defeitos, como o fogo pela fumaça.81 Por outro lado, mesmo contra a vontade
devemos cumpri-la, apesar de que mentalmente não quereríamos, pois seremos obrigados
pelo determinismo natural e não poderemos subtrair-nos:82 aqui está clara a consonância
com a doutrina estóica clássica por excelência: fata volentem ducunt, nolentem trahunt (o
destino conduz a quem se submete e arrasta a quem resiste), e a doutrina estóica do amor
fati (amor ao destino) aparece verdadeiramente, como pensava Simone Weil, a doutora
mística por excelência.
Deus não prescreve que coisa (was) se deve fazer, mas como (wie) se deve fazer –
aquilo que a natureza, o fato, o destino – portanto Deus mesmo – em cada instante no
colocam à nossa frente como dever a cumprir. Deus não olha os frutos, mas apenas às
raízes: a mística especulativa alemã, de Eckhart a Silésio83, também nisso são concordes com
o ensinamento do Bhagavad Gita, preparando assim a ética racional, universal, de Kant.

78
BG III, 30
79
Sermão 86
80
Cf. BG XVIII, 11
81
Cf. BG XVIII, 48
82
Cf. BG XVIII, 60
83
Cf. Eckhart, Istruzioni spirituali, p. 86: “Deus não tem em conta as obra em si, mas somente ao amor, à
devoção e à condição espiritual que as inspira. As obras para ele não contam tanto quanto a disposição de alma
e nosso amor por ele em cada obra. É muito ganancioso o homem que deus não lhe basta. A recompensa das
obras é saber que Deus as conhece, e que tu penses nele enquanto as realiza. Isso deve bastar-te em cada
momento, quanto mais o teu olhar o contempla na pureza e simplicidade, mais essas expiam o teu pecado”. E
Não nos libertaremos do determinismo e do egoísmo intrínseco em tudo quanto
provém da natureza, a não ser reconhecendo-o enquanto tal: por isso se pode dizer que é o
conhecimento que salva, não no sentido mítico gnóstico que vê a partir de fora, mas no
sentido preciso científico, ou seja, tendo uma ideia clara (como Spinoza) de que isto que está
em nós é obscuro, o que significa reconduzi-lo ao Uno, ao Todo, que é o bem, que é Deus.
Por isso Deus revela a Arjuna que:
Mesmo que você seja considerado o mais pecaminoso de todos os pecadores,
quando você estiver situado no barco do conhecimento transcendental, será capaz
de atravessar o oceano das misérias.
Ó Arjuna, assim como o fogo ardente converte a lenha em cinzas, assim também o
fogo do conhecimento reduz a cinzas todas as reações das atividades materiais.
Neste mundo, não há nada tão sublime e puro como o conhecimento
transcendental. Este conhecimento é o fruto maduro de todo o misticismo. E aquele
que o alcançou, desfruta do eu que está dentro de si mesmo no devido curso do
tempo.84
Ó castigador do inimigo, o sacrifício do conhecimento é superior ao sacrifício das
posses materiais. Ó filho de Prthã, depois de tudo, o sacrifício do trabalho culmina
em conhecimento transcendental.85

Se é de fato verdadeiro que “todas as obras estão envolvidas em defeitos, como o


fogo é pelo fogo”, - ou melhor, nós não conseguimos pular milagrosamente fora da condição
da natureza humana e da Eigenschaft (propriedade) que a domina – é porém da mesma
forma verdadeiro que o conhecimento produz o desapego (é por isso superior a tudo,
inclusive no amor, conforme Eckhart), e no desapego vai-se além da oposição natureza-
espírito, servidão-liberdade, egoísmo-altruísmo.
O conhecimento é purificação, sacrifício no seu sentido mais verdadeiro, enquanto
elimina toda pretensão de mérito e, paralelamente, também todo sentido de culpa sobre a
qual se concentra o eu psicológico e seu senso de apropriação, enquanto o sacrifício ritual,
religioso, serve ao invés para sustentar, fortalecer aquele eu. O compreender é por isso um
“resolver” os problemas, ou seja, também etimologicamente, um “escolher”, um libertar,
um desapegar. O sábio que compreendeu a necessidade universal dissolve no conhecimento
o dualismo bem-mal, e desta dissolução do que é dois – ou negação da negação – emerge o
espírito. Não se pode não citar aqui com extraordinário paralelo da Gita e sermão Mortuus
erat et revixit (ele estava morto e reviveu),de Eckhart, onde lemos:

Silésio, no Il peregrino cherubico, V, 37: “Deus não aprecia quem faz o bem (was), mas somente como o faz
(wie); não olha os frutos, apenas a raízes e sementes”.
84
BG IV, 36-38
85
BG IV, 33
Eu digo em absoluto que nunca houve nenhuma ação boa, nem santa, nem bem-
aventurada. Deus nunca foi em nenhum tempo bom, santo, bem-aventurado, nem
nunca será, nem isto nem aquilo. [...] Atenção ao que digo: a ação e o tempo no qual
a ação ocorre não são bons, nem santos, nem bem-aventurados. Bondade,
santidade, bem-aventurança são apenas denominações acidentais da ação e do
tempo, mas não elas mesmas. Por que? Porque uma ação enquanto ação não vem de
si mesma, não acontece por si mesma, pela própria vontade e nem mesmo sabe de si
mesma [...] A ação não tem nenhum ser e nem mesmo o tempo no qual ela ocorre;
de fato, ela desaparece em si mesma. Por isso ela não é boa, santa ou bem-
aventurada, mas é bem-aventurado o homem no qual permanece o fruto da ação,
não enquanto tempo e nem mesmo enquanto ação, mas enquanto boa qualidade,
que é eterna com o espírito, como o espírito é eterno em si mesmo e é o espírito
mesmo.
Neste sentido, nunca se perde o bom agir, e nem mesmo o tempo no qual ocorre:
não porque esse permaneça enquanto ação e tempo, mas porque, diluído da ação e
do tempo, é eterno com a sua qualidade no espírito, como o espírito é eterno em si
mesmo [...] A ação e o tempo são úteis para que o homem abandone a si mesmo. E
quanto mais o homem se liberta e abandona a si mesmo, tanto mais se aproxima de
Deus, que é livre em si, e enquanto o homem se liberta, não perde nem a ação e nem
o tempo [...] Os frutos das ações realizadas no espírito permanecem no espírito, e
são espírito com o espírito. Se as ações o tempo desaparecem, todavia vive o espírito
a partir do qual foram realizadas, e portanto vive o fruto das ações, diluídas do
tempo e da ação, cheio de graça, como o espírito é cheio de graça [...] Se mesmo a
ação se for junto com o tempo e for aniquilada, não é destruída quando está em
relação com o espírito no seu ser. E esta relação não é nada mais que o fato que o
espírito se torna livre a partir do comportamento tido nas ações.86

Neste sentido as ações são necessárias para o desapego, ou ao espírito, que não
pode emergir plenamente se não através das ações, no desapego da obra, onde se percebe
nitidamente o determinismo espaço-temporal e, portanto, a finitude, a parcialidade, a
ausência de mérito. Mas isso mesmo é o espírito no reconhecer, no saber e no
correspondente agir desapegado.
Então pode-se dizer “em as coisas”, não “nas coisas”, ou a ação realizada “sem
porquês” é idêntica à não-ação:
A pessoa que vê inação na ação e ação na inação é inteligente entre os homens, e
está na posição transcendental, ainda que se ocupe de toda classe de atividades. 87
Abandonando todo apego aos resultados de suas atividades, sempre satisfeita e
independente, esta pessoa não executa nenhuma ação fruitiva, apesar de estar
ocupada em todos os tipos de tarefa. 88

Ao comentar este último verso, Sankara explica que o sábio não age absolutamente,
mesmo se empenhado na ação, enquanto sabe que não age o seu Si profundo. Eckhart diria
que a “raiz da alma” permanece sempre imutável em profundo desapego, mesmo em meio

86
Eckhart, Sermoni tedeschi, p. 119-125
87
BG IV, 18
88
BG IV, 20
às vicissitudes e às dores da existência, exatamente como a dobradiça de uma porta
permanece parada enquanto o batente da porta se abre e se fecha.
A raiz da alma não é outra que Deus mesmo, o princípio espiritual inerente no mais
profundo do ser humano e ao mesmo tempo transcendente.

******
3
O conhecimento que salva é necessariamente conhecimento da relação corpo-alma,
natureza-espírito, no seu entretecer-se mas também no seu distinguir-se. O Bhagavad Gita
retorna mais vezes a esse tema crucial, em especial no 7º e 13º discurso de Krishna,
procurando apresentar um argumento que já constituía e constituirá depois motivo da
diferenciação entre as diversas escolas filosófico-teológicas indianas:
Terra, água, fogo, ar, éter, mente, inteligência e falso ego – todos estes oito em
conjunto compreendem Minhas energias materiais separadas.89

Esta, porém, é a realidade inferior já que existe uma realidade ou natureza superior,
que consiste na verdadeira vida, da qual surgiu o universo inteiro. Esta realidade superior é o
espírito de Deus, que permeia, sustenta e dá vida ao Todo. Por isso Deus pode dizer que
todos os seres tem origem nele, que é o princípio e o fim do universo. Com uma sugestiva
imagem, que se percebe de certa maneira na cadeia áurea de Homero e depois na tradição
neoplatônica, onde o universo mesmo é visto como ser tecido em Deus, como as pérolas de
um colar estão unidas por um fio.90
O texto tem o cuidado de impedir a identificação do mundo sensível com o princípio
divino, o qual permanece também sempre transcendente:
Todos os estados da existência – sejam eles bondade, paixão ou ignorância –
manifestam-se através da minha energia. Em um sentido, Eu sou tudo – mas Eu sou
independente. Eu não estou sob os modos desta natureza material. 91
Em Minha forma imanifesta Eu penetro todo este universo. Todos os seres estão em
Mim, mas Eu não estou neles. E ainda assim, tudo que é criado não repousa em Mim.
Eis aqui Minha opulência mística! Embora Eu seja o mantenedor de todas as
entidades vivas, e embora Eu esteja em toda parte, mesmo assim o Meu Eu é a fonte
mesma da criação.92

89
BG VII, 4
90
Cf. BG VII, 7
91
BG VII, 12
92
BG IX, 4-5
Ser dos mil rostos, Uno e múltiplo, Deus se apresenta como coincidentia
oppositorum: como pai e como mãe, como dissolução e conservação, como sol e como
chuva, como imortabilidade e como morte, como existência e como não existência.93
Presente no coração de todos os seres, é o espírito que constitui o princípio, meio e fim dos
mesmos seres.94
Com o trecho aristocrático, desapegado, universalístico, típico da grande mística, o
texto declara antes que todos aqueles que são devotos dos Deuses, quaisquer que sejam,
estão na realidade adorando, sem saber, Ele, o princípio supremo, que é o mesmo para
todos os seres.95 Deus mora naqueles que são devotos, e esses nEle96, segundo o conceito
que os cristãos chamariam de corpus mysticum, mas que no Gita assume um caráter
preponderantemente de conhecimento: mora em Deus, qualquer que seja o seu
comportamento, o sábio que, na identidade, venera o Deus presente em todos os seres.97 É
o sábio, que na yoga – ou naquela união com o Uno que é ao mesmo tempo desapego da
união com as coisas que causam sofrimento - 98 conhece o verdadeiro Si espiritual, e por isso
o vê presente em todos os seres, vendo em tudo a mesma realidade.99
Além de toda superficial distinção entre pessoal e impessoal, o Deus que é
sumamente pessoal na sua impessoalidade exprime-se nos confrontos do sábio, que é o
devoto, com palavras tocantes, muito mais profundas de muita religiosidade de origem
bíblica:
Eu não invejo ninguém nem sou parcial com ninguém. Sou igual para todos. Mas
aquele que presta serviço a Mim em devoção é um amigo, está em Mim e Eu sou um
amigo para ele.100

Não há, portanto, contraposição entre fé / devoção de um lado e conhecimento de


outro. A contraposição subsiste somente se se entende a primeira de modo supersticioso,
como dependência dos conteúdos finitos, e de vez em vez diversos, e não no seu sentido
forte do desapego, orientação à verdade absoluta, na força da qual se desprende, ou se
destrói toda finitude. Não por acaso a Gita diz:

93
Cf. BG IX, 15-19
94
Cf. BG X, 20
95
Cf. BG IX, 23 e 29
96
Cf. BG IX, 29
97
Cf. BG VI, 31
98
Cf. BG VI, 23
99
Cf. BG VI, 29
100
Cf. BG IX, 29
Um homem fiel que está absorto em conhecimento transcendental e que subjuga
todos os sentidos, alcança rapidamente a suprema paz espiritual.101

Em estreito paralelo com a mística cristã – pensemos por exemplo em Agostinho – o


texto formula os princípio pelos quais o homem se transforma naquilo que ama: na terra se
ama a terra, em Deus se ama Deus. Krishna revela:
Aqueles que adoram os semi-deuses nascerão entre os semi-deuses; aqueles que
adoram fantasmas e espíritos nascerão entre tais seres; aqueles que adoram aos
antepassados irão ter com os antepassados; e aqueles que Me adoram viverão
comigo.102

De fato, a realidade de cada um é dada pela sua fé:


De acordo com a existência da pessoa sob os diversos modos de natureza, ela
desenvolve um tipo de fé particular. Diz-se que o ser vivo é de uma fé particular de
acordo com os modos da natureza que adquiriu.103

Aqui também não se pode não pensar em Agostinho quando diz: pondus meum amor
meus: o meu peso é o meu amor; é ele que me leva para onde me leva.104
Ao contrário, lá onde falta fé, ou seja, a orientação ao Absoluto, há menos
possibilidade de compreensão e em seu lugar entra o pensamento do mal, o qual consiste
por essência na maldade. O Bhagavad Gita, neste ponto, concorda como nunca com a ética
de Espinoza: quem não alcança o pensamento de Deus, não pode compreender nada, por
isso:
Seguindo tais conclusões, os demoníacos, que estão totalmente perdidos e que não
tem inteligência, ocupam-se em trabalhos prejudiciais e horríveis destinados a
destruir o mundo.
Os homens demoníacos, refugiando-se na luxúria insaciável, no orgulho e no falso
prestígio, e encontrado-se assim iludidos, estão sempre entregues a trabalhos sujos,
atraídos pelo que não é permanente.
Eles acreditam que gratificar os sentidos até o fim da vida é a necessidade primordial
da civilização humana. Desse modo não há fim para sua ansiedade.105

Eles pensam que “este mundo é irreal, que não há fundamento e que não há nenhum
Deus controlando. Este se produz do desejo sexual, e não tem outra causa além da
luxúria”.106 Esta é, como diz Sankara, a opinião dos materialistas (lokayatika), para os quais o
desejo sexual é a única causa de todos os seres vivos. A origem deste extravio é o

101
BG IV, 39. O contexto é aquele já citado do ‘fogo do conhecimento, que reduz a cinzas todas as ações’. O
fogo da fé queima todos os ídolos.
102
BG IX, 25
103
BG XVII, 3
104
Cf. Agostinho, Confissões, XIII, 9, 10
105
BG XVI, 9-11
106
Cf. BG XVI, 8
egocentrismo, a Eigenschaft (propriedade). É por isso que a maldade é escrava da cobiça, da
luxúria e da ira – as três portas do inferno que ocultam a verdadeira essência espiritual do
homem e fazem que o malvado odeie a Deus, mesmo que este habite em seu corpo.107
Podemos ainda agostinianamente concluir que no home há o combate de dois
amores: um o amor de si, com o desprezo de Deus, e outro, o amor a Deus com o desprezo
de si, com a precisão porém que o ‘si mesmo’ que é amado no amo de si não é o verdadeiro
Si, a realidade verdadeira do homem, mas somente uma ilusão, uma aparência, enquanto o
verdadeiro Si é aquele Deus que num primeiro olhar aparece longe e outro. É por este
motivo que é importante o conhecimento de nós mesmos, também na relação corpo-alma,
com as suas determinações. Este tema é tratado no 13º discurso de Krishna, que se renova
idealmente no 7º.
O corpo é chamado “campo” (ksetra) e a consciência é vista como “conhecedora do
campo” (ksetrajna). Os dois conceitos correspondem, ao menos em determinado ponto,
respectivamente com Prakrti e Purusa, ou seja, com a natureza que é atividade inconsciente
e com a consciência que é sem atividade. Enquanto formas eternas do único princípio divino,
nem Prakrti nem Purusa tem origem.108 A sua união produz os seres:
A Verdade Suprema existe tanto interna como externamente, no movem e no imóvel. Ela
está além do poder de ver e de conhecer dos sentidos materiais. Embora muito, muito
distante, Ele também está perto de nós.109

Por outro lado o que conhece o campo pode estar associado aos modos da realidade
natural, ou seja, ao guna produzidos por Prakrti,110 mas pode também ser livre – e então
recebe o nome de espírito supremo (paramatman). Espírito, consciência individual e espírito
supremo, absoluto, são assim coincidentes: segundo o Gita, não há distinção entre o que
conhece o campo e o Senhor supremo:
Dessa forma, a entidade viva dentro da natureza material segue os caminhos da vida,
desfrutando dos três modos da natureza. Isto se deve à sua associação com esta
natureza material. Assim, a entidade viva se encontra com o bem e o mal entre as
diversas espécies. 111

Disso se deve falar de maneira usual àquilo que está junto finito-infinito, imanente-
transcendente – ou seja, com a coicidentia oppositorum:
Em toda parte estão Suas mãos e pernas, Seus olhos e rostos e Ele ouve tudo. Desta maneira
existe a Superalma.
A Superalma é a fonte original de todos os sentidos, contudo Ele é sem sentidos. Ele
é desapegado, embora seja o mantenedor de todos os seres vivos. Ele transcende

107
Cf. BG XVI, 18 e 21
108
Cf. BG XIII, 19
109
BG XIII, 26
110
Cf. BG XIII, 19
111
BG XIII, 22
aos modos da natureza material, e ao mesmo tempo é o mestre de todos os modos
da natureza material.
A Verdade Suprema existe tanto interna como externamente, no móvel e no imóvel.
Ele está além do poder ver e de conhecer dos sentidos materiais. Embora muito,
muito distante, Ele também está perto de nós. 112

Também na sua condição encarnada o espírito mantém as suas características


próprias:
Quando um homem sensível pára de ver identidades diferentes, que se devem a
corpos materiais diferentes, ele alcança a concepção de Brahman. Desse modo, ele
vê que os seres estão expandidos por toda parte.
Aqueles que têm a visão da eternidade podem ver que a alma é transcendental,
eterna e que está além dos modos da natureza. Apesar do contato com o corpo
material, ó Arjuna, a alma nem faz nada nem se envolve.
Embora o céu seja todo penetrante, não se mistura com nada devido á sua natureza
sutil. Similarmente, a alma, situada na visão de Brahman, não se mistura com o
corpo, muito embora esteja situada neste corpo.113

A libertação consiste, portanto, no conhecer Purusa e Prakrti, juntamente com seus


modos (guna)114 observando que as ações são realizadas por Prakrti enquanto o Si profundo
permanece imutável, fazendo assim a distinção acurada, com os olhos da sabedoria, de
campo e conhecedor do campo.115

******
4

O 14º discurso de Krishna é dedicado ao conhecimento específico dos modos (guna).


Elementos constitutivos da natureza e base de todas as substâncias, os guna são as três
tendências da Praktri. O sattva reflete a da consciência e é iluminado, e tem portatno a
qualidade da luz irradiante; o rajas dispõe de um movimento para fora e o tamas é
caracterizado pela inércia e pela apática indiferença. É difícil encontrar termos ocidentais
que equivalem exatamente a estas palavras sânscritas: sattva quer dizer pureza e
luminosidade perfeitas, rajas é a condição de impureza que leva à atividade, enquanto
tamas é escuridão e inércia. O melhor é manter os termos originais.
O ponto essencial desse saber psicológico, ontológico, teológico (ainda como na Ética
espinoziana), está no fato que tais qualidades ou tendências, que derivam de Praktri e,
portanto, em última análise de Deus116:

A natureza material consiste dos três modos – bondade, paixão e ignorância. Quando
a entidade viva entre em contato com a natureza, ela fica condicionada por estes
modos.117

112
BG XIII, 14-16
113
BG XIII, 31-33
114
Cf. BG XIII, 23
115
Cf. BG XIII, 34
116
Cf. BG XIV, 4
117
BG XIV, 5
Quando a alma se identifica simplesmente com os modos da natureza, então corpo e
psique são usados para a satisfação do ego, que se torna prisioneiro da ignorância, da ilusão,
no mundo dualista. Mas a libertação não pode consistir em uma impossível “saída” dos
modos da natureza, antes consiste na sua superação, quando se torna “aquele que superou
os três guna (trigunatitah). Tal superação é um misto de sublimação – obviamente no
sentido originário, goethiano, hegeliano e nietzschiano do termo, oposto àquele freudiano –
com o qual o sattva é sublimado na luz da consciência (jyoiti), o rajas na austeridade ou na
penitência (tapas) e o tamas na serenidade ou repouso (santi). O mais sublime entre os três
é o sattva, pois somente a inteligência – ou o desapego – está em grau de estar acima das
qualidades inferiores e é capaz de superar a si mesmo, pois “se extrai um plugue por meio
de outro plugue”, ou o desapego é capaz de ser desapego do desapego, ou como disse
Eckhart, não há desapego que não possa ser superado por um desapego maior.
Os guna aprisionam o espírito de diversas maneiras, segundo a sua natureza:

Ó impecável, o modo de bondade, sendo mais puro que os outros, ilumina e livra a
pessoa de todas as ações pecaminosas. Aqueles que se situam nesse modo
desenvolvem conhecimento, mas ficam condicionados pelo conceito de felicidade.
Ó filho de Kunti, o modo da paixão nasce dos desejos e anseios ilimitados, e por
causa disso a pessoa se prende às atividades fruitivas materiais.
Ó filho de Bharata, o modo de ignorância causa a ilusão de todas as entidades vivas.
O resultado desse modo é a loucura, a indolência, o sono, que prendem a alma
condicionada.
O modo de bondade condiciona a pessoa à felicidade, a paixão condiciona a pessoa
aos frutos da ação, e a ignorância à loucura.118

Os três guna, ao predominarem no homem, dão lugar a três “tipos psicológicos”:


sattvico é o homem no qual predomina a calma e o desinteresse do conhecimento; rajasico
é ativo, inquieto e sempre empreendedor da cobiça; tamasico é o homem sem luz, inativo,
negligente.119 Por outro lado há um perfeito paralelismo ético-gnoseológico: bondade e
conhecimento estão unidos no sattva; paixão e desejo de agir no rajas; negligência,
confusão e trevas no tamas.120
Os três modos nunca estão no mesmo plano, mas bem definidos hierarquicamente,
mesmo em suas conseqüências éticas, no plano da felicidade ou da dor: no momento que o
primeiro guna leva para o alto, o segundo fica no meio e o terceiro bem mais abaixo.121
O ponto central é, porém, que se deve superar os três guna, elevando-se do plano
estritamente ético àquele espiritual, que está além de sattva e cumpre-se a partir deste.
Para esta superação há uma única via, aquela do conhecimento dos guna, do qual procede o
desapego:
O Bem-aventurado Senhor disse: Aquele que não odeia a iluminação, apego e ilusão
quando estão presentes, nem os cobiça quando desaparecem; que está situado
como indiferente, estando situado além destas reações materiais dos modos de
natureza, que permanece firme, sabendo que só os modos estão ativos, que

118
BG XIV, 6-9
119
Cf. BG XIV, 11-13
120
Cf. BG XIV, 17
121
Cf. BG XIV, 18
considera igualmente prazer e dor, e vê com igual visão um torrão de terra, uma
pedra e uma barra de ouro; que é sábio e considera que louvor e blasfêmia são o
mesmo; que é imutável na honra e na desonra, que trata amigo e inimigo
igualmente, que abandonou todos os compromissos fruitivos – tal homem é
considerado transcendental aos modos da natureza.122

Doutrina exatamente igual àquela formulada por Eckhart nas Instruzioni spirituali, às
vezes com as mesmas expressões, e é particularmente digno de nota pelo fato que o
desapego é exercitado em todas as condições, sem privilegiar nenhuma. Neste sentido –
como aparece na melhor mística cristã – não se procuram “estados” particulares,
considerados de alguma maneira melhores: nem contemplação, nem prece, nem alegria
espiritual. O motivo é evidente: cada estado, não excluindo nenhum, cai no determinismo
natural (é fruto dos guna), por isso se não se exercita o desapego em cada um desses, isso
mostra de não ser desapego, mas ligame, acessório egoísta; e por isso toda mística que vai
em busca de “estados”, ou pior ainda, de “poderes”, mostra imediatamente sua falisdade,
sua natureza demoníaca, parenta próxima da magia.
Quanto à distinção entre os guna e as suas conseqüências, o Bhavadad Gita retorna
ainda no seu discurso conclusivo. Conforme este existe três tipos de conseqüência:

Este conhecimento através do qual se vê uma só natureza espiritual indivisa em


todas as existências, indivisa no dividido, é conhecimento no modo de bondade.
O conhecimento através do qual se vê um tipo diferente de entidade viva morando
em corpos diferentes é conhecimento no modo de paixão.
E se diz que o conhecimento através do qual uma pessoa se apega a um tipo de
trabalho como se esse trabalho fosse tudo, sem interessar-se na Verdade, e o qual é
muito escasso, está no modo da escuridão. 123

Três tipos de ação:


Quanto às ações, a ação de acordo com o dever, que se executa sem apego, sem
amor nem ódio, por uma pessoa que renuncia aos resultados fruitivos, chama-se
ação no modo de bondade.
Mas a ação que se executa com grande esforço por parte de uma pessoa que busca
gratificar seus desejos, e que se executa por um sentido de falso ego, chama-se ação
no modo da paixão.
E a ação executada em ignorância e ilusão, sem se considerar o cativeiro ou as
conseqüências futuras, que inflige dano e não é prática, é considerada ação no modo
da ignorância.124

Três tipos de trabalhadores:


O trabalhador que está livre de todos os apegos materiais e do falso ego, que é
entusiasta e resoluto e que é indiferente ao êxito ou ao fracasso, é um trabalhador
no modo de bondade.
Mas o trabalhador que está apegado aos frutos de seu trabalho e que quer
apaixonadamente desfrutá-los, que é cobiçoso, invejoso e impuro, e se comove com
a felicidade e o sofrimento, é um trabalhador no modo da paixão.

122
BG XIV, 22-25
123
BG XVIII, 20-22
124
BG XVIII, 23-25
E o trabalhador que está sempre ocupado em trabalho contra a injunção da
escritura, que é materialista, obstinado, enganador e experto em insultar os outros,
que é preguiçoso, sempre desanimado e moroso, é um trabalhador no modo da
ignorância. 125

Mas há também três tipos de compreensão – no sentido de capacidade seletiva – e


de determinação:
Ó filho de Prthã, esta compreensão através da qual uma pessoa sabe o que se deve
fazer e o que não se deve fazer, o que se deve temer e o que não se deve temer, o
que ata e o que liberta, essa compreensão está estabelecida no modo da bondade.
E a compreensão que não pode distinguir entre a forma de vida religiosa e irreligiosa,
entre a ação que se deve executar e a ação que não se deve executar, essa
compreensão imperfeita, ó filho de Prthã, está no modo da paixão.
Essa compreensão que considera que irreligião é religião e religião é irreligião, que
está sob o encanto da ilusão e da escuridão, e que se esforça sempre na direção
errada, ó Pãrtha, está no modo da ignorância.126

Ó filho de Prthã, a determinação que é inquebrantável, que se sustém com


constância através da prática da yoga, e desse modo controla a mente, a vida e os
atos dos sentidos, está no modo de bondade.
E a determinação através da qual uma pessoa se aferra ao resultado fruitivo na
religião, no desenvolvimento econômico e na gratificação dos sentidos, e da natureza
da paixão, ó Arjuna.
E a determinação que não pode ir além do sonho, do temor, da lamentação, do mau
humor e da ilusão – tal determinação carente de inteligência está no modo da
escuridão.127

E enfim três tipos de felicidade:

125
BG XVIII, 26-28
126
BG XVIII, 30-32
127
BG XVIII, 33-35

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