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Os Intelectuais e a Internet
Rogério de Souza Sergio Ferreira *
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iria gostar ou não do nome escolhido não vem ao caso; o relevante para
nossa discussão, no presente ensaio, é tentar situar o papel do intelectual no
orbe da cibercultura, vale dizer, deste novo espaço que foi criado com a
popularização do microcomputador e da Internet. Para tanto, precisamos re-
ver, inicialmente, alguns conceitos sobre esta figura que já teve seus dias de
glória, mas que, nos albores do século XXI, viu sua influência esvaecida.
Após estas considerações, discutiremos a propriedade da Internet no agencia-
mento entre o intelecutal e seu público. De que formas o intelectual se serve
da Internet para divulgar suas idéias? A Internet resgata o status do intelectual
ou contribui ainda mais para sua queda? Que tipo de intelectual se sentiria
mais à vontade na hipertextualidade eletrônica? Essas são algumas perguntas
que poderíamos fazer acerca de tema tão complexo e cativante e, ao tentar
respondê-las, acreditamos estar contribuindo para a compreensão tanto do
personagem quanto dessa nova tecnologia que, não obstante o pouco tempo
de existência, se oferece como real opção de comunicação.
Intelectuais sempre povoaram o planeta. Eles eram conhecidos –
dependendo da época – como sábios, sapientes, doutos, philosophes, hommes
de lettres, literatos e clercs (Bobbio, 1997, p. 111). Porém, “o intelectual,
como todos sabem, é um animal sobretudo moderno” (Henry Lévy, 1988,
p.26); isto porque o caso Dreyfus, episódio ocorrido na virada do século
XIX para o século XX, viria a ser considerado o divisor entre uma tradição
antiga – como a dos grandes pensadores dos tempos da Revolução France-
sa – e o momento contemporâneo, marcado pelo engajamento do pensador
(politizado) em áreas específicas.
Douglas Kellmer, no ensaio Intellectuals and new technologies, 1 afir-
ma que Jean-Paul Sartre foi quem relacionou o aparecimento do vocábulo
com o episódio do militar judeu-francês. No dia 14 de junho de 1898, o
“manifeste des intellectuals” fora publicado no jornal francês L’Aurore. A
partir daí, a expressão passaria a ter conotação pejorativa, pois este grupo
reduzido de indivíduos estaria, ao desafiar a corte militar francesa, interfe-
rindo em assuntos que não lhe competiam. Era o nascimento daquele que
tinha a vocação de meter o bedelho em assuntos que não lhe diziam res-
peito.
O intelectual institucionalizado surge deste episódio. Contudo, seus
contornos identitários logo passariam por grandes mudanças. A mesma França
que os inventou em caráter, digamos “oficial”, foi também, na figura de
1
O ensaio completo encontra-se disponível no endereço http://trace.ntu.ac.uk/
frame/freebase/free2/Kellner.html, capturado no dia 9 de outubro de 2001.
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2
Todas as traduções, do inglês para o português, são da lavra do autor deste
ensaio. “a busca de objetivos práticos”
3
“todos aqueles que procuram suas alegrias na prática de uma arte ou ciência ou
especulação metafísica, em síntese, na posse de vantangens não-materiais”.
4
“ninguém negará que por toda a Europa de hoje a imensa maioria dos homens
das letras e artistas (...) compartilha com o repertório de ódio entre raças e
facções políticas”
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revolução, por exemplo, passou a ser vista com ceticismo por grande nú-
mero de intelectuais da esquerda. Edward Said, um dos mais brilhantes
intelectuais que atuam nos Estados Unidos e a quem recorreremos com
freqüência neste ensaio, cita, em seu livro Representations of the Intellectuals
(1996), casos de intelectuais que abraçavam as causas de Moscou na época
da Guerra Fria e, mais tarde, desencantavam-se, retornando à crença não-
comunista.
Uma outra possível explicação para a queda de prestígio do verda-
deiro pensador encontra-se, segundo Pierre Bourdieu, no pouco espaço
que a imprensa escrita contemporânea dedica a essas pessoas. O sucesso
de muitas ações políticas de Sartre deve ser creditado ao apoio das páginas
impressas; hoje, prossegue Bourdieu, “o espaço máximo que Sartre teria em
um jornal seria o de um artigo na página de opinião, porque os intelectuais
mediáticos exercem uma espécie de monopólio da mídia”. 5 Esses falsos
intelectuais, cujas obras não despertam interesse algum, prossegue Bourdieu,
estariam sempre dispostos a falar qualquer bobagem, sobre qualquer assun-
to, prejudicando, dessa forma, a atuação de pensadores engajados em cau-
sas sérias.
Como que para justificar uma linha de ação mais apropriada aos
tempos em que vivemos, Bourdieu e seus pares não perdem a oportunida-
de de apontar falhas na conduta de Sartre perante certas questões. Bourdieu,
na entrevista mencionada acima, enfatiza que o famoso intelectual francês
já “disse muitas besteiras”; Roberto Pompeu de Toledo, em sua coluna na
revista Veja (2001), ridiculariza Sartre pelo fato de o mesmo ter se espanta-
do por não ver negros em uma de suas palestras no Brasil, como se aqui
não existisse discriminação racial; Said6 lembra que o pensador francês nun-
ca denunciou o ditador Stalin, por manter campos de prisoneiros políticos
na Sibéria da década de 30 – episódio que veio a ser brilhantemente explo-
rado por Alexander Solzheinstsyn, no livro O Arquipélago Gulag.
Michel Foucault e Antonio Gramsci igualmente firmaram posições
acerca da importância do pensamento crítico para a sociedade. Foucault
censurava o modo pelo qual Sartre abraçava suas causas. Em sua ótica, os
esforços do intelectual deveriam ser encaminhados não para uma luta “a
5
Entrevista concedida a Luciano Trigo e disponível on line http://
www.icb.ufmg.br/lpf/Trigo,Entrevista-com-Pierre-Bourdieu.html, consultada no
dia 12/10/2001.
6
Em My Encounter with Sartre, capturado em 20/03/2001, no endereço http://
www.lrb.co.uk/v22/n11/said2211.htm
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favor” da verdade, mas sim para a compreensão do “status of truth and the
economic and political role it plays”7 (Foucault, 1984, p. 74). No passado,
segundo Foucault, o intelectual caracterizava-se por ser uma espécie de
consciência de todos nós; ele nos representava e falava em nosso favor.
Seguindo-se à Segunda Guerra Mundial, houve o fenômeno de valorização
das atividades específicas de cada indivíduo, daí emergindo a figura do
“intelectual específico” 8 (Foucault, 1984, p. 23). O trabalho em setores visí-
veis para a sociedade, como hospitais, escolas, fábricas, etc., ajudava-o na
aquisição de posicionamento mais concreto frente aos embates cívicos de
que participava. Uma nova conexão entre “teoria e prática” havia sido esta-
belecida, como se o intelectual estivesse “aterrisando”, após um bom tempo
vivendo em outro planeta. O intelectual não pertenceria mais a um grupo
bastante pequeno e seletivo, com valores morais e filosóficos acima de
qualquer interesse em particular, como defendia Julien Benda, mas seria um
indivíduo que preencheria um conjunto específico de funções na socieda-
de. Para Foucault, esta especificidade no trabalho do intelectual apresenta-
ria duas vantagens: ele ficaria exposto aos problemas reais (os que afetam
nossa rotina) e continuaria combatendo os inimigos de sempre, isto é, as
multinacionais, os órgãos judiciais e políticos, entre outros. Nesse sentido, o
pensamento de Foucault se aproxima bastante dos argumentos de Antônio
Gramsci para quem, em princípio, haveria dois tipos de intelectuais: os
orgânicos, cuja função é prover ideologia às classes dominantes, estando
ligados à produção material, e os tradicionais, que perpetuam a continuida-
de e modus operandi de instituições como, por exemplo, a Igreja, a escola
e os tribunais. Gramsci atenta para o detalhe de que “existem graus diversos
de atividades específica intelectual” [sic] (Gramsci, s/d, p.7); logo, infere-se
que, a partir do momento que possuímos modo de pensar próprio, capaz
de contribuir para manter ou alterar nossa percepção do mundo, estaríamos
agindo como intelectuais.
Coincidentemente, poucos anos após a morte de Sartre e Foucault,
presenciaríamos a popularização do microcomputador, por volta de 1985, e o
surgimento da Internet, em 1989. Essa nova mídia de comunicação abrigaria,
com desenvoltura, pensamentos dos grandes intelectuais contemporâneos,
entre eles o árabe de nascimento e norte-americano por opção, Edward Said.
Said aborda o tema sob um prisma político global diferente daquele
oferecido por seus antecessores. Em seu entender, os intelectuais deveriam
7
“estatuto da verdade e o papel econômico e político por ele exercido”
8
Do inglês “Especific intellectual”.
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9
“nacionalismo patriótico, pensamentos corporativistas, sentido ou consciência
de classe e privilégios de raça ou gênero”.
10
Acredito que a escolha mais relevante colocada diante do intelectual é a de
aliar-se à estabilidade dos vitoriosos e governantes ou, o caminho mais difícil,
considerar essa estabilidade como estado de emergência que ameaça os menos
afortunados com o perigo de total extinção (Edward Said).
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11
“um entendimento racional e não de tambores de guerra é o que precisamos
no momento”, capturado no endereço http://www.obser ver.co.uk/Print/
0,3858,4258199,00.html, no dia 14/10/2001.
12
disponível em www.worldbank.org/prospects/gep2001/chapt4.pdf.
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