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Sílvia Dantas2
Universidade de São Paulo, USP
Resumo
A partir da pesquisa recém-iniciada, esse trabalho busca uma aproximação com a série 3
Teresas, exibida pelo canal por assinatura GNT desde 2013. Com abordagem qualitativa
amparada pela Análise de Discurso de linha francesa, trata-se de um estudo de caso que se
delineia a partir do discurso teledramatúrgico e tem por objeto privilegiado a enunciação
feminina, buscando analisar a produção de sentidos a partir da construção discursiva em que a
busca da felicidade é norteadora. O referencial teórico se lastreia principalmente em Bauman
(2005, 2008); Douglas e Isherwood (2004); Ehrenberg (2010); Freire Filho (2010, 2011);
Slater (2002) e Orlandi (2009).
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 01: Comunicação e consumo: cultura empreendedora e
espaço biográfico, do 4º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de
2014.
2
Doutoranda em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-USP, mestra em Comunicação e Práticas
de Consumo pelo PPGCOM-ESPM/SP. Bolsista CAPES. Pesquisadora do Centro de Estudos de
Telenovela (CETVN/ECA-USP) e do Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva (OBITEL).
E-mail: silviagdantas@gmail.com.
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depois se dirigiu à ideia de recorde, até que, enfim, passou a classificar os seres
humanos. Na atualidade, esse modelo de classificação se expandiu inclusive para os
atos de cuidado com o corpo, o gerenciamento da carreira e a procura da felicidade.
Ao que parece, tudo passa a ser pautado a partir do paradigma da eficácia,
pois “o empreendedor foi erigido como modelo da vida heroica” (EHRENBERG,
2010, p.13). Dessa forma, a cultura do empreendedorismo, voltada à maximização de
potencialidades e sucesso, passa a se configurar como modelo de autogestão, na
medida em que se percebe uma certa “naturalização” desses discursos dirigidos
anteriormente à lógica corporativa com o intuito de estimular a constante
autossuperação. A almejada “mitologia da autorrealização” (EHRENBERG, 2010,
p.11) parece reunir três grandes eixos: o espírito empresarial de concorrência, a busca
de superação contínua pelo esporte e a realização pelo consumo de bens.
O consumo, definido como processo social, conecta importantes questões das
nossas vidas cotidianas com questões centrais da nossa sociedade e época. Ele
relaciona-se com a forma pela qual devemos ou queremos viver, com
questões acerca de como a sociedade é ou deveria ser organizada, com a
estrutura material e simbólica dos lugares em que vivemos e a forma como
neles vivemos. (SLATER, 2002, p. 8)
A partir de um estudo antropológico do consumo, Douglas e Isherwood (2004)
enfatizam a sua significação social, trazendo visibilidade e também estabilidade às
categorias da cultura. Segundo eles, “as posses materiais fornecem comida e abrigo, e
isso deve ser entendido. Mas, ao mesmo tempo, é evidente que os bens têm outro uso
importante: também estabelecem e mantêm relações sociais” (DOUGLAS;
ISHERWOOD, 2004, p.105).
Importante marcador social, o consumo traz significação e contribui para a
classificação de pessoas, visto que aquilo que o consumidor compra pode fornecer
pistas sobre quem ele é ou deseja ser, de maneira que fica evidente o vínculo entre a
formação da identidade e o consumo.
A maior atração de uma vida de compras é a oferta abundante de novos
começos e ressurreições (chances de ‘renascer’). Embora essa oferta possa ser
ocasionalmente percebida como fraudulenta e, em última instância, frustrante,
a estratégia da atenção contínua à construção e reconstrução da auto-
identidade, com a ajuda dos kits identitários fornecidos pelo mercado,
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Coprodução com a Bossa Nova Filmes, a primeira temporada da série teve 13 episódios semanais
(sendo exibida de 08/05 a 31/07/2013), com duração de cerca de 23 minutos cada. A estreia da segunda
temporada está programada para este ano, e as vinhetas da programação do GNT continuam trazendo
chamadas para a série sem, contudo, apresentar data de estreia da nova temporada.
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Fonte: GNT. 3 Teresas. Sobre a série. Disponível em: <http://gnt.globo.com/_3teresas/sobre/>.
Acesso em: 23 ago. 2013a.
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Em entrevista a Stycer (2013), a diretora do canal, Daniela Mignani, considera 3 Teresas a melhor das
quatro séries graças ao talento do diretor e à riqueza dos personagens.
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Concorreram na categoria as séries Agora Sim (Sony/Mixer); A Menina Sem Qualidades (MTV
Brasil/Estudios Quanta); O Negócio (HBO/Mixer); 3 Teresas (GNT/Bossa Nova Films) e Latitudes
(TNT/Losbragas/House Entertainment), sendo esta última a vencedora, conforme informações do site
Meio e Mensagem, 2013.
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O episódio teve 2.377 visualizações. Fonte: < http://globosatplay.globo.com/gnt/tres-teresas/>.
Acesso em: 03 ago. 2014.
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cenário de praia para coleção Primavera-Verão quando seu quase ex-marido chega à
calçada e ela o chama para entrar. Assim, que entra na vitrine composta por vários
castelos de areia e referências ao mar, Ringo (Enrique Diaz) pisa em um castelo de
areia, desmanchando-o. Ele traz sacolas com itens que ela havia pedido para compor o
cenário e trocam palavras. Ele elogia o trabalho dela e fica emocionado, mas ela, de
postura firme e decidida, procura ser racional. No entanto, as lembranças emergem.
RINGO: A gente passou a lua de mel numa praia assim, ó, com a areia
sujinha assim ó, lembra?
TERESA: Humm... eu lembro é do bicho geográfico que eu peguei... você
coçando meu pé sem parar... (os dois dão risada). Depois disso eu nunca mais
pisei na areia descalça.
RINGO (puxando pela memória): Praia da Baleia.
TERESA: Praia Preta, Ringo!!
RINGO: Praia Preta... é?! Bom... o importante é que foi bom, né?
TERESA: É, foi, foi bom (fala com frieza). Um casamento que começa com
bicho geográfico só pode mesmo terminar numa vitrine sem vista pro mar.
RINGO: A gente podia ir um dia pruma praia, assim de novo, juntos. Um
dia...
TERESA: É, um dia, quem sabe... como amigos (levanta-se e Ringo se
estristece), já que é só isso que a gente tem sido nos últimos tempos.8
8
Transcrição do episódio disponível em: < http://globosatplay.globo.com/gnt/tres-teresas/>. Acesso
em: 03 ago. 2014.
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Print screen de cena a partir do link: <http://globosatplay.globo.com/gnt/tres-teresas/>. Acesso em: 03
ago. 2014.
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Transcrição do episódio disponível em: < http://globosatplay.globo.com/gnt/tres-teresas/>. Acesso
em: 03 ago. 2014.
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E essa pergunta gera um monólogo, uma vez que ela continua falando sobre isso,
mesmo quando a amiga pergunta sobre sexo (“Você tem que dar todas as respostas
sozinha. Quando a felicidade existe mas está em outro lugar, sabe?”). Márcia então
diz: “Eu sabia... sempre tem outro.”
A conversa um tanto desconexa se assemelha a monólogo interior ou fluxo de
consciência, já que não há diálogo propriamente dito, mas sim frases soltas e
perguntas que não são respondidas. Teresa parece querer se convencer de que está
tomando a decisão certa, uma vez que a busca da felicidade e de construção da
identidade exige dela a decisão da separação. Ao dizer que “a felicidade existe mas
está em outro lugar”, a personagem evidencia a insatisfação com o atual momento e
se coloca no papel de responsável por buscar a sua felicidade, que se torna obrigatória
nos dias de hoje de tal forma que demonstrar tristeza ou sinal de infelicidade seria um
fracasso. É preciso renascer constantemente, como analisa Bauman (2008, p.128):
“Mudar de identidade, descartar o passado e procurar novos começos, lutando para
renascer – tudo isso é estimulado por essa cultura como um dever disfarçado de
privilégio”.
Nesse contexto, nem mesmo no momento em que se afasta de um
companheiro com o qual conviveu por 16 anos, ela teria “direito” a “ficar para baixo”,
já que a amiga exige dela uma atitude de alegria e comemoração: “Tô te achando
muito pra baixo para quem tá separando.” Ela tenta animar Teresa ao enunciar:
“Separada é solteira com experiência”. Esse enunciado é objeto de interdiscurso
quando Teresa, a seguir, ao comprar um novo colchão, conversa com o vendedor.
O consumo ganha aqui uma função social importante, como demarcador
simbólico de uma transformação, ou seja, seria um rito de passagem: do status de
casada para separada, ou “solteira com experiência”, intertexto que ela usa com
orgulho. Comprar um novo colchão é usar o “consumo para dizer alguma coisa sobre
si mesmo” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, 116), nesse caso, o novo estado civil.
Mais uma vez, a enunciação de Teresa na loja de colchões mais parece um
monólogo, pois enquanto o vendedor fala de questões práticas, como o número de
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Print screen de cena a partir do link: <http://globosatplay.globo.com/gnt/tres-teresas/>. Acesso em:
03 ago. 2014.
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Considerações finais
Na contemporaneidade, a felicidade foi alçada à condição de dever ao qual
todos devem empreender esforços, tal qual um projeto pessoal a ser gerenciado como
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uma empresa. Para isso, o consumo fornece subsídios para uma reconfiguração de
identidade, a partir das variadas fases da vida ou simplesmente de acordo com o
desejo do sujeito da sociedade de consumidores (BAUMAN, 2008).
Nas campanhas publicitárias, nas ficções televisivas – dentre as quais
tomamos como objeto a série 3 Teresas –, e na mídia em geral, ecoa o discurso da
felicidade como responsabilidade individual, dependente apenas da performance de
cada um para obter o seu “lugar ao sol” ou sua “vista para o mar”, como o discurso de
Teresa reitera, e do consumo como significante social que contribui para a formação
de identidades. Essa produção nos indica como a enunciação da personagem traz a
intrínseca relação entre os eixos da formação da identidade, da busca da felicidade e
do consumo.
Referências
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