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b r

194

Jun. 2016

Arte da capa: Guazzelli


ENTREVISTAs
> Godofredo de Oliveira Neto • 6

> Leonardo Padura • 22

INÉDITO

Reciclagem, de
Natália Nami • 28
2| | junho de 2016

translato | Eduardo Ferreira

A alma da tradução


Traduzi Ruskin em Ruskin e Renan, para Nabuco, per- fundado em 8 de abril de 2000
francês, ou Renan em deriam a alma se traduzidos do inglês e do
inglês; perderiam a al- francês, respectivamente, para qualquer Rascunho é uma publicação mensal
ma. A alma do escri- outro idioma. da Editora Letras & Livros Ltda.
tor é feita em grande parte de sua Muita coisa se perde numa tradução, Caixa Postal 18821
língua. De uma raça a outra, duas não há dúvida. Talvez seja a alma apenas mais CEP: 80430-970
palavras imateriais não podem ter uma dessas coisas. Alma que poderia signifi- Curitiba - PR
o mesmo valor, nem o mesmo pe- car “identidade literária” ou “estilo”. O estilo
so.” Palavras de Joaquim Nabuco, próprio do autor e, mais que isso, o estilo do
citadas por Wilson Martins em autor expresso em sua língua materna. rascunho@rascunho.com.br

sua monumental História da in- Jean-Pierre Brisset, citado por Michel www.rascunho.com.br

teligência brasileira. Foucault na mesma obra de Martins, dizia twitter.com/@jornalrascunho


Verdadeira defesa da intra- que seu livro La Science de Dieu “não po-
facebook.com/jornal.rascunho
duzibilidade da essência do au- de ser inteiramente traduzido”. Foucault in-
tor e, por consequência, de seu fere que ele (o livro, ou quem sabe o próprio instagram.com/jornalrascunho

texto (pelo menos em sua condi- Brisset) “permanece imóvel, com e na lín-
ção de texto autoral). Até onde gua francesa, como se ela fosse de si mesma
Editor
chegaria essa verdade? a sua própria origem”. Novamente a intra-
Paulo Leminski, em seus duzibilidade — nesse caso com uma pitada Rogério Pereira
Anseios crípticos, escreveu al- de autoexaltação por parte de Brisset.
go ligeiramente similar: “...nos- A obra de Brisset pareceria inamo- Editor-assistente
sa língua materna é a substância vível de seu ambiente francês. Ambiente Samarone Dias
de que é feita nossa alma”. O que teria a característica toda especial da
poeta não parece apontar, com originalidade — uma língua que não deve Mídias Sociais
isso, para a intraduzibilidade do nada a nenhuma outra. Que não tem tri- Lívia Costa
autor ou do texto autoral. Mas butários que para ela concorreram, embo-
salienta fortemente a impor- ra possa ter descendência. A língua original,
Colunistas
tância da língua materna como a mais próxima do próprio Verbo, que ser-
elemento de formação e indivi- viu de elemento de expressão de um tema Affonso Romano de Sant’Anna
dualidade de qualquer pessoa — nada menor: a ciência de Deus. Foucault, Eduardo Ferreira
um escritor, por exemplo. novamente citado por Martins, diria que a Fernando Monteiro
Nabuco ressalta a singulari- pesquisa sobre a origem das línguas, com João Cezar de Castro Rocha
dade de cada língua — usando co- Brisset e outros, começava a “derivar pouco José Castello
mo exemplo dois escritores de sua a pouco para o lado do delírio”. Nelson de Oliveira
predileção. Destaca também que, Mas Brisset, aparentemente, não que- Raimundo Carrero
“de uma raça a outra”, ou de uma ria individualizar o francês. Se assim não Rinaldo de Fernandes
língua a outra, duas palavras “ima- fosse, não teria afirmado, conforme Wilson
Rogério Pereira
teriais” não terão nem o mesmo va- Martins, que “a origem de cada língua es-
Tércia Montenegro
lor nem o mesmo peso. Não terão tá nela mesma”. Não apenas o francês, mas
significados plenamente equiva- qualquer outra língua dispensaria tributá- Wilberth Salgueiro
lentes, em todos os sentidos. Per- rios — o que, do ponto de vista atual, não
derão algo nessa arriscada travessia. deixa de parecer um completo disparate. Projeto gráfico e programação visual
Sobressai aqui a imateria- Sejam quais forem as origens das lín- Rogério Pereira / Alexandre De Mari
lidade da palavra. Não se trata guas, contudo, parece claro o conceito de
da tinta no papel, nem do jogo impossibilidade de uma tradução comple- Colaboradores desta edição
de luzes e contrastes na tela, mas ta, ou que transplante também a “alma”, Adriano Koehler
daquilo que deve evocar cada tanto em Brisset como em Nabuco. Difí- André Caramuru Aubert
um desses conjuntos de sinais. cil pensar em algo mais perto da verdade, Carina Lessa
O peso e o valor que deve evocar desde que se tenha alguma fé na alma do Edson Cruz
toda palavra. texto autoral.
Jacques Fux
Jonatan Silva
Lívia Inácio

rodapé
Louise Glück
| Rinaldo de Fernandes Marcio Renato dos Santos
Marcos Hidemi de Lima

Anotações sobre
Natália Nami
Rodrigo Casarin
Vilma Costa

romances (34) ILUSTRADORES


Bruno Schier
Dê Almeida

N
Fábio Abreu
enhuma reputação desabusado, desmedido, atira- vários capítulos e andamentos do li- Hallina Beltrão
se sustenta dian- do, insensato, incorreto politica- vro — e aí são vários os tipos e ele- Ramon Muniz
te do narrador de mente... São muitos os termos. mentos da cultura contemporânea Tereza Yamashita
Marcelo Mirisola. A linguagem intempestiva dele que são ironizados (e até barbariza- Tiago Silva
Em Animais em extinção, ro- chama bastante a atenção, sen- dos). Mas ainda me pergunto sobre
mance de 2008 do escritor pau- do o palavrão uma de suas mar- quem é esse narrador? Que tipo ele
lista, o pessoal do hip-hop, os cas — mas também o termo quer significar em nossa sociedade?
tipos mundanos da Praça Roose- erudito, a apreciação teórica ou Aparentemente, o urbano, de clas- Apoio:
velt e até um escritor ilustre como conceitual (ao modo dele!). Um se média sem perspectiva, buscando
Jorge Luis Borges são cutucados, erotismo bizarro também é mar- sentido na violência (trata-se de um
desautorizados. Como definir o ca da narrativa, em que o esca- narrador muito violento!).
narrador de Animais em extin- tológico brutaliza e fere o “bom
ção? Canalha, mesquinho, pre- gosto” literário. O talentoso cro- >> CONTINUA NA
conceituoso (profundamente!), nista de costumes aparece em PRÓXIMA EDIÇÃO.
junho de 2016 | |3

10
O grifo de Abdera
12
Poesia completa
15
Inquérito
30
Poemas
Lourenço Mutarelli Orides Fontela Heloisa Seixas Louise Glück

eu, o leitor quase diário


cartas@rascunho.com.br
| Affonso Romano de Sant’Anna
Sensibilidade
barométrica
Alguns se aventuram a assinar crítica
Quando Collor caiu
literária como se estivessem em

C
Jogos vorazes, em que o ameaçado é
o desvalido escritor. Os leitores de aiu definitivamente Collor. 03.11.1993
Rascunho temos o privilégio de Dia 18, o Senado votou pe- Jantar na casa de Roberto Marinho em homena-
contar com a página de José Castello. lo impeachment e sua inele- gem a David Rockfeller com a presença de umas 100
Em Teoria do desconhecimento gibilidade por oito anos ( Por pessoas. Na mesa de Lily de Carvalho, onde me pu-
[edição 192], uma veraz Clarice que oito?). O país aliviado, Itamar Franco seram, converso com Luiz Fernando Levy, da Gazeta
Lispector confidencia, em suas assumiu poucas horas depois. Ninguém Mercantil. Tento lhe passar a ideia de que seu jornal po-
próprias palavras, sua incessante entendeu as burradas que ele fez na Pre- deria incorporar o Brazilian Book Review da FBN.
busca à liberdade, esgueirando- sidência. Um enigma tão absurdo quanto João Donato da CNI conta: já que Brizola acha
se até o misterioso “it”. Quem o assassinato da atriz Daniella Perez por que a Globo está inventando a violência no Rio e desco-
recolhe as confissões de Clarice, seu colega Guilherme de Pádua e a mu- brindo crimes, poderia dispensar a polícia e apenas se-
com consideração e sensibilidade lher Paula Thomaz. O país traumatizado. guir os carros da Globo.
barométrica, é nosso amigo na Vou fazer uma crônica. Alguns empresários começam a admitir que Lula
poltrona. Seu texto é evidente é um candidato aceitável. Empresários acham que An-
demonstração de uma postura 21.05.1993 tonio Carlos Magalhães é outra opção. Este, aliás, foi
arguta diante de uma engenhadora Assumiu Fernando Henrique Car- gentilíssimo com a FBN: aceitou que se realizasse, às suas
contumaz. “Gênero não me pega doso a pasta da Fazenda no governo Ita- custas (do governo da Bahia), o Encontro Nacional de
mais”, revela Clarice. Nem os mar. Continuou todo o dia um boato de Bibliotecas em Salvador, me telefonou dando parabéns
protocolos da crítica, adianta que eu iria para o Ministério da Cultu- pelo texto sobre o Pelourinho que saiu num livro que fez.
Castello. O grande feito de Castello, ra. Não me interessa mais. Não há como Roberto Marinho me chama para conversar no
no artigo, é nos remeter de volta à ser ministro neste governo. Prefiro termi- jardim de sua casa e conta que aqueles flamingos foram
leitura de Clarice. À pergunta nar meu trabalho na Fundação Biblioteca presentes de Fidel Castro. Tem mais de trinta ali. Pa-
“O que é?”, ela responde “Não sei”. Nacional (FBN). recem um bando de flores ambulantes. Suas asas foram
Carmen L. Oliveira • Dizem que Celina Moreira Franco cortadas para não voarem. Diz Marinho que em Angra
Pirassununga - SP pode ser da Cultura. tem uma porção deles.
Roberto Marinho, que agora está na Academia
Entusiasmo 25.06.1993 Brasileira de Letras, me diz: “Você que é um homem de
Estou assinando há cerca de Revelou-se que Antonio Houaiss ideias, tem que me sugerir coisas, porque quero fazer al-
dois meses o Rascunho e quero não conseguiu impedir que o orçamento go pela Academia”. Embora não tenha o menor projeto
parabenizá-los pela qualidade da Cultura caísse de 0,4% para 0,3%. Ele de ser acadêmico, falo sobre a urgência de informatiza-
do material produzido. Vamos está internado no Hospital Silvestre: úlce- ção da instituição e que a ABL deveria se transformar
recomendar a assinatura ra, gastrite, hemorragia. Numa entrevista num centro cultural importante.
aos nossos seguidores. à TVE estava muito nervoso.
Lélio Pendragon Boatos de que Rachel de Queiroz 09.10.1993
Governador Valadares - MG vai para o lugar de Houaiss. Cai Jeronimo Moscardo, ministro da Cultura. Crí-
tico de FHC, numa reunião de ministério, atacou seu pla-
Nas redes sociais 04.08.1993 no econômico anunciado há três dias. Colocou a cultura
Imagino o trabalho que dá José Aparecido telefona para Ma- no centro do debate. A cultura pode modificar o Brasil1.
editar sobre literatura neste país. rina desculpando-se, dizendo que Paulo Recomeçou a agitação em torno do meu nome. Ci-
Sigam em frente. Metade do Sergio Pinheiro ia ser o novo ministro. lon vem de Brasília, diz que no Ministério só falam e espe-
que leio no @jornalrascunho Explica que eu não fui indicado porque ram isso. Ana Regina me chama a um canto no coquetel
é novo pra mim. Mas é minha era “das margens do Paraibuna”. Marina de lançamento dos desenhos/livros de Albert Eckhout2
oportunidade de conhecer. lhe diz: “Mas acho que ele não está inte- para dizer que os dirigentes (leia-se Gullar, Miranda, etc.
Liliane de Paula Martins ressado no Ministério”. Neste dia, no en- da área da cultura) querem apresentar meu nome antes
(@liliane20000) • Instagram tanto, saiu no Zózimo notícia de que o que comecem a convidar estranhos no ninho.
candidato do Zé era o Gullar. Repórteres Penso. Não me interessa. Ainda que, imaginaria-
Eu simplesmente amo esse jornal! perguntam a Marina. Ela responde que o mente, me envaideça.
Houve uma matéria, em 2012, que candidato é Paulo Sergio Pinheiro. O pró-
me marcou muito, uma das várias! prio Zózimo dá outra nota: “Papável: Pi- 30.12.1993
Anna Camargo • Facebook pocou ontem a relação dos papáveis para Hoje tive uma conversa com Luis Roberto Nas-
os ministérios vagos. O nome do poeta cimento Silva, nomeado ministro da Cultura. Foi lá no
Parabéns pelo maravilhoso Affonso Romano de Sant’Anna: ministro antigo prédio do MEC. Conheci-o há alguns anos na ca-
trabalho. Gosto muito do que da Cultura. É o candidato de preferência sa de Julinha/José Serrado, em Angra.
fazem. Eu gostaria de assinar o do ex-ministro Antonio Houaiss e do lí-
jornal, mas moro em Londres. der Roberto Freire”.
Cristiano Andrades • Facebook Pois daí a pouco anunciam o nome
do embaixador na Associação Latino-A-
mericana de Integração (Aladi), Jeronimo Notas
Moscardo. O governo alegou que Paulo 1. Em 2014, ele publicou na Folha de S. Paulo um artigo
Sergio não foi aceito pelo Congresso. Ele retomando a proposta de 6% do orçamento para a Cultura.
teria dito que o Congresso era um monte Convidou-me para pronunciar palestras a embaixadores
Envie e-mail para cartas@rascunho.com.br
com nome completo e cidade onde mora. de corruptos, etc. Itamar voltou atrás. africanos e latino-americanos pela Fundação.
Sem alterar o conteúdo, o Rascunho Uma zorra total. 2. Vi na Dinamarca os formidáveis quadros
se reserva o direito de adaptar os textos. Ainda bem que escapei. de Eckhout sobre índios brasileiros.
4| | junho de 2016

a literatura na poltrona | José Castello

O ruído do mundo
ilustração: Tereza Yamashita

A
lunos de oficinas li- tes em Miraflores, e usa a lem- clui Julio Ramón Ribeyro que no silêncio da noite, se faz ouvir. te, não é uma tarefa fácil. Ainda
terárias costumam brança para começar a trabalhar só conseguia chegar a ele porque Um chamado, um apelo secreto, assim, a tarefa do escritor, mais
reclamar que é di- uma narrativa. “Então, e só então, escrevia. A escrita é uma máqui- uma evocação. Assim também se uma vez, e sempre, é, em meio à
fícil inventar novas percebi que essas noites — duas na que captura o mundo. Que escreve: partindo do escuro e de- zoeira do indiferenciado, apren-
histórias, porque todas as histó- ou três da madrugada — tinham o produz — e aqui nem mente, le fazendo nosso destino. der a ouvir o singular. Admite
rias já foram contadas. Quando uma música particular. Não nem diz a verdade, oscila entre Mas, muitas vezes ainda, Ribeyro, algo aliviado, que às ve-
interrogam o mundo em que vi- eram silenciosas.” Na juventude, os dois. Avalia o escritor: “O ato nos mostra o escritor peruano, zes se consegue isso com algum
vem, ouvem apenas um grande quando se entregava às delícias de escrever nos permite apreen- o silêncio do mundo insiste. O esforço de concentração. De es-
silêncio, o silêncio doloroso da noturnas, o escritor e seus ami- der uma realidade que até esse mundo como segredo — como cuta de si. Outras vezes, ele diz,
repetição. São, em maioria, jo- gos achavam que as noites eram momento se apresentava de for- algo sem decifração, que devemos “isso acontece naturalmente” —
vens e, para provocá-los, digo tranquilas, que o silêncio era tão ma incompleta, velada, fugitiva apenas aceitar e abraçar. Estou, o que assinala ao necessidade da
que estão velhos, e provavelmen- grande que não dava para escutar ou caótica”. Parte importante da agora, no capítulo 82. Descreve entrega e do desarmamento pa-
te surdos. Há tanta coisa pa- nada. “Só agora, ao me lembrar existência só chega até nós quan- Ribeyro: “Às vezes descerro a cor- ra que a escrita possa, enfim, to-
ra ouvir. A música do mundo é dessas noites com o propósito de do trabalhamos com a ficção. É tina e lanço um olhar ávido sobre mar corpo. Escritores armados,
complexa, sutil e bela. Bela, mas descrevê-las, me dou conta dos ela que preenche os vazios, ressal- o mundo, o interrogo, mas não re- “que sabem o que querem”, não
difícil. Exige ouvidos não digo rumores que as povoavam.” Não ta as partes obscuras, realça os pe- cebo nenhuma mensagem, salvo a costumam chegar a muita coisa.
“treinados” — porque o treina- se trata de simples imaginação quenos detalhes, enfim, expande do caos e da confusão: automóveis Chegam, no máximo, ao pon-
mento conduz, ele também, ao — embora a imaginação seja, ela o mundo, levando-nos a percebê que circulam, pedestres que atra- to de partida. Daí a ênfase que
Mesmo. Não “treinados”, mas também, um importante elemen- -lo melhor. A enfim ouvir. vessam a praça, lojas que acendem o narrador peruano empresta
sensibilizados, ouvidos sutis, ca- to na construção da memória. Há também — estou agora suas luzes”. Escavadeiras, pássaros ao “natural”. É com naturali-
paz de captar aquilo que, por Voltam-lhe, de fato, ruídos que, no capítulo 68 — uma experiên- perdidos, uma zoeira sem defini- dade, com desapego e entrega,
hábito, por preguiçosa, por indo- na época, lhe escapavam. “Ondas cia contrária que leva, no entan- ção, na qual tudo se mistura. Tudo que temos a chance de esbarrar,
lência, quase sempre nos escapa. batendo nos penhascos, gemidos to, na mesma direção. A direção parece, enfim, sem sentido e sem quando menos esperamos, na
Os escritores sabem tirar do distante bonde noturno, lati- da sutileza do mundo e o quanto direção. O mundo é um carro des- palavra procurada.
partido disso que, para a maioria dos de cachorros nas ruínas dos ele exige de nós, de apuramento, governado, que trafega no escuro, Outras vezes, diz ainda Ri-
das pessoas, é apenas um grande antigos santuários incas e uma es- de esforço, de negociação, para sem considerar obstáculos, sem beyro, isso só se consegue “gra-
e preguiçoso silêncio. Dele, desse pécie de zumbido, de estampido enfim se oferecer. Ribeyro nos respeitar nenhuma lei. Contudo, é ças a um trabalho interior no
falso silêncio, arrancam sua escri- persistente e afogado, como o de fala mais uma vez de sua “faceta desse rumor indefinido, desse pe- qual não participamos de for-
ta. São escritores, tornam-se escri- uma trombeta gemendo no fun- de animal noturno”. Muitas ve- queno caos, que o escritor deve ti- ma deliberada”. É um tatear às
tores justamente por isso: porque do do porão.” zes, lendo quieto em seu quarto, rar alguma coisa. cegas. Uma entrega ao instinto
afinam sua escuta e sintonizam Além das ondas, do bon- ouve o chamado da noite. Sem Muitas vezes a criatividade, e à surpresa. Farejar os rumores
com a melodia delicada que es- de, dos cachorros, Ribeyro e resistir ao chamado, coloca o ca- ainda assim, emperra. O silêncio do mundo. Aceitar o que vem,
corre da vida. Lendo o inquietan- seus amigos ouviam o respirar saco e sai para uma caminhada. ensurdecedor a mata. “São os aceitar o que surge. “Só então a
te Prosas apátridas, do peruano da Terra. Ouviam a vida. Aque- Entra nos bares, bebe devagar, dias nefastos, nos quais nada po- realidade entreabre suas portas e
Julio Ramón Ribeyro (Rocco, le murmúrio em que homem e sente operar-se em seu interior demos desentranhar, pois nossa podemos vislumbrar o essencial”,
tradução de Gustavo Pacheco e natureza, obra e paisagem, in- uma transfiguração. “De repen- consciência está excessivamente ele diz. Há, nessas horas, um ou-
posfácio de Paulo Roberto Pires), venção e real se misturam, com- te, já somos outro: uma de nos- entorpecida pela razão e os olhos tro que toma o lugar do autor. É
encontro, no capítulo 55, um re- pondo o rumor que — embora sas cem personalidades mortas embaçados pela rotina.” Ultra- a própria linguagem que, ope-
lato que exemplifica, com perfei- nunca nos demos ao trabalho de ou repudiadas nos ocupa.” Aqui passar essa fronteira do Mesmo, rando em silêncio, o arrasta para
ção, o que aqui tento dizer. escutar — caracteriza a presen- o novo se arranca do silêncio. essa inóspita barreira da repe- refúgios longínquos onde, enfim,
Lembra-se Ribeyro das noi- ça humana no planeta. Con- De novo: de alguma coisa que, tição que se parece com a mor- a palavra se esconde.
6| | junho de 2016

entrevista | Godofredo de Oliveira Neto

Liberdade,
A alma de Fausto, de Godo-
fredo de Oliveira Neto, também
tem dono. Ou dona. “Nunca se
vendeu tanto a alma ao diabo co-
mo nos dias atuais”, diz o escritor
catarinense radicado no Rio de Ja-
neiro, professor na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

liberdade
Autor de vários títulos, in-
cluindo os romances O bruxo
do Contestado (1996) e Amo-
res exilados (2011), Godofredo
foi entrevistado para esta edição
do Rascunho para falar exclusi-
vamente sobre Grito, que trata,
entre tantas questões, de precon-
ceito racial, erotismo na velhi-
ce, cotidiano em Copacabana,
fragmentação, ruídos, silêncio e
— principalmente — liberdade.
Tudo isso, e bem mais, a partir de
um texto exaustivamente retra-
balhado pelo autor, que afirma:
Em Grito, seu mais recente romance, Godofredo de “a literatura é um dos veículos da
consciência da sociedade”.
Oliveira Neto discute literariamente o que é ser livre
• Em outra entrevista recente,
há uma afirmação sua: “O tea-
Marcio Renato dos Santos | Curitiba - PR tro é onde se dá a transmissão
de mensagens múltiplas e si-
multâneas, arte que se encaixa
mariana carnaval bem no século 21, mundo da
simultaneidade das informa-
ções. A literatura só tem a ga-
nhar com essa extensão”. Grito,
apesar dos 21 atos, que sugerem
uma peça, não seria, ao contrá-
rio, exatamente um romance,
um romance escrito no século
21, apresentado como uma pe-
ça de teatro, para confundir a
recepção e borrar as fronteiras
entre os gêneros?
O teatro é uma arte total.
Ele ultrapassa o texto e depende
da realização cênica. Os estudio-
sos falam em máquina cibernéti-
ca, de polifonia informacional. A
gente vive no século 21, em uma
época de avatares, de travesti-
mento. Falsos perfis nas redes so-
ciais, second life, etc. E, como você
lembrou, da simultaneidade de
informações. É nessa contempo-
raneidade que o Grito mergulha.
Mas é antes de tudo um romance,
romance que toca na questão das
fronteiras de gênero.

• O título de seu livro faz alu-


são a esses sons, em alguns ca-
sos, onipresentes: sirene, buzina,
campainha, motor desregulado,
equipamento de som em volume
alto, etc. Estamos em meio a inú-
meros gritos que acontecem o
tempo todo? O silêncio acabou?
O código da linguagem tem

O
ressonância na harmonia da mú-
mais recente livro de Godofredo de Oliveira Neto, sica ou na cacofonia. É só a gen-
65 anos, borra as fronteiras que definem o que é um te lembrar do Lied (canção) e da
gênero literário. Grito tem 21 atos, pode até parecer ópera. Eugênia busca a harmonia
uma peça de teatro, mas é um romance. A obra sur- na música clássica tentando bar-
ge em meio ao caos e aos ruídos contemporâneos das redes sociais Vive-se em épocas de cacofonia, rar o barulho externo. O grito do
— mencionadas na obra. a exemplo das imagens Fausto é aceito e até admirado por
Grito é uma recriação de Fausto, mito alemão, elaborado, en- embaralhadas na tela do ela porque anuncia arte. Vive-se
tre outros por Goethe, e que — agora, na intervenção de Godofre- em épocas de cacofonia, a exem-
do de Oliveira Neto — se passa em um apartamento situado em computador. Todas ao mesmo plo das imagens embaralhadas
Copacabana, Zona Sul carioca. No centro da trama, principalmen- tempo, uma sobre as outras, alto na tela do computador. Todas ao
te dentro de um pequeno imóvel, estão Eugênia, ex-atriz, 82 anos e e forte. Agora aparece inclusive mesmo tempo, uma sobre as ou-
Fausto, 19, ator iniciante. Textos teatrais e um pacto os aproximam, tras, alto e forte. Agora aparece
os afastam e podem fazer com que ele se desmaterializem. um filminho falado sem que a inclusive um filminho falado sem
Fausto, do mito alemão, vendeu a alma. gente tenha solicitado.” que a gente tenha solicitado.
junho de 2016 | |7

• O seu livro, a exemplo de ou- situação seria uma maneira • Grito se passa em Copacaba- tivas. O amor em tempos do 21
tros romances magistrais, se de se referir a companhias de na. Há observações a respeito é uma delas. A pessoa ama outra
anuncia, realmente diz a que teatro que encenam peças pa- do comportamento, em especial pessoa, não importa a sua idade,
veio, na primeira frase: “Ele ra um público reduzido, por de jovens. Por que Copacabana? a sua cor, o seu gênero sexual,
(Fausto) diz se tratar do grito exemplo? É uma alusão à falta O que Copacabana, ou a popu- etc. Essa ideia avançou muito no
que sua irmã gêmea não con- de público para teatro, música, lação de Copacabana, tem que é século 21, ainda bem. Grito ba-
seguiu dar no nascimento”. exposição e até mesmo litera- peculiar, único e diferente, por talha pelo fim dos preconceitos.
Fausto é um grito? Por quê? tura? Ou aquele apartamento é exemplo, de Ipanema e Leblon? A literatura é um dos veículos da
O grito do Fausto faz o pa- o bunker deles contra o mun- E ainda: com quais autores que consciência da sociedade.
pel da campainha na abertura do inimigo? Um útero? já recriariam Copacabana lite-
das salas de teatro. Fausto purga O artista está a serviço da rariamente Grito dialoga? • Na página 35, um personagem
as suas ansiedades e as suas pai- verdade e da liberdade. A expe- Copacabana é a fusão do fala, ou que pode ser entendi-
xões via espetáculo de ações. riência da alteridade permite a Brasil. Ricos, pobres, profissio- do como um grito: “Liberdade
compreensão da subjetividade nais da noite, do dia, turistas per- nunca é demais, meu senhor”.
• Ao elaborar o personagem do outro. A solidão da Eugênia e didões, lojas, bares e restaurantes Grito é uma obra que discute,
Fausto, a sua proposta foi dia- do Fausto empurra eles para essa para todos os gostos, barulho e também, a liberdade? O que é li-
logar com a ideia da fragmen- experiência. Vejo mais como um poluição nas ruas internas, ven- berdade para Fausto? E para Eu-
tação contemporânea? Afinal, útero, como você diz. Eugênia dedor de paçoca, mate e pipoca, gênia, o que é ser livre?
ele comenta com a persona- pensa corrigir o texto do jovem calçadão imenso e o mar enor- A literatura é útil para a
gem-narradora Eugênia, que aprendiz. Ali no pequeno apar- me esperando a gente. O mundo política também quando ela dá
“o artista cênico leva grande tamento a plateia está garantida, sem fronteiras está ali. Ipanema e voz a quem não tem, mas, prin-
vantagem sobre todo mundo o público veio. Fora dali o pú- Leblon têm menos personalidade cipalmente, quando ela fornece à
porque desempenha uma ga- blico é escasso. Mas a luta por nesse aspecto. Rubem Braga está política os ingredientes para po-
ma variada de papéis — pode um público maior deve conti- presente quando se fala de Copa. der se questionar. O Italo Calvi-
ser botânico, operário, patrão, nuar, daí o Grito. no tem uma reflexão muito legal
advogado, médico, engenhei- • O livro trata de várias ques- sobre isso. Tanto para a Eugênia
ro, escritor, bandido, herói”. • Na página 112, é possível ler: tões, inclusive há uma ob- quanto para o Fausto as peças de
Ele ainda acrescenta: “Que- “Se a gente escrever pensan- servação a respeito das redes teatro não têm uma ideologia
ro ser tudo e todos ao mesmo do no que vão dizer, pode ter sociais. “As redes sociais, de própria, elas constituem o lugar
tempo! E vou ser”. O seu per- certeza de que não sairá coisa certa maneira, acabam por fa- onde as ideologias se confron-
sonagem, justa e exatamen- boa, eu disse a ele. O nosso pa- zer algo parecido com a catar- tam, se desgastam e se anulam.
te um ator, seria um reflexo pel, no caso, é compor. Gostem se provocada pelo teatro. Dá É esse espaço da arte que é a li-
do que pode ser o cidadão, a ou não”. A partir do diálogo para purgar um pouco as pai- berdade. Eugênia sabe, Fausto
mulher e o homem contem- entre personagens, pergunto: xões.” O que mais poderia di- está ainda aprendendo. É perigo-
porâneo? Todos, os atores con- Como vem sendo a recepção de zer sobre o tema? Observa o so pactuar com o mal. O Fausto
temporâneos, querem ser tudo Grito? Os leitores conseguem comportamento de amigos, de pensa que isso é sinônimo de li-
ao mesmo tempo agora? encontrar sinais, os diálogos personalidades e desconheci- berdade, isso de poder escolher,
Penso que a multiplicida- literários, as obras citadas e dos, mas amigos virtuais, no mesmo pensando dar uma ras-
de de papéis ou de exercer vários as insinuadas, até nas entreli- Facebook e no Twitter, por teira no capeta mais lá na frente
papéis marca a sociedade atual. nhas, deste seu livro? exemplo? Há muitos gritos nas
A gente pode ver isso nas indeci- As leituras serão inevitavel- redes? O que mais poderia di- • As falas das personagens são
sões dos jovens sobre qual carrei- mente diferentes. A frase “gos- zer a respeito do assunto? um dos aspectos que se desta-
ra profissional abraçar. Ser ator tem ou não” remete, assim quis, Penso que foram esses su- cam em Grito, pelo cuidado,
tem essa graça e essa adequação para um solipsismo para onde portes tecnológicos — Face, in- pela precisão. Na página 140,
ao mundo de hoje. Fausto bem Eugênia se viu empurrada pela ternet, etc. — que contribuíram uma personagem diz: “Busco a
o sabe. A uma condição huma- idade e pelo mundo. Resta para (ou causaram?) a eclosão da au- sonoridade das palavras”. Gri-
na fragmentada corresponde um ela a independência da ficção. toficção. O eu se separa do uni- to é um livro para ser lido em
sujeito fragmentado. verso. Apagam-se as referências voz alta? Elaborou o livro linha
• Eugênia tem 82 anos, Fausto, obrigatórias do mundo comum por linha, palavra por palavra?
• Eugênia banca Fausto. Ele, 19. “Cuidado com essas meni- a todos e se valoriza o prazer ego- Trabalhei muito tempo no
então, fez um pacto. Essa re- nas desmioladas, Fausto. Elas cêntrico da criação pessoal. É o livro, cortei muita coisa, refiz fra-
lação que o seu texto faz com não te trazem nem seguran- fenômeno da filosofia liberal. As ses, chorei, ri, e a gente não sabe
o mito de Fausto, reelabora- ça nem afeto. São todas umas redes potencializam o ódio e as o que é que vai dar no final. As
do por alguns, entre os quais interesseiras.” Eugênia, que paixões de uma maneira assusta- partes teatrais são feitas para se
Goethe, foi o que deflagrou a enuncia a frase, tem interes- dora. Saem berros através das le- ler como numa atuação teatral.
obra? E mais: como foi elabo- se em Fausto: “Você tem uma tras maiúsculas nos posts. Mas sei que isso não vai aconte-
rar esse personagem? carreira brilhante pela frente cer porque se trata de um roman-
O mito de Fausto escrito e uma parceira fiel. Parceira • Grito também trata da dis- ce. O enxugamento, a que você
por Goethe foi o desencadeador que te protege, te ensina e te criminação racial no Brasil. O se refere, na verdade uma auto-
de tudo. Mas também as leituras mantém”. Eugênia, talvez com fato de Fausto ser negro não flagelação, fiz pensando no velho
do Fausto de Thomas Mann, do boas origens, não tem tanto deve ter sido uma escolha sem Graça, um dos meus mestres.
Valéry, do Puchkin. Li e reli Os futuro. Como elaborou a per- reflexão. Poderia comentar o
sofrimentos do jovem Werther sonagem? O que ela represen- quanto e de que maneira o seu • Por fim, a epígrafe de Grito
desde muito cedo. Depois mer- ta? Tem relação com os muitos livro discute a questão do ne- é um grito também: traz um
gulhei no Fausto, que seduz e ate- idosos de Copacabana? gro no Brasil, no caso, em Co- fragmento de A hora da estre-
moriza. Enquanto compunha o Tratei do erotismo na velhi- pacabana? la, de Clarice Lispector, narra-
Grito pensava no Goethe sem pa- ce. Estava lendo sobre o romance Um dos preconceitos na tiva na qual delírio e realidade
rar. Nunca se vendeu tanto a alma (na vida real) entre Marguerite sociedade brasileira é o precon- se fundem, o que também se dá
ao diabo como nos dias atuais. Duras e seu jovem amante. ceito racial. Mas há reações posi- em Grito, em especial, no des-
fecho. O livro de Clarice foi
• Grito, em trechos significati- um deflagrador de Grito?
vos da narrativa, mostra repre- Pensei na Macabéa, na
sentações teatrais, ou leituras, mercedes, na morte e na genia-
dentro de um apartamento, lidade da Clarice. Os claricianos
onde estão apenas Eugênia, ex não curtem muito esse romance,
-atriz, e Fausto. “Fausto e eu e acho ele o melhor da Clarice.
nos bastamos”, ela comenta. A epifania do final do livro dela
Há comentários, observações, me serviu para pensar o final do
insinuações, por parte da nar-
É o fenômeno da filosofia liberal. As redes texto do Grito.
radora, de que alguns textos potencializam o ódio e as paixões de uma
apresentados por Fausto tal- maneira assustadora. Saem berros através
vez não tenham qualidade ou, > Leia a resenha de Grito
talvez, maturidade. Criar tal
das letras maiúsculas nos posts.” na próxima página
8| | junho de 2016

A vida como
encenação
Grito narra o jogo cênico e amoroso entre
uma atriz octogenária e um jovem ator

Carina Lessa | Rio de Janeiro - RJ

G
rito, novo roman- significação, num momento em
ce de Godofredo que todos os modelos parecem
de Oliveira Ne- já estar gastos e desprovidos de
to, transcorre por originalidade. Grito foge ao cli-
meio da voz de Eugênia em diá- chê urbano e reivindica a fuga. Já
logo com um leitor ou entre- que a vida é encenada, o roman-
vistador. A atriz e o jovem ator ce foi dividido em vinte e um
vivem em Copacabana, os apar- atos. Há camadas contínuas de
tamentos de ambos são palcos diferentes discursos, planejados
da vida como arte. Eugênia cria dentro do teatro cotidiano —
a partir do inspirador Fausto, os numa infindável construção tal
atores perspectivam cenas e refa- qual a arqueologia de Foucault.
zem o cânone teatral e literário. Eugênia e Fausto planejam
O grito do artista ecoa pe- peças em cima do grande palco,
las páginas do livro literal e me- teorizam e questionam a autenti-
taforicamente. Segundo Fausto, cidade de suas elaborações:
há momentos em que o grito Godofredo de
verbaliza a ausência da irmã gê- O texto abordava conflitos Oliveira Neto por
mea morta no nascimento, mas a de amor na adolescência, as coisas Ramon Muniz
palavra que dá título ao romance clássicas, vontade de se matar, fu-
ganha sempre novas conotações: gas bombásticas, briga com a famí-
alegria, pranto, desespero, exci- lia. Muito lugar-comum na minha
tação — o gozo da vida. opinião. O espaço onde se passaria avanços intelectuais em torno da arte. O encontro
O autor lança mão de re- a cena era uma casa no interior do amoroso transcende e renuncia a finitude da maté-
cursos discursivos presentes em Brasil, perto de uma área deserta ria: o interlúdio é responsável pelo êxtase da rela-
duas narrativas anteriores: Me- e perigosa. Atravessar o sertão nos ção entre os atores.
nino oculto (ganhador do Jabu- braços do seu amante ou se suicidar.
ti) e A ficcionista. Como fora Essa era a liberdade de escolha. Reescritura de Fausto
dito, a narradora dirige-se a um Propus que esse deserto fosse Sabemos que há diversas versões sobre o mi-
entrevistador, a personalidade o Liso do Sussurão, imortalizado to de Fausto, neste romance o autor chega a fazer
da atriz é dissolvida na imagem por Guimarães Rosa no Grande Grito referência a três delas. No entanto, o jovem ator de
tecida sobre Fausto — oprimi- Sertão: Veredas. Pelo menos abria Godofredo de Oliveira Neto Grito parece não corresponder ao ambicioso que
do pelo ciúme obsessivo da mu- outras frentes de interesse. Faus- Record se deixa levar pelas artimanhas do demônio. An-
lher. Será por meio do discurso to não concordou, dizendo que o 158 págs. tes, apresenta-se ingênuo e entregue aos sabores da
confessional que nós, leitores, re- nome do espaço geográfico era o arte. É vítima do amor inflexível de Eugênia, que
ceberemos uma série de questio- menos importante. Valiam mais o autor transgride perigosamente as barreiras da não ficção.
namentos sobre o fazer artístico. os problemas da relação entre os Godofredo de Oliveira Neto O romance de Godofredo de Oliveira Ne-
Apesar de o ingredien- apaixonados e as respectivas fa- to provoca uma inversão de papéis românticos, no
te temático ser reconhecível, a mílias. Nisso ele tinha razão, mas Nasceu em Blumenau (SC). É qual há uma idealização do homem, subjugado pela
narrativa sai engrandecida pelo não vi como dar jeito num script membro da Academia Carioca narradora em função da ingenuidade e eloquência
valor estético alcançado poucas tão pobrezinho. de Letras, professor de Literatura juvenis. Eugênia engrandece as belezas exteriores de
Brasileira da UFRJ, autor de dez
vezes na literatura contempo- Fausto, julga-o forte emocionalmente. No entan-
obras de ficção e ganhador do
rânea. É interessante notar que, A sensualização pela arte prêmio Jabuti pelo romance Menino
to, é obsessiva em protegê-lo, achando-o incapaz de
com intuito de caber nos clichês A autoconsciência artística oculto. Recentemente, teve três livros resguardar-se das artimanhas dos estranhos. Parece
da atualidade, as primeiras rese- de Eugênia mostra-se imperiosa, traduzidos e publicados na França. ter medo constante de perder a singeleza do ator, na
nhas sobre o livro ressaltaram o uma mulher segura, apesar do re- medida em que ele está envolto pelo mundo cor-
fato de a história se passar em vés do ciúme. Esquecemo-nos da trecho ruptível. Eugênia sabe que Fausto está num proces-
Copacabana, como palco de as- contumaz fragilidade da velhice, so de aprendizado, mas teme por esse processo.
Grito
sassinatos que, aliás, rebaixariam na medida em que adentramos Atualmente, o mundo passa pelo desejo de
as referências constantes ao câ- em seu vigor intelectual e físico. reconstrução, mas todas as formas de governo
none literário. Sendo assim, é A mulher descreve sentimentos Se ele demonstrava alguma também foram desgastadas. Não cabem mais bipo-
importante dizer que o bairro se- ambíguos de desejo por Fausto, excitação sexual? Não, penso laridades em quaisquer instâncias, todos os mode-
ria tranquilamente dispensável, desfila com sensualidade como los fracassaram. Grito lança esse desespero estética
que não. Seu fetiche são as
bem como os assassinatos não se epílogo das cenas que virão. e tematicamente. Como leitores, estamos diante de
apresentam como consequência O autor de Grito também personagens extraídas do uma experiência multifocal, tudo está fora do lugar
da cidade, mas de uma motiva- inova nesse quesito. Apesar de a seu real, do qual tira sempre positivamente, não há códigos e formatos literários
ção exacerbada da arte. erotização ser uma constante no grande prazer. O grito ao preestabelecidos. Recebemos toques singelos do
trajeto de sua obra, aqui temos idealismo romântico, fissurado pela realidade ins-
anunciar seu novo emprego é
Fuga do clichê outros voos. O prazer carnal não tantânea. Tudo ao mesmo tempo. A encenação da
Há nessa mudança de sen- importa, mas o prenúncio do prenúncio de prazer e êxtase. vida parece ser o último subterfúgio para reorgani-
tido um desejo implícito de res- desejo, sempre pautado pelos De arte. De satisfação intensa. zar a experiência do mundo.
junho de 2016 | |9

sob a pele das palavras | Wilberth Salgueiro


Rondó da ronda noturna,
de Ricardo Aleixo
Divulgação

perseguição, falta de oportuni-


rondó da ronda noturna dades pioram a vida daqueles
que, negros, já foram por sécu-
q uanto + los e séculos deixados à míngua,
torturados, animalizados, assas-

p obre + sinados. Políticas de reparação


jamais conseguirão repor a hon-

n egro ra, a vida de milhões e milhões


de negros escravizados e mortos
ao longo da história humana.
q uanto + (No entanto, e por isso mesmo,
tais políticas públicas devem ser
n egro + mantidas e intensificadas.) A ar-
te, a poesia podem contribuir

a lvo para que se pense criticamente


a questão do racismo, como faz

q uanto + ver este sofisticado poema. Nes-


sa direção, a obra visual de Alei-
xo se alinha à frase que encerra
a lvo + a Teoria estética de Adorno:
“que seria a arte enquanto his-
m orto toriografia, se ela se desembara-
çasse da memória do sofrimento

q uanto + acumulado?”. O poeta brasileiro


e o filósofo alemão, assim, con-

m orto + vergem quanto ao compromisso


ético que a arte — sem prejuí-
zo de sua elaboração formal —
u m pode manter com o mundo em
que se constitui.
Em Trívio, outros poemas
também tratam do problema

E
racial, como o excelente Bran-
ste poema — Rondó da ronda notur- cos, em que brancos, machos, da triste condição de oprimido, o poeta
na — de Ricardo Aleixo ocupa to- adultos, cristãos, ricos e sãos são não perde a verve da ironia e do humor,
da uma página de seu livro Trívio, convidados a “que se entendam/ e revela, via linguagem, a diferença de ser
publicado em 2002 em Belo Ho- que se expliquem que se cuidem um “alvo negro”, que pode ser morto (ou
rizonte. O estranhamento é imediato: sob um que se”, num fecho elíptico que matável, para lembrar expressão de Gior-
fundo preto, há letras brancas, em tamanho su- mal esconde o contundente ver- gio Agamben), e um “alvo branco”, que
perior ao costumeiro; as palavras se apresentam bo que se insinua ao fim da co- pode ter, dada a alva cor da pele, algum
de modo fragmentado: de todos os doze versos, da. O poema reconfigura o verso privilégio ao outro negado.
se destaca a letra inicial do termo, formando as- “o macho adulto branco sempre O poema de Ricardo Aleixo ecoa
sim duas colunas; na segunda coluna, em oito no comando” de Caetano Velo- a longa, antiga, dolorida luta dos negros
vezes aparece o sinal “+”, que, na leitura, se tra- so em O estrangeiro (1989), de- em prol de uma vida digna, em que di-
duz inicialmente em “mais”. Antes mesmo da nunciando o lugar de poder e reitos e deveres sejam os mesmos para
leitura linha a linha do poema, o olho capta o de centro que certo grupo sem- todos. O caráter utópico da luta não es-
conjunto, que, pulverizado horizontal e verti- pre quis preservar para si, e, para morece o ímpeto da denúncia e a von-
calmente, nos leva a intuir que algo de sinistro tanto, relegar à subalternidade e tade de transformação. Antes, une com
ocorre nessa ronda noturna. à margem os demais (os outros, força uma resistente tradição que con-
Recompondo-se as palavras do poema, e a “minoria”: mulheres, homos- grega, entre tantos, escritores como Cas-
inserindo uma pausa a cada dois sinais de “+” sexuais, crianças, velhos, negros, tro Alves, Cruz e Sousa, Lima Barreto,
(como se uma estrofe fosse), teríamos: “quanto índios, miseráveis, etc.). Machado de Assis, Solano Trindade,
+/ pobre +/ negro/// quanto +/ negro +/ alvo/// Se rondó é uma variação Adão Ventura, Waldo Motta, e Maria
quanto +/ alvo +/ morto/// quanto +/ morto +/ em torno de um tema nuclear e Firmina, Carolina Maria de Jesus, Con-
um”. A pausa da artificiosa estrofação permite ronda uma vigilância para con- ceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves,
vislumbrar a estratégia de composição do poe- ter ou prevenir perigos, então o Miriam Alves, Elisa Lucinda. Cada um,
ma, que se faz a partir de uma irônica e trági- título Rondó da ronda noturna, em seu tempo e à sua maneira, faz valer
ca relação de causa e efeito, em que palavras se conjugado com os versos, suge- a letra em nome de uma justiça terrena,
vinculam pelo sentido que delas se poderia ex- re, em síntese, que estamos dian- do aqui e agora. Machado, por exemplo,
trair: pobre e negro, negro e alvo, alvo e morto, te de um acontecimento que em Esaú e Jacó (1904), põe na voz do
morto e um. Se entendido certo caráter cícli- — tendo a noite, o noturno, o diplomata Aires, quando da Abolição da
co (já que se trata de um rondó) que o poema negro como pano de fundo — se Escravatura, a pilhéria: “Emancipado o
parece insinuar, o termo final “um” se ligaria repete incessantemente: o geno- preto, resta emancipar o branco”.
ao substantivo inicial “pobre”, e dessa forma o cídio, banalizado, da população O fundo negro numa página de
perverso destino dos sujeitos tematizados no negra e pobre. O sinal “+” ad- poema não significa, necessariamente,
poema — que aqui são um alvo (desde já, “mi- quire, neste contexto, a resso- que algo de fúnebre vai ser ali represen-
ra” e “objeto”, e não “branco” e “claro”) — se nância icônica de uma cruz (o tado. Mas quando, sobre esse fundo, se
repete em moto-contínuo. poema, ocupando todo o espaço inscrevem versos como esses de Aleixo,
Não resta dúvida de que o rondó traz à retangular da página escura, re- que recontam a triste e conhecida, velha
tona a questão racial. É de conhecimento de meteria, assim, a um túmulo). e contemporânea história da implacável
todos a gravíssima — ainda em dias contem- As palavras fraturadas (q/uan- opressão contra os negros, aí somos leva-
porâneos — situação dos cidadãos de cor ne- to, p/obre, n/egro, a/lvo, m/or- dos a – nem que seja por um instante da
gra. Estatísticas e pesquisas de toda ordem to, u/m) confirmam visualmente leitura — rever nosso lugar de alvo-bran-
comprovam, em números, o que se vê no coti- a violência contra o corpo, ora co que aceita, sem mais, que o “pobre ne-
diano: preconceito, desvalorização, abandono, desmembrado. Mesmo em face gro morto” seja um a menos.
10 | | junho de 2016

A profusão de vozes que

Múltiplos
acomete Mauro está diretamente
ligada às atribuições de escritor.
Para construir Oliver, enquanto
personagem, Mauro interioriza
esse outro e passa a se constituir
como narrador de histórias de
vida que se cruzam e se encon-

caminhos
tram em suas identificações e di-
ferenciações. A explicitação dessa
conjunção de vidas e de subjeti-
vidades diz respeito a uma cla-
ra discussão do processo criativo
ficcional. Cada criatura, ao ser
criada, se desdobra para seu cria-
dor em um processo de interiori-
zação porque estabelece relações
O romance O grifo de Abdera, de Lourenço Mutarelli, de trocas importantes. A vida do
outro interiorizado no sujeito
incorpora diversas linguagens, do traço das HQs ao teatro que conta a história mistura-se
a sua própria vida, porque pas-
sa a lhe dizer respeito a tal pon-
Vilma Costa | Rio de Janeiro - RJ to que o outro é percebido como
um duplo. No caso do romance,
a simbiose do narrador com as

O
outras personas acontece de for-
grifo de Abdera, prosseguimento, entre outras coisas, à histó- ma unilateral. Ou seja, Mauro
de Lourenço Mu- ria afetiva de Oliver e seu trágico desfecho, já percebe e tenta descrever sua re-
tarelli, surpreen- anunciado ainda nas primeiras páginas. lação de duplicidade com Oliver,
de-nos com uma Mauro apresenta-se como narrador que enquanto este se mantém preso
narrativa desafiadora: como con- luta para se constituir enquanto sujeito do seu às suas dores e às suas obsessões,
tar histórias que se descortinam próprio discurso, dentro do emaranhado de vo- estabelecendo para si uma confli-
nas linguagens cifradas de so- zes que o tomam de assalto e exigem a cidadania. tuosa individualidade.
nhos, pesadelos, loucuras, frus- A maneira mais concreta
trações e desejos da vida? Como Percebi que há algo de místico no ato de O grifo de Abdera que isso se manifesta é no livro
Lourenço Mutarelli
bem sinaliza Antonin Artaud, escrever ou de se manifestar de qualquer forma II do romance, cujo formato é
Companhia das Letras
em O teatro e seu duplo, “... artística..., que há em minha obra vozes que, 264 págs.
de história em quadrinhos. É en-
quando falamos a palavra vida, embora me pertençam, não são a minha. Embo- cartado no miolo do romance e
deve-se entender que não se tra- ra me pertençam. identificado com o título XXX,
ta da vida reconhecida pelo exte- assinado por Oliver Mulato.
rior dos fatos, mas dessa espécie Dentre esse emaranhado de vozes e da Para Mauro, além de uma ho-
de centro frágil e turbulento que urgência de ganharem expressão surgem Mau- menagem póstuma ao desenhis-
as formas não alcançam”. ro, Paulo, Mundinho, Oliver e Lourenço Mu- ta-autor do trabalho, funciona
Encarar esse desafio en- tarelli, Martha, Gilda, Olga e outros. Mauro também com um manancial de
quanto escrita é convocar tam- Tule Cornelli afirma: “a partir de um anagrama fragmentos repetidos e recorren-
bém leitores que se disponham do meu nome, eu e Paulo, criamos um autor. tes que figuram no texto escrito
a penetrar em uma multiplici- Lourenço Mutarelli” (ou terá ocorrido o con- das outras duas partes, sinalizan-
dade de questões que estão longe trário?). Pois bem, o autor criado pelos dois o autor
do a estreita relação do narrador
de oferecer caminhos simplistas parceiros desenvolve uma extensa obra inicia- com seu duplo.
de interpretações. Penetrar nes- da por Transubstanciação até Caixa de areia, Lourenço Mutarelli Alguns sub-capítulos da
sa espécie de centro tão frágil e última parceria interrompida com a morte de Nasceu em 1964, em São Paulo (SP). primeira parte se debruçam so-
turbulento, que não se subme- Paulo em um acidente de carro. Até aí, a obra Escritor, artista gráfico, roteirista e bre a leitura da história em qua-
te a formas fixas, é abrir mão de era escrita por Mauro e desenhada por Paulo. ator, publicou diversos álbuns de drinhos que para o leitor da prosa
qualquer perspectiva de facili- Sem este, Mauro teve que se virar sozinho e histórias em quadrinhos. O cheiro narrativa pode parecer muitas ve-
dades. Ou seja, para ampliar as abandona a escrita de histórias em quadrinhos do ralo, seu primeiro romance, zes incompreensível. É preciso,
leituras da vida contemporânea, e passa a escrever livros. foi lançado em 2002 e virou filme, de certa forma, voltar ao início do
em sua complexidade, precisa- Enquanto isso, Lourenço Mutarelli é re- dirigido por Heitor Dhalia. livro para seguir adiante. Ou me-
mos também de instrumentais presentado publicamente por Mundinho, a lhor, como nos adverte a fala de
complexos de análise. partir de um acordo com Mauro, que não era alguns personagens dos desenhos,
O grifo de Abdera nos muito dado a exposições. Segundo ele, muitos eles se divertem em dizer coisas
oferece uma gama muito am- outros escritores por timidez têm também seus sem sentido, que não apontam,
pla de abordagens, a começar avatares. Mundinho é definido pelo parceiro co- miração e compaixão um pelo necessariamente, para a falta de-
pelo título cujo significado é, mo sendo “um desses que vivem de pequenos outro. Diferentemente do duplo les. Mas é o excesso de estímulos e
detalhadamente, esmiuçado pe- bicos ilegais. Faz jogo de bicho e vende entorpe- do Sr. Conselheiro Goliadkin, possibilidades de leituras que su-
lo narrador. Após receber uma centes no bar do Marujo, há mais de vinte e cin- personagem de O duplo, de gerem um contexto de nonsense.
misteriosa moeda cunhada com co anos”. Por essa definição, dá para termos uma Dostoievski, que se transforma Mais que o texto, mais que
símbolos mitológicos da antiga ideia do caráter peculiar desse parceiro. Algumas num ferrenho inimigo do prota- a imagem, é preciso aprender a ler
Grécia, o escritor interrompe sua de suas atitudes começam a incomodar Mauro, gonista, minando seu trabalho e a vida, é preciso transitar entre di-
crise de criatividade e volta a es- que passa a questionar seu papel de escritor-fan- ameaçando tomar seu lugar. ferentes linguagens. O romance
crever o livro em questão. tasma do malandro, o que o leva a pensar em Do ponto de vista filosó- contemporâneo e este livro, em
O romance está dividido, trilhar seu próprio caminho, atitude já tomada fico, há uma intensa discussão especial, radicalizam na experi-
estruturalmente, em três partes, a partir do último livro Em uma ocasião exte- sobre o duplo, especialmente mentação de múltiplos caminhos
intituladas respectivamente: I. O rior, escrito e assinado já por sua conta e risco. Foucault e por extensão Deleu- da narratividade. É dentro des-
livro do fantasma, II. O livro do ze debruçam-se sobre a questão. sa perspectiva que incorporam,
duplo e III. O livro do livro. O duplo Para o primeiro, o cuidar de si além do traço visual e do diálogo
O livro I tem como eixo Para completar essa “tríade quadripar- implica o estabelecimento de econômico da HQ, a marca da
predominante uma tomada me- tida”, surge Oliver que, no decorrer da trama, intensas relações de poder com linguagem cinematográfica e tea-
taficcional. Ou seja, debruça-se ganha força de protagonista e acaba sendo iden- os outros, que se desdobram de tral, seus vazios de significação,
sobre o processo de construção tificado por Mauro como seu Duplo. A voz de dentro para fora e de fora para ruídos e silêncios, a simultaneida-
da narrativa, da ação e dos perso- Oliver passa a penetrar e pertencer a Mauro, dentro de cada sujeito. O duplo, de e efusão de planos, a polifonia
nagens, e da própria engrenagem embora não sendo exatamente a sua, numa es- segundo Deleuze, não é uma de vozes que transitam entre tem-
da produção literária. O livro II tranha conexão. É nas dobras da linguagem, que projeção do interior e sim seu po histórico e tempo mítico, en-
apresenta-se como forma de his- essas identidade confundem-se e fundem-se, contrário, “uma interiorização tre espaços físicos da cidade e do
tória em quadrinhos, assinada sem, contudo, se perderem de si mesmas. Nesse do lado de fora. (...) Não é nun- papel em que se escreve e se dese-
por Oliver Mulato, desenhista romance, apesar de Mauro atribuir a si a culpa ca o outro que é um duplo; eu nha e o espaço simbólico e ima-
amador, professor de Educação pelo desfecho trágico de Oliver, ambos mantêm não me encontro no exterior, eu ginário do sonho, da fantasia, da
Física, ex-atleta. E o livro III dá entre si uma conexão de profundo respeito, ad- encontro o outro em mim”. loucura e do mito.
junho de 2016 | | 11

tudo é narrativa | Tércia Montenegro

A luz e o mistério

C
ilustração: Hallina Beltrão
omo não gostar ime-
diatamente de um
pintor que se deno-
minava “o rei dos
gatos”? E, de quebra, ainda tinha
origem polonesa…
Eu já conhecia super-
ficialmente a obra do conde
Klossowski de Rola, mas foi a
partir do livro Le paradoxe Bal-
thus,  de Raphaël Aubert, que
pude me aprofundar. O título
empenha-se em levantar os as-
pectos mitômanos da persona-
lidade deste artista, circulando
principalmente pela esfera eró-
tica de vários de seus quadros.
Entretanto, a leitura torna-se
proveitosa sobretudo pelas rela-
ções entre a obra de Balthus e a
de artistas anteriores: às páginas
85 e 86, por exemplo, o autor
demonstra como a personagem
do quadro A rua (1933), que
atravessa uma rua com uma tá-
bua sobre o ombro, teria sido
diretamente inspirada pelo ho-
mem que porta a cruz no afresco
de Piero della Francesca em Are-
zzo (1452-1459).
O melhor é que Balthus
não concordava absolutamente
com esta inspiração (apesar de
venerar a obra de Della Frances-
ca). De uma entrevista, consta
que ele explodiu numa gargalha-
da e observou que não existem
trinta e seis maneiras naturais
de carregar uma tábua, ou seja,
basta olhar em torno para se dar
conta da postura adequada; não no afresco da Visita da rainha de Para além de mlichkeit” (inquietante estranheza), emprestado de Freud e
é preciso evocar nenhuma in- Sabá ao rei Salomão na igreja de ser um suporte possível de ser aplicado tanto a um quadro como A rua como à
fluência estética para isso. Em- Arezzo ou n’A madona de Seni- obra dos pintores metafísicos em geral (especialmente De Chi-
bora Raphaël Aubert defenda gallia do museu de Urbino”. expressivo, o rico). O esclarecimento vem de Jean Clair, que traduzo: “Existe
que tal resposta foi uma estra- Ora, Balthus — novamen- corpo tem a inquietante estranheza apenas na medida em que o real é ex-
tégia do artista para se furtar às te sem desprezar todo o crédito sua história: pressamente colocado como tal e onde a sua figuração represen-
revelações e criar uma atmosfera aos pintores antigos, que ele tan- ta somente um desvio, o menor possível em relação ao normal”.
de mistério, a gente que produz to amava — poderia responder cicatrizes, O projeto surrealista não poderia, portanto, ser enquadrado as-
arte sabe o quanto os críticos e a isso também com uma risada. pelos, texturas, sim, já que estes artistas buscavam o maior afastamento possível
intérpretes de uma obra muitas Afinal, há muitas motivações pa- formas vão da realidade. Mas seria o caso de pensar: e Magritte? Não há in-
vezes  viajam —  com a melhor ra inserir melancolia num ros- quietante estranheza nele? Assunto para outro dia…
das intenções, talvez, mas jamais to, ou para colocá-lo à maneira construindo De qualquer maneira, grande parte deste sentimento de
alguém fora do processo criativo de efígie (Piero della Francesca uma incômodo que a “Unheimlichkeit” parece inspirar não está
saberá inteiramente o que este- não foi criador ou detentor au- bioarquitetura, exatamente associado à composição ou figuratividade de uma
ve envolvido ali. Toda e qualquer toral dos retratos em perfil). Mas tela — mas à forma com que uma sutil deformação da realida-
leitura, por mais fundamentada, o que me interessa na análise é a que nos diz de nela se impõe. Balthus, assim como o seu contemporâneo
é válida, sim, mas não tem peso ponderação a respeito desta ten- — com um Hopper, encontrou a via para este trabalho através da luz. Os
de  verdade. Dito isto, esclareço dência nos rostos renascentis- estranho tipo dois artistas se assemelham já pela incrível atmosfera narrati-
que a verdade muitas vezes não é tas. A característica poderia ser va de muitos de seus quadros: basta aproximar Morning Sun
a via mais interessante das coisas... observada inclusive no sorriso de silêncio (1952) e Morning in the city (1944), de Hopper, a de The room
Porém, voltemos ao li- “voltado para o interior” exibi- — coisas (1953) e Nude before a mirror (1955), de Balthus.
vro citado. À página 87 sur- do pelas personagens de Da Vin- que somos Para além da semelhança cênica, a paleta e a luminosi-
ge um ponto curioso, que cito ci (e aqui penso não somente na dade — em ambos — produzem o resultado de confissão e
em tradução minha: “Uma ou- Mona Lisa, mas n’A dama com acostumados enigma. Um paradoxo desta espécie nos faz ver a luz como um
tra particularidade do trabalho o arminho, n’A Virgem e o me- a evitar. elemento do mistério, e o mistério às vezes é uma das princi-
de Balthus e que choca aqueles nino com Santa Ana, n’A virgem pais qualidades da arte.
que descobrem pela primeira vez das Rochas…  Penso sobretudo Qualquer tentativa de “esclarecimento” destas questões
suas telas vem igualmente dos no esplêndido São João Batista, (que existem para permanecer suspensas) pode decepcionar,
seus pintores preferidos. O fato que poderia ter alcançado tan- restringindo o impacto estético. Eis por que um filme como
é que sobre o rosto dos seus mo- to sucesso em termos de risinho Shirley (2013), que utiliza os ambientes e personagens de Ho-
delos, o sorriso está como que fi- enigmático quanto a Gioconda, pper, mergulha em terrível monotonia, apesar do virtuosismo
xado, voltado para o interior, e célebre a ponto de me instilar técnico. Ao “solucionar” algumas incógnitas, atribuindo no-
ali paira uma invencível melan- um certo tédio e fazer preferir os me, profissão e contexto histórico às figuras dos quadros, o
colia. Um traço que se encontra outros quadros deste gênio. diretor Gustav Deutsch obviamente exclui outras possibilida-
em muitos pintores da Renas- Finalmente, para concluir des, e essa escolha — tão inevitável quanto fatal —, mesmo
cença, justamente: Gaddi, Botti- a apreciação do livro de Aubert, que se mantenha fiel à luz e às cores do pintor, elimina sua
celli e, claro e sempre, Piero della é interessante reparar, às páginas estranheza. Como resultado, o espectador deixa de se sentir
Francesca, tal como se pode ver 100 e 101, no efeito de “Unhei- inquieto e cai em sonolência.
12 | | junho de 2016

Orides Fontela por Dê Almeida

O
que é a poesia Às vezes me chamam de bri-
diante do enig- guenta. Eu não sei como me rela-

O enigma
ma da vida? Uma cionar bem. Primeiro, sou filha
tentativa de des- única. Fui criada muito tímida, fe-
vendá-lo ou de reforçá-lo? O que chada. Segundo, eu tenho que con-
poderia um poeta diante da im- viver num meio burguês, no qual
posição de seu destino? não fui criada, tenho umas manei-
A poesia da paulista de São ras meio grossas. Não tomei chá em
João da Boa Vista, Orides Fontela criança, como se diz. Embora tome

desvendado
(1940-1998), pode ser lida como agora, não funciona mais.
uma resposta pessoal, pontiagu-
da e substantiva a essas questões Mas ainda tem mais, mui-
e a dezenas de outras não menos to mais: uma reprodução do de-
essenciais. Desde sua aparição no poimento que Orides escreveu a
cenário literário, com a descober- pedido de Alberto Pucheu sobre
ta e posterior organização de seu poesia e filosofia. E a cereja do
primeiro livro (Transposição, bolo: a reprodução dos originais
1969) pelo crítico e conterrâneo encontrados de 27 poemas iné-
Davi Arrigucci Jr., a poética sin-
gular de Orides tem surpreen-
Reportagem biográfica e obra reunida revelam toda a ditos de Orides.
Dois deles:
dido e encantado a todos que complexidade da poesia e da sofrível vida de Orides Fontela
tiveram a oportunidade de lê-la. Da poesia
Não foi diferente comigo. Um
Sua poesia já foi incensa- Edson Cruz | São Paulo - SP gato tenso
da por mestres como o crítico tocaiando o silêncio
Antonio Candido e teve sua po-
tência reconhecida por figuras Teologia II
nada desprezíveis da cena lite- Deus existir
rária: o próprio Davi Arriguc- ou não: o mesmo
ci; o professor, poeta e editor escândalo.
Augusto Massi; as filósofas Ma-
rilena Chauí e Olgária Matos; a Os dois poemas são exem-
professora e ensaísta Nelly No- plares da poética e, talvez, do
vaes Coelho; o professor Alcides estilo final de Orides. Uma poe-
Villaça, entre outros professores, sia densa, tensa e sintética. Que
poetas e amigos de ocasião. abraçou e superou procedimen-
Antonio Candido, por tos estéticos do modernismo
exemplo, afirma no prefácio do li- com sua capacidade reflexiva e
vro Alba (1983): “Um poema de densidade de linguagem.
Orides tem o apelo das palavras Os dois poemas são re-
mágicas que o pós-simbolismo feridos e analisados com bri-
destacou, tem o rigor construti- lhantismo na introdução de
vo dos poetas engenheiros e tem Luis Dolhnikoff à Poesia com-
um impacto por assim dizer ma- pleta de Orides. Claro que a
terial da vanguarda recente. Mas edição, sabiamente, incorpo-
não é nenhuma dessas coisas na rou os poemas inéditos reco-
sua integridade requintada e so- lhidos por Gustavo.
branceira; e sim a solução pes- Dolhnikoff faz várias ob-
soal que ela encontrou...” servações que nos interessam ao
O professor Alcides Villa- longo de sua introdução. Por
ça em um de seus artigos sobre a exemplo: “Orides Fontela foi
poesia de Orides [Símbolo e acon- uma poeta antilírica, ao menos
tecimento na poesia de Orides, No- no sentido em que, se em sua
vos estudos Cebrap, 1992] faz poesia o eu lírico ainda tem vez,
a seguinte reflexão: “Sem bair- no entanto tem pouca voz, tro-
rismo, sem regionalismo, sem cado pelo protagonismo da pala-
nacionalismo; à margem de ‘van- vra. Isto a aproxima, afinal, das
guardas’; imune à parodização vanguardas visualistas, de que o
como sistema, sem biografismo, fato de ser uma renovadora do
sem confessionalismo, sem psico- modernismo deveria afastá-la”.
logismo; sem expansão retórica, O poema Da poesia opera
mas sem obsessão minimalista; uma poderosa síntese metalin-
fora do anedótico, do panfleto, guística. Dolhnikoff nos chama
da provocação, sem bandeira po- Orides Fontela — Poesia com- Um de seus poemas revela: a atenção para a sua construtivis-
lítica, estética ou ecológica, sem pleta, organizado pelo poeta e ta e densa trama sonora: “GATO
escatologia agressiva, dramatis- crítico Luis Dolhnikoff. Aforismos está em anagrama em TOCAian-
mo ou ressentimento — em que O livro de Gustavo é uma matar o pássaro eterniza do, e tenso é uma assonância forte
águas, afinal, lança âncora a poe- reportagem biográfica (um pos- o silêncio de silêncio. Mas Orides diz mais
sia sem rótulos de Orides?”. sível romance-documento) sobre matar a luz elimina com menos, ou seja, depura as
A busca de respostas a es- Orides muito bem escrita e com o limite lições do alto modernismo. (...)
sa questão de Villaça revela-nos revelações fascinantes de sua vi- matar o amor instaura ela usa essa tensão/contenção em
o desconforto e a delícia da poe- da, pensamento e fazer poético. a liberdade. uma poesia cuja matéria formal
sia de Orides. É uma poesia que Uma Orides esquálida, irascí- informa e conforma densamente
pensa e exige decantação. O lei- vel, demasiadamente humana, e Se não bastassem as dezenas de depoimentos o material semântico”.
tor deverá dar o tempo necessário lúcida de doer salta de suas pá- de pessoas próximas que deslizam pelo texto, Gus- Em outra chave, a meu
à encantação de cada poema de ginas. Uma poeta que estudou tavo ainda recupera uma entrevista histórica que ver, o poema revela também um
Orides. E esse movimento neces- filosofia e não conheceu o amor, Orides concedeu à revista feminina Marie Claire olhar particular de Orides em re-
sário à recepção adequada de toda pelo menos não o amor român- (1996). Nela, Orides é ácida, direta e sem autoco- lação à poesia e, talvez, à vida.
grande poesia está na contramão tico. Que tinha consciência de miseração. Só a entrevista já valeria o livro: Um olhar que ela apurou com
dos tempos rapidíssimos e de su- sua não beleza física e de sua ina- suas experiências zen budistas.
perfluidez que vivenciamos hoje. dequação ao mundo. Diz ela: Da minha vida particular basta saber uma coi- Em 1972, Orides come-
Dois grandes lançamen- sa: eu sou professora aposentada, o meu dinheiro não çara a participar do culto sema-
tos podem ajudar o leitor que Não amei ninguém. Eu fa- está dando para o aluguel e eu preciso dar um jeito de nal do primeiro centro Soto Zen
desconhece a poesia de Orides e lo do que conheço e do que vivi. E arranjar um emprego para equilibrar meu orçamento. na América do Sul, tornando-
iluminar a leitura daquele que a não conheço o amor. (...) Mas não De modo que preciso de emprego e não de comentá- se um dos primeiros brasileiros
conhece pouco: O enigma Ori- sou virgem. Perdi a virgindade de rios. Portanto, vamos perguntar da obra, certo? a frequentar as seções de medi-
des, de Gustavo de Castro, e forma muito prática. (...) tação regularmente. Pra ela foi
junho de 2016 | | 13

uma verdadeira iniciação em A vivência humana e des- são a rosácea, o tempo, a luz,
vários aspectos da cultura, do perta do tempo é kairós. É na a rosa, arcanjos, a vida, a es-
pensamento e da busca japonesa apreensão deste instante eterno trada, etc. No terceiro livro,
associados ao zen. e único que se fazem presentes Alba (1983), a luz, trovões,
Ironicamente, em 1996, os três mil mundos do conceito centauros, os anjos, as parcas, a
Orides comenta na já referida en- budista de ichinen sanzen. Nele água, a estrela, etc.
trevista à Marie Claire que “pro- estão o passado, o presente e o Podemos notar, a par-
curava a iluminação mesmo. Mas futuro. Nele estão as possibilida- tir de seu quarto livro, Ro-
Orides Fontela — só cheguei a um pisca-pisca”. des dos cem mundos, dos vários sácea (1986), que sua poesia
Poesia completa Em todo caso, se a expe- fatores e dos componentes da abstrata e tendendo ao subli-
Org.: Luis Dolhnikoff riência budista não iluminou forma, percepção, concepção, me passa por uma reavaliação
Hedra sua vida nem seus problemas volição e consciência. É nele e redirecionamento. Orides
428 págs. domésticos e recorrentes, apu- que “amadurece a hora”, no exa- reconhece: “Até Alba meus
rou seu olhar e adensou cada vez to instante que o pássaro pousa versos viviam pairando lá em
mais sua linguagem. Felizmen- e que o espelho se desvela com cima, sublimes demais. (...)
te, a poesia de Orides não reflete nosso despertar. Agora faço uma poesia mais
sua biografia. O que a distancia Na construção do poema vivida, mais encarnada (...)
enormemente de alguns de seus o advérbio de tempo “quan- Fiz tudo ao contrário: come-
contemporâneos, por exemplo, do” costura e demarca as várias cei no abstrato e terminei no
de um Roberto Piva. possibilidades de apreensão. O concreto”. [Poesia, sexo, des-
Orides constrói sua poe- três dísticos representam com tino: Orides Fontela, em Leia
sia com a coragem e o topete precisão a passagem do tem- Livros (1989)]
de afirmar sua diferença em vá- po. O número três é a função
rios níveis. Por um lado assu- adequada para deixar o movi- Herança
O enigma Orides me-se como mulher e pobre, à mento em aberto, para gerar a Da avó materna:
Gustavo de Castro
margem dos sonhos de ascensão sensação de um ciclo que con- uma toalha (de batismo).
Hedra
237 págs.
social e econômica e por outro tinua. Mesmo o agora é sempre Do pai:
assume certa fidalguia do espíri- quando em movimento. um martelo
to, nutrida pelas leituras que fez Os cortes cirúrgicos de ca- um alicate
em seu curso de Filosofia, dos da verso em enjambements são uma torquês
autores que elege e por sua par- fundamentais para sua potencia- duas flautas.
ticular visão de mundo. lização. As três ações são demar- Da mãe:
Em seu depoimento sobre cadas em um presente histórico: um pilão
poesia e filosofia ela esclarece sua pousa/acorda/amadurece. O flu- um caldeirão
visão sobre poesia: “...poesia não xo do tempo é o mesmo da vi- um lenço.
é loucura nem ficção, mas sim da: do repouso anima-se a vida
um instrumento altamente vá- e se desenvolve até o seu feneci- Mas, apesar do que diz a
lido para apreender o real — ou mento. O fluxo do tempo maior poeta, ela não consegue se des-
pelo menos meu ideal de poesia abraça o fluxo do tempo menor. fazer por completo do sublime,
é isso. Depois é que surge o esfor- Já dizia o Buda: tudo passa pelo pelo menos não na acepção de
ço para a objetividade e a lucidez, ciclo de nascimento, envelheci- “superlativamente belo”:
a filosofia. Fruto da maturidade mento, doença e morte.
humana, emerge lentamente da Outro poema seu em três Kant (relido)
poesia e do mito, e inda guarda tempos que também aprisiona a Duas coisas admiro: a dura lei
as marcas de co-nascença, as pe- eternidade: cobrindo-me
gadas vitais da intuição poética.” e o estrelado céu
Leitora de Heidegger, Ori- A loja (de relógios) dentro de mim.
a autora
des o lê não como um filósofo, I
mas como um poeta em prosa. Pa- O relógio O poeta e crítico Felipe
Orides de Lourdes ra ela a poesia vem antes de tudo. horologium Fortuna observa argutamente
Teixeira Fontela
Ou pelo menos a “intuição poéti- a hora que Orides escreveu poemas
Nasceu em São João da Boa Vista, ca”. Talvez, por isso, apesar de ser o logos. inteiros sem verbos, ou se-
interior de São Paulo, em 21 de abril evidente o apuro formal de seus ja, sem as noções esperadas de
de 1940. Começou a escrever poemas poemas, ela revela com certa inge- II ação, processo ou estado que
aos sete anos. Como ela mesma dizia, nuidade acreditar em “inspiração”. Os peixes estão do ponto de vista sintático se-
sua família “não tinha base cultural, O tecido de seu texto é “ins- no aquário riam essenciais para a função
meu pai era operário analfabeto, de pirado” por imagens universais, o touro está de núcleo de predicado das sen-
modo que a cultura que peguei foi fotografias de instantes que car- na balança tenças. Mas a poesia, ao contrá-
na base do ginásio, escola normal
regam a eternidade, momentos e a virgem rio da prosa, é pródiga nessas
e leitura”. Aos 27 anos, deixou sua
cidade natal e foi morar em São
oportunos, faíscas de iluminação: parindo artimanhas de significação.
Paulo, com dois sonhos: entrar na os gêmeos.
USP e publicar um livro. Cumpriu Kairós Ode
os dois: fez Filosofia e publicou seu Quando pousa III Neste tudo
primeiro livro, Transposição, com a o pássaro Os relógio estão tudo falta
ajuda do professor Davi Arrigucci Jr., quando acorda na eternidade. (neblina)
seu conterrâneo. Depois de formada, o espelho e nesta
foi professora primária e bibliotecária quando amadurece A crítica literária Flora falta: eis
em escolas da rede estadual de ensino. a hora Süssekind já observou na obra tudo.
Publicou ainda Helianto (1973), de Orides uma incidência con-
Alba (1983), Rosácea (1986),
Chegar a esse apuro formal siderável de sujeitos indetermi- Vários de seus grandes
Trevo (1988), Teia (1996), Poesia
reunida (2006). Com Alba, recebeu
e dizer tanto com doze palavras, nados, ou sujeitos compostos leitores críticos identificam
o prêmio Jabuti de Poesia em 1983; ou menos, a rigor sete palavras, por substantivos abstratos e o “silêncio” como a metáfora
e com Teia, em 1996, recebeu não é pra qualquer poeta. O que verbos no infinitivo. Tudo isso, essencial da poesia de Orides
o prêmio da Associação Paulista ela consegue condensar em seis segundo Flora, revela uma re- Fontela. O poema que parado-
de Críticos de Arte. Sempre com versos, na mão de um prosador/ sistência a figurar explicitamen- xalmente caminha para o não
dificuldades financeiras, no final da ensaísta/filósofo seria matéria te o sujeito lírico. Creio que dito, para o calar de Wittgens-
vida, acabou sendo despejada de seu para inúmeros tomos sobre as mais do que uma resistência, tein, para com isso dizer mui-
apartamento no centro da cidade características essenciais do tem- no caso de Orides é uma estra- to ou revelar aquilo que não se
e foi viver com sua amiga Gerda po e de como o vivenciamos. tégia poética, uma consubstan- consegue colocar em palavras.
na Casa do Estudante, um velho Sabemos que kairós é uma ciação “intuitiva” direcionada Sim, Selvagem/ o silên-
prédio na Avenida São João. Era
palavra grega que denota uma ao protagonismo da palavra. cio cresce, difícil. Sim, depois
uma pessoa irritadiça e muitas vezes
se meteu em encrencas, brigando
visão particular do tempo, como Por exemplo, no livro dela só há/ o silêncio. Dói a
com seus melhores amigos. Morreu fruição e qualidade. Palavra que Trans­posição (1969), os sujei- imagem de Orides enxugan-
em Campos de Jordão, aos 58 anos, se distancia de kronos, que tam- tos de suas “ações” são o fluxo, a do as lágrimas na capa dessas
no dia 4 de novembro de 1998, de bém poderia ser traduzida por manhã, o verbo, o sol, o círculo, edições e seus poemas como
insuficiência cardiopulmonar, na tempo, mas o tempo do relógio, a vida, o amor, a semente. Em esfinges a desafiar a massa ig-
Fundação Sanatório São Paulo. do cronômetro. He­lianto (1973), os sujeitos nara de não leitores.
14 | | junho de 2016

simetrias dissonantes | Nelson de Oliveira


Quantos dedos você deseja?

N
ilustração: Bruno Schier
o longa-metragem dores, mas agora incluindo robôs
Gattaca, de 1997, e androides — foram se avolu-
escrito e dirigi- mando em toda a parte.
do por Andrew O mesmo pode ser dito so-
Niccol, há uma cena em que os bre os ciborgues, que também
personagens de Ethan Hawke deixaram de ser exclusividade da
(Vincent) e Uma Thurman (Ire- ficção científica. Deu na impren-
ne) vão a um elegante concerto sa global: em 2004, o britânico
de piano. No final da apresen- Neil Harbisson foi reconhecido
tação, o virtuose agradece pelos oficialmente como sendo o pri-
aplausos, lançando na direção da meiro ciborgue do mundo. O
plateia seu par de luvas brancas. primeiro homem ampliado. Em
Irene recebe uma delas e mostra 2010, ele e a artista espanhola
a seu acompanhante. A luva tem Moon Ribas, também uma ci-
seis dedos. Na saída do auditó- borgue, criaram a Cyborg Fou-
rio ela comentará com Vincent: ndation, cuja principal missão
“Você não sabia? Maravilhosa, é ajudar os humanos a se tor-
não? Aquela peça só pode ser to- narem organismos cibernéticos
cada por um pianista com doze (cyborg: cybernetic organism).
dedos”. A cena inteira não du- Atualmente há mais de duas dú-
ra mais que dois minutos, mas zias de diferentes tipos de cibor-
propõe uma pauta extensa e de- gue circulando por aí.
morada de questões filosóficas, Outro tema bastante co-
políticas, sociais, éticas e morais. mum na ficção científica, que
agora já começou a ganhar es-
Guerra total de classes paço nos cadernos e nas revistas
O termo eugenia (do latim não de literatura, mas de ciên-
eugenes, que significa bem nasci- cia e tecnologia, é o estranhíssi-
do) foi cunhado em 1883 pelo mo tema do upload mental. O
antropólogo e estatístico inglês bilionário russo Dmitry Itskov
Francis Galton, primo de Char- já avisou o planeta, por meio da
les Darwin. Detalhe curioso: a imprensa e de dois congressos,
palavra eugenia surgiu antes mes- que até 2045 planeja transferir
mo da palavra genética, criada sua mente para um “portador
em 1908 pelo cientista William não-biológico avançado” — em
Bateson, também inglês. outras palavras, um computa-
Cem anos atrás, mui- dor — e se tornar praticamente
tos cientistas acreditavam que imortal. Segundo ele, o upload
a raça humana pode e deve ser mental é o próximo passo da
aperfeiçoada por meio da sele- evolução humana. O projeto de
ção artificial. Ou seja, evitan- Itskov se chama Iniciativa 2045
do os cruzamentos indesejáveis • Qual a cor de pele? (Con- sentada no romance de Huxley escritores buscarem inspiração e tem o conhecido neurocien-
e incentivando o nascimento centração de melanina. Muito só é uma distopia quando obser- nos jornais e nos livros de não- tista holandês Randal Koene na
de indivíduos socialmente mais clara, clara, parda ou negra.) vada de fora, pelo leitor ou pe- ficção, principalmente de His- função de diretor científico.
capacitados. A eugenia é a ba- • Qual a orientação sexual? los personagens estrangeiros que tória. Os célebres contos de
se científica da sociedade futura (Hetero, homo, bi, pan ou asse- chegam sem aviso, a exemplo do investigação Os assassinatos da Veja-me se for capaz
apresentada no clássico Admirá- xual.) Selvagem. Somente o olhar chau- rua Morgue e O mistério de Ma- Outro assunto bastante co-
vel mundo novo, de Aldous Hu- E anoto abaixo apenas vinista — nosso proverbial narci- rie Roget, de Poe, foram escritos mum na literatura especulativa,
xley, publicado em 1932. uma questão pra você, cidadão sismo político e social — é capaz a partir de notícias de jornal. Os que agora já começou a ganhar
A palavra caiu em total pobre ou remediado: de enxergar um desequilíbrio nes- romances Crime e castigo e O espaço também nos cadernos e
desgraça com a ascensão e queda • Como se sente, não po- sa sociedade fundada na eugenia idiota, de Dostoievski, também nas revistas de ciência e tecnolo-
do nazismo, porém nas últimas dendo usufruir dessa nova tec- e no condicionamento pavlovia- nasceram de notícias de jornal. gia, é o sempre surpreendente as-
duas décadas voltou a aparecer nologia, não podendo dar o no. Para seus cidadãos, o Estado Entre nós, o romance Mattos, sunto da capa da invisibilidade.
na literatura científica, meio sub melhor ao seu filho? Mundial é uma utopia verdadei- Malta ou Matta?, de Aluísio Os cientistas estão estudando se-
-repticiamente, é claro. Não há Refletindo sobre as práti- ra, revelando-se uma nação em Azevedo, considerado a primei- riamente uma maneira de tornar
como negar: em breve a eugenia cas biotecnológicas seletivas da que a luta de classes foi substituí- ra narrativa policial da literatu- uma pessoa ou um objetivo in-
será uma consequência direta do espécie humana, ou neoeugenia, da pelo equilíbrio de castas, em ra brasileira, também surgiu de visíveis, com o uso do chamado
avanço da engenharia genética. Francis Fukuyama faz a seguin- que o proletariado, bem adapta- uma notícia de jornal. O nú- metamaterial. Filhote da nano-
Então, convido o leitor a te observação: “Se casais endi- do e satisfeito, jamais lança um mero de ficções históricas que se tecnologia, trata-se de um ma-
um rápido exercício de reflexão. nheirados, através da engenharia olhar de desprezo ou inveja so- alimentaram — obviamente — terial produzido artificialmente,
Imagine que vivemos nu- genética, tiverem a oportunida- bre a elite. Diferentemente da das páginas dos livros de história que apresenta propriedades físi-
ma democracia liberal, numa de de aumentar a inteligência de Oceania de Orwell, cujo lema é é quase infinito. cas incomuns na natureza, entre
época em que os geneticistas seus filhos, assim como a de to- “guerra é paz, liberdade é escravi- Mas agora certas situações elas o índice de refração nega-
já compreenderam totalmente dos os seus descendentes, tere- dão, ignorância é força” (estraté- surgidas primeiro na mente cria- tivo. Em vez de refletir ou re-
o genoma e a hereditariedade. mos não apenas um dilema moral gia do cortisol), o lema do Estado tiva de contistas e romancistas fratar a luz, uma capa feita de
Agora, por meio da engenharia mas uma guerra total de classes.” Mundial é: “comunidade, identi- estão escapando da esfera da fic- metamaterial fará a luz contor-
genética, os casais ricos podem (Nosso futuro pós-humano) dade, estabilidade” (estratégia da ção para a seção de ciência e tec- nar sua superfície, tornando in-
escolher, num cardápio, as ca- endorfina). Não há conspirado- nologia de jornais e revistas. visível quem ou o quê estiver sob
racterísticas dos filhos. Felicidade programada res ou passeatas, ninguém deseja É o que está acontecendo ela. Essa premissa foi usada no
Listo abaixo cinco ques- Os comentaristas políticos a renovação ou a revolução. É a com os computadores, robôs e romance O homem visível, de
tões pra você, cidadão rico e bem e literários costumam citar lado perfeita e irretocável ditadura do androides. Se antes eles apareciam Chuck Klosterman, lançado em
nutrido, quando for planejar seu a lado Admirável mundo no- prazer, na feliz expressão do pro- maciçamente apenas em peças de 2011. Fazendo o percurso in-
herdeiro ou sua herdeira: vo, de Aldous Huxley, e 1984, fessor Ramiro Giroldo. ficção literária ou audiovisual, verso — da pesquisa científica
• Qual o QI? de George Orwell, sempre que desde que o Deep Blue bateu o pra ficção —, Klosterman con-
• Qual a altura e o peso na falam de narrativas sobre Esta- O futuro é agora campeão do mundo de xadrez, ta a história de um voyeur que se
idade adulta? dos distópicos. Sinceramente, eu Está ocorrendo no mundo Garry Kasparov, as reportagens e aproveita de um traje de invisibi-
• Quais doenças devem ser considero os dois exemplos in- uma inversão curiosa. os artigos sobre inteligência arti- lidade pra espionar bem de perto
eliminadas? compatíveis. A sociedade apre- Sempre foi muito comum ficial — centrados nos computa- a vida mesquinha das pessoas.
junho de 2016 | | 15

inquérito
heloisa seixas
ivson

Sem vender a
alma ao demônio
H
• Quando se deu conta de que eloisa Seixas nasceu em 1952, no Rio
queria ser escritora? de Janeiro, onde vive até hoje. Antes
Com quase 40 anos. Não de dedicar-se exclusivamente à lite-
tenho, até hoje, explicação para ratura, trabalhou durante anos como
o que aconteceu. Os textos co- jornalista e tradutora. Estreou na ficção com Pente
meçaram a transbordar, só isso. de Vênus (contos), publicado em 1995 e finalista
Foi uma coisa que aconteceu, de do Prêmio Jabuti. De lá para cá, escreveu romances,
certa forma, à minha revelia. crônicas, teatro, não-ficção e literatura juvenil e in-
fantil. Seu livro mais recente é O oitavo selo, uma
• Quais são suas manias e ob- mistura de ficção e realidade, narrando os confron-
sessões literárias? tos de seu marido, Ruy Castro, com a morte. O li-
Todos os meus livros têm vro foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
velhos, gatos, portas, olhos, lama.
Descobri isso um dia, sem querer.
Não sei a razão. Não tenho dúvi-
da de que sou, como diria Nelson
Rodrigues, “uma flor de obsessão”.

• Que leitura é imprescindível


no seu dia a dia? • O que lhe dá mais prazer no • Um livro imprescindível e • O que é um bom leitor?
Leio sempre dois ou três processo de escrita? um descartável. Não sei. Num país como o nosso, onde tão
livros ao mesmo tempo. Sou A surpresa, aquele mo- Prefiro não fazer essas poucos leem, qualquer pessoa que abra um livro já
bem eclética, mas guardo sem- mento da escrita de ficção em escolhas. Há sempre a chance deve ser considerada um bom leitor.
pre uma leitura leve para a hora que a história ou o personagem de se cometer uma injustiça.
de dormir. Imprescindível é ler tomam as rédeas, e o escritor Melhor não. • O que te dá medo?
— não importa o quê. vai a reboque. É incrível quan- A política brasileira.
do isso acontece. • Que defeito é capaz de destruir
• Se pudesse recomendar um ou comprometer um livro? • O que te faz feliz?
livro à presidente Dilma (ou • Qual o maior inimigo de um A desonestidade para Gatos, livros. Caminhar junto ao mar de Ipa-
Temer), qual seria? escritor? com o leitor, e também do es- nema, com o Ruy (Castro).
Para Dilma ou Temer, reco- Preocupar-se com os ou- critor para consigo mesmo.
mendaria um livro para colorir. tros, com o que dirão, se irão • Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
gostar ou não, se o livro vai ven- • Que assunto nunca entraria Dúvida, todas. Certeza, aquela de que já falei:
• Quais são as circunstâncias der ou não. Qualquer preocupa- em sua literatura? nunca trair a si mesmo, nunca fazer concessões.
ideais para escrever? ção desse tipo equivale a vender Não costumo estabele-
Já escrevi em circunstân- a alma ao demônio. O escritor só cer limites desse tipo. A escrita • Qual a sua maior preocupação ao escrever?
cias muito adversas. No meio da pode escrever aquilo que, dentro às vezes me surpreende. Nun- Ser verdadeira. Fiel a mim mesma, às minhas
noite, sentada na cama. Ou fa- de si, pede para ser escrito. ca pensei em fazer um livro de obsessões, aos meus temas.
zendo anotações no verso de um não-ficção e fui surpreendida
talão de cheques. Não há regra • O que mais lhe incomoda no pela necessidade de escrever • A literatura tem alguma obrigação?
para isso. Nem deve haver. meio literário? sobre o Alzheimer da minha Nunca se render a modismos.
Toda profissão tem pa- mãe (O lugar escuro, que
• Quais são as circunstâncias nelinhas e elas são sempre um saiu em 2007). Por isso, nun- • Qual o limite da ficção?
ideais de leitura? pouco incômodas. Perceber que ca digo nunca. Os limites estão cada vez mais incertos. Todas
Silêncio, boa luz. E um há pessoas que, embora às vezes as fronteiras desaparecem. Há alguns anos venho
bom livro, claro. Não precisa de menos talentosas, vivem a vi- • Qual foi o canto mais inusi- gostando de brincar com os limites entre ficção e
mais nada, mas se tiver um gato da literária de forma a aparecer, tado de onde tirou inspiração? não-ficção, e acho que me espalhei bastante fazendo
ao lado é melhor ainda. sempre — isso incomoda. Mas Do câncer. isso em meu último livro, O oitavo selo. Virou qua-
incomoda em termos. Para di- se um jogo. A partir de um certo ponto, nem eu mes-
• O que considera um dia de zer a verdade, não perco muito • Quando a inspiração não ma sabia mais o que era real, o que era ficção.
trabalho produtivo? tempo pensando no assunto. vem...
Faço muitas coisas hoje Só escrevo quando pre- • Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “le-
em dia. Não trabalho só com li- • Um autor em quem se deveria ciso escrever. Se o assunto se ve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
vros, mas também com teatro e prestar mais atenção. apresenta, eu deixo fluir. Ruy Castro (risos).
até televisão. Mas minha matéria Per Johns. Em geral, só se
-prima é, e sempre foi, a palavra. fala nele como tradutor da Karen • Qual escritor — vivo ou • O que você espera da eternidade?
Então, se estou lidando com a pa- Blixen, mas ele é autor de livros morto — gostaria de convi- Como acabei de chamá-lo de líder, vou citar
lavra, estou feliz. E ser produtivo extraordinários, entre os quais dar para um café? uma frase dele: “Quando morrer não quero ir para o
é isso: trabalhar no que gosta. destaco As aves de Cassandra. Karen Blixen. céu. Quero ir para um sebo”.
16 | | junho de 2016

ilustração: Fábio Abreu

Meu caro Drummond


Em A lição do amigo, Drummond faz anotações e comentários
em dezenas de cartas que recebeu de Mário de Andrade

Marcos Hidemi de Lima| Pato Branco – PR

L
er cartas alheias pro- pensamento de duas figuras im- em 1968, levaram para a Uni- Drummond faz alusão a esse comportamen-
duz uma sensação de portantíssimas do Modernismo versidade de São Paulo o acer- to ambíguo do escritor. Em 1944, o autor de Al-
devassar segredos es- é um bom motivo para ler as car- vo do escritor — incluindo as guma poesia publicou alguns trechos de cartas
critos de quem os re- tas que Mário de Andrade reme- correspondências com e sem la- trocadas entre ambos. Na carta de 16 de março
meteu e daqueles a que foram teu a Drummond. Além disso, cre. Mesmo que muitas cartas de de 1944, não se constata nenhuma reação nega-
destinados. Chega a haver a im- desde o ano passado, quando a Mário já fossem de conhecimen- tiva por parte de Mário: “Pois, Carlos, que coisa
pressão de que se é um voyeur Flip o homenageou nos 70 anos to público, foram mantidas num estupenda! quando eu lia os trechos de cartas mi-
a se comprazer em espiar pelo de sua morte, Mário voltou me- cofre, conforme a orientação dos nhas que você citava, era maravilhoso [...] Eu me
buraco da fechadura intimida- recidamente a ser assunto das herdeiros do escritor. lembrava mais: lembrava dos momentos em que
des que não lhe dizem respeito. conversas. Eis uma oportunida- Essa preocupação de escrevera aquilo, as sensações se repetiam quase in-
Por analogia, são práticas pare- de de conhecer o escritor na inti- Drummond com a questão da tegrais nos trechos mais longos, hora, estado físico,
cidas. Ler a correspondência dos midade de suas cartas. privacidade ao decidir levar a momentos circundantes do em que eu escrevera
outros é como espreitar a vida público o que Mário lhe escre- aquilo!”. Como se pode verificar, os comentários
privada que se revela nas linhas Cartas públicas vera ao longo de vinte anos tam- de Mário são esfuziantes.
e linhas de cartas trocadas entre Mas antes que alguém pen- bém está presente no posfácio Na contramão dessa boa vontade expres-
uma pessoa e outra. se que comete algum crime ao de André Botelho. Este comen- sa ao amigo poeta, numa correspondência datada
Na realidade, quase todos abrir o volume A lição do ami- ta que “Lendo essas cartas que a de agosto de 1943, Mário dizia, numa linguagem
têm certo prazer em ficar a par go: cartas de Mário de Andrade princípio não nos foram dirigi- meio cartorial, ao jovem jornalista Murilo Mi-
de confissões, confidências, reve- a Carlos Drummond de Andra- das, mas às quais agora podemos randa, que lhe pedira autorização para publicar
lações e outras coisas sigilosas e de, convém pôr os pingos nos ter acesso, flagramos o cotidiano algumas cartas trocadas entre ambos: “[...] decla-
íntimas que ocorrem com o pró- is. O próprio Drummond deixa de dois grandes artistas e intelec- ro solenemente, em estado de razão perfeita, que
ximo. Esse tipo de curiosidade claro na introdução que “A pu- tuais”. Nesse comentário, Bote- quem algum dia publicar as cartas que possuo ou
faz parte da psique humana. Um blicação da correspondência de lho assinala um conflito ético em cartas escritas por mim, seja em que intenção for, é
exemplo bem trivial: na televi- Mário de Andrade envolve dois ler sobre assuntos que compõem filho da puta, infame, canalha e covarde”. Tudo is-
são, alguns programas exploram problemas, um de natureza ética, o universo privado dos dois poe- so mudou no ano seguinte, como se vê nos elogios
muito bem essa vocação para es- outro meramente técnico”. Esse tas, pois isso se assemelha à apro- acima tecidos a Drummond. Até Murilo Miranda
pionar o que passa com os ou- comentário do poeta revela a in- priação da intimidade alheia, acabou beneficiado com o fim da inflexibilidade de
tros. Entretenimentos desse tipo quietação de Mário com os olha- uma vez que, de certa forma, o Mário, pois este acaba autorizando o jornalista a di-
podem lá não ser grande coisa, res alheios a espreitarem sua farta leitor acaba sendo um elemento vulgar o que Mário havia escrito a Cecília Meireles.
todavia levam milhares de teles- correspondência com inúmeros estranho no relacionamento que
pectadores à frente da telinha pa- escritores, amigos e personalida- há entre os dois escritores. Diálogo epistolar
ra assistirem apaixonadamente a des de sua época e mostra que Em carta de 8 de maio de Na apresentação de A lição do amigo,
intrigas e mexericos sobre gente Drummond busca manter as sin- 1926, Mário destaca essa ideia Drummond conta sobre o diálogo epistolar en-
que mal conhecem. gularidades ortográficas do autor de privacidade que deveria exis- tre ambos. Contudo, salienta que “jamais convivi
No entanto, é preciso ava- de Macunaíma e fazer anotações tir nas cartas: “Eu falo sempre com Mário de Andrade a não ser por meio das car-
liar a leitura da correspondên- para iluminar as sombras elípti- que uma das coisas mais mara- tas que nos escrevíamos”. Mesmo entre os anos de
cia de outrem sob outro prisma. cas comuns ao universo epistolar. vilhosas da amizade é esse direi- 1938 e 1941, quando Mário viveu no Rio de Ja-
Vale cogitar que essa ação pos- Entre os dois problemas to do segredo entre dois. Você neiro, não houve entre os dois escritores a “frater-
sui um lado positivo, capaz de apontados por Drummond, a sabe: a gente se estima até mais na conversa” tão esperada, ainda que Drummond
esclarecer fatos passados e de questão ética de publicar as car- não poder e se revela um pro ou- também morasse na cidade. Entre ambos houve
lançar luz sobre questões obscu- tas do amigo mostra-se a mais tro o que tem de importante na sempre uma excessiva discrição.
recidas pela inexorável passagem complexa de se lidar, já que Má- vida porque isso ajuda a gente a Percebe-se que, ao menos no âmbito da escri-
do tempo. Nessa linha de racio- rio havia estabelecido que sua suportar a vida, é incontestável”. ta, Mário se revela bastante comunicativo e expan-
cínio, a ação de revirar os papéis correspondência deveria ser la- Todavia, vai ser o próprio escri- sivo. A afabilidade com que se dirige a Drummond
escritos que foram destinados a crada e somente aberta cinquen- tor que abre a guarda e comete nos textos corrobora bem isso. Ao longo dos anos,
outros pode ser justificada, por ta anos após sua morte. A família infidelidade contra esse direito várias vezes vai se dirigir ao amigo com as frequen-
exemplo, pela importância que incumbiu-se de fazer sua von- supostamente inviolável de ha- tes expressões “Carlos do coração”, “Meu Carlos”,
possuem para a compreensão da tade, e esse desejo foi mantido ver nas cartas trocadas a manu- “Meu querido Carlos”. No entanto, no plano pes-
nossa história literária. mesmo quando Antonio Can- tenção de segredo entre as duas soal, paradoxalmente, esse tratamento efusivo e es-
Nesse sentido, conhecer o dido e José Aderaldo Castello, partes envolvidas. se ar de bate-papo franco nunca ocorreram.
junho de 2016 | | 17

os autores
No poema Eu sou trezen- nas quais ele salienta sem pejo como a falta de gra-
Mário de Andrade tos, Mário afirma ser muitos. Po- na e as doenças o incomodaram vida afora.
Nasceu em São Paulo (SP) de-se estender isso ao universo de
em 1893 e faleceu na mesma sua vida real e o de suas cartas. Em Religião da correspondência
cidade em 1945. Foi um Mário havia uma persona que o Depois das edições lançadas pelas editoras Jo-
dos papas do Modernismo escritor assumia enquanto estava sé Olympio e Record, esta é a terceira vez que A li-
brasileiro e um dos mais redigindo cartas e outra quando ção do amigo vem ao mercado, comprovando que
atuantes, versáteis e fecundos o escritor se deparava tête-à-tête não são apenas os “moços, estudantes universitários
intelectuais que saíram desse A lição do amigo
com seu interlocutor. Em carta de de letras ou simples aspirantes à criação literária” Cartas de Mário de
movimento de renovação 16 de dezembro de 1925, Manuel que nutrem curiosidade pelo conteúdo das cartas
literária. É autor do clássico Andrade a Carlos
Bandeira destacava tal idiossin- de Mário de Andrade endereçadas a Carlos Drum- Drummond de Andrade
Macunaíma (1928).
crasia do autor, isto é, um Mário mond de Andrade. Companhia das Letras
Foi professor de música,
crítico de artes plásticas
epistológrafo e outro de carne e Cada palavra, cada linha, cada parágrafo des- 440 págs.
e música, sem contar sua osso: “Há uma diferença grande sas cartas que os leitores têm o prazer de ler e sa-
vasta correspondência entre o você da vida e o você das borear evidenciam que Mário de Andrade não se
com Manuel Bandeira, cartas. Parece que os dois vocês reduzia a um contumaz missivista. Ele possuía na
Cecília Meireles, Oswald estão trocados: o das cartas é que carne e no espírito a “religião da correspondência”,
de Andrade, Carlos é o da vida e o da vida é que é o de acordo com definição exata que um dia Antonio
Drummond de Andrade, das cartas. Nas cartas você se abre, Candido fez dele. Em suas cartas e também na sua
entre outros, que vem pede explicação, esculhamba, diz atuação como intelectual, sempre houve a presença
despertando grande interesse merda e vá se foder; quando está de uma verdadeira consciência crítica de par com
da crítica e do público. com a gente é... paulista. Frieza seu vasto conhecimento sobre literatura, música,
bruma latinidade em maior pro- artes, folclore, literatura, etc. revelando que o escri-
porção pudores de exceção”. tor foi (e ainda é) uma das figuras mais importantes
No trecho da carta de Ban- da intelligentsia nacional.
Carlos Drummond deira, reforça-se a ideia de que o De fato, nessas correspondências de Mário
de Andrade Mário ao vivo era pouco dado enviadas a Drummond, há a sensação de que os
Nasceu em Itabira em 1902 e a confidências e expansões com leitores também cumprem, de certa forma, um
faleceu no Rio de Janeiro em quem quer que fosse. Intimida- pouco o papel de destinatários das palavras ali re-
1989. Com Alguma poesia de só nas cartas, como se perce- digidas. De posse desse sentimento, os leitores cer-
(1930), seu livro de estreia, be nas enviadas a Drummond. tamente passam mesmo a sentir-se mais íntimos
revelou-se de imediato Nessas, há um Mário à vontade, de ambos os escritores, a ponto de abrirem os li- trecho
o primeiro grande poeta aquele que assim se confessara vros tanto de um quanto de outro com convicção
surgido na segunda fase numa missiva a Murilo Miran- de que nessas obras não vão encontrar textos dis- A lição do amigo
do Modernismo. Ao longo da: “Sei me abrir nas cartas, mas tantes, mas sim palavras ditadas por amigos que
de toda sua vida, o poeta
não sei, em corpo presente, con- lhes confidenciam algum segredo. E depois, Drummond, quando
dedicou-se ao jornalismo.
fessar minhas fraquezas”. Após esse contato com as cartas de Mário de
Foi dos jornais para os quais a gente se liga assim numa
escreveu que retirou boa Em A lição do amigo, em Andrade a Drummond — bem comentadas e com
meio a discussões variadas, Má- inúmeras referências para mais informações para amizade verdadeira tão
parte de suas crônicas e
contos publicados em livros. rio frequentemente queixa-se ao meros curiosos e interessados em epistolografia — bonita, é gostoso ficar junto
amigo sobre problemas de saú- muitos leitores certamente vão se sentir desejosos de do amigo, largado, inteirinho
de e de dinheiro. O escritor não conhecer o outro lado da moeda, isto é, as cartas que
nu. As almas são árvores. De
tem pudor de tratar sobre essas Drummond remeteu a Mário. A esses, uma leitura
fraquezas quando escreve. A pro- bastante recomendável e que permite o cotejamento vez em quando uma flor da
va dessa intimidade revelada nas do que um escreveu ao outro é Carlos e Mário: cor- minha vai avoando poisar nas
cartas está em dois dos três Apên- respondência de Carlos Drummond de Andrade raízes da de você. Que sirva
dices que Drummond anexou e Mário de Andrade (Bem-Te-Vi Produções Lite-
de adubo generoso. Com as
no fim do volume. São diversos rárias, 2002, 616 págs.), volume que contém 161
excertos de correspondências de cartas dos dois poetas, organizado por Lelia Coelho folhas da sua, lhe garanto que
Mário dirigidas a vários amigos Frota e notas e prefácio de Silviano Santiago. cresço também.
18 | | junho de 2016

palavra por palavra | Raimundo Carrero


A não-técnica é também uma
opção técnica do narrdor
www.vidabreve.com.br


reprodução

Pulei com os dois pés


na Estética”, escreve
Henry Miller expli- O romancista Henry
cando como desco- Miller.
briu a sua maneira de escrever
prosa retratando o desregramen-
Hallina Beltrão Tiago Silva
to da vida dos seus personagens e
de suas histórias, num texto rápi-
do, quase sem fôlego, através de
Marcelo Moutinho José Castello
confissões escatológicas, doentias,
espetaculares, tendo ele próprio
e as amantes como centro narra-
SÁBADO TERÇA-FEIRA
tivo. Na verdade, Miller marcou
a segunda metade do século 20
com publicação da trilogia A
crucificação encarnada, que
reúne os romances Sexus, Nexus
e Plexus, provocando uma for-
Carolina Vigna Theo Szczepanski
midável revolução literária, que
assustou o mundo conservador,
vendendo milhares de exempla-
Humberto Werneck Rogério Pereira
res, embora hoje tenha apenas
leitores raros e selecionados.
No entanto, quando ele
SEXTA-FEIRA a mesma coisa. Em certo senti- no sabia que esta não-técnica era
SEGUNDA-FEIRA ou na execução musical.
se refere à Estética, está apenas do, podemos assegurar que no uma espécie de encontro com A opção de Miller é pela
se referindo àquela Estética tra- sentido mais estreito, ou seja, no a Beleza contemporânea, ten- dissonância, pela desarmonia,
dicional, cujo único objeto é o sentido tradicional, Beleza é si- do sido ele próprio um dos seu até porque, para ele, escrever so-
Belo, que eliminava qualquer nônimo de Belo, mas com imen- criadores. Neste sentido, parece bre as nossas próprias dores, ale-
enfoque do Feio ou até mesmo sa precariedade porque a Beleza que consideramos feia a obra de grias e comportamentos, é uma
do Sublime. No mundo contem-
Fábio Abreu é um conjunto de valores e não Miller — que não é verdade. É
Dê Almeida técnica através da não-técnica.
porâneo, a Estética tem como apenas um valor. uma bela obra mas sem conside- Muitas pessoas consideram
objeto a Beleza, cujas categorias Por tudo isso, Henry rar o belo tradicional. Belo com a a Estética uma espécie de ética,
são o Belo, o Feio e o Sublime. A
Mário Araújo Miller diria mais tarde que para feiura, com o seu escândalo, com
Ivana Arruda Leite a ditar regras e comportamen-
questão é também revolucioná- escrever sua obra mais exitosa, a sua desarmonia, sem dúvida. tos. Não é bem isso, claro que
ria porque considera, sobretudo, renunciou a toda técnica. Inge- Sim, esta desarmonia que não é. As técnicas são caminhos
o Feio — Feio que chega a subs-
QUINTA-FEIRA nuidade, sem dúvida. Renunciar é também o emblema da nossaDOMINGO e movimentos que o escritor de-
tituir o Belo como resultado das a toda técnica é, em si mesmo, época, daí a sofisticação da mú- ve escrever ou experimentar para
mudanças do gosto. uma técnica. “Uma coisa que sica com a revolução da disso- destruir os seus próprios dilemas.
De forma que se pode di- descobri é que a melhor técni- nância, ela própria uma espécie Seguindo-os, não estará sempre
zer que Miller pulou com os dois ca é não ter técnica alguma.” De de desordem. Esta pequena mu- definindo uma técnica. O que
pés no Belo, mas não na Beleza. forma que ele acaba de assegurar dança na frase musical, até cer- importa mesmo é o conhecimen-
Beleza que é quase um sinôni-
Eduardo Nasi que descobriu uma técnica. to ponto nem sequer notada, se to da intimidade da narrativa até
mo de Estética, embora não seja O escritor norte-america- revela magnífica na composição
todo dia. alcançar o êxito necessário.

Fabrício Carpinejar Uma ilUstração.


QUARTA-FEIRA Uma crônica.

Uma crônica. Uma ilustração. Todo dia.

www.vidabreve.com.br
Uma crônica. QUARTA-FEIRA
Uma ilUstração. Fabrício Carpinejar
junho de 2016 | | 19

rabisco
literatura infantil e juvenil
reprodução

Os Moomins e o dilúvio
Tove Jansson
Trad.: Ana Carolina de Oliveira
Autêntica
80 págs.

trecho

Os Moomins e o dilúvio

Devia ser final de


tarde, em um dia no
fim de agosto, quando
Moomintrol — Moomin,
para os amigos — e sua
mãe chegaram ao centro da

Clássica magia
grande floresta. Estava tão
silencioso e escuro no meio
das árvores que parecia
que a noite já tinha caído.
Aqui e ali, flores gigantes
cresciam, brilhando com
uma luz singular, como
lâmpadas trêmulas; e mais
Série dos Moomins é sucesso mundial e retorna ao Brasil com novos títulos longe, entre as sombras,
moviam-se pequenos
Adriano Koehler | Curitiba – PR pontos de um verde frio.

O
universo da lite- rol e um teatro. Além dos trolls, maneira como ela mostra o uni- remete à Escandinávia, mas fe-
ratura infantil é há uma grande série de outros verso dos seus trolls. As histórias lizmente sem deuses sedentos
praticamente in- personagens que aparecem nos são simples, com várias surpre- de sangue ou martelos mágicos
finito. Escolher livros, como Sniff, ou a Criatu- sas ao longo do caminho. Cada que lutam contra supervilões. É
um livro na prateleira da livraria rinha, Lilla My, Hemulen, outro personagem tem uma caracterís- o lado da mitologia dos vikings
é trabalho árduo. Além de ser ne- ser mitológico, e os Hattifnattar- tica definida e facilmente identi- mais suave, mais lírico e afetivo,
cessário ter que enfrentar a bagun- nas, pequenas criaturas com um ficável pelos jovens leitores, e eles que Tove resgata e nos apresenta,
ça que normalmente impera nessa parentesco distante com os per- a autora
contam suas histórias de um jeito dando uma saudável pausa aos
seção, a quantidade de títulos dei- sonagens principais. mágico e divertido. Os persona- heróis super ou nem tanto que
xa qualquer um tonto. Nessas Os Moomins e o dilú- Tove Jansson gens também representam uma povoam as telas de hoje em dia.
horas, talvez a melhor dica para vio foi o primeiro livro escrito Nasceu em agosto de 1914 e cresceu família feliz, mas não idealizada
quem se aventura a escolher um por Tove para a série, apesar de em Helsinque, na Finlândia. Sua ou sem problemas. Todos se gos- Série completa
livro para crianças é pegar um dos ter sido lançado posteriormen- família era artística e excêntrica. tam tanto que têm liberdade pa- Os outros livros da série
clássicos. Há muitos, para todos te aos outros. Escrito em 1939 O pai de Tove, Viktor, foi um dos ra serem exatamente quem são. em português são A família Mu-
os gostos, e se são clássicos, têm lá mas finalizado apenas em 1945, maiores escultores da Finlândia, e a Se alguém tem segredos, ele pode min (traduzido por Carlos Hei-
o seu valor. Dentre eles, há uma a história começa com Moo- mãe, Signe, fazia projetos gráficos guardá-los para si até achar que tor Cony) em edição da Martins
série que leva em consideração o min (Mumintrollet) e sua mãe e ilustrava livros, capas, selos está pronto para compartilhá-los, Fontes, Um cometa na terra dos
gosto das crianças pela fantasia e (Muinmamma) que saem em postais, cédulas bancárias e tirinhas sem medo de reprimendas. Moomins e Os Moomins e o
cria um universo mágico, de cria- busca de um lugar para construir políticas. Quando jovem, Tove E há muita fantasia envol- chapéu do mago, estes publica-
estudou Arte e Design na Suécia,
turas incomuns mas que sentem sua nova casa. Ao mesmo tempo, vida, fazendo a cabeça da criança dos pela Autêntica. Faltam chegar
Finlândia e França, e escolheu voltar
de forma parecida como os huma- ambos buscam também o pai de a viver na Finlândia. Na década de
viajar junto, a cada nova situa- ao Brasil outros cinco títulos. No
nos — a série dos Moomins. Moomin (Muminpapa), que es- 1940, trabalhou como ilustradora ção apresentada. Os Hattifna- mundo, já foram vendidos mais de
Os Moomins (no sueco, tá desaparecido há algum tempo. e cartunista para várias revistas ttarnas, por exemplo, meio que 15 milhões de exemplares da série.
Mumintroll) são os personagens No caminho, eles encontram pri- nacionais. Faleceu em junho de 2001. vivem em toda parte, sem saber- A escritora também foi responsá-
centrais dos nove livros e da tira meiro a Criaturinha, que nesse li- mos muito bem o que são ou co- vel por uma tira de quadrinhos
em quadrinhos da finlandesa To- vro ainda não é chamada de Sniff, mo pensam, se são do bem ou dos Moomins publicada em jor-
ve Jansson. Eles são uma família que decide seguir caminho com do mal. Mas eles estão lá e, em nais de diversos países entre 1945
de trolls, personsagens da mito- eles e ajudá-los na busca. No ca- alguns momentos, são decisivos. e 1993. Além disso, foram feitas
logia nórdica, que se parecem minho muita coisa acontece com Depois virá Lilla My. Somente várias séries para televisão e filmes
com hipopótamos, mas com a a família e os acompanhantes, in- uma criança conseguiria enten- com a turma. E se você gosta mui-
diferença de andarem sobre duas clusive um dilúvio. Sem medo de der (ou conviver) nessa realida- to deles, que tal visitar o Moomin
patas e serem brancos. A família spoilers, o final é feliz e mostra co- de mágica de Tove. As ilustrações World em Naantali, na Finlândia?
dos Moomins mora no Vale dos mo os Moomins chegaram até o da finlandesa também são muito Vai que Moomin Pai convida vo-
Moomins (Muumilaakso), ape- seu Vale e montaram sua casa. delicadas e são um acompanha- cê para entrar e comer algo, como
sar de já terem vivido em outros O encantamento das his- mento perfeito ao texto. acontece em quase todos os livros?
lugares temporários como um fa- tórias criadas por Tove vem da É um mundo mágico, que Boa viagem, e boa leitura.
20 | | junho de 2016

Q
uando pergunta­­ permanece passiva ao sofrimento

A infelicidade
ram a Clarice Lis­­ que rodeia o mundo. Existe na es-
pector por que critora um quê de indignação em
ela escrevia, a res- relação a quem vê a banda passar,
posta foi certeira: para me man- mas há também a sensação de im-
ter viva. Passados quase 40 anos, potência por não poder fazer a ro-
a portuguesa Ana Cássia Rebe- da da fortuna — aquela de que
lo também parece escrever pa- tanto falou Oscar Wilde — girar.

autêntica
ra que possa estar entre nós, os Ana Cássia Rebelo faz evocar o li-
vivos. Ana de Amsterdam, seu rismo de outro contemporâneo
livro de estreia, é uma colagem lusitano, Valter Hugo Mãe. Se
do blog homônimo criado em António Jorge da Silva, de A má-
2006, pouco depois de tentar o quina de fazer espanhóis, está à
suicídio — tomando uma caixa procura de uma solução para tu-
inteira de antidepressivos. do, e Camilo, de O filho de mil
As postagens selecionadas homens, buscava um pai, a Ana
pelo crítico português João Pe- Clara, espécie de pseudônimo da
dro George são pedras brutas, po- Em meio à depressão, Ana Cássia Rebelo cria narrativa autora, quer somente permanecer
derosas e viscerais. Elas deixam à sóbria, figurativamente. Embria-
mostra uma mulher cheia de fa- devastadora sobre a realidade e a natureza humana gada pela tristeza que lhe amassa
lhas e medos, mas com coragem o peito, por vezes só há uma saí-
suficiente para descer às profun- da: uma janela qualquer aberta e,
dezas e voltar — às vezes até mais Jonatan Silva | Curitiba – PR se possível, nos andares mais altos
forte. É preciso colidir para en- de um prédio lisboeta.
tender que a vida não é uma via De psiquiatra em psiquia-
de mão dupla. Todos os textos são divulgação tra, ela não se reconhece e de-
breves manifestos de sobrevivên- bocha dos clichês da profissão.
cia, como se fosse necessário lem- A linguagem é afiada, irônica e
brar o motivo pelo qual se vive. sarcástica ao extremo — como
Ana Cássia é uma mulher se cutucasse aquele homem ou
comum: tem seu emprego, é mulher sentados à sua frente. É
mãe de três filhos e precisou lidar impossível manter o equilíbrio.
contra a insatisfação de um casa- É como se nós, com o livro em
mento moribundo. Tudo está no mãos, estivéssemos sentados na-
livro com uma minúcia obsessi- quele divã em um processo de
va. São percepções e reflexões de autoflagelação. E assim anda a
uma mulher atenta aos parado- narrativa, como se o leitor esti-
xos cotidianos, ao sexismo que, vesse também usando o cilício a
após anos de luta, parece voltar à rasgar-lhe a pele a cada passo.
tona e, principalmente, à batalha As lembranças da infância
contra a depressão. ardem pela linguagem doloro-
Advogada como Kafka, sa e pela saudade de um tempo
Ana Cássia não é o contrário a autora que já se foi. Não volta. Perto de
do colega checo: transborda a Ana Cássia Rebelo morte, Renato Russo confessou
emoção dos dias difíceis, con- de — o que, obviamente, faz pensar sobre todas à mãe: “Só fui feliz na infância”.
testa a genuinidade do conten- Nasceu em Moçambique, em 1972, e as mães que se calam diante do choro desesperado Ana Cássia também. De cer-
tamento dos instantes alegres mudou-se aos cinco anos para Lisboa de um filho e de uma manha renitente. O amor ta forma, Ana de Amsterdam
e, acima de tudo, assume a sua junto com a família. Desde 2006 aos filhos é incondicional, entretanto, as dúvidas é um catálogo de evidências, de
mantém o blog ana-de-amsterdam.
própria fragilidade. Assim grita também o são. Fala abertamente que não desejava aprendizado, mas que, como
blogspot.com. Das 9 às 17 horas,
em um trecho de 2013: a última gravidez e relembra uma discussão com o é de se esperar, deixa às claras
trabalha em um grande hospital
da capital portuguesa. Ana de ex-marido sobre a possibilidade de um aborto. No que sua autora vive em paralelo,
Corpo atravessado na ca- Amsterdam é seu livro de estreia. final, acaba por desejar a criança, o que não signifi- nunca se encontra, não esbarra
ma. Nu, salgado, suado, morto. ca que, dali para frente, as situações sejam mansas. e, quando cai, cai sozinha.
O quarto muito escuro. Fecho os Diz a anotação de setembro de 2010:
olhos. Penso em pulsos cortados. Pela fechadura
Nunca poupei os meus filhos ao meu sofrimen- Ana Cássia Rebelo é uma
Quem sabe só a infelicida- to. Partilho com eles para o horror de muitos, a soli- mulher vista pela fechadura. Um
de lhe seja autêntica. Desde o tí- dão e a angústia. detalhe pequeno amplia-se e lá
tulo, uma referência à canção de está um crime, geralmente, con-
Chico Buarque da peça Cala- Engana-se quem acha que essa é uma obra fe- tra si mesma. Em tanta amargu-
bar, de 1973, até o ponto final minista: Ana de Amsterdam é uma autoafirmação. ra existe um quê de graça que
do livro, Ana Cássia se coloca São diversas poéticas combinadas em um prisma brota da ironia e da sagacidade
em xeque. É possível que a auto- desesperador, impingindo autor e leitor para fo- com que vê a vida. Explora ao
ra duvide de si mesma enquanto Ana de Amsterdam ra da sua zona de conforto. É sim um texto que máximo seus próprios sentidos,
ser humano, mas também cabe Ana Cássia Rebelo incomoda, nos mostra que somos incompletos e gozando a alegria de estar imersa
em suas palavras a imprecisão Biblioteca Azul estamos à mercê de nós mesmos. A vida comum, na realidade mais dura capaz de
dos sentimentos, desejos e von- 192 págs. repleta de convenções e quietude coloca um peso existir. Se ainda carrega nos pul-
tades que formam nossa socieda- morto sobre Ana Cássia, que por vezes se descreve sos cicatrizes é para jamais esque-
de. Parte de tanta dúvida vem de apodrecendo ainda viva. E quem não está? cer que existe sofrimento e que é
sua própria origem, a mistura de preciso saber lidar com ele, dosá
trecho
mãe alentejana e pai goês. Não Sujeira no ventilador -lo como seu Cipralex ou Xanax.
lhe interessa a Índia, o país, ape- Ana de Amsterdam Em Textos para nada, Beckett descreve uma A solidão é um mal-estar
nas a região de Goa. Essa combi- criatura na sarjeta, imersa em um grande lama- moderno, talvez o mal do sécu-
nação molda seu caráter. É como çal. Assim está Ana Cássia, enfiada dos pés à ca- lo, e não se consegue estar indife-
Faz hoje precisamente seis
se o fado fosse contrabandeado beça na areia movediça do dia a dia. É engraçado rente. A cada linha há uma catarse
pelo estoicismo indiano. anos que tentei matar-me e, pensar que se sai mais forte da leitura de Ana de um expurgo e, ponto, o ciclo não
Ainda que Ana de Ams- hoje, o médico da medicina Amsterdam. Talvez por uma identificação imedia- se encerra. Certa vez, em uma en-
terdam traga consigo toda a car- do trabalho disse que eu era ta. Na reunião familiar de Festa de família, do ci- trevista a um blog português, Ana
ga de uma autora à caça de uma neasta dinamarquês Thomas Vinterberg, todas as Cássia revelou o que agora parece
uma mulher bonita. “Tem três
forma de expurgar suas angús- hipocrisias e mentiras ficam expostas, toda a sujeira óbvio: a cura — se é que podemos
tias, os relatos criam uma espé- filhos”, disse, “uma profissão, é jogada no ventilador. Ana Cássia faz o mesmo: se chamar de cura — de sua depres-
cie de quebra-cabeça a revelar mas tantos nós por desatar”. desnuda em frente ao leitor e se mostra crua, capaz são se deveu, em parte, aos textos
uma mulher em sua essência, Aconselhou-me psicanálise. sim de chocar e também de fazer pensar. que escreveu contando ao mundo
mas em silêncio. Ana Cássia não Cada texto é um diagnóstico melancólico, co- sua dor. É como se Werther não
Não quero desatar os meus
se amedronta diante da chance mo se um planeta estivesse a chocar-se contra a Ter- escreve as cartas, mas um blog. É
de jogar ao mundo seus ques- nós, gosto deles assim, cegos, ra. Apesar de todo o desastre que se aproxima, Ana de deixar qualquer Ian Curtis pa-
tionamentos sobre a maternida- brutos, alimentam-me. Cássia vê um mar de gente indiferente, gente que recendo um saco de risadas.
junho de 2016 | | 21

Até mesmo a história que dá iní-

Romance
cio ao livro poderia ser interessante, ain-
da que pouco original: mais de trezentos
profissionais de um jornal (escritor escre-
vendo sobre jornais, jornalistas, imprensa
e afins, eis a falta de originalidade que fa-
lei há alguns toques atrás) demitidos por
telegrama após a greve de mais de 20 dias

de superfície
que fizeram para tentar receber o que a
empresa lhes devia. Uma espécie do famo-
so passaralho aliado a um golpe para que
os empregados ainda saíssem como vilões
da história — e sem ter direito a coisa al-
guma, evidentemente. Dos personagens,
o amigo que registra a narrativa era trai-
nee (trainee: medonho, eu sei, mas o povo
de algumas áreas parece gostar, do mesmo
A superfície sobre nós, de Sergio Vilas-Boas, aos poucos jeito que gostam de MBA, job, budget e
palavras afins) de informática do lugar,
torna-se numa narrativa um tanto arrastada e cansativa enquanto o que fala como um bêbado
desabafando sobre a vida que passou é,
como facilmente podemos notar, um jor-
Rodrigo Casarin | São Paulo - SP nalista com anos de experiência.
Das paralisações, Hugo deixa trans-
parecer algo caro a muita gente de nossos

E
dias. “Participar das assembleias foi uma
m Mil rosas rouba- brasileira, que exporia algumas experiência marcante para mim, talvez
das, Silviano San­­tiago das muitas questões nas quais os por eu ser [na época] um filho único mi-
relata o sofrimen- integrantes das chamadas gera- mado e imaturo. Mas minha situação fi-
to e as memórias de ções Y e baby boomers conflitam. nanceira era tranquila em comparação
um homem ao perder seu me- Exemplos? Temos, cla- com a da esmagadora maioria dos meus
lhor amigo, a única pessoa que ro. “Conceber ou adotar uma colegas, incluindo o Jaime […] Com uma
poderia escrever sua biografia. criança hoje é talvez o único er- gorda mesada, eu não tinha nada a perder.
Mais do que uma ficção que o ro irreparável que um ser huma- Fazer greve foi até divertido, confesso”.
tempo todo esbarra e tromba no pode cometer, e certamente A superfície sobre nós Ou seja, o típico revolucionário — e po-
Sergio Vilas-Boas
na realidade, o livro é uma es- o mais difícil de admitir”, diz Amarilys
deria ser um reacionário, esse tipo de gen-
pécie de ensaio biográfico, uma um dos personagens em dado 204 págs.
te há nos dois polos — bancado pelo pai,
bela declaração de amor do au- momento para logo em segui- o que, se não tira o mérito das questões
tor ao produtor musical Ezequiel da complementar: “Não faltam que defende, enfraquece o suposto sacrifí-
Neves, seu parceiro que morreu possibilidades, portanto, de os cio que faz pela causa. Sim, também seria
em 2010. Apesar de um tanto escassos recursos da Terra serem legal ler um romance sobre isso.
meloso — ou exagerado, adjeti- drenados em função de um es- Contudo, Sergio passa por essas
vo que dá nome a uma das mú- tilo de vida caprichoso, alie- questões. Como o título do livro entrega,
sicas coassinadas por Ezequiel e nado e autodestrutivo”. Gente não sei se propositadamente — até acredi-
que ajudaram a eternizar (até o que confronta essa mania que as to que sim —, não consegue imergir, não
momento, ao menos, já que a pessoas têm de arrumar filhos e sai da superfície. Dividida em cinco par-
eternidade é um bocado longa) cuidar de crianças e, além disso, tes, a narrativa ainda se torna modorrenta,
o nome de Cazuza, trilha sonora ainda lembra que o mundo não arrastada, cansativa… Da metade para o
perfeita para a leitura e entendi- nos aguentará por muito tempo: final, o velho tema que o autor tanto gos-
mento do volume —, é um livro gostaria de uma ficção sobre isso. o autor ta ganha espaço: imigrações. Temos passa-
bom, tanto que levou o prêmio Outro trecho: Sergio Vilas-Boas gens em Portugal, nos Estados Unidos...
Oceanos do ano passado. mas sem brilho, ainda mais se comparadas
Ter Mil rosas roubadas Na Editora Dez, que edita É jornalista, professor e autor de ao bom trabalho que fez em Os estran-
em mente pode ser um cami- “várias revistas debiloides”, essas vários livros: Perfis: o mundo dos geiros do trem N.
nho para se ler A superfície so- minúsculas “rebeldias” eram mal- outros é uma de suas obras mais
bre nós, romance mais recente vistas; e os funcionários cultua- jornalísticas; Biografismo está
Precisava?
entre suas principais produções
de Sergio Vilas-Boas, estudioso vam a permanência na redação Não bastasse isso, o próprio escritor
acadêmicas; e Os estrangeiros do
e profundo conhecedor de bio- até muito tarde, mesmo sem neces- trem N foi um dos vencedores ainda aparece na história bem mal dis-
grafias (é dele livros acadêmicos sidade, para desespero do velho se- do Prêmio Jabuti de 1998. farçado, sob o codinome de Paulo Mon-
importantes na área, como Bio- nhor [a editora-chefe se referia a fort, autor de um tal de “Os passageiros
grafias e biógrafos e Biografis- Jaime assim]. Nos dias de maior do trem 7”, um “romance-reportagem
mo) e também ficcionista — seu pressão — a finalização da edi- [what?] sobre imigrantes brasileiros em
Os estrangeiros do trem N, lan- ção de alguma revista, por exem- Nova York”. Basta pegar Os estrangeiros
çado em 1997, foi finalista do plo —, a mulher-monstro [ele se trecho
do trem N para ver que na contracapa a
Jabuti, inclusive. Na nova obra, referia assim à editora-chefe] in- editora classifica o livro com a aberração
Sergio constrói uma narrativa timava seus assistentes a trabalhar A superfície sobre nós que é o termo romance-reportagem (ora,
que parte do encontro ocasional madrugada adentro. ou é romance ou é reportagem). O what
do jovem Hugo com o colega de Ídolos? Nem pensar. Jaime entre chaves soa como Sergio mostrando
trabalho Jaime, um tanto mais As rebeldias, no caso, são sua insatisfação com o termo.
admirava uns poucos artistas
velho, em um bar, onde travam atitudes como entrar e sair no ho- Essas intromissões em A superfí-
uma conversa que dá origem a rário combinado, almoçar decen- e intelectuais, mas nunca cie sobre nós, aliás, também mais atra-
uma grande amizade, mas tam- temente, com calma, e não avisar se debruçou sobre a obra palham do que ajudam. Se por um lado
bém evidencia as diferentes vi- a chefia quando ia ao banheiro completa de quem quer que dá mais uma camada à obra, uma voz a
sões que têm do mundo. ou queria buscar um café. Tam- mais, por outro tenta transmitir ao lei-
seja. E desenvolveu um senso
bém gostaria de uma ficção que tor a impressão de que estamos diante de
Caminhos que expusesse ao ridículo essas ex- de privacidade radical: ele um texto inacabado, ainda em edição —
somente se iniciam crescências que há em qualquer não apenas mantinha sua outro recurso que pode ser visto bastante
O começo do romance é ambiente de trabalho — o meio vida pessoal longe dos outros por aí atualmente, diga-se. Olha só um
promissor. Ao longo do diálo- corporativo parece mesmo ser o trecho no qual isso ocorre, só para que
como também mantinha a
go inicial entre os personagens, esgoto das relações humanas. “In- fique claro: “Lara foi levada para o quar-
surgem diversos elementos que ventaram que o trabalho deve ser vida pessoal dos outros bem to somente às quatro da tarde. [Desacor-
poderiam, se bem explorados, tão prazeroso quanto tomar sor- longe da dele; e era capaz de dada, ela não se parecia em nada com
render uma história — ou ao vete numa tarde quente”, comen- soltar máximas como “missões uma ‘clara flor’.] Tinha uma cara péssi-
menos pequenas histórias que ta o personagem que desabafa, ma, amarrotada, as pálpebras caídas até
aprisionam”, mas não de
comporiam todo o volume — ponto que poderia ser explora- o meio, uma secreção branca seca escor-
até mesmo necessária dentro do profundamente e agregar se a expressar amor (pelo menos de rendo pelos cantos da boca e uma palidez
do atual panorama da literatura narrativa seguisse esse caminho. uma maneira apreensível). perturbadora”. Precisava?
22 | | junho de 2016

entrevista | Leonardo Padura

L
divulgação

eonardo Padura não


tem partido nem re-
ligião. O que rege a
densa obra do escritor
cubano é uma ideologia própria
que, sem ataduras institucionais,
jura fidelidade apenas às verda-
des da história e à beleza das le-
tras. Hereges, seu mais recente
romance publicado no Brasil,
mostra um pouco desta liberda-
de e, segundo o próprio autor,
não é um livro histórico, nem fi-
losófico, nem policial, porque é
tudo isso ao mesmo tempo.
Lendo Emilio Salgari e Jú-
lio Verne, o romancista entrou
em contato com a literatura pela
primeira vez ainda na adolescên-
cia. Não demorou muito para que
fosse arrastado sem resistência pa-
ra mais perto dos livros por meio
do encontro com os clássicos. Aos
20 anos, tomou Hemingway co-
mo primeiro grande modelo e de-
cidiu escrever também.
O caminho literário não
foi uma rota fácil. Padura admite
ter vencido limitações próprias
e até enfrentado o desdém de
quem um dia o subestimou. Mas
tudo valeu a pena, não só para
ele, mas também para nós, que
temos em território latino-ame-
ricano um dos mais importantes
romancistas da literatura atual.
Padura não sabe quan-
to tempo ao certo se dedica ao
ofício de escrever. Segundo ele,
pensar como escritor e viver co-
mo escritor levam muitas horas

As próprias
do dia. Como se ser romancista
fosse um estado de lampejo per-
manente. O que se sabe é que o
cubano escreve todas as manhãs
em que pode. E que desse pro-

verdades
cesso todo está para nascer um
novo romance no qual seu fa-
moso personagem Mário Conde
aparece como protagonista ab-
soluto. “Estou trabalhando nele
ainda”, adianta.
Nesta entrevista, Padura fa-
la sobre liberdade, heresia, sonhos
e ideologias. Também analisa a
atual cena literária e reforça seu
papel como escritor livre e com-
prometido em registrar a memó-
ria do seu país pelas letras, mas
sem nenhum apego partidário.
Leonardo Padura rejeita a fama de guru da vida cubana e ressalta
• O fato de não se prender a ró-
tulos religiosos ou partidários que seu único compromisso é com a história e a literatura
não o impede de ter convicções
fortes. Pode nos falar um pou-
co sobre elas? Lívia Inácio | Curitiba – PR
Sou uma pessoa que tem
grande estima pela liberdade do
homem. Para viver, decidir, dizer
que sim ou que não. Creio que são. Quando comecei a escrever, ninguém apostava críticas ao país (sempre da minha ma. Ou são tão tendenciosas que
esta liberdade é essencial e quan- em mim. E o que eu fiz foi me esforçar, trabalhar, perspectiva pessoal de cidadão beiram a falsidade e aí me bus-
do alguém não a tem não é real- lutar contra minhas incapacidades, limitações, igno- e escritor que vive em Cuba), cam para falar. Porque muitos
mente completo. Isso ocorre com râncias e tratar de vencê-las ou ao menos amenizá mas a verdade é que muitas ve- poderão estar ou não de acordo
muita frequência no mundo, la- -las. E seguir trabalhando, trabalhando… zes me interrogam como um gu- com as minhas opiniões sobre
mentavelmente. Também acredi- ru da vida cubana e não como eu a realidade cubana, mas nin-
to que o homem pode melhorar o • As pessoas te questionam muito sobre Cuba. realmente sou: uma pessoa que guém, ninguém pode dizer que
que é e lutar por isso, como meus Você se incomoda quando o foco no Padura escreve e que não tem poder de eu tenha mentido ou exagerado
personagens fazem. Eu, pessoal- cubano atropela o foco no Padura escritor? Por decisão política, nem qualquer quando me referi a qualquer fe-
mente, creio na fraternidade e na que acha que isso acontece? outro poder que não seja pura- nômeno. De todo modo, como
ética e pratico estas duas coisas Sei que ser um escritor cubano e ter um reco- mente literário. Quem sabe, o não sou historiador, nem políti-
dedicando todos os meus esforços nhecimento fora da ilha me dá uma responsabilida- problema esteja no fato de que as co, nem sociólogo, tenho toda a
a meu trabalho e minha supera- de muito complicada e que assumo com disciplina, opiniões mais conhecidas sejam verdade: só a verdade do escritor
ção pessoal, sem utilizar as costas embora não com alegria. Sei que devo falar sobre muito em preto e branco, e por e do cidadão que participa de seu
dos outros para qualquer ascen- Cuba, dar minhas opiniões, fazer minhas defesas e isso me pedem que eu fale do te- canto da vida do país.
junho de 2016 | | 23

• Que escritor cubano você in- vida, em especial, da vida cuba- di que ele protagonizaria ou- personagem querido para mim
dicaria a um bom amigo? na. Deste trabalho, saíram anto- tros três romances (a série que e para muitos leitores em mui-
Recomendaria Abilio Esté- logias de crônicas e artigos, pois chamei de As quatro estações), tas partes do mundo, pois seus
vez. Porque é um grande escritor muita gente o considera um jor- ao final dos quais deixa de ser romances estão traduzidos em
De todo modo, como
e porque é um amigo fiel, legal, nalismo que permanece através policial. Mas o resgatei para ou- mais de vinte idiomas.
um homem trabalhador e um não sou historiador, do tempo e que é um olhar di- tros romances, Adeus, Hemin-
nadador contra correntes. nem político, nem ferente a respeito da realidade de gway, A neblina do amanhã e, • Por que resolveu inseri-lo em
sociólogo, tenho toda Cuba, muitas vezes satanizada mais recentemente, Hereges, Hereges?
• Certa vez você disse que o por uns jornais e santificada por onde ele faz investigações, sem Porque tinha que procurar
Brasil se diferencia dos outros a verdade: só a verdade outros, sem meias palavras. estar vinculado à polícia. Nos uma história perdida e ninguém
países latino-americanos sob do escritor e do primeiros quatro romances, o como Conde para encontrar
vários aspectos. A literatura é
cidadão que participa • Mário Conde é um de seus ponto de vista de Conde é o coisas. Também porque queria
um deles? melhores personagens e apa- único do livro e tudo o que é escrever Hereges como um ro-
Sim e não. A literatura de seu canto da vida rece várias vezes em sua obra. dito passa por sua perspectiva. mance que não é histórico, nem
brasileira é, primeiro, brasilei- do país.” Como ele surgiu? Conde, antes e depois de dei- policial, nem filosófico e ao mes-
ra, depois latino-americana e Escrevi um texto de umas xar de ser policial, sempre te- mo tempo é histórico, policial e
em seguida universal — a mes- doze páginas que intitulei “Um ve suas próprias características: filosófico. Mário Conde se en-
ma lógica se aplica a todas as li- sopro divino” para contar como melancólico, nostálgico, mui- carregou da parte policial.
teraturas e artes. O Brasil divide e quando nasceu Mário Conde to vulnerável, com um gran-
com o resto da América Latina e seu desenvolvimento em mais de sentido ético e de justiça e • Uma das personagens cen-
muitas condições e característi- de vinte anos. Conde nasceu acredito que esses elementos, trais da obra é uma garota
cas históricas, culturais, raciais, como protagonista de Passado além da ironia, que é sua ar- emo. Por que, entre tantas ou-
econômicas, geográficas, mas perfeito (1991) e depois deci- ma de defesa, fizeram dele um tras tribos jovens, escolheu jus-
cada uma destas cenas foi adap- tamente esta?
tada ao que é tipicamente brasi- Porque me pareceu a tribo
leiro. Nisto incluo a literatura. mais interessante, louca e pro-
vocadora pela sua filosofia. Isso
• Como um dos poucos escri- a faz muito atraente do ponto
tores do mundo que conse- de vista literário. O simples e o
guem viver da literatura, de banal não geram arte. O com-
que forma avalia o atual mer- plicado e provocador, sim, são
cado editorial? alimentos para o artista, sobretu-
O mercado editorial vive do se o intuito é conceber uma
um dos seus momentos menos obra complicada e provocadora.
felizes. A tendência da concen- E, em um romance em que falo
tração de capitais e o surgimento dos conflitos do indivíduo com a
de grandes grupos em detrimen- sociedade por querer praticar sua
to das editoras medianas e pe- liberdade individual, não pode-
quenas subtraem a variedade e ria me dar ao luxo de ser trivial.
as possibilidades de edições e, Além disso, acredito que os emos
portanto, de leituras. Mas os e suas atitudes expressam bem o
meios digitais têm feito uma Leonardo Padura atual estado de uma importante
grande revolução no consumo por Osvalter parcela dos jovens que não quer
da arte, inclusive na literatura e ouvir falar de política, sacrifício,
no mercado. De qualquer for- compromisso e busca suas pró-
ma, acredito que o mercado seja prias condições e expressões fora
um mal necessário porque gra- do establishment cubano.
ças a ele se comercializa a obra
de arte, se promove (ou não) o • No contexto do livro, a he-
criador e se criam categorias. resia pode ser compreendida
O problema é que, em geral, o como um caminho de liber-
mais banal é o que mais vende dade. O que é ser herege na
e, se pensarmos bem, sempre foi literatura?
assim. Agatha Christie vendeu Não sei, mas posso tentar
muito mais livros que seu con- definir. E não sei, porque pen-
temporâneo James Joyce. so que a boa literatura, a litera-
tura que provoca inquietação e
• Você deixou um cargo im- faz pensar, tem um componente
portante na editoria de um herético. O grande problema é
grande veículo para se dedicar que as palavras herege ou heresia
exclusivamente à literatura. O estão carregadas de um sentido
que o encorajou a abandonar pejorativo a partir de seu caráter
o jornalismo? religioso. Mas um herege é um
Não deixei o jornalismo. heterodoxo, um revolucionário
Deixei de trabalhar como jor- em seu território e o escritor que
nalista. Esta foi uma decisão ne- não é complacente com as mo-
cessária para poder realizar meu das, o mercado e a banalidade o
trabalho como escritor e foi sá- é. Um romance como Hereges
bia. Mas nunca rompi nem rompe com os esquemas do ro-
quebrei meus vínculos com o mance policial e histórico: isso é
jornalismo, tanto que ainda atuo heresia. Não é complacente com
como colaborador de agências nenhuma religião ou ideologia
e jornais (aqui estão minhas co- dominante: isso é outra heresia.
lunas quinzenais na Folha de S. E não que eu queira me apre-
Paulo), porque o jornalismo é sentar como um herege, não me
uma forma de expressão e de re- vejo assim, mas sou um hetero-
lação com a realidade que me doxo na medida em que me opo-
complementa como romancista. nho às ortodoxias firmes porque
Através do jornalismo, mesmo a ortodoxia limita esta liberdade
com a liberdade maior que tenho de que falei.
desde que deixei de trabalhar co-
mo jornalista, venho expressando
em todos estes anos minhas opi- > Leia a resenha de Hereges
niões sobre muitos aspectos da na próxima página
24 | | junho de 2016

anuncia a falência —, apega-se ao imediato

A dádiva
e, embora ateu, aspira a uma transcendência
perpassada pela religiosidade, ora embasada
pelo modelo cristão, ora por cultos, como a
Santeria. Isso denuncia o fracasso do ateís-
mo prescritivo (também um mandamento).
Na corda-bamba entre o secular e o sagra-
do, o personagem subverte as duas esferas.

da heresia
Hereges Havendo dinheiro para driblar o fardo do
Leonardo Padura cotidiano com um tanto de rum, cerveja e
Trad.: Ari Roitman, Paulina Wacht, boa comida ao lado dos amigos de décadas,
Bernardo Pericás Neto tudo estaria resolvido. Ao seu modo, o dete-
Boitempo tive encontra seu anseio de liberdade no im-
506 págs.
perativo da sobrevivência, no imediatismo,
nas próprias fraquezas.
Outro exemplo de heresia como si-
nônimo de liberdade aparece na caracteri-
Em Hereges, Leonardo Padura zação de Tamara. Companheira de Conde
por décadas, a mulher prefere abrir mão de
associa o sacrilégio à liberdade morar sob o mesmo teto do detetive a se ca-
o autor
sar com ele de papel passado. Isso chega a
confundir até mesmo Conde, para quem o
Lívia Inácio | Curitiba – PR Leonardo Padura casamento é uma saída óbvia, capaz de faci-
Jornalista, escritor e roteirista, litar muitos aspectos da vida social.
Leonardo Padura é cubano e ficou
conhecido por seus romances policiais Estrutura
protagonizados por Mário Conde. Apesar da importância da história dos
Também ganhou destaque com O Kaminsky exposta no núcleo ao qual o au-
homem que amava os cachorros e tor chama de o Livro de Daniel, Hereges
recebeu diversos prêmios literários. possui outras três frentes contadas em ter-
ceira pessoa, também com referências ao
Velho testamento, que se fundem e endossam
Leonardo Padura a narrativa: O livro de Elias, O livro de Judith
por Osvalter e, ao fim, Gênesis.
O livro de Daniel apresenta a trama
trecho
central ao leitor e revela como Daniel Ka-
minsky renunciou ao judaísmo ao ter que
Hereges encarar o retorno dos pais e da irmã do porto
de Havana às mãos nazistas. Daniel se con-
Elias sentiu o impulso forma cada vez mais como cubano: se essa
decisão pode tirar de seus ombros o fardo de
incontrolável e, sem esperar a
ser judeu e a culpa por ser o único sobrevi-
chegada do Mestre, atreveu- vente da família, é a melhor a ser tomada.
se a preparar sua paleta e Em O livro de Judith, o narrador relata
voltou para a banqueta e para outro caso no qual o Conde se envolve: o desa-
parecimento de uma adolescente esperta cha-
a autocontemplação. Sem
mada Judith. O mistério aos poucos se encaixa
saber, naquele instante, estava de forma inusitada e genial nos segredos que
descobrindo finalmente por que envolvem o quadro perdido de Rembrandt.
havia decidido pôr tudo no fogo Cabe destaque, neste núcleo, a menção
a uma juventude intelectualizada representa-
e lançar-se à pintura. Nem por
da por Judith — a educação cubana dá um
dinheiro, nem por fama, nem grande salto nos anos pós-Revolução — que
para satisfazer um gosto. passa a refletir sobre suas próprias trajetórias
de vida e não se reconhece na utopia de uma
Havana enferrujada e descascada. Apesar

E
de, ou justamente pelo embargo econômi-
m 1939, o navio euro- navio tenta desembarcar nos Estados Unidos e no É aí que entra em cena o co, Padura apresenta uma geração que ope-
peu Saint Louis cruza- Canadá, mas acaba retornando à Europa e, embora investigador Mário Conde, per- ra o movimento de contestação ao coletivo
va o Oceano Atlântico refugiados sejam aceitos no Reino Unido, na Bél- sonagem tão completo e interes- e ao político, ao passo que procura uma con-
rumo a Cuba. Nove- gica, na França e nos Países Baixos, a Alemanha sante que, não por acaso, aparece formação com as novidades continentais —
centos e trinta e sete judeus a bor- avança também nestes territórios no ano seguinte e em mais de uma obra de Padura. que, desse lado do muro, nada têm de novo.
do sonhavam com uma nova vida massacra a maior parte dos judeus dali. Conde aceita o desafio de encon- O livro de Elias fala de um judeu com
na América, enquanto fugiam da Durante a semana em que o navio aporta em trar o que ficou por dizer na his- o mesmo nome do filho de Daniel que ti-
perseguição nazista. É com es- Cuba, o ascético Pepe Carteira loca um pequeno tória do quadro em troca de um nha muito interesse em ser pintor, ainda
se fôlego otimista que o cubano barco para tentar se aproximar dos parentes do so- bom dinheiro. que sua religião proibisse essa atividade.
Leonardo Padura abre Hereges. brinho e consegue entender por códigos que eles De tanto persistir nessa ideia, consegue ser
Entre os que buscavam se tentavam subornar os oficiais para o desembarque Liberdade e heresia aprendiz de um grande artista. Aos poucos,
salvar das mazelas da Segunda com um quadro pintado no século 17 atribuído a A liberdade constitui o ei- esse núcleo também se une a todos os ou-
Guerra, estavam o pai, a mãe e Rembrandt. O problema é que eles são enganados xo central da obra e é a partir tros e um complexo quebra-cabeça vai to-
a irmã do menino Daniel Ka- por trapaceiros que ficam com a relíquia e não via- dela que o romance discute a tra- mando forma.
minsky, já estabelecido na ilha bilizam a entrada da família. dição, o pertencimento, a disci- Para preservar possíveis surpresas, dei-
graças ao apoio do tio Pepe Quanto à obra, também nada mais se ouve plina e a culpa, como fardo ou xo o Gênesis em segredo. Garanto que vai
Carteira, com quem morava. sobre ela. E esse mistério se torna tão pesado para como fortaleza, mas sempre co- valer a pena correr cada capítulo para che-
O garoto, um dos personagens Daniel, que o jovem se permite esquecer suas raí- mo fundadoras e constituidoras gar a um final que se intitula “o princípio”.
centrais da história, logo desco- zes familiares como forma de se defender da dor de do sujeito que, seja em exercício Quer coisa mais subversiva?
bre que a esperança de rever seus perder pessoas tão especiais. de ruptura ou de adaptação, se Não é demais lembrar que Padu-
familiares mais próximos não Uma reviravolta, no entanto, impulsiona um reconhece e se faz histórico. Es- ra tem muito disso, aliás. E sua inclinação
duraria muito: naquele mesmo dos pontos mais fantásticos do enredo: a busca in- se é o movimento no qual reside à transgressão da palavra também o faz li-
período, o presidente Federico trigante por esse elo perdido e abandonado. Elias, o arbítrio humano, que nos faz vre. Ao expor tanta heresia escondida sob as
Laredo Brú — aliado político filho de Kaminsky, decide, alguns anos depois, en- mais ou menos livres e, assim, mais diversas contradições humanas, ume-
de Fulgêncio Batista — editaria contrar o quadro roubado. Assim, talvez fosse possí- mais ou menos hereges. decendo o que poderia ser apenas um seco
a legislação do país, proibindo a vel descobrir a relação do artista holandês com suas Conde representa o sujeito romance policial agitado ou um opaco ro-
entrada de estrangeiros. origens, resgatar ao menos parte da memória dos que, lutando cotidianamente pa- mance histórico cheio de dados jogados, o
Após a negociação que seus antepassados e entender o que acontecera ao ra morar e comer em um sistema cubano deixa mais uma marca na literatura
mantém o transatlântico no por- certo naquele dia triste em que embrulharam numa social contraditório — do qual, latino-americana mediante seu próprio jei-
to de Havana por alguns dias, o proibição impiedosa toda a fé de seus avós e sua tia. diga-se de passagem, o escritor to de ser herege.
junho de 2016 | | 25

traria indiscriminadamente pe-

Estranho fascinante
lo solo sagrado e que deveria ser
controlada? Será que as rãs preci-
sariam ser eliminadas para existir
esse controle político? Será que
para atingir algo supostamen-
te bom para todos, algo extre-
mamente desagradável deveria
ser feito? Maniqueísmo? Assim,
imerso nessa dicotomia, que o
As rãs, do chinês Mo Yan, é um livro delicado e suave, mas narrador de Mo Yan descreve a
benevolência de sua tia parteira,
que esconde peso, dor, sofrimento, pobreza e submissão que trouxe ao mundo milhares de
crianças saudáveis, mas também
a sua incrível crueldade ao abor-
Jacques Fux | Belo Horizonte – MG tar sem dó as crianças vistas como
“ilegais”. Seria essa tia a visão de
um deus extremamente podero-

A
divulgação so e “justo”? Justo: uma atribui-
o ler Mo Yan me ção muita distinta de “bondoso”.
senti em um mun- Será que ela, a tia, que aprendeu
do completamen- técnicas ocidentais para realiza-
te desconhecido e ção bem-sucedida de milhares de
fantástico. Um mundo em que partos, salvando inúmeras crian-
os nomes dos personagens são ças e mães de infecções e da mor-
pura poesia, em que as histórias te, também é vista como aqueles
são fábulas, em que as memórias “bons alemães”, aceitando sem
são sonhos e cânticos. Senti no- questionamento as leis do Esta-
vamente a saudade e o prazer de do, ao subtrair girinos saudáveis
ouvir uma história pela primei- do corpo de inúmeras mulhe-
ra vez. De imaginar o rosto, o res? Como diz o narrador sobre
medo, as batalhas e as conquis- a tia: “Será que alguém que leva
tas dos heróis. Dos vilões. Das o senso de responsabilidade a esse
famílias que perpetuam tradi- ponto pode ser considerado gen-
ções e aceitam o seu implacável te?”. Responsabilidade, dever e
destino. Mo Yan, mesmo sem justiça são também temas trata-
grande rebusco na escrita (com dos nesse romance.
certeza por problemas da tradu- Continuando a leitura fan-
ção do chinês para o português, tástica e bíblica das rãs, pergunto:
e não por problemas do traidor/ será que há culpa e responsabili-
tradutor), nos transporta para dade nesses carrascos-parteiros?
uma vila e mundo idílico, nos Será que suas mãos estão sujas?
faz desejar conhecer mais e mais o autor
Será que as mãos do Estado são
os personagens e suas questões, tão sujas (ou tão limpas) quan-
nos transtorna enquanto leitores ‘rã’ como ‘bebê’? Por que o choro de um bebê Mo Yan to as das parteiras? Assim escreve
e admiradores de uma cultura que saiu do ventre da mãe é parecido com o É pseudônimo de Guan Moye. Nasceu o Girino: “Cada criança é única
alheia e supostamente distante. coaxo de uma rã? Por que os bonecos de barro em 1955 na província de Shandong. e insubstituível”. Qual criança
As rãs é um livro delica- da nossa terra muitas vezes têm uma rã no co- Publicou Sorgo vermelho em 1986, ele se refere. A criança perdida
do. Suave. Leve. Mas, ao mes- lo? E por que a deusa criadora da humanida- adaptado para o cinema em 1987. em meio à pobreza, ou a elimi-
mo tempo, esconde peso, dor, de se chama Nü Wa?” Mas há também outras Romancista, autor de novelas e contista, nada politicamente ainda como
sofrimento, pobreza, submissão. leituras fundamentais para entender este livro foi o primeiro autor Chinês a receber o anura? Haveria uma forma de
São histórias, cartas, recordações como uma grande obra literária. Prêmio Nobel de Literatura (2012). inocentar esses abortos impos-
e memórias de um tempo tão Em tempos atuais, sobretudo aqui no tos pelo Estado? (A política reli-
atual e, também, tão surreal: a Brasil, ser um autor “bíblico”, religioso, ecle- giosa e governamental do Brasil
intervenção cruel do Estado no siástico, pode significar um grande suces- funciona de forma diferente, po-
ventre de todas as famílias chine- so de vendas. (Também um texto de baixa rém ainda extremamente cruel
sas. Ao contar a história de uma qualidade). Porém, como já disse uma vez e absurda). Girino continua: “o
parteira, o narrador, seu sobri- Borges, ao responder sobre a utilização cons- sangue que manchou as mãos
nho, fabula as transformações tante de elementos bíblicos em sua obra: “e jamais será lavado? A alma ator-
nas vidas das pessoas mais sim- tem literatura mais fantástica que a Bíblia”, mentada pela culpa jamais en-
ples. Os bilhões de habitantes vale tecer uma pequena relação entre as rãs contrará alívio?”. A morte, aqui,
que vivem na China têm nome, de Mo Yan e as rãs do Senhor. Como não se seria uma resignação, como a do
sobrenome, poesia, e muitos so- recordar das Dez Pragas do Egito? A calami- As rãs Faraó? As rãs, acredito, contri-
frimentos e desejos. dade das rãs e a maldição da morte dos pri- Mo Yan buíram para o ápice bíblico da
Usar rãs logo no título mogênitos? Essa imposição quase ditatorial Trad.: Amilton Reis morte no Livro e neste roman-
desperta no leitor o poder da de uma ordem superior? Companhia das Letras ce: “E Moisés disse (ao Faraó):
intertextualidade. De início, per- Mesmo distante, Mo Yan releu, à sua 488 págs. Assim falou o Eterno: ‘Por vol-
cebemos uma referência explíci- maneira, a Bíblia (isso pouco importa, basta ta de meia-noite Eu sairei pelo
ta ao girino — larva de anuros, apenas que nós, leitores, imaginemos)? meio do Egito. E todo primogê-
ou estágio inicial da fecundidade nito na terra do Egito morrerá
trecho
— que, não por acaso, também E o Eterno disse a Moisés: “Diz a Aarão: — desde o primogênito do Fa-
é o apelido do narrador do livro. Estende a tua mão com tua vara sobre os rios, As rãs raó, que se senta sobre seu tro-
De acordo com a narrativa, an- sobre os canais e sobre as lagunas, e faz subir as no, até o primogênito da serva
tes do nascimento, nesse período rãs sobre a terra do Egito”. E Aarão estendeu sua que está por trás da mó, assim
Tio, se quiser apenas um filho
de “vida” intrauterino, haveria mão sobre as águas do Egito, e subiu a rã e co- como todo primogênito de ani-
possibilidade desse rã-girino ser briu a terra do Egito. E fizeram assim os magos homem e não estiver interessado mal. E haverá clamor tão gran-
retirado coercitivamente do ven- com suas magias e fizeram subir as rãs sobre a em experimentar o gosto da flor de em toda terra do Egito que,
tre da mãe pelo poder do Estado. terra do Egito. Então o Faraó chamou a Moisés do campo, vou te contar uma como ele, nunca houve e como
Tudo isso em virtude da políti- e a Aarão e disse-lhes: Rogai ao Eterno para que ele jamais haverá.” (Bíblia He-
maneira mais econômica. Mas
ca do controle de natalidade im- tire as rãs de mim e do meu povo, e enviarei o braica, Êxodo 11: 4-6).
posta pelo Governo. Rã também povo e sacrificarão ao Eterno. (Bíblia Hebrai- isso é segredo. O tio Yuan tem Enredo, narrativa, ques-
faz referência ao mercado negro ca, Êxodo 8: 1-5). umas barrigas de aluguel bem tionamentos e histórias me fi-
das mães de aluguéis utilizado baratas. Elas têm uma aparência zeram gostar muito desse novo
pelos casais que não conseguem Grande praga (velho) mundo. As rãs é um li-
assustadora, mas não nasceram
ter filhos. O narrador explica a Será que o Estado Chinês encarava o vro que, tecendo ou não referên-
utilização do termo: “Por que a nascimento como uma grande praga? Uma assim. Eram moças bem lindas, ou cias históricas e bíblicas, merece
palavra ‘wa’ pode significar tanto praga incontrolável? Uma praga que se alas- seja, possuem genes excelentes. ser lido e sonhado.
26 | | junho de 2016

fora de sequência | Fernando Monteiro

Retornando aos escritores laterais (final)


ilustração: Matheus Vigliar


A verdade é aquilo
que com o decorrer
do tempo mais se con-
tradiz” — essa frase
está escrita (à mão, em francês) na
falsa folha de rosto do livro La vie
sentimentale de Paul Gauguin,
de Jean Dorsenne, que afirma ter
pretendido “limpar a imagem do
pintor selvagem na pintura”.
A verdade — a respeito
de todo e qualquer escritor late-
ral — é o que mais se contradiz,
“no decorrer do tempo”, porque
a verdade, no tecido da arte e da
vida dos “laterais”, é feita de nós
dos mais diversos e variados for-
matos unindo uma e outra, atan-
do a arte à vida e vice-versa e
versa-vice, porque o Escritor La-
teral nunca está no posto prin-
cipal, ele não quer isso, não se
preparou para tal, deseja fugir de
si mesmo e a arte — bem, a arte
é só a arte para ele: não um or-
namento, apenas um ornamento
(vide Osman Lins, que denun-
ciou o uso da arte como algo
“ornamental” na visão de tantos
escribas brasileiros), mas um sei-
xo rolado que ele encontra dian-
te do mar que sobrevive a tudo.
El gabinete del lector —
de um lateral cujo nome eu dei-
xarei à adivinhação dos leitores
(poucos) que restam — nos con-
duz como esse seixo, mas rolando
pelo mar da mente. Ou através
dos secretos — e nem tão secre-
tos para os tempos dos segredos
que não eram para ser contados
— palácios perdidos da leitu-
ra hoje ameaçada pela “faveliza-
ção” (?) do pensamento e daquela
Curiosidade (com C maiúsculo)
renascentista reduzida à pura fal-
ta de concentração e foco e abso-
luta atenção que, sim, poderia ser
devotada a um único livro a vida que deve ocupar entre os comen- preza a realidade. O Escritor La- laterais da lateralidade mais extrema da arte que já
inteira, a um só poema até como sais do jantar cujo prato principal teral estará mais aparelhado para não produz significação, sentido, sabedoria ou se-
quem absolutamente contempla foi caprichosamente feito com o isso do que aquele que não ob- quer palavras cuja ordem seja melhor do que aquela
a queda caprichosa de um floco cadáver da Literatura. serva o mundo ondulatório de produzida por autocombustão nas bibliotecas fe-
de neve num jardim invernal. À maneira do Stephen partículas que ainda pode ser re- chadas. O Escritor Lateral se permite escrever com
O que aconteceu conosco? Hawking que acaba de anunciar presentado pela praia de McEwan sentido que se forma somente sob a sua própria lá-
O escritor lateral dos “ana- que “a filosofia está morta”, esta — que deixou, aliás, de ser um la- grima na chuva, conforme o poema no escuro da
cronismos” (?) se pergunta, na Breve História da Literatura La- teral de qualidade, para se tornar gaveta proclama sobre cidades mortas, civilizações
lama mariana da literatura sem teral (?) faz como o renomado fí- um escritor desinteressantemen- perdidas, livros indecifráveis e animais que nunca
direção, na pressa atual em ava- sico anunciou na conferência do te profissional... Mas isso é outra existiram mas foram descritos por algum Marco Po-
lancha fatal para a civilização. Google Zeitgeist, em Hertford- história (e aqui se interpuseram lo em alguma cela profunda de inútil prisão:
Ele evoca o som de alguma serra shire, na Inglaterra (quando disse histórias laterais demais).
dos Órgãos westminsternianos que “as importantes questões do Creio que não me fiz en- Agora, escuta, quietamente escuta, como se ain-
de quatro teclados manuais (e 81 universo não podem mais ser re- tender — saudavelmente — ao da fosse tudo a extrema angústia no fundo do coração
registros) por sobre sons de heavy solvidas sem a ajuda da física e da falar (ou tentar falar) sobre escri- de algum Sudão da alma.
metal que alguma autoridade do tecnologia como aquela vista nos tores que escreveram para nin-
turismo turco tenha permitido grande aceleradores de partículas, guém ou ainda aquele que, agora, Entretanto, contemplando onde antes havia
serem ouvidos — com estourar pois esses campos não pertencem permanece escrevendo somente esplendor na relva [“Glória na flor”...], o que oprime
de tímpanos! — no grande an- mais à filosofia”, que seria — para depois da certeza de que não tem na Núbia interior, na Méroe de dentro, não é pro-
fiteatro da antiga Ephesus ainda ele — uma linha de pensamento mais qualquer importância escre- priamente o esquecimento, mas a passagem do tem-
suportando o sol, o sal dos corpos morta nos dias atuais). ver, escrever e escrever. “O futuro po — como passa um trem às escuras pelo azeviche
e a sensaboria das fotos dos Ipads, O livro perdeu o lugar cen- nos vingará” — como dizia o ho- de um túnel estreito — que fez mudar o negro cabelo
na era da falta de imaginação. tral da cultura há muito tempo mem sob a alcunha de “Hipnos”, à cabeceira do leito de nascimentos e mortes se suce-
Somos uma raça já extinta — desde quando cada um era diante de um mármore cuja be- dendo na solidão das coisas que para sempre se vão
— mas quando viremos a notar solenemente lido para a família, leza destronada havia sido resga- entre dois verões de búzios soterrados.
isso? pelo chefe da dita cuja, com as tada de um mar de tempestade
Na messe que enlouquece a bênçãos da Igreja onipresente — (mar-oceano, conforme Ledo-e Então, apenas ouve, sem nada perguntar, sem coi-
quermesse, o Escritor Lateral não e a linha morta também da lite- -Ivo-Engano), sob a chuva cin- sa alguma inquirir a respeito das verdades difíceis que
se preocupa com o sentido literal ratura só agenciará algum sentido zenta caindo na água, conforme ainda restam por ser não escritas, mas — na “saudade do
— e ignora o número da cadeira na deslocação absoluta que des- digo eu que escrevemos agora, futuro” — vividas com absoluta calma.
junho de 2016 | | 27

nossa américa, nosso tempo | joão Cezar de Castro Rocha


O antigo: aqui e agora.
Visita ao Musée Eugène Delacroix (2)

O método Delacroix: Pois: somos todos Rimbaud. tempo, destaca-se o caráter relativo das posi-
um passo atrás Eu é um outro. ções: nada impede que hegemonias sejam des-
No último artigo esbocei o “método Sempre. locadas, redesenhando situações geopolíticas e
Delacroix”, desenhado com base na expo- constelações simbólicas.
sição Delacroix et l’Antique. (Ainda bem.) Pois é.
Retomo o fio da meada. Contudo.
Melhor: recordo o impasse que de- Culturas shakespearianas,
vo enfrentar. porém, tornam essa circunstân- O método Delacroix: pelo avesso
Eis: num primeiro momento, talvez cia uma faca-só-lâmina, já que A exposição Delacroix et l’Antique me
tenha associado linearmente as culturas o dilema deixa de ser individual obriga a repensar esse quebra-cabeça.
shakespearianas e a poética da emulação à para assumir dimensão coletiva. Felizmente — pensar é bom sobretudo
condição não hegemônica. Se eu é um outro, então, em quando se descobre que se está equivocado.
Embora já tenha discutido esses nós mesmos, não são somos nada?
conceitos em textos anteriores desta colu- Formulo a pergunta em (Claro: o teórico amargo e a menina do-
na, vale a pena recordar, muito brevemen- tom menos dramático: as ori- ce estão sempre certos e há décadas professam a
te, o sentido que lhes atribuo. gens das culturas shakespearia- mesma velha opinião deformada sobre tudo. Não
Vamos lá? nas se confundem com lacunas, posso sequer conceber o tédio que devem sentir.)
Poética da emulação designa um como se fossem livros omissos,
conjunto de procedimentos que atualiza redigidos por Bento Santiago. No cenário das artes europeias, a França
a dinâmica implícita nos gestos clássicos Essa nadidade — produ- de Delacroix vivia o apogeu de sua condição
de imitar e emular, entendidos como mo- tiva, entenda-se bem — possui hegemônica no plano cultural. E nem por isso
mentos inter-relacionados de apropriação uma residência especial na terra; o pintor de Femmes d’Alger dans leur apparte-
de um repertório comum. Vale dizer, nem pelo menos, assim pensava. ment (1834) negligenciou a necessidade de imi-
a imitatio, tampouco a aemulatio consti- Culturas não hegemônicas: tar e emular as formas da arte clássica.
tuem atos isolados, porém supõem um eis o nome desse lugar. Um módulo da mostra foi dedicado ao
diálogo constante. trabalho diligente de Delacroix na cópia das
O advento do Romantismo esvaziou (Um não-lugar; no fundo, imagens e das efígies de moedas gregas e roma-
a imitatio clássica de seu caráter estratégico, um feixe de relações — devo me nas. O texto de apresentação dos estudos do
isto é, de seu traço mais relevante: imitar corrigir.) pintor vale por um ensaio:
quer dizer reproduzir determinada técnica
ou certo modo compositivo, a fim de ad- Com esse conceito almeja- Em 1825, aos 27 anos, Delacroix realizou
quirir domínio propriamente artístico. va superar as dificuldades gera- um grupo notável de desenhos e de litografias de
das pelas noções tradicionais de moedas antigas gregas e romanas (...).
(Você sabe: arte, em latim, se diz ars; centro e periferia. Longe de produzir uma cópia literal das
em grego, téchne. Não há arte sem técnica.) O problema maior des- moedas, o pintor criou um trabalho real de com-
sas noções reside na tradução, posição, arranjando os artefatos a fim de trans-
A poética da emulação, contudo, apressada, do dinamismo das formá-los em obra de arte. Muitos anos depois ele
não se limita à atualização de um método relações econômicas, políticas e escreveu que buscou “imitar sem ser imitador”,
pré-romântico. Ora, sua feição moderna, simbólicas em pontos fixos num permanecendo fiel à sua expressão própria.
logo, deliberadamente anacrônica, pro- mapa imaginário. Nessa carto-
duz um choque de temporalidades capaz grafia monótona, dois ou três Trecho que não pode senão provocar “o
de favorecer efeitos estéticos que levam centros comandariam uma mi- movimento ao canto da boca”, gesto tão temido
longe. Afinal, resgata-se um procedi- ríade de periferias, numa via de pelo pai de Janjão. A ironia é irresistível precisa-
mento por excelência pré-romântico em mão única tão desinteressante mente porque ignora o vocabulário da emulação;
tempos ostensivamente pós-românticos. quanto previsível. aliás, compreendido à perfeição por Delacroix,
Heraclitianos, os pressupostos da poética Ora, não há posição central em seu anelo: “imiter sans être imitateur”.
da emulação confirmam que o conflito é que não inclua zonas periféricas, O cuidado do texto revela o quanto o es-
o motor de toda invenção. assim como toda periferia con- pírito romântico segue atuante, pois, ainda que
Culturas shakespearianas dependem tém instâncias de centralidade. tenha “imitado”, o pintor soube “permanece[r]
radical e estruturalmente do olhar e da pa- Tal truísmo — peço que fiel à sua própria expressão”.
lavra de um Outro para a definição de sua você me perdoe, mas ele se im- No universo da aemulatio, tal ressalva é
imagem. Aliás, caso típico de sociedades pôs — é ainda mais acaciano no desnecessária. Como vimos, imitar permite
de passado colonial recente, cujo proces- mundo contemporâneo com apreender a técnica originalmente empregada
so de afirmação simbólica realizou-se em seus fluxos e vaivens de corpos, pelos gregos e romanos. Sem essa apreensão, o
meio à luta pela independência política. dados, mercadorias e capitais no artista estaria limitado, agora sim, “à sua pró-
A centralidade do outro na determi- sistema-mundo. pria expressão”. Propósito que subtrairia do
nação do eu é um fenômeno sobejamente Sem embargo, seria igual- artista o vasto repertório oferecido pela contri-
conhecido; seria uma ingenuidade diver- mente ingênuo considerar que buição milionária do alheio, isto é, o conjunto
tida imaginar que se trata de novidade aquele trânsito teria abolido hie- da tradição.
teórica. E nem mesmo é necessário evocar rarquias e assimetrias. Posso, agora, avançar uma alternativa ao
o delírio de Brás Cubas. Por que proje- É claro que não! impasse que devo elaborar.
tar-se na improvável origem dos tempos? Nas trocas internacionais, Vejamos.
Basta pensar na estrutura dinâmica do especialmente no mundo da cul- Sem dúvida, a poética da emulação nada
ego, tal como caracterizada por Sigmund tura e da produção de conheci- tem a ver com latitudes; certamente não é apa-
Freud; basta rememorar o stade du miroir, mento, as assimetrias se afirmam nágio da condição não hegemônica, tampouco
tal como imaginado por Jacques Lacan, na exata medida em que se afi- privilégio das culturas shakespearianas.
para reconhecer a onipresença da alterida- nam seus estilos de diferenciação. De acordo.
de no perfil do sujeito. Por isso, no quadro teórico Porém, tenho uma carta na manga.
Ainda: recitemos o pai-nosso an- que busco desenvolver, sugeri a Uma aposta: as culturas shakespearianas e
tropofágico: “Só me interessa o que não é substituição das noções de cen- a condição não hegemônica se distinguem pelo
meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. tro e periferia pelos conceitos de fenômeno da intensidade estrutural.
Mais: mencionemos o dilema do condição hegemônica e condi- Como assim?
Jacobina machadiano; ao fim e ao cabo, ção não hegemônica. Desse mo- É o que proporei na próxima coluna, na
todos vestimos nossas fardas de alferes e do, sublinha-se a complexidade qual analisarei a obsessiva emulação de Picasso do
nelas confiamos cegamente. dos movimentos, e, ao mesmo quadro Femmes d’Alger dans leur appartement.
28 | | junho de 2016

Reciclagem
Natália Nami
ilustração: Tiago Silva

— Todo mundo sorrindo. mo tempo gracioso de cabeça e, e aporrinhações vinham na me-


Um, dois, três, clique. Missão cumprida. como numa coreografia, tirou dida exata?
Menos pior do que se a dentuça com o tablet o celular de um bolso e a cane- Resolveu almoçar no par-
na mão tivesse falado Todo mundo dizendo xis. ta de outro, assinando (e lendo que. Sabia que o contato assim
Ou pênis. Detestava foto em grupo, abominava. antes) dois relatórios trazidos estreito com a natureza o apro-
A meia-lua de engravatados desfez-se e o cliente pela secretária, conversando no ximava de um passado do qual
japonês de óculos esverdeados já vinha atrás de- viva-voz em castelhano com o ele queria distância, mas o grau
le com o intérprete. Samuel chegou a tomar fôle- primo da ex-esposa que recla- de adrenalina estava alto, as se-
go para soltar um Excuse me e explicar que sentia mava como tudo estava caro em rotoninas ou ocitocinas ou o
muito mas precisava usar o mictório, quando o Aspen e rodopiando o pescoço raio-que-as-parta transborda-
cliente — diretor-chefe da montadora que havia nos últimos acenos aos japone- vam e, se bobeasse, ele se afoga-
acabado de desembolsar um milhão de dólares na ses que tinham ficado para trás ria naquela calda febril.
campanha publicitária de cinquenta segundos — a fim de repetirem o cafezinho. — Toca pro Jardim Botâ-
estendeu-lhe a mão dizendo, sem intérprete mes- Quando deu bom-dia ao ascen- nico.
mo, “Foi um prazer, doctor Sémuel”. sorista em uníssono com o ruí- O taxista soltava bafora-
Samuel apertou-lhe a mão de volta, num do que fizeram os saltos altos da das de quase embaçar o vidro e
esforço hercúleo para não sorrir demais. Aquele executiva ruiva ao chegar mais Samuel nem aí. Chofer fuman-
“doutor” lhe precedendo o nome, mormente quan- para o canto do elevador e lhe do durante o expediente andava
do proferido por figurões internacionais exalando o ceder espaço com um sorriso, não só cafona mas uma rarida-
perfume do dinheiro por todos os poros, provoca- achou que poderia morrer. Ou de, e aquela fumaça azulada vira-
va-lhe nas entranhas um calafrio de bem-estar. Ain- explodir. Há quanto tempo era va quase o incenso de um ritual.
da que já estivesse naquilo há tanto tempo. Ainda feliz assim? Há quanto tempo Samuel pagou, deu gorjeta e saiu
que já devesse estar acostumado. cada dia era moldado naque- do carro arrancando a gravata,
Despediu-se do diretor-chefe e de todos os la escala de semiperfeição, em com o paletó já no ombro. Na
outros japoneses com um aceno rápido e ao mes- que até os pequenos problemas aleia das palmeiras foi cumpri-
junho de 2016 | | 29

mentando desconhecidos, rodou pressão, os olhos forçadamente dia não dar em nada mas deu:
pelo Chafariz das Musas falando ingênuos. Samuel já havia, ao o invento, seu invento anônimo
sozinho e foi procurar algo para longo daquelas duas décadas, alônimo apócrifo conquistara
comer. O celular tocou antes que procurado o nome a esmo e a es- o primeiro lugar. No nome de
se sentasse. Era Ingrid, a gaúcha mo visto a foto, mas nunca lera Rolland, Rolland ganhando os
que conhecera no Arpoador e nada do perfil. Não sabia nem parabéns, as entrevistas, fotos,
com quem sairia hoje à noite, tu- qual profissão o ex-vizinho e ex- flores, beijos, artigos, presentes,
do dando certo. Atendeu dizen- colega de classe tinha seguido. reportagens. Passagens. Os três
do tchê, mãos e testa afogueadas, Pesquisador na universidade fe- anos em Londres. Rolland pas-
tropeçando nos assuntos, nem a deral do Rio de Janeiro. O puto sou a ser conhecido como jo-
deixava falar. Propôs o programa morava ali perto. Por que tanta vem prodígio e, embora não se
da noite, a peça, o cardápio, e ela irritação? Porque era pensar no tivesse sabido de nenhum car-
só rindo. Samuel gostava assim: passado e baixar aquela enxa- ro movido a lixo rodando pela
lourinha, novinha e risonha. queca. Ele não tinha feito nada cidade, só se falava nele como
Sem contar que Ingrid era inte- errado. Um, dois, clique. Vou cientista, inventor, inventor,
ligente pra burro. ser engenheiro e construir pon- cientista. Samuel primeiro sen-
Riu do próprio paradoxo, tes, anunciara Samuel um dia ao tiu nojo. Depois achou justo
abriu o botão de cima da cami- pai, que acreditou. Quando veio consolar-se com aquela primei-
sa e sentiu a pontada na cabe- a oportunidade de estudar na ra propina. As pontes de con-
ça. Sentou-se. Em torno de uma Europa, bastando vencer o con- creto, os vergalhões, o cimento
mangueira (ou mogno) um gru- curso dos jovens inventores pro- armado e o aço das fundações
po de universitários sorria todo movido pelo estado em parceria foram aos poucos substituídos
paramentado para um fotógra- com a escola estrangeira, Samuel pela névoa das trocas de favores.
fo profissional. Um, dois, três. nem pestanejou. Venceria. Tornara-se um perito na enge-
Tédio. Desabotoou de vez a ca- A terceira pontada na ca- nharia das palavras encapadas,
misa empapada de suor e deu a beça veio junto com uma trovoa- maviosas e melífluas.
primeira dentada no sanduíche; da. A tarde encrespara e ele nem Perguntou-se por quê.
aquela gente não iria mais sair vira. Raspou o resto de maione- Apertou a testa. Estava ali
dali? Cerrou os olhos. Alerta. se da boca com as costas da mão, no parque podendo pensar no
Deu um suspiro. Alerta máximo. fechou o computador e viu os es- encontro com a loura ou ma-
Quis provar-se que estava senhor tudantes agora lá longe, posan- quinar um outro com a more-
de si, abriu o laptop e acessou do sem cenário. Vestidos daquele na e ficava a dar chibatadas no
a rede social a esmo. De beca e jeito pareciam um cortejo fúne- próprio lombo. Vítima inocen-
aqueles olhos parados os foto- bre. O estômago doía, a cabeça. te. Desde quando? “Tu tá feito.”
grafados pareciam corujas enfi- E logo hoje que o dia tinha co- Um, dois, três, todos dizendo
leiradas. Escolheu um perfil. A meçado tão bem. A única coisa cheese, com sotaque. Abomina-
esmo. Roland W. Müller. Ou se- pior do que aquelas fotografias va fotos em grupo. Mas obede-
ria Rolland, com dois eles? Um, em grupo era ficar dando mar- cera assim mesmo, menino que
dois, clique — porra, o flash ma- cha a ré na memória. Não vira- era. A mãe de Rolland, burra,
chucara-lhe os olhos, pra que ra engenheiro mas enriquecera. fora arrancá-lo do campinho
tanta foto com jaqueira? Ou Era empresário. Executivo. Ci-i de futebol dizendo que estavam
mangueira, palmeira, não en- -ou, o tal Chief Executive Officer chamando todos para tirar re-
tendia de árvore: quando ouviu que já vinha até com pronúncia tratos. E justo na hora em que
alguém gritar sumaúma, achou importada: se quisesse cuspir di- ele estava para marcar o primei-
que era flash em tupi-guarani. nheiro, cuspiria. ro gol. A gurizada era parente de
Perfil encontrado. Mas Jovens inventores brasilei- Rolland, tudo alemão louro de
an­­ tes que a página carregasse, ros na Europa. Fazer um proje- olho azul. Primeiro fotografa-
fe­­chou o computador. Outra pon­ to, detalhar os cálculos, mandar ram os adultos. Mandaram Sa-
tada, e desta vez tão forte que pelo correio, naquele tempo muel esperar. Depois foram os
cogitou não voltar ao escritório. tinha negócio de correio. Do jovens, um bando de adolescen-
Passaria no apartamento de In- próprio projeto Rolland nem tes magrelos, ruços. Ele esperan-
grid antes da hora ou, melhor deveria lembrar-se, mas o amigo do. Aí finalmente alguém gritou,
ainda, ligaria para Jaqueline e quietinho e CDF que sonhava “Agora as crianças”. Foi indo
mataria dois coelhos com uma fazer pontes, com sua modés- junto com Rolland mas logo
paulada só. Que que tem, foi- tia que chegava a dar ânsia de sentiu uma mão comprimir-lhe
se justificando à meia voz como vômito, bolara uma proposta o ombro. Era o pai de Rolland:
se o pai ou a mãe estivessem ali genial, ao menos para a época. “Você não, rapaz. Vai destoar”.
plantados à sua frente. Que mal Um carro movido a lixo. Isso Rolland deu de ombros e o pai
tinha? Era maior de idade, bem quando reciclagem era palavra sorriu, arregalando os olhos de
-apessoado, desimpedido. Se a que a gente só conhecia mais ou água parada de piscina e fazen-
vida do homem começava a ser menos e em inglês ainda por ci- do sinal para que ele aguardas-
passada a limpo aos quarenta, ma, feito bullying hoje que nego se. Samuel puxou o amigo pelo
ele tinha ainda um ano para ras- diz bule. Rolland pedira para ele braço e falou quase cuspindo:
cunhar à vontade. acrescentar seu nome. Se não se “Explica pro teu pai que a mi-
Jaqueline era uma more- importasse, completara. Não nha mãe é branca”. Rolland pa-
na alto-astral que ele tinha co- importasse o cacete: o trabalho receu ofendido: “Mas você não
nhecido num congresso; topava não era em dupla, ia argumen- é”. Um, dois, três. Clique.
qualquer parada. Já Ingrid, um tar, mas Rolland sorria com os
ponto de interrogação: apa- olhos de água parada de pisci-
rentava uma universitariazinha na no canto da sala de aula; vi-
meio careta, meio porra-lou- ria a proposta, ele já pressentia,
Natália Nami
ca, mas também podia ser uma seriam instantes antes do bote
espertalhona atrás do dinheiro e ele, Samuel, pássaro hipno- Nasceu em Barra do Piraí (RJ). É
dele. O que não o incomodava tizado, cairia como um idiota, escritora e tradutora. Autora dos
romances A menina de véu (indicado
nem um pouco, aliás. vítima inocente. “Toma aqui,
ao Prêmio São Paulo de Literatura 2015
Abriu o laptop outra vez. Samuca. Essa história de Euro- e ao Prêmio Literário José Saramago
Rolland estava ali esperando, pa pode não dar em nada mas 2015) e O contorno do sol, e do livro
com o mesmo sorriso sem ex- com essa grana tu tá feito”. Po- de contos O pudim de Albertina.
30 | | junho de 2016

reprodução

Lamium
This is how you live when you have a cold heart.
As I do: in shadows, trailing over cool rock,
under the great maple trees.

The sun hardly touches me.


Sometimes I see it in early spring, rising very far away.
Then leaves grow over it, completely hiding it. I feel it
glinting through the leaves, erratic,
like someone hitting the side of a glass with a metal spoon.

Living things don’t all require


light in the same degree. Some of us
make our own light: a silver leaf
like a path no one can user, a shallow
lake of silver in the darkness under the great maples.

But you know this already.


You and the others who think
you live for truth and, by extension, love
all that is cold.

Lamium

Louise É assim que você vive quando tem um coração frio.


Como eu: nas sombras, vagando por rochas geladas,
sob os grandes bordos.

Glück O sol mal me toca.


Às vezes eu o vejo no começo da primavera, nascendo muito longe.
Então as folhas se interpõem, escondendo-o por completo. Eu o percebo
tradução e seleção: cintilando através das folhas, errático,
André Caramuru Aubert como alguém que bate na borda de um copo com uma colher de metal.

L
Nem todas as coisas vivas precisam
ouise Glück (Nova York, 1943) de luz na mesma medida. Alguns de nós
é uma poeta conhecida pela lim- criamos nossa própria luz: uma folha prateada
pidez, o intimismo e o lirismo de como uma trilha que não é usada, um lago
seus versos. Sem ser claramente prateado e raso na escuridão sob os grandes bordos.
identificada com nenhum dos movimentos
literários que ocuparam a cena norte-ameri- Mas você já sabe disso.
cana ao longo de sua carreira — como os Bea- Você e os outros que pensam
ts ou a New York School —, ela, no entanto, viver para a verdade e, por extensão, amam
conquistou admiradores fervorosos de crítica tudo o que é frio.
e entre seus pares (Robert Hass é um deles),
além de um belo punhado de prêmios, como
o Pulitzer de 1992, o Bollingen de 2001 e o
Wallace Stevens de 2008, fora o fato de ter
sido a US Poet Laureate entre 2003 e 2004.

The open grave A sepultura aberta


My mother made my need. Minha mãe construiu meu desejo.
my father my conscience. Meu pai minha consciência.
De mortuis nil nisi bonum. De mortuis nil nisi bounum.1

Therefore it will cost me Portanto isso vai me custar


bitterly to lie, amargamente permanecer,
to prostrate myself me prostrar
at the edge of a grave. na beira de uma sepultura.

I say to the earth Eu digo à Terra


be kind to my mother, seja boa para minha mãe,
now and later. agora e depois.
Save, with your coldness, Guarde, em sua frieza,
the beauty we all envied. a beleza que todos nós invejamos.

I became an old woman. Eu me tornei uma velha.


I welcomed the dark Eu dei boas-vindas à escuridão
I used so to fear. que antes costumava temer.
Leia mais em De mortuis nil nisi bonum. De mortuis nil nisi bonum.
www.rascunho.com.br
junho de 2016 | | 31

Vita Nuova
You saved me, you should remember me.

Hesitate to call The spring of the year; young men buying tickets for the ferryboats.
Laughter, because the air is full of apple blossoms.
Lived to see you throwing
Me aside. That fought When I woke up, I realized I was capable of the same feeling.
Like netted fish inside me. Saw you throbbing
In my syrups. Saw you sleep. And lived to see I remember sounds like that from my childhood,
That all that all flushed down laughter for no cause, simply because the world is beautiful,
The refuse. Done? something like that.
It lives in me.
You live in me. Malignant. Lugano. Tables under the apple trees.
Love, you ever want me, don’t. Deckhands raising and lowering the colored flags.
And by the lake’s edge, a young man throws his hat into the water;
perhaps his sweetheart has accepted him.
Hesitando em ligar
Crucial
sounds or gestures like
Vivi para ver você me jogando a track laid down before the larger themes
Fora. Aquilo pelejou
Como peixe na rede dentro de mim. Vi você pulsando and the unused, buried.
Em meus melados. Vi você dormir. E vivi para ver
Que tudo tudo foi pelo ralo Islands in the distance. My mother
A recusa. Feita? holding out a plate of little cakes —
Ela vive em mim.
Você vive em mim. Maligno. as far as I remember, changed
Amor, você sempre me quis, não. in no detail, the moment
vivid, intact, having never been
exposed to light, so that I woke elated, at my age
hungry for life, utterly confident —

By the tables, patches of new grass, the pale green


pieced into the dark existing ground.

Surely spring has returned to me, this time


Matins not as a lover but a messenger of death, yet
it is still spring, it is still meant tenderly.

Unreachable father, when we were first


exiled from heaven, you made Vita Nova
a replica, a place in one sense
different from heaven, being
designed to teach a lesson: otherwise Você me salvou, deveria se lembrar de mim.
the same — beauty on either side, beauty
without alternative — Except A primavera do ano; rapazes comprando passagens para as balsas.
we didn’t know what was the lesson. Left alone, Gargalhadas, porque o ar está repleto de macieiras floridas.
we exhausted each other. Years
of darkness followed; we took turns Quando eu acordei, percebi que era capaz de sentir a mesma coisa.
working the garden, the first tears
filling our eyes as earth Eu me lembro de sons assim na minha infância,
misted with petals, some gargalhadas sem motivo, simplesmente porque o mundo é belo,
dark red, some flesh colored — ou algo assim.
We never thought of you
whom we were learning to worship. Lugano. Mesas sob as macieiras.
We merely knew it wasn’t human nature to love Tripulantes subindo e descendo as bandeiras coloridas.
only what returns love. E na beira do lago, um jovem joga o seu chapéu na água;
quem sabe sua amada o tenha aceitado.

Matinas Sons ou
gestos decisivos como
um trilho assentado diante dos grandes temas
Pai inalcançável, quando nós fomos originalmente
expulsos do paraíso, você criou e não utilizado, sepultado.
uma réplica, um lugar de alguma maneira
diferente do paraíso, sendo Ilhas ao longe. Minha mãe
planejado para ensinar uma lição: por outro lado segurando um prato com bolinhos —
a mesma — beleza em cada lado, beleza
sem alternativas — Exceto que tanto quanto eu me lembro, em nenhum
por não sabermos qual era a lição. Deixados sós, detalhe diferente, o momento
nós exaurimos uns aos outros. Seguiram-se vívido, intacto, jamais tendo sido
anos de trevas; nos revezamos exposto à luz, portanto eu acordei jubilosa, na minha idade
trabalhando no jardim, as primeiras lágrimas sedenta por vida, absolutamente confiante —
encheram nossos olhos conforme a Terra
ficou turva com pétalas, algumas Junto às mesas, pedaços de grama nova, o verde opaco
vermelho-escuras, outras cor de carne — espalhado pelo escuro solo que havia.
Nós nunca pensamos em você
a quem aprendíamos a venerar. Nota É certo que a primavera voltou para mim, desta vez
Nós apenas sabíamos que não é da natureza humana amar 1. Dos mortos não como um amante, mas como uma mensageira da morte, mesmo
somente aquilo que retribui o amor. só falemos bem que ainda seja primavera, que ainda signifique doçura.
ARTES VISUAIS, MÚSICA,
DANÇA, TEATRO, CINEMA.
O MELHOR DA CULTURA
VOCÊ ENCONTRA DE GRAÇA
NO ITAÚ CULTURAL.

Rael | foto: Chris Rufatto


Espaço Olavo Setubal | foto: Edouard Fraipont
Exposição Sergio Camargo: Luz e Matéria | foto: André Seiti
Evento || Entre || Arte e Acesso | foto: Ivson Miranda
Ilú Obá de Min | foto: Ivson Miranda

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